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Roda de choro na loja A Contemporânea, 2005, São Paulo/ Tânia Caliari O choro 18 REPORTAGEM N.69 JUNHO 2005 Roda de choro no bar Suvaco de Cobra, anos 1970, Rio de Janeiro/ Ag. O Globo música brasileira é livre W W W. O F I C I N A I N F O R M A . C O M . B R REPORTAGEM ESPECIAL O violonista Maurício Carrilho enumera nada menos que dez gerações desde as origens mais remotas do choro, situadas há um século e meio. Para descobrir de onde vem o vigor desse gênero, que alicerça, com o samba, o que conhecemos como Música Popular Brasileira, REPORTAGEM ouviu chorões de vários lugares do país. E constatou que entre os segredos que mantêm o choro vivo e forte, está uma mistura de tradição e inovação, algo que tem rejuvenescido o público brasileiro e despertado interesse também no exterior Tânia Caliari 1. O aniversário de Pixinguinha Debaixo de imensas mangueiras, cujas sombras deixam crescer o musgo por toda parte no pátio da Universidade do Rio de Janeiro, no bairro da Urca, 250 músicos e aprendizes estão reunidos no sábado, 23 de abril, para prestigiar o dia do aniversário de Pixinguinha, data que, desde 2000, é oficialmente lembrada como Dia Nacional do Choro. “Vamos tocar essa de novo, desta vez sem apressar o andamento”, diz a cavaquinista e dublê de maestrina Luciana Rabello, ordenando a repetição de Cochichando, um dos clássicos produzidos pelo grande músico, um dos definidores da linguagem do choro. Mais uma aula/ensaio do que um show, essa é uma apresentação do Bandão da Escola Portátil de Música, atividade didática que reúne, uma vez por mês, alunos de todos os níveis e de todos os instrumentos. Nessa manhã especial, a platéia junta, além de turistas e habitués da função, ouvintes ilustres, como o violonista Yamandú Costa e o poeta e produtor Hermínio Bello de Carvalho, conselheiro WWW.OFICINAINFORMA .COM.BR da Escola. Pedro Aragão, violonista, se reveza com Luciana na condução do grupo, também regido pelo ritmista Celsinho Silva e pelo também violonista Maurício Carrilho. Os quatro músicos, mais o compositor César Carrilho e o flautista Álvaro Carrilho, são os fundadores da Escola, criada em 2000 com o nome de Oficina de Choro. Ao final, parte dos alunos se reagrupa em rodinhas para novos exercícios e acertos de repertórios. O retrato de Pixinguinha, estampado num estandarte pendurado numa das árvores, observa a todos do alto de seus 108 anos. Celsinho Silva, percussionista do grupo Nó em Pingo D’Água, abandona a supervisão de uma roda de alunos que enfrenta os desafios do pandeiro para explicar que a criação da Escola foi uma maneira encontrada pelos músicos de sua geração para passar adiante, de forma sistematizada, o que aprenderam nas rodas de choro que freqüentaram desde criança. “Quando a gente já era adolescente, nos anos 1970, a roda mais famosa do Rio era a do bar Sovaco de Cobra, na REPORTAGEM N.69 JUNHO 2005 19 Tânia Caliari Penha”, lembra. Ali tocavam chorões da velha guarda, mú- anos 1970, em parte como forma de resistência ao “impesicos anônimos e profissionais, os iniciantes e os “sapos”. rialismo cultural americano”, como diz. Sua formação mu“Na época, eu só ficava olhando”, diz Celsinho. Foi lá que sical também começou no Sovaco de Cobra. Luciana o chamou, em 1976, para integrar o grupo Os Prata não conheceu Jacob Pick Bittencourt, morto em 1969, Carioquinhas, com o seu irmão Raphael Rabello, no violão mas sua admiração pelo músico deve-se, em grande parte, à de sete cordas, e com Maurício, no de seis. Celsinho e seus posição política de Jacob em relação ao choro. “Ele foi o colegas avaliam que hoje, com a redução do número de primeiro músico que tratou o choro como um patrimônio rodas de choro espontâneas, a formação, a reprodução do nacional a ser preservado sistematicamente”, diz. Prata e repertório e as possibilidades de novas composições no choro Pedro Aragão reuniram e digitalizaram toda a discografia podem se dar numa escola como a deles, que oferece suas de Jacob – a coleção Todo Jacob, em 16 CDs, que, além de vagas gratuitamente, graças ao financiamento de uma mul- todas as gravações originais de Jacob em discos, contém trechos de apresentações em rádio, e parte dos registros tinacional de energia. A consolidação das atividades da Escola Portátil de Músi- dos saraus que o bandolinista fazia em sua casa, em ca, em seu quinto ano de funcionamento e com suas 620 Jacarepaguá, nos anos 1950-60. Esse material está hoje no vagas disputadas por 1.500 candidatos na última seleção, é uma boa amostra do momento pelo qual o choro passa: 1) há uma busca pela formação sistemática de músicos; 2) o gênero está crescendo entre o público mais jovem; 3) avançam as atividades de pesquisa e difusão da história e de repertórios antigos e inéditos; 4) surgem novos compositores, tanto aqueles voltados para as formas mais tradicionais quanto os que agregam novos elementos musicais ao choro. Segundo Maurício Carrilho, esse movimento não tem, porém, uma resposta proporcional da grande mídia – as grandes gravadoras, rádios e TVs – e, conseqüentemente, de consumo de massa. “Realmente, o público de choro vem se ampliando, mas, principal- O Bandão, da Escola Portátil, Rio: no aniversário de Pixinguinha, centenas de mente, vem melhorando qualitativa- músicos, principalmente amadores, celebram o Dia Nacional do Choro mente. No Bandão, a maior parte dos alunos não vai se profissionalizar, mas vai ser um público Museu da Imagem e do Som (MIS) do Rio, juntamente com a maior parte do acervo deixado pelo músico. especializado, que entende aquela música”, diz. Na linha de preservação e pesquisa, há vária ações em an- O IJB digitalizou também 80 fitas de áudio que estavam damento. Em São Paulo, por exemplo, o músico Toninho em poder de Elena Bittencourt, filha de Jacob. Nas fitas há Carrasqueira finaliza um projeto de documentação do choro alguns registros que marcaram a história do choro e que paulista. No Rio de Janeiro, além de a Prefeitura ter tom- falam muito sobre o músico. Há, por exemplo, 12 músicas bado, no dia do aniversário de Pixinguinha, a obra do mes- de Pixinguinha que Jacob ensaiava para gravar. No dia em tre, o acervo de outro músico fundamental, Jacob do que um infarto o matou na porta de sua residência, ele estava justamente voltando da casa de Pixinguinha, a quem Bandolim, está sendo recuperado já há algum tempo. O material preservado por Jacob é uma espécie de jóia tinha ido visitar para acertar os últimos detalhes do disco. rara. Reunido pelo próprio músico ao longo de sua carrei- Como escreveu Hermínio Bello de Carvalho sobre Jacob, ra, tem mais de 10 mil peças – entre fitas de áudio, partitu- “a música era sua religião, seu deus era Pixinguinha”. ras e discos. Um dos responsáveis por esse legado é Sér- Há ainda registros de Jacob tocando sucessos da bossa-nova, gio Prata, cavaquinista do grupo Sarau. Funcionário do como Corcovado e Insensatez. Certa vez, em entrevista, ele Banco Central, no final de abril ele dedicou seu horário de disse, para assombro de todos que sabiam de sua fama de almoço para atender REPORTAGEM num simpático café chorão ortodoxo, que iria gravar canções da bossa-nova, o na rua Teófilo Ottoni, no centro do Rio, a duas quadras da gênero que, segundo alguns especialistas, contribuiu para colocar o choro na “geladeira” durante alguns anos. Veio o sede do BC. Prata, que é diretor de pesquisa do Instituto Jacob do clássico Vibrações, seu último disco, e a gravação das bosBandolim (IJB), se interessou pelo choro ainda rapaz nos sas não se consumou. Os ensaios registrados, porém, mos20 REPORTAGEM N.69 JUNHO 2005 W W W. O F I C I N A I N F O R M A . C O M . B R AE/ Tânia Caliari REPORTAGEM ESPECIAL Prata (acima, à dir.), o guardião do tesouro de Jacob: fitas de áudio e partituras que registram um pedaço da história do choro tram que talvez Jacob estivesse falando sério. O IJB busca agora recursos para digitalizar outras 120 fitas que estão em poder do MIS, que devem conter, inclusive, o registro do show de março de 1967 no Teatro Casa Grande, no Rio, quando lhe foi concedida a Comenda da Ordem da Bossa. Ao chegar ao teatro, Jacob se espantou ao ver um público de “cabeludos”, como dizia, e quase desistiu de tocar. Ovacionado após interpretar Lamentos, de Pixinguinha, sofreu seu primeiro infarto. O acervo tem ainda mais de 5.900 partituras, rigorosamente catalogadas, e 34 lendários Cadernos de Partitura, que contêm peças manuscritas por chorões do final do século 19 até meados do século 20 (o mais antigo data de 1891 e o mais recente, de 1966). Sendo o choro uma música de tradição “oral”, alguns músicos que dominavam escrita e leitura de partituras tornaram-se copistas, encarregados de perpetuar as composições. Outra iniciativa do mesmo tipo é encabeçada por Maurício Carrilho e Luciana Rabello, responsáveis por recente pesquisa sobre músicos de choro e repertórios do século 19. A partir do levantamento de partituras e após comporem arranjos e harmonias para as melodias registradas, lançaram há dois anos, numa parceria entre as gravadoras Acari, de sua propriedade, e Biscoito Fino, a caixa Princípios do Choro: são 15 CDs, com repertório quase todo inédito de 50 compositores. Nessa mesma linha, a Biscoito Fino lançou também uma outra coleção de 15 CDs com as primeiras gravações de choro feitas no Brasil executadas sobretudo pela Banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro. “Muita coisa que era desconhecida do passado tem sido colocada à disposição, fora a produção contemporânea, que tem aumentado”, diz Maurício. Além de todo esse esforço de pesquisa, o que se percebe também é que o vem contagiando gente mais jovem, num processo recorrente, em que os filhos dos chorões mais velhos acabam recrutados. A cavaquinista Ana Rabello, 19 anos, filha de Luciana e também professora da Escola, estava de “ressaca” no dia da apresentação do Bandão, pois tinha tocado até as quatro horas da manhã com o Regional Carioca. O grupo é formado por novíssimos músicos que, como ela, nasceram com pedigree de chorões. Entre eles, o bandolinista Thiago (filho de Ronaldo do Bandolim) e o pandeirista Eduardo (filho de Celsinho Silva). O salão do Clube dos Democráticos, onde se apresentaram, no circuito boêmio da Lapa carioca, esteve lotado a noite toda. E o público, formado por jovens em sua maioria, caiu na dança. Não longe do clube, na mesma rua Riachuelo, ficava, nas primeiras décadas do século 20, a república onde moraram Donga e Pixinguinha, músicos populares e mestiços, freqüentados por parte da alta intelectualidade da época, fato muito importante, como veremos, para a consolidação do choro, gênero considerado por muitos como a síntese da música nacional. 2. De provinciano a nacional “Há 100 anos surgia no bairro da Cidade Nova, no Rio, uma forma de tocar música dançante destinada a transformar-se, sob o nome de choro, na primeira grande contribuição dos artistas populares brasileiros à criação de um estilo musical realmente nacional”. Foi dessa forma que, em 1973, o jornalista e pesquisador José Ramos Tinhorão abriu um artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo. Pode-se dizer que a transformação do choro de “jeito de tocar” para “gênero musical” deu-se em várias etapas, e ocorreu paralelamente à construção e à conversão do samba carioca em “a” música nacional. Quando Pixinguinha consolidava sua carreira de músico na década de 1920, o choro começava a deixar de ser uma designação genérica, usada para nomear o conjunto de flauta, violão e cavaquinho, ou as músicas de dança tocadas WWW.OFICINAINFORMA .COM.BR de forma peculiar por esses grupos, e até certos bailes populares – o que justificaria uma das hipóteses sobre a origem do termo choro: o chamado xolo, bailarico dos escravos. O choro saiu das serenatas sem compromisso das ruas do Rio e das festas nas casas de famílias – onde os músicos eram recompensados com mesas nem sempre fartas – e adquiriu cada vez mais um caráter profissional, moldando-se à nascente indústria fonográfica e ao rádio. Como o samba, serviu às demandas de uma política cultural de identidade nacional. O antropólogo Hermano Vianna chamou de Mistério do Samba, título de seu livro-tese sobre o assunto, o que considera um fato pouco explorado da história social da música em nosso país: como o samba, ritmo mestiço, um tanto REPORTAGEM N.69 JUNHO 2005 21 22 REPORTAGEM N.69 JUNHO 2005 Arquivo sérgio Prata maldito na sociedade montada sobre referências européias, passou a ser considerado a música da identidade nacional? Dando nome aos santos, mas sem contar como se deu o milagre, Antonio Candido diz: “Enquanto nos anos 1920 um mestre supremo como Sinhô era de atuação restrita, a partir de 1930 ganharam escala nacional nomes como Noel Rosa, Ismael Silva, Almirante, Lamartine Babo, João da Baiana, Nássara, João de Barro e muitos outros”. A construção do novo status para o samba seria, na hipótese de Hermano, o coroamento de uma tradição secular de contatos entre vários grupos sociais na tentativa de inventar a identidade brasileira. Essa tradição levaria, no início do século 20, uma parte da elite nacionalista a freqüentar o antro de Pixinguinha e Donga, que habilmente assimilavam e misturavam o batuque do lundu e o chamado samba-duro da Bahia – tocados nas casas das “tias” baianas do centro do Rio (em sua maioria ex-escravas migradas e mães e tias de vários desses músicos) – com toda sorte de música européia dançante e suas versões já abrasileiradas pelos antecessores do choro. Em depoimento gravado para o MIS, Donga cita como um dos freqüentadores da república da rua Riachuelo o presidente da Academia Brasileira de Letras, Afonso Arinos, que já havia levado ao Teatro Municipal manifestações populares, como o bumba-meu-boi. “É ao povo, e não à elite, que devemos o pouco de unidade que temos”, escreveu Arinos, para quem, entre as “coisas brasileiras” que fariam a unidade da pátria, a música tinha lugar especial. O ponto de partida do livro de Vianna é um encontro ocorrido em 1926 entre o sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, o historiador Sérgio Buarque de Holanda, o promotor Prudente de Moraes Neto, e os músicos eruditos Heitor Villa-Lobos e Luciano Gallet, com os “brasileiríssimos” – como diria Freyre – Patrício Teixeira, Donga e Pixinguinha, num bar fechado especialmente para a ocasião. De um lado, representantes brancos da intelectualidade; do outro, músicos negros e mestiços. Freyre e Buarque de Holanda escreveriam mais tarde, respectivamente, Casa Grande e Senzala (1933) e Raízes do Brasil (1936) – obras, como destaca Vianna, fundamentais para a definição do que mais tarde seria considerado “brasileiro”. Já os artistas ali reunidos se tornariam responsáveis pela música tida como verdadeiramente nacional. Nesse mesmo processo de contato de representantes de parte da elite com os valores populares ocorreria também a transformação da mestiçagem em algo positivo para o Brasil. Considerada durante todo o século 19 pela classe dominante como a principal causa do atraso do país, a mistura de raças passaria a ser vista como aspecto central da originalidade da civilização brasileira, tese defendida com sucesso em Casa Grande e Senzala. Todos esses elementos, segundo Vianna, fazem parte de um processo de invenção da tradição para o Brasil, facilitado nesse momento por um quadro de rupturas política, social e intelectual. Politicamente, havia prenúncios da Revolução de 30 – como o tenentismo, a Coluna Prestes Os Oito Batutas, um marco na história da MPB: liderados por Pixinguinha (com o saxofone, ao centro) e Donga, excursionaram pelo Brasil e se exibiram em Paris e a falência do projeto político das oligarquias do café. No meio intelectual, os modernistas, depois de aderirem ao futurismo e vanguardismo europeus, voltavam-se para a elaboração de uma cultura nacional – algo que intelectuais pré-modernistas, como Graça Aranha, Lima Barreto, Afonso Arinos, Euclides da Cunha e Sílvio Romero, já perseguiam. Os modernérrimos Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade e Mário de Andrade partiriam com o poeta francês Blaise Cendrars – tido por muitos como o estrangeiro que ensinou os artistas brasileiros a olharem para seu próprio país – para uma viagem pelas cidades históricas de Minas Gerais. A essa altura, Donga, Pixinguinha e o violonista João Pernambuco já tinham eles mesmos se embrenhado pelo país, numa turnê realizada em 1921 por Minas, Bahia e Pernambuco, em missão de pesquisa musical encomendada pelo industrial Arnaldo Guinle, outro expoente da burguesia nacional. No ano seguinte, esses músicos já estavam em Paris, num movimento inverso, exportando essa cultura colhida e sintetizada por eles em sua música. Essa viagem a Paris, além de influenciar os músicos brasileiros – Pixinguinha trouxe um saxofone na bagagem – iria ajudar a cristalizar o samba carioca, um dos tantos ritmos que eles tocavam, como música nacional. A construção do gênero não pararia aí: um pouco mais tarde, o samba assumiu um ritmo mais acelerado, adequado ao andar das nascentes escolas de samba, e passou a ser conhecido como “samba de morro”. Esse passou a ser considerado o “samba autêntico”, em detrimento do samba forjado antes, tido como muito “amaxixado”. Segundo Vianna, a valorização da mestiçagem trouxe uma nova questão, já que a mistura racial nunca foi homogênea no Brasil. Foi preciso escolher o tipo ideal. Vianna lembra que Euclides da Cunha, por exemplo, escolheria o sertanejo, mistura de caboclos com brancos do interior do país. Mas foram os mulatos urbanos que conseguiram destaque, talvez por sua grande presença na capital da República. Tanto é que foi o samba, a música desenhada ali, que se tornou a música nacional – e não a música caipira de São Paulo ou os ritmos nordestinos. E o choro nisso tudo? A história do Grupo Caxangá, que deu origem a Os Oito Batutas, mostra que a música regioW W W. O F I C I N A I N F O R M A . C O M . B R REPORTAGEM ESPECIAL nal nordestina contribuiu muito para outra transformação musical em curso: a passagem do choro de música popular carioca para um gênero de caráter nacional. A música de maior destaque do carnaval carioca de 1914 – quando no carnaval ainda se tocava de tudo: polca, schottisch, foxtrot, charleston, valsa, maxixe, tango... – foi a embolada Cabocla de Caxangá, de João Pernambuco. No Rio desde 1904, quando trabalhou na fundição da família Guinle, Pernambuco formou um bloco, o Grupo de Caxangá, que desfilava com roupa de cangaceiro e com nomes de guerra escritos na aba do chapéu. Músicos cariocas aderiram ao grupo: Pixinguinha desfilava como Chico Dunga e Donga era Zé Vicente. O Caxangá atuou no carnaval até 1919, quando o dono do Cine Palais pediu a Pixinguinha e Donga que organizassem um grupo menor, para tocar no hall do cinema. Surgiu então Os Oito Batutas, com flauta, bandolim, cavaquinho, três violões e, como novidades, ganzá e pandeiro. João Pernambuco participou da segunda formação do grupo. No anúncio do cinema, o grupo era apresentado como orquestra “típica” regional, mas o repertório incluía, além de canções sertanejas, maxixes, lundus, batuques, cateretês. O caráter “típico” do grupo se baseava na introdução da percussão numa formação de choro. Estava criada ali a base do que viria a se consolidar como “conjunto regional” na década de 1930. Parte da elite reagiu aos músicos que animavam o Palais: “era uma desmoralização para o Brasil ter na principal artéria de sua capital uma orquestra de negros”, dizia artigo da época. Essa resistência, no entanto, não evitou que Os Oito Batutas se apresentassem aos reis da Bélgica em visita ao Brasil, e nem que Arnaldo Guinle bancasse suas viagens. No depoimento ao MIS, Donga esmiuça a primeira turnê pelo interior brasileiro, que tinha como objetivo colher mú- sicas folclóricas e populares. “Nós estávamos há 20 dias sem função e o dinheiro tinha acabado. Ele [Guinle] disse o que queria e perguntou o que os músicos achavam. Os músicos disseram que sairiam em excursão pelo Norte, e o Guinle pediu para incluir o João Pernambuco no grupo”. E assim foram. Segundo Donga, Pernambuco trouxe letras e músicas apenas na memória, o que deixou Guinle zangado. O empresário pediu então para Donga organizar outra viagem, sem João Pernambuco. Desta vez, Pixinguinha apresentou tudo escrito e organizado. Guinle ficou satisfeito, o que possibilitou a excursão do grupo a Paris. Nessas viagens pelo Brasil, os Batutas influenciaram muito os músicos locais. Em Recife, o grupo levou à criação dos Turunas Pernambucanos, que tinha Severino Rangel (Ratinho) e José Calazans (Jararaca) – a dupla que, com sua música sertaneja, mudou a música do interior de São Paulo e Minas, reinventando a moda de viola. No choro, Ratinho, saxofonista, criou clássicos como Saxofone, por que choras?. De Recife saiu também o Turunas da Mauricéia, grupo de Luperce Miranda, bandolinista importantíssimo, que mais tarde se destacou entre os chorões do Rio. Depois da mistura da música regional com a música urbana do Rio ao longo dos anos 1920, deu-se na década seguinte a diversificação do mercado de música, com o aumento do número de emissoras de rádio e de gravadoras de disco. Essas empresas passaram a contratar os conjuntos regionais para executar canções ou músicas instrumentais. Um exemplo de regional bem acabado é o Gente do Morro, do flautista Benedito Lacerda, que tinha os mesmos instrumentos dos Batutas, mas já não executava o repertório sertanejo. O choro, agora temperado pela percussão herdada da música “típica”, estava pronto para se tornar nacional nas ondas do rádio. Em seu apartamento finamente decorado com antigüidades e objetos de arte em Botafogo, paisagem azulada do Pão de Açúcar na janela, Maurício Carrilho desenha pacientemente a linhagem do choro e identifica nela a geração de Pixinguinha: é a quarta, a última nascida no século 19. “A geração mais antiga que registramos é a do músico Henrique Alves Mesquita (1820-1905), trompetista, organista e pianista que recebeu uma bolsa do Império e foi estudar na Europa. Foi um grande compositor, fazia quadrilha, polca, foi o criador do tango brasileiro”, diz Maurício. Ele defende a tese de que o tango, gênero flamenco originário da Andaluzia, e não a polca, polonesa, é o verdadeiro antecessor do choro. “A polca guarda características bem típicas até hoje. Já o tango deixou até de existir por aqui como nomenclatura, foi substituído pelo choro”, diz. Mesquita foi professor do flautista Joaquim Antônio Callado (1848-1880) e freqüentava a casa de Chiquinha Gonzaga (1847-1935), que formam a segunda geração de chorões. A WWW.OFICINAINFORMA .COM.BR influência de Callado, mestiço como Mesquita e Chiquinha, teria ajudado a consolidar a formação básica inicial dos grupos de choro: violão, flauta e cavaquinho. Essa formação já era extremamente popular na interpretação das músicas européias Tânia Caliari 3. Sacudido e na 10a geração Maurício Carrilho, violonista e pesquisador: desde as origens, há 150 anos, dez gerações de chorões REPORTAGEM N.69 JUNHO 2005 23 Arquivo do Corpo de Bombeiros/ RJ Anacleto de Medeiros (ao centro): da geração de Irineu de Almeida e Mário Álvares, professores de Pixinguinha, foi formador de chorões na Banda do Corpo de Bombeiros Tânia Caliari entre as classes médias e baixas. Depois veio a geração de Anacleto de Medeiros (18661907), verdadeiro formador de chorões na condução da Banda do Corpo de Bombeiros, e Ernesto Nazareth (18631934), que, sob a influência erudita de Chopin, tirou tangos e polcas chorados em seu piano. Nessa turma nascida na década de 1860 incluem-se ainda o flautista Irineu de Almeida e o cavaquinista Mário Álvares, que foram professores do Pixinguinha. A quarta geração, nascida ainda no século 19, tinha Alfredo da Rocha Vianna Filho – o Pixinguinha – (1897-1973), o flautista Patápio Silva (18811907) e o violonista João Pernambuco (1883-1947). A geração seguinte, a primeira nascida no século 20, tem como destaques o maestro gaúcho Radamés Gnattali (1906-1988), o flautista Benedito Lacerda (1903-1958) e Luperce Miranda (1904-1977). Diz o pesquisador Paulo Puterman, em tese defendida na Escola de Comunicação e Artes da USP, que é com essa geração que o choro passa a ser mediado totalmente pela nascente indústria cultural do país, perdendo seu significado social original. Nesse contexto, chega à cena a geração de Jacob do Bandolim (1918-1969), a sexta, formada por músicos nascidos por volta de 1920. Essa turma tem ainda Altamiro Carrilho, tio de Maurício. Com 87 anos e tremenda disposição, em recente show em São Paulo, Altamiro revezava seus sonoros e precisos solos de flauta com piadas e casos sobre sua vida. Dizem seus colegas que Altamiro – músico consagrado no mundo inteiro – sempre falou muito durante suas apresentações, mas ultimamente usa esse expediente para recuperar o fôlego, antes de partir para o número seguinte. O cavaquinista Waldir Azevedo (1923-1980), o chorão que mais vendeu disco com o sucesso mundial de Brasileirinho, também faz parte da sexta geração, juntamente com o clarinetista Abel Ferreira, o violonista César Faria – pai de Paulinho da Viola –, Jorginho do Pandeiro – pai de Celsinho Silva –, e Dino Sete Cordas. Todos pegaram uma boa fase do choro, coroada no início dos anos 1960 pela formação do regional Época de Ouro, comandado por Jacob. “O Sivuca, que é dessa geração, também compôs choro”, lembra Maurício. A sétima turma nasceu no período 1930-40. “É o pessoal da bossa-nova”, diz Maurício. “O movimento deles fez um buraco no choro. Tem uns caras que foram criados no ambiente de choro e até compuseram algum, como o Baden Powell, o Tom Jobim”. A oitava geração, do final dos anos 1940, inclui Paulinho da Viola, o pianista Cristóvão Bastos e o bandolinista Déo Rian. “Depois, no final da década de 1950 e início da de 1960, tem a nona geração, que somos eu, o Raphael Rabello, a Luciana Rabello, o Afonso Machado, o Pedro Amorim... Bom, eu estou falando daqui do Rio. Cada lugar tem a sua turma. Em São Paulo, o Isaías do Bandolim e o pianista Laércio de Freitas fazem parte da geração do Paulinho da Viola. Da nossa geração tem o Proveta, o Toninho Carrasqueira...”. Na décima geração, Carrilho coloca os que nasceram a partir de 1970. “Muitos são alunos da gente, alguns já são profissionais”. O teor musical do choro e sua relação com o público e com a mídia variaram bastante ao longo desse século e meio. O final da década de 1960, por exemplo, pode ser considerado um dos momentos mais críticos, em grande parte devido a que a cena musical brasileira havia sido tomada pela bossa-nova, pela jovem-guarda e pelo nascente tropicalismo, além da onipresente música estrangeira. Nesse ambiente, a morte de Jacob do Bandolim, em 1969, e a de Pixinguinha, em 1973, foram consideradas como a morte do próprio choro. Bar Sovaco de Cobra (ao lado), na Lapa: nos anos 1970, época da resistência, os músicos cariocas reuniam-se na Lapa. Os paulistanos, na casa do torneiro-mecânico Antônio DÁuria (na página ao lado, o último à direita, sentado), na Casa Verde 24 REPORTAGEM N.69 JUNHO 2005 W W W. O F I C I N A I N F O R M A . C O M . B R REPORTAGEM ESPECIAL opinião de músicos paulistas, um dos sustentáculos que permitiu o ressurgimento do choro, num movimento de certa forma orquestrado entre jornalistas e músicos, muitos tidos como de esquerda e nacionalistas, num misto de resistência cultural e política nos anos da ditadura. De fato, várias iniciativas deram vazão ao choro e ao samba na época. Em 1973, Isaías do Bandolim: Paulinho da Viola organizou enquanto o Rio era só o show Sarau no Rio de Ja- bossa-nova, em São neiro – com o flautista Paulo se tocava choro Copinha e com o Época de Ouro, reorganizado pelo seu pai após a morte de Jacob –, dirigido e apresentado pelo jornalista e pesquisador Sérgio Cabral. O ano seguinte é considerado chave: a gravadora Marcus Pereira colocou três discos de choro no mercado; a Continental lançou um disco do Época de Ouro; a RCA, o Chorinho na Gafieira; e a Odeon, o Grupos de Sempre, de Déo Rian. Waldir Azevedo, Altamiro Carrilho, Carlos Poyares e Evandro e seu Regional também voltaram às lojas, com lançamentos ou coletâneas. Na seara do samba, o produtor J.C. Botezzeli, o Pelão, lançou o primeiro disco no qual se ouve a voz de Nelson Cavaquinho. Em seguida, produziu o primeiro disco solo de Cartola. Esse movimento fez surgir vários clubes do choro pelo país. Em 1975 foi criado o Clube do Choro do Rio, apadrinhado por Paulinho da Viola. Entre os lançamentos daquele ano, destacou-se o disco do pianista Artur Moreira Lima, interpretando Ernesto Nazareth, e o Choros que Marcaram Época, com Abel Ferreira, Waldir Azevedo e Ademilde Fonseca, a cantora que mais deu voz ao choro. Em 1976, Paulinho da Viola lançou seu único disco exclusivamente de choro, o Memórias Chorando. Nessa época, a roda do Sovaco de Cobra estimulou no Rio o surgimento de grupos de jovens músicos, como Os Carioquinhas, Galo Preto, Choro Roxo, Fina Flor, além de dezenas que nunca chegaram a gravar. Em 1977, o jornalista Nelson Mota anunciou que os discos de choro tinham sido a maior surpresa do mercado no ano. Além disso, de 1977 a 1980, foram realizados anualmente festivais de choro no Rio e em São Paulo. Arquivo Isaias de Almeida Depois de um ensaio tranqüilo para uma apresentação relativamente complexa que envolveria mais de 70 músicos da Orquestra Jazz Sinfônica do Estado de São Paulo e do grupo Moderna Tradição, enquanto técnicos afinavam a luz do Teatro Sérgio Cardoso na capital paulista, Isaías de Almeida, o Isaías do Bandolim, reivindica entusiasticamente para São Paulo o papel principal na preservação do choro durante a dura década de 1960. “O berço do choro é o Rio de Janeiro, mas chegou uma época que no Rio era só bossa-nova. E tocávamos choro aqui em São Paulo”, diz, referindo-se a um dos redutos de resistência – a casa do torneiro mecânico Antonio D’Áuria, no bairro da Casa Verde. Iniciado nos grupos musicais que animavam festinhas de família com seu violão, D’Áuria descobriu o choro no final da década de 1940. Os chorões paulistas, muitos deles filhos de imigrantes e operários, cultivavam o gênero e a cidade já era bem representada por Zequinha de Abreu (1880-1935), Garoto (1915-1955) e Américo Jacomino, o Canhoto (1889-1928). D’Áuria só foi conhecer o repertório carioca ao ouvir os discos de Jacob do Bandolim, quando se esforçava para tirar no violão as harmonias de Doce de Coco, lançada em 1949. Para muitos, a prova de que as rodas de D’Áuria foram os mananciais que abasteceram o choro no país nos anos 1960 é o fato de que o próprio Jacob, mais de uma vez, percorreu a Via Dutra para chorar entre os paulistas da Casa Verde. Em 1973, o jornalista Tinhorão apresentou o Conjunto Atlântico, formado em 1952 por D’Áuria, ao produtor Júlio Lerner, da TV Cultura, o que levou o regional a estrelar a série de programas Choro das Sextas-Feiras, que ficou no ar em 1974 e 1975. O programa foi, na Tânia Caliari 4. Choro de resistência WWW.OFICINAINFORMA .COM.BR REPORTAGEM N.69 JUNHO 2005 25 “Foi uma resposta coletiva a um período longo de opressão. Ninguém fica no gueto a vida inteira”, diz Maurício Carrilho. Ele, no entanto, avalia que o movimento atual é mais profundo e de maior fôlego. “O grosso do movimento daquela época começou em 1974 e em 1978 já tinha acabado. As gravadoras atulharam o mercado com discos idênticos, coletâneas e antologias limitadíssimas: tinha um repertório de Brasileirinho, Doce de Coco, Tico-Tico no Fubá... Agora, só com a nossa pesquisa, catalogamos 1.250 compositores de choro nascidos até 1900. Desses caras, a gente conseguiu partituras de 5 mil músicas e gravamos 15 CDs. Se pegar a produção do século 20 inteira, podemos chegar a 30 mil músicas! É um absurdo gravar 10 músicas à exaustão”. Para Carrilho, apesar de terem surgido novos nomes e alguma renovação do choro nos anos 1970, houve descuido dos produtores. “Os caras enterraram o choro. A gente não está deixando isso acontecer”. O pesquisador e violonista prepara agora a coleção Choro carioca, música do Brasil, que documenta a disseminação do gênero pelo país. 5. Sotaque de toda parte “É uma idéia simples, sem bairrismos, só prá mostrar o choro que é feito em todo o Brasil”, disse o produtor Pelão ao abrir, na segunda semana de abril, em São Paulo, as apresentações de Temperos do Choro, programação que reuniu músicos paulistas, pernambucanos, paraenses, gaúchos, brasilienses e cariocas. Ao longo de cinco dias os chorões transitaram pelas composições e arranjos mais tradicionais (como no caso dos grupos Nosso Choro e Isaías e seus Chorões, de São Paulo; e Plauto Cruz e os Chorões Gaúchos, de Porto Alegre); passaram por choros marcados por ritmos regionais (Nego Nelson, de Belém, com o carimbó; e Trio Capibaribe, do Recife, com o frevo) e por arranjos jazzísticos (Nó em Pingo D’Água, do Rio de Janeiro; e maestro Laércio de Freitas, de São Paulo), e por variações na formação dos conjuntos (como o trio Cai Dentro, de Brasília, formado só por instrumentos de corda, tocados por rapazes recém-chegados à maioridade, se tanto). “Quem invade, é invadido”, vaticinou o jornalista e historiador de música popular brasileira Arley Pereira, durante debate do evento. “O choro saiu por aí e em cada lugar ganhou um tempero diferente pelos instrumentos e ritmos locais, gerando um gênero pan-brasileiro”, disse. Nego Nelson, violonista e compositor que faz um choro misturado com carimbó – ritmo do Norte com influências caribenhas, mas marcado por um tambor indígena – disse que em Belém o choro tradicional convive com o gênero já modificado pelos ritmos que circulam pela cidade. “Belém é uma cidade muito musical. Os padres jesuítas deixaram a música sacra e erudita, os soldados da borracha nordestinos trouxeram o maracatu e o baião, tem o som indígena da Amazônia, a influência caribenha das Guianas, e teve a influência americana, com o funcionamento da base naval dos EUA na cidade durante a 2ª Guerra. Tudo isso chegou no choro”, diz. Em Belém, aliás, quando a produção e o dinheiro da borracha decaíram e a demanda artística da elite se esvaiu, muitos músicos da orquestra sinfônica e das duas companhias de ópera da cidade se agarraram ao choro e às demandas populares das rádios para sobreviver. Segundo o bandolinista, compositor e arranjador pernambucano Marco César, do Trio Capibaribe, a cena do choro no Recife está em ebulição graças ao interesse de músicos mais jovens, muitos dos quais seus alunos no Conservatório Pernambucano de Música. Ele disse que a influência do frevo no choro é histórica e que está presente em várias composições suas e de seu sogro, Bila do Cavaco. “O choro pode ser tocado por qualquer instrumento, desde que se tenha alma de chorão”, segundo Isaías do Bandolim. “O choro é um jeito de tocar, então vale até harpa paraguaia”, disse. Para confirmar a tese, alguém lembrou a cítara de Avena de Castro (1919-1981), fundador e primeiro presidente do Clube do Choro de Brasília, e durante os shows do encontro ouviu-se a guitarra elétrica de Gileno e a caixa de percussão peruana de Dadadá acompanhando Nego Nelson; o baixo de Papito, do Nó em Pingo D’Água; e a zabumba de Lucas do Prazes, do Trio Capiberibe. Uma das mais fortes praças do choro hoje é Brasília. O choro chegou à capital federal junto com os funcionários A Escola de Choro Raphael Rabello, de Brasília: com 300 alunos, é um lugar de encontro de músicos, que substitui as rodas informais continua na página 43 u 26 REPORTAGEM N.69 JUNHO 2005 W W W. O F I C I N A I N F O R M A . C O M . B R REPORTAGEM ESPECIAL continuação da página 27 Tânia Caliari u Fernando César, coordenador da Escola de Brasília: o choro mudou e atraiu mais a juventude públicos para lá transferidos. O gênero floresceu no Rio, desde a sua origem, entre os servidores, que tinham um ganha pão como garantia, e podiam, então, dedicar o tempo livre à música e à boemia. Uma compilação feita em 1936 pelo carteiro e chorão Alexandre Gonçalves Pinto, o Animal, revela que entre os 285 músicos listados, 122 eram barnabés. Mesmo entre os componentes do Época de Ouro a história não foi diferente, a começar por Jacob do Bandolim, passando pelos violonistas César Faria e Carlinhos, o cavaquinista Jonas e, mais tarde, o sucessor de Jacob, Déo Rian: eram todos servidores públicos. A tradição carioca foi transferida para Brasília e fez escola: primeiro com o Clube do Choro que, revitalizado nos anos 1990 pelo músico e jornalista Reco do Bandolim, conta com o apoio da Petrobrás e dos Correios, o que possibilita uma programação perene e caprichada. E depois, a partir de 1998, com a formação de novos chorões pela Escola de Choro Raphael Rabello, ligada ao Clube. “O choro está em seu melhor momento aqui em Brasília”, diz o violonista Fernando César, 34 anos, coordenador da escola instalada modestamente num barracão de madeira igual aos que abrigavam os candangos que foram construir a cidade há mais de meio século. “As rodas de choro informais praticamente acabaram, pois os músicos se profissionalizaram e o Clube do Choro concentrou os chorões”, diz Fernando, destacando a importância da escola, hoje com 300 alunos. Ele diz que a transformação do choro na cidade pode ser medida pelas mudanças no público que, a partir dos anos 1990, começou a remoçar. Fernando se apresentava desde os anos 1980 junto com o irmão, o bandolinista Hamilton de Holanda, em rodas, shows, programas de rádio e TV, para um público sempre mais velho. “Acho que o choro mudou e atraiu mais os jovens. Os músicos pararam de tentar tocar como o Jacob – o cara não ia conseguir mesmo. Jacob era Jacob, e pudemos fazer de um jeito novo”. Fernando diz que, em Brasília, os jovens músicos sofreram a influência do rock. “O Hamilton mesmo, nas suas composições, e na interpretação do bandolim, toca em pé, se movimentando, fazendo careta... Essa postura acaba atraindo os jovens”. Segundo Fernando, WWW.OFICINAINFORMA .COM.BR um dos marcos desse novo momento foi o CD lançado em 1998 pelo Duo de Ouro, dele e de Hamilton, A nova cara do velho choro. Mas a escola brasiliense também cultiva a tradição: o ensino dos instrumentos é baseado no repertório e características dos grandes mestres, antigos e novos. No violão solo, a referência é João Pernambuco. Nos violões utilizados nos acompanhamentos, cultua-se Dino Sete Cordas e Raphael Rabello, no de 7 cordas; e Meira, no de 6. O bandolim é o de Jacob, de Luperce Miranda, mas também de Joel Nascimento e, agora, de Hamilton de Holanda. E por aí vai: Pixinguinha na flauta, Waldir Azevedo no cavaquinho... Numa manhã de sábado no início de maio, como faz mensalmente, a Escola Raphael Rabello também tem sua espécie de Bandão, como acontece no Rio. O grupo é dividido em duas turmas – na de iniciantes, o professor flautista puxa o tradicional Carinhoso. O analista de sistema Sérgio tenta acompanhar no pandeiro, não sem dificuldade. “Eu quis diminuir minha ignorância em música. Vi o anúncio da escola no jornal e vim, mas não conhecia choro... Agora, vou tentando”, diz. Na noite anterior, foi difícil conseguir uma mesa no barsede do Clube do Choro, instalado desde 1977 num antigo vestiário esportivo em frente ao Estádio Mané Garrincha. A casa vive cheia para as apresentações, que há anos homenageiam chorões históricos. A primeira, em 1997, foi para marcar o centenário de Pixinguinha. Depois vieram Jacob, Waldir Azevedo, Chiquinha, Nazareth, Garoto e Ary Barroso. Este ano, os chorões convidados de todo o Brasil reverenciam a música de Heitor Villa-Lobos (18871959). Como diria o músico Paulo Aragão, do quarteto de violões Maogani, “não é nenhum provincianismo dizer que o Villa-Lobos é uma referência para violão, como Chopin é para o piano, no mundo todo”. Compositor e violoncelista de origem, Villa-Lobos produziu uma obra moderna, muitas vezes não compreendida. Era um nacionalista e também fez viagens de pesquisa musical pelo país. Sua proximidade como a música popular se deu em grande parte graças às rodas de choro que freqüentava no Rio, muitas vezes escondido dos pais. Seu ciclo de Choros, para as mais diversas formações (desde o violão e o piano, passando por grupos camerísticos e chegando às sinfônicas) tem inspiração direta na música urbana do Rio de Janeiro da virada do século 20. “Na prática, o que se vê é que o fraseado, a melodia do choro, está presente direto na obra do Villa. Ele usou a melodia de Iara, de Anacleto de Medeiros, no Choro nº 10; ele dedicou ao Nazareth o Choro nº 1 para violão, composto em 1920....”, diz Aragão. Platéia no escuro, o burburinho cessa quando o apresentador anuncia o show da noite. Ele lembra a performance da veterana pianista Eudoxia de Barros na semana anterior, que interpretou a música de Villa-Lobos de forma tradicional. Desta vez, diz, o Maogani aponta para o futuro do choro – paradoxalmente, são peças de Villa e seus amigos chorões, muitas compostas há mais de 70 anos. REPORTAGEM N.69 JUNHO 2005 43 À beira da piscina do Hotel Nacional, na manhã seguinte à apresentação, os violonistas Marcos Tardelli, Marcos Alves, Carlos Chaves e Paulo Aragão não concordam totalmente com idenPaulo Aragão (3º, da esq. para a dir.), tificação do Mado Maogani: o choro tem presença em todas as manifestações musicais ogani com o futuro do choro. brasileiras “Mais ou menos. A gente nem se considera um conjunto de choro. A gente é um conjunto instrumental brasileiro, que inevitavelmente passa de maneira visceral pelo choro. O choro está presente em quase todas as manifestações musicais brasileiras, talvez por ter sido a música mais antiga a ser reconhecida como brasileira. Ela é anterior ao samba”, diz Aragão. “Acho que a gente não pensa muito nesse negócio de tradição e modernidade, a gente faz a música do jeito que a gente se identifica”, arremata Tardelli. Uma das características desse “jeito” é a formação do grupo – um violão de 8 cordas, que supera a necessidade do choro, geralmente marcado pelo de 7 cordas; e 3 violões de 6 cordas, um deles afinado mais agudo. “É difícil dizer, mas outra diferença é que temos uma concepção camerística – quer dizer, não temos solista específico, o solo passa por todos. Num regional de choro você tem um solista – a flauta ou bandolim – e os outros fazem o acompanhamento. Quando muito, há diálogo entre dois solistas. Mas a gente leva isso ao extremo, quase como na música clássica”. Bacharelados em violão erudito pela UFRJ, os quatro são compositores, embora modestos quando se trata de gravar as próprias músicas. Carlos Chaves é o único que teve um choro registrado por eles. Tradicional ou moderno? “Moderno”, admite Carlos, em meio a gargalhadas de todos. “Bom, pelo menos não é em rondó”, diz, fazendo referência ao formato clássico do choro, dividido geralmente em três partes, e que ao final sempre volta a repetir a primeira. Não são só os rapazes do Maogani que encontram dificuldades para definir o que é moderno ou tradicional no choro. O pianista Benjamin Taubkin organizou em São Paulo o grupo Moderna Tradição – ele, o clarinetista Naylor Proveta e o pandeirista Guello são representantes da ala moderna, enquanto Isaías do Bandolim e seu irmão Israel de Almeida, no violão, defendem a tradição. Mesmo assim, na hora das definições, Taubkin se esquiva. “Na verdade, minha formação é na música moderna, mas quando se fala em moderno e em tradição as coisas se invertem às vezes, sem querer ser tropicalista e falar do avesso, do avesso, do avesso”, diz. “A grande novidade prá mim, por exemplo, foi a música tradicional do Brasil, congada, maracatu. Prá quem vinha fazendo música instrumental brasileira, feita com bateria, contrabaixo, saxofone, que tinha um modelo que vinha muito da bossa-nova e do jazz americano, de repente aquilo fez assim: tum! Acho que o choro é uma dessas músicas que acontecem no Brasil de forma paralela à música que a gente vinha fazendo. Prá mim não é uma volta à tradição, prá mim é uma continuidade. E tem valores na música, que são a delicadeza, beleza, diálogo, que não têm época, não ficam velhos, e o choro tem isso”. Momentos antes de entrar no palco com seu grupo acompanhado pela Orquestra Jazz Sinfônica para executar um repertório de choro, Taubkin se diz um “turista aprendiz” do próprio país, citando o modernista Mário de Andrade e seu livro de relatos de viagem pelo Brasil. Diz também que sua idéia do moderno é a liberdade com que toca uma música preservada de maneira muito rigorosa. E lembra de Radamés Gnattali, que, segundo ele, “já fez isso e muito mais”. “Se você pensar em termos da melodia, harmonia, o tempo, a própria construção que ele fez em Pé de Moleque, é raro o compositor que faz coisas assim hoje”. Guello experimentou a modernidade da percussão nos vários grupos instrumentais que freqüentou nos últimos 30 anos, e nas influências de Naná Vasconcelos e Ayrton Moreira. Ele tem um duo, com peças escritas para percussão, o que não é comum. Nas apresentações da Orquestra Popular de Câmara e da Banda Mantiqueira, Guello é solista. No choro, embora mobilize totalmente a atenção do público com seus solos variadíssimos, ele não vê nada de extraordinário. “O pandeiro sempre solou nos regionais, um pouquinho que seja”. Já Isaías parece à vontade junto aos modernos. “Não teTânia Caliari Tânia Caliari 6. O futuro do choro Quatro a Zero: os cabeludos de Campinas interpretam clássicos com guitarra e baixo elétricos, sob aplausos de Isaías do Bandolim 44 REPORTAGEM N.69 JUNHO 2005 W W W. O F I C I N A I N F O R M A . C O M . B R nho dificuldade de acompanhar, porque passei pela escola da bossa-nova, muito embora os bossanovistas da época chamassem a gente de ‘quadrado’”, diz. “Eu sou até muito Radamés Gnattali: o mestre gaúcho, e seu Sexteto, dos anos a favor dessas coisas novas, o choro não 1950, inspiram a renovação pode parar. Tem uns meninos que eu considero muito, o conjunto Quatro a Zero. Quando vi os meninos pela primeira vez, cabeludos, guitarra elétrica, pensei: bom, disso não vai sair choro nenhum. Mas saiu. Eles têm aquela verve do choro, aquela coisa malandra – se reunir com os amigos e tocar, procurar inventar frases, fazer improviso, e procurar chamar a atenção do companheiro que está tocando. E ir jogando: é uma mudança de ritmo, é dar uma adiantada, ter o feeling. Esse é o choro”. O Quatro a Zero abre seu show e seu primeiro CD, Choro Elétrico, com Bolacha Queimada, de Radamés Gnattali, para não deixar dúvidas sobre suas influências. “Nossa grande referência foi o Sexteto do Radamés, que desde a década de 1950 trabalhava com uma instrumentação semelhante: dois pianos [Radamés e Aida Gnattali, depois Laércio de Freitas], acordeão [Chiquinho], guitarra [Zé Menezes], bateria [Luciano Perrone] e contrabaixo [Vidal]”, diz Eduardo Lobo, guitarrista do grupo, que tem ainda Lucas Rosa na bateria, Danilo Penteado no contrabaixo elétrico e Daniel no teclado. Os garotos, formados em música pela Unicamp, em Campinas, chegaram a deixar seus instrumentos elétricos de lado para fazer parte de regionais de choro. “Esse tempo foi muito importante para aprender sobre o gênero, sua leveza, contrapontos, características que só se percebe ouvindo muito. Quando ouvíamos algumas gravações de grupos tocando choro com bateria e baixo, notávamos que ficava pesado demais. Uma das nossas grandes preocupações é transpor para nossos instrumentos a linguagem e a sonoridade do regional, sem perder a sua leveza”. Na faixa de autoria de Danilo Penteado, depois de um breque, os rapazes gritam em uníssono: “Conta outra!” – sinal de que não perderam o bom humor original do choro, presente ainda na quebradeira que arrumam na gravação da polca O gato e o canário, de Pixinguinha. Assim como essa, muitas das músicas do CD soam como trilhas de desenho animado. Mas não só entre os modernos e estudiosos acadêmicos está o futuro do choro. Nos fundos de uma loja de instrumentos musicais na região central de São Paulo, repete-se há 30 anos, toda manhã de sábado, o ritual tradicional do choro: a roda descompromissada, que mistura profissionais e amadores, onde cada um toca o que sabe e aprende o que pode. O comerciante Miguel Fasanelli fez de sua loja, a Contemporânea, uma referência para chorões de todo o Brasil e WWW.OFICINAINFORMA .COM.BR um ponto de encontro para quem não perde uma roda. Guta, ritmista profissional sempre presente, diz que a loja abre às 9h00, mas que os músicos mais velhos, muitos amadores, já se concentram antes à porta para não perder lugar. E depois que começa, “não levantam da roda nem prá ir ao banheiro!”, diz, caçoando dos colegas. A roda junta profissionais, como Arnaldinho do Cavaco, e amadores, como o gozador Turquinho, o colecionador de partituras e bandolinista Paulo Fasanato, e o veterano Waldir Luigi, bancário aposentado, ex-integrante do Conjunto Atlântico. A renovação aqui corre por conta do ingresso de novos músicos. Entre eles está o flautista Charles Gonçalves, e seu irmão cavaquinista Alex. Charles, hoje com pouco mais de 20 anos e extenso currículo, foi descoberto tocando nas ruas de São Paulo, ainda menino, e apadrinhado por Altamiro Carrilho, tamanho o seu potencial. Mas a agitação toma conta dos velhos chorões quando chegam, vindas de Porto Feliz, no interior paulista, as meninas do Balaio de Gato. Corina, a mais velha, com 17 anos, conheceu a flauta doce na escola pública e levou a música para casa, onde seu pai já amassava um pandeiro. Lia, 14 anos, acompanha no violão de 7 cordas. E a pequena Elisa, 12 anos, o mimo dos chorões da Contemporânea, abraça seu bandolim como uma boneca, enquanto aguarda sua vez de tocar. Para Maurício Carrilho, o futuro do choro também tem uma conexão com o exterior. “É impressionante a quantidade de músicos tocando e compondo choro no Japão. Na primeira vez que fui lá, em 1979, tinha público, mas ninTânia Caliari Tânia Caliari REPORTAGEM ESPECIAL Roda da Contemporânea, São Paulo: tradição de 30 anos, que reúne gente mais velha, jovens e adolescentes guém tocava choro. Este ano tenho uma oficina programada com dezenas de alunos. Tem choro nos EUA, na Europa... A gente vive hoje um momento muito próspero do choro, de expansão como música de treinamento para músicos de diversas nacionalidades. A música erudita está num beco sem saída – tanto que as pessoas estão começando a voltar a fazer música barroca, música clássica. A música contemporânea está longe da platéia. O jazz a mesma coisa. As pessoas no Brasil e fora vêem no choro uma porta para fazer música nova, de qualidade e original. É como uma grande floresta inexplorada”. REPORTAGEM N.69 JUNHO 2005 45