Intervenção do Dr. Paulo Guerra

Transcrição

Intervenção do Dr. Paulo Guerra
QUALIDADE NA INTERVENÇÃO PREVENTIVA E REPARADORA
– uma ambição incansável
Paulo Guerra
Juiz Desembargador e Director-Adjunto do CEJ
Intervenção no ENCONTRO NACIONAL DE AVALIAÇÃO DAS ACTIVIDADES
DAS CPCJ NO ANO DE 2014 - 4 de junho de 2015
Introito
“Se há na terra um reino que nos seja familiar e ao
mesmo tempo estranho, fechado nos seus limites e
simultaneamente sem fronteiras, esse reino é o da infância.
A esse país inocente, donde se é expulso sempre demasiado
cedo, apenas se regressa em momentos privilegiados — a tais
regressos se chama, às vezes, poesia.”
– Eugénio de Andrade in Em Louvor das Crianças.
A minha vida é feita de rostos. De faces.
Ela chamava-se Mélanie…
Conhecia-a em Lisboa, nos idos de 96. Eu não passava de um aprendiz de
mago das regras aplicáveis aos mais pequeninos do Mundo. Tinha nome de ilha.
De bruma. A sua pouca idade era já sinónimo de ignomínia, de sofrimento atroz,
de vampiros voando à sua volta, em forma de capa materna... Tratei do seu
problema. Mais tarde, escreveu-me da ilha. Enviou-me uma fotografia dela junto
do pai que lhe encontrei em terras do sol da meia-noite. Nunca mais me largou.
Fazia primaveras a 7 de Dezembro. E vai fazer mais primaveras do que invernos,
acho eu...
Um episódio, com gestos que me mudaram como juiz.
De gestos meus que a marcaram para sempre.
Porque a vida é feita destas trocas. Em incenso e musgo.
Feitas de ponto de pérola, da bonança que escolhem os bons ventos.
Escolhi ser um mago das regras também por eles. E por elas…
Lembro-me de outras. Competia ao Juiz Paulo oficializar felicidades,
tornando uma outra petiz também filha de alguém pelo vínculo da adopção.
E nesses nomes, nesses rostos, nesses enredos que me eram entregues já
construídos, envolvia-me.
Imaginava, por vezes, histórias diferentes, finais alternativos para tanta
miséria que cabia nos seus processos, bem apertadinha. E aí, não fazia o
banquete por menos - com uma nota solta de uma ária de Mozart, gostava de
fazer entoar anjos de talento no palco dos nocturnos indianos, de organizar
viagens magníficas, de visitar Toscas abandonadas e traídas, Carmens de boleros
vestidas, valquírias estonteantes, cavalgadas heróicas ao som de trombetas,
danças de espíritos abençoados, Eurídices esvoaçantes entre pombas de Orfeu,
Aídas de sorriso negro, Otellos de coração sangrante, boémias e nibelungos,
vividos nas quatro estações de um qualquer ano bom, vivido em Xangai ou em
Viena de Áustria, qual grito apaixonado de Butterfly em busca do marinheiro que
partiu para lá das brumas do esquecimento para nunca mais voltar...
Onde estão elas? As minhas crianças?
Elas que queriam roubar as gargalhadas de Peter Pan e misturar as cores
no “graffiti” mais corrosivo da cidade, são um pouco de dia, um tanto de noite, e
buscam, qual nascente, o poente nos olhos dos pais, nas pupilas do Mundo.
Eu conhecia-as de perto, tão longe de tudo...
Eram muitas. Um pouco minhas. De ninguém. Vestiam de luz e dor e
algumas cicatrizes defronte das águas felizes com que se querem limpar das
agruras da vida.
Não tinham navios para tripular, nem bússolas. Apenas uma ânsia de
âncora, de um pouco de vento na face, vermelhusca de tanto “esconde-esconde”,
de ternura no prato, servido a toda a hora, de firmeza na ordem dada...
Eu conhecia os filhos dos outros, esses contrabandistas de afecto, piratas
de palmo e meio, sem bilhete de identidade vitalício, vítimas dos olhos vendados
por quem os não quer ver, eles que, por tão pouco, pontapeiam as esquinas das
cidades.
Chamava os pais. O contraditório judiciário assim o impunha…
Ouvidos, por vezes mostravam desamor pela filha.
Ou, pior, diziam amá-la muito, como se essa fosse a sua grande verdade.
E as crianças ouviam aquelas preces, aquelas vontades de mudar, e
acreditavam naquelas doces mentiras…
Sentia-me tantas vezes gerente de emoções, condensador de tanta maré,
por vezes cheia, quase sempre vazia…
E sabia que os tribunais têm de adoptar uma verdadeira Cultura da
Criança, prevendo perigos, não potenciando danos, diagnosticando os
verdadeiros afectos, aqueles que se escondem, não raramente, atrás de titubeantes
verbos.
Aqui o que interessa é este sabor a vida vivida, a suor frio e a mãos
quentes, feito hino ao labor de rostos que aqui marcham vivendo e resistindo, em
volta das crianças que querem uma chance de existência no futuro e um par de
asas para poderem voar em paz e tranquilidade.
E somos MELHORES por causa delas… E dos seus direitos que não nos
dão descanso!
I.
Que bom seria que pudéssemos todos, em uníssono, dizer isto:
No princípio aprenderam a ter medo e protegeram-se
Construíram casa de pedra e lama, pequenos refúgios
Onde não tardaram a sentir-se cada vez menos sós…
Sonharam que um dia um feixe de luz haveria de afagá-los.
E fascinados pelo céu, desenharam óculos pelos telhados.
Tiveram, desde logo, a companhia das estrelas.
Hoje os deuses ainda passam os olhos pelas suas casas todas as noites,
antes de adormecerem…
(Maria do Rosário Pedreira)
É verdade – apesar do clima que hoje se vive, anti-Comissões de
protecção, quero dizer-vos que tal é um bom sinal – espalhem a notícia, por favor:
25 anos após a ratificação por Portugal da Convenção dos Direitos da Criança de
Nova Iorque, as crianças são, finalmente, reis neste Portugal, nunca tanto se falou
delas e por causa delas, nunca se fizeram tantas alterações LEGAIS por causa delas,
são elas, definitivamente, pontos de agenda dos nossos políticos, dos nossos
governos…
Sem querer saber se foi a figura mediática A ou B, a verdade indesmentível
é que existem crianças violentadas, em termos sexuais, em instituições estatais de
acolhimento de crianças e jovens. Hoje, quer se queira ou não, com mais ou menos
rendilhados politizantes, fala-se disso, não se entende tal como hipocritamente
natural!
Existem crianças que morrem aos braços de seus pais, de seus naturais
protectores, que deles não são donos, em momentos por vezes inesperados, não
esperados, imprevisíveis mesmo com a melhor infraestrutura de apoio nas mãos do
Estado.
Fazem-se programas televisivos em que se tenta colocar todo o sistema de
protecção em causa só porque duas crianças infelizmente morreram aos braços
brutos dos seus pretensos protectores. Far-se-ia esse programa se tal não tivesse
ocorrido? Decerto que não, pois os milhares de crianças que são salvos todos os
dias pelos nossos Comissários e pelo sistema tal como foi gizado em 1999 não
rende audiências…
Por isso, neste início de conversa, quero homenagear as crianças que todos
os dias nos fazem correr em busca de uma graálica teia de protecção, contra o
mundo, e não só contra os pais
A minha segunda palavra de estímulo é para as inúmeras Comissões de
Protecção de Crianças e Jovens que existem neste país e que não podem ser
julgadas da forma como hoje em dia o estão a ser, em termos de se poder defender
o seu fim por causa de um mal sucedido.
Diz-se que basta uma criança salva para se dizer que valeu a pena a nossa
intervenção em matéria tutelar protectiva. Contudo, também direi que um caso mal
sucedido não é suficiente para se colocar no fogo do Inferno uma autêntica
conquista do nosso sistema de protecção, enquanto entidade intercalar e decisiva
no sistema protectivo português, com provas dadas desde 1991, ano da sua criação.
Naturalmente que há que averiguar o que correu mal numa determinada
intervenção, se o modelo dessa intervenção era a mais adequada ao caso concreto,
se as comunicações previstas na LPCJP foram todas cumpridas, se a
interdisciplinaridade foi uma realidade, sem medo de protagonismos excessivos de
alguma valência, tudo isto com vista a fazer um diagnóstico tendente a melhorar
procedimentos e a evitar erros futuros – acusam uma determinada CP de ter
confiado demais. Que não se caía agora no exagero contrário – por causa de alguns
energúmenos pais não sejam agora todos os pais colocados no mesmo nível e todas
as crianças retiradas do convívio dos pais em caso de dúvida, como que para evitar
que a comunicação social nos sacrifique na praça pública…
E sobretudo, que não se esqueça a última instância de intervenção – os
tribunais -, onde as hostilidades podem ser uma constante (já que a sua função é
exactamente dirimir conflitos), assente que o consenso é a arma de actuação das
Comissões
Por favor, não saiam dos vossos lugares, não se demitam. Se assim
for, o sofrimento da Bia, da Fátima ou do Edgar foram em vão. Não dêem razão
àqueles que vos acusam, por favor – o mesmo Estado adúltero que não vos quis
dar condições de exercer com decência as vossas funções não pode agora sacudir a
água do capote através de sindicâncias para “povo ver” – nunca se falou tanto de
Comissões como agora. E só pelas más razões. Porquê? Alguém se preocupou em
publicitar o seu trabalho, à semelhança do que se fez com as alterações/2003
relativamente ao regime da adopção que até tiveram direito a spots televisivos,
enquadrados em cegonhas que não existem?
Algumas vozes, de modo nem sempre frontal, propõem a sua extinção,
para que a protecção das crianças passasse a ser da exclusiva competência dos
tribunais ou de instituições privadas de solidariedade social (IPSS) especialmente
contratadas para o efeito. Se esta tese vingar, não tenho dúvida de que tudo piorará:
no primeiro caso, o habitual atraso da nossa justiça e a falta de assessoria técnica
dos tribunais conduzirá a discussões legais intermináveis e adiará a ainda possível
correcção da actuação de alguns pais; no caso das IPSS, a sociedade perderá grande
do seu poder de apoio junto das crianças em risco e o Estado verá cerceado o seu
poder regulador e interventor.
Acima de tudo, convém que se definam políticas concretas de protecção à
criança e à família, única forma de podermos melhorar a resposta às crianças em
perigo. “O sistema falhou”, ouvi dizer na televisão: mas há algum sistema perfeito?
Não será altura para melhorarmos a vida das crianças em vez de só discutir a sua
protecção?
II.
Passaram 14 anos sobre a revolução que, em 2001, sem cravos, decidiu
colocar em vigor duas novas Leis, anunciadas como os veículos privilegiados da
alteração dos comportamentos judiciários, habituados até então a lidarem com estas
questões da MENORIDADE com o olhar de alguma pressa e facilitismo,
proporcionais a um Direito tido como de segunda categoria, como se as causas se
medissem aos palmos.
O papel principal agora é outro, a peça que vai à cena tem outros
protagonistas – não os pais que os criam, mas os filhos que são criados e exigem o
melhor tratamento possível, pois toda a criança é rei, pois todo o cuidado é pouco
para quem tão facilmente se pode ferir ou quebrar mercê de uma fragilidade de que
ela se veste desde o dia em que lhe cortam o cordão umbilical até ao dia em que,
numa qualquer garagem, entre mais ou menos serpentinas, ela sopra dezoito velas
num bolo.
A eficácia de um sistema de promoção de direitos da criança e da sua
protecção só poderá aferir-se em função das respostas que qualitativa e
quantitativamente o Estado, enquanto Comunidade, for capaz de dar e de pôr em
prática. E, se é verdade que se verifica um desfasamento entre “a amplitude do debate
teórico sobre os direitos do homem (e acrescentamos, dos direitos da criança) e os limites
dentro dos quais se processa a efectiva protecção dos mesmos”, tal desfasamento só é
ultrapassável se as forças políticas assim o quiserem.
Sem respostas não existe reforma legislativa que resista à pressão cada vez
maior das situações de perigo em que se encontram as crianças e suas famílias na
nossa sociedade, sendo certo que, algumas soluções a serem implementadas só
produzirão efeito se houver vontade política e social em se alterar profundamente
todo o sistema de acolhimento de crianças em risco, quer institucional quer
familiar, sobretudo no que se refere aos jovens com idades compreendidas entre os
12 e os 16 anos. É nesta faixa etária que cada vez menos se consegue intervir
eficazmente quer em termos de prevenção primária - acolhimento -, quer em
termos de prevenção da violência - pré-delinquência e delinquência -, considerando
a inexistência de respostas sociais, curriculares e profissionais.
III.
São decorridos muitos anos de apresentação de relatórios da actividade das
CPCJ, após a sua remodelação nos termos da Lei de Protecção de Crianças e
Jovens em Perigo, aprovada pela Lei nº 147/99, de 1 de setembro.
Considerando o ideal sempre revelado, a quantidade e a qualidade do
trabalho produzido e a relevante componente cívica de empenhamento, que
acresce, como é notório, ao correspondente ao dever funcional, é justo, neste
momento simbólico do decénio atingido, sublinhar e homenagear o esforço
muito meritório desenvolvido por esses já milhares de nossos concidadãos que,
quotidianamente, no trabalho das CPCJ, dão o melhor de si mesmo em favor da
concretização dos direitos das nossas crianças, contribuindo para a possibilidade
de melhores e mais fecundos presentes e futuros não só das crianças, mas
também das suas famílias e comunidades.
O relatório, hoje apresentado, revela a assinalável amplitude quantitativa e
os progressos qualitativos da intervenção reparadora das CPCJ, a cargo da sua
modalidade restrita, bem como o promissor esforço para o desencadear do
indispensável aprofundamento sistemático da sua intervenção preventiva, da
responsabilidade da modalidade alargada, procurando ajudar a rasgar novos
horizontes na caminhada visando o cumprimento do seu irrecusável dever de
contributo significativo para uma cultura de prevenção.
Mostra também, naturalmente, as dificuldades e constrangimentos, que é
imperioso superar, e as necessidades de aperfeiçoamentos que é imprescindível
promover, numa postura de procura incessante de concretização da finalidade de
contínuo progresso, ao nível da cultura e da ação, em harmonia com o
indiscutível ideal que as anima.
Importa abranger nesta especial saudação as Instituições nelas
representadas e as Entidades com competência em matéria de Infância e
Juventude, o Ministério Público e os Tribunais, parceiros fundamentais no
projeto ambicioso, mas essencial, de radicar na cultura e na ação a mais-valia
contemporânea do reconhecimento da criança como Sujeito autónomo de
direito.
Juntos, numa assunção democrática das respetivas funções em
conformidade com o respeito pelo espírito de solidariedade e de serviço que o
Sistema de Promoção e Proteção pressupõe e exige, conseguiremos certamente
vencer ou diminuir as sérias dificuldades do presente e, promovendo e
defendendo denodadamente, sem desânimos, o interesse superior de cada
criança, enraizar em justificada esperança futuros cada vez mais realizados, em
que a exclusão seja vencida pela efetiva inclusão, justa e tanto quanto possível
feliz, das nossas crianças.
Aqui chegados, constatamos a importância fundamental - para um
desenvolvimento de toda a pessoa, ao nível individual e societário, como ser
autónomo, responsável, solidário e tanto quanto possível feliz - da qualidade da
infância. Qualidade com expressão desde o desejo da criança à sua concepção,
gestação e nascimento, continuando nos primeiros tempos, meses e anos de vida,
e prosseguindo nas posteriores fases do seu desenvolvimento dinâmico como
criança ou jovem, sem descontinuidades comprometedoras. Qualidade
manifestada aos níveis dos afectos, do suporte adequado à condição da criança, e
da sua educação; e reflectida na satisfação, em consonância com o seu grau de
desenvolvimento, das necessárias condições simultâneas de segurança, de
interiorização de valores e regras, e de efectivas oportunidades, criativas e
sadiamente responsabilizantes, de exercício dos seus direitos à palavra e à
participação.
A esta constatação de que a qualidade humana é fortemente subsidiária da
qualidade da infância alia-se a verificação de que sem qualidade humana não há
desenvolvimento de qualidade, seja ao nível ético, cultural, político, social ou
económico.
Junta-se o simultâneo reconhecimento, cada vez mais interiorizado da
essencialidade de uma família onde a criança seja amada como filho e que reúna as
condições e sentido das responsabilidades genericamente acima salientadas a
propósito da qualidade da infância, e da importância de um contexto comunitário de
proximidade valioso, ao nível dos afectos e da qualidade e quantidade das
oportunidades de apoio proporcionadas à criança e à família, em vários domínios
- habitacional, educacional, laboral, cultural, social e económico.
Oportunidades de apoio que envolvem o apelo e estímulo comunitário à
intervenção criativa, responsabilizada e empreendedora da família e da própria
criança (em harmonia com o seu grau de desenvolvimento), e a acção subsidiária
de suporte comunitário, sempre que necessário.
Da
interiorização
deste
circunstancialismo
resulta
uma
melhor
compreensão de que entre os direitos da criança se contam, com especial relevo,
o direito a uma família e, simultaneamente, o direito à comunidade (nomeadamente
aquela que corporiza o seu contexto de proximidade).
Este direito à comunidade assume o sentido genérico de um direito da criança
ao apoio da comunidade à interiorização e à concretização generalizada dos seus
vários direitos, e o significado específico de um direito ao seu apoio à efectivação
do direito da criança a uma família capaz, que é, por sua vez, instrumento quase
sempre fundamental à concretização de vários dos seus outros direitos, em que
avulta o direito a um desenvolvimento integral, do ponto de vista físico,
psicológico, espiritual, educacional, cultural e social.
A este direito da criança à comunidade corresponde um dever por parte da
comunidade, que se reveste de particular relevância, derivada, em grande parte, de
uma alteração muito significativa:
Anteriormente ao actual contexto da concepção da criança como Sujeito de
direito e ao seu reconhecimento também já no domínio jurídico, o interesse da
criança revestia-se de natureza predominantemente privada, essencialmente do
foro da família e das instituições de acolhimento de crianças.
Hoje, por força do sentido profundo daquela concepção e mercê das
referidas aquisições relativas à essencialidade da qualidade da infância e ao seu
reflexo na qualidade humana e na consequente qualidade do desenvolvimento, o
superior interesse da criança assume eminente natureza e relevo públicos. A todos se impõe,
embora, naturalmente, sem prejuízo do respeito pela privacidade da família e da
criança e pela amplitude da liberdade de exercício das responsabilidades
parentais. Essa liberdade é, porém, limitada, em consonância com a referida forte
componente publica do interesse da criança, pelo dever/poder de intervenção
pública, pelos órgãos competentes e verificados os requisitos constitucionais e
legais, nos casos de situações de perigo para os direitos da criança à sua
segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, se o perigo for
causado pelos próprios titulares das responsabilidades parentais ou, quando
resultando de acção ou omissão de terceiros ou da própria criança, aqueles
titulares não se oponham à situação de perigo de forma adequada a removê-lo1.
Este dever da comunidade, correspondente ao direito à comunidade de que a
criança é titular, vai encontrando, progressivamente, mais condições favoráveis à
sua interiorização e cumprimento, embora haja ainda um longo e complexo
caminho a percorrer, na concepção e implementação dos incentivos à melhoria
qualitativa e quantitativa dos correspondentes requisitos, seja ao nível cultural,
seja nos domínios científico, técnico e dos recursos.
1
Cf., v.g., art. 3º da LPCJP
Entre essas condições positivas, saliento, no contexto deste trabalho, duas
delas:
- uma relaciona-se com a divulgação - cada vez maior, e em alguns casos, em
número crescente, mais qualificada - dos direitos da criança, nos aspectos do seu
conteúdo e sentido, do eminente interesse público da sua promoção, da
prevenção do seu desrespeito e de intervenções adequadas à inadmissibilidade
ético-jurídica da sua violação. Divulgação que, acredita-se, reforçará os
sentimentos, individuais e comunitários, de afecto, respeito, consideração e
solidariedade relativamente à criança, esse Sujeito de direito simultaneamente
vulnerável e rico de potencialidades na sua caminhada para o êxito, essencial do
ponto de vista individual, familiar e comunitário, da sua candidatura à plenitude
de uma humanidade realizada;
- a outra condição reporta-se à crescente consciência da importância de os
direitos da criança constituírem direitos humanos e serem como tal reconhecidos.
Beneficiam da força destes direitos, que, no nosso tempo complexo e desafiante,
se sente, cada vez mais, ser essencial interiorizar e promover, seja na concepção,
seja na efectivação, de projectos democráticos fortemente enraizados na
comunidade e firmemente ancorados no respeito absoluto pela dignidade humana
Dignidade que é fundamento indispensável e bastante dos direitos humanos.
Direitos que, por isso, inspiram e alicerçam uma ética mínima comum, susceptível de
congregar crentes e não crentes, e seguidores de diversificadas ideologias que se
reclamem do ideal de democracia fundada no respeito por aquela dignidade.
IV.
Vai mudar a LPCJP e a lei que tutela a CN.
O que SE ESPERA DAÍ?
Embora a definição das normas jurídicas e das correspondentes políticas
relativas à promoção dos direitos da criança e à sua proteção caiba, naturalmente,
ao poder político e legislativo, parece indispensável, conforme o Comité da ONU
para os Direitos da Criança preconiza, que haja um organismo, com suficiente
representatividade das principais instituições públicas e privadas com
responsabilidades nessa matéria, que tenha atribuições, e suficientes poderes,
capacidades e meios, para garantir:
I) Uma efectiva contribuição visando:
1. A elaboração das normas legais e a definição das correspondentes
políticas integradas e coerentes, mediante a sua participação e audição em tempo
útil e a possibilidade de apresentação de propostas;
2. A planificação da intervenção promotora, preventiva e reparadora do
Estado, na sua conjugação com a das instituições e organismos públicos e
privados das comunidades.
3. A permanente reflexão e o estímulo à investigação sobre o sistema de
promoção e proteção dos direitos da criança, e à sua avaliação, em ordem ao seu
continuo aperfeiçoamento.
II) A coordenação, o acompanhamento e a avaliação dos projetos e ações
desenvolvidos em função da planificação referida em I) 2.
Em conformidade, seriam, nomeadamente, atribuições da nova
Comissão Nacional, nos domínios com reflexo na promoção e protecção
dos direitos da criança:
• Participar na elaboração das leis e na sua alteração;
• Apresentar propostas legislativas e de políticas e medidas integradas,
tendo em vista a elaboração, o acompanhamento e a avaliação de uma
Estratégia Nacional sistémica e coerente;
• Promover projetos sistémicos de prevenção universal e de prevenção
selectiva ou indicada;
• Colaborar com as entidades com competência em matéria de infância e
juventude na sua formação, quer relativamente às suas funções de
promoção e de prevenção do risco e do perigo, quer às de reparação,
em primeira linha, das situações de perigo, quer ainda como
responsáveis por actos concretos de execução de medidas de
promoção e proteção, podendo emitir recomendações sobre estes
aspectos;
• Acompanhar, apoiar, formar, promover a possibilidade de supervisão e
avaliar as comissões de protecção de crianças e jovens, contribuindo,
no respeito pela sua autonomia, para (que possam melhorar
continuamente) a qualidade do seu desempenho;
• Formular orientações e emitir diretivas genéricas relativamente à
organização e ao exercício das competências das comissões de
protecção de crianças e jovens;
• Efectuar, directamente ou mediante pedido ao Ministério Público, as
auditorias e inspeções às CPCJ permitidas pela Lei.
• Promover o estudo e a consagração legal de específicos critérios, e
respetivas metodologias de aplicação, com vista à avaliação funcional,
pelas entidades a determinar, dos membros das comissões de
protecção de crianças e jovens, e bem assim sobre os possíveis
contributos da Comissão Nacional para essa avaliação;
• Dinamizar protocolos de articulação entre as comissões de protecção
de crianças e jovens e departamentos estatais com intervenção na área
da protecção e da educação da criança, bem como com instituições
particulares de solidariedade social ou outras entidades privadas com
intervenção ou conhecimentos nessa área;
• Solicitar e acompanhar estudos de diagnóstico e de avaliação das
respostas e medidas sociais, existentes ou a promover, no âmbito do
sistema de promoção e de protecção dos direitos de crianças e jovens,
tendo em vista o seu contínuo aperfeiçoamento;
• Concertar a ação de todas as entidades públicas e privadas, estruturas e
programas de intervenção na área da promoção e proteção dos direitos
da criança, de modo a reforçar estratégias de cooperação e de
racionalização de recursos, podendo emitir recomendações nesse
sentido;
• Promover a melhoria da recolha e tratamento dos dados estatísticos
relativos à realidade da situação da criança a nível nacional,
nomeadamente no que respeita à promoção dos seus direitos e à
prevenção e reparação da sua violação;
• Recolher e tratar todos os dados disponíveis relativos à situação
referida na alínea anterior e viabilizar a sua correta divulgação;
• Ouvir, a título consultivo, sobre as matérias relacionadas com as suas
atribuições, as instituições e personalidades que entender.
Falo dos meus desejos. Ignoro se vai ficar tudo assim!
Quanto à sua composição, inserção institucional e natureza.
Composição:
• Todos os indicados na actual composição (mas com a nomeação do
Presidente pelo Primeiro Ministro) e ainda um representante do Ministério
da Administração Interna e/ou, para a finalidade de mais directa
representação, de um representante da direcção/comando de cada uma
das forças de segurança que integram as CPCJ (PSP e GNR).
• Parece-me ainda conveniente que, considerando a amplitude e exigências
da intervenção do Presidente, seja previsto um Vice-Presidente, nomeado
com base em indicação do Presidente, que teria possibilidades de naquele
delegar competências, nomeadamente na área de gestão administrativa.
Caso assim não seja entendido, talvez fosse de estatuir expressamente a
faculdade de algumas delegações no Secretário Executivo.
• Parece também indispensável a constituição de grupos de trabalho para
estudo e propostas relativamente a temas específicos.
• Será porventura ainda funcional a constituição de um núcleo mais restrito
da CN, com atribuições mais operativas e reuniões mais frequentes, de
acordo com o plano concreto das actividades da CN.
Inserção institucional:
Dependente da Presidência do Conselho de Ministros, considerando as
características e exigências de interinstitucionalidade integrada.
Natureza - a CN é uma instituição que deve gozar de autonomia
administrativa e financeira e de independência no exercício das suas atribuições
Núcleos/Delegações Regionais
Parecem-me essenciais para a indispensável proximidade no exercício das
atribuições da Comissão Nacional, nomeadamente nas referidas sob as alíneas
c),a g), i), l) e m), a exercer em harmonia com as grandes linhas definidas pela
CN, ainda que com atenção aos contextos específicos.
Parece conveniente que sejam tantas quantas as diversas regiões (norte;
centro, Lisboa e Vale do Tejo, Sul e cada uma das Regiões Autónomas, estas
com naturais especificidades).
No que tange às ECMIJ – só temos o artigo 7º - quem tem a
iniciativa da «mesa redonda»? Não há processo nas EPL mas devia haver
alguma orientação procedimental…
Mais do que mudar a lei há que operacionalizar as práticas – é uma
questão de cultura de acção! Mais uma questão de formação e sensibilidade!
A intervenção das entidades com competência em matéria de infância e
juventude é efectuada de modo consensual com os pais, representantes legais ou
com quem tenha a guarda de facto da criança ou do jovem, consoante o caso, de
acordo com os princípios e nos termos da Lei de Protecção de Crianças e Jovens
em Perigo (artigos 6.º e 7.º deste diploma).
Esta intervenção encontra preconizada tendo em conta o princípio da
subsidiariedade (artigo 4.º, alínea j) da referida Lei), face à proximidade da
intervenção e envolvimento comunitário, legitimando a sua intervenção e acção
por forma a evitar situações de perigo.
Encontram-se incluídas neste grupo as autarquias, os centros distritais e
delegações locais da segurança social, as instituições particulares de solidariedade
social, o Instituto de Apoio à Criança, a Linha SOS Criança, os estabelecimentos
de ensino, os estabelecimentos hospitalares e os centros de saúde, entre outras.
Estas entidades estão obrigadas a diversas comunicações ou participações
consoante a situação relativa à criança ou jovem assim o exija (artigos 65.º, n.os 1 e
2 e 70.º, ambos da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo).
Facilmente se compreende que o grau e os parâmetros de intervenção
destas entidades são perfeitamente diversificados pelo que se torna muito difícil
estabelecer uma linha condutora de orientação que possa abranger todas estas
situações.
Parece-me que a solução preconizada na Lei de Protecção de Crianças e
Jovens em Perigo, estabelecendo esta obrigação de intervenção e os modelos de
intervenção de forma muito ampla, é a mais adequada, reservando para cada uma
das entidades em causa e consoante o tipo de intervenção preconizada o
estabelecimento de regras próprias para essa intervenção.
Pessoalmente, situaria os parâmetros para fixação de um modelo de
intervenção em dois níveis:
a) Um primeiro nível procurando definir uma tipologia de situações de
perigo para a criança ou jovem que permitisse encontrar posteriormente modelos
de intervenção para as ECMIJ em função da sua área específica de actuação2;
2
Na definição da tipologia das situações de perigo, poderiam ser aproveitadas não apenas as orientações da Comissão
Nacional de Crianças e Jovens em Perigo mas também outros elementos já desenvolvidos ao nível da formação de
magistrados e técnicos.
b) Um segundo nível procurando definir um conjunto de orientações
específicas para cada entidade com competência em matéria de infância e
juventude (a exemplo do que foi definido para a área da saúde pelo Despacho n.º
31292/2008 da Ministra da Saúde publicado no Diário da República 2.ª série n.º
236 de 5 de Dezembro de 2008 pp. 49207-492313).
Com efeito, uma simples consulta destes documentos já definidos, permite
concluir que as soluções preconizadas para a área da saúde não serão as mais
adequadas para a área da intervenção social ou da intervenção escolar, isto sem
prejuízo de serem consideradas complementares ou justificarem uma avaliação e
um diagnóstico conjunto.
V.
O que o Direito quer abolir é o perigo. Mas não tanto o risco.
Demos um exemplo inspirado na imaginação de Mário Cordeiro: no meio
de um recreio de uma escola há uma árvore. Algumas crianças, não querem estar
perto da árvore, brincam noutros sítios. Outras brincam à sombra da árvore,
outras gostam de trepar às árvores. E dos que trepam à árvore, há uns que
gostam de ir até ao último dos últimos raminhos da árvore.
Mesmo sabendo que se calhar o ramo é mais fraco que o seu peso, mas
gostam, de ir até à vertigem. A questão é o que nós devemos fazer perante uma
situação destas. Ensinar os meninos que não se sobe às árvores? Deixá-los subir
mas pôr um STOP a meio dos ramos? Conversar com eles e explicar-lhes o que é
que pode acontecer se ficarem cá em baixo, se subirem até ao nível 1, ou se
subirem até ao nível 10? Cortar a árvore? Ou prever que apesar dos nossos
conselhos, das nossas negociações, de tudo o que eles possam saber sobre o
risco, existe sempre risco ao subir a uma árvore, e uma certa probabilidade de
lhes acontecer alguma coisa. Se calhar o melhor é começarmos a olhar para
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Complementado por diversos manuais de avaliação e diagnóstico.
factores protectores dessa criança. Ou seja, depois dos bons conselhos, se calhar
podemos pensar que algumas crianças vão mesmo subir.
E provavelmente quando somos nós a dar bons conselhos as crianças vão
subir, quando nós não estamos presentes. Que é, por um lado, para infringirem
as normas, por outro lado, para não nos darem o desgosto de dizer que não
quiseram saber para nada dos nossos bons conselhos. Resultado, vão subir
seguramente até ao último raminho da árvore.
O que é que nós podemos fazer então? Se calhar, em vez de cortar a
árvore, que lhes vai retirar uma experimentação necessária, é fazer com que se as
crianças caírem dessa árvore, caiam num chão de areia, e não num chão de betão
ou de pedra. Isso é construir um factor protector que, para um mesmo risco, para
a mesma probabilidade de cair, traz um desenlace muito menor em termos de
gravidade.
Se cair num chão de areia, pode eventualmente magoar-se, mas com
certeza muitíssimo menos do que se cair num chão de pedra. Portanto essa
gestão dos factores protectores, de criar um ambiente envolvente, positivo, onde
o risco possa ser lidado, corresponde exactamente a manter o risco diminuindo o
perigo.
E a diferença é essa.
O risco é subir à árvore, o perigo é bater com a cabeça num chão que não
absorve a energia.
E é o perigo que nós temos de eliminar e não o risco.
É evidente que podemos diminuir o risco de certas situações. Se a árvore
tem um ramo seco, manda o bom senso que o jardineiro corte o ramo seco.
Porque isso pode ser uma armadilha, ou seja, uma criança que não sabe nada de
ramos secos, nem da estrutura da árvore, vê aquele ramo como outro qualquer. E
portanto a sua avaliação primária, pessoal, da subida da árvore, está alterada, está
armadilhada porque ela não sabe que aquele ramo é diferente dos outros e pode
cair.
Portanto esse aspecto, obviamente é importante. Nós, se somos mais
conhecedores do grau de risco de certa coisa, podemos tentar diminuí-lo, mas
não aboli-lo por si só.
VI.
Contudo, que as Comissões ajam sempre na estrita legalidade, remetendo
para o Tribunal as situações em que os consentimentos não estão integralmente
dados ou em que, em obediência ao artigo 85º da LPCJP, os pais retirem os
consentimentos, depois de os terem dado numa fase inicial do processo, quando
são ouvidos quanto à concreta aplicação de uma específica medida de protecção.
Nunca devemos esquecer que os processos de promoção e protecção não são das
Comissões ou dos Tribunais, são das crianças…
Pergunto se estão a ser cumpridos rigorosamente os seguintes
mandamentos:
• o artigo 11º LPCJP – remessa da CP para os Tribunais
• as comunicações do artigo 69º e 70º
• a necessidade de efectiva fiscalização do MP (artigo 72º, n.º 2 da LPCJP)
• a aplicação do artigo 68º, e) da LPCJP – comunicação obrigatória da CP ao
MP – quando há separação
• a necessidade de articular com outras valências – ninguém bate palmas
com uma mão só!
• A necessidade de saber ler os sinais dos maus tratos – ninguém nasce
ensinado, precisa de formação, pois claro. Onde está ela? (renovação dos
quadros – artigo 26º)
• Onde está a prometida regulamentação das medidas de promoção e
protecção (artigo 35º, n.º 4 da LPCJP)?
• Consentimentos – titularidade /exercício das responsabilidades parentais
• Não oposição da criança – princípio da obrigatoriedade de informação
• Artigo 28º - vinculação das deliberações
• Artigo 71º - onde termina a acção das Comissões?
• AS
CPCJ
podem
intervir
na
regulação
do
exercício
das
responsabilidades parentais? Não – apenas diagnosticar casos de
dissociação familiar e endereçar a situação, nos termos do artigo 69º da
LPCJP, para os tribunais competentes (o da residência da criança).
• A não ser que seja caso de procedimento de urgência (artigo 91º da
LPCJP), situação em que a CPCJ deve agir de imediato para remover o
perigo, a CPCJ deve apenas fazer a comunicação prevista no artigo 69º da
LPCJP, não agindo em sede de incumprimentos de acordos gizados em
sede judiciária.
• Se houver incumprimento de cláusula do acordo de PP, gizado em sede da
Comissão, deve agir a CPCJ, revendo ou não a cláusula, ou tomando a
decisão de remeter o processo para tribunal, nos termos do artigo 11º,
alínea b) da LPCJP (não cumprimento reiterado do acordo)
• Por isso, apelo a que não se redijam cláusulas de acordos de PP que se
confundam com os clausulados em acção de regulação do exercício das RP
(residência, organização dos tempos da criança e alimentos)…
• AS INTERVENÇÕES SÃO DIVERSAS E OS OBJECTIVOS DAS
MESMAS TAMBÉM O SÃO…
VII.
Que a nossa sociedade, logo, todos nós, todas as entidades com
competência em matéria de infância e juventude [artigo 5º/alínea d) da LPCJP],
sejam capazes de estar atentos, de mobilizar sem dirigir, de apoiar os fracassos e
incentivar os êxitos, de estar com os filhos e os pais de ninguém e respeitar a sua
individualização, tornando-os frutos e troncos de alguém, usando a mesma
terminologia de que o Professor Daniel Sampaio lança mão para falar da
importância da presença dos pais junto dos filhos. Usando a velha máxima dos
Alcoólicos Anónimos, “que eu possa ter capacidade para aceitar o que não
se pode mudar, coragem para mudar o que é preciso e sabedoria para
reconhecer a diferença”.
É que, em qualquer aventura, o que importa é partir, não é chegar. Com a
convicção na voz, na pena e na disponibilidade.
Porque “para ser grande sê inteiro: nada teu exagere ou exclui. Sê todo em toda a
coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes já que assim em cada lago a lua toda brilha, porque
alta vive...”
Porque, no fundo, como diria o mais conhecido dos principezinhos, “não
há dúvida que as pessoas grandes são mesmo muitíssimo esquisitas”, competindo-nos, a
nós, aplicadores destas leis, e na sábia palavra de Pablo Neruda, “enterrar a tristeza
e os seus ossos roedores debaixo da Primavera de uma macieira”, não se tolerando seja o
que for que roube aos meninos os sonhos que só eles sabem ter!
Porque estamos prestes a conhecer as novidades legislativas que aí vêm e
que vão contender com o trabalho das CPCJ.
Porque acredito que o futuro não será feito através das descobertas da
Ciência mas depende essencialmente da descoberta dos mecanismos dos afectos,
tal como recentemente sentenciou António Alçada Batista.
Com o respeito pela humana vida e pelos direitos fundamentais de cada
homem e de cada criança, quase-homem, invocados na convicção, na voz, na
pena, na intenção, na vocação e na prática de cada um de nós, obreiro da
esperança.
Ainda a tempo de apanhar a alma das coisas...
Ainda a tempo de constatar a diferença entre uma mãe que teve 16 filhos e
outra que, afinal, teve um filho 16 vezes…
O mundo das crianças que pedem uma chance de existência no futuro, que
nos pedem um manto mágico de protecção, próprio dos super-heróis, não é
especial. É outro mundo. Entre os dois existem apenas algumas secretas
passagens, inacessíveis a quem já não tem palmo e meio de altura.
A infância é um mundo que gostávamos de ter, que não podemos ter. É
um mundo deixado para trás, um mundo que nos deixou para trás.
Resignemo-nos.
Já não somos o Calvin. Já não temos o tigre Hobbes. Tornámo-nos o pai e
a mãe, somos os alienígenas. Desconcertados, esquecidos. Incompreendidos,
incompreensíveis.
Acreditem que o mundo estranho não é o deles, é o nosso!
“Vocês dizem:
é cansativo estar com crianças.
E não há dúvida que têm razão.
Depois acrescentam:
Porque temos de nos pôr ao nível delas,
Porque temos de nos baixar, inclinar,
Curvar, tornar pequenos.
Mas aí vocês estão enganados.
O que mais cansa não é isso,
O que mais cansa é sermos obrigados a elevarmo-nos
Até à altura dos seus sentimentos.
A esticarmo-nos, a alongarmo-nos,
A ficar nos bicos dos pés.
Para não as magoar.”
Ovar, 4.junho 2015

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