A natureza em si

Transcrição

A natureza em si
ISSN 0102-0625
Em defesa da causa indígena
Ano XXXVI • N0 364
Brasília-DF • Abril 2014 – R$ 5,00
A natureza em si
É deste modo que os Enawenê-Nawê se definem.
Desafios vividos no passado e no presente,
devido ao contato com a sociedade branca,
são resignificados pelo povo e por sua
profunda espiritualidade. Assim, se negam
a abandonar a forma como vivem.
Foto: Renato Santana
Páginas 4 e 5
E agora,
ministro Cardozo?
PF impede cacique Babau
de se encontrar com o Papa
Página 11
Páginas 12 e 13
Artigo
O presente do Papa está preso
Cleber César Buzatto
Secretário Executivo do Cimi
C
olorido. Impossível não fazer referência
à bandeira do Brasil. Um belo cocar era o
presente que Rosivaldo Ferreira da Silva, o
cacique Babau Tupinambá, daria ao Papa
Francisco por ocasião do encontro que ocorreria
no dia 24 de abril, em Roma, durante celebração
relativa à canonização do Padre Anchieta. Em vez
de encontrar-se com o Papa, Babau foi preso no
Brasil. Não poderia haver cenário mais simbólico e
emblemático da história deste povo e das denúncias que seriam feitas pessoalmente por Rosivaldo
a Francisco.
Desde os primórdios da colonização, os Tupinambá enfrentam as consequências perversas do
processo de invasão e exploração de suas terras. A
légua de corpos de Tupinambá matados no ataque
etnocida comandado por Mem de Sá, em 1559, na
praia do Cururupe, extremo norte da terra indígena
Tupinambá de Olivença, não foi o único episódio
macabro e marcante na história desse povo e do
Brasil. A resistência Tupinambá à invasão de suas
terras foi “razão” para o Estado brasileiro prender,
levar para o Rio de Janeiro, matar e fazer desaparecer para sempre o corpo do líder Marcelino, na
década de 1930. A luta contemporânea e cotidiana
dos Tupinambá pela reconquista de ao menos parte
de seu território tem “motivado” um novo processo de matança e criminalização contra esse povo
e seus líderes em especial. Somente nos últimos
meses, ao menos oito Tupinambá foram assassinados na região.
Babau é um dos símbolos da resistência Tupinambá contemporânea. Memória viva de um povo
legítimo sujeito de terras ancestrais na região sul
da Bahia. Esse fato é a “razão” do Estado brasileiro
ter prendido Babau neste dia 24 de abril de 2014,
nos 514 anos e dois dias da fatídica invasão. Uma
prisão totalmente descabida e injusta. Símbolo da
ação do Estado hegemônico contra os Tupinambá
e contra os povos originários nesses cinco séculos.
O risco de Babau ser morto, como muitos de
seus antepassados, é real. A prisão pelo Estado
brasileiro pode ser apenas um meio para tanto.
Babau tem plena consciência disso. Mesmo assim,
decidiu apresentar-se voluntariamente ao Estado
brasileiro. Seu argumento é simples: Tupinambá
não foge da luta. Mesmo que para tanto seja necessário enfrentar até a própria injustiça.
Por evidente que é, Babau tem plena e legítima
razão. Não há outra maneira de se construir a Justiça a não ser enfrentando e vencendo a injustiça.
Babau está preso e preso com Babau está o
presente do Papa.
MARIOSAN
Porantinadas
Massacre da motoserra
Nos últimos 31 anos, o Brasil perdeu
5,2 milhões de hectares de Unidades de
Conservação, uma área maior do que o
estado do Rio de Janeiro, devido a 93
alterações feitas em áreas de conservação
em 16 estados. Segundo um estudo de
cientistas da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPe) e da Ong Imazon,
a criação de infrastrutura de geração
e transmissão de energia está entre as
principais causas desta perda. Somente
para viabilizar a construção das seis usinas
hidrelétricas no Rio Tapajós, o governo
federal excluiu, em janeiro de 2012, através
de Medida Provisória, 91.308 hectares
de sete Unidades de Conservação. É a
este tipo de destruição que se chama
“progresso”?
Assim, é fácil
O Conselho de Defesa Nacional, órgão
consultivo em assuntos relacionados à
soberania nacional, publicou no Diário
Oficial da União, no último dia 24 de
fevereiro, uma autorização prévia para
que a empresa Boa Vista Mineração Ltda
pesquise ouro e basalto em 14 diferentes
áreas do estado, totalizando 110.540
hectares. O detalhe é que esta empresa
pertence à Maria de Holanda Menezes
Jucá Marques, que é filha do senador
Romero Jucá (PMDB-RR). Romero é o
autor do Projeto de Lei 1610/1996 que
prevê a regulamentação da mineração em
terras indígenas, em análise no Congresso
Nacional. Precisa dizer algo mais?
Campos de concentração
ISSN 0102-0625
Os 50 anos do golpe militar tem ajudado a evidenciar a situação de barbárie
a que os indígenas foram submetidos.
Um dos casos mais explícitos é o de dois
centros para a detenção de indígenas
que a Fundação Nacional do Índio (Funai) manteve silenciosamente em Minas
Gerais, de 1969 até meados da década
de 1970. No Reformatório Krenak, em
Resplendor, e na Fazenda Guarani, em
Carmésia, para onde foram levados mais
de cem indígenas de dezenas de etnias, de
ao menos 11 estados, aconteceram torturas, trabalho escravo, desaparecimentos e
intensa repressão cultural. Além da falta
de informação, nenhum indígena ou
comunidade foi indenizado pelos crimes
de direitos humanos, e o Estado nunca se
manifestou formalmente, reconhecendo
a existência destes crimes.
Na língua da nação indígena
Sateré-Mawé, PORANTIM
significa remo, arma,
memória.
Publicação do Conselho Indigenista Missionário
(Cimi), organismo vinculado à Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
APOIADORES
Dom Erwin Kräutler
Presidente do Cimi
Emília Altini
Vice-Presidente do Cimi
Cleber César Buzatto
Secretário Executivo do Cimi
Abril – 2014
2
EDIÇÃO
Patrícia Bonilha – RP: 28339/SP
CONSELHO DE REDAÇÃO
Antônio C. Queiroz, Benedito
Prezia, Egon D. Heck, Nello
Ruffaldi, Paulo Guimarães,
Paulo Suess, Marcy Picanço,
Saulo Feitosa, Roberto Liebgot,
Elizabeth Amarante Rondon e
Lúcia Helena Rangel
REPORTAGEM:
Carolina Fasolo, Renato Santana,
Luana Luizy (Estagiária)
ADMINISTRAÇÃO:
Marline Dassoler Buzatto
SELEÇÃO DE FOTOS:
Aida Cruz
Fotos: Arquivo Cimi
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA:
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IMPRESSÃO:
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REDAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO:
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de Registro Civil - Brasília
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Permitimos a reprodução de nossas matérias e artigos, desde que citada a fonte. As matérias assinadas são de responsabilidade de seus autores.
Conjuntura
Dom Erwin denuncia violações dos
direitos indígenas no Brasil ao Papa
O
presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e Bispo
da Prelazia do Xingu, Dom
Erwin Kräutler, foi recebido no
dia 4 de abril, às 12 horas, horário de
Roma, Itália, pelo Santo Padre Jorge
Mario Bergoglio, o Papa Francisco.
A audiência ocorreu no gabinete
papal e tratou das violações aos direitos
indígenas no Brasil, promovidas pelo capital privado em aliança com o governo
federal. Esteve presente no encontro o
assessor teológico do Cimi, Paulo Suess.
No dia anterior (3), Kräutler e Suess se
reuniram também com o prefeito da
Congregação para a Doutrina da Fé,
Gerhard Ludwig Müller.
“Grupos políticos e econômicos
relacionados com a agroindústria,
a mineração e as construtoras, com
apoio e participação do governo brasileiro, tratam de revogar os direitos
territoriais dos povos indígenas”, diz
trecho do documento entregue ao
Papa Francisco.
Durante a audiência, os representantes do Cimi levaram a Francisco casos de
violências a que estão submetidos os povos indígenas e seus aliados. Destacaram
a questão Guarani e Kaiowá, no Mato
Grosso do Sul, onde “o confinamento de
45 mil indígenas em área tão pequena
traz consigo mortes, suicídios e sofrimento atroz e permanente”.
A truculência do governo brasileiro
contra os Tupinambá, no sul da Bahia,
Entre os povos afetados por tais
projetos, estão grupos em situação de
isolamento voluntário: “Muitos deles se
encontram em grande risco de destruição por causa de projetos hidrelétricos,
de mineração e desflorestamento causado pela criação de gado e plantação
de soja”.
Na Amazônia brasileira vivem cerca
de 90 grupos em situação de isolamento, livres, sendo que no mundo esta é a
região com a maior quantidade de povos ainda sem contato com a sociedade
que os envolve.
Arquivo Cimi
Da Redação
Paralisação das
demarcações
que hoje têm em suas terras uma base
do Exército, o incêndio de casas, como
a de um agricultor aliado dos Kaingang,
em Santa Catarina, e os ataques do
agronegócio contra o Cimi e as demais
organizações indigenistas foram outros
pontos abordados.
Dom Erwin relatou a situação dos
povos indígenas do Vale do Javari, que
sofrem sem assistência médica aos
surtos de hepatite, que já ocorrem
há décadas, além da intenção do governo brasileiro de explorar petróleo
naquelas terras - o que o governo do
Peru já vem fazendo do outro lado
da fronteira e impactando de forma
contumaz populações indígenas com
ou sem contato.
Sobre os grandes empreendimentos, o bispo lembrou que 519 empresas
hoje, no Brasil, causam impacto em
437 terras pertencentes a 204 povos
indígenas, conforme relatório produzido pelo Cimi com base também em
outros estudos.
Destaque para o mega empreendimento da Usina de Belo Monte, no
Pará, cuja construção ocorre desrespeitando leis nacionais e convenções
internacionais, caso da Convenção
169 da Organização Internacional do
Trabalho (OIT).
Dom Erwin e Paulo Suess afirmaram
ao Papa Francisco que o governo da
presidenta Dilma Rousseff, contrariando
a Constituição brasileira, paralisou a
demarcação das terras indígenas incentivando ainda mais a violência contra os
direitos dos povos tradicionais.
“A paralisação da demarcação é uma
das principais causas de conflito e violência que sofrem os povos indígenas”,
diz outro trecho do documento recebido por Francisco. Os representantes do
Cimi entregaram ao Papa publicações
e estudos aprofundando as denúncias
que levaram ao Vaticano.
De acordo com Dom Erwin Kräutler,
o Papa Francisco demonstrou atenção,
preocupação e sensibilidade para com
as questões levadas até ele pelo Cimi,
organismo vinculado à Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). n
Violência
contra os
povos, a não
efetivação
de políticas
públicas e a
paralização
das
demarcações
foram algumas
das denúncias
levadas
ao Papa
Francisco por
Dom Erwin
Francisco convida Dom Erwin para colaborar na encíclica sobre ecologia
Instituto Humanistas Unisinos
E
rwin Kräutler, bispo de origem austríaca,
missionário no Brasil, foi chamado pelo
Papa Francisco para ajudá-lo na redação
da próxima encíclica sobre os pobres e o
cuidado do ambiente.
Kräutler, nascido em Koblach, em 1939, primogênito de seis irmãos, pertence à Congregação dos
Missionários do Preciosíssimo Sangue. Depois dos
estudos de filosofia e teologia em Salzburg, em 1965
partiu como missionário na Amazônia e em 1980
foi nomeado bispo na maior diocese em extensão
geográfica do Brasil: a diocese de Altamira-Xingu,
tornando-se bispo auxiliar do seu tio Eurico, e, um
ano depois, o seu sucessor.
De 1983 a 1991, Kräutler foi presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), da Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Em 2006,
quando D. Gianfranco Masserdotti, presidente em
exercício morreu num acidente, Kräutler foi reconduzido à presidência do Cimi.
Em 1997 foi um dos quinze delegados eleitos
para participar do Sínodo para a América e naquela
ocasião foi o porta-voz do povo brasileiro, cujo
território estava sendo brutalmente saqueado.
Sempre na primeira linha na defesa das populações
locais ameaçadas pelo desmatamento ao longo dos
rios da Amazônia, recebeu, em 2010, o Prêmio
Nobel alternativo “pelo seu compromisso a favor
dos direitos humanos das populações indígenas e
pela sua luta pela conservação da floresta pluvial
na Amazônia”.
Muitas vezes ameaçado de morte (em 1987
sobreviveu a um atentado onde foi morto o seu
motorista), continuou a se posicionar ao lado das
populações na defesa da dignidade humana e do
ambiente da Amazônia.
A relação pobres-ambiente, muito cara ao Papa
Francisco desde o início do seu pontificado, para o
bispo Kräutler é algo que está presente na sua ação
cotidiana com a mais genuína Teologia da Libertação: a sua luta é contra a pobreza para que seja
garantido a cada pessoa um trabalho e um salário
justo acompanhados da promoção do reconhecimento dos direitos fundamentais, como a saúde e
a defesa do território.
Sobre a encíclica, se de um lado a nomeação
de Kräutler faz pensar na articulação que o Papa
Bergoglio reconhece entre o cuidado da criação e
a promoção da justiça (são os pobres que sofrem
as mais dramáticas consequências), como o Papa
lembrou na recente entrevista aos jovens flamengos,
por outro lado, trata-se de um sinal que a redação
da encíclica está em curso, ou, pelo menos, em fase
de estudos. n
3 Abril – 2014
BANG, BANG, POW, POW
Faroeste e futebol em
terra Guarani-Kaiowá
E
ra a tarde do domingo de carnaval e do outro lado da linha
estava Lide Solano Lopes, cacique do acampamento Pyelito
Kue. No dia 12 de fevereiro, cerca de
250 indígenas Kaiowá e Guarani haviam
retomado a Fazenda Cambará, propriedade de Osmar Bonamigo, e levantaram
barracos ao redor da casa que servia de
sede. Ao fundo da ligação, se escutava
o tiroteio.
Entre a cerca e a estrada
Abril – 2014
4
Para se chegar ao Pyelito Kue vindo
do município de Amambai é preciso
entrar à esquerda em um acesso de
terra na rodovia MS-386, logo antes da
cidade de Iguatemi. Vinte quilômetros
adiante avista-se um amontoado de
barracos de lona e estacas de madeira,
espremidos entre uma cerca e uma estrada vicinal. No final de 2012, a Polícia
Federal e a Fundação Nacional do Índio
(Funai) acompanharam os funcionários
da fazenda que assentaram os postes
e passaram os arames, cumprindo a
ordem judicial que reservava um hectare de terra para a permanência dos
indígenas enquanto se concluía o processo de demarcação. Até a retomada
da Fazenda Cambará era esta a sina das
famílias do Pyelito: sempre entre a cerca
e a estrada.
No criolo entre português, castelhano e guarani falado na região, Pyelito
Kue significa algo como “lugar onde
ficava o pequeno povoado” e faz referência a uma área reivindicada como de
ocupação tradicional Guarani-Kaiowá às
margens do Rio Hovy, no município de
Iguatemi (MS), quase fronteira com o
Paraguai. Expulsos pelos colonos entre
as décadas de 1940 e 1960, os indígenas desse “pequeno povoado” foram
levados forçosamente para as reservas
indígenas de Sassoró, Limão Verde,
Amambai e Taquapiry, criadas pelo
Serviço de Proteção ao Índio (SPI) para
receber os que iam sendo despejados
no processo de “liberação de terras”
para a ocupação da região.
Sem área para plantar, espremidos
entre 3 mil pessoas em menos de 2 mil
hectares em Sassoró, e compondo as
maiores estatísticas de homicídio e suicídio por habitante do país, as famílias
do Pyelito decidiram encarar o êxodo
em busca da demarcação de suas terras.
De 2003 a 2009, as retomadas da área –
hoje sobreposta por 46 fazendas, quase
todas dedicadas à criação de gado –
tiveram um desfecho trágico. Uma e
outra vez os Guarani foram expulsos
por ataques de pistoleiros, a mando
dos fazendeiros da região.
Escutar o testemunho desses ataques é um pouco reviver as investidas
das tropas brasileiras sobre os povoados paraguaios daquela mesma fronteira, na guerra do século XIX. Homens
bêbados invadindo o acampamento de
madrugada sob uma saraivada de tiros,
derrubando os barracos, violentando
as mulheres, sequestrando crianças,
incendiando roupas, cobertas, tudo. Sobrevive quem foge para o mato. Só dali
uma semana é possível voltar à área e
contabilizar os prejuízos – entre mortos
e desaparecidos, nunca se tem certeza
de quanta gente foi assassinada assim.
Associação Cultural dos Realizadores Indígenas (Ascuri)
Bruno Morais
Assessor Jurídico do Cimi
Adelio Rodrigues, um senhor de 48
anos que liderava um grupo de famílias
que reivindicam uma área contígua
ao Pyelito Kue chamada Mbarakay,
foi espancado em um desses ataques
em julho de 2011. Naquele tempo, a
comunidade havia deixado as fazendas
para acampar às margens da rodovia
estadual justamente na esperança de
que a facilidade de acesso da Funai
e da Polícia Federal os poupasse de
novos episódios de violência. Após
esse atentado é que Adelio Rodrigues
e Lide Solano Lopes resolveram reocupar novamente o território do Pyelito
Kue e Mbarakay, por uma última e
definitiva vez.
Logo depois da nova ocupação, Adelio faleceu em decorrência das sequelas
do ataque.
Eu também sou
Guarani-Kaiowá
Em 9 de agosto de 2011, os indígenas de Pyelito Kue e Mbarakay
levantaram acampamento em uma
área de reserva legal entre as Fazendas
Cambará e Santa Rita. Mesmo a atenção
do Ministério Público Federal (MPF) e
Extraída do vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=rb4V3Lrn-D0
Luta pela terra
da Funai não poupou três investidas
de pistoleiros sobre o acampamento.
Os indígenas mudaram de local, a comunidade ficou escondida e isolada no
meio do mato. Com o cerco na estrada
vicinal, o único acesso ao acampamento
era cruzando o rio a nado a partir da
Aldeia de Sassoró e, dali, cortar - a pé
e no escuro - as fazendas até o local
dos barracos.
Em novembro, os fazendeiros chegaram a bloquear o acesso de uma comitiva com representantes da Secretaria
Geral da Presidência da República e da
Secretaria Especial de Direitos Humanos. Sem nenhuma timidez frente aos
soldados da Força Nacional, e munidos
eles mesmos de câmeras, diziam em
alto e bom som: “Vamos queimar esses
ônibus com índios! Índios vagabundos!
Ficam invadindo fazendas!”. Um dos
homens era o presidente do Sindicato
Rural de Iguatemi, Marcio Morgatto. A
pedido dele, o então prefeito da cidade,
José Roberto Arcoverde (PSDB), apareceu no local. Sua família é proprietária
da Fazenda Santa Rita.
Os desdobramentos jurídicos do episódio? Para além da denúncia feita pelo
Conselho Indigenista Missionário (Cimi),
nada. Nenhuma investigação policial
apurou o crime de ameaça. Nenhuma
medida foi tomada por parte do governo
federal para a segurança dos indígenas
na região. Nenhuma medida para garantir a permanência da comunidade no
território reivindicado. Dali a um ano,
em novembro de 2012, a Justiça Federal
de Naviraí expediria liminar ordenando a
saída imediata dos indígenas das terras
da Fazenda Cambará.
A ordem foi respondida com uma
carta da comunidade em que se anunciava, em desespero, a decisão de resistir. Pinçando inteligentemente uma
frase que captava o drama da situação,
a jornalista Eliane Brum publicou na
revista Época uma coluna intitulada
“’Decretem nossa extinção e nos enterrem aqui”, em que se conjugavam
estatísticas de suicídio com a expressão
“morte coletiva”.
“Morte coletiva” foi repetida cinco
vezes no artigo, e infinitamente nas
redes sociais. O resultado foi uma
certa histeria.
Rapidamente “morte coletiva”
virou “suicídio coletivo”. Em homenagem aos Guarani-Kaiowá, pessoas
trocaram seu sobrenome no facebook
e compartilharam fotos de indígenas
enforcados – estranha maneira de
demonstrar solidariedade. Mais de 50
manifestações foram organizadas em
diversas cidades do Brasil e do mundo
e surgiram “comitês” e “brigadas”
de apoio à resistência indígena. “Eu
também sou Guarani-Kaiowá”, dizia a
consígnia de inspiração neo-zapatista,
que chegou ao gosto de militantes
socioambientalistas e de partidos de
esquerda das capitais. Em São Paulo,
uma marcha na avenida Paulista reuniu
cerca de mil pessoas.
“Suicídio coletivo? Não!”, Lide
Solano Lopes aparece em um vídeo
desmentindo os boatos em torno de
sua comunidade. “Não nos entregaremos assim tão fácil!”. Os Guarani e
Kaiowá de Pyelito vieram a público
explicar o mal entendido em cima das
suas declarações, mas a esse ponto a
própria ministra Maria do Rosário já
havia se manifestado pela necessidade
de intervenção na reintegração do
Pyelito Kue. A reintegração foi suspensa
pelo Tribunal Regional Federal da 3ª
Região, que autorizou aos indígenas a
permanência em um hectare da Fazenda
Cambará até a conclusão dos processos
Associação Cultural dos Realizadores Indígenas (Ascuri)
MPF-MS
O cacique Lide Solano Lopes é uma das
lideranças ameaçadas do povo Guarani-Kaiowá
que mora em Pyelito Kue e seu questionamento
reflete a difícil situação dos indígenas: “como o
Pyelito reagiu até hoje, sem arma?”
demarcatórios. O “devir Guarani-Kaiowá” parece ter tido um efeito positivo:
parafraseando o antropólogo Eduardo
Viveiros de Castro, éramos todos índios,
exceto quem não era.
Mas em um país onde todo mundo
é índio de direito, ninguém pode ser
índio de fato.
Um hectare
para o Pyelito
Lide me mostrou o estado dos barracos, as lonas estavam furadas e rasgadas. Janeiro é período de chuva no Mato
Grosso do Sul, e eu só pude imaginar
como seria dormir debaixo daquele teto
em uma noite de tempestade de verão.
Quase um ano e meio depois da histeria
em torno da carta da comunidade, a
vida não havia mudado muito para as
20 famílias indígenas do Pyelito Kue.
Sob as árvores de uma capoeira baixa,
o Pyelito seguia a sina entre a estrada
vicinal e a cerca assentada pelo proprietário da Fazenda Cambará, sob os
auspícios da justiça. A maior reclamação
era a falta de escola para as crianças, o
que é só uma derivada da reclamação
por falta de terra: como ter uma escola
onde não há espaço pra se levantar nem
mais um barraco?
Pelo atraso nas demarcações, que
deveriam ter sido concluídas até 1993,
o Ministério Público Federal firmou em
2007 um Compromisso de Ajustamento
de Conduta com a Funai concedendo
prazo até janeiro de 2011 para a conclusão dos estudos de identificação e
delimitação das terras indígenas Guarani no estado.
Ambos, Pyelito Kue e Mbarakay,
fariam parte do Grupo de Trabalho
(GT) do Iguatemipegua I, sob respon-
sabilidade da antropóloga Alexandra
Barbosa da Silva. O GT foi instaurado
em 2008, mas os trabalhos só foram
encaminhados em 2010. Dentre todos
os relatórios técnicos de identificação
de terras indígenas no Mato Grosso do
Sul, apenas o de Pyelito Kue e Mbarakay foram publicados até agora. O
prazo para contestação já se esgotou,
e o encaminhamento da demarcação
depende unicamente da assinatura do
ministro da Justiça e da homologação
pela presidenta da República.
Na portaria publicada em janeiro de
2013, a área identificada como Pyelito
Kue e Mbarakay soma 41.571 hectares
– desses, um único hectare estava efetivamente ocupado pelos índios à época
da publicação, conforme autorizava a
Justiça e garantia a cerca fincada pelo fazendeiro. Um hectare corresponde a 10
mil metros quadrados, o que é mais ou
menos a área de um campo de futebol.
Em novembro do ano passado, uma
nova carta já predizia um novo conflito: “Nós queremos que eles [governo
brasileiro] cumpram a sua palavra. Eles
falam que vão fazer. Nós já ficamos
esperando”, dizia a carta, “E eles não
estão cumprindo, não estão chegando
e não vem para demarcar a nossa terra”.
Quando visitei o Pyelito, em janeiro
de 2014, as crianças brincavam sob
os galhos dos arbustos em que estava
metida a comunidade. Uma pequena
estrutura de ogapysy – a casa de reza
tradicional em que os guarani realizam
seus ritos – estava sendo construída em
uma área aberta, mas faltavam o sapé
e a madeira necessária para finalizá-la.
As mulheres reclamavam que não era
possível plantar naquela terra, que não
havia água suficiente. O funcionário da

“As lonas
estavam
furadas e
rasgadas.
Janeiro é
período de
chuva no Mato
Grosso do
Sul, e eu só
pude imaginar
como seria
dormir debaixo
daquele teto
em uma noite
de tempestade
de verão.
Quase um ano
e meio depois
da histeria
em torno
da carta da
comunidade,
a vida não
havia mudado
muito para as
20 famílias
indígenas do
Pyelito Kue”
5 Abril – 2014
A comunidade é
constante alvo
de ações de
pistoleiros que
disparam contra
os indígenas. A
Funai também
foi invadida e
a portaria que
autoriza a Força
Nacional a atuar
nos conflitos
fundiários
envolvendo
indígenas no
estado está
vencida desde o
ano passado
 Coordenação Técnica Local da Funai
confessou que lhe faltavam recursos
para garantir a segurança dos índios,
e os jornais locais circulavam a informação de que empresas de segurança
privada haviam sido contratadas pelas
fazendas da região.
Lide me chamou de lado, pediu que
eu visitasse uma família cuja criança
estava doente. O menino tinha cerca
de dois anos e estava prostrado, com a
barriga inchada. A cena me impressionou bastante. Dali a dois dias, recebi a
notícia de que a criança havia morrido.
Um hectare é mais ou menos
um campo de futebol
Na segunda semana de fevereiro
de 2014, a comunidade retomou a
totalidade da Fazenda Cambará. Os
cerca de mil hectares da propriedade
estão todos sobrepostos à área identificada pela Funai como de ocupação
tradicional indígena. O funcionário
que residia na sede não foi agredido.
Nos dias que se seguiram os próprios
índios auxiliaram a retirada de todo o
gado criado na fazenda. Apesar do clima
de tensão e de episódios de ameaça, a
situação estava relativamente sob controle: Osmar Bonamigo, o proprietário,
chegou a declarar aos índios e à Funai
que abandonaria a área.
Assine o
As fazendas vizinhas, no entanto,
reforçaram a segurança. A imprensa
local noticiou que o Sindicato Rural
de Iguatemi estava investindo 15 mil
reais ao mês em segurança privada na
região a fim de evitar “novas invasões”.
Os indígenas, de sua parte, declararam
que aguardariam na Fazenda Cambará
novo posicionamento do governo e da
Justiça, mas dão notícia que homens
armados e de moto circundam a área
da retomada duas vezes ao dia.
Por volta das 15h do dia 2 de março,
três desses homens e uma mulher, posicionados na estrada em frente à porteira da fazenda, abriram fogo contra os
indígenas. As crianças, que brincavam
no pátio da casa que servia de sede
à fazenda, se esconderam atrás das
árvores e de uma mureta de concreto.
Um tiro acertou a porta, poucos centímetros de onde estava sentada uma
senhora de idade. Uma bala ricocheteou
no assoalho de madeira da casa e feriu
uma árvore. Quem estava dentro dos
barracos protegeu-se no chão. Alguns
homens, armados com arco e flecha e
facões, se aproximaram agachados da
cerca, e as pessoas que estavam fazendo
os disparos fugiram.
“Nossa comunidade é pouca gente, mas é corajosa!”, me disse Marcio
Solano Lopes, filho do cacique Lide,
MPF-MS
Associação Cultural dos Realizadores Indígenas (Ascuri)
Luta pela terra
“Se acertarem nossa família, a gente
vai ter com eles na fazenda”. Ao todo,
o tiroteio deixou nove marcas de bala
nas paredes, árvores e barracos da
comunidade. Lide fez questão que eu
fotografasse uma a uma – “Como a gente vai reagir, sem arma?”, perguntou.
Essa é uma pergunta sem resposta.
Como o Pyelito reagiu até hoje, sem
arma?
No domingo de carnaval, quando escutei o tiroteio pelo telefone,
notifiquei pessoalmente a Polícia Federal. Sem resposta. Tentei notificar
o Ministério Público Federal, mas os
procuradores não estavam na cidade.
Tentei notificar a Funai, mas o que eles
poderiam fazer? Notificar, novamente,
a Polícia Federal?
A Funai na região não está em uma
situação melhor do que as dos índios. A
sede da Coordenação Técnica Local de
Iguatemi foi invadida poucos dias antes
do tiroteio. Destruíram computadores,
roubaram documentos, e tentaram levar a caminhonete da entidade – o que
só não foi possível porque um caminhão
parado na porta impediu a passagem
do veículo. O coordenador local solicitou ao MPF sua inserção no Programa
Nacional de Proteção aos Defensores
dos Direitos Humanos (PNPDDH), da
Secretaria de Direitos Humanos da
Presidência da República (SDH), em que
já estão inscritas mais de 20 lideranças
indígenas no Mato Grosso do Sul.
Apesar disso, não creio que tenha
sido designada alguma escolta. No
domingo de carnaval, quando escutei
o tiroteio pelo telefone, chamei o
plantão da SDH e pedi que eles acionassem o efetivo da Força Nacional.
Fui informado, prestativamente, de que
“infelizmente a SDH não tem comando
da Força, que obedece diretamente
o Ministério da Justiça”. No mais, a
portaria que autoriza o efetivo a atuar
nos conflitos fundiários envolvendo
indígenas no estado está vencida desde o ano passado, e o ministro José
Eduardo Cardozo ainda não promoveu
sua renovação.
Caminhando pelos limites da retomada, a pergunta de Lide me ecoava:
como o Pyelito reagiu até hoje, sem
arma?
A poucos centímetros do chão, em
meio ao capim do pasto, notei que
brotavam ramas de mandioca recém-plantadas. Imaginei o quão difícil deve
ser roçar uma terra assim, coberta há
tantos anos com pasto. Mais adiante,
dez garotos jogavam bola em um campo
improvisado.
Não havia espaço pra futebol, quando eles ocupavam um só hectare. n
SOLICITE SUA ASSINATURA PELA INTERNET:
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FORMA DE PAGAMENTO – DEPÓSITO BANCÁRIO:
BANCO BRADESCO – Agência: 0606-8 – Conta Corrente: 144.473-5
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6
Ass. anual: R$ 60,00 Ass. dois anos: R$ 100,00 *Ass. de apoio: R$ 80,00 América Latina: US$ 50,00 Outros países: US$ 70,00
* COM A ASSINATURA DE APOIO VOCÊ CONTRIBUI PARA O ENVIO DO JORNAL A DIVERSAS COMUNIDADES INDÍGENAS DO PAÍS.
S
Irmã Joana Aparecida Ortiz/Cimi
egundo o Relatório Conflitos no Campo
Brasil 2013, lançado no dia 28 de abril, das
1.266 ocorrências relacionadas ao conjunto
dos conflitos no campo no Brasil, 205 estão
relacionadas aos povos indígenas, sendo que 154
referem-se a conflitos por terra ou retomada de
territórios e 11 a conflitos pela água. No quadro
de violências, das 829 vítimas de assassinatos,
ameaças de morte, prisões, intimidações, tentativas
de assassinato e outras, 238 são indígenas. Das 34
mortes por assassinato, 15 são de indígenas. São
também indígenas 10 das 15 vítimas de tentativas
de assassinato, e 33 das 241 pessoas ameaçadas de
morte. Não se tem registro de situação semelhante
em outro momento nos 29 anos que a Comissão
Pastoral da Terra (CPT) publica este relatório.
O estado que lidera o ranking da violência contra os indígenas é o Mato Grosso do Sul, onde 15
indígenas foram ameaçados de morte, 7 sofreram
tentativa de assassinato, 3 foram assassinados e 8
presos. Todos os assassinados e os que sofreram
tentativa de assassinato relacionados a conflitos no
campo são indígenas. Também 100% dos assassinados em Roraima são indígenas.
Na Bahia, estado que ficou em segundo lugar
na violência contra os povos indígenas, dos 6 assassinatos, 4 são de indígenas, e das 3 tentativas
de assassinato, 1 é contra indígena, além de 3
ocorrências de ameaça de morte. Chama atenção
o alto índice de violência incidente sobre as lideranças indígenas, com 34 ocorrências relacionadas
a ameaças de morte, 26 tentativas de assassinato
e 4 assassinatos.
De acordo com o relatório, as 61 ações de
retomadas feitas pelos indígenas de suas terras
tradicionais teriam motivado os fazendeiros a reagir
com violência desmedida. Destas, 20 teriam sido
realizadas na Bahia e 30 no Mato Grosso do Sul.
O que evidencia, mais uma vez, a necessidade do
governo federal agir, no sentido de cumprir a Constituição Federal e demarcar as terras tradicionais
indígenas, para diminuir os conflitos no campo. n
Bancada indígena da CNPI denuncia
manobras do governo e divulga Parecer
N
o dia 8 de abril, a Bancada Indígena da Comissão Nacional de Política
Indigenista (CNPI) e os
integrantes da Mesa de Diálogo,
criada no ano passado, divulgaram uma carta durante a abertura
da 9ª Reunião Extraordinária da
CNPI, manifestando “frustração”
diante da pauta apresentada pelo
governo. Conforme as lideranças
indígenas, os governistas não cumpriram as decisões tomadas pelo
coletivo na 22ª Reunião Ordinária,
realizada entre os dias 10 e 12 de
dezembro de 2013, e trouxeram
pautas de interesse antagônico
ao dos povos indígenas, caso da
minuta que pretende alterar o
procedimento de demarcação de
terras indígenas.
Também foi apresentado um
parecer jurídico sobre a Minuta de
Portaria para a “regulamentação”
do Decreto nº 1775/96, apresentada pelo ministro da Justiça, José
Eduardo Cardozo, que revoltou as
organizações e povos indígenas.
“Contrariamente às alegações do
governo, a dita portaria eterniza a
não demarcação de terras indígenas, fragiliza a Funai, e desenha um
quadro assustador de acirramento
de conflitos”, disse em nota a Articulação dos Povos Indígenas do
Brasil (Apib) à época.
O parecer, de 16 páginas, está
disponível em: http://mobilizacaonacionalindigena.wordpress.
com/2014/04/08/organizacoes-divulgam-parecer-rechacando-proposta-do-mj-de-alterar-demarcacoes-de-terras/. Leia abaixo a
Carta Aberta entregue ao ministro
Cardozo.
Carol Fasolo
Comissão Pastoral da Terra (CPT)
Demarcação
Patrícia Bonilha
Relatório da CPT explicita
aumento da violência
contra povos indígenas e
comunidades tradicionais
Carta Aberta dos integrantes da Bancada Indígena da Comissão
Nacional de Política Indigenista (CNPI) e da Mesa de Diálogo
Prezado Sr. Ministro da Justiça José Eduardo
Cardozo,
Prezados Srs e Sras, Membros da Bancada Governamental da CNPI,
Por meio desta carta pública, viemos manifestar nosso sentimento de frustração e indignação
a respeito da proposta de pauta apresentada pelo
governo para a 9ª Reunião Extraordinária da CNPI.
Desrespeitando todas as deliberações acordadas
em plenária durante a 22ª Reunião Ordinária, realizada entre os dias 10 e 12 de dezembro de 2013,
quando se decidiu pelo processo de construção
coletiva de uma Conferência Nacional de Política
Indigenista, a convocatória desta reunião inverte
completamente a lógica construída na reunião de
dezembro. Na ocasião, ficou agendada para o mês de
janeiro uma reunião preparatória do grupo responsável por elaborar uma proposta metodológica para
Conferência Nacional, a qual deveria ser submetida
à plenária na próxima reunião ordinária, que deveria
ter ocorrido no mês de março de 2014. Nenhuma
das duas ocorreu.
Havia sido acordado também em plenária que a
discussão da mudança no processo de demarcação
de terras indígenas, na qual se insere a proposta
de Minuta de Portaria elaborada pelo Ministério da
Justiça, deveria ser realizada dentro dos seminários
regionais que culminariam na Conferência Nacional
de Política Indigenista.
Mais uma vez, porém, o governo desrespeita as
decisões tomadas coletivamente em plenária, e propõe uma pauta para esta reunião focada apenas nos
seus interesses políticos, impondo de forma autoritária, a apreciação da Minuta de Portaria, substituindo
o processo de discussão com as bases por um único
Seminário Nacional. Trata-se de uma demonstração
clara que concebe a CNPI como um mero espaço
para referendar as posições e interesses do governo.
Diante desta postura intransigente, a bancada
indígena e as organizações indígenas que compõem
a Mesa de Diálogo decidiram conjuntamente com
organizações indigenistas, realizar uma análise própria da referida Minuta de Portaria. De acordo com a
fundamentação expressa no parecer, que acompanha
essa manifestação, concluímos que a Minuta de
Portaria representa mais uma tentativa de ataque
aos direitos indígenas, contrariando a legislação
vigente, e cedendo aos interesses do agronegócio,
e da base aliada do governo.
Por essa razão, não vemos nenhum sentido em
realizar o Seminário Nacional proposto, e apelamos
para o bom senso, reivindicando que o governo
desista definitivamente desta medida desnecessária
e descabida, e concentre seus esforços na retomada
da demarcação das terras tradicionais, conforme
prescreve a Carta Magna brasileira.
A instauração da Mesa de Diálogo com o movimento indígena no âmbito da CNPI, que sucedeu
às manifestações de junho de 2013, tinha como
objetivo avançar nas demarcações de terra, que já
estavam paralisadas. Em um curto espaço de tempo,
o governo abandonou completamente a pauta, desconsiderando todas as reivindicações apresentadas,
e tenta agora converter este espaço num conselho
de sentença contra os povos indígenas, enterrando
qualquer possibilidade de demarcação de seus territórios tradicionais.
Nós, lideranças indígenas, povos e organizações
reiteramos a disposição de lutar contra este tipo
de manobra que tenta nos usar para fins políticos,
em detrimento dos nossos direitos fundamentais
e coletivos.
Bancada Indígena da CNPI e representantes da
Mesa de Diálogo
“Contrariamente
às alegações
do governo, a
dita portaria
eterniza a não
demarcação
de terras
indígenas,
fragiliza a Funai,
e desenha
um quadro
assustador de
acirramento de
conflitos”
7 Abril – 2014
Enawenê-Nawê
A terra onde os
espíritos riem
Diante do desafio de
incluir o Rio Preto em
sua terra demarcada e
enfrentar o desmatamento
e as outras ameaças
causadas pelos fazendeiros
e madeireiras da região
norte do Mato Grosso, este
povo resignifica os valores
da sociedade branca e se
afirma como “natureza em
si”, e não “parte dela”.
Fotos: Renato Santana
Renato Santana,
P
“
Abril – 2014
8
Enviado a Juína (MT)
ode foto, mas tem que ser
foto bonita”, diz Dodowai
Enawenê-Nawê, filho do
cacique Lula, ao autorizar a
captação de imagens de seu
povo. O repórter, desconfiado, pergunta: “Como é uma
foto bonita de Enawenê?”. Dodowai,
convicto, devolve: “É Enawenê sem
roupa de branco. A gente só usa porque
precisa conversar com branco, mas a
gente tem nosso jeito mais bonito”. Ao
redor de Dodowai, do terreiro no centro da única aldeia, onde vivem os 700
integrantes do povo, a câmera percorre
15 grandes malocas, uma casa religiosa
e o vai-e-vem explosivo de crianças,
homens e mulheres sob um sol matutino que, se espremendo por entre a
neblina, chega à terra para apagar a luz
da grande fogueira, queimando desde
a madrugada. Ainda é cedo, mas o dia
para os Enawenê começou há horas.
No terreiro todos se encontram
em abraços, compartilham comida,
conversam e, sobretudo, riem e tomam
chicha. As crianças correm numa revoada de rumo indefinido e, em duplas, os
homens, de mãos dadas, encontram
com os demais sentados sobre os
troncos que alimentam a fogueira na
noite da comunidade que vive sem
energia elétrica. A época é de ritual,
mas difícil é chegar à aldeia Enawenê
e não encontrar algum em curso. Desta
vez é o Kateko. As mulheres saem de
uma das malocas, ombro a ombro,
cantando e acompanhadas por dois
pajés. Vestidas com saiotes vermelhos
de algodão e colares, seguem até o
centro da aldeia, em passos laterais
sincronizados, formando um círculo
ao redor da grande fogueira.
Os homens as observam com alegria
enquanto comem beiju e assam peixe.
Alguns estão com os celulares posicionados para gravar o som do ritual, que
acontece quatro vezes ao dia, a cada seis
horas, durante três meses. Todo Enawenê que possui um celular o usa para
gravar e ouvir os rituais inúmeras vezes,
seja na aldeia ou fora dela. E assim o
povo Enawenê convive, não apenas afirmando suas tradições e modos de vida
na utilização peculiar de roupas e utensílios da sociedade que os envolve, mas
também enfrentando desafios comuns
aos demais povos indígenas do Brasil. O
principal deles envolve o acréscimo de
uma área tradicional, onde está localizado o Rio Preto, nas delimitações da terra
indígena. O território ficou de fora da
primeira demarcação, ocorrida antes da
promulgação da Constituição de 1988,
e seguiu ocupado por fazendas.
Há poucos anos a única forma de
chegar à aldeia Enawenê-Nawê, no
norte do Mato Grosso, era pelos rios
Papagaio e Juruena. Por estes rios se
deu o contato do povo com integrantes
do Conselho Indigenista Missionário
(Cimi) e da Operação Anchieta, em 28
de julho de 1974. Um destes missionários, Vicente Cañas, jesuíta espanhol,
passou a viver junto aos Enawenê.
Kiwixi, nome dado pelos indígenas
a Vicente, foi assassinado em 1987
durante os trabalhos de demarcação
da terra indígena Enawenê. Entre os
mandantes e executores da morte de
Kiwixi estavam fazendeiros e capangas
que invadiram a terra indígena e se
estabeleceram na região do Rio Preto,
a mesma que hoje os indígenas lutam
para recuperar. Portanto, a importância
de Kiwixi para os Enawenê atinge até
mesmo o âmbito cosmológico, sendo
que os mais novos conhecem a história
do “branco” que se tornou um Enawenê
e pelo povo entregou-se ao martírio.
O que os velhos e
os espíritos dizem
A área do Rio Preto é identificada
pelos Enawenê como local de uma das
aldeias antigas, cemitério de antepassados e com dezenas de espaços de
roça. A memória dos mais velhos traz
conflitos com outros povos, caso dos
Cinta-Larga, tendo o Rio Preto como
arena. Então, de lá fugiram e retornaram inúmeras vezes. “Queremos voltar
para essa parte do território porque é
onde deveria acontecer ritual Enawenê
e não pode fazer porque dizem que
não é mais nosso. Branco mente, mas
nós sabe a verdade e a verdade é a que
nossos velhos contam, é a que os espíritos dizem. A verdade é nossos antigos
enterrados lá. A verdade é a terra boa
que roça Enawenê deixou lá”, pontua
Dodowai. A briga pelo território tem
causado alvoroço entre a elite agrária
da região.
Em Juína, durante o mês de outubro
do ano passado, manifestações percorreram a cidade contra a demarcação de
Rio Preto. Na pauta dos manifestantes
também estava a revisão de área não
inclusa na demarcação da terra indígena Myky, em Brasnorte, município vizi-
nho. As prefeituras, controladas pelos
fazendeiros, incentivam as populações
contra os indígenas. Os fazendeiros,
que detêm ainda comércios locais e
em alguns casos madeireiras que devastam dezenas de hectares indígenas,
patrocinam o acirramento dos ânimos.
No caso de Juína, a sede da Fundação
Nacional do Índio (Funai) já foi alvo de
protestos. Para os indígenas, porém,
nada é capaz de abalar a determinação
em recuperar seus territórios invadidos. “Ninguém mexe aqui. Olha feio,
mas não mexe. Sabe que se mexer com
um vai cutucar vespeiro. Pode protestar. Enawenê não liga. O que Enawenê
quer é sua terra”, diz um indígena ao
caminhar pelas ruas de Juína.
Os interesses por trás da não inclusão do Rio Preto na terra indígena
dos Enawenê possuem razões evidentes e motivos especulados. Além
da exploração que esta área rende ao
fazendeiro, há ainda a intenção de se
construir mais usinas hidrelétricas,
aproveitando o potencial dos rios
que banham o território indígena.
“Sabemos disso, de construir usina.
Isso Enawenê não quer porque nunca
que esse tipo de coisa do branco é
para o bem do índio”, diz Dodowai. A
A retirada
retirada de madeira, porém, é o que
da madeira,
parece estar mais evidente entre os
principalmente,
e a construção
interesses sobre o território do povo
de usinas
Enawenê.
hidrelétricas
As fazendas instaladas dentro
são apontados
como os
do espaço indígena e numa de suas
principais
margens, além de inúmeras áreas de
motivos para
não incluir o
manejo, fizeram com que de Juína uma
Rio Preto na
estrada de 100 km fosse aberta até a
Terra Indígena
Enawenêporteira antes usada por traficantes
Nawê
de madeiras. No caminho é possível
cruzar com uma dezena de carretas e
bitrens levando para esse município
toras e mais toras de árvores sem
nenhum selo. Nas cidades a madeira
é “legalizada” e, assim, segue em seu
ciclo comercial que devora milhões de
hectares em reservas legais e terras
tradicionais. Ao menos agora a porteira está controlada pelos Enawenê.
Dali é possível pegar outra estrada,
bastante acidentada em seus 40 km,
até a vistosa aldeia. O caminho foi
aberto pelos próprios indígenas.
Durante os trabalhos, avistaram os
Yalakolori, índios isolados na língua
Enawenê. “Eles vão em roça Enawenê,
levam nosso machado. Nosso povo viu
eles várias vezes, mas quando abrimos
estrada deu pra chegar mais perto”,
explica Dodowai.
 9 Abril – 2014
Ser a natureza em si
Entre a porteira e o Rio Ikê,
onde fica o porto dos Enawenê e o
emaranhado de barcos que os levam
para pescarias e rituais por todo o
território, não demora muito tempo
para se perceber que a forma como
os Enawenê lidam com seus problemas está relacionada com a poderosa
espiritualidade de um povo que não
se diz parte da natureza, mas a natureza em si. “Branco não entende
que somos parte disso aqui”, diz um
jovem Enawenê ao olhar a floresta ao
redor, que numa parte do território é
Cerrado e em outra Amazônica. Tanto em um bioma quanto em outro,
os Enawenê se veem como parte. Seguem assim, peculiares: não tomam
água, apenas chicha, e jamais comem
carne vermelha. Na aldeia preferem
o peixe, mas na cidade abrem mão
para o frango. Beiju, mandioca, milho
e frutas fazem a vez do arroz, feijão
e comidas “que branco gosta”, como
costumam dizer.
Nas grandes malocas Enawenê
vivem dezenas de pessoas de uma
mesma família. Em todos os casos
isso se dá pelo sentido de organização familiar do povo. As mulheres
trabalham nas colheitas de mandioca
e milho, apurando a chicha, assando
peixe e fazendo beiju. Dividem o espaço, as tarefas e a criação dos filhos,
que passam boa parte do tempo em
brincadeiras, caminhando pela mata
e ouvindo histórias dos mais velhos.
Não há escola e o português só é
aprendido pelos Enawenê quando
maiores, com exceção das mulheres.
O modo
de vida
tradicional
peculiar dos
EnawenêNawê
mantém-se
nos dias de
hoje: sem
comer carne
vermelha, sem
beber água,
sem escola
para estudar.
Os rituais
acontecem
diariamente
e as crianças
brincam com
liberdade
D
Elas, por outro lado, possuem um
apurado sentido de preservação e
conversam entre si de forma alegre,
enquanto as crianças pequenas, penduradas entre os seios da mãe, olham
as maiores. Assim como os homens,
são altamente ligadas às crenças
do povo Enawenê e possuem um
ritual tecido apenas por elas e seus
cantos.
esde o assassinato de Kiwixi, em 1987, até
os dias de hoje sua história nunca deixou de
ser contada entre o povo Enawenê-Nawê. Os
indígenas o consideram um Enawenê, porque “vivia
como Enawenê, fazia barragem para o ritual com a
gente e ficava pescando dez dias e trazia tudo para
todo mundo comer na aldeia”, declara Sucuri dentro
do barraco em que Vicente fazia as quarentenas
antes de seguir viagem rumo à aldeia.
Neste barraco, Kiwixi foi assassinado e seu corpo
encontrado por integrantes do Cimi cerca de um
mês depois. O missionário mantinha um rádio e estrutura mínima para passar algumas semanas, vindo
da cidade. Também tentava garantir que não levaria
nenhuma doença para os Enawenê. Mantinha contato
com Tomaz Aquino Lisboa, missionário que vivia com
os Myky, que estranhou a demora de Vicente em fazer
contato e foi ao local ver o que se passava.
Abril – 2014
10
Entre os rituais intermitentes e
a alegria elétrica de cada Enawenê,
o povo como um todo vem encontrando respostas para questões
trazidas pela relação com a sociedade envolvente. Todavia o fazem
resignificando aquilo que chega para
eles, ressaltando a afirmação do que
são. Assim lutam pelo Rio Preto e
por questões básicas, como saúde e
saneamento básico. Mesmo quando
algumas saídas são apresentadas
para eles, tal como abandonar as
malocas coletivas, eles buscam caminhos distintos e negam qualquer
possibilidade de abandonar o modo
como vivem - mesmo que isso hoje
envolva passar horas de trabalho na
roça ouvindo um dos rituais do povo
pelo celular. n
Vicente Cañas, o Kiwixi, presente!
Arquivo Cimi

Fotos: Renato Santana
Enawenê-Nawê
Sucuri era um jovem de pouco mais de dez
anos quando Kiwixi morreu, mas se recorda das
vezes que Vicente ia pescar: “Todas crianças queriam subir no barco e ele dizia que só podiam três.
Entrava cinco e ele ficava bravo, mas todo mundo
acabava indo com ele”, segue puxando da memória
o indígena. Para ele é surpreendente que o barraco
ainda esteja de pé e afirma que ali era tudo muito
bem arrumado, com várias plantações que Kiwixi
levava para a aldeia.
Hoje tudo está tomado por mato e memória. A
trilha usada pelos assassinos não existe mais, apenas
a impunidade do crime. O túmulo de Vicente, com
seu nome indígena talhado na pedra, segue sobre
o local em que o corpo foi sepultado. “Enawenê
achava que Kiwixi ia deixar aldeia sempre que saia
e Kiwixi dizia que ia ficar bem velhinho aqui, que
ia morrer aqui”, sorri Sucuri. (R.S.)
Estado ausente
E agora, ministro Cardozo?
Após ignorar todos os compromissos assumidos em reunião presencial com o povo Kaingang e Guarani no mês de março e faltar a quatro
reuniões agendadas com os indígenas apenas no mês de abril, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, deve ser responsabilizado pelo
conflito entre agricultores e indígenas que, infelizmente, resultou na morte de dois agricultores em Faxinalzinho (RS).
Q
Da Redação,
uando se diz que uma tragédia
está anunciada, geralmente, não
é devido à capacidade profética
de quem faz o anúncio, e sim pela
interpretação dos vários dados e elementos de uma realidade, muitas vezes, um
tanto óbvia.
Em nota pública divulgada no dia 28
de abril, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) – Regional Sul afirmou em seu
primeiro parágrafo que “a possibilidade
de um desfecho tranquilo para a questão
das demarcações de terras indígenas no
Rio Grande do Sul esteve mais uma vez
nas mãos do Ministro da Justiça (MJ), José
Eduardo Cardozo. Infelizmente, o ministro,
ao invés de optar pela solução dos problemas – e, com isso, assegurar o cumprimento
dos direitos constitucionais dos povos indígenas e dos pequenos agricultores - preferiu
descumprir os acordos que firmou com os
Kaingang e Guarani em Brasília no mês de
março deste ano”. Este é um exemplo claro
de que os autores dessa nota não podiam
imaginar o quanto o seu conteúdo era profético, muito menos que o acontecimento
trágico aconteceria naquele mesmo dia. Sigamos na leitura da nota para compreender
o contexto em que ele se insere.
“O ministro Cardozo, na ocasião, garantiu às lideranças que o governo daria
continuidade aos procedimentos demarcatórios de quatro áreas reivindicadas há
muitas décadas e que seria organizada
uma reunião de trabalho com a finalidade
de definir um cronograma de ações para
concluir os procedimentos demarcatórios.
A reunião de trabalho acertada - inclusive
com ofício formal em papel timbrado e
assinado pelas mãos do ministro - foi agendada para o dia 5 de abril. A reunião não
aconteceu porque o ministro José Eduardo
Cardozo descumpriu o acordo, marcando e
desmarcando sua vinda ao estado por mais
de três vezes. Ou seja, depois de um mês
de adiamentos de prazos para a reunião
entre os povos indígenas e o governo,
absolutamente nenhuma providência foi
tomada no que se refere à demarcação dos
territórios indígenas.
Diante do descumprimento dos acordos, do modo desrespeitoso com o qual
os indígenas estão sendo tratados e sem
ter outra alternativa que lhes assegure o
direito constitucional de acesso à terra,
algumas comunidades Kaingang decidiram
retomar, por conta própria, partes de seus
territórios tradicionais. As lideranças das
comunidades afirmam que, com essa ação,
pretendem também chamar a atenção dos
poderes públicos para que solucionem
as demandas dos pequenos agricultores
que se encontram sobre as terras a serem
demarcadas.
Nesse sentido, no dia 28 de abril,
os Kaingang da Terra Indígena (TI) Passo
Grande do Rio Forquilha, localizada no
município de Sananduva (RS), ocuparam
a capela de Bom Conselho e parte da
sede onde residem alguns agricultores e
anunciaram de forma definitiva que não
sairão mais de sua terra ancestral. Ao
mesmo tempo, indígenas de outras aldeias
Kaingang - como da TI Kandóia, localizada
no município de Faxinalzinho, e da TI Rio
dos Índios, localizada no município de Vicente Dutra - passaram a trancar rodovias
vicinais de acesso à sede do município, a
Chapecó e às rodovias estaduais e federais,
anunciando que se somarão aos processos
de autodemarcação se suas demandas não
forem atendidas imediatamente.
Além das demarcações e homologações das áreas de Passo Grande do Rio
Forquilha, Kandóia e Rio dos Índios, que
constituíram o passo inicial do movimento,
a reivindicação dos indígenas contempla
também a demarcação imediata da Terra
Indígena Guarani do Irapuá, localizada
no município de Caçapava do Sul. Com
mais de 20 famílias Guarani Mbya vivendo
acampadas nas margens da rodovia BR –
290, a comunidade continua aguardando a
portaria declaratória que deve ser expedida
pelo ministro da Justiça Eduardo Cardozo
e, desse modo, poderem acessar sua área
tradicional, identificada e delimitada há
mais de uma década pela Fundação Nacional do Índio (Funai).
O descumprimento dos acordos com
os povos indígenas estimula, em última
instância, a violência, a tensão e a insegurança entre indígenas e agricultores.
Vale ressaltar que muitos dos pequenos
agricultores diretamente afetados pelos
procedimentos de demarcação já manifestaram ao próprio ministro Cardozo que
preferem uma solução pacífica, através da
justa indenização e a consequente conclusão dos procedimentos de demarcação
das terras indígenas. Para os agricultores, a
culpa pela situação de conflito e inseguran-
ça é do governo federal, que negligencia
seu papel em detrimento de interesses
econômicos dos ruralistas e de sindicatos
rurais ligados a eles.
Aos atores de um processo político não
cabe a justificativa de não estar ciente dos
acontecimentos nos quais está totalmente
imerso e envolvido e, como extensão, de
interpretar, fazer a leitura política, desses
acontecimentos. Muito menos cabe a
possibilidade de justificar a sua não ação
quando suas decisões definem as condições de vida de milhares de pessoas, ou até
mesmo a continuidade da própria vida. E,
definitivamente, estes dois aspectos (não
estar ciente/interpretar e não agir) não
condizem com a postura de alguém que
ocupa o cargo de ministro de Estado da
Justiça do Brasil ou de qualquer outro país.
Nesta posição, a negligência e a omissão
podem custar vidas.
Conflito causa a morte
de dois agricultores
No mesmo dia (28 de abril) em que
a nota pública foi divulgada e, claro, não
obteve qualquer atenção ou ação por parte do ministro Cardozo, o anúncio fez-se
realidade.
Durante o protesto dos Kaingang, em
Faxinalzinho (RS), ocorreu um conflito
envolvendo indígenas que bloqueavam
uma das estradas vicinais que passa dentro
da terra reivindicada como tradicional. De
acordo com os indígenas, um grupo de
agricultores tentou liberar a via à força e, em
uma tentativa de romper com o bloqueio,
houve um confronto em que, infelizmente,
dois agricultores acabaram mortos.
Tomava forma ali a violência incentivada pelos deputados federais Luis Carlos
Heinze (PP/RS) e Alceu Moreira (PMDB/RS)
durante audiência pública, realizada em
dezembro, no município de Vicente Dutra,
com recursos públicos - fato amplamente
divulgado pelas redes sociais e pela imprensa. “Reúnam verdadeiras multidões
e expulsem (os índios) do jeito que for
necessário”, diz Moreira em depoimento
gravado em vídeo.
Em outra nota pública, o Cimi Regional
Sul, juntamente com o Conselho de Missão
entre os Povos Indígenas (Comin) e a Frente
Nacional em Defesa dos Territórios Quilombolas/RS afirma: “O povo Kaingang, no
norte do Rio Grande do Sul, realizou mais
de quinze ocupações de terras que reivindicam como sendo parte de seu território
tradicional. São, em geral, pequenas áreas,
as quais abrigarão centenas de famílias
que vivem, em sua maioria, acampadas às
margens de rodovias. As terras indígenas,
se comparadas às propriedades de alguns
latifundiários, podem ser consideradas
pequenas glebas. Por exemplo, o deputado
Heinze, representante do bloco ruralista no
Congresso Nacional, sozinho, possui 1.543
hectares.
É importante ressaltar que a maioria
das áreas que os Kaingang reivindicam estão em processo de demarcação há mais de
10 anos, pela Fundação Nacional do Índio
(Funai). Nos últimos anos, desde o governo
Lula, os procedimentos demarcatórios não
avançaram. Com o governo Dilma a situação se agravou, pois ela determinou que
todas as demarcações fossem paralisadas,
acentuando os conflitos. O governo, aliado aos setores do agronegócio, assumiu,
claramente, uma política de negação dos
direitos indígenas e quilombolas, atropelando a Constituição Federal.
O ministro da Justiça José Eduardo Cardozo tem insistido que vai buscar solução
para os problemas através de mesas de
diálogos com os Kaingang. As tais mesas,
no entender do Cimi Sul, não passam de
manobras protelatórias. Somente no mês
de abril de 2014, o ministro da Justiça se
comprometeu, por quatro vezes, em dialogar com os indígenas em Porto Alegre.
Não compareceu em nenhuma das vezes,
sempre postergando para outras datas.
Os Kaingang, percebendo a estratégia
do ministro em protelar o cumprimento
dos acordos, decidiram romper com a farsa
das tais mesas de diálogo e reiniciaram
um processo de autodemarcação de seus
territórios.
Alertamos, uma vez mais, para a
gravidade do problema e conclamamos o
ministro para que cumpra com suas obrigações constitucionais demarcando as terras
indígenas, bem como estabeleça um cronograma de pagamento das indenizações
dos agricultores e o reassentamento em
outras terras. Caso contrário, os conflitos
se intensificarão”.
A pergunta que fica é: quantos conflitos, mortes e derramamento de sangue
são ainda necessários para que o governo
federal cumpra suas obrigações constitucionais? n
11 Abril – 2014
Velhos métodos autoritários
Polícia Federal impede ida de Babau ao Vaticano
Contrariando o dito popular de que “quem tem boca vai a Roma”, a PF, a partir de um inquérito realizado em dez dias
e depoimentos sem contraditório, impediu o cacique Babau de expor no Vaticano as violações a que seu povo tem sido
submetido. O abuso da prisão orquestrada catalisou amplo apoio e profunda indignação da sociedade civil.
Renato Santana,
de Brasília (DF)
M
enos de 24 horas depois de receber um passaporte para viajar ao
Vaticano e se encontrar, durante
celebração, com o papa Francisco, a convite da Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB), Rosivaldo Ferreira da Silva, o cacique Babau Tupinambá,
da Bahia, foi surpreendido no dia 17 de
abril ao ser informado pela Polícia Federal (PF) que estava impedido de sair do
país por conta de três mandados de prisão. Porém, as ordens judiciais estavam
arquivadas desde 2010. A PF disse que
tais mandados não estavam revogados e
que havia um quarto mandado.
Para a liderança indígena, o governo
federal, por intermédio de sua polícia,
queria impedir o encontro dele com o
Paul Walters/Arquivo Cimi
Liderança
indígena
respeitada
em todo o
Brasil, o
cacique Babau
foi alvo de
processo de
criminalização
por parte
do governo
federal e
impedido de
apresentar
denúncias
ao Papa
Francisco
papa Francisco. “O governo não quer que
eu denuncie o que vem acontecendo com
os povos indígenas no Brasil. A Polícia
Federal não sabe que os três mandados
foram arquivados e nem processo existe?
Claro que sabe! O governo sabe disso!”,
protestou cacique Babau.
Depoimentos de indivíduos beneficiados por fraude, e sem o contraditório,
serviram para o juiz substituto Maurício
Álvares Barra, da Vara Criminal da Justiça
de Una, pedir no último dia 20 de fevereiro, há pouco mais de dois meses, a prisão
temporária do cacique Babau Tupinambá,
acusado de estar envolvido na morte de
um pequeno agricultor. Outras oito pessoas também tiveram a prisão temporária
decretada. A liderança indígena poderia
ser presa a qualquer momento.
O inquérito policial que embasou a
decisão do juiz durou apenas dez dias,
entre o assassinato de Juracy José dos
Santos Santana, em 10 de fevereiro deste
ano, e o mandado de prisão. Além disso,
o próprio juiz aponta o “contingente
reduzidíssimo” da Delegacia de Polícia
Civil de Una, contando apenas com dois
policiais, como insuficiente para efetuar
a investigação. Sem contar a greve da
categoria na Bahia, que culminou com a
prisão de um de seus líderes.
A delegada expressa no inquérito
enviado ao juiz que não conseguiu
encontrar o cacique Babau, apesar de
ter realizado diligências, inclusive com
o apoio da Polícia Federal, para tomarlhe depoimento. Porém, a liderança
indígena esteve três vezes em Brasília
no período referido pela delegada, inclusive junto aos agentes federais. Além
disso, fez reuniões com o comando da
operação do Exército, presente em Una
e Buerarema, na aldeia Serra do Padeiro.
Escreve a delegada ao juiz: “(...)
Provavelmente (os acusados) tentam
esquivar-se da ação policial e subsequentemente da ação judicial e, na
certeza da impunidade, logo voltarão a
fazer novas vítimas”. A delegada, porém,
não faz referência, em sua ‘criteriosa’
e ‘laboriosa’ investigação, ao fato do
cacique Babau fazer parte do Programa
Nacional de Proteção aos Defensores de
Direitos Humanos (PNDDH) do governo
federal e só se locomover com o devido
conhecimento do programa.
Mesmo sem o contraditório e investigações mais exaustivas, uma vez
que não há efetivo de policiais garantidos pelo Estado no município de
Una, o juiz substituto afirmou em sua
decisão pela prisão que “colheu-se que
um dos principais suspeitos da execu-
“Ninguém vai me calar”
Carolina Fasolo,
de Brasília (DF)
“Eu não vou me intimidar, ninguém
vai me calar. Sei que eles estão fazendo
a minha prisão porque querem fazer
um ataque à minha aldeia”, disse o
cacique Babau Tupinambá no dia 24,
durante audiência conjunta da Comissão de Direitos Humanos da Câmara e
do Senado. Ele teve a solenidade como
única chance de se defender publicamente das acusações infundadas que
sustentam o inquérito, antes de se
entregar à Polícia Federal em Brasília.
“Não admito que me acusem de
assassinato. Nós, indígenas Tupinambá
da Serra do Padeiro, nunca assassinamos ninguém. Muito pelo contrário,
devolvemos a vida à região. Nós damos
a vida, não a morte. Morte é o que fazem
com a gente o tempo todo. Esses que
nos acusam sim, esses matam. Esses
trucidam”, disse aos presentes.
Babau disse que sua prisão é uma
estratégia governamental para travar
o processo demarcatório da TI Tupi-
nambá de Olivença, que é reconhecida
desde 2009 como de ocupação tradicional, mas ainda aguarda a assinatura da
Portaria Declaratória pelo ministro da
Justiça, José Eduardo Cardozo.
“Tudo isso pra não dar a nossa
terra, pra não devolver a nossa terra,
que nós temos e que nunca saímos de
lá! Nós nunca saímos. Nós vivemos lá.
Agora, o que a gente encontra com essa
ocupação militar feita pelo governo,
pra intimidar nós, Tupinambá, é uma
violência extrema, uma criminalização
montada, forjada, pra acabar com a
gente mesmo. E o cacique Babau se
tornou vítima direta, porque sou uma
pessoa que vocês estão vendo. Sou
claro. Mas não vou temer, e não vou
temer nunca! Sou Tupinambá!”. Depois
da audiência, o cacique encaminhou-se
à Polícia Federal, onde foi detido. A prisão do cacique teve ampla repercussão
nacional e contou com um expressivo
apoio da sociedade civil, que se manifestou através das redes sociais, de notas públicas e de pedidos de liberdade
para Babau enviados à justiça.
Liberdade, enfim
O ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ)
Sebastião Alves dos Reis Junior concedeu, no final da
tarde do dia 29, liminar determinando a liberdade
imediata do cacique Babau Tupinambá, que estava sob
custódia da Polícia Federal, em Brasília (DF).
Conforme a análise do ministro, a decisão do juiz
da Vara Criminal da Justiça de Una, que determinou a
Abril – 2014
12
prisão, “pouco ou quase nada se referiu ao paciente
(o cacique), tendo se limitado a fazer referências a
depoimentos de não se sabe quem”. Para Reis, o
acesso aos depoimentos do inquérito, e que induziram a decisão do juiz, “de forma surpreendente,
estão restritos à autoridade e ao Ministério Público
apenas, excluindo-se a defesa (do cacique)”. Por
fim, o ministro afirma que “não há qualquer notícia
de que Babau teria participado efetivamente do
homicídio”.
Apesar do caráter de urgência expresso na liminar, devido a questões burocráticas e problemas de
comunicação com o juiz de Una, o cacique somente
foi solto no dia 2 de maio. (R.S.)
Entidades denunciam violações de direitos
do povo Tupinambá de Olivença à ONU
Q
Da Redação
uase um mês antes do impedimento do cacique Babau de
ir ao Vaticano, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o
Serviço Inter-Franciscano de Justiça, Paz
e Ecologia (Sinfrajupe) e a Vivat Internacional protocolaram na Organização
das Nações Unidas (ONU), no dia 27 de
março, uma denúncia sobre diversas
violações dos direitos do povo Tupinambá de Olivença, que mora na Serra do
Padeiro, localizada no sul da Bahia. Nos
últimos seis meses, cinco Tupinambá e
um agricultor foram assassinados no
interior da terra indígena.
Um dos primeiros povos a ter contato com os portugueses, no início do
processo de colonização, os Tupinambá
ainda não possuem nenhum território
demarcado no Brasil. Com base na
Declaração das Nações Unidas sobre os
Direitos dos Povos Indígenas, na Convenção 169 da Organização Internacio-
nal do Trabalho (OIT), na Constituição
Brasileira, dentre outras legislações, em
documentos da sociedade civil e considerando o histórico da situação dos índios no Brasil, as organizações demandam “urgente atenção e intervenção no
sentido de instar o governo brasileiro
a cumprir as obrigações internacionais
e constitucionais existentes, vis-à-vis à
demarcação e ao registro do território
indígena Tupinambá de Olivença”.
Registrando um longo histórico de
violações, o povo Tupinambá de Olivença foi recentemente surpreendido com
a militarização do território tradicional
que ocupa e que é reconhecido pela
Fundação Nacional do Índio (Funai)
desde 2009. Há aproximadamente dois
anos o processo de demarcação está
parado em alguma gaveta do ministro
da Justiça, José Eduardo Cardozo.
Ao invés de finalizar a demarcação, o governo federal, no dia 28 de
janeiro deste ano, enviou para a Serra
do Padeiro, próxima ao município de
Sean Hawley/Arquivo Cimi
ção era um dos pequenos agricultores
(...) arregimentados pelo cacique Babau
para ‘virar índio’ (...)”. Este pequeno
agricultor chama-se Cleildo, também com
mandado de prisão decretado.
Conforme relata o juiz em sua decisão,
Cleildo é “cria” do cacique Babau e teria
sido arregimentado pela liderança em
2005. Outro cacique, Pascoal, compunha o
trio que ameaçava, conforme o inquérito
policial, Juracy, de forma insistente, inclusive cortando “uma das patas do cachorro de
Juracy”. De acordo com os “fatos expressados pelos próprios depoimentos”, outra
pessoa, conhecido por Negão da Touca,
“fora executada nesse ano com mesmo
modo de atuação”.
“O depoente (...) tomou conhecimento
que após morto Juracy teria tido a orelha
cortada (...) sendo que a dita orelha era
para ser entregue ao cacique Babau, pois,
é uma das exigências que o mesmo faz,
de que receba uma das orelhas de todas
as suas vítimas, fato já comprovado em
crimes na região”, diz trecho da decisão
do juiz Barra.
Com a determinação do juiz, além de
outros três mandados de prisão arquivados
em 2010 e exumados pela PF, a liderança
indígena não conseguiu viajar para o Vaticano no dia 23 de abrill.
A mesma celeridade dos advogados
da União (AGU) em defender grandes
empreendimentos e leilões de petróleo
não se viu no caso de Babau Tupinambá.
Tais advogados não moveram uma palha
contra o mandado de prisão do indígena,
expedida por um juiz substituto de 1ª
Instância. Ao contrário do que ocorre quando, por exemplo, as obras da UHE Belo
Monte são paralisadas judicialmente, em
instâncias superiores, e em poucas horas
são retomadas.
Testemunhas no inquérito
Documentação levada ao conhecimento da Funai, nos últimos anos, conforme
relata o cacique Babau Tupinambá, revela
que testemunhas ouvidas pelo inquérito
policial cometeram crimes para a obtenção de benefícios do órgão indigenista.
A Funai abriu um procedimento interno e
suspendeu os benefícios destes indivíduos.
No inquérito, a delegada inverte os
papéis e envolve o cacique Babau neste
crime que ele mesmo vem denunciando
há tempos. A delegada, então, tomou por
base testemunhos de pessoas que tiveram
o esquema desmantelado pelo próprio
cacique. O juiz substituto, por sua vez, é induzido ao erro sem ter em mãos nada que
prove as graves acusações feitas a Babau.
No depoimento, as testemunhas ouvidas pela delegada mostram total desconhecimento da organização social Tupinambá
apontando Babau como cacique-geral do
povo, quando cada aldeia possui um cacique. São quase trinta aldeias e mais de 20
caciques na Terra Indígena Tupinambá de
Olivença, identificada entre 2009 e 2011 e
que desde então aguarda a assinatura, por
parte do ministro da Justiça, José Eduardo
Cardozo, da portaria declaratória. n
Buerarema, a Polícia Federal e a Força
Nacional de Segurança que, com o apoio
da Polícia Militar da Bahia e o pretexto
de realizar uma reintegração de posse,
montaram uma base de operações na
área. Alem das pressões dos fazendeiros
e dos pistoleiros para que abandonem
sua terra, os Tupinambá tiveram que
enfrentar, de modo mais cotidiano, a
força policial também.
O clima de tensão se agravou na
região depois da militarização do território. Os policiais promoveram ações de
agressão, constrangimento e ameaças
constantes a agricultores e indígenas.
“Eles estão sempre forjando situações
para nos incriminar, dando tiros de
armas pesadas todas as noites. O Exército Brasileiro tem feito isso desde que
entrou em nossa aldeia. Destruiu vários
pertences de várias famílias indígenas”,
relata um documento denúncia escrito
pelo cacique Babau, no dia 24 de março.
Na carta, ele descreve um episódio
em que policiais chegaram a molestar
uma jovem de 14 anos com o pretexto
de revistá-la. A denúncia também inclui a
pressão sofrida por Babau, perseguido e
ameaçado de morte pelos policiais. “Os
policiais fizeram muitas perguntas [aos
moradores da aldeia e pequenos agricultores
da região] e com as mesmas ameaças,
expressando e afirmando que quer fuzilar o cacique e os seus irmãos”.
Na denúncia encaminhada à ONU, as
entidades chamam atenção da organização para a “inversão de prioridade do
governo”, que desrespeita a legislação
interna e internacional ao não garantir
o uso social da terra e o direito dos
indígenas, e pede auxílio na apuração
dos crimes cometidos contra as comunidades. n
O povo
Tupinambá
não tem
território
demarcado
até hoje e
enfrenta a
omissão e
militarização
do Estado e o
preconceito
do Grupo
Bandeirantes
Grupo Bandeirantes é processado por
incitar ódio contra povo Tupinambá
O
Grupo Bandeirantes de Comunicação vai responder a uma
ação judicial por ter veiculado,
em rede nacional, duas reportagens com conteúdo discriminatório
e informações distorcidas sobre os
conflitos fundiários no sul da Bahia,
responsabilizando caciques do povo
Tupinambá de Olivença por toda a sorte de crimes, inclusive a morte de um
agricultor, e acusando os indígenas de
invadir fazendas, ameaçar e expulsar
moradores.
O processo, de autoria da comunidade indígena Serra do Padeiro e do
cacique Rosivaldo Ferreira da Silva, foi
protocolado no dia 4 de abril na Justiça
Federal em São Paulo. Nele, pede-se
liminarmente o direito de resposta da
comunidade Tupinambá às reportagens
caluniosas, transmitidas pelo Jornal da
Band e pelo sistema de radiodifusão do
Grupo Bandeirantes, com o intuito de
incitar o ódio e a violência da sociedade
contra o povo Tupinambá de Olivença
e deslegitimar a luta dos indígenas
pela demarcação de seu território, já
reconhecido pela Fundação Nacional
do Índio (Funai) como de ocupação
tradicional.
As reportagens difamatórias foram
ao ar nos dias 25 e 26 de fevereiro, logo
após a decisão do ministro do Supremo
Tribunal Federal (STF), Joaquim Barbosa,
de suspender as reintegrações de posse em sete áreas localizadas na terra
Tupinambá. Sem tratar do contexto da
demarcação da terra, o repórter Valteno
de Oliveira declara: “Desde que a Funai
resolveu criar a área para os índios a
violência impera aqui na região. Um
bando de caciques armados, liderados
por Babau, o mais temido deles, faz o
diabo”.
“O Grupo Bandeirantes parece desconhecer ou evitar conhecer o massacre
dos Tupinambá ao longo da história,
para difundir histórias inventadas:
escondendo o verdadeiro conflito e
massacre na região, inclusive os mais
recentes. Ademais, sem nenhuma prova
associa indígenas e, em especial, os
caciques, aos crimes mais esdrúxulos,
e até mesmo ao crime de estupro, com
vistas a incentivar o ódio social por
este povo”, consta na ação contra a
emissora. (C.F.) n
13 Abril – 2014
Grupo de Resistência Guarani SP
N
o dia 16 de abril, cerca de 50
indígenas do povo Guarani das
aldeias localizadas na Grande
São Paulo entraram no espaço
interno do Museu Anchieta, localizado
no Pateo do Collegio. Depois de surpreenderem os presentes dançando na
área interna do Pateo, afirmaram que a
intervenção fazia parte do lançamento
da campanha pela demarcação das
suas terras, denominada Resistência
Guarani SP.
Interromper temporariamente as
atividades do Museu, que celebra o local
de fundação da cidade e início da colonização, foi a forma encontrada pelos
habitantes originários de São Paulo para
cobrar do Ministério da Justiça a emissão
das Portarias Declaratórias que garantem
a demarcação das Terras Indígenas Tenondé Porã e Jaraguá, já reconhecidas pela
Funai. Os indígenas também protestaram
contra a decisão judicial que determina o
despejo de cerca de 700 Guarani da aldeia
Tekoa Pyau, localizada no Pico do Jaraguá,
e que faz parte da área reivindicada como
de sua posse tradicional.
A alta
densidade
populacional
e o espaço
restrito
impedem a
população
Guarani que
reside na
grande São
Paulo de
exercer o seu
modo de vida
tradicional
TI Jaraguá e
TI Tenondé Porã
A população Guarani que reside na
Grande São Paulo distribui-se hoje em seis
aldeias, que fazem parte de duas Terras
Indígenas (TI), atualmente em processo
de regularização fundiária. Duas delas,
denominadas Aldeia Ytu e Aldeia Pyau, localizam-se no Pico do Jaraguá e compõem
A
Abril – 2014
14
Comissão Guarani Yvyrupa
Em SP, Guarani exigem demarcação de suas terras
País
Afora
a Terra Indígena Jaraguá. Nelas residem
cerca de 700 Guarani. A TI Jaraguá foi
reconhecida inicialmente na década de
1980, mas foi então regularizada com
apenas 1,7 hectare, configurando-se
como a menor terra indígena do país. A
aldeia Pyau fica fora dessa área e, atualmente, há uma decisão judicial vigente,
que determina o despejo dos Guarani que
ali habitam.
A falta absoluta de espaço é o detonante de inúmeros problemas sociais
e culturais. A situação dos Guarani do
Jaraguá foi extremamente agravada pela
construção da Rodovia dos Bandeirantes,
inaugurada em 1978 sem qualquer consideração à presença indígena. A estrada
suprimiu parte de suas áreas de ocupação
tradicional.
Em 2002, por fruto da luta das lideranças indígenas, iniciou-se um processo
para correção dos limites do território,
para adequá-la aos padrões da Constituição de 1988. Finalmente, no dia 30
de abril de 2013, a Fundação Nacional
do Índio (Funai) aprovou e publicou no
Diário Oficial da União (Portaria FUNAI/
PRES No 544) os resultados dos estudos
técnicos que reconhecem cerca de 532
hectares como limites constitucionais da
Terra Indígena Jaraguá, incluindo as duas
aldeias atualmente ocupadas, e as áreas
necessárias para a reprodução física e
cultural do grupo.
De acordo com o Decreto Presidencial
nº 1775, que regulamenta o processo de
demarcação de Terras Indígenas no país,
abre-se, a partir da publicação desses
estudos, período de 90 dias para que os
interessados apresentem contestações
administrativas. Após esse período, cabe
ao ministro da Justiça publicar uma portaria declaratória que permite iniciar o
processo de indenização dos ocupantes
STJ reconhece legitimidade
do povo Waimiri-Atroari sobre
terras no Amazonas
Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) confirmou
no início de abril, em julgamento
unânime, a sentença que reconheceu a
titularidade da comunidade indígena
Waimiri-Atroari sobre a posse de determinada porção de terra que havia sido
doada pelo estado do Amazonas a uma
empresa privada.
O caso refere-se à desapropriação
realizada em 1986 pela estatal Centrais
Elétricas do Norte do Brasil S/A (Eletronorte), com o objetivo de construir a
Usina Hidrelétrica de Balbina, no leito do
Rio Uatumã, no Amazonas. Na ocasião,
a ação de desapropriação foi proposta
sem ter definido um sujeito passivo
específico, por não se ter conhecimento sobre quem eram os donos daquela
porção de terra.
A empresa Serragro S/A Indústria,
Comércio e Reflorestamento apresentou-se como legítima proprietária,
justificando o seu título por força de
uma doação efetuada pelo estado do
Amazonas e pediu a execução da sen-
tença para o pagamento da indenização,
mas o juízo da 1ª Vara da Seção Judiciária
do Amazonas reconheceu que as terras
eram ocupadas desde tempos imemoriais pela etnia indígena Waimiri-Atroari
– que, desse modo, deveria ser a única
beneficiada pelo eventual pagamento de
compensação financeira –, além de declarar que o bem é da União, nos termos
do artigo 20, inciso XI, da Constituição.
Após uma reviravolta no Tribunal
Regional Federal da 1ª Região (TRF1),
que reformou a sentença e mandou
prosseguir a execução, por entender que
a coisa julgada desse caso concreto não
podia ser relativizada, a questão chegou
ao STJ em quatro recursos especiais
interpostos pelo Ministério Público Federal, pela Fundação Nacional do Índio
(Funai), pela União e pela Eletronorte.
Por fim, a Segunda Turma reconheceu
que o TRF1 não poderia ter desconsiderado uma questão processual crucial
para a causa: a execução havia sido
extinta por sentença. (Com informações
do Superior Tribunal de Justiça.) n
não indígenas para devolver as áreas ao
usufruto exclusivo das comunidades indígenas. A assinatura dessa portaria é uma
das reivindicações dos Guarani.
As outras quatro aldeias localizamse no extremo sul da metrópole, na
beira da represa Billings, duas delas em
Parelheiros (Aldeia Barragem e Aldeia
Krukutu), uma próxima ao distrito de
Marsilac (Tekoa Kalipety) e a última em
São Bernardo do Campo (Aldeia Guyrapaju). As duas primeiras haviam sido
reconhecidas também na década de
1980, com uma superfície de cerca de
26 hectares cada. Atualmente ,com uma
população de cerca de 1.400 pessoas
distribuídas entre as quatro aldeias, as
áreas reconhecidas na década de 1980
tem uma densidade populacional crítica
de 26 pessoas por hectare, o que também é causa da maioria dos problemas
que os Guarani enfrentam.
Por isso, também após a reivindicação
das lideranças, iniciou-se em 2002, um
estudo para a correção desses limites, de
acordo com os parâmetros constitucionais. Dez anos depois, em 19 de abril de
2012, a Funai também aprovou e publicou
no Diário Oficial da União (Portaria FUNAI/
PRES Nº 123) os resultados dos estudos
técnicos que reconhecem cerca de 15.969
hectares como compondo os limites constitucionais da Terra Indígena Tenondé
Porã, que abrange essas três aldeias da
região sul. O processo agora também
está nas mãos do Ministro da Justiça, de
quem os Guarani reivindicam a publicação
imediata da Portaria Declaratória da TI
Tenondé Porã. n
Justiça condena Dnit e Fatma
a indenizar povo Guarani
da TI Morro dos Cavalos
Assessoria de Comunicação-Cimi
A
partir de uma ação promovida
pela Procuradoria da República
em Santa Catarina (MPF/SC), a
Justiça Federal condenou o Departamento Nacional de Infraestrutura de
Transportes (Dnit) e a Fundação do
Meio Ambiente de Santa Catarina
(Fatma) ao pagamento de R$ 100 mil
por danos morais à comunidade da
Terra Indígena Morro dos Cavalos,
localizada no município de Palhoça.
“É uma importante vitória do
ponto de vista judicial, muito expressiva. Não pelo valor da multa,
mas pelo fato da condenação ter
sido aplicada, aspecto fundamental
neste momento que a Terra Indígena Morro dos Cavalos está sendo
questionada. A ação representa a
garantia de que esse território é de
uso exclusivo da comunidade e importante para a própria preservação
do meio ambiente”, garante Clovis
Antonio Brighenti, membro do Cimi
Regional Sul.
A Fatma foi responsabilizada
por ter expedido a licença, assim
permitindo a intervenção ilegal. Já o
Dnit foi condenado por permitir que
a empresa retirasse minério da área
sabidamente de usufruto exclusivo
dos Indígenas.
A Terra Indígena Morro dos Cavalos é reconhecida legalmente como
bem da União de posse e usufruto
exclusivos e permanentes da comunidade Indígena Guarani. Em 2002,
foi assinado um convênio entre a
Funai e o Dnit para implementar o
programa de apoio às comunidades
Indígenas Guarani residentes na área
de influência da BR-101. O acordo foi
uma forma de mitigação e compensação pelos impactos socioambientais
decorrentes das obras de duplicação
da rodovia. n
Benedito Prezia
N
Historiador
Arquivo Cimi
o último dia 24 de abril faleceu
Aryon Dall’Igna Rodrigues, professor emérito da Universidade de
Brasília (UnB), cuja vida foi marcada por uma longa trajetória de pesquisa linguística. Considerado “a maior autoridade
viva sobre línguas indígenas brasileiras”,
ele foi um dos poucos linguistas brasileiros
a ser mundialmente conhecido.
Além de seus estudos linguísticos, contribuiu também para o desenvolvimento da
pós-graduação em diversas áreas correlatas
em Ciências Humanas e Linguagem. Foi
coordenador do primeiro programa de
pós-graduação da UnB, a convite de Darcy
Ribeiro, e um dos iniciadores do Programa
de Pós-Graduação do Museu Nacional e do
Programa de Pós-Graduação em Linguística
da Universidade de Campinas (Unicamp).
Embora extremamente capacitado,
Aryon escreveu pouco e muitos de seus
trabalhos foram publicados graças à pressão de colegas para que o fizessem.
Convém destacar que sua obra mais
conhecida, Línguas brasileiras: para o conhecimento das línguas indígenas (Loyola,
4ª. ed. 2002), foi elaborada a partir de
artigos publicados no Porantim ao longo
de quatro anos, por sugestão de Railda
Herrero, editora-chefe deste periódico
naquela época. Isso foi no ano de 1985.
O livro já teve quatro edições e, em 2000,
integrou a lista das 20 obras literárias mais
importantes do século XX, elaborada pela
Câmara Brasileira do Livro.
Apesar de todo seu conhecimento
acadêmico, Aryon era uma pessoa bastante
simples e acessível. Pessoalmente, sou muito grato a ele pela leitura atenta que fez do
meu trabalho de dissertação, defendido no
curso de Linguística Geral da Universidade
de São Paulo (USP).
Que sua trajetória de vida estimule
outros pesquisadores a salvar nosso patrimônio linguístico, tão pouco conhecido e
valorizado. n
Homenagem
Morre Hõpryre Ronore
Jopikti Payaré, o grande
chefe do povo Akrãtikatêjê
Conselho Indigenista Missionário (Cimi)
e diversas outras organizações*
C
omo definir Hõpryre Ronore
Jopikti Payaré, ou Edvaldo Valdenilson, através de palavras,
além de dizer que este nobre
filho da Mãe Terra foi um grande homem, um grande pai, um grande filho,
um grande sábio, um grande guerreiro,
um grande defensor dos direitos humanos e ambientais, um grande líder
político e espiritual que sempre lutou
pela vida e pelos direitos do seu povo,
os Akrãtikatêjê da Montanha, e dos
demais povos indígenas da Amazônia
e do Brasil?
Como nos reportar a este valoroso
homem que, desde cedo, aprendeu o
significado do que é resistir, lutar e enfrentar poderosas ameaças e desafios,
a não ser lembrando que o Seu Payaré,
como era conhecido por muitos aqui
nessa região, foi um sobrevivente de
um grande povo na Amazônia, praticamente dizimado pelo Estado brasileiro
em um dos momentos mais perversos
e genocidas da história desse país para
com os povos indígenas do Brasil,
a década de 1970, e a famigerada e
assassina política de integração e desenvolvimento econômica do governo
militar?
De fato não conseguimos encontrar palavras para tentar descrever a
tão importante personalidade política,
pois tememos que nossas palavras não
deem conta de traduzir a grandeza
moral, ética e espiritual de alguém tão
importante e grandioso para nós. É
muito doloroso tentarmos escrever um
texto sobre a vida do Seu Payaré, pois
isso implica descrevermos uma perversa cadeia de acontecimentos violentos
históricos que nunca foram reparados
ou justiçados, assim como não foram
assegurados os direitos para este líder
e todo o seu povo. Contudo, a forma
como esse homem lutou a vida toda,
consolidou-o como uma verdadeira
expressão viva de força, resistência e
teimosia, nas últimas décadas, frente
às investidas de morte do capitalismo
na Amazônia.
Do contato à resistência
e ao etnocídio
O grupo Akrãtikatêjê da Montanha
foi contatado e instalado no Posto de
Atração da Fundação Nacional do Índio
(Funai) em 1960, com uma população
de aproximadamente 75 indivíduos.
Marcos Reis/Cimi
Brasil perde Aryon
Dall’Igna Rodrigues,
seu maior linguista
Com a desastrosa política de contato
do Estado e a localização do aldeamento próximo à cidade de Tucuruí, o
grupo sofreu um terrível processo de
depopulação. De 75 indígenas apenas
10 sobreviveram, tornando-se esses,
testemunhos vivos da violenta política
de expansão econômica na época. Com
o avanço das obras de construção da
Usina Hidrelétrica Tucuruí, a Funai “removeu” os 10 membros sobreviventes
do grupo para a Terra Indígena Mãe
Maria, de domínio dos Parkatêjê.
No entanto uma família, chefiada
pelo líder Payaré, inconformada com
a notícia de que o antigo e tradicional território iria ser completamente
inundado pelo lago do reservatório
da UHE Tucuruí, se recusou a acompanhar o restante do grupo. Permaneceram na área indígena até o final de
1983, quando, após muitas ameaças
e violências sofridas, um escuso e
desrespeitoso acordo financeiro com
a Eletronorte obrigou forçadamente
o último Akrãtikatêjê a abandonar
definitivamente o seu antigo território
e a se incorporar aos outros grupos
Gavião, na Terra Indígena Mãe Maria,
mesmo sabendo que, em um passado
não muito distante, o grupo ao qual ele
pertencia e o grupo Parkatêjê haviam
travado algumas guerras. É nesta TI
que, mesmo com todas as divergências
e dificuldades, iniciam uma nova luta
política e jurídica que perdura até hoje:
a revisão do direito de um território
para o seu grupo. Embora a justiça
já tenha determinado a devolução
de uma área similar àquela que foi
destruída pelo Estado, na ocasião da
construção da UHE Tucuruí, essa ação
não foi efetivada até hoje pela empresa
Eletronorte.
De lá pra cá, foram mais de três
décadas de luta, resistência e enfrentamento de um homem só, com sua
mãe, contra todo um sistema opressor para ter o direito de ser ouvido e
de denunciar o que todo o seu povo
sofreu e perdeu com as políticas
governamentais do Estado brasileiro
de um tempo escuro, sombrio e sem
perspectiva de futuro para os povos
indígenas do Brasil. Através de articulações com organizações indigenistas
brasileiras e instituições internacionais, como a Organização dos Estados
Americanos (OEA), denunciou diversas
vezes projetos de mega corporações
do porte da Vale, como o Programa
Grande Carajás, a duplicação da Ferrovia Carajás e a construção de outra
hidrelétrica que atingiria novamente
o seu povo, a UHE Marabá. Ele exigia
que cada grupo Gavião pudesse ter
o direito de ser consultado de forma
livre, prévia e informada, conforme
a Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), a Declaração Mundial dos Povos Indígenas
da Organização das Nações Unidas
(ONU) e a própria Constituição Federal
do Brasil, que aprendeu desde cedo a
estudar, observar e a defender como
instrumentos políticos de garantia de
direitos humanos e transformação de
estruturas injustas de poder. Sempre
manifestou, também, solidariedade e
apoio incondicional à luta de outros
povos indígenas pela conquista e respeito aos seus direitos na Amazônia
e no Brasil.
Seu Payaré, indiscutivelmente foi
um facilitador do Reino de Deus, do
Bem Viver, da Terra Sem Males e de
um outro mundo, melhor e possível
para seu povo e para todos aqueles que
conheceram a incomensurável nobreza
de um espírito tão nobre e guerreiro.
Por isso, a perda de uma personalidade
tão importante, que nunca chegou a
vivenciar e sentir a alegria de ver o
sonho se realizar, que era de usufruir
o outro território que seu povo sempre
teve direito e que até hoje é negado, é
algo que incomoda, que revolta e que
nos enche de indignação. n
* Para ler o artigo na íntegra, acesse: http://
www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&
action=read&id=7433
15 Abril – 2014
LEVANTA O POVO CHARRUA
Benedito Prezia
F
Pesquisador da história indígena
oi muito importante o resgate histórico
sobre os Charrua feito pela jornalista Elaine
Tavares, publicado na edição de agosto do
Porantim, com o título “Levanta o povo Charrua”. Todavia tenho duas observações a fazer
sobre afirmações que considero polêmicas.
A primeira ocorre quando coloca-se na boca dos
missionários uma frase pouco verossímil. Referindose aos Charrua, o texto afirma: “Ainda assim, apesar
das lutas esporádicas, os originários eram ignorados.
‘Sem alma’, diziam os padres” (1º par., 3a coluna).
Imagino que esses padres seriam os jesuítas, que
conviviam com eles embora não tivessem sido aldeados. Ao longo de muitos anos de pesquisa documental
nunca encontrei um texto de jesuíta ou de missionário
que afirmasse que os povos da América não tivessem
alma. O que afirmavam era: “não têm fé”, “não têm
religião”, “não têm governo”... Seria longo enumerar
passagens escritas tanto por jesuítas portugueses
quanto por espanhóis do Paraguai. Mas a afirmação
de que os indígenas “não tinham alma” é muito recorrente, e se escuta até mesmo de antropólogos, como
constatei recentemente. Os papas que promulgaram
“bulas de conquista”, com linguagem mais dura, são
muito enfáticos ao falar da obrigação da catequese
e do batismo desses povos, como fez Alexandre VI,
em 1493: (...) “entre as outras obras bem aceitas à
divina Majestade, e pelo nosso coração desejadas,
existe sobretudo essa: (...) que se dilate a fé católica
e a religião cristã, [e] se cuide da salvação das almas
[dos nativos]” (Inter caetera, in SUESS, P. A conquista
espiritual da América, 1992, p. 248).
O segundo ponto é a afirmação, que me parece
pouco verdadeira, de um suposto extermínio de prisioneiros Charrua feito pelos Guarani das missões.
Isso teria ocorrido depois da batalha de Yi, em 1702,
sob ordens do governo de Buenos Aires: “Quando
os espanhóis decidiram encerrar a aliança que
mantinham com os Charrua e Minuano, resolveram matar todo mundo. Para isso, de
forma perversa, contaram com a ajuda
APOIADORES
Abril – 2014
16
dos Guarani, os quais já [se] mantinham aldeados
há anos. E o resultado foi que mais de 200 Charrua
pereceram sob o exército de dois mil Guarani. Outros quinhentos, levados como prisioneiros para as
missões, foram assassinados pelos [Guarani] Tapes,
também orientados pelos jesuítas e chefes espanhóis.
Era o que os espanhóis chamavam de “limpeza dos
campos” (Parte II, 2º par., 1a coluna, setembro, p. 14).
Por achar forte essa afirmação, fui buscar a obra
de Ítala Becker, El índio y la colonización (São Leopoldo, Inst. Anchietano de Pesquisa, 1982), em que a
autora estuda, de forma bem documentada, a vida
dos povos Charrua e Minuano. Por ser um trabalho
de interesse dos uruguaios e argentinos foi publicado
em espanhol.
Sobre essa batalha assim escreve, citando Acosta
y Lara, um importante pesquisador uruguaio: “En un
documento relativo a batalla de Yi, se habla de um
total superior a las 500 almas entre hombres, mujeres
y niños, presos después de cinco días de lucha. Eran
Charrúas aliados a otros grupos, problablemente Minuanes (La guerra de los Charrúas en la Banda Oriental.
Período Hispánico, 1961, v. 2, doc. C, p. 38-40, apud
BECKER, 1982, p. 200). Não cita nenhum massacre
de prisioneiros.
Entretanto, ao referir-se a uma guerra mais sistemática que, a partir de 1749, Dom Francisco Bruno de
Zavala, governador da Província, dirigiu contra esse
povo, relata vários combates. Um deles ocorreu em 12
de maio de 1749, perto de Queguay. Na ocasião foram
presos cerca de 30 Charrua e mais de 200 animais.
Meses depois, em janeiro de 1750, foram igualmente
presos três caciques e 81 famílias, num total de 380
pessoas de ambos os sexos, além de 2 mil cavalos
(Id., v. 5, p. 78, nota de rodapé. Apud BECKER, id., p.
201). Não se fala de massacre de prisioneiros. Como
a orientação era a eliminação desse povo, se houve
massacre foi por parte das autoridades espanholas.
A prática de extermínio dos vencidos fica patente
por ocasião da guerra guaranítica, comandada pelo
comandante basco Don José Andonaegui. A partir de
1753 dirigiu o exército espanhol que, juntamente com
o exército português, atacou os Sete Povos. Apoiada
em Acosta y Lara, Becker escreveu: “De cuantos gobiernos presidieron los destinos españoles en el Rio
de La Plata, posiblemente ninguno tuvo tanto que
lidiar [lutar] contra los índios [Charrua] que el de
José Andonaegui”. E reproduz a ordem que este deu
nessa ocasião em relação aos Charrua: “Conserve os
que são de paz e degolem todos que resistirem!”. E
citando o pesquisador uruguaio, concluiu: “Traçou
Andonaegui um vasto plano de redução e extermínio a
ser executado na Mesopotâmia Argentina e na Banda
Oriental” (Id., v. 4, p. 61-62, apud BECKER, id., p. 202).
Os Charrua, pelo fato de viverem do tráfico de
animais, tinham uma relação conflituosa com os Guarani, que vigiavam as fazendas jesuíticas nas pradarias
gaúchas. Por isso a relação com os espanhóis era bem
melhor do que a mantida com os Guarani. Isso foi observado pelo cronista da época, Bentura Carballo: “Na
região da dita cidade de Santa Fé, eles [os Charrua]
não atacaram os espanhóis (...), mas o que se nota é
que somente contra os índios das reduções, que estão
a cargo dos padres da Companhia de Jesus,
é que têm guerra declarada e quando
podem, os pressionam, matando-os e
roubando-os” (1714, Índios Charruas,
Archivo General de La Nación, v.
II, F. 2, apud BECKER, id., p. 203).
Assim o que se lê no trabalho
de Becker é o confronto guerreiro
dos Charrua que viviam entre as missões jesuíticas,
que as pressionavam para o aldeamento, e o governo
espanhol. Enquanto esse acreditou que os Charrua
poderiam ser aliados nas guerras, contra as
reduções Guarani, eles foram tolerados.
No momento em que se mostraram
pouco confiáveis, passaram a ser perseguidos e exterminados.
Embora não tenha feito uma pesquisa mais exaustiva, não encontrei em
nenhuma documentação os Guarani executando
prisioneiros Charrua.
Desse modo evidencia-se que a História é bem
mais complexa do que ela aparenta ser e a importância de fazer resgates históricos de povos sobre
os quais não há muita informação disponível, como
é o caso dos Charrua. n