The Parade, instalação de Nathalie Djurberg e Hans Berg
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The Parade, instalação de Nathalie Djurberg e Hans Berg
The Parade, instalação de Nathalie Djurberg e Hans Berg RECENSÃO CRÍTICA Ana Barroso∗ The Parade, instalação de Nathalie Djurberg e Hans Berg New Museum, Nova Iorque, 6 de Maio a 26 de Agosto, 2012 Originalmente a exposição foi organizada pelo Walker Art Center, de Minneapolis (foi também editado o catálogo da exposição, com textos dos curadores e documentação sobre os vídeos e as escultura), sendo depois adaptada pela artista ao espaço do Estúdio 231 do New Museum, em Nova Iorque. Nathalie Djurberg é de origem sueca, mas vive e trabalha em Berlim. Desenvolve a sua criatividade em colaboração com Hans Berg, responsável pela música das suas instalações. Em 2009, na Bienal de Veneza, vi a sua instalação Experiment que, imediatamente, se transformou na experiência estética mais fascinante de toda a Bienal. A imersão no jardim de Éden, obscuro e encantatório de esculturas utópicas e bizarras, transformavam-me numa menina perdida, mas deslumbrada pelos arquétipos dos contos de fadas e das histórias populares. O formato infantil das suas instalações (o imaginário, o uso de plasticina e animação, a multiplicidade de cores, os materiais básicos das esculturas) desemboca num mundo irreconhecível e não-nostálgico, tornando-se uma das características mais marcantes dos seus trabalhos. A dupla de artistas tem exposto em várias galerias e museus com regularidade desde 2004 e já recebeu dois importantes prémios. O Carnegie Art Award, do Museu de Arte Contemporânea de Kiasma, em Helsínquia e o Leão de Prata, na Bienal de Veneza em 2009, precisamente pelo seu trabalho Experiment, aquele que umas semanas antes me ∗ Doutoranda em Ingleses e Americanos (Ramo de Estudos Artísticos, Especialidade do Cinema e do Audiovisual), Universidade de Lisboa. Investigadora do Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa- Estudos Americanos. PARALAJE Nº9 /RESENCIÓN Ana Barroso tinha arrastado para a descoberta de toda a sua obra anterior e posterior e me inspirou a escrever livremente sobre a sua arte. Em 2012, em Nova Iorque... “For me the world has always been more of a puppet show.” Cormac McCarthy, All Pretty Horses, p. 236 “The Parade” é uma instalação multimédia onde criaturas improváveis ensaiam comportamentos erráticos e inexplicáveis e obscuros, convidando o espectador a penetrar numa zona de pensamento perigoso. Pois existe um pensamento com força suficiente para matar ―a linguagem visual de Djurberg revela-se tão poderosa que distorce, retalha e estropia― mas raramente mata. Mas este é um pensamento no limiar da loucura. Caminhar e parar e pisar as próprias sombras. Ou caminhar e ouvir as silhuetas das esculturas destes pássaros cá em uníssono, cá bem atrás, no fundo da nuca. Observar estes bichos em todas as posições possíveis de vida e perscrutar augúrios, muitas vezes até anteriores à existência do próprio Homem. Este é também um pensamento extemporâneo. Mas há aqui muito mais do que pensamento. Se esta legião de criaturas alegóricas é um relicário do caos anterior a toda a razão, encontramo-lo em exposição num edifício elegantemente pensado e moderno, criando um território de migrações que convocam para a arte contemporânea questões muito mais salientes do que a mera especulação. Estes são bichos feitos de material muito concreto, artesanalmente, com acabamentos toscos. Aqui existe a imperfeição do concreto, do real. 317 PARALAJE Nº9 /RESENCIÓN Ana Barroso A arte de Djurberg é arriscada porque é hostil a uma simples categorização ou raciocínio lógico ― não nos deixemos defraudar: a racionalidade pode ser tão monstruosa quanto o vazio moral. A artista coloca o seu reino animal naquele jardim exíguo onde o inconsciente humano ambiciona irromper para a claridade do imediatismo. Existe um tempo em que a moralidade abandona as personagens de plasticina que calcorreiam os filmes de animação: os seus corpos viscosos desfazem-se em reminiscências de um passado animal e renascem, em surtidas, pelo labirinto do devir humano. Se o instinto se transforma em violência bruta, a intuição torna-se num processo criativo que migra livremente entre formatos e géneros artísticos. O imaginário de Djurberg está mergulhado numa violência colorida e na liberdade estética. A sua arte é destemida e despudorada e muito forte: a instalação funciona como um ritual pagão nascido das figuras imperfeitas e feitas à mão, tal e qual, como um dia Deus criou o Homem. O ovo do universo dá à luz esses corpos primordiais e misteriosos, nascidos de nenhures, mas prontos para serem tratados e alimentados. Esta é a natureza de todos os seres vivos e essa é também a natureza guerreira do Homem. A primazia do Homem sobre qualquer outra espécie é reversível, como podemos ver no vídeo “I am saving this egg for later”. Há um homem e um crocodilo que atravessam um monte vetusto e nu, mas só um poderá sobreviver. O animal enterra o homem e o olhar do espectador compreende a magnificência da plasticina: o material capaz de criar e vencer todas as criaturas deste mundo. A escuridão granítica das narrativas contrasta com um sensório complexo, ao mesmo tempo melodramático e religioso, como se o mundo se erguesse de uma abstração bíblica da qual é impossível escapar. No trabalho de Djurberg existe um anacronismo deliberado que entra em conflito com a arte contemporânea e, por essa mesma razão, embrenha-se num outro tempo, escondido de todos o presente para abrir uma bifurcação 318 PARALAJE Nº9 /RESENCIÓN Ana Barroso na modernidade. O Mal assombra a experiência do espectador e rumina nos rostos indecentes dos bonecos animados: não mais um conceito abstracto, mas um ente concreto que se levanta do chão e caminha sobre pernas ou patas. A música hipnótica atravessa a instalação como um vento imaginário e sem nome. Mas não é possível decifrar-lhe uma intenção. A algazarra ou é muda ou é caótica, não há explicação para os pássaros. Podemos falar, podemos dizer aquilo que quase todos sabemos, mas depois de ditas, as palavras nunca mais poderão ter outra ordem. Esta é uma história de ficção que decorre em concomitância com a história do Homem. Nem mais nem menos. Mas, se for ainda outra coisa, não se chega a perceber. Os pássaros, com o seu comportamento selvagem e pouco sofisticado, estão parados à espera. De repente e sem nos apercebermos, soltam-se das suas sombras para voarem em arcos delicados ou como exércitos implacáveis. Os cenários dos filmes são abstractos, e o espectador é incapaz de perceber onde e quando acontecem. São espaços fora da orla do humano: fétidos, mas indiscutíveis, que existem por si próprios. Em “I wasn’t made to play the son” (um filme difícil), os membros superiores das personagens agitam-se em fúria e os olhares tresloucados parecem querer arrancar a carne à alma. Estes são seres que se movimentam no limbo antes da proeminência do Homem sobre a Besta. Aqui apenas sobrevivem os instintos primários e a ameaça e o medo. A ninhada nasce das ruínas de uma moralidade antecipada (“Bad eggs”). Para os visitantes esta é uma exposição fabulosa e fabulatória: mundos falsos ou hipotéticos, que ― e sabe-se lá! ― podem ter atravessado os recantos insondáveis do universo ou que sempre estiveram aqui, mas sem o nosso conhecimento ou consentimento. Lá fora o ritmo alucinante da cidade urbana continua. 319 PARALAJE Nº9 /RESENCIÓN Ana Barroso Este é um reino para descobrir: da lonjura do quotidiano, um qualquer curioso e destemido pode espreitar através dos buracos abertos nos vidros do espaço da instalação e internar o olhar na penumbra, talvez a jusante. *** 320