A natureza em si
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A natureza em si
ISSN 0102-0625 Em defesa da causa indígena Ano XXXVI • N0 364 Brasília-DF • Abril 2014 – R$ 5,00 A natureza em si É deste modo que os Enawenê-Nawê se definem. Desafios vividos no passado e no presente, devido ao contato com a sociedade branca, são resignificados pelo povo e por sua profunda espiritualidade. Assim, se negam a abandonar a forma como vivem. Foto: Renato Santana Páginas 4 e 5 E agora, ministro Cardozo? PF impede cacique Babau de se encontrar com o Papa Página 11 Páginas 12 e 13 Artigo O presente do Papa está preso Cleber César Buzatto Secretário Executivo do Cimi C olorido. Impossível não fazer referência à bandeira do Brasil. Um belo cocar era o presente que Rosivaldo Ferreira da Silva, o cacique Babau Tupinambá, daria ao Papa Francisco por ocasião do encontro que ocorreria no dia 24 de abril, em Roma, durante celebração relativa à canonização do Padre Anchieta. Em vez de encontrar-se com o Papa, Babau foi preso no Brasil. Não poderia haver cenário mais simbólico e emblemático da história deste povo e das denúncias que seriam feitas pessoalmente por Rosivaldo a Francisco. Desde os primórdios da colonização, os Tupinambá enfrentam as consequências perversas do processo de invasão e exploração de suas terras. A légua de corpos de Tupinambá matados no ataque etnocida comandado por Mem de Sá, em 1559, na praia do Cururupe, extremo norte da terra indígena Tupinambá de Olivença, não foi o único episódio macabro e marcante na história desse povo e do Brasil. A resistência Tupinambá à invasão de suas terras foi “razão” para o Estado brasileiro prender, levar para o Rio de Janeiro, matar e fazer desaparecer para sempre o corpo do líder Marcelino, na década de 1930. A luta contemporânea e cotidiana dos Tupinambá pela reconquista de ao menos parte de seu território tem “motivado” um novo processo de matança e criminalização contra esse povo e seus líderes em especial. Somente nos últimos meses, ao menos oito Tupinambá foram assassinados na região. Babau é um dos símbolos da resistência Tupinambá contemporânea. Memória viva de um povo legítimo sujeito de terras ancestrais na região sul da Bahia. Esse fato é a “razão” do Estado brasileiro ter prendido Babau neste dia 24 de abril de 2014, nos 514 anos e dois dias da fatídica invasão. Uma prisão totalmente descabida e injusta. Símbolo da ação do Estado hegemônico contra os Tupinambá e contra os povos originários nesses cinco séculos. O risco de Babau ser morto, como muitos de seus antepassados, é real. A prisão pelo Estado brasileiro pode ser apenas um meio para tanto. Babau tem plena consciência disso. Mesmo assim, decidiu apresentar-se voluntariamente ao Estado brasileiro. Seu argumento é simples: Tupinambá não foge da luta. Mesmo que para tanto seja necessário enfrentar até a própria injustiça. Por evidente que é, Babau tem plena e legítima razão. Não há outra maneira de se construir a Justiça a não ser enfrentando e vencendo a injustiça. Babau está preso e preso com Babau está o presente do Papa. MARIOSAN Porantinadas Massacre da motoserra Nos últimos 31 anos, o Brasil perdeu 5,2 milhões de hectares de Unidades de Conservação, uma área maior do que o estado do Rio de Janeiro, devido a 93 alterações feitas em áreas de conservação em 16 estados. Segundo um estudo de cientistas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPe) e da Ong Imazon, a criação de infrastrutura de geração e transmissão de energia está entre as principais causas desta perda. Somente para viabilizar a construção das seis usinas hidrelétricas no Rio Tapajós, o governo federal excluiu, em janeiro de 2012, através de Medida Provisória, 91.308 hectares de sete Unidades de Conservação. É a este tipo de destruição que se chama “progresso”? Assim, é fácil O Conselho de Defesa Nacional, órgão consultivo em assuntos relacionados à soberania nacional, publicou no Diário Oficial da União, no último dia 24 de fevereiro, uma autorização prévia para que a empresa Boa Vista Mineração Ltda pesquise ouro e basalto em 14 diferentes áreas do estado, totalizando 110.540 hectares. O detalhe é que esta empresa pertence à Maria de Holanda Menezes Jucá Marques, que é filha do senador Romero Jucá (PMDB-RR). Romero é o autor do Projeto de Lei 1610/1996 que prevê a regulamentação da mineração em terras indígenas, em análise no Congresso Nacional. Precisa dizer algo mais? Campos de concentração ISSN 0102-0625 Os 50 anos do golpe militar tem ajudado a evidenciar a situação de barbárie a que os indígenas foram submetidos. Um dos casos mais explícitos é o de dois centros para a detenção de indígenas que a Fundação Nacional do Índio (Funai) manteve silenciosamente em Minas Gerais, de 1969 até meados da década de 1970. No Reformatório Krenak, em Resplendor, e na Fazenda Guarani, em Carmésia, para onde foram levados mais de cem indígenas de dezenas de etnias, de ao menos 11 estados, aconteceram torturas, trabalho escravo, desaparecimentos e intensa repressão cultural. Além da falta de informação, nenhum indígena ou comunidade foi indenizado pelos crimes de direitos humanos, e o Estado nunca se manifestou formalmente, reconhecendo a existência destes crimes. Na língua da nação indígena Sateré-Mawé, PORANTIM significa remo, arma, memória. Publicação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), organismo vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). APOIADORES Dom Erwin Kräutler Presidente do Cimi Emília Altini Vice-Presidente do Cimi Cleber César Buzatto Secretário Executivo do Cimi Abril – 2014 2 EDIÇÃO Patrícia Bonilha – RP: 28339/SP CONSELHO DE REDAÇÃO Antônio C. Queiroz, Benedito Prezia, Egon D. Heck, Nello Ruffaldi, Paulo Guimarães, Paulo Suess, Marcy Picanço, Saulo Feitosa, Roberto Liebgot, Elizabeth Amarante Rondon e Lúcia Helena Rangel REPORTAGEM: Carolina Fasolo, Renato Santana, Luana Luizy (Estagiária) ADMINISTRAÇÃO: Marline Dassoler Buzatto SELEÇÃO DE FOTOS: Aida Cruz Fotos: Arquivo Cimi EDITORAÇÃO ELETRÔNICA: Licurgo S. Botelho (61) 3034-6279 IMPRESSÃO: Mais Soluções Gráficas (61) 3435-8900 REDAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO: Faça sua assinatura pela internet: SDS - Ed. Venâncio III, sala 310 CEP 70.393-902 - Brasília-DF [email protected] Tel: (61) 2106-1650 Fax: (61) 2106-1651 [email protected] www.cimi.org.br Registro nº 4, Port. 48.920, Cartório do 2º Ofício de Registro Civil - Brasília PREÇOS: Ass. anual: R$ 60,00 Ass. de apoio: R$ 80,00 Ass. dois anos: R$ 100,00 América latina: US$50,00 Outros Países: US$70,00 Permitimos a reprodução de nossas matérias e artigos, desde que citada a fonte. As matérias assinadas são de responsabilidade de seus autores. Conjuntura Dom Erwin denuncia violações dos direitos indígenas no Brasil ao Papa O presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e Bispo da Prelazia do Xingu, Dom Erwin Kräutler, foi recebido no dia 4 de abril, às 12 horas, horário de Roma, Itália, pelo Santo Padre Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco. A audiência ocorreu no gabinete papal e tratou das violações aos direitos indígenas no Brasil, promovidas pelo capital privado em aliança com o governo federal. Esteve presente no encontro o assessor teológico do Cimi, Paulo Suess. No dia anterior (3), Kräutler e Suess se reuniram também com o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Gerhard Ludwig Müller. “Grupos políticos e econômicos relacionados com a agroindústria, a mineração e as construtoras, com apoio e participação do governo brasileiro, tratam de revogar os direitos territoriais dos povos indígenas”, diz trecho do documento entregue ao Papa Francisco. Durante a audiência, os representantes do Cimi levaram a Francisco casos de violências a que estão submetidos os povos indígenas e seus aliados. Destacaram a questão Guarani e Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, onde “o confinamento de 45 mil indígenas em área tão pequena traz consigo mortes, suicídios e sofrimento atroz e permanente”. A truculência do governo brasileiro contra os Tupinambá, no sul da Bahia, Entre os povos afetados por tais projetos, estão grupos em situação de isolamento voluntário: “Muitos deles se encontram em grande risco de destruição por causa de projetos hidrelétricos, de mineração e desflorestamento causado pela criação de gado e plantação de soja”. Na Amazônia brasileira vivem cerca de 90 grupos em situação de isolamento, livres, sendo que no mundo esta é a região com a maior quantidade de povos ainda sem contato com a sociedade que os envolve. Arquivo Cimi Da Redação Paralisação das demarcações que hoje têm em suas terras uma base do Exército, o incêndio de casas, como a de um agricultor aliado dos Kaingang, em Santa Catarina, e os ataques do agronegócio contra o Cimi e as demais organizações indigenistas foram outros pontos abordados. Dom Erwin relatou a situação dos povos indígenas do Vale do Javari, que sofrem sem assistência médica aos surtos de hepatite, que já ocorrem há décadas, além da intenção do governo brasileiro de explorar petróleo naquelas terras - o que o governo do Peru já vem fazendo do outro lado da fronteira e impactando de forma contumaz populações indígenas com ou sem contato. Sobre os grandes empreendimentos, o bispo lembrou que 519 empresas hoje, no Brasil, causam impacto em 437 terras pertencentes a 204 povos indígenas, conforme relatório produzido pelo Cimi com base também em outros estudos. Destaque para o mega empreendimento da Usina de Belo Monte, no Pará, cuja construção ocorre desrespeitando leis nacionais e convenções internacionais, caso da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Dom Erwin e Paulo Suess afirmaram ao Papa Francisco que o governo da presidenta Dilma Rousseff, contrariando a Constituição brasileira, paralisou a demarcação das terras indígenas incentivando ainda mais a violência contra os direitos dos povos tradicionais. “A paralisação da demarcação é uma das principais causas de conflito e violência que sofrem os povos indígenas”, diz outro trecho do documento recebido por Francisco. Os representantes do Cimi entregaram ao Papa publicações e estudos aprofundando as denúncias que levaram ao Vaticano. De acordo com Dom Erwin Kräutler, o Papa Francisco demonstrou atenção, preocupação e sensibilidade para com as questões levadas até ele pelo Cimi, organismo vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). n Violência contra os povos, a não efetivação de políticas públicas e a paralização das demarcações foram algumas das denúncias levadas ao Papa Francisco por Dom Erwin Francisco convida Dom Erwin para colaborar na encíclica sobre ecologia Instituto Humanistas Unisinos E rwin Kräutler, bispo de origem austríaca, missionário no Brasil, foi chamado pelo Papa Francisco para ajudá-lo na redação da próxima encíclica sobre os pobres e o cuidado do ambiente. Kräutler, nascido em Koblach, em 1939, primogênito de seis irmãos, pertence à Congregação dos Missionários do Preciosíssimo Sangue. Depois dos estudos de filosofia e teologia em Salzburg, em 1965 partiu como missionário na Amazônia e em 1980 foi nomeado bispo na maior diocese em extensão geográfica do Brasil: a diocese de Altamira-Xingu, tornando-se bispo auxiliar do seu tio Eurico, e, um ano depois, o seu sucessor. De 1983 a 1991, Kräutler foi presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Em 2006, quando D. Gianfranco Masserdotti, presidente em exercício morreu num acidente, Kräutler foi reconduzido à presidência do Cimi. Em 1997 foi um dos quinze delegados eleitos para participar do Sínodo para a América e naquela ocasião foi o porta-voz do povo brasileiro, cujo território estava sendo brutalmente saqueado. Sempre na primeira linha na defesa das populações locais ameaçadas pelo desmatamento ao longo dos rios da Amazônia, recebeu, em 2010, o Prêmio Nobel alternativo “pelo seu compromisso a favor dos direitos humanos das populações indígenas e pela sua luta pela conservação da floresta pluvial na Amazônia”. Muitas vezes ameaçado de morte (em 1987 sobreviveu a um atentado onde foi morto o seu motorista), continuou a se posicionar ao lado das populações na defesa da dignidade humana e do ambiente da Amazônia. A relação pobres-ambiente, muito cara ao Papa Francisco desde o início do seu pontificado, para o bispo Kräutler é algo que está presente na sua ação cotidiana com a mais genuína Teologia da Libertação: a sua luta é contra a pobreza para que seja garantido a cada pessoa um trabalho e um salário justo acompanhados da promoção do reconhecimento dos direitos fundamentais, como a saúde e a defesa do território. Sobre a encíclica, se de um lado a nomeação de Kräutler faz pensar na articulação que o Papa Bergoglio reconhece entre o cuidado da criação e a promoção da justiça (são os pobres que sofrem as mais dramáticas consequências), como o Papa lembrou na recente entrevista aos jovens flamengos, por outro lado, trata-se de um sinal que a redação da encíclica está em curso, ou, pelo menos, em fase de estudos. n 3 Abril – 2014 BANG, BANG, POW, POW Faroeste e futebol em terra Guarani-Kaiowá E ra a tarde do domingo de carnaval e do outro lado da linha estava Lide Solano Lopes, cacique do acampamento Pyelito Kue. No dia 12 de fevereiro, cerca de 250 indígenas Kaiowá e Guarani haviam retomado a Fazenda Cambará, propriedade de Osmar Bonamigo, e levantaram barracos ao redor da casa que servia de sede. Ao fundo da ligação, se escutava o tiroteio. Entre a cerca e a estrada Abril – 2014 4 Para se chegar ao Pyelito Kue vindo do município de Amambai é preciso entrar à esquerda em um acesso de terra na rodovia MS-386, logo antes da cidade de Iguatemi. Vinte quilômetros adiante avista-se um amontoado de barracos de lona e estacas de madeira, espremidos entre uma cerca e uma estrada vicinal. No final de 2012, a Polícia Federal e a Fundação Nacional do Índio (Funai) acompanharam os funcionários da fazenda que assentaram os postes e passaram os arames, cumprindo a ordem judicial que reservava um hectare de terra para a permanência dos indígenas enquanto se concluía o processo de demarcação. Até a retomada da Fazenda Cambará era esta a sina das famílias do Pyelito: sempre entre a cerca e a estrada. No criolo entre português, castelhano e guarani falado na região, Pyelito Kue significa algo como “lugar onde ficava o pequeno povoado” e faz referência a uma área reivindicada como de ocupação tradicional Guarani-Kaiowá às margens do Rio Hovy, no município de Iguatemi (MS), quase fronteira com o Paraguai. Expulsos pelos colonos entre as décadas de 1940 e 1960, os indígenas desse “pequeno povoado” foram levados forçosamente para as reservas indígenas de Sassoró, Limão Verde, Amambai e Taquapiry, criadas pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) para receber os que iam sendo despejados no processo de “liberação de terras” para a ocupação da região. Sem área para plantar, espremidos entre 3 mil pessoas em menos de 2 mil hectares em Sassoró, e compondo as maiores estatísticas de homicídio e suicídio por habitante do país, as famílias do Pyelito decidiram encarar o êxodo em busca da demarcação de suas terras. De 2003 a 2009, as retomadas da área – hoje sobreposta por 46 fazendas, quase todas dedicadas à criação de gado – tiveram um desfecho trágico. Uma e outra vez os Guarani foram expulsos por ataques de pistoleiros, a mando dos fazendeiros da região. Escutar o testemunho desses ataques é um pouco reviver as investidas das tropas brasileiras sobre os povoados paraguaios daquela mesma fronteira, na guerra do século XIX. Homens bêbados invadindo o acampamento de madrugada sob uma saraivada de tiros, derrubando os barracos, violentando as mulheres, sequestrando crianças, incendiando roupas, cobertas, tudo. Sobrevive quem foge para o mato. Só dali uma semana é possível voltar à área e contabilizar os prejuízos – entre mortos e desaparecidos, nunca se tem certeza de quanta gente foi assassinada assim. Associação Cultural dos Realizadores Indígenas (Ascuri) Bruno Morais Assessor Jurídico do Cimi Adelio Rodrigues, um senhor de 48 anos que liderava um grupo de famílias que reivindicam uma área contígua ao Pyelito Kue chamada Mbarakay, foi espancado em um desses ataques em julho de 2011. Naquele tempo, a comunidade havia deixado as fazendas para acampar às margens da rodovia estadual justamente na esperança de que a facilidade de acesso da Funai e da Polícia Federal os poupasse de novos episódios de violência. Após esse atentado é que Adelio Rodrigues e Lide Solano Lopes resolveram reocupar novamente o território do Pyelito Kue e Mbarakay, por uma última e definitiva vez. Logo depois da nova ocupação, Adelio faleceu em decorrência das sequelas do ataque. Eu também sou Guarani-Kaiowá Em 9 de agosto de 2011, os indígenas de Pyelito Kue e Mbarakay levantaram acampamento em uma área de reserva legal entre as Fazendas Cambará e Santa Rita. Mesmo a atenção do Ministério Público Federal (MPF) e Extraída do vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=rb4V3Lrn-D0 Luta pela terra da Funai não poupou três investidas de pistoleiros sobre o acampamento. Os indígenas mudaram de local, a comunidade ficou escondida e isolada no meio do mato. Com o cerco na estrada vicinal, o único acesso ao acampamento era cruzando o rio a nado a partir da Aldeia de Sassoró e, dali, cortar - a pé e no escuro - as fazendas até o local dos barracos. Em novembro, os fazendeiros chegaram a bloquear o acesso de uma comitiva com representantes da Secretaria Geral da Presidência da República e da Secretaria Especial de Direitos Humanos. Sem nenhuma timidez frente aos soldados da Força Nacional, e munidos eles mesmos de câmeras, diziam em alto e bom som: “Vamos queimar esses ônibus com índios! Índios vagabundos! Ficam invadindo fazendas!”. Um dos homens era o presidente do Sindicato Rural de Iguatemi, Marcio Morgatto. A pedido dele, o então prefeito da cidade, José Roberto Arcoverde (PSDB), apareceu no local. Sua família é proprietária da Fazenda Santa Rita. Os desdobramentos jurídicos do episódio? Para além da denúncia feita pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), nada. Nenhuma investigação policial apurou o crime de ameaça. Nenhuma medida foi tomada por parte do governo federal para a segurança dos indígenas na região. Nenhuma medida para garantir a permanência da comunidade no território reivindicado. Dali a um ano, em novembro de 2012, a Justiça Federal de Naviraí expediria liminar ordenando a saída imediata dos indígenas das terras da Fazenda Cambará. A ordem foi respondida com uma carta da comunidade em que se anunciava, em desespero, a decisão de resistir. Pinçando inteligentemente uma frase que captava o drama da situação, a jornalista Eliane Brum publicou na revista Época uma coluna intitulada “’Decretem nossa extinção e nos enterrem aqui”, em que se conjugavam estatísticas de suicídio com a expressão “morte coletiva”. “Morte coletiva” foi repetida cinco vezes no artigo, e infinitamente nas redes sociais. O resultado foi uma certa histeria. Rapidamente “morte coletiva” virou “suicídio coletivo”. Em homenagem aos Guarani-Kaiowá, pessoas trocaram seu sobrenome no facebook e compartilharam fotos de indígenas enforcados – estranha maneira de demonstrar solidariedade. Mais de 50 manifestações foram organizadas em diversas cidades do Brasil e do mundo e surgiram “comitês” e “brigadas” de apoio à resistência indígena. “Eu também sou Guarani-Kaiowá”, dizia a consígnia de inspiração neo-zapatista, que chegou ao gosto de militantes socioambientalistas e de partidos de esquerda das capitais. Em São Paulo, uma marcha na avenida Paulista reuniu cerca de mil pessoas. “Suicídio coletivo? Não!”, Lide Solano Lopes aparece em um vídeo desmentindo os boatos em torno de sua comunidade. “Não nos entregaremos assim tão fácil!”. Os Guarani e Kaiowá de Pyelito vieram a público explicar o mal entendido em cima das suas declarações, mas a esse ponto a própria ministra Maria do Rosário já havia se manifestado pela necessidade de intervenção na reintegração do Pyelito Kue. A reintegração foi suspensa pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que autorizou aos indígenas a permanência em um hectare da Fazenda Cambará até a conclusão dos processos Associação Cultural dos Realizadores Indígenas (Ascuri) MPF-MS O cacique Lide Solano Lopes é uma das lideranças ameaçadas do povo Guarani-Kaiowá que mora em Pyelito Kue e seu questionamento reflete a difícil situação dos indígenas: “como o Pyelito reagiu até hoje, sem arma?” demarcatórios. O “devir Guarani-Kaiowá” parece ter tido um efeito positivo: parafraseando o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, éramos todos índios, exceto quem não era. Mas em um país onde todo mundo é índio de direito, ninguém pode ser índio de fato. Um hectare para o Pyelito Lide me mostrou o estado dos barracos, as lonas estavam furadas e rasgadas. Janeiro é período de chuva no Mato Grosso do Sul, e eu só pude imaginar como seria dormir debaixo daquele teto em uma noite de tempestade de verão. Quase um ano e meio depois da histeria em torno da carta da comunidade, a vida não havia mudado muito para as 20 famílias indígenas do Pyelito Kue. Sob as árvores de uma capoeira baixa, o Pyelito seguia a sina entre a estrada vicinal e a cerca assentada pelo proprietário da Fazenda Cambará, sob os auspícios da justiça. A maior reclamação era a falta de escola para as crianças, o que é só uma derivada da reclamação por falta de terra: como ter uma escola onde não há espaço pra se levantar nem mais um barraco? Pelo atraso nas demarcações, que deveriam ter sido concluídas até 1993, o Ministério Público Federal firmou em 2007 um Compromisso de Ajustamento de Conduta com a Funai concedendo prazo até janeiro de 2011 para a conclusão dos estudos de identificação e delimitação das terras indígenas Guarani no estado. Ambos, Pyelito Kue e Mbarakay, fariam parte do Grupo de Trabalho (GT) do Iguatemipegua I, sob respon- sabilidade da antropóloga Alexandra Barbosa da Silva. O GT foi instaurado em 2008, mas os trabalhos só foram encaminhados em 2010. Dentre todos os relatórios técnicos de identificação de terras indígenas no Mato Grosso do Sul, apenas o de Pyelito Kue e Mbarakay foram publicados até agora. O prazo para contestação já se esgotou, e o encaminhamento da demarcação depende unicamente da assinatura do ministro da Justiça e da homologação pela presidenta da República. Na portaria publicada em janeiro de 2013, a área identificada como Pyelito Kue e Mbarakay soma 41.571 hectares – desses, um único hectare estava efetivamente ocupado pelos índios à época da publicação, conforme autorizava a Justiça e garantia a cerca fincada pelo fazendeiro. Um hectare corresponde a 10 mil metros quadrados, o que é mais ou menos a área de um campo de futebol. Em novembro do ano passado, uma nova carta já predizia um novo conflito: “Nós queremos que eles [governo brasileiro] cumpram a sua palavra. Eles falam que vão fazer. Nós já ficamos esperando”, dizia a carta, “E eles não estão cumprindo, não estão chegando e não vem para demarcar a nossa terra”. Quando visitei o Pyelito, em janeiro de 2014, as crianças brincavam sob os galhos dos arbustos em que estava metida a comunidade. Uma pequena estrutura de ogapysy – a casa de reza tradicional em que os guarani realizam seus ritos – estava sendo construída em uma área aberta, mas faltavam o sapé e a madeira necessária para finalizá-la. As mulheres reclamavam que não era possível plantar naquela terra, que não havia água suficiente. O funcionário da “As lonas estavam furadas e rasgadas. Janeiro é período de chuva no Mato Grosso do Sul, e eu só pude imaginar como seria dormir debaixo daquele teto em uma noite de tempestade de verão. Quase um ano e meio depois da histeria em torno da carta da comunidade, a vida não havia mudado muito para as 20 famílias indígenas do Pyelito Kue” 5 Abril – 2014 A comunidade é constante alvo de ações de pistoleiros que disparam contra os indígenas. A Funai também foi invadida e a portaria que autoriza a Força Nacional a atuar nos conflitos fundiários envolvendo indígenas no estado está vencida desde o ano passado Coordenação Técnica Local da Funai confessou que lhe faltavam recursos para garantir a segurança dos índios, e os jornais locais circulavam a informação de que empresas de segurança privada haviam sido contratadas pelas fazendas da região. Lide me chamou de lado, pediu que eu visitasse uma família cuja criança estava doente. O menino tinha cerca de dois anos e estava prostrado, com a barriga inchada. A cena me impressionou bastante. Dali a dois dias, recebi a notícia de que a criança havia morrido. Um hectare é mais ou menos um campo de futebol Na segunda semana de fevereiro de 2014, a comunidade retomou a totalidade da Fazenda Cambará. Os cerca de mil hectares da propriedade estão todos sobrepostos à área identificada pela Funai como de ocupação tradicional indígena. O funcionário que residia na sede não foi agredido. Nos dias que se seguiram os próprios índios auxiliaram a retirada de todo o gado criado na fazenda. Apesar do clima de tensão e de episódios de ameaça, a situação estava relativamente sob controle: Osmar Bonamigo, o proprietário, chegou a declarar aos índios e à Funai que abandonaria a área. Assine o As fazendas vizinhas, no entanto, reforçaram a segurança. A imprensa local noticiou que o Sindicato Rural de Iguatemi estava investindo 15 mil reais ao mês em segurança privada na região a fim de evitar “novas invasões”. Os indígenas, de sua parte, declararam que aguardariam na Fazenda Cambará novo posicionamento do governo e da Justiça, mas dão notícia que homens armados e de moto circundam a área da retomada duas vezes ao dia. Por volta das 15h do dia 2 de março, três desses homens e uma mulher, posicionados na estrada em frente à porteira da fazenda, abriram fogo contra os indígenas. As crianças, que brincavam no pátio da casa que servia de sede à fazenda, se esconderam atrás das árvores e de uma mureta de concreto. Um tiro acertou a porta, poucos centímetros de onde estava sentada uma senhora de idade. Uma bala ricocheteou no assoalho de madeira da casa e feriu uma árvore. Quem estava dentro dos barracos protegeu-se no chão. Alguns homens, armados com arco e flecha e facões, se aproximaram agachados da cerca, e as pessoas que estavam fazendo os disparos fugiram. “Nossa comunidade é pouca gente, mas é corajosa!”, me disse Marcio Solano Lopes, filho do cacique Lide, MPF-MS Associação Cultural dos Realizadores Indígenas (Ascuri) Luta pela terra “Se acertarem nossa família, a gente vai ter com eles na fazenda”. Ao todo, o tiroteio deixou nove marcas de bala nas paredes, árvores e barracos da comunidade. Lide fez questão que eu fotografasse uma a uma – “Como a gente vai reagir, sem arma?”, perguntou. Essa é uma pergunta sem resposta. Como o Pyelito reagiu até hoje, sem arma? No domingo de carnaval, quando escutei o tiroteio pelo telefone, notifiquei pessoalmente a Polícia Federal. Sem resposta. Tentei notificar o Ministério Público Federal, mas os procuradores não estavam na cidade. Tentei notificar a Funai, mas o que eles poderiam fazer? Notificar, novamente, a Polícia Federal? A Funai na região não está em uma situação melhor do que as dos índios. A sede da Coordenação Técnica Local de Iguatemi foi invadida poucos dias antes do tiroteio. Destruíram computadores, roubaram documentos, e tentaram levar a caminhonete da entidade – o que só não foi possível porque um caminhão parado na porta impediu a passagem do veículo. O coordenador local solicitou ao MPF sua inserção no Programa Nacional de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos (PNPDDH), da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH), em que já estão inscritas mais de 20 lideranças indígenas no Mato Grosso do Sul. Apesar disso, não creio que tenha sido designada alguma escolta. No domingo de carnaval, quando escutei o tiroteio pelo telefone, chamei o plantão da SDH e pedi que eles acionassem o efetivo da Força Nacional. Fui informado, prestativamente, de que “infelizmente a SDH não tem comando da Força, que obedece diretamente o Ministério da Justiça”. No mais, a portaria que autoriza o efetivo a atuar nos conflitos fundiários envolvendo indígenas no estado está vencida desde o ano passado, e o ministro José Eduardo Cardozo ainda não promoveu sua renovação. Caminhando pelos limites da retomada, a pergunta de Lide me ecoava: como o Pyelito reagiu até hoje, sem arma? A poucos centímetros do chão, em meio ao capim do pasto, notei que brotavam ramas de mandioca recém-plantadas. Imaginei o quão difícil deve ser roçar uma terra assim, coberta há tantos anos com pasto. Mais adiante, dez garotos jogavam bola em um campo improvisado. Não havia espaço pra futebol, quando eles ocupavam um só hectare. n SOLICITE SUA ASSINATURA PELA INTERNET: [email protected] FORMA DE PAGAMENTO – DEPÓSITO BANCÁRIO: BANCO BRADESCO – Agência: 0606-8 – Conta Corrente: 144.473-5 CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO Envie cópia do depósito por e-mail, fax (61-2106-1651) ou correio e especifique a finalidade do mesmo. PREÇOS: Abril – 2014 6 Ass. anual: R$ 60,00 Ass. dois anos: R$ 100,00 *Ass. de apoio: R$ 80,00 América Latina: US$ 50,00 Outros países: US$ 70,00 * COM A ASSINATURA DE APOIO VOCÊ CONTRIBUI PARA O ENVIO DO JORNAL A DIVERSAS COMUNIDADES INDÍGENAS DO PAÍS. S Irmã Joana Aparecida Ortiz/Cimi egundo o Relatório Conflitos no Campo Brasil 2013, lançado no dia 28 de abril, das 1.266 ocorrências relacionadas ao conjunto dos conflitos no campo no Brasil, 205 estão relacionadas aos povos indígenas, sendo que 154 referem-se a conflitos por terra ou retomada de territórios e 11 a conflitos pela água. No quadro de violências, das 829 vítimas de assassinatos, ameaças de morte, prisões, intimidações, tentativas de assassinato e outras, 238 são indígenas. Das 34 mortes por assassinato, 15 são de indígenas. São também indígenas 10 das 15 vítimas de tentativas de assassinato, e 33 das 241 pessoas ameaçadas de morte. Não se tem registro de situação semelhante em outro momento nos 29 anos que a Comissão Pastoral da Terra (CPT) publica este relatório. O estado que lidera o ranking da violência contra os indígenas é o Mato Grosso do Sul, onde 15 indígenas foram ameaçados de morte, 7 sofreram tentativa de assassinato, 3 foram assassinados e 8 presos. Todos os assassinados e os que sofreram tentativa de assassinato relacionados a conflitos no campo são indígenas. Também 100% dos assassinados em Roraima são indígenas. Na Bahia, estado que ficou em segundo lugar na violência contra os povos indígenas, dos 6 assassinatos, 4 são de indígenas, e das 3 tentativas de assassinato, 1 é contra indígena, além de 3 ocorrências de ameaça de morte. Chama atenção o alto índice de violência incidente sobre as lideranças indígenas, com 34 ocorrências relacionadas a ameaças de morte, 26 tentativas de assassinato e 4 assassinatos. De acordo com o relatório, as 61 ações de retomadas feitas pelos indígenas de suas terras tradicionais teriam motivado os fazendeiros a reagir com violência desmedida. Destas, 20 teriam sido realizadas na Bahia e 30 no Mato Grosso do Sul. O que evidencia, mais uma vez, a necessidade do governo federal agir, no sentido de cumprir a Constituição Federal e demarcar as terras tradicionais indígenas, para diminuir os conflitos no campo. n Bancada indígena da CNPI denuncia manobras do governo e divulga Parecer N o dia 8 de abril, a Bancada Indígena da Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI) e os integrantes da Mesa de Diálogo, criada no ano passado, divulgaram uma carta durante a abertura da 9ª Reunião Extraordinária da CNPI, manifestando “frustração” diante da pauta apresentada pelo governo. Conforme as lideranças indígenas, os governistas não cumpriram as decisões tomadas pelo coletivo na 22ª Reunião Ordinária, realizada entre os dias 10 e 12 de dezembro de 2013, e trouxeram pautas de interesse antagônico ao dos povos indígenas, caso da minuta que pretende alterar o procedimento de demarcação de terras indígenas. Também foi apresentado um parecer jurídico sobre a Minuta de Portaria para a “regulamentação” do Decreto nº 1775/96, apresentada pelo ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, que revoltou as organizações e povos indígenas. “Contrariamente às alegações do governo, a dita portaria eterniza a não demarcação de terras indígenas, fragiliza a Funai, e desenha um quadro assustador de acirramento de conflitos”, disse em nota a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) à época. O parecer, de 16 páginas, está disponível em: http://mobilizacaonacionalindigena.wordpress. com/2014/04/08/organizacoes-divulgam-parecer-rechacando-proposta-do-mj-de-alterar-demarcacoes-de-terras/. Leia abaixo a Carta Aberta entregue ao ministro Cardozo. Carol Fasolo Comissão Pastoral da Terra (CPT) Demarcação Patrícia Bonilha Relatório da CPT explicita aumento da violência contra povos indígenas e comunidades tradicionais Carta Aberta dos integrantes da Bancada Indígena da Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI) e da Mesa de Diálogo Prezado Sr. Ministro da Justiça José Eduardo Cardozo, Prezados Srs e Sras, Membros da Bancada Governamental da CNPI, Por meio desta carta pública, viemos manifestar nosso sentimento de frustração e indignação a respeito da proposta de pauta apresentada pelo governo para a 9ª Reunião Extraordinária da CNPI. Desrespeitando todas as deliberações acordadas em plenária durante a 22ª Reunião Ordinária, realizada entre os dias 10 e 12 de dezembro de 2013, quando se decidiu pelo processo de construção coletiva de uma Conferência Nacional de Política Indigenista, a convocatória desta reunião inverte completamente a lógica construída na reunião de dezembro. Na ocasião, ficou agendada para o mês de janeiro uma reunião preparatória do grupo responsável por elaborar uma proposta metodológica para Conferência Nacional, a qual deveria ser submetida à plenária na próxima reunião ordinária, que deveria ter ocorrido no mês de março de 2014. Nenhuma das duas ocorreu. Havia sido acordado também em plenária que a discussão da mudança no processo de demarcação de terras indígenas, na qual se insere a proposta de Minuta de Portaria elaborada pelo Ministério da Justiça, deveria ser realizada dentro dos seminários regionais que culminariam na Conferência Nacional de Política Indigenista. Mais uma vez, porém, o governo desrespeita as decisões tomadas coletivamente em plenária, e propõe uma pauta para esta reunião focada apenas nos seus interesses políticos, impondo de forma autoritária, a apreciação da Minuta de Portaria, substituindo o processo de discussão com as bases por um único Seminário Nacional. Trata-se de uma demonstração clara que concebe a CNPI como um mero espaço para referendar as posições e interesses do governo. Diante desta postura intransigente, a bancada indígena e as organizações indígenas que compõem a Mesa de Diálogo decidiram conjuntamente com organizações indigenistas, realizar uma análise própria da referida Minuta de Portaria. De acordo com a fundamentação expressa no parecer, que acompanha essa manifestação, concluímos que a Minuta de Portaria representa mais uma tentativa de ataque aos direitos indígenas, contrariando a legislação vigente, e cedendo aos interesses do agronegócio, e da base aliada do governo. Por essa razão, não vemos nenhum sentido em realizar o Seminário Nacional proposto, e apelamos para o bom senso, reivindicando que o governo desista definitivamente desta medida desnecessária e descabida, e concentre seus esforços na retomada da demarcação das terras tradicionais, conforme prescreve a Carta Magna brasileira. A instauração da Mesa de Diálogo com o movimento indígena no âmbito da CNPI, que sucedeu às manifestações de junho de 2013, tinha como objetivo avançar nas demarcações de terra, que já estavam paralisadas. Em um curto espaço de tempo, o governo abandonou completamente a pauta, desconsiderando todas as reivindicações apresentadas, e tenta agora converter este espaço num conselho de sentença contra os povos indígenas, enterrando qualquer possibilidade de demarcação de seus territórios tradicionais. Nós, lideranças indígenas, povos e organizações reiteramos a disposição de lutar contra este tipo de manobra que tenta nos usar para fins políticos, em detrimento dos nossos direitos fundamentais e coletivos. Bancada Indígena da CNPI e representantes da Mesa de Diálogo “Contrariamente às alegações do governo, a dita portaria eterniza a não demarcação de terras indígenas, fragiliza a Funai, e desenha um quadro assustador de acirramento de conflitos” 7 Abril – 2014 Enawenê-Nawê A terra onde os espíritos riem Diante do desafio de incluir o Rio Preto em sua terra demarcada e enfrentar o desmatamento e as outras ameaças causadas pelos fazendeiros e madeireiras da região norte do Mato Grosso, este povo resignifica os valores da sociedade branca e se afirma como “natureza em si”, e não “parte dela”. Fotos: Renato Santana Renato Santana, P “ Abril – 2014 8 Enviado a Juína (MT) ode foto, mas tem que ser foto bonita”, diz Dodowai Enawenê-Nawê, filho do cacique Lula, ao autorizar a captação de imagens de seu povo. O repórter, desconfiado, pergunta: “Como é uma foto bonita de Enawenê?”. Dodowai, convicto, devolve: “É Enawenê sem roupa de branco. A gente só usa porque precisa conversar com branco, mas a gente tem nosso jeito mais bonito”. Ao redor de Dodowai, do terreiro no centro da única aldeia, onde vivem os 700 integrantes do povo, a câmera percorre 15 grandes malocas, uma casa religiosa e o vai-e-vem explosivo de crianças, homens e mulheres sob um sol matutino que, se espremendo por entre a neblina, chega à terra para apagar a luz da grande fogueira, queimando desde a madrugada. Ainda é cedo, mas o dia para os Enawenê começou há horas. No terreiro todos se encontram em abraços, compartilham comida, conversam e, sobretudo, riem e tomam chicha. As crianças correm numa revoada de rumo indefinido e, em duplas, os homens, de mãos dadas, encontram com os demais sentados sobre os troncos que alimentam a fogueira na noite da comunidade que vive sem energia elétrica. A época é de ritual, mas difícil é chegar à aldeia Enawenê e não encontrar algum em curso. Desta vez é o Kateko. As mulheres saem de uma das malocas, ombro a ombro, cantando e acompanhadas por dois pajés. Vestidas com saiotes vermelhos de algodão e colares, seguem até o centro da aldeia, em passos laterais sincronizados, formando um círculo ao redor da grande fogueira. Os homens as observam com alegria enquanto comem beiju e assam peixe. Alguns estão com os celulares posicionados para gravar o som do ritual, que acontece quatro vezes ao dia, a cada seis horas, durante três meses. Todo Enawenê que possui um celular o usa para gravar e ouvir os rituais inúmeras vezes, seja na aldeia ou fora dela. E assim o povo Enawenê convive, não apenas afirmando suas tradições e modos de vida na utilização peculiar de roupas e utensílios da sociedade que os envolve, mas também enfrentando desafios comuns aos demais povos indígenas do Brasil. O principal deles envolve o acréscimo de uma área tradicional, onde está localizado o Rio Preto, nas delimitações da terra indígena. O território ficou de fora da primeira demarcação, ocorrida antes da promulgação da Constituição de 1988, e seguiu ocupado por fazendas. Há poucos anos a única forma de chegar à aldeia Enawenê-Nawê, no norte do Mato Grosso, era pelos rios Papagaio e Juruena. Por estes rios se deu o contato do povo com integrantes do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e da Operação Anchieta, em 28 de julho de 1974. Um destes missionários, Vicente Cañas, jesuíta espanhol, passou a viver junto aos Enawenê. Kiwixi, nome dado pelos indígenas a Vicente, foi assassinado em 1987 durante os trabalhos de demarcação da terra indígena Enawenê. Entre os mandantes e executores da morte de Kiwixi estavam fazendeiros e capangas que invadiram a terra indígena e se estabeleceram na região do Rio Preto, a mesma que hoje os indígenas lutam para recuperar. Portanto, a importância de Kiwixi para os Enawenê atinge até mesmo o âmbito cosmológico, sendo que os mais novos conhecem a história do “branco” que se tornou um Enawenê e pelo povo entregou-se ao martírio. O que os velhos e os espíritos dizem A área do Rio Preto é identificada pelos Enawenê como local de uma das aldeias antigas, cemitério de antepassados e com dezenas de espaços de roça. A memória dos mais velhos traz conflitos com outros povos, caso dos Cinta-Larga, tendo o Rio Preto como arena. Então, de lá fugiram e retornaram inúmeras vezes. “Queremos voltar para essa parte do território porque é onde deveria acontecer ritual Enawenê e não pode fazer porque dizem que não é mais nosso. Branco mente, mas nós sabe a verdade e a verdade é a que nossos velhos contam, é a que os espíritos dizem. A verdade é nossos antigos enterrados lá. A verdade é a terra boa que roça Enawenê deixou lá”, pontua Dodowai. A briga pelo território tem causado alvoroço entre a elite agrária da região. Em Juína, durante o mês de outubro do ano passado, manifestações percorreram a cidade contra a demarcação de Rio Preto. Na pauta dos manifestantes também estava a revisão de área não inclusa na demarcação da terra indígena Myky, em Brasnorte, município vizi- nho. As prefeituras, controladas pelos fazendeiros, incentivam as populações contra os indígenas. Os fazendeiros, que detêm ainda comércios locais e em alguns casos madeireiras que devastam dezenas de hectares indígenas, patrocinam o acirramento dos ânimos. No caso de Juína, a sede da Fundação Nacional do Índio (Funai) já foi alvo de protestos. Para os indígenas, porém, nada é capaz de abalar a determinação em recuperar seus territórios invadidos. “Ninguém mexe aqui. Olha feio, mas não mexe. Sabe que se mexer com um vai cutucar vespeiro. Pode protestar. Enawenê não liga. O que Enawenê quer é sua terra”, diz um indígena ao caminhar pelas ruas de Juína. Os interesses por trás da não inclusão do Rio Preto na terra indígena dos Enawenê possuem razões evidentes e motivos especulados. Além da exploração que esta área rende ao fazendeiro, há ainda a intenção de se construir mais usinas hidrelétricas, aproveitando o potencial dos rios que banham o território indígena. “Sabemos disso, de construir usina. Isso Enawenê não quer porque nunca que esse tipo de coisa do branco é para o bem do índio”, diz Dodowai. A A retirada retirada de madeira, porém, é o que da madeira, parece estar mais evidente entre os principalmente, e a construção interesses sobre o território do povo de usinas Enawenê. hidrelétricas As fazendas instaladas dentro são apontados como os do espaço indígena e numa de suas principais margens, além de inúmeras áreas de motivos para não incluir o manejo, fizeram com que de Juína uma Rio Preto na estrada de 100 km fosse aberta até a Terra Indígena Enawenêporteira antes usada por traficantes Nawê de madeiras. No caminho é possível cruzar com uma dezena de carretas e bitrens levando para esse município toras e mais toras de árvores sem nenhum selo. Nas cidades a madeira é “legalizada” e, assim, segue em seu ciclo comercial que devora milhões de hectares em reservas legais e terras tradicionais. Ao menos agora a porteira está controlada pelos Enawenê. Dali é possível pegar outra estrada, bastante acidentada em seus 40 km, até a vistosa aldeia. O caminho foi aberto pelos próprios indígenas. Durante os trabalhos, avistaram os Yalakolori, índios isolados na língua Enawenê. “Eles vão em roça Enawenê, levam nosso machado. Nosso povo viu eles várias vezes, mas quando abrimos estrada deu pra chegar mais perto”, explica Dodowai. 9 Abril – 2014 Ser a natureza em si Entre a porteira e o Rio Ikê, onde fica o porto dos Enawenê e o emaranhado de barcos que os levam para pescarias e rituais por todo o território, não demora muito tempo para se perceber que a forma como os Enawenê lidam com seus problemas está relacionada com a poderosa espiritualidade de um povo que não se diz parte da natureza, mas a natureza em si. “Branco não entende que somos parte disso aqui”, diz um jovem Enawenê ao olhar a floresta ao redor, que numa parte do território é Cerrado e em outra Amazônica. Tanto em um bioma quanto em outro, os Enawenê se veem como parte. Seguem assim, peculiares: não tomam água, apenas chicha, e jamais comem carne vermelha. Na aldeia preferem o peixe, mas na cidade abrem mão para o frango. Beiju, mandioca, milho e frutas fazem a vez do arroz, feijão e comidas “que branco gosta”, como costumam dizer. Nas grandes malocas Enawenê vivem dezenas de pessoas de uma mesma família. Em todos os casos isso se dá pelo sentido de organização familiar do povo. As mulheres trabalham nas colheitas de mandioca e milho, apurando a chicha, assando peixe e fazendo beiju. Dividem o espaço, as tarefas e a criação dos filhos, que passam boa parte do tempo em brincadeiras, caminhando pela mata e ouvindo histórias dos mais velhos. Não há escola e o português só é aprendido pelos Enawenê quando maiores, com exceção das mulheres. O modo de vida tradicional peculiar dos EnawenêNawê mantém-se nos dias de hoje: sem comer carne vermelha, sem beber água, sem escola para estudar. Os rituais acontecem diariamente e as crianças brincam com liberdade D Elas, por outro lado, possuem um apurado sentido de preservação e conversam entre si de forma alegre, enquanto as crianças pequenas, penduradas entre os seios da mãe, olham as maiores. Assim como os homens, são altamente ligadas às crenças do povo Enawenê e possuem um ritual tecido apenas por elas e seus cantos. esde o assassinato de Kiwixi, em 1987, até os dias de hoje sua história nunca deixou de ser contada entre o povo Enawenê-Nawê. Os indígenas o consideram um Enawenê, porque “vivia como Enawenê, fazia barragem para o ritual com a gente e ficava pescando dez dias e trazia tudo para todo mundo comer na aldeia”, declara Sucuri dentro do barraco em que Vicente fazia as quarentenas antes de seguir viagem rumo à aldeia. Neste barraco, Kiwixi foi assassinado e seu corpo encontrado por integrantes do Cimi cerca de um mês depois. O missionário mantinha um rádio e estrutura mínima para passar algumas semanas, vindo da cidade. Também tentava garantir que não levaria nenhuma doença para os Enawenê. Mantinha contato com Tomaz Aquino Lisboa, missionário que vivia com os Myky, que estranhou a demora de Vicente em fazer contato e foi ao local ver o que se passava. Abril – 2014 10 Entre os rituais intermitentes e a alegria elétrica de cada Enawenê, o povo como um todo vem encontrando respostas para questões trazidas pela relação com a sociedade envolvente. Todavia o fazem resignificando aquilo que chega para eles, ressaltando a afirmação do que são. Assim lutam pelo Rio Preto e por questões básicas, como saúde e saneamento básico. Mesmo quando algumas saídas são apresentadas para eles, tal como abandonar as malocas coletivas, eles buscam caminhos distintos e negam qualquer possibilidade de abandonar o modo como vivem - mesmo que isso hoje envolva passar horas de trabalho na roça ouvindo um dos rituais do povo pelo celular. n Vicente Cañas, o Kiwixi, presente! Arquivo Cimi Fotos: Renato Santana Enawenê-Nawê Sucuri era um jovem de pouco mais de dez anos quando Kiwixi morreu, mas se recorda das vezes que Vicente ia pescar: “Todas crianças queriam subir no barco e ele dizia que só podiam três. Entrava cinco e ele ficava bravo, mas todo mundo acabava indo com ele”, segue puxando da memória o indígena. Para ele é surpreendente que o barraco ainda esteja de pé e afirma que ali era tudo muito bem arrumado, com várias plantações que Kiwixi levava para a aldeia. Hoje tudo está tomado por mato e memória. A trilha usada pelos assassinos não existe mais, apenas a impunidade do crime. O túmulo de Vicente, com seu nome indígena talhado na pedra, segue sobre o local em que o corpo foi sepultado. “Enawenê achava que Kiwixi ia deixar aldeia sempre que saia e Kiwixi dizia que ia ficar bem velhinho aqui, que ia morrer aqui”, sorri Sucuri. (R.S.) Estado ausente E agora, ministro Cardozo? Após ignorar todos os compromissos assumidos em reunião presencial com o povo Kaingang e Guarani no mês de março e faltar a quatro reuniões agendadas com os indígenas apenas no mês de abril, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, deve ser responsabilizado pelo conflito entre agricultores e indígenas que, infelizmente, resultou na morte de dois agricultores em Faxinalzinho (RS). Q Da Redação, uando se diz que uma tragédia está anunciada, geralmente, não é devido à capacidade profética de quem faz o anúncio, e sim pela interpretação dos vários dados e elementos de uma realidade, muitas vezes, um tanto óbvia. Em nota pública divulgada no dia 28 de abril, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) – Regional Sul afirmou em seu primeiro parágrafo que “a possibilidade de um desfecho tranquilo para a questão das demarcações de terras indígenas no Rio Grande do Sul esteve mais uma vez nas mãos do Ministro da Justiça (MJ), José Eduardo Cardozo. Infelizmente, o ministro, ao invés de optar pela solução dos problemas – e, com isso, assegurar o cumprimento dos direitos constitucionais dos povos indígenas e dos pequenos agricultores - preferiu descumprir os acordos que firmou com os Kaingang e Guarani em Brasília no mês de março deste ano”. Este é um exemplo claro de que os autores dessa nota não podiam imaginar o quanto o seu conteúdo era profético, muito menos que o acontecimento trágico aconteceria naquele mesmo dia. Sigamos na leitura da nota para compreender o contexto em que ele se insere. “O ministro Cardozo, na ocasião, garantiu às lideranças que o governo daria continuidade aos procedimentos demarcatórios de quatro áreas reivindicadas há muitas décadas e que seria organizada uma reunião de trabalho com a finalidade de definir um cronograma de ações para concluir os procedimentos demarcatórios. A reunião de trabalho acertada - inclusive com ofício formal em papel timbrado e assinado pelas mãos do ministro - foi agendada para o dia 5 de abril. A reunião não aconteceu porque o ministro José Eduardo Cardozo descumpriu o acordo, marcando e desmarcando sua vinda ao estado por mais de três vezes. Ou seja, depois de um mês de adiamentos de prazos para a reunião entre os povos indígenas e o governo, absolutamente nenhuma providência foi tomada no que se refere à demarcação dos territórios indígenas. Diante do descumprimento dos acordos, do modo desrespeitoso com o qual os indígenas estão sendo tratados e sem ter outra alternativa que lhes assegure o direito constitucional de acesso à terra, algumas comunidades Kaingang decidiram retomar, por conta própria, partes de seus territórios tradicionais. As lideranças das comunidades afirmam que, com essa ação, pretendem também chamar a atenção dos poderes públicos para que solucionem as demandas dos pequenos agricultores que se encontram sobre as terras a serem demarcadas. Nesse sentido, no dia 28 de abril, os Kaingang da Terra Indígena (TI) Passo Grande do Rio Forquilha, localizada no município de Sananduva (RS), ocuparam a capela de Bom Conselho e parte da sede onde residem alguns agricultores e anunciaram de forma definitiva que não sairão mais de sua terra ancestral. Ao mesmo tempo, indígenas de outras aldeias Kaingang - como da TI Kandóia, localizada no município de Faxinalzinho, e da TI Rio dos Índios, localizada no município de Vicente Dutra - passaram a trancar rodovias vicinais de acesso à sede do município, a Chapecó e às rodovias estaduais e federais, anunciando que se somarão aos processos de autodemarcação se suas demandas não forem atendidas imediatamente. Além das demarcações e homologações das áreas de Passo Grande do Rio Forquilha, Kandóia e Rio dos Índios, que constituíram o passo inicial do movimento, a reivindicação dos indígenas contempla também a demarcação imediata da Terra Indígena Guarani do Irapuá, localizada no município de Caçapava do Sul. Com mais de 20 famílias Guarani Mbya vivendo acampadas nas margens da rodovia BR – 290, a comunidade continua aguardando a portaria declaratória que deve ser expedida pelo ministro da Justiça Eduardo Cardozo e, desse modo, poderem acessar sua área tradicional, identificada e delimitada há mais de uma década pela Fundação Nacional do Índio (Funai). O descumprimento dos acordos com os povos indígenas estimula, em última instância, a violência, a tensão e a insegurança entre indígenas e agricultores. Vale ressaltar que muitos dos pequenos agricultores diretamente afetados pelos procedimentos de demarcação já manifestaram ao próprio ministro Cardozo que preferem uma solução pacífica, através da justa indenização e a consequente conclusão dos procedimentos de demarcação das terras indígenas. Para os agricultores, a culpa pela situação de conflito e inseguran- ça é do governo federal, que negligencia seu papel em detrimento de interesses econômicos dos ruralistas e de sindicatos rurais ligados a eles. Aos atores de um processo político não cabe a justificativa de não estar ciente dos acontecimentos nos quais está totalmente imerso e envolvido e, como extensão, de interpretar, fazer a leitura política, desses acontecimentos. Muito menos cabe a possibilidade de justificar a sua não ação quando suas decisões definem as condições de vida de milhares de pessoas, ou até mesmo a continuidade da própria vida. E, definitivamente, estes dois aspectos (não estar ciente/interpretar e não agir) não condizem com a postura de alguém que ocupa o cargo de ministro de Estado da Justiça do Brasil ou de qualquer outro país. Nesta posição, a negligência e a omissão podem custar vidas. Conflito causa a morte de dois agricultores No mesmo dia (28 de abril) em que a nota pública foi divulgada e, claro, não obteve qualquer atenção ou ação por parte do ministro Cardozo, o anúncio fez-se realidade. Durante o protesto dos Kaingang, em Faxinalzinho (RS), ocorreu um conflito envolvendo indígenas que bloqueavam uma das estradas vicinais que passa dentro da terra reivindicada como tradicional. De acordo com os indígenas, um grupo de agricultores tentou liberar a via à força e, em uma tentativa de romper com o bloqueio, houve um confronto em que, infelizmente, dois agricultores acabaram mortos. Tomava forma ali a violência incentivada pelos deputados federais Luis Carlos Heinze (PP/RS) e Alceu Moreira (PMDB/RS) durante audiência pública, realizada em dezembro, no município de Vicente Dutra, com recursos públicos - fato amplamente divulgado pelas redes sociais e pela imprensa. “Reúnam verdadeiras multidões e expulsem (os índios) do jeito que for necessário”, diz Moreira em depoimento gravado em vídeo. Em outra nota pública, o Cimi Regional Sul, juntamente com o Conselho de Missão entre os Povos Indígenas (Comin) e a Frente Nacional em Defesa dos Territórios Quilombolas/RS afirma: “O povo Kaingang, no norte do Rio Grande do Sul, realizou mais de quinze ocupações de terras que reivindicam como sendo parte de seu território tradicional. São, em geral, pequenas áreas, as quais abrigarão centenas de famílias que vivem, em sua maioria, acampadas às margens de rodovias. As terras indígenas, se comparadas às propriedades de alguns latifundiários, podem ser consideradas pequenas glebas. Por exemplo, o deputado Heinze, representante do bloco ruralista no Congresso Nacional, sozinho, possui 1.543 hectares. É importante ressaltar que a maioria das áreas que os Kaingang reivindicam estão em processo de demarcação há mais de 10 anos, pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Nos últimos anos, desde o governo Lula, os procedimentos demarcatórios não avançaram. Com o governo Dilma a situação se agravou, pois ela determinou que todas as demarcações fossem paralisadas, acentuando os conflitos. O governo, aliado aos setores do agronegócio, assumiu, claramente, uma política de negação dos direitos indígenas e quilombolas, atropelando a Constituição Federal. O ministro da Justiça José Eduardo Cardozo tem insistido que vai buscar solução para os problemas através de mesas de diálogos com os Kaingang. As tais mesas, no entender do Cimi Sul, não passam de manobras protelatórias. Somente no mês de abril de 2014, o ministro da Justiça se comprometeu, por quatro vezes, em dialogar com os indígenas em Porto Alegre. Não compareceu em nenhuma das vezes, sempre postergando para outras datas. Os Kaingang, percebendo a estratégia do ministro em protelar o cumprimento dos acordos, decidiram romper com a farsa das tais mesas de diálogo e reiniciaram um processo de autodemarcação de seus territórios. Alertamos, uma vez mais, para a gravidade do problema e conclamamos o ministro para que cumpra com suas obrigações constitucionais demarcando as terras indígenas, bem como estabeleça um cronograma de pagamento das indenizações dos agricultores e o reassentamento em outras terras. Caso contrário, os conflitos se intensificarão”. A pergunta que fica é: quantos conflitos, mortes e derramamento de sangue são ainda necessários para que o governo federal cumpra suas obrigações constitucionais? n 11 Abril – 2014 Velhos métodos autoritários Polícia Federal impede ida de Babau ao Vaticano Contrariando o dito popular de que “quem tem boca vai a Roma”, a PF, a partir de um inquérito realizado em dez dias e depoimentos sem contraditório, impediu o cacique Babau de expor no Vaticano as violações a que seu povo tem sido submetido. O abuso da prisão orquestrada catalisou amplo apoio e profunda indignação da sociedade civil. Renato Santana, de Brasília (DF) M enos de 24 horas depois de receber um passaporte para viajar ao Vaticano e se encontrar, durante celebração, com o papa Francisco, a convite da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Rosivaldo Ferreira da Silva, o cacique Babau Tupinambá, da Bahia, foi surpreendido no dia 17 de abril ao ser informado pela Polícia Federal (PF) que estava impedido de sair do país por conta de três mandados de prisão. Porém, as ordens judiciais estavam arquivadas desde 2010. A PF disse que tais mandados não estavam revogados e que havia um quarto mandado. Para a liderança indígena, o governo federal, por intermédio de sua polícia, queria impedir o encontro dele com o Paul Walters/Arquivo Cimi Liderança indígena respeitada em todo o Brasil, o cacique Babau foi alvo de processo de criminalização por parte do governo federal e impedido de apresentar denúncias ao Papa Francisco papa Francisco. “O governo não quer que eu denuncie o que vem acontecendo com os povos indígenas no Brasil. A Polícia Federal não sabe que os três mandados foram arquivados e nem processo existe? Claro que sabe! O governo sabe disso!”, protestou cacique Babau. Depoimentos de indivíduos beneficiados por fraude, e sem o contraditório, serviram para o juiz substituto Maurício Álvares Barra, da Vara Criminal da Justiça de Una, pedir no último dia 20 de fevereiro, há pouco mais de dois meses, a prisão temporária do cacique Babau Tupinambá, acusado de estar envolvido na morte de um pequeno agricultor. Outras oito pessoas também tiveram a prisão temporária decretada. A liderança indígena poderia ser presa a qualquer momento. O inquérito policial que embasou a decisão do juiz durou apenas dez dias, entre o assassinato de Juracy José dos Santos Santana, em 10 de fevereiro deste ano, e o mandado de prisão. Além disso, o próprio juiz aponta o “contingente reduzidíssimo” da Delegacia de Polícia Civil de Una, contando apenas com dois policiais, como insuficiente para efetuar a investigação. Sem contar a greve da categoria na Bahia, que culminou com a prisão de um de seus líderes. A delegada expressa no inquérito enviado ao juiz que não conseguiu encontrar o cacique Babau, apesar de ter realizado diligências, inclusive com o apoio da Polícia Federal, para tomarlhe depoimento. Porém, a liderança indígena esteve três vezes em Brasília no período referido pela delegada, inclusive junto aos agentes federais. Além disso, fez reuniões com o comando da operação do Exército, presente em Una e Buerarema, na aldeia Serra do Padeiro. Escreve a delegada ao juiz: “(...) Provavelmente (os acusados) tentam esquivar-se da ação policial e subsequentemente da ação judicial e, na certeza da impunidade, logo voltarão a fazer novas vítimas”. A delegada, porém, não faz referência, em sua ‘criteriosa’ e ‘laboriosa’ investigação, ao fato do cacique Babau fazer parte do Programa Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PNDDH) do governo federal e só se locomover com o devido conhecimento do programa. Mesmo sem o contraditório e investigações mais exaustivas, uma vez que não há efetivo de policiais garantidos pelo Estado no município de Una, o juiz substituto afirmou em sua decisão pela prisão que “colheu-se que um dos principais suspeitos da execu- “Ninguém vai me calar” Carolina Fasolo, de Brasília (DF) “Eu não vou me intimidar, ninguém vai me calar. Sei que eles estão fazendo a minha prisão porque querem fazer um ataque à minha aldeia”, disse o cacique Babau Tupinambá no dia 24, durante audiência conjunta da Comissão de Direitos Humanos da Câmara e do Senado. Ele teve a solenidade como única chance de se defender publicamente das acusações infundadas que sustentam o inquérito, antes de se entregar à Polícia Federal em Brasília. “Não admito que me acusem de assassinato. Nós, indígenas Tupinambá da Serra do Padeiro, nunca assassinamos ninguém. Muito pelo contrário, devolvemos a vida à região. Nós damos a vida, não a morte. Morte é o que fazem com a gente o tempo todo. Esses que nos acusam sim, esses matam. Esses trucidam”, disse aos presentes. Babau disse que sua prisão é uma estratégia governamental para travar o processo demarcatório da TI Tupi- nambá de Olivença, que é reconhecida desde 2009 como de ocupação tradicional, mas ainda aguarda a assinatura da Portaria Declaratória pelo ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. “Tudo isso pra não dar a nossa terra, pra não devolver a nossa terra, que nós temos e que nunca saímos de lá! Nós nunca saímos. Nós vivemos lá. Agora, o que a gente encontra com essa ocupação militar feita pelo governo, pra intimidar nós, Tupinambá, é uma violência extrema, uma criminalização montada, forjada, pra acabar com a gente mesmo. E o cacique Babau se tornou vítima direta, porque sou uma pessoa que vocês estão vendo. Sou claro. Mas não vou temer, e não vou temer nunca! Sou Tupinambá!”. Depois da audiência, o cacique encaminhou-se à Polícia Federal, onde foi detido. A prisão do cacique teve ampla repercussão nacional e contou com um expressivo apoio da sociedade civil, que se manifestou através das redes sociais, de notas públicas e de pedidos de liberdade para Babau enviados à justiça. Liberdade, enfim O ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Sebastião Alves dos Reis Junior concedeu, no final da tarde do dia 29, liminar determinando a liberdade imediata do cacique Babau Tupinambá, que estava sob custódia da Polícia Federal, em Brasília (DF). Conforme a análise do ministro, a decisão do juiz da Vara Criminal da Justiça de Una, que determinou a Abril – 2014 12 prisão, “pouco ou quase nada se referiu ao paciente (o cacique), tendo se limitado a fazer referências a depoimentos de não se sabe quem”. Para Reis, o acesso aos depoimentos do inquérito, e que induziram a decisão do juiz, “de forma surpreendente, estão restritos à autoridade e ao Ministério Público apenas, excluindo-se a defesa (do cacique)”. Por fim, o ministro afirma que “não há qualquer notícia de que Babau teria participado efetivamente do homicídio”. Apesar do caráter de urgência expresso na liminar, devido a questões burocráticas e problemas de comunicação com o juiz de Una, o cacique somente foi solto no dia 2 de maio. (R.S.) Entidades denunciam violações de direitos do povo Tupinambá de Olivença à ONU Q Da Redação uase um mês antes do impedimento do cacique Babau de ir ao Vaticano, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o Serviço Inter-Franciscano de Justiça, Paz e Ecologia (Sinfrajupe) e a Vivat Internacional protocolaram na Organização das Nações Unidas (ONU), no dia 27 de março, uma denúncia sobre diversas violações dos direitos do povo Tupinambá de Olivença, que mora na Serra do Padeiro, localizada no sul da Bahia. Nos últimos seis meses, cinco Tupinambá e um agricultor foram assassinados no interior da terra indígena. Um dos primeiros povos a ter contato com os portugueses, no início do processo de colonização, os Tupinambá ainda não possuem nenhum território demarcado no Brasil. Com base na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, na Convenção 169 da Organização Internacio- nal do Trabalho (OIT), na Constituição Brasileira, dentre outras legislações, em documentos da sociedade civil e considerando o histórico da situação dos índios no Brasil, as organizações demandam “urgente atenção e intervenção no sentido de instar o governo brasileiro a cumprir as obrigações internacionais e constitucionais existentes, vis-à-vis à demarcação e ao registro do território indígena Tupinambá de Olivença”. Registrando um longo histórico de violações, o povo Tupinambá de Olivença foi recentemente surpreendido com a militarização do território tradicional que ocupa e que é reconhecido pela Fundação Nacional do Índio (Funai) desde 2009. Há aproximadamente dois anos o processo de demarcação está parado em alguma gaveta do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. Ao invés de finalizar a demarcação, o governo federal, no dia 28 de janeiro deste ano, enviou para a Serra do Padeiro, próxima ao município de Sean Hawley/Arquivo Cimi ção era um dos pequenos agricultores (...) arregimentados pelo cacique Babau para ‘virar índio’ (...)”. Este pequeno agricultor chama-se Cleildo, também com mandado de prisão decretado. Conforme relata o juiz em sua decisão, Cleildo é “cria” do cacique Babau e teria sido arregimentado pela liderança em 2005. Outro cacique, Pascoal, compunha o trio que ameaçava, conforme o inquérito policial, Juracy, de forma insistente, inclusive cortando “uma das patas do cachorro de Juracy”. De acordo com os “fatos expressados pelos próprios depoimentos”, outra pessoa, conhecido por Negão da Touca, “fora executada nesse ano com mesmo modo de atuação”. “O depoente (...) tomou conhecimento que após morto Juracy teria tido a orelha cortada (...) sendo que a dita orelha era para ser entregue ao cacique Babau, pois, é uma das exigências que o mesmo faz, de que receba uma das orelhas de todas as suas vítimas, fato já comprovado em crimes na região”, diz trecho da decisão do juiz Barra. Com a determinação do juiz, além de outros três mandados de prisão arquivados em 2010 e exumados pela PF, a liderança indígena não conseguiu viajar para o Vaticano no dia 23 de abrill. A mesma celeridade dos advogados da União (AGU) em defender grandes empreendimentos e leilões de petróleo não se viu no caso de Babau Tupinambá. Tais advogados não moveram uma palha contra o mandado de prisão do indígena, expedida por um juiz substituto de 1ª Instância. Ao contrário do que ocorre quando, por exemplo, as obras da UHE Belo Monte são paralisadas judicialmente, em instâncias superiores, e em poucas horas são retomadas. Testemunhas no inquérito Documentação levada ao conhecimento da Funai, nos últimos anos, conforme relata o cacique Babau Tupinambá, revela que testemunhas ouvidas pelo inquérito policial cometeram crimes para a obtenção de benefícios do órgão indigenista. A Funai abriu um procedimento interno e suspendeu os benefícios destes indivíduos. No inquérito, a delegada inverte os papéis e envolve o cacique Babau neste crime que ele mesmo vem denunciando há tempos. A delegada, então, tomou por base testemunhos de pessoas que tiveram o esquema desmantelado pelo próprio cacique. O juiz substituto, por sua vez, é induzido ao erro sem ter em mãos nada que prove as graves acusações feitas a Babau. No depoimento, as testemunhas ouvidas pela delegada mostram total desconhecimento da organização social Tupinambá apontando Babau como cacique-geral do povo, quando cada aldeia possui um cacique. São quase trinta aldeias e mais de 20 caciques na Terra Indígena Tupinambá de Olivença, identificada entre 2009 e 2011 e que desde então aguarda a assinatura, por parte do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, da portaria declaratória. n Buerarema, a Polícia Federal e a Força Nacional de Segurança que, com o apoio da Polícia Militar da Bahia e o pretexto de realizar uma reintegração de posse, montaram uma base de operações na área. Alem das pressões dos fazendeiros e dos pistoleiros para que abandonem sua terra, os Tupinambá tiveram que enfrentar, de modo mais cotidiano, a força policial também. O clima de tensão se agravou na região depois da militarização do território. Os policiais promoveram ações de agressão, constrangimento e ameaças constantes a agricultores e indígenas. “Eles estão sempre forjando situações para nos incriminar, dando tiros de armas pesadas todas as noites. O Exército Brasileiro tem feito isso desde que entrou em nossa aldeia. Destruiu vários pertences de várias famílias indígenas”, relata um documento denúncia escrito pelo cacique Babau, no dia 24 de março. Na carta, ele descreve um episódio em que policiais chegaram a molestar uma jovem de 14 anos com o pretexto de revistá-la. A denúncia também inclui a pressão sofrida por Babau, perseguido e ameaçado de morte pelos policiais. “Os policiais fizeram muitas perguntas [aos moradores da aldeia e pequenos agricultores da região] e com as mesmas ameaças, expressando e afirmando que quer fuzilar o cacique e os seus irmãos”. Na denúncia encaminhada à ONU, as entidades chamam atenção da organização para a “inversão de prioridade do governo”, que desrespeita a legislação interna e internacional ao não garantir o uso social da terra e o direito dos indígenas, e pede auxílio na apuração dos crimes cometidos contra as comunidades. n O povo Tupinambá não tem território demarcado até hoje e enfrenta a omissão e militarização do Estado e o preconceito do Grupo Bandeirantes Grupo Bandeirantes é processado por incitar ódio contra povo Tupinambá O Grupo Bandeirantes de Comunicação vai responder a uma ação judicial por ter veiculado, em rede nacional, duas reportagens com conteúdo discriminatório e informações distorcidas sobre os conflitos fundiários no sul da Bahia, responsabilizando caciques do povo Tupinambá de Olivença por toda a sorte de crimes, inclusive a morte de um agricultor, e acusando os indígenas de invadir fazendas, ameaçar e expulsar moradores. O processo, de autoria da comunidade indígena Serra do Padeiro e do cacique Rosivaldo Ferreira da Silva, foi protocolado no dia 4 de abril na Justiça Federal em São Paulo. Nele, pede-se liminarmente o direito de resposta da comunidade Tupinambá às reportagens caluniosas, transmitidas pelo Jornal da Band e pelo sistema de radiodifusão do Grupo Bandeirantes, com o intuito de incitar o ódio e a violência da sociedade contra o povo Tupinambá de Olivença e deslegitimar a luta dos indígenas pela demarcação de seu território, já reconhecido pela Fundação Nacional do Índio (Funai) como de ocupação tradicional. As reportagens difamatórias foram ao ar nos dias 25 e 26 de fevereiro, logo após a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Joaquim Barbosa, de suspender as reintegrações de posse em sete áreas localizadas na terra Tupinambá. Sem tratar do contexto da demarcação da terra, o repórter Valteno de Oliveira declara: “Desde que a Funai resolveu criar a área para os índios a violência impera aqui na região. Um bando de caciques armados, liderados por Babau, o mais temido deles, faz o diabo”. “O Grupo Bandeirantes parece desconhecer ou evitar conhecer o massacre dos Tupinambá ao longo da história, para difundir histórias inventadas: escondendo o verdadeiro conflito e massacre na região, inclusive os mais recentes. Ademais, sem nenhuma prova associa indígenas e, em especial, os caciques, aos crimes mais esdrúxulos, e até mesmo ao crime de estupro, com vistas a incentivar o ódio social por este povo”, consta na ação contra a emissora. (C.F.) n 13 Abril – 2014 Grupo de Resistência Guarani SP N o dia 16 de abril, cerca de 50 indígenas do povo Guarani das aldeias localizadas na Grande São Paulo entraram no espaço interno do Museu Anchieta, localizado no Pateo do Collegio. Depois de surpreenderem os presentes dançando na área interna do Pateo, afirmaram que a intervenção fazia parte do lançamento da campanha pela demarcação das suas terras, denominada Resistência Guarani SP. Interromper temporariamente as atividades do Museu, que celebra o local de fundação da cidade e início da colonização, foi a forma encontrada pelos habitantes originários de São Paulo para cobrar do Ministério da Justiça a emissão das Portarias Declaratórias que garantem a demarcação das Terras Indígenas Tenondé Porã e Jaraguá, já reconhecidas pela Funai. Os indígenas também protestaram contra a decisão judicial que determina o despejo de cerca de 700 Guarani da aldeia Tekoa Pyau, localizada no Pico do Jaraguá, e que faz parte da área reivindicada como de sua posse tradicional. A alta densidade populacional e o espaço restrito impedem a população Guarani que reside na grande São Paulo de exercer o seu modo de vida tradicional TI Jaraguá e TI Tenondé Porã A população Guarani que reside na Grande São Paulo distribui-se hoje em seis aldeias, que fazem parte de duas Terras Indígenas (TI), atualmente em processo de regularização fundiária. Duas delas, denominadas Aldeia Ytu e Aldeia Pyau, localizam-se no Pico do Jaraguá e compõem A Abril – 2014 14 Comissão Guarani Yvyrupa Em SP, Guarani exigem demarcação de suas terras País Afora a Terra Indígena Jaraguá. Nelas residem cerca de 700 Guarani. A TI Jaraguá foi reconhecida inicialmente na década de 1980, mas foi então regularizada com apenas 1,7 hectare, configurando-se como a menor terra indígena do país. A aldeia Pyau fica fora dessa área e, atualmente, há uma decisão judicial vigente, que determina o despejo dos Guarani que ali habitam. A falta absoluta de espaço é o detonante de inúmeros problemas sociais e culturais. A situação dos Guarani do Jaraguá foi extremamente agravada pela construção da Rodovia dos Bandeirantes, inaugurada em 1978 sem qualquer consideração à presença indígena. A estrada suprimiu parte de suas áreas de ocupação tradicional. Em 2002, por fruto da luta das lideranças indígenas, iniciou-se um processo para correção dos limites do território, para adequá-la aos padrões da Constituição de 1988. Finalmente, no dia 30 de abril de 2013, a Fundação Nacional do Índio (Funai) aprovou e publicou no Diário Oficial da União (Portaria FUNAI/ PRES No 544) os resultados dos estudos técnicos que reconhecem cerca de 532 hectares como limites constitucionais da Terra Indígena Jaraguá, incluindo as duas aldeias atualmente ocupadas, e as áreas necessárias para a reprodução física e cultural do grupo. De acordo com o Decreto Presidencial nº 1775, que regulamenta o processo de demarcação de Terras Indígenas no país, abre-se, a partir da publicação desses estudos, período de 90 dias para que os interessados apresentem contestações administrativas. Após esse período, cabe ao ministro da Justiça publicar uma portaria declaratória que permite iniciar o processo de indenização dos ocupantes STJ reconhece legitimidade do povo Waimiri-Atroari sobre terras no Amazonas Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) confirmou no início de abril, em julgamento unânime, a sentença que reconheceu a titularidade da comunidade indígena Waimiri-Atroari sobre a posse de determinada porção de terra que havia sido doada pelo estado do Amazonas a uma empresa privada. O caso refere-se à desapropriação realizada em 1986 pela estatal Centrais Elétricas do Norte do Brasil S/A (Eletronorte), com o objetivo de construir a Usina Hidrelétrica de Balbina, no leito do Rio Uatumã, no Amazonas. Na ocasião, a ação de desapropriação foi proposta sem ter definido um sujeito passivo específico, por não se ter conhecimento sobre quem eram os donos daquela porção de terra. A empresa Serragro S/A Indústria, Comércio e Reflorestamento apresentou-se como legítima proprietária, justificando o seu título por força de uma doação efetuada pelo estado do Amazonas e pediu a execução da sen- tença para o pagamento da indenização, mas o juízo da 1ª Vara da Seção Judiciária do Amazonas reconheceu que as terras eram ocupadas desde tempos imemoriais pela etnia indígena Waimiri-Atroari – que, desse modo, deveria ser a única beneficiada pelo eventual pagamento de compensação financeira –, além de declarar que o bem é da União, nos termos do artigo 20, inciso XI, da Constituição. Após uma reviravolta no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), que reformou a sentença e mandou prosseguir a execução, por entender que a coisa julgada desse caso concreto não podia ser relativizada, a questão chegou ao STJ em quatro recursos especiais interpostos pelo Ministério Público Federal, pela Fundação Nacional do Índio (Funai), pela União e pela Eletronorte. Por fim, a Segunda Turma reconheceu que o TRF1 não poderia ter desconsiderado uma questão processual crucial para a causa: a execução havia sido extinta por sentença. (Com informações do Superior Tribunal de Justiça.) n não indígenas para devolver as áreas ao usufruto exclusivo das comunidades indígenas. A assinatura dessa portaria é uma das reivindicações dos Guarani. As outras quatro aldeias localizamse no extremo sul da metrópole, na beira da represa Billings, duas delas em Parelheiros (Aldeia Barragem e Aldeia Krukutu), uma próxima ao distrito de Marsilac (Tekoa Kalipety) e a última em São Bernardo do Campo (Aldeia Guyrapaju). As duas primeiras haviam sido reconhecidas também na década de 1980, com uma superfície de cerca de 26 hectares cada. Atualmente ,com uma população de cerca de 1.400 pessoas distribuídas entre as quatro aldeias, as áreas reconhecidas na década de 1980 tem uma densidade populacional crítica de 26 pessoas por hectare, o que também é causa da maioria dos problemas que os Guarani enfrentam. Por isso, também após a reivindicação das lideranças, iniciou-se em 2002, um estudo para a correção desses limites, de acordo com os parâmetros constitucionais. Dez anos depois, em 19 de abril de 2012, a Funai também aprovou e publicou no Diário Oficial da União (Portaria FUNAI/ PRES Nº 123) os resultados dos estudos técnicos que reconhecem cerca de 15.969 hectares como compondo os limites constitucionais da Terra Indígena Tenondé Porã, que abrange essas três aldeias da região sul. O processo agora também está nas mãos do Ministro da Justiça, de quem os Guarani reivindicam a publicação imediata da Portaria Declaratória da TI Tenondé Porã. n Justiça condena Dnit e Fatma a indenizar povo Guarani da TI Morro dos Cavalos Assessoria de Comunicação-Cimi A partir de uma ação promovida pela Procuradoria da República em Santa Catarina (MPF/SC), a Justiça Federal condenou o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) e a Fundação do Meio Ambiente de Santa Catarina (Fatma) ao pagamento de R$ 100 mil por danos morais à comunidade da Terra Indígena Morro dos Cavalos, localizada no município de Palhoça. “É uma importante vitória do ponto de vista judicial, muito expressiva. Não pelo valor da multa, mas pelo fato da condenação ter sido aplicada, aspecto fundamental neste momento que a Terra Indígena Morro dos Cavalos está sendo questionada. A ação representa a garantia de que esse território é de uso exclusivo da comunidade e importante para a própria preservação do meio ambiente”, garante Clovis Antonio Brighenti, membro do Cimi Regional Sul. A Fatma foi responsabilizada por ter expedido a licença, assim permitindo a intervenção ilegal. Já o Dnit foi condenado por permitir que a empresa retirasse minério da área sabidamente de usufruto exclusivo dos Indígenas. A Terra Indígena Morro dos Cavalos é reconhecida legalmente como bem da União de posse e usufruto exclusivos e permanentes da comunidade Indígena Guarani. Em 2002, foi assinado um convênio entre a Funai e o Dnit para implementar o programa de apoio às comunidades Indígenas Guarani residentes na área de influência da BR-101. O acordo foi uma forma de mitigação e compensação pelos impactos socioambientais decorrentes das obras de duplicação da rodovia. n Benedito Prezia N Historiador Arquivo Cimi o último dia 24 de abril faleceu Aryon Dall’Igna Rodrigues, professor emérito da Universidade de Brasília (UnB), cuja vida foi marcada por uma longa trajetória de pesquisa linguística. Considerado “a maior autoridade viva sobre línguas indígenas brasileiras”, ele foi um dos poucos linguistas brasileiros a ser mundialmente conhecido. Além de seus estudos linguísticos, contribuiu também para o desenvolvimento da pós-graduação em diversas áreas correlatas em Ciências Humanas e Linguagem. Foi coordenador do primeiro programa de pós-graduação da UnB, a convite de Darcy Ribeiro, e um dos iniciadores do Programa de Pós-Graduação do Museu Nacional e do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade de Campinas (Unicamp). Embora extremamente capacitado, Aryon escreveu pouco e muitos de seus trabalhos foram publicados graças à pressão de colegas para que o fizessem. Convém destacar que sua obra mais conhecida, Línguas brasileiras: para o conhecimento das línguas indígenas (Loyola, 4ª. ed. 2002), foi elaborada a partir de artigos publicados no Porantim ao longo de quatro anos, por sugestão de Railda Herrero, editora-chefe deste periódico naquela época. Isso foi no ano de 1985. O livro já teve quatro edições e, em 2000, integrou a lista das 20 obras literárias mais importantes do século XX, elaborada pela Câmara Brasileira do Livro. Apesar de todo seu conhecimento acadêmico, Aryon era uma pessoa bastante simples e acessível. Pessoalmente, sou muito grato a ele pela leitura atenta que fez do meu trabalho de dissertação, defendido no curso de Linguística Geral da Universidade de São Paulo (USP). Que sua trajetória de vida estimule outros pesquisadores a salvar nosso patrimônio linguístico, tão pouco conhecido e valorizado. n Homenagem Morre Hõpryre Ronore Jopikti Payaré, o grande chefe do povo Akrãtikatêjê Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e diversas outras organizações* C omo definir Hõpryre Ronore Jopikti Payaré, ou Edvaldo Valdenilson, através de palavras, além de dizer que este nobre filho da Mãe Terra foi um grande homem, um grande pai, um grande filho, um grande sábio, um grande guerreiro, um grande defensor dos direitos humanos e ambientais, um grande líder político e espiritual que sempre lutou pela vida e pelos direitos do seu povo, os Akrãtikatêjê da Montanha, e dos demais povos indígenas da Amazônia e do Brasil? Como nos reportar a este valoroso homem que, desde cedo, aprendeu o significado do que é resistir, lutar e enfrentar poderosas ameaças e desafios, a não ser lembrando que o Seu Payaré, como era conhecido por muitos aqui nessa região, foi um sobrevivente de um grande povo na Amazônia, praticamente dizimado pelo Estado brasileiro em um dos momentos mais perversos e genocidas da história desse país para com os povos indígenas do Brasil, a década de 1970, e a famigerada e assassina política de integração e desenvolvimento econômica do governo militar? De fato não conseguimos encontrar palavras para tentar descrever a tão importante personalidade política, pois tememos que nossas palavras não deem conta de traduzir a grandeza moral, ética e espiritual de alguém tão importante e grandioso para nós. É muito doloroso tentarmos escrever um texto sobre a vida do Seu Payaré, pois isso implica descrevermos uma perversa cadeia de acontecimentos violentos históricos que nunca foram reparados ou justiçados, assim como não foram assegurados os direitos para este líder e todo o seu povo. Contudo, a forma como esse homem lutou a vida toda, consolidou-o como uma verdadeira expressão viva de força, resistência e teimosia, nas últimas décadas, frente às investidas de morte do capitalismo na Amazônia. Do contato à resistência e ao etnocídio O grupo Akrãtikatêjê da Montanha foi contatado e instalado no Posto de Atração da Fundação Nacional do Índio (Funai) em 1960, com uma população de aproximadamente 75 indivíduos. Marcos Reis/Cimi Brasil perde Aryon Dall’Igna Rodrigues, seu maior linguista Com a desastrosa política de contato do Estado e a localização do aldeamento próximo à cidade de Tucuruí, o grupo sofreu um terrível processo de depopulação. De 75 indígenas apenas 10 sobreviveram, tornando-se esses, testemunhos vivos da violenta política de expansão econômica na época. Com o avanço das obras de construção da Usina Hidrelétrica Tucuruí, a Funai “removeu” os 10 membros sobreviventes do grupo para a Terra Indígena Mãe Maria, de domínio dos Parkatêjê. No entanto uma família, chefiada pelo líder Payaré, inconformada com a notícia de que o antigo e tradicional território iria ser completamente inundado pelo lago do reservatório da UHE Tucuruí, se recusou a acompanhar o restante do grupo. Permaneceram na área indígena até o final de 1983, quando, após muitas ameaças e violências sofridas, um escuso e desrespeitoso acordo financeiro com a Eletronorte obrigou forçadamente o último Akrãtikatêjê a abandonar definitivamente o seu antigo território e a se incorporar aos outros grupos Gavião, na Terra Indígena Mãe Maria, mesmo sabendo que, em um passado não muito distante, o grupo ao qual ele pertencia e o grupo Parkatêjê haviam travado algumas guerras. É nesta TI que, mesmo com todas as divergências e dificuldades, iniciam uma nova luta política e jurídica que perdura até hoje: a revisão do direito de um território para o seu grupo. Embora a justiça já tenha determinado a devolução de uma área similar àquela que foi destruída pelo Estado, na ocasião da construção da UHE Tucuruí, essa ação não foi efetivada até hoje pela empresa Eletronorte. De lá pra cá, foram mais de três décadas de luta, resistência e enfrentamento de um homem só, com sua mãe, contra todo um sistema opressor para ter o direito de ser ouvido e de denunciar o que todo o seu povo sofreu e perdeu com as políticas governamentais do Estado brasileiro de um tempo escuro, sombrio e sem perspectiva de futuro para os povos indígenas do Brasil. Através de articulações com organizações indigenistas brasileiras e instituições internacionais, como a Organização dos Estados Americanos (OEA), denunciou diversas vezes projetos de mega corporações do porte da Vale, como o Programa Grande Carajás, a duplicação da Ferrovia Carajás e a construção de outra hidrelétrica que atingiria novamente o seu povo, a UHE Marabá. Ele exigia que cada grupo Gavião pudesse ter o direito de ser consultado de forma livre, prévia e informada, conforme a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Declaração Mundial dos Povos Indígenas da Organização das Nações Unidas (ONU) e a própria Constituição Federal do Brasil, que aprendeu desde cedo a estudar, observar e a defender como instrumentos políticos de garantia de direitos humanos e transformação de estruturas injustas de poder. Sempre manifestou, também, solidariedade e apoio incondicional à luta de outros povos indígenas pela conquista e respeito aos seus direitos na Amazônia e no Brasil. Seu Payaré, indiscutivelmente foi um facilitador do Reino de Deus, do Bem Viver, da Terra Sem Males e de um outro mundo, melhor e possível para seu povo e para todos aqueles que conheceram a incomensurável nobreza de um espírito tão nobre e guerreiro. Por isso, a perda de uma personalidade tão importante, que nunca chegou a vivenciar e sentir a alegria de ver o sonho se realizar, que era de usufruir o outro território que seu povo sempre teve direito e que até hoje é negado, é algo que incomoda, que revolta e que nos enche de indignação. n * Para ler o artigo na íntegra, acesse: http:// www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news& action=read&id=7433 15 Abril – 2014 LEVANTA O POVO CHARRUA Benedito Prezia F Pesquisador da história indígena oi muito importante o resgate histórico sobre os Charrua feito pela jornalista Elaine Tavares, publicado na edição de agosto do Porantim, com o título “Levanta o povo Charrua”. Todavia tenho duas observações a fazer sobre afirmações que considero polêmicas. A primeira ocorre quando coloca-se na boca dos missionários uma frase pouco verossímil. Referindose aos Charrua, o texto afirma: “Ainda assim, apesar das lutas esporádicas, os originários eram ignorados. ‘Sem alma’, diziam os padres” (1º par., 3a coluna). Imagino que esses padres seriam os jesuítas, que conviviam com eles embora não tivessem sido aldeados. Ao longo de muitos anos de pesquisa documental nunca encontrei um texto de jesuíta ou de missionário que afirmasse que os povos da América não tivessem alma. O que afirmavam era: “não têm fé”, “não têm religião”, “não têm governo”... Seria longo enumerar passagens escritas tanto por jesuítas portugueses quanto por espanhóis do Paraguai. Mas a afirmação de que os indígenas “não tinham alma” é muito recorrente, e se escuta até mesmo de antropólogos, como constatei recentemente. Os papas que promulgaram “bulas de conquista”, com linguagem mais dura, são muito enfáticos ao falar da obrigação da catequese e do batismo desses povos, como fez Alexandre VI, em 1493: (...) “entre as outras obras bem aceitas à divina Majestade, e pelo nosso coração desejadas, existe sobretudo essa: (...) que se dilate a fé católica e a religião cristã, [e] se cuide da salvação das almas [dos nativos]” (Inter caetera, in SUESS, P. A conquista espiritual da América, 1992, p. 248). O segundo ponto é a afirmação, que me parece pouco verdadeira, de um suposto extermínio de prisioneiros Charrua feito pelos Guarani das missões. Isso teria ocorrido depois da batalha de Yi, em 1702, sob ordens do governo de Buenos Aires: “Quando os espanhóis decidiram encerrar a aliança que mantinham com os Charrua e Minuano, resolveram matar todo mundo. Para isso, de forma perversa, contaram com a ajuda APOIADORES Abril – 2014 16 dos Guarani, os quais já [se] mantinham aldeados há anos. E o resultado foi que mais de 200 Charrua pereceram sob o exército de dois mil Guarani. Outros quinhentos, levados como prisioneiros para as missões, foram assassinados pelos [Guarani] Tapes, também orientados pelos jesuítas e chefes espanhóis. Era o que os espanhóis chamavam de “limpeza dos campos” (Parte II, 2º par., 1a coluna, setembro, p. 14). Por achar forte essa afirmação, fui buscar a obra de Ítala Becker, El índio y la colonización (São Leopoldo, Inst. Anchietano de Pesquisa, 1982), em que a autora estuda, de forma bem documentada, a vida dos povos Charrua e Minuano. Por ser um trabalho de interesse dos uruguaios e argentinos foi publicado em espanhol. Sobre essa batalha assim escreve, citando Acosta y Lara, um importante pesquisador uruguaio: “En un documento relativo a batalla de Yi, se habla de um total superior a las 500 almas entre hombres, mujeres y niños, presos después de cinco días de lucha. Eran Charrúas aliados a otros grupos, problablemente Minuanes (La guerra de los Charrúas en la Banda Oriental. Período Hispánico, 1961, v. 2, doc. C, p. 38-40, apud BECKER, 1982, p. 200). Não cita nenhum massacre de prisioneiros. Entretanto, ao referir-se a uma guerra mais sistemática que, a partir de 1749, Dom Francisco Bruno de Zavala, governador da Província, dirigiu contra esse povo, relata vários combates. Um deles ocorreu em 12 de maio de 1749, perto de Queguay. Na ocasião foram presos cerca de 30 Charrua e mais de 200 animais. Meses depois, em janeiro de 1750, foram igualmente presos três caciques e 81 famílias, num total de 380 pessoas de ambos os sexos, além de 2 mil cavalos (Id., v. 5, p. 78, nota de rodapé. Apud BECKER, id., p. 201). Não se fala de massacre de prisioneiros. Como a orientação era a eliminação desse povo, se houve massacre foi por parte das autoridades espanholas. A prática de extermínio dos vencidos fica patente por ocasião da guerra guaranítica, comandada pelo comandante basco Don José Andonaegui. A partir de 1753 dirigiu o exército espanhol que, juntamente com o exército português, atacou os Sete Povos. Apoiada em Acosta y Lara, Becker escreveu: “De cuantos gobiernos presidieron los destinos españoles en el Rio de La Plata, posiblemente ninguno tuvo tanto que lidiar [lutar] contra los índios [Charrua] que el de José Andonaegui”. E reproduz a ordem que este deu nessa ocasião em relação aos Charrua: “Conserve os que são de paz e degolem todos que resistirem!”. E citando o pesquisador uruguaio, concluiu: “Traçou Andonaegui um vasto plano de redução e extermínio a ser executado na Mesopotâmia Argentina e na Banda Oriental” (Id., v. 4, p. 61-62, apud BECKER, id., p. 202). Os Charrua, pelo fato de viverem do tráfico de animais, tinham uma relação conflituosa com os Guarani, que vigiavam as fazendas jesuíticas nas pradarias gaúchas. Por isso a relação com os espanhóis era bem melhor do que a mantida com os Guarani. Isso foi observado pelo cronista da época, Bentura Carballo: “Na região da dita cidade de Santa Fé, eles [os Charrua] não atacaram os espanhóis (...), mas o que se nota é que somente contra os índios das reduções, que estão a cargo dos padres da Companhia de Jesus, é que têm guerra declarada e quando podem, os pressionam, matando-os e roubando-os” (1714, Índios Charruas, Archivo General de La Nación, v. II, F. 2, apud BECKER, id., p. 203). Assim o que se lê no trabalho de Becker é o confronto guerreiro dos Charrua que viviam entre as missões jesuíticas, que as pressionavam para o aldeamento, e o governo espanhol. Enquanto esse acreditou que os Charrua poderiam ser aliados nas guerras, contra as reduções Guarani, eles foram tolerados. No momento em que se mostraram pouco confiáveis, passaram a ser perseguidos e exterminados. Embora não tenha feito uma pesquisa mais exaustiva, não encontrei em nenhuma documentação os Guarani executando prisioneiros Charrua. Desse modo evidencia-se que a História é bem mais complexa do que ela aparenta ser e a importância de fazer resgates históricos de povos sobre os quais não há muita informação disponível, como é o caso dos Charrua. n