união pelas letras 02 04 08 12 18 22 30 38 44

Transcrição

união pelas letras 02 04 08 12 18 22 30 38 44
divulgação
UBE
UNIÃO PELAS LETRAS
02
Editorial
04
Confraternização
capa/imagem: Romel de la torre/reprodução
08
12
Na luta por uma nova forma de representação
dos escritores brasileiros
UBE organiza evento para marcar
seu 54º aniversário
Ação
As UBEs do Nordeste brigam por mais recursos
Institucional
Entidade marca presença em eventos literários
locais, nacionais e internacionais
18
Brasilianismo
22
Entrevista
30
Gênero
38
Patrimônio
44
Entrevista
46
Quadrinhos
52
Crítica
Aumenta o interesse pela literatura brasileira fora
do país
58
Entrevista
62
Posicionamento
68
Gastronomia
72
Cinema
80
Infantojuvenil
Raimundo Carrero expõe seu processo de criação
e fala sobre suas obras
O romance histórico está em alta entre os autores
contemporâneos
Os 150 anos do Instituto Arqueológico, Histórico e
Geográfico de Pernambuco
A escritora Fátima Quintas na presidência da APL
e o pioneirismo das mulheres
Roteiristas de HQ têm se aventurado na prosa e se
firmado no mercado editorial
Como definir o que é bom e o que é ruim no
campo literário?
12
Marcos Accioly fala sobre sua obra e analisa a
cena cultural brasileira
O debate e o enfrentamento de ideias
na literatura
Mesmo tendo grande importância, a cozinha
nacional aparece muito pouco nas obras literárias
Como analisar as adaptações de livros para a
sétima arte
Escritores e ilustradores têm dedicado especial
atenção a esse público, fugindo de títulos pobres,
moralizantes e antipoéticos
ARTIGOS
28
36
50
78
86
88
Lucilo Varejão Neto
Viagem ao Brasil
Galeno Amorim
Semeando livros
Frederico Pernambucano de Mello
Foucault e as máscaras da história
Hugo Monteiro Ferreira
Questões para reflexão
Luzilá Gonçalves Ferreira
Crianças, escola, literatura e prazer
Melchíades Montenegro Filho
Patrimônio da cultura literária pernambucana
1
UBE | Editorial
O novo modelo
de representação dos
escritores brasileiros
Por Alexandre Santos
V
2
ivemos em coletividade. Essa pequena frase
encerra conhecimentos adquiridos e desenvolvidos pelo homem nos últimos 10 mil anos
de presença na Terra, explicando a evolução da
espécie humana, o desenvolvimento social, político, científico e tecnológico e explicando, também, o princípio do
aprendizado através da transmissão de conhecimentos entre comunidades, sociedades e gerações. Na vida em coletividade, surge uma espécie de conhecimento coletivo (ao
mesmo tempo, é de todos e não é de ninguém) que, atravessando os tempos, percola o tecido social, contaminando todos para orientar decisões e impor comportamentos,
sendo um dos principais responsáveis pela bem-sucedida
jornada cumprida pela humanidade. Vale observar que,
sob referências gerais como “colaboração” e “cooperação”,
a dinâmica social implícita na “vida em coletividade”, projeta-se em diversos níveis nos vários campos do relacionamento, deixando marcas positivas.
Na economia, por exemplo, em atitude que muitos chamam de “divisão do trabalho”, tomando por base vocações e formações individualizadas, a vida em coletividade
desenvolveu um modus operandi que atribui aos envolvidos
responsabilidades sobre segmentos para os quais estejam
mais bem preparados. E, na esteira desse conceito, cada
um ocupa lugar específico no palácio dos construtores. Uns
são agricultores, outros são médicos, outros são engenheiros, outros são juristas, outros são comerciantes e assim por
diante. No campo das artes literárias, não é diferente, pois
tendo sempre um nicho leitor como “alvo”, em função de
talentos e do modo como melhor contam a vida e descrevem o mundo, uns falam em linguagem poética, outros em
linguagem prosaica, uns fazem mergulhar na ficção, outros
no realismo, uns nisso, outros naquilo, compondo a pluralidade multifacetada que transborda bibliotecas por todo
o planeta. Observemos que, para oferecer o melhor resultado, o sistema decorrente da vida em coletividade precisa
funcionar em ambiente de liberdade e de despreendimento,
de modo que os talentos possam não apenas ser revelados,
mas, sobretudo, aplicados. Não faria sentido um coral que,
desconhecendo a existência de tenores, contraltos, baixos e
sopranos, ocupasse todas as posições com barítonos orientados a, conforme o caso, ajustar a modulação vocal.
Alcançada pela aplicação de contribuições individuais,
segundo princípios da cooperação e da colaboração, a produção dos bens econômicos tende a se aperfeiçoar em função da progressiva especialização dos envolvidos, reduzindo
custos e gerando bens de melhor qualidade. A produção de
um livro, por exemplo – que decorre do engajamento de um
conjunto de profissionais sobre o texto para dar forma de
objeto à obra de arte do escritor –, será tanto mais eficiente quanto mais talentosos e preparados forem os escritores,
editores, capistas, designers, impressores, publicitários e digitadores. Nessa perspectiva, para maximizar o benefício que
pode oferecer ao bem-estar, além de liberdade e desprendimento à vida em coletividade, precisa valorizar a descentralização, estimulando a revelação e o aperfeiçoamento de
talentos, e cultivar a articulação, não apenas para organizar
o processo produtivo, mas também para subordiná-lo aos
interesses da sociedade. De fato, quanto mais amplo for o
portfólio de talentos, maior será a probabilidade de sucesso
do conjunto ou, inversamente, quanto mais contido ele for,
menor será essa chance.
Acontece que nem sempre o bem-estar geral interessa a
todos. De fato, muitas vezes, por razões menores, com olhos
voltados apenas para os próprios interesses, forças conservadoras investem na concentração, de modo a controlar formas de conquista e manutenção das benesses advindas dos
processos. Vem sendo assim no Brasil. Não é outra a razão da
enorme concentração dos investimentos públicos nos segmentos culturais, na Região Sudeste do país. Além de injustos, processos que excluem brasileiros oriundos das diversas
regiões são capengas, pois, afinal de contas, sendo o Brasil
um país continental e, portanto, constituído por realidades
associadas às mais diferentes condições topográficas, climáticas, históricas, econômicas, políticas e sociais, não há
como representá-lo por padrões genéricos, como se não
houvesse diferenças ou brasileiros de algum estado ou região
tivessem características iguais ou merecimentos diferentes.
Atualmente, em Pernambuco, no nível em que atua,
fruto dos aperfeiçoamentos e depurações inerentes à “vida
em coletividade” e satisfeito com avanços
que protagonizou e impulsionou através da
abertura de espaços para as diversas manifestações que animam a cena literária contemporânea – sem buscar responsáveis para
a perda de preciosas e estratégicas posições
ou almejar a exclusividade ou hegemonia
da responsabilidade pela defesa do sistema
maior em que se insere – o movimento União
pelas letras alerta a sociedade para o recrudescimento do espírito concentrador que, além
de marginalizar e excluir muita gente boa,
tenta sufocar a emergência de entidades representativas de escritores por todo o país. É
notório que o modelo de representação concebido nos anos 1950, baseado no funcionamento de UBEs estaduais foi deturpado,
assumindo uma formulação petulante que,
mesmo sem mandato específico e claramente
estabelecido e pactuado, tenta afirmar a superioridade de uma sobre as demais, acenando a hegemonia e a exclusividade do falar em
nome dos escritores brasileiros, inclusive na
discussão de políticas nacionais e distribuição
de recursos e oportunidades.
Estabelecida a desavença, é hora de procurar soluções.
Com o espírito que animou heróis nacionais como Matias de Albuquerque e Frei
Caneca, escritores pernambucanos se insurgiram contra a usurpação da bandeira que é
de todos e, em setembro de 2011, aprovaram
novo diploma estatutário com vistas à reorganização do sistema nacional de representação dos escritores brasileiros, não apenas
disciplinando a abertura de representações
municipais e instalação de secções regionais, mas também criando o Conselho de
Articulação Nacional – instância integrada
por representantes de todos os estados da
Federação que, com a função de auxiliar a
formulação de políticas nacionais de cultura
literária, provavelmente constituirá semente
do novo sistema de representação.
É nessa ambiência – animada e estruturada no clima vivido desde 28 de setembro de
2011, quando o Congresso Brasileiro de Escritores em
Pernambuco abriu caminho para o restabelecimento do caráter nacional da representação
política dos escritores brasileiros – que a UBE
lança mais uma edição da revista da entidade.
Como a anterior, em finíssimo acabamento, a nova edição da Revista da UBE é
uma obra-prima digna de constar nas refinadas estantes daqueles que colecionem os
melhores periódicos culturais sul-america-
O movimento
União pelas
letras alerta a
sociedade para o
recrudescimento
do espírito
concentrador
nos. Além de extensa matéria sobre a questão
das UBEs e a necessidade de reestruturação
do modelo de representação nacional do escritores no Brasil, a revista apresenta reportagens sobre o dia a dia da União Brasileira
de Escritores, incluindo a solenidade que comemorou a passagem do 54º aniversário de
sua fundação e a Ordem do Mérito Literário
Jorge de Albuquerque Coelho, destacando a
galeria que reúne os escritores Ariano Suassuna, Gilvan Lemos, Fátima Quintas, Marcus
Aciolly, Raimundo Carrero, Waldênio Porto
e Frederico Pernambucano de Melo. A presença da UBE em festas, encontros e festivais
literários é objeto de um elenco de matérias
especiais, que, além da presença internacional de autores brasileiros e de editoras brasileiras na Feira de Frankfurt, contam a história do
Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico
Pernambucano, que, este ano, comemora
o sesquicentenário. Completando a pauta,
junto com artigos sobre romances históricos,
adaptações do cinema para a literatura, gastronomia e literatura, HQ e literatura infantojuvenil e seu boom, a Revista da UBE traz
entrevistas com Raimundo Carrero, Fátima
Quintas e Marcos Accioly.
Ao entregar este novo número à sociedade, a UBE reafirma o orgulho do programa
editorial que leva adiante, convicta de que, no
ritmo ao alcance das suas atividades, vem divulgando o que existe de melhor na literatura
da nossa terra. Nossa revista é um documento que merece leitura pausada, como se faz
o deguste de um bom vinho, e ser guardada
cuidadosamente, como se faz com as preciosidades literárias que nos chegam às mãos.
* Alexandre Santos é presidente da UBE.
Expediente
DIRETORIA EXECUTIVA
Presidente
Alexandre Santos
Vice-Presidente
Geraldo Ferraz
1° Vice Presidente
Sílvio Hansen
2° Vice Presidente
Melchíades Montenegro
Secretário Geral
Cássio Cavalcante
1° Secretário
Jair Martins
2° Secretário
Rachel Carrilho
Tesoureiro Geral
Rogério Generoso
1° Tesoureiro
Robson Sampaio
Administrador Geral
Salete Rego Barros
1° Administrador
Marcos de Andrade
2° Administrador
Jaqueline Torres
DEPARTAMENTOS
Música
Dulce Albert
Artes Plásticas
Fátima Almeida
Teatro
Altair Leal
Língua Portuguesa
Telma Brilhante
Intercâmbio Nacional
André de Sena
Intercâmbio Internacional
Laura Areias
Cultural
Wilmar Medeiros
Imprensa
Fernando Farias
Capacitação
Diana Rodrigues Lopes
Patrimônio e Acervo
Tavares de Lima
Pesquisa e Tecnologia
Antônio Filho Neto
Jurídico
Adalberto Arruda
Direito Autoral
Meca Moreno
Relações Institucional
Eduardo Côrtes
Social
Bernadete Bruto
Revista da UBE/PE
Produção e Edição
Mariana Oliveira / DRT 3381
Edição de Arte/Projeto Gráfico
Luiz Arrais / DRT 3054
Revisão
Maria Helena Pôrto
Impressão
CCS Gráfica e Editora
3
UBE | Confraternização
FOTOS: SANTOS
1
CASA CHEIA PARA
festejar e homenagear
evento, realizado em março, marcou as
comemorações do 54º aniversário da instituição
Por Thiago Lins
4
2
N
o Dia Nacional da
Poesia (15 de março),
a UBE fez 54 anos em
grande estilo, com
uma importante cerimônia na
sua sede, em Casa Forte, área
nobre da Zona Norte do Recife.
Diversos nomes carimbados da
literatura participaram da festa,
entre eles, o artista plástico Abelardo da Hora.
Por lá ainda passaram e foram celebrados nomes de outras
áreas, como o deputado estadual
Daniel Coelho. Ele é autor da Lei
Estadual segundo a qual 5% dos
estoques nas livrarias devem ser
compostos por escritores nordestinos, sendo 2,5% pernam-
bucanos. Coelho, “velho amigo
da Casa e dos escritores da terra”, como definiu o presidente
da UBE pernambucana, Alexandre Santos, recebeu o Voto de
Aplauso da entidade, pela aprovação da lei.
A noite foi marcada por homenagens. Foram contemplados: o Instituto Arqueológico,
Histórico e Geográfico Pernambucano, pelos seus 150 anos –
é o instituto histórico estadual
mais antigo do país –, sendo representado por sua presidente,
Margarida Cantarelli; a Sociedade Brasileira de Médicos, por
seu 40º aniversário, representada pelo presidente Cláudio Re-
2 | Alexandre
Santos (C)
coordenou a
mesa composta
por nomes
importantes da
cena local
nato Pina Moreira e a Fundação
Gilberto Freyre, celebrando 25
anos, representada pela presidente Sônia Freyre.
Além das homenagens às
entidades, houve a admissão do
escritor Frederico Pernambucano de Mello na Ordem do Mérito
Literário Jorge de Albuquerque
Coelho – o prêmio máximo que
a UBE pode conceder a um escritor. Frederico Pernambucano,
com a admissão, junta-se a um
rol que contempla medalhões
como Ariano Suassuna, Raimundo Carrero, Fátima Quintas
(que discursou antes do homenageado assumir o microfone) e
Gilvan Lemos.
5
UBE | Confraternização
FOTOS: santos
6
3
4
6
O presidente da UBE em Pernambuco, Alexandre Santos,
abriu a série de discursos. “A
UBE pretende não apenas distinguir e notabilizar entidades e
personalidades que se destacam
pelo valor e pela contribuição
que oferecem à conquista de
objetivos da coletividade, mas
também proclamar ao país símbolos e modelos a serem seguidos”, afirmou.
Santos aproveitou a oportunidade para sublinhar a discrepância que marca a distribuição
de incentivos culturais Brasil
afora. O escritor lembrou que,
em 2006, 80% dos incentivos
culturais federais foram apli-
7
5
cados nos estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo,
“numa concentração tão absurda, que até o Tribunal de Contas da União reagiu, lembrando
que a lei deveria democratizar o
acesso à cultura e não ignorar o
artigo da Constituição que obriga o governo a combater as desigualdades sociais e regionais”.
Encerrando o discurso, oportunamente intitulado Há vida inteligente e produtiva fora do eixo (referência ao Sudeste voraz), Santos
rotulou de skinheads culturais os
que agem “em favor de interesses localizados e nem sempre
compatíveis com as necessidades da sociedade que compõe
3-4 | A festa foi
prestigiada por um
público vasto, de
escritores, artistas
e intelectuais
o povo brasileiro. Que, um dia,
todos os brasileiros possam ler e
escrever a história, o sentimento e as vontades da nação para
construir uma sociedade melhor
para todos”, bradou, agradecendo em seguida.
Findo o discurso, foi composta a extensa mesa. Além do
presidente, estavam presentes
o Presidente Emérito da UBE,
Olímpio Bonald Neto, a Presidente da Academia Pernambucana de Letras, Fátima Quintas,
o Presidente da Academia de
Letras e Artes do Nordeste Brasileiro, Melchiades Montenegro
Filho e o coordenador da Rede
Integrada das Academias de Le-
tras e Artes do Nordeste, Waldênio Porto.
Completavam a mesa o Presidente da Academia de Artes,
Letras e Ciências de Olinda,
Carlos Cavalcanti, a Presidente
da Academia de Música de Pernambuco, Leny Amorim, a Presidente da Academia de Artes e
Letras de Pernambuco, Tereza
Magalhães, o Presidente da Academia Recifense de Letras, Lucilo Varejão Neto, a Presidente
da Academia de Letras do Paulista, Elizabeth Brandt e os homenageados.
Tiveram seguimento as homenagens, sempre com Santos entregando diploma, placa
ou medalha, ato que precedia o
discurso dos homenageados. O
último entre eles foi Frederico
Pernambucano de Mello, assumidamente emocionado depois
de ter visto Fátima Quintas, sua
velha amiga da Fundação Joaquim Nabuco, rememorando
histórias de sua juventude ao
microfone.
Quintas falou por 15 minutos, mas bem poderia resumir
a personalidade do colega, ao
discorrer sobre sua “delicadeza perceptiva”: “(Isso) o leva
não somente a descrever o fato,
porém a senti-lo em todas as
angulações”, declarou, sobre o
olhar profundo do pesquisador.
5 |Alexandre
Santos recebeu
seus convidados
na sede da UBE,
em Casa Forte
6-7 | A festa
foi uma
comemoração
aos 54 anos da
instituição
Mas a troca de afagos verbais foi
apenas um de muitos pontos altos naquela noite – ou de 54 anos
de história.
E o futuro? Santos mira alto,
mencionando um modelo que
propõe nada menos do que “a
reorganização política dos escritores no Brasil”, com vistas a
equilibrar a distribuição de incentivos à cultura. O modelo
deve ser discutido durante o lançamento do Conselho de Articulação Nacional, com a presença
de representantes de todos os estados. Santos afirma que o Conselho é o primeiro passo na luta
por um setor mais justo – ou pela
reforma agrária literária.
7
UBE | Ação
Democracia
literária para uns
a peleja das ubes no
nordeste por uma
distribuição justa de
recursos
Por Thiago Lins
8
A
mais antiga associação de escritores do
Brasil existe desde
1958. De lá até aqui, o
Brasil deixou de ser uma ditadura, passou de devedor a credor
do FMI e passou sem maiores
consequências pela maior crise
internacional desde 1929.
A União Brasileira dos Escritores, por sua vez, acolheu mais
de 3.700 autores sob suas hostes,
com a premissa de discutir políticas culturais que atendam os
interesses de seus associados,
em qualquer manifestação literária que seja. Embora a UBE
considere oficial e claramente a
pluralidade como uma de suas
proposições, o órgão o faz levando mais em conta o estilo do que
a origem do escritor.
A cultura passou por mudanças nos últimos anos, como
se deu com muitos aspectos
sociais país afora. Reconhecidamente, os Pontos de Cultura
servem, até hoje, como definiu o
ex-ministro Gilberto Gil, de “doin antropológico”, contemplando prioritariamente regiões que
passariam despercebidas.
Porém estamos diante de
uma iniciativa isolada, frente
ao panorama secular e viciado
da República do Café com Leite.
Originária da fusão da Sociedade
Paulista de Escritores com a Associação Brasileira de Escritores,
a UBE ainda não passou por uma
“reforma agrária” que justifique
a missão da entidade hoje.
Em Salvador, por exemplo,
há uma representação da UBE de
São Paulo, que recolhe as contribuições financeiras pagas por
escritores soteropolitanos. De
acordo com o presidente da UBE
em Pernambuco, Alexandre
Santos, o eixo Rio – São Paulo
sempre esteve à frente do órgão.
Porém, a partir da década 1980,
começou a ofuscar ainda mais
outras regiões e estados.
Um caso emblemático foram as nomeações da Câmara
Brasileira do Livro, uma ação da
vigência de Gilberto Gil. Dos 20
nomeados, quase três quartos
eram do citado eixo. “A ideia era
dar um caráter nacional, mas as
sedes eram em São Paulo e no
Rio de Janeiro”, lembra Santos.
Em ocasião de uma teleconferência na época, Santos pediu
a palavra. “Elogiei a iniciativa,
mas afirmei que na prática não
teria resultados porque, apesar
do nome nacional, esse não era
o caráter (da Câmara)”, conta
o escritor. “O nome não dava a
ela esse caráter”, reforça Santos,
9
UBE | Ação
FOTOS: divulgação
completando que a base da entidade estava sediada no velho
eixo Rio – São Paulo.
Passado o incômodo da situação, Santos aproveitou a oportunidade para se colocar à disposição como representante da
UBE. “Naquela época, a representação dos escritores no Brasil
era feita pelo representante da
UBE de São Paulo”, explica. Ou
seja, a representação nacional
não garantia acesso a incentivos.
Outro caso se deu em ocasião
do Congresso Brasileiro de Escritores,
quando Santos se surpreendeu
com a grade, que só tinha escritores cariocas e paulistas, sob
10
o pretexto de que os mesmos
teriam projeção nacional. Foi
então que a UBE de Pernambuco, em parceria com a Bienal do
Livro, realizou o Congresso Brasileiro de Escritores em Pernambuco, que
também ocorreu no segundo semestre do ano passado.
Oportunamente, em palestra
que integrava o evento, o escritor paranaense Miguel Sanches
Neto discursou sobre a literatura
fora do eixo. A UBE mudou seu
estatuto, retirando a sigla que
representava o estado de Pernambuco do seu nome. Pouco
depois, Santos destituiu da UBE
em Salvador membros ligados à
unidade paulista, autorizando os
baianos a assumirem a frente do
órgão no local. Foi um episódio
simbólico, uma vez que a UBE
paulista já havia criado a tal “sucursal” na terra de Jorge Amado.
LEGITIMAÇÃO
Uma UBE genuinamente bai­
ana já foi criada para que, lá, os
es­
critores possam se organizar
e militar. Sua consolidação, por
quanto, depende apenas dos
Miguel Sanches Neto en­
falou sobre literatura úl­timos detalhes burocráticos. Já
a legitimidade da “sucursal” será
fora do eixo, no
Congresso Brasileiro questionada por representantes locais junto ao Ministério da
de Escritores em
Cultura. Essa é uma das ações da
Pernambuco
União pelas Letras, corrente à frente
da UBE local, assumida por Santos há três anos. “Queremos a
reestruturação da representação
nacional dos escritores”, resume.
O escritor admite não existir “uma voz que abra uma caixa
preta” do mercado literário no
país. Entretanto, não faltam fatos
para ilustrar seus argumentos. O
próprio faz um esforço de memória e tenta lembrar-se de algum
conterrâneo que vá a próxima
Feira de Frankfurt, que ocorre em
2013, na Alemanha. Não consegue. Comenta o caso do livreiro
Tarcísio Pereira, que incentivou
a literatura local a ponto de até,
De tanto incentivar
a literatura
local, o livreiro
Tarcísio Pereira é
confundido como
escritor
hoje, ser confundido com um escritor propriamente dito, embora sua relação com os livros, que
já soma mais de 40 anos, nunca
tenha sido criativa, mas, sim, comercial, editorial, afetiva e empreendedora.
Sobre o episódio, Tarcísio lem­
bra com orgulho: “Quem me incentivou foi Osman (Lins, escritor
e, então, sogro)”. O autor de Avalovara já tinha ido mais de uma vez à
cidade alemã e insistia para que o
genro arriscasse. Conseguiu. Tarcísio foi quatro vezes, a primeira
no fim dos anos 1980. À época,
o intuito era simples: conquistar
o capital social que até hoje lhe é
A União pelas
Letras quer
reestruturar a
representação
nacional de
escritores
reconhecido. Na bagagem, só as
roupas azuis que sempre usou da
cabeça aos pés. Deu certo.
Tarcísio voltaria anos mais
tarde, em 1991, mas, como o
próprio Alexandre lembra, convidado pelo governo alemão. Foi
quando pôde corrigir uma injustiça literária. Se, nas vezes que
foi como visitante, se queixou de
que os estandes não representavam o Brasil como um todo,
quando foi como convidado fez
em Frankfurt o que fazia na saudosa Livro 7: abriu espaço para
os autores nordestinos. A ideia
era montar uma exposição com
a literatura regional. “O Nordeste
deveria ter vez”, sublinha Tarcísio. Expôs 150 títulos em cerca
de 20m², com autores que iam
da Bahia ao Maranhão.
Hoje, o livreiro, que também
tem experiência no ramo digital,
considera “muito mais fácil” se
lançar no mercado. “Está melhorando e vai melhorar ainda mais.
Em 2009, nós fundamos o Fórum
da Literatura do Nordeste, em Fortaleza. Alexandre estava conosco.
Nesse fórum, juntamos editores,
distribuidores, autores... Toda a
cadeia produtiva. Tivemos agora
uma reunião em Salvador, estamos nos preparando para a Feira
de Frankfurt do ano que vem (que
homenageará escritores brasileiros)”, afirma Tarcísio, à frente,
agora, da editora que carrega seu
nome, para a qual não deve procurar nomes de fora:
— Tem muito nome daqui
que pode vender bem, conclui.
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UBE | Institucional
PARA LANÇAR LUZ
sobre os escritores
divulgação
A UBE tem intensificado sua
participação em eventos literários
com o objetivo de aproximar os
autores do seu público
Por Pedro Paz
A
12
União Brasileira de
Escritores em Pernambuco, entidade
que representa os autores de obras literárias do Estado, tem como um dos seus principais objetivos o compromisso
com a cultura, defendendo os interesses dos seus escritores e estimulando-os a marcar presença
nos cenários local, regional e nacional. Dessa forma, a instituição
se faz presente nas principais
feiras literárias do Estado, destacando-se a Bienal Internacional do
Livro de Pernambuco e a Festa Literária
Internacional de Pernambuco (Fliporto).
No âmbito nacional, a realização
dos Congressos Brasileiros de Escritores em Pernambuco, dos Encontros
Estaduais de Escritores e, ainda, dos
Encontros Nacionais de Poesia Urbana –
um empreendimento que desafia
o órgão por conta da sua complexidade – é prioridade para entidade. A UBE também participará,
em 2013, da maior feira de livros
A UBE manteve
um auditório com
60 lugares, na
última Fliporto
do mundo, a de Frankfurt (Alemanha).
A UBE é feita por escritores,
para escritores e para o público que aprecia a arte literária,
além de outras linguagens que
interagem com ela, como o teatro, a música, as artes plásticas.
Contudo, o foco da instituição
é mesmo o leitor. Mas não só
isso. A entidade também deseja atingir o público não leitor. A
experiência de integrar a grade
da programação de feiras literárias trouxe o aprendizado de que
a UBE deve sempre oferecer as
condições necessárias para que
os escritores dos variados gêneros literários atuem em plenitude, a fim de que a sociedade
conheça a sua obra. E tem conseguido. As festas e feiras de literatura são espaços que devem
ser ocupados para tal empreendimento. Por isso, atuar nesses
eventos é uma forma de lançar
luz sobre o escritor, de aplacar os
13
UBE | Institucional
14
hiatos entre o fazer literário, sua
produção e distribuição. Assim
como contribuir para a formação de novos leitores e a inclusão
social de cidadãos à margem da
prática da escrita e compreensão
da leitura, ferramentas indispensáveis para desenvolvimento
de qualquer nação.
Atualmente, a UBE em Pernambuco reúne aproximadamente 1.300 escritores cadastrados. Esse elevado número
contribui para que a instituição
se apresente como uma das entidades mais amplas e com a
maior diversidade de pensamento e escrita do Brasil. Para o
presidente da Instituição, Ale-
FOTOS: divulgação
xandre Santos, estar presente
em eventos literários é essencial
para a publicidade do trabalho
que a UBE vem desenvolvendo: “Ao participar deles, a UBE
reafirma e reforça sua imagem
como entidade representativa
dos escritores, contribuindo de
maneira ativa no processo de
divulgação da produção literária
dos artistas da palavra. O maior
retorno que decorre da participação dela nas festas e feiras literárias diz respeito à imagem da
entidade perante a sociedade e,
também, aos escritores que representa”, conclui.
Durante a 8° Bienal Internacional
do Livro de Pernambuco, por exem-
Palestras e recitais
atraíram um
grande público ao
espaço da UBE
plo, realizada no terceiro trimestre de 2011, a UBE-PE protagonizou o IV Congresso Brasileiro de
Escritores em Pernambuco. Questões
como a cadeia produtiva do livro,
articulação cultural e projeções
na literatura, do mesmo modo
que o fenômeno sociocultural
do cordel e a história, imprensa e mídias alternativas na literatura foram debatidas durante
o evento. Nele, ainda, houve o
lançamento da livraria virtual da
UBE. Enquanto isso, na edição
da Fliporto do mesmo ano, que
atraiu cerca de 80 mil pessoas, a
UBE se fez presente por meio de
uma tenda localizada na cidade
de Olinda, no Sítio de Seu Reis,
no Parque do Carmo, com um
auditório para 60 lugares. Lá, foram realizadas palestras, recitais,
lançamento de livros e outras
atividades culturais. Temas que
despertam interesse como o desafio das editoras alternativas em
Pernambuco e a poesia e o teatro em A ópera do sol e G’Dausbbah’
tiveram espaço garantido na sua
programação. Nessa festa literária internacional, a instituição
fez homenagem aos escritores
pernambucanos Mauro Mota e
Amaro Quintas, que completariam 100 anos em 2011.
Para o diretor da UBE, Rogério
Generoso, o legado da entidade
e o trabalho que ela desenvolve
Ao participar
de eventos, a
UBE reforça
sua imagem
de entidade
representativa
dos escritores
nos encontros literários de menor porte também afiançam a
participação da instituição nas
principais feiras literárias de Pernambuco e do país. Segundo ele,
isso se dá, principalmente, pelo
fato de ela defender histórica e
estatutariamente o interesse de
todo escritor, independentemente de ele ser associado ou
não. “Os eventos literários têm
a percepção de que a UBE fomenta e defende aquele que é o
meio para que o produto final – o
livro –, em toda sua cadeia, seja
concluído. Por isso, a entidade
tem lugar abonado em eventos
de grande porte como Bienais,
Fliporto, e, também, em debates
O diretor Rogério
Generoso destaca
a participação
da entidade
em eventos de
pequeno porte
institucionais, sem esquecer, no
entanto, dos encontros microrregionais, ou dos novos grupos de
estudos e recitais poéticos que se
formam. Enfim, a UBE traz em si
a presença do escritor brasileiro,
radicado em Pernambuco, ou em
qualquer rincão deste país.”
O conjunto dos escritores
pernambucanos desde sempre tem contribuído para implementar políticas públicas de
incentivo à cultura, em que a
literatura se insere. A UBE tem
lutado, inclusive, com mudanças estatutárias, em defesa de
uma atuação nacional articulada e igualitária entre as diversas
entidades de todas as regiões do
Brasil que promovem o escritor
e a literatura. Tais discussões
vão desde a estética, a crítica, o
fomento até a participação nas
decisões de investimentos públicos na linguagem, norteados
pelo Plano Nacional de Cultura
do Governo Federal (PNC), por
meio do Ministério da Cultura.
Para Rogério Generoso, a implantação do Plano Nacional
de Cultura, que contempla a
dimensão simbólica, cidadã e
econômica dessa esfera, fez com
que o escritor “antenado” com
os novos paradigmas sociais estivesse incluso no processo de
disseminação cultural no país.
15
UBE | Institucional
Segundo ele, isso se deu por
meio do respeito à diversidade
de cada estado ou região, criando
as condições para o surgimento
de novas plateias, ou seja, novos
leitores, no caso da literatura.
Além disso, auxiliou entidades
como a UBE, no sentido de encaminhar aspirações legítimas da
categoria para uma distribuição
mais equânime desses incentivos. “O escritor deve estar junto e
atento a esses movimentos, procurando apoio e encaminhando
reivindicações a entidades como
a UBE. Em contrapartida, os governos, a sociedade organizada
e as entidades devem abrir um
diálogo maior com a produção
cultural de escritores, músicos
e artistas em geral, a fim de que
a criatividade do povo brasileiro
seja exercida ampla e democraticamente.”
Levando em consideração o
trabalho que a UBE vem realizando, é evidente que a sua participação em eventos literários
potencializa a publicidade das
obras dos escritores pernambucanos. O presidente da instituição, Alexandre Santos, considera que esse é o objetivo de todos
os esforços. “Os escritores – que
não são, necessariamente, especialistas em teoria literária –
alimentam os debates literários
com a principal matéria-prima
das discussões: os textos. Por
serem autores e, portanto, junto com os personagens, grandes
protagonistas da cena discutida,
os escritores dão vida aos debates literários, tornando-os mais
atraentes. Muitos deles vêm se
tornando conhecidos em função do destaque recebido nesses
eventos.
Com a consciência dessa
oportunidade, eventualmente,
única, a UBE tem cuidado em
produzir grades capazes de ampliar a exposição dos escritores,
maximizando a chance desfrutada por cada um deles.” 16
FOTOS: divulgação
Nordestinos em Frankfurt
Era 1991, quando, diante da exclusão de
editoras nordestinas no estande brasileiro
montado na Feira de Frankfurt, o livreiro e
escritor Tarcísio Pereira liderou movimento
que resultou na formação independente de
outra delegação – o outro Brasil – que representou 1.800 escritores nordestinos no
evento. Independentemente da vontade
do eixo, as editoras nordestinas se fizeram
presentes na Feira de Frankfurt, que seria
realizada naquele ano. Dois anos depois,
o Brasil foi o país homenageado. Em 2013,
exatamente 20 anos depois do primeiro
preito, o Brasil voltará a ser o país venerado do evento. E a UBE estará presente
nessa que é a maior feira de livro em todo o
mundo. A importância disso não se dá apenas pela grandiosidade do acontecimento,
mas, principalmente, por ser a cidade onde
se encontram os principais editores, autores do momento, os agentes literários mais
importantes, jornalistas especializados de
dezenas de países – além de ser o local em
que são realizados os maiores negócios do
universo das letras por meio da venda de
direitos autorais. Só para se ter uma ideia da magnitude da Feira do Livro de Frankfurt, realizada
a cada dois anos, em 2010, ela obteve um
saldo de 279,3 mil visitantes e 7.539 expositores de 111 países. Na ocasião, editores
brasileiros fizeram negócios da ordem de
US$ 170 mil. A estimativa é do projeto Brazilian Publishers, que ouviu 80% dos editores presentes na feira – que participaram
do estande coletivo da Câmara Brasileira do
Livro (CBL). Na época, segundo o levantamento, a expectativa foi de que os contatos
feitos na Alemanha renderiam ao menos
US$ 274 mil no ano seguinte. Outros dados
que tiveram destaque: 59% dos expositores ficaram satisfeitos com a qualidade
dos contatos comerciais realizados e 77%
dos expositores indicaram como “ótimo” o
atendimento que receberam da CBL durante as exposições. No total, foram realizadas
mais de 730 reuniões. Em 2013, como foi
dito anteriormente, Brasil será o convidado
de honra e terá, ali, uma excelente oportunidade de apresentar sua produção literária.
Segundo Tarcísio Pereira, ainda não existe programação oficial para o estande do
Brasil. O que existe, realmente, é um compromisso do Ministério da Cultura de que haverá um espaço destinado aos editores do
Nordeste. “Já fizemos, com a organização da
Rede Nordeste do Livro, Leitura e Literatura,
duas reuniões para debater o tema, com a
presença de representante do próprio Ministério, do Banco do Nordeste, do Programa Brazilian Publishers
e do adido cultural do Consulado da
Alemanha – e todos confirmaram
o interesse de participar do projeto
para viabilizar a nossa participação. O Instituto Delta Zero é que
vem coordenando essas reuniões e
convidando demais parceiros para
o projeto. Além da participação das
editoras, acredito que seja imprescindível a presença dos escritores
sob a coordenação das UBEs. Afinal,
a feira gira em torno de textos escritos pelos escritores.”
Para ele, esse é o momento
dos escritores de outros estados
seguirem o exemplo de Pernambuco, que tem uma UBE muito bem
estruturada, respeitada e atuante.
“O presidente e escritor Alexandre
Santos esteve conosco na reunião
realizada em Fortaleza, em 2009,
quando da fundação da nossa
Rede, na qual teve oportunidade
de falar a respeito da importância
da representatividade da classe
dos escritores. Sou testemunha da
importância e do empenho dele na
organização das UBEs nos outros
estados da região. Recentemente,
O Brasil será mais
uma vez, em 2013,
o homenageado
da Feira de
Frankfurt
no encontro da Rede em Salvador,
Alexandre deixou clara a importância da independência entre as UBEs,
mostrando que cada uma tem vida
própria, com total liberdade de organização e posicionamentos.
Frankfurt é importante não só para
a Região Nordeste, mas também
para o Brasil, pois será dessa forma
que mostraremos nossa diversidade literária para o mundo.” Tarcísio
Pereira já esteve algumas vezes em
Frankfurt, inclusive como convidado para fazer uma exposição com a
produção literária do Nordeste.
17
UBE | Brasilianismo
divulgação
Quem são os
estudiosos
da literatura
brasileira lá
fora e o que deve
ser feito para
ampliar o interesse
deles pelo que é
produzido pelo país
Por Diogo Monteiro
O Brasil fala
para o mundo?
Paulo Coelho é o
escritor brasileiro
mais traduzido no
mundo
18
N
a primeira metade
do século 18, Johann
Wolfgang von Goethe
propôs o conceito de
“Weltliteratur”, a literatura mundial ou universal, em contraposição ao de literatura nacional.
Defendia ele que a poesia é uma
propriedade comum à humanidade, capaz de surgir por toda
a parte e por todas as épocas, e
sugeria que seus pares mantivessem os olhos bem abertos para a
arte que se produzia em outras
nações. No mundo contemporâneo, não por coincidência, é na
terra natal do escritor que é realizado o maior encontro do mercado editorial no mundo, a Feira
de Frankfurt, para onde anualmente essa poesia global migra, para
ser revelada, apreciada e, é claro,
gerar lucros. Desde 1988 (a feira
ocorre desde 1949), essa vocação
cosmopolita é ressaltada pela escolha de um país convidado para
apresentar a sua literatura. Em
2013, pela segunda vez, esse país
será o Brasil. Ponto para o país
sul americano, que vê se abrir
uma larga janela para divulgação e criação de negócios na área.
Mas isso indica uma força considerável da literatura brasileira lá
fora? Estamos escrevendo para
o mundo? Se estamos, o mundo
está ouvindo?
Uma coisa é certa: os estudiosos da literatura brasileira lá fora
vêm aumentando em número. Em 2007, 13 anos depois da
primeira participação do Brasil
como convidado naquela feira,
o projeto Conexões Itaú Cultural –
Mapeamento Internacional da Literatura
Brasileira se propôs a perguntar
quem eram e o que interessava
a essas pessoas. Os dados levantados pela iniciativa permitem
arriscar algumas conclusões. A
maioria expressiva desse contingente de estudiosos (225 já foram
catalogados pelo projeto, entre
professores, pesquisadores e tradutores), atuam nos EUA, com
88 deles. A França vem em um
distante segundo lugar, com 16.
Pelo que mostram os números,
os clássicos tupiniquins ainda
lideram as pesquisas dos atuais
“brasilianistas”. Os seis mais citados são Machado de Assis, Clarice Lispector, Guimarães Rosa,
Jorge Amado, Graciliano Ramos
e Carlos Drummond de Andrade.
Só a partir de então surgem os vivos, com Milton Hatoum, Chico
Buarque e Rubem Fonseca.
Dos 225 estudiosos mapeados, 179 afirmaram se interessar especialmente pela literatura feita no país a partir dos anos
80. “Não parece existir, como se
imaginava, uma concentração
exclusiva nos autores considerados clássicos, mas, pelo contrário, predomina uma curiosidade
real pela produção contemporânea”, pontua João Cezar de Castro Rocha, professor de literatura
comparada da UERJ e consultor
do projeto.
Mas o interesse dos acadêmicos não expressa a presença brasileira entre o público leitor estrangeiro. O Index Traslationum,
lista dos livros traduzidos no
mundo organizada pela Organização das Nações Unidas (ONU),
mostra, como era de se esperar,
19
UBE | Brasilianismo
FOTOS: divulgação
Paulo Coelho como o brasileiro
mais traduzido no mundo. Jorge
Amado vem em segundo lugar.
Leonardo Boff, em terceiro. O
quarto brasileiro mais traduzido
no mundo é José Mauro de Vasconcelos, autor de Meu Pé de Laranja Lima, lembra? Clarice Lispector
vem em quinto lugar, seguida do
educador Paulo Freire.
No entanto, nomes mais recentes vêm abrindo seu caminho
na senda fechada do mercado
editorial estrangeiro. São exemplos Bernardo Carvalho, cujo Nove
noites já foi lançado em 11 países;
Patrícia Melo, que levou Elogio da
mentira para 20; e Milton Hatoum,
que teve obras transcritas para 17
idiomas.
PERFIL
20
Um dos dados mais significativos do levantamento feito pelo
Conexões Itaú Cultural diz respeito
ao perfil dos estudiosos da literatura e da cultura brasileira. A
grande maioria tem entre 50 e
60 anos; atua como professorpesquisador; informa-se sobre o
Brasil através de amigos e colegas, livros, revistas e publicações
acadêmicas; utiliza o Aurélio ou o
Houaiss como dicionário principal
em seu trabalho; e não solicitou
ajuda de instituições brasileiras para suas traduções. Mas foi
a origem desses “brasilianistas”
que mais chamou a atenção dos
coordenadores do projeto.
O termo brasilianista foi usado pela primeira vez em 1969,
por Francisco de Assis Barbosa,
na apresentação do livro Brasil: de
Getúlio a Castelo, de Thomas E. Skidmore. O Dicionário Houaiss incorporou o termo “brasilianismo”,
com a seguinte definição: “estudo de ou especialização em temas brasileiros (esp. por parte de
estrangeiros)”. Embora a imensa
maioria dos mapeados no Conexões estejam sediados nos EUA,
França, México, Alemanha e Inglaterra, nessa ordem, o maior
grupo deles (62 dos 225) nasceu
no Brasil. “Ou seja, hoje em dia,
o ‘brasilianista’, muito mais do
que nas décadas anteriores, bem
pode ser um ‘brasileiro’ radicado
no exterior”, aponta Felipe Lindoso.
APOIO
Quando da primeira participação
do Brasil como convidado especial da Feira de Frankfurt, em 1994,
o reconhecimento da literatura
brasileira no exterior, especialmente, claro, na Alemanha. Até o
final da década de 90, o país era o
primeiro entre os “terceiro mundistas” em números de traduções
no mercado alemão. Mas, depois
dessa efervescência, o ritmo da
presença brasileira no exterior
decaiu. Na interpretação do jornalista e antropólogo Felipe Lindoso, um dos coordenadores do
Conexões, faltam ações institucionais de incentivo a essa difusão da
nossa produção. “Os programas
de apoio à tradução foram interrompidos várias vezes, e as ações
se resumiram quase que à presença das editoras brasileiras nas
feiras internacionais”, avaliou.
Para Lindoso, é a continuidade nas políticas públicas de
Clarice Lispector
é a única mulher
entre os cinco
escritores
brasileiros mais
traduzidos
apoio e estímulo à difusão da literatura nacional que vai propiciar a manutenção e, mais ainda,
o aumento da presença de nossa
produção lá fora. Ele cita como
exemplos os institutos Cervantes,
na Espanha, e Camões, em Portugal. Espanhóis e portugueses
dão seguimento a uma espécie
de grandes navegações da literatura. Estes, pelo estabelecimento
de programas de tradução e edição em universidades e centros
de estudo da literatura e ensino
do português. Aqueles apoiam o
mercado editorial espanhol a penetrar na América Latina
Uma tentativa de sanar essa
falta de políticas governamentais
foi anunciada em julho do ano
passado. O Ministério da Cultura,
através da Fundação Biblioteca
Nacional, concederá, até 2020,
R$ 12 milhões em bolsas de tradução a editoras estrangeiras. Até
a participação na Feira de Frankfurt,
ano que vem, serão investidos
R$ 3,2 milhões, distribuídos entre bolsas de R$ 2 mil a R$ 8 mil,
por obra. Além das traduções,
também será dado apoio financeiro para a reedição de títulos já
traduzidos.
Outro fator que limita a difusão da literatura brasileira lá fora
seria um de seus elementos basilares: a língua. Dos pesquisadores constantes no banco de dados
do Conexões Itaú Cultural, 38,67%
acreditam que o português é um
fator impeditivo para essa divulgação. Para Felipe Lindoso, o
índice é alto para um idioma que
teria uma projeção internacional
significativa, como o nosso. “Na
verdade, revela a insularidade do
português como idioma internacional, já que a imensa maioria
(de seus falantes) está localizada
em um país, o Brasil”, analisa.
O tradutor alemão Berthold
Zilly, da Freie Universität/Lateinamerika-Institut, de Berlim,
deu uma mostra da necessidade
de se contornar esse isolamento. “O interesse pelo português é
muito grande, e se houvesse mais
oferta de cursos, haveria mais
estudiosos da língua”, respondeu
em seu questionário. Zilly já levou para o alemão livros como Os
Sertões, de Euclides da Cunha, Lavoura arcaica, de Raduan Nassar,
Memorial de Aires, de Machado de
Assis e Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto. Sua próxi-
Antônio Campos
defende a criação
do Instituto
Machado de Assis.
Berthold Zilly (D)
prepara-se para
traduzir para o
alemão Grande
Sertão: Veredas,
de Guimarães
Rosa
ma empreitada será a tradução
de Grande Sertão: Veredas, de João
Guimarães Rosa. Uma ousada
empreitada, visto que o romance
rosiano teve sua caudalosa narrativa vertida para o idioma germânico nos anos 60, pelas mãos
de Curt Meyer-Clason, praticamente em parceria com o autor,
que vaticinou o resultado como a
“tradução-mãe” de sua obra.
INSTITUTO
Entre as soluções apontadas pelos estudiosos catalogados pelo
Conexões Itaú Cultural, para incrementar a presença da literatura
brasileira no exterior, justamente
a criação de bolsas para tradução
é apontada pela maioria como a
mais importante ação a ser tomada. Em seguida, vem a abertura
de cátedras de estudos brasileiros
em universidades estrangeiras e o
aumento no número de programas de intercâmbio entre instituições do Brasil e de outros países. Em quarto lugar, uma ideia
antiga, que nunca saiu do papel: o
Instituto Machado de Assis.
Seguindo os moldes português e espanhol, há muito se
fala da criação de um Instituto
Machado de Assis, no âmbito do
Ministério das Relações Exteriores. A entidade teria a responsabilidade de centralizar as políticas
de difusão da nossa literatura e
de divulgação do nosso idioma.
Além da continuidade dessas políticas públicas, o instituto poderia, argumentam seus defensores,
aproveitar o momento de protagonismo político-econômico do
Brasil no cenário internacional
para alavancar essa divulgação,
algo que já acontece, de maneira
mais ou menos involuntária.
Um dos mais engajados defensores da ideia do instituto é o
advogado e escritor pernambucano Antônio Campos. “Essa é
uma ação urgentemente necessária. O português é um idioma
falado por 240 milhões de pessoas, no mundo. Precisamos incrementar o intercâmbio, a valorização e o diálogo nos países de
língua portuguesa”, defende. Em
2005, chegou a ser anunciado
um acordo de cooperação entre
o Instituto Camões e o ministério brasileiro da Educação para a
criação do Machado de Assis, porém, a ideia não saiu do plano das
intenções.
21
Raimundo
UBE | Entrevista
roberta guimarães
carrero
22
o premiado escritor pernambucano, que
prepara dois novos livros, fala sobre o
processo de criação literária, o papel da crítica,
dos prêmios e da importância
da fé, em sua vida
Entrevista a Débora Nascimento
“No princípio, nem pensava em religião nem nada; agora, as pessoas
falam, todas as pessoas falam e falavam em Deus. Umas para ressaltar os
prazeres do Paraíso, outras para negar a existência divina. E outras, bem
outras, que tinham orgulho de não acreditar em Deus.” O trecho é de A
minha alma é irmã de Deus, romance agraciado, em agosto de 2010, com o
Prêmio São Paulo de Literatura. O título do livro de Raimundo Carrero não é
apenas lírico e sublime, mas guarda uma característica marcante: a ligação
do autor com o divino.
O escritor pernambucano é uma pessoa religiosa e, agora, mais do que
nunca, apega-se à fé no enfrentamento dos problemas decorrentes do
acidente vascular cerebral que sofreu dois meses depois de ter recebido
a citada premiação. O derrame provocou uma paralisia nos movimentos do
lado esquerdo do seu corpo, o que fez com que, ainda hoje, o romancista
escreva teclando apenas com o dedo indicador da mão direita. Mas isso
não o impede de criar. “Eu adoeci, mas não morri. Continuo trabalhando do
mesmo jeito, graças a Deus.”, conta, ressaltando que escreve todo santo
dia e ainda voltou a dar aulas nas suas oficinas literárias e a fazer palestras
pelo país.
Seguindo esse ritmo profícuo, Carrero lançou, no ano passado, Seria
uma sombria noite severa (Record) e agora prepara mais dois livros, a novela
Tangolomango, ritual das paixões desse mundo, e Às vésperas do Sol, um livro
autobiográfico, em que abordará a difícil experiência da doença e o processo de recuperação, que vem lhe exigindo uma carga máxima de determinação, paciência e esperança. “Nesse livro, que vai entrar agora, o passado
se introduz no presente com algumas coisas, com alguns momentos de
reflexão, de análise da minha vida, de como foi minha vida, meu comportamento”, conta o escritor à UBE.
Em seu apartamento, no Bairro do Rosarinho, Carrero concedeu esta
entrevista, numa tarde de sexta-feira, antevéspera de São João, na qual
duas de suas simpáticas irmãs o visitavam. Sentado numa poltrona, em
frente à TV desligada, o autor, vestido com a camisa do evento literário Free
Porto, tinha ao seu lado direito uma mesinha repleta de objetos, entre eles
dois terços. “Rezo o terço todo dia... .” Na conversa, lembrou com emoção
do início da carreira, quando recebeu ensinamentos de Ariano Suassuna;
falou do seu processo de criação literária, da importância dos prêmios, do
papel da crítica, e também de sua maior ambição como escritor: escrever a
biografia de Jesus Cristo e de Nossa Senhora.
23
Como está o processo de escrever após
o AVC?
Teoricamente, não mudou nada,
porque costumo escrever meus
livros da seguinte forma: primeiro,
escrevo um texto inteiro – digamos
que seja um rascunho, mas é um
texto inteiro. O computador favorece
muito isso. Depois, vou entrando,
mexendo, mudando, alterando; mudo
sequências. É o que eu estou fazendo
agora. Escrevo um romance. Então,
terminei e tenho duas versões. Vou
fazer agora a versão definitiva. O que
me dá trabalho é escrever com um
dedo só. Minha mão esquerda não
trabalha.
Você não tem ninguém que o ajude na
digitação?
Não tenho e nem quero, porque
literatura é uma coisa muito particular,
privada. Você tem que fazer sozinho.
E até o ato de digitar é um ato de
criação. O digitar é muito bom. Ou o
datilografar, como era antigamente. E
isso é fundamental. O meu processo
criativo continua o mesmo. Anoto
muito pouquinho da história, crio o
nome dos personagens, depois começo
a trabalhar. Continuo trabalhando
normalmente. Estou escrevendo
dois livros: Às vésperas do Sol, que é um
livro autobiográfico sobre a minha
doença, e uma novela, que se chama
Tangolomango, ritual das paixões desse
mundo. E vou começar um novo livro,
que vai se chamar As testemunhas da
solidão, que é um livro para os leitores,
porque eles são testemunhas da
solidão do autor. Já escrevi dois para
escritores. Agora vou escrever um livro
para leitores, sobre como ler romance,
como ler prosa. Já tenho alguma
coisa anotada. Logo, logo, eu começo
e termino esse aí. Eu adoeci, mas
não morri. Continuo trabalhando do
mesmo jeito, graças a Deus.
24
Você escreve diariamente?
Diariamente. Pode ser que eu não
escreva muito, mas escrevo. Até
porque isso é uma técnica considerada
do romance. Quem escreve romance
não pode parar. Conto, não, porque
você escreve um conto hoje, um conto
FOTOS: divulgação
UBE | Entrevista
Ariano Suassuna
foi fundamental
na formação de
Carrero como
escritor
O primeiro livro
de Carrero foi a
História de Bernarda
Soledade
amanhã, outro depois e pode escrever
normalmente. Mas, no romance,
não, você tem que ter sequência,
movimento, tem que manter o ritmo.
Como vai ser esse livro autobiográfico?
Será a partir da doença ou desde os
primórdios do menino Carrero?
Não, o menino vai ser mais tarde.
Vou escrever um dia, se interessar a
alguém, a minha autobiografia. Mas
isso será depois, muito depois. Quando
eu ficar velho, eu escrevo. Tenho
muita coisa anotada. Nesse livro que
vai entrar agora, o passado se introduz
no presente com algumas coisas, com
alguns momentos de reflexão, de
análise da minha vida, de como foi
minha vida, meu comportamento,
quais as minhas conquistas, os meus
fracassos.
Depois que um livro seu está publicado,
você o relê?
Releio à medida que vão saindo
as críticas. Quando alguém bota
defeito, vou ver o meu romance, se
realmente cometi aquele erro ou se
o crítico é bobo. Mas não o leio todo,
sistematicamente, da primeira à
última página. Leio rápido algumas
partes. Não gosto muito. Reler me põe
muito nervoso e inquieto. É melhor
escrever.
Qual o impacto que a crítica tem na sua
carreira?
Em geral, a crítica é muito simpática
comigo. É natural que apareça um
crítico ou outro que bota defeito.
Porém defeito onde não pode botar,
porque se tem alguém nesse país
que entende de romance, desculpe
a minha vaidade, sou eu. Se um
crítico disser algo, eu vou ver. Quase
sempre ele está errado, mas respeito.
A crítica tem impacto sobre a minha
vida literária, no sentido de que gosto
de apreciar até que ponto minha obra
realmente está valendo a pena. É
como os prêmios. Prêmio, para mim,
é um momento de avaliação. Quando
ganho um, imagino que a crítica
avaliou meu romance. Então, volto
a ele para ver se realizei aquilo que a
premiação diz eloquentemente. Os
críticos, às vezes, cometem deslizes,
apontam erros que não existem. Não
quero falar agora, não. Estou muito
magoado com uma crítica que recebi
de Seria uma sombria noite secreta. Mas
não estou querendo falar agora, para
não ficar com raiva. Quero falar com
frieza e distanciamento. Creio que a
tarefa do crítico é iluminar a obra do
escritor – quando escurece, não vale
a pena. Não porque fale mal, falar mal
pode, não é? Não pode é errar, porque
se eu procurei acertar, ele também tem
que acertar. E, depois, é uma proposta
minha para sempre. Crítico não tem
proposta de romance, quem tem é o
escritor. O escritor é quem sabe o que
fez. O crítico vai avaliar se o que o
escritor fez é bom. Somente isso, não
ficar inventando coisas. Eu percebo
que a crítica gosta de inventar coisas.
Mas sei me distanciar disso. Fico muito
distante e muito tranquilo.
O que é melhor: ganhar prêmio ou vender
muitos livros?
O ideal é que venda bem, porque
ganhar um prêmio é ser lido por um
número reduzido de críticos. Mas
vender bem significa que é quase certo
de estar sendo lido por um grande
número de leitores, e ser lido é muito
bom, porque estamos conseguindo
maiores espaços na vida literária
do país. É melhor vender mais.
Ganhar prêmio é bom, gosto muito e
é importante, porque significa uma
avaliação da crítica, uma parte da
avaliação; significa que você acertou.
Mas vender significa que você está
alcançando um público maior. É isso
que eu quero dizer. Isso é importante:
ter um bom público, um bom número
de leitores. Não só para segurar a
continuidade da obra publicada, mas,
principalmente, para ter leitores. Ter
leitores é fundamental e decisivo.
A vendagem de livros, depois da internet,
diminuiu?
Não. Melhorou muito. Pedro Herz,
que é o dono da Livraria Cultura, diz
que a vendagem de livros melhorou.
Então, acredito. Eu mesmo passei
a vender mais. Não muito mais ou
extraordinariamente mais, mas apenas
mais. Melhorou o nível de vendagem.
Acho que o leitor brasileiro responde
bem ao escritor, comprando o seu
livro, criticando, porque hoje a gente
pode falar com o leitor diretamente,
por causa da internet. Alguns mandam
e-mails, alguns mandam até cartas
ou telegramas pedindo exemplar
autografado. É muito bom isso. Porque
estreita a relação do autor com o leitor.
A partir de qual momento você se sentiu
autenticamente um escritor?
Logo no começo da década de
1990, quando publiquei Sinfonia para
vagabundos, que foi uma resposta minha
muito boa. Costumo dizer nas minhas
aulas que o escritor só consegue
produzir uma boa obra quando
começa a perder o medo dele. Quando
começa a escrever o que quer escrever,
quando a alma dele manda, o que o
sangue pede e desenvolve isso com
grande qualidade literária, artística,
ele começa a fazer uma boa obra.
Enquanto ele tiver medo de si mesmo,
“O escritor é quem
sabe o que fez. O
crítico vai avaliar se
o que o escritor fez é
bom. Somente isso,
não ficar inventando
coisas. Eu percebo
que a crítica gosta
de inventar coisas.
Mas sei me distanciar
disso”
não faz nada, porque começa a fazer a
experiência dos outros, o sentimento
dos outros, a vontade dos outros, e
não a dele. Depois que perde o medo,
escreve bem e escreve muito. Isso é
mais do que certo.
Essa vontade de escrever ficção começou
quando?
Eu era criança ainda. Achava que ia
ser dramaturgo porque os primeiros
livros que li, o grande número, eram
peças de teatro e porque eu tinha
um irmão mais velho, chamado
Francisco, que era ator de circo e
por ser ator comprava muita peça de
teatro. Cheguei a ler Ibsen através
do que ele deixou lá em casa. Como
todo retirante, ele viajou e deixou
embaixo do balcão da casa de meu pai
muitos livros e eu comecei a ler por
aí. Quando iniciei, já quis escrever,
tinha entre nove e 11 anos. A partir daí,
comecei a escrever pequenas peças,
pequenas esquetes, besteirinhas,
depois escrevi contos. Mas eu me
realizo plenamente com o romance.
Não gosto do muito longo, mas do
curto, de 150 páginas por aí. Mas senti
o germe da literatura ainda muito cedo,
porque a minha primeira manifestação
como artista aconteceu quando era
menino – foi com a música. Eu, com
oito, nove anos de idade, tocava em
25
bandas de música e, em alguns casos,
a até em bailes, já menino. Depois
que eu fiquei adolescente fui tocar
música quase profissional numa banda
chamada Os Tártaros, na qual fiquei
dois ou três anos, e gravei. Aí, achei
que as minhas possibilidades como
escritor eram maiores. Então comecei
a escrever seriamente e não somente
como uma criança ou um diletante. A
partir daí, a “doença” me pegou e eu
não parei mais, graças a Deus.
Quem foi a primeira pessoa que o
incentivou a escrever?
Bom, foi um padre e um professor. No
Colégio Salesiano, tinha um professor
que era clérigo, um seminarista
responsável por uma turma, chamado
Aurélio Loyola – que ainda escreve
–, era responsável pelos médios. O
colégio era dividido em três categorias,
pequenos, médios e maiores. Eu
era muito novo, mas era muito alto.
Com 10 anos, tinha quase a altura
que tenho hoje. Vim para o Colégio
Salesiano em 1960 e fiquei entre
os médios. Havia um jornalzinho
mimeografado e comecei a escrever.
Na verdade, iniciei assim: esse
jornalzinho chamava-se Baby Júnior, o
nome era danado; ele fez um concurso
de poemas internos, e eu fiz um
poema. Lembro bem: o papel branco e
a caneta vermelha, escrevi e o poema
foi rejeitado sob a alegação de que não
Carrero (1º à esq.) participou
de algumas bandas de rock
na juventude
tinha rima, não tinha métrica, essas
coisas. Mas aí o padre disse: “Se quiser
escrever, você tem todo o jeito, pode
se arriscar”. Aí, eu comecei a escrever
crônicas e artigos para o jornal e tentei
escrever um ensaiozinho – eu lia
muito um autor que não é mais lido
no Brasil, chamava-se Paulo Setúbal.
Então, comecei a ler muita coisa dele e
depois disso eu escrevi um livrozinho,
um fascículo chamado O Brasil de Paulo
Setúbal. Parei, porque não prestava
mesmo. Mudei de colégio, fui para
o Diocesano. Daí, escrevi a minha
primeira peça séria, chamada A revolta
de Paulinho, que também não era grande
coisa, terminei perdendo, e tentei
tocar o barco para frente. Depois, fui
para Salgueiro e escrevi várias coisas
pequenas para representar com
minha turma. Lá, eu tinha uma banda
chamada Os cometas, que depois
passou a se chamar The Lovers’ Black
Tie. Eu escrevia pequenas peças,
lutava para escrever uma novela e
não conseguia. É tanto que eu escrevi
uma novela com um título horrível,
chamada Retalhos e momices, que era
brincadeira de menino de 10, 12 anos.
Quando saí do conjunto musical,
na adolescência, escrevi a primeira
novela séria, chamada Grande mundo
em quatro paredes, que eu levei para
Ariano Suassuna ler, e ele me deu
uma resposta que ainda hoje acho
fantástica: “Eu vou ler o seu livro.
Se eu não gostar, não significa que
ele não presta; significa que eu não
gostei. Se eu disser que não gostei, não
desanime. Toque pra frente”. Quando
voltei lá, numa terça-feira, ele disse:
“A novela não é boa mesmo, não. Mas
você tem uma coisa muito forte, que
é seu estilo, você tem um estilo forte,
uma linguagem muito forte. Prossiga
com isso. Não pare”. Aí me emprestou
Lazarillo de Tormes e Os demônios, de
Dostoievski. Voltei para casa, fui ler,
e a partir daí me tornei discípulo de
Ariano. Escrevi, depois, uma novela
Furna do cão e um livro de contos
chamado O domador de espelhos. Terminou
nada servindo, não publiquei nada,
ficou tudo guardado. Depois escrevi
A história de Bernarda Soledade, que foi
meu primeiro livro. Ariano leu, gostou
muito, achou que ela tinha a linhagem
armorial, escreveu um belíssimo
prefácio de 20 páginas, e publicamos
pela Arte Nova, que era uma editora
muito forte da época.
Ariano disse que você era um autor
armorial. Você concordou na época?
Concordei, porque, primeiro, eu queria
ser armorial, era algo que eu desejava
e pretendia, estudava para ser. Depois,
a justificativa dele foi corretíssima: o
título corresponde a título de literatura de cordel, a estrutura da novela
trabalha com símbolos, heráldica, com
as metáforas, as imagens do cordel e da
cultura sertaneja. Então, concordo com
ele. Trabalhei ainda mais dois romances, achando que eram armoriais, e
não eram. Na realidade, eu tinha me
desviado do caminho sem querer.
Ariano foi uma espécie de mentor.
Espécie, não, foi um mentor. Ensinoume tudo. Tinha a paciência de me
receber na sua casa, um dia inteiro, um
domingo inteiro. Chegava às nove da
manhã e saía às nove da noite. Hoje,
morro de pedir desculpas a ele e à sua
família, porque eu devia atrapalhar
todo mundo, não é?
26
Isso era todo domingo?
Não. Uma vez por mês. Mas, mesmo
assim, era um trabalhão. Eu trabalhava
com ele na universidade. Telefonava
FOTOS: divulgação
UBE | Entrevista
“Dom Quixote deve
ser lido por qualquer
pessoa, em qualquer
idade, em qualquer
tempo. Na hora de
morrer, tem que
lembrar: ‘Opa, não li
Cervantes’ . Suspende
a morte, para tudo, vai
ler Cervantes, depois
morre”.
dizendo: “Ariano, posso ir aí no
domingo?” Ele dizia: “Pode vir.” Só
uma vez ele disse que não podia. Mas
me recebia todas as vezes com muita
atenção, muita delicadeza. Ia à estante,
apanhava livros, mostrava-me, lia
trechos inteiros, páginas inteiras,
capítulos inteiros. A gente conversava
muito. Muitos perguntavam: “Você não
discutia, não?” Eu não estava ali para
discutir, não. Estava ali para aprender.
E aprendi muito com Ariano. Quase
90, 100% do que aprendi foi com ele.
Se é que eu aprendi, não é? Também
não posso dizer isso, para não ter a
indelicadeza de ofendê-lo, talvez.
Essa experiência com Ariano o influenciou
a querer ser um mentor também, não é?
Também. Porque ele teve a humildade
de me ensinar tudo, de ler livros
inteiros, de me emprestar obras
literárias, de ler meus originais com
uma paciência enorme, porque não é
qualquer pessoa que lê um original de
um escritor novo, anotando palavra
por palavra, de me indicar: “Carrero,
por que você não faz assim?”. E ele fez
isso. Então, eu só tenho a agradecer
muito. E também me tornei um
professor de texto justamente porque
aprendi muito e queria retribuir
ensinando aos outros e, graças a Deus,
já tenho ótimos alunos.
Qual a sua maior ambição como
escritor?
Minha maior ambição como escritor
é escrever uma biografia de Jesus
Cristo e de Nossa Senhora. Essa é uma
ambição que carrego há muito e peço
a Deus tempo para fazer, que eu não
quero fazer uma besteira qualquer,
um perfil. O pessoal tem a mania
de escrever um perfil e chamar de
biografia. Biografia é diferente de
perfil, que é só uma apreciação do
escritor ou da personalidade. Quero
trabalhar uma coisa séria, que circule
entre o histórico e o teológico.
Você tem muita fé, não é? Como foi que
começou essa ligação com a religião?
Na infância, com minha mãe. Minha
mãe era extremamente religiosa.
Meu pai, também, só que ele era
menos, porque trabalhava muito.
E, naquele tempo, mãe era quem
cuidava da casa, da criação dos filhos.
Não que meu pai fosse ausente.
De forma nenhuma. Meu pai era
muito presente. Era um interiorano,
sertanejo, sério, seguro, muito
cuidadoso com a educação dos filhos.
Ajudou muito, educou-me muito.
Muita coisa do meu caráter, da minha
personalidade, vem de papai; outra,
de mamãe. Lá em casa, nunca teve
essa coisa de filho rebelde.
Qual o livro que todo mundo deveria ler?
No Brasil, A Pedra do Reino, o grande
romance de Ariano. E, no mundo,
Cervantes. Acho que Dom Quixote deve
ser lido por qualquer pessoa, em
qualquer idade, em qualquer tempo,
não se pode perder a oportunidade
de ler. Na hora de morrer, tem que
lembrar: “Opa, não li Cervantes”.
Suspende a morte, para tudo, vai ler
Cervantes, depois morre.
Qual o momento mais difícil no processo
de escrever um livro?
Geralmente, o fim. Botar o ponto final
é muito complicado. No começo,
a gente é alimentado por todos os
sonhos, todas as alegrias – no meio,
também. Terminar é terrível. Já
finalizei dois romances na editora.
Param as máquinas, encontrei o final
ali. Foram O amor não tem bons sentimentos
e Seria uma sombria noite secreta. Isso não é
surpreendente para um autor. Conheço
muita gente que diz não conseguir
terminar um romance. Na verdade,
ninguém consegue. Só consegue,
quando publica. Em muitos casos, nem
publicado. O livro está publicado, mas
tem uma coisa que falta. Hemingway
reescreveu o final de Adeus às armas,
pelo menos, 79 vezes, para poder dar
o livro como pronto. Foi um trabalho
imenso.
Quais são os novos autores que o
surpreenderam?
A literatura brasileira recente está com
muitos e grandes autores, que ainda
estão construindo uma obra. Digo isso
com muita alegria. Tem um menino
que apareceu agora, Paulo Scott, e
escreveu um livro muito bom, muito
curioso. Gosto muito também de Joca
Terron, de Ronaldo Bressane, Marcelino
Freire, Marçal Aquino e muitos outros
dos quais não posso me lembrar
agora, mas que estão construindo
uma obra de alta qualidade. Não se
questiona mais a literatura brasileira.
Ela está tão bem-servida, que não
se questiona. Seria ingenuidade ou
maldade fazê-lo. Só uma grande
maldade ou extraordinária ingenuidade
podem levar um crítico a questionar a
qualidade da literatura brasileira.
27
Lucilo Varejão Neto
Viagem ao Brasil
28
É escritor. Autor
de De Mersault a
Meursault, Escritos
e escritores,
Histórias
verdadeiras, Entre
o homem e o
mundo e de contos
e ensaios diversos.
De junho a agosto de 1949, Albert Camus
esteve viajando pela América do Sul e em 15
de julho, ele anota em seus Journaux de voyage: Et
nous apercevons les lumières de Rio courant au long de la
côte, le “Pain de Sucre” avec quatre lumières à son sommet
et, sur le plus haut sommet des montagnes qui semblent
écraser la ville, un immense et regrettable Chist lumineux
( E nós percebemos as luzes do Rio correndo ao
longo da costa, o “Pão de Açúcar” com quatro
luzes em seu cume e, sobre o mais alto cume das
montanhas, que parecem esmagar a cidade, um
imenso e lamentável Cristo luminoso.
Lendo os seus Journaux de voyage, nós
percebemos o quanto o Brasil foi inspirador, mas
também muito cansativo. Aqui, ele conheceu
a macumba, dançou o samba, frequentou um
candomblé, visitou vilas de pescadores com
suas habitações de palha, conheceu procissões
e romarias com os seus adeptos, pagando
promessas, observou os hábitos e costumes,
tanto do povo como da burguesia enfadonha e
vulgar. Por outro lado, conviveu com uma boa
parte da intelectualidade brasileira, inclusive
com o poeta Murilo Mendes, em alguns
ambientes em que ele próprio reconheceu que:
M. connaît et cite Char et trouve que depuis Rimbaud,
c’est notre poète le plus important. J’en suis contente
(M. conhece e cita Char e acha que, depois de
Rimbaud, é nosso poeta mais importante. Eu
estou contente com isso).
E, também, quando em casa de uma
romancista e tradutora brasileira atenta que: la
maîtresse de maison traduit Proust et la culture française
de tous est vraiment profonde (a dona da casa
traduz Proust e a cultura francesa de todos é
verdadeiramente profunda).
Algumas das observações de Camus acerca
do país são interessantes e não podem deixar
de serem notadas, tais como a que fez em
relação aos motoristas do Rio de Janeiro, em um
tempo em que havia as chamados lotações: Les
automobilistes brésiliens sont des fous joyeux ou de froids
sadiques. La confusion et l’ anarchie de cette circulation
ne sont compenseés que par une loi : arriver le premier,
reprodução
coûte que coûte (Os automobilistas brasileiros são
uns loucos felizes ou frios sádicos. A confusão e
a anarquia deste trânsito não são compensadas
senão por uma lei: chegar primeiro, custe o que
custar).
Ou, ainda, sobre os afrontamentos
decorrentes da má distribuição de renda
existente em nosso país: Le contraste le plus frappant
est fourni par l’étalage de luxe des palaces et des buildings
modernes avec les favelas, à cent mètres quelquefois du
luxe, sortes de bidonville accrochés au flancs des collines,
sans eau ni lumière, où vit une population misérable noire
et blanche (O contraste mais chocante é fornecido
pela ostentação de luxo dos palácios e dos
edifícios modernos com as favelas, a 100 metros
algumas vezes, espécie de favelas pregadas nos
flancos das colinas, sem água nem luz, onde
vive uma população miserável negra e branca). A natureza brasileira não deixa apenas os
nativos deslumbrados com a sua riqueza natural,
encontramos referências, por parte do visitante,
não só às belezas das aves como às das praias:
...la baie de Rio aperçue cent fois sous les aspects les plus
différents. Et les immenses plages du Sud, au sable blanc
et aux vagues émeraudes, qui s’allongent, désertes...( ...a
baía do Rio avistada cem vezes sob os aspectos
os mais diferentes. E as imensas praias do Sul,
com a areia branca e as ondas esmeraldas, que
se alongam, desertas...).
E ainda: finalement bains dans une eau pure et
fraîche (finalmente banho em uma água pura e
fresca).
O Recife também esteve no roteiro de
Camus.
Quand nous atterrisons à Recife, quatre heures et démie
après, la porte de l’avion s’ouvre sur une terre rouge dévoré
par la chaleur (Quando nós aterrisamos no Recife,
quatro horas e meia após, a porta do avião se
abre sobre uma terra vermelha devorada pelo
calor).
Porém o recém-chegado em sua
peregrinação pelos sítios históricos descobre:
Admirables églises coloniales, où le blanc domine... La
chapelle Dorée en particulier est admirable. Les azulejos
sont ici parfaitement conservés (Admiráveis igrejas
coloniais, onde o branco domina... A Capela
Dourada em particular é admirável. Os azulejos
estão aqui perfeitamente conservados).
E conclui : J’aime Recife, décidément. Florence
des Tropiques, entre fôrets et cocotiers, ses montagnes
rouges, ses plages blanches (Gosto do Recife,
decididamente. Florença dos Trópicos,
entre florestas e coqueiros, suas montanhas
vermelhas, suas praias brancas).
Mas a mãe do Recife também é visitada:
Nous allons voir Olinda, petite baie, aux vieilles églises.
Très beau couvent de Saint–François (Nós vamos
ver Olinda, pequena baía, com velhas igrejas.
Aqui, ele conheceu a
macumba, dançou o
samba, frequentou um
candomblé, visitou
vilas de pescadores
com suas habitações
de palha, conheceu
procissões e romarias
com os seus adeptos
Muito belo convento de São
Francisco).
Também foram feitas
observações sobre o bumbameu-boi que Camus taxou
de spectacle extraordinaire, o
cavalo-marinho e outras
manifestações da nossa cultura
popular. Vale ressaltar que
uma boa parte das observações
camusianas feitas no Brasil
estão aproveitadas em sua
novela La Pierre qui pousse, dentro
de L’Exil et Le Royaume.
29
reprodução
UBE | Gênero
Nas entrelinhas
da História
o romance histórico, que encontrou
terreno fértil no brasil, parece
viver um boom, sendo bastante
valorizado entre os autores de hoje
Q
30
uando um estudante
vai fazer vestibular,
ele antes precisa decidir seu futuro no
preenchimento do formulário de
inscrição. Entre as várias opções
de carreira, ele poderá escolher
o curso de Letras ou História. Na
prova, Literatura aparece num
canto e História em outro. Já com
a cabeça raspada, o estudante
perceberá que os centímetros que
separavam os cursos no formulário se transformam em paredes na universidade, isolados em
seus respectivos departamentos.
Na biblioteca, o aluno precisará
se deslocar de uma estante a outra para encontrar livros de História e Literatura, devidamente
separados em seções distintas
pelo sistema de catalogação. Mas
essa divisão que hoje se apresenta de maneira concreta, física até,
tinha suas fronteiras borradas no
passado.
Apesar da Grécia Antiga já
fazer a distinção entre a criação
ficcional e o discurso mimético,
o teórico Luiz Costa Lima mostra, no artigo História e Literatura,
que uma névoa ainda confundia
os leitores no começo do século
16. A invenção e a imaginação
conviviam ao lado dos fatos verídicos nos relatos de viagem, pas-
Por Thiago Corrêa
savam-se por verdade de acordo
com a habilidade e a capacidade
retórica do autor em construir
uma narrativa coerente, plausível para o entendimento dos
leitores da época. Porém, com o
início das grandes navegações, o
aprimoramento das cartas geográficas e a acessibilidade maior
às viagens, um parâmetro foi
criado, elevando a resistência
dos leitores, cujas crenças deixaram de ser tão suscetíveis à
fantasia. O mundo já não parecia
tão vasto assim para nos abrigar
junto a criaturas tão diferentes.
No artigo, Costa Lima apresenta
registros do século 17 em que leitores já tachavam certos relatos
de viagem de mentirosos.
Obra que ilustra bem essa
confusão mental típica dos momentos de transição é o clássico
Dom Quixote, publicado no início
século 17. A obra de Miguel de
Cervantes apresenta o problema
do período ao trabalhar com um
personagem que incorpora como
verdade as novelas de cavalaria,
confundindo ficção com realidade, enxergando gigantes ao invés
de moinhos de vento. “Em Dom
Quixote há uma reafirmação do
valor da ficcionalidade enquanto
31
UBE | Gênero
32
discurso, enquanto construção
de um mundo como poderia ser,
e não tal como ele é Dom Quixote
reafirma o valor da ficcionalidade pela via da ironia. Por meio
do delírio do personagem ele
desconstrói as novelas de cavalaria e reafirma a construção de
um mundo que só existe na cabeça do personagem”, explica o
professor da pós-graduação em
Letras da UFPE, Anco Márcio Tenório Vieira.
Aos poucos, o incômodo foi
se transformando numa necessidade dos viajantes e cientistas
em diferenciar seus trabalhos, levando-os a romper com a escrita
alegórica em busca de uma linguagem mais verossímil, dotada
de maior credibilidade. Deu-se
então a bifurcação: Literatura de
um lado, História do outro. Gradativamente, ao longo dos últimos quatro séculos, elas se dis-
imagenS: divulgação
Dom Quixote
confunde ficção e
realidade.
A criação do
gênero é atribuída
a Walter Scott,
acima, à direita
tanciaram de tal forma, que, hoje,
as encontramos entrincheiradas
em suas respectivas estantes nas
livrarias e bibliotecas.
No entanto, a solidez dessas
fronteiras se revela frágil, quando
abrimos os livros. Do lado historiográfico, há algumas décadas a
corrente da Nova História e os teóricos pós-modernos passaram a
relativizar o acesso à verdade, por
ser fruto de construções discursivas e sujeitas a subjetividades
individuais. O historiador americano Hayden White é um dos
que encampam essa discussão,
jogando luz na estrutura narrativa
utilizada por seus colegas para a
construção do discurso historiográfico. A tese de White, baseando-se nos estudos sobre o gênero
textual do canadense Northrop
Frye, é que a escolha da forma
empregada já implicaria numa
série de subjetividades. Entre os
pós-modernos, temos a também
canadense Linda Hutcheon, que
põe em suspeita a possibilidade
de se alcançar a verdade universal
e totalizante, demolindo a ideia
de um único centro (homem,
branco, ocidental, heterossexual)
para a adoção de várias perspectivas, cada qual com suas verdades
e pontos de vista diferentes.
gênese do romance histórico
Já a Literatura mergulha na subjetividade do eu e sua relação
com o terreno do real ganha novos tons. De acordo com o teórico húngaro Georg Lukács, as
mudanças ocorridas na sociedade europeia durante o período
romântico permitiram que uma
nova variante do romance fosse criada, no caso, o romance
histórico. A criação da variante é atribuída ao escocês Walter Scott, autor de obras como
Waverley (1814), Rob Roy (1819) e
Ivanhoé (1819). Neles, Scott apresenta características que iriam
fundar a variante romance histórico.
A mais representativa delas
está na recusa em se valer da
perspectiva oficial (dos heróis e
governantes) para abordar fatos históricos, abordando-os
apenas pelo olhar de personagens comuns, numa tentativa de
mostrar como esses fatos afetam
o cotidiano das pessoas. “O romance histórico não deve mostrar nem existências individuais
nem acontecimentos históricos, mas a interseção de ambos:
o evento precisa trespassar e
transfixar de um só golpe o tempo existencial dos indivíduos e
seus destinos”, aponta o crítico
literário americano Fredric Jameson no artigo O romance histórico ainda é possível? (2004).
Entre as causas apontadas
por Lukács, estão o romance social do século 18 (variante capitaneada pelas obras de Jonathan
Swift, Henri Fielding e William
Makepeace Thackeray) e a nova
percepção da sociedade sobre o
processo histórico após a Revolução Francesa. Também é preciso
lembrar que a gênese do romance histórico ocorre no Romantismo, período em que as nações
estão erguendo suas fronteiras,
definindo-se como Estado. “Assim como o Romantismo é filho do Estado-nação, o romance
histórico é filho do Romantismo
e, por decorrência, do Estadonação. O romance histórico encerra o eu da nacionalidade em
contraposição ao eu das demais
nacionalidades (no caso, o outro).
O romance histórico é, como o
espírito romântico, uma idealização do passado, de uma chamada
Linda Hutcheon
suspeita da
possibilidade de
se alcançar uma
verdade universal
Era de Ouro, perdida pelo mundo
burguês, industrial e cinzento”,
observa o professor.
Cabe à Literatura, então, assumir o papel de tecer as identidades dos países, erguendo símbolos nacionais, exaltando seus
heróis, divulgando feitos bélicos
e valores do pensamento burguês, para construir o imaginário da unidade entre povos que
co-habitam o mesmo território.
Não por coincidência, o romance
histórico encontra terreno fértil
no Brasil do século 19. “Eles surgem para suprir uma deficiência
no incipiente sistema intelectual
brasileiro: a ausência de uma história pátria escrita por brasileiros.
A literatura romântica no Brasil praticamente explora apenas
uma das vertentes do Romantismo: a da nacionalidade. Dentro
desse horizonte mental, ela tem
uma missão: dizer aos brasileiros
quem somos ou, de outro modo,
construir a ideia do que somos”,
analisa Anco Márcio.
A primeira obra desse tipo
no país é Um roubo na Pavuna, de
Azambuja Suzano. Publicado em
1843, pouco mais de duas décadas após Dom Pedro I declarar
a independência do Brasil; o romance de Suzano abriu a trilha
para a literatura nacional reforçar
a desvinculação do país em relação à metrópole. Caminho que,
segundo o crítico Antonio Cândido, foi posteriormente seguido
por autores como Joaquim Manuel de Macedo (com As mulheres de
mantilha, 1870), Bernardo Guimarães (Maurício ou Os paulistas em São
Paulo, 1877), Franklin Távora (Os
índios do Jaguaribe, 1862; O cabeleira,
1876) e, o mais famoso deles, José
de Alencar, com As minas de prata
(1862) e A guerra dos mascates (1873).
De acordo com o professor Anco
Márcio, em Pernambuco também
surgiram romances históricos
nessa época, sendo Nossa Senhora
dos Guararapes (1847), de Bernardino Freire de Figueiredo Abreu
e Castro, o mais conhecido deles.
33
UBE | Gênero
Romance histórico, hoje
34
Embora o romance histórico naturalmente tenha sofrido mudanças do Romantismo para os dias
atuais, carregando um viés mais
questionador do que de registro,
ele se encontra valorizado entre
os autores da contemporaneidade com uma espécie de boom de
obras ficcionais no fim do século
20. De acordo com o historiador
inglês Peter Burke, o interesse
dos leitores pela variante se deve
tanto à possibilidade de turismo
temporal na comodidade da poltrona como pela rapidez com que
as transformações sociais têm
ocorrido nos dias de hoje, gerando nas pessoas uma necessidade
de autoconhecimento do próprio
passado.
No Brasil, não tem sido diferente. Obras como O chalaça
(1994) de José Roberto Torero,
Boca do Inferno (1989) de Ana Miranda, O xangô de Baker Street (1995)
e O homem que matou Getúlio Vargas
imagenS: divulgação
(1998) de Jô Soares desfrutaram
de grande popularidade entre os
leitores. Em comum, todos eles
carregam a ficção no DNA e são
erguidos nas entrelinhas de fatos
históricos relevantes para o Brasil.
Recentemente, duas obras de
autores pernambucanos chegaram à estante do romance histórico com a proposta de preencher com imaginação as lacunas
deixadas em aberto no registro do
passado. Tratam-se de Maldição e
fé, escrito pelo presidente da UBE
Alexandre Santos (2011), e Olinda
abrasada (2012) do médico e acadêmico Waldênio Porto. Ambos
focam nos contornos da invasão
holandesa a Pernambuco, no século 17.
Para escrever Olinda abrasada, foram necessários seis anos
de pesquisa, entre visitas ao sítio histórico e leituras tanto de
relatos escritos por portugueses
como por holandeses. O cuidado
no embasamento é consequên-
Os contornos
da invasão
holandesa em
Pernambuco no
século 17 servem
de pano de fundo
para recentes
romances
históricos
Para escrever
Olinda
abrasada,
foram
necessários
seis anos de
pesquisa para
Waldênio
Porto
cia do projeto estabelecido pelo
escritor, que procurou usar o poder de sedução da literatura para
transmitir conhecimento. “Minha preocupação foi de ensinar a
História, despertar o interesse dos
mais novos para o nosso passado. E a literatura é uma maneira
mais prazerosa para se contar a
História”, aponta Porto. Assim,
através da leitura de Olinda abrasada, os leitores têm a oportunidade
de descobrirem a importância de
personagens que hoje se perderam, como nomes de viadutos,
pontes e ruas da cidade, como o
capitão André Temudo e o donatário de Pernambuco Matias de
Albuquerque.
O rigor da pesquisa se traduz
em descrições da paisagem seiscentista, na riqueza de detalhes
com que o autor narra a chegada
dos holandeses e na complexidade das tensões culturais, políticas,
econômicas e religiosas da época.
“Olinda era a Dubai daquela época, uma vila opulenta, com riqueza impressionante. Isso atraiu
uma população diversa, entre os
2 mil habitantes tinham colonizadores portugueses, representantes comerciais holandeses,
judeus fugidos da Inquisição na
Europa, índios e negros escra-
vos. Havia uma multiplicidade de
conflitos”, observa o acadêmico
que ocupa a cadeira de número
15 da Academia Pernambucana
de Letras.
Valendo-se das tensões desse tabuleiro, montado com 78 figuras históricas; Porto utiliza as
brechas da História para inserir
outros 44 personagens fictícios
e contar a história de amor entre a judia Bianca e Tiago, filho
de cristãos velhos. “O que fiz foi
humanizar a História. Não inventei nem alterei os fatos históricos,
meu trabalho foi de correlatar fatos que realmente aconteceram.
Apenas imaginei o sentimento e
as reações dos personagens. Por
exemplo, não há registro do teor
da conversa entre Joers e Calabar,
então imaginei esse diálogo calcado na verdade histórica”, explica Porto.
Nessa mesma linha, segue o
romance Maldição e fé. Embora a
obra de Alexandre Santos apresente uma liberdade imaginativa
maior, ele se mantém fiel aos dados colhidos durante os três anos
de pesquisa que lhe forneceram
subsídios para a criação do romance. “Procuro oferecer dados
concretos, sem induzir o leitor a
erros. Os marcos históricos que
aparecem no livro aconteceram
exatamente do mesmo jeito. A
literatura está no trabalho de esculpir o texto, escolher as palavras certas para traduzir as ideias,
deixando o texto suave”, aponta
Santos.
No entanto, essa preocupação
não o impediu de criar. Ainda que
não deturpe os acontecimentos
do passado, Santos se desprende do compromisso do discurso
histórico e explora os elementos
reais como uma maneira de elevar o mistério da trama de Maldição e fé e discutir certas verdades
implantadas pela história oficial.
“Diz-se que a Holanda invadiu o
Brasil, quando na verdade existia
um acordo dos holandeses com a
Espanha em troca de segurança
no comércio marítimo”, lembra
Santos. Além disso, o autor explora a instabilidade da Olinda
do século 17, gerada pelo domínio
espanhol de Portugal, pela ameaça dos interesses da Holanda no
negócio do açúcar e pela Inquisição, como pontos de tensão em
que traça os pilares da sua obra e
propõe uma visão crítica sobre as
relações de poder.
Nesse caso, o embasamento
histórico – ao invés de impor limites – serviu de estímulo para a
imaginação. Afinal, o autor conta que a narrativa nasceu da sua
curiosidade em torno da única
casa que não sucumbiu ao fogo
que destruiu Olinda durante a
invasão holandesa. Detalhes sobre as condições das viagens, das
embarcações, da alimentação
e das armas da época ajudam o
autor a fazer o contraponto entre fantasia e realidade para dar
maior veracidade à ficção. A partir daí, o que seria o mote para um
conto acabou se transformando
num romance de 336 páginas pelas quais o autor conta a trajetória
do padre exorcista Daniel Corogeanu, que esteve envolvido no
combate à legião do vampiro Vlad
Alexandre
Santos se
mantém fiel
aos dados
colhidos em
três anos de
pesquisa para
Maldição e fé
Alexandre Santos
e Waldênio Porto
autografam
exemplares de
seus livros
Tepes e depois foi convocado para
a caçada aos demônios empreendida na Terra Brasilis.
O interessante é perceber que,
cada uma do seu jeito, as obras –
Olinda abrasada e Maldição e fé – retomam as trilhas desbravadas por
Nossa Senhora dos Guararapes, que, lá
no século 19, já usava as invasões
holandesas como matéria-prima
literária. Nessas novas viagens ao
passado, os autores evidenciam a
importância dos eventos seiscentistas para a formação da identidade dos pernambucanos, reforçando-os em nosso imaginário.
35
Galeno Amorim
divulgação
Semeando livros
36
É presidente
da Fundação
Biblioteca
Nacional.
Monteiro Lobato completou 130 anos em abril,
mas continua tão vivo na memória do povo
brasileiro, que foi confirmado como o escritor mais
admirado do Brasil. Tal fenômeno, num lugar onde
o índice de leitura ainda está aquém do satisfatório,
deve-se à marcante presença de sua obra para
sucessivas gerações. Foi ele quem inventou a
literatura infantil e o próprio negócio do livro no
Brasil, além de apregoar que precisávamos ler mais
para termos um país melhor.
Além dessa admiração dos brasileiros de todas
as idades por Lobato, a pesquisa Retratos da Leitura no
Brasil, do Instituto Pró-Livro, traz outras revelações.
A boa notícia é que mostra a consolidação do fato
de a média nacional de leitura ter dobrado na
última década (de apenas 1,8 livro por habitante/
ano em 2001 para os atuais quatro livros).
A má notícia vem justamente dessa
consolidação – entre 2007 e 2011, os índices de
leitura se mantiveram no mesmo patamar, e até
caíram um pouco, quando o que se precisava era
justamente o contrário: uma ascensão contínua. Ou
seja, o Brasil continua a ler pouco, e ainda temos
100 milhões de brasileiros que não leem um livro
sequer.
Para cativar leitores e, sobretudo, os não leitores,
é necessário um conjunto de ações, que se por
um lado deve atuar no sentido de melhorar e, em
muitos casos, dar alguma habilidade leitora à uma
parte substancial da população que está distante
dos livros, de outro é imprescindível que se dê
acesso àqueles leitores ávidos por tê-los à mão.
É aí que entra o papel da biblioteca pública! Mas
como cumpri-lo se só um entre cada dez brasileiros
vai com frequência a uma delas e nada menos do
que metade da população jura que nada será capaz
de fazer com que entre em uma delas. Dentre as
queixas mais comuns ouvidas pelos entrevistadores
do Ibope estão a falta de livros novos, ou em boas
condições, e deficiências nos acervos.
Esses fatores, além da difícil acessibilidade, são
responsáveis por afastar as pessoas das bibliotecas.
Apesar de a maioria dos entrevistados saber da
existência de bibliotecas em suas cidades ou
bairros, mesmo assim três em cada quatro deles
não as frequentam (!), um índice exageradamente
alto. Por outro lado, sabe-se que não há país
desenvolvido no mundo que tenha alcançado
essa posição sem, antes, ter solucionado a questão
do acesso à educação de qualidade, à cultura e,
particularmente, à leitura.
Não por outra razão o tema biblioteca está
no topo dos investimentos em políticas públicas
do livro e leitura que o Ministério da Cultura e a
Fundação Biblioteca Nacional anunciaram no Dia
Mundial do Livro e dos Direitos do Autor, celebrado
em 23 de abril, data de morte de Shakespeare,
Miguel de Cervantes e outros tantos escritores.
Mas não basta construir e implantar mais
bibliotecas ou recompor os desatualizados acervos
desses equipamentos culturais (embora 20% dos
leitores digam que o simples fato de haver livros
novos o estimulariam a ir até uma biblioteca). Por
isso, além de criar, de forma inédita, um programa
que já começa ampliando e atualizando o acervo
de 2.700 bibliotecas municipais e comunitárias,
com obras escolhidas por elas próprias, serão
anunciados novos programas para investir na
formação dos bibliotecários.
E, ao mesmo tempo, milhares de jovens
e professores e bibliotecários aposentados
serão contratados este ano para atuarem nas
comunidades, inclusive rurais,
como agentes de leitura, que vão
de casa em casa levar os livros e,
com eles, um novo horizonte em
suas vidas.
Quem sabe, assim, nos meses
de abril dos anos vindouros só
boas notícias possam ser dadas ao
se anunciar os novos retratos da
leitura no Brasil. Afinal, somente
a leitura formará cidadãos com
consciência crítica, e só a leitura, a
literatura e o livro, uma nova legião
de Lobatos, agora e no futuro.
Para cativar leitores
e, sobretudo, os não
leitores, é necessário
um conjunto de
ações, dar alguma
habilidade leitora à
uma parte substancial
da população que está
distante dos livros, de
outro é imprescindível
que se dê acesso
àqueles leitores ávidos
por tê-los à mão
37
UBE | Patrimônio
O
Relíquias
guardadas
em boas mãos
instituto arqueológico, histórico e geográfico
pernambucano, que funciona na rua do hospício,
no recife, comemora 150 anos de atividade
38
divulgação
Por Pollyanna Diniz
trânsito não para um
segundo. Por aqui, o
comércio formal ou
informal é intenso.
Os bares e restaurantes congregam as pessoas no horário de
almoço ou para a cervejinha no
fim da tarde. Estamos na Rua
do Hospício, no centro da capital pernambucana. Em meio ao
caos cotidiano da metrópole, o
casarão de número 130 guarda
um acervo de preciosidades sobre a história do Brasil e, mais
especificamente, de Pernambuco, que poucos imaginam. Há
não muito tempo, por exemplo,
Margarida Cantarelli, desembar­
gadora e também presidente do
Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP), descobriu mais
uma pérola: a pena com a qual
a princesa Isabel assinou a Lei
do Ventre Livre, que libertava os
filhos das escravas negras nascidas no Brasil, em 1871. Este ano,
o IAHGP está comemorando 150
anos de atividades.
“Quando estava vindo para
cá, recebi uma ligação de um
senhor do Tribunal de Contas do
Acre. Ele me propôs um convênio para microfilmar os mais de
400 documentos que o Instituto
possui sobre o estado – o que,
para mim, foi uma surpresa. Assim como a pena, que está em
um cofre. Eu sabia que nós guardávamos vários estandartes de
clubes abolicionistas, mas não
algo assim”, conta a presidente.
De fato, não há um inventário
de tudo que o Instituto possui, só
levantamentos de algumas coleções – os quadros, por exemplo,
estão catalogados de forma mais
completa. Mas, se hoje em dia
ainda acontece, antigamente era
muito comum que a população
fizesse doações à casa. “Recebi um senhor com uma coleção
de livros raros. Disse que o sogro dele era professor de História e que achava que, aqui, no
Instituto, aqueles livros podiam
39
UBE | Patrimônio
sores do reconhecimento social
do Instituto. Teve êxito: em 1919,
o órgão alcançou a patente de
associação de utilidade pública e
o governo do estado fez a doação
da atual sede, onde funcionava o
então Ginásio Ayres Brito. O IAGHP foi fundado e funcionou até
1847 nas instalações do Convento do Carmo do Recife; depois
passou por outros locais e desde
1920 está no casarão atual.
Por iniciativa também de
Mário Melo, quando era deputado estadual, o Instituto virou
órgão consultivo obrigatório da
Câmara Municipal do Recife,
sempre que fossem propostas
mudanças nos nomes das ruas
da cidade. “Ele era um homem
muito simples. Mas fez muito
por isso aqui”, conta Severiano.
Pintura a óleo
retrata membros
da família Burle
Dubeux (à esq.).
Quem visita o
IAGHP tem uma
verdadeira aula de
História
Relíquias
O “museu que fala” faz as vezes
de guia para o público no térreo
da casa (o Instituto tem apenas
três funcionários para a operacionalização do seu funcionamento). No primeiro pavimento,
A pena
utilizada pela
Princesa
Isabel para
assinar a lei
do Ventre
Livre faz
parte da
coleção
encontra-se o marco divisório
das capitanias de Pernambuco
e Itamaracá, assentado pelo primeiro donatário, Duarte Coelho
Pereira, em 1535. O marco é monumento nacional tombado pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan),
assim como todas as coleções
arqueológicas, históricas e artísticas do IAHGP.
Ainda no térreo, um painel
retrata a Batalha dos Guararapes. A obra foi pintada (ou restaurada, não se sabe ao certo)
em 1801, por José da Fonseca Galvão. Analisando mais de
perto, vemos índios, negros e
brancos lutando juntos na batalha. O acervo possui, ainda,
peças inusitadas para o público,
como os óculos de vidro verde
que pertenceram ao capitão José
de Barros Lima, o Leão Coroado, personagem que precipitou
a eclosão da Revolução de 1817.
Está no acervo, também, a espada do Leão Coroado, que foi doada ao Instituto pelos netos dele.
“É uma verdadeira aula de
História. É muito diferente para
o aluno que ele possa visualizar
aqui, através de objetos e documentos, os assuntos estudados
nos livros”, comenta Margarida Cantarelli. É possível que se
saiba, por exemplo, as circunstâncias do assassinato de João
Pessoa, mas certamente aquele
conhecimento será ampliado
e ficará gravado na memória
quando o estudante puder ver a
xícara em que o ex-presidente
do país estava tomando chá na
Confeitaria Glória, na antiga
Rua Nova, no Recife, quando
foi morto no dia 26 de julho de
1930. Ou, antes disso, o diário
do general Abreu e Lima, que lutou ao lado de Bolívar durante o
processo de independência das
“Américas Espanholas”.
No primeiro andar, entre as
peças expostas, estão cadeirinhas de arruar – uma delas pertenceu à Matriz da Boa Vista e é
decorada com pinturas que fazem menção à eucaristia. Toda
dourada, parece ter saído de um
filme de época. O mobiliário é
uma parte bastante significativa
do acervo. Há quatro cadeiras do
século 17, doadas por Luís Pereira de Faria, em 1886; várias mesas do século 18; mobiliário do
Palácio da Presidência da Província à época do Conde da Boa
Vista; e uma mesa de reuniões
da antiga Assembléia Provincial,
anterior à inauguração do Palácio Joaquim Nabuco.
Ainda não há
um inventário
completo das
relíquias do
Instituto, mas os
quadros estão
todos catalogados
O Instituto guarda um objeto
muito curioso: uma cápsula do
tempo, que só será aberta no dia
7 de novembro de 2025. “Quando o Diario de Pernambuco (jornal
mais antigo em circulação na
América Latina) fez um século,
trouxe essa cápsula para cá. O
jornal confiava que o Instituto
iria acompanhar a sua consolidação”, conta a presidente. Na
cápsula, que fica numa redoma,
lê-se: “Esta lata contém a notícia
exacta de tudo quanto fez o Diario
de Pernambuco para solenizar o seu
primeiro centenário em 7 de novembro de 1925, oferecida pelo
sócio deste ‘instituto’ Naasson
Figueredo com a condição de
ser aberta em 7 de novembro de
2025”. O Instituto guarda, ainda,
a primeira prensa do periódico,
de 1825.
São muitos também os papéis
e documentos que integram o
acervo do Instituto, como os escritos de Mário Melo para a imprensa. “Foi uma doação do filho
dele. Estamos com um projeto de
fazer uma publicação em parce-
FOTOS: divulgação
ter muito mais serventia, já que
seriam acessíveis a um número
bem maior de pessoas”, conta
Margarida.
Quem chega ao casarão é
geralmente recebido por Severiano Ferreira de Lima, 73 anos,
funcionário mais antigo do local.
“Ele é o nosso museu que fala”,
avisa a presidente. Severiano
está no Instituto desde 1957. Foi
trazido por um convite de ninguém menos do que Mário Melo,
“Secretário Perpétuo” do Instituto, uma distinção proposta
diante da missão que o jornalista
assumiu de preservar a história e lutar pela associação. Melo
ingressou como sócio do IAHGP
em 1909 e dizia que a instituição era “a razão de ser da minha
existência”.
O jornalista, poeta, músico,
advogado, professor, se envolveu diretamente, por exemplo,
na organização das celebrações
dos centenários da Revolução
Pernambucana, em 1917, e da
Confederação do Equador, em
1924. Foi também um dos defen-
40
41
UBE | Patrimônio
FOTOS: divulgação
ria com a Fundação Joaquim Nabuco”, antecipa Margarida Cantarelli. Para a Revista do Instituto,
por exemplo, que circulou pela
primeira vez em 1863, e até hoje
é produzida, Mário Melo escreveu dezenas de artigos. No número 79, escreveu “A maçonaria
e a Revolução Pernambucana de
1817”; fez texto sobre o arquipélago Fernando de Noronha; sobre
os limites Pernambuco-Paraíba,
e sobre lendas pernambucanas
e arqueologia. Os números da
revista “testemunham a multiplicidade e a abrangência dos
interesses de pesquisa de Mário
Melo”, diz o livro que registra a
história do IAHGP.
“O Instituto Arqueológico
é, hoje, um centro de referência para pesquisadores de várias
áreas do saber, oriundos não só
de Pernambuco, mas de outros
estados do país e de países estrangeiros. Seus vastos fundos
documentais e bibliográficos
atraem pessoas interessadas
em estudar e divulgar conhecimentos sobre o nosso passado e
nossa herança cultural”, escreveram Fernanda Ivo, George Cabral, Reinaldo Carneiro e Tácito
Cordeiro nesse livro.
De olho no futuro
O mobiliário é
parte importante
do acervo
42
É bastante significativo que o
nome do Instituto, que agora
completa 150 anos, seja “Pernambucano” e não “de Pernambuco”. “O Instituto já nasceu
uma associação privada. E os
fundadores já tinham a noção
de que não seria uma entidade
governamental, mas uma instituição do povo, que guarda a
riqueza do pernambucano”, comenta Margarida Cantarelli. Essa
decisão, no entanto, traz bônus,
como a liberdade do órgão, mas
também ônus, como as dificuldades financeiras e de visibilidade da instituição.
Apesar do rico acervo e de
todas as características de museu histórico, o que demanda
ainda mais verba para a sua manutenção, o Instituto sobrevive
a partir da contribuição de cerca
de 30 sócios que pagam mensalidades de R$ 80, além de doações e convênios. A segurança,
por exemplo, é feita pela Guarda
Patrimonial; e só há três funcionários para a manutenção do local e atendimento ao público.
Margarida Cantarelli aposta em parcerias. Numa sala no
primeiro andar do prédio anexo,
uma equipe cedida pela Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (Facepe) está empenhada
na limpeza, organização, catalogação e indexação de vários
documentos, entre eles cerca de
9 mil inventários – há inventários desde o período do Brasil
colônia, “quando os escravos
estavam no rol de bens – e o que
percebemos que é que poderiam
ser até mais detalhadamente
descritos que uma propriedade”, pontua a desembargadora.
Outra parceria do Instituto
foi com uma empresa de informática, o que possibilitou que
pesquisadores tenham acesso
à parte do acervo documental
através de seis computadores.
A meta de disponibilizar o material na internet é um projeto,
mas que demanda muito mais
dinheiro, verba que a instituição
não dispõe para coisas bem urgentes, como mudanças na sala
que guarda o acervo e a instalação de climatização adequada.
Instituto Arqueológico,
Histórico e Geográfico
Pernambucano
Onde: Rua do Hospício, 130,
Boa Vista
Visitação: De segunda a
sexta-feira, das 9h às 17h; e
aos sábados, das 8h às 12h
Ingresso: R$ 2 (preço único)
Informações e agendamentos:
(81) 3222-4952
[Entrevista] margarida cantarelli
“Queremos facilitar a pesquisa e
a produção de conhecimento ”
O Instituto está comemorando 150 anos, tem uma importância fundamental para
a manutenção da memória de Pernambuco, mas não faz parte do cotidiano das
pessoas. Elas não conhecem esse acervo. Como mudar isso?
Essa era justamente a minha ideia, com a grande celebração dos 150 anos
do Instituto: dizer que nós existimos. E posso dizer que já aumentou o
nosso fluxo de visitantes, a quantidade de escolas que vem aqui, pessoas do
interior. Aos sábados, por exemplo, sempre recebemos pessoas de fora.
Há uma parceria com as escolas, com as universidades?
Ainda não. Estamos tentando um convênio com o governo do estado para
que possamos fazer visitas-aula. Temos um acervo imenso que pode ser
visitado e ainda fizemos uma sala com computadores, com impressora,
para que pesquisadores e alunos de História possam vir fazer suas pesquisas
aqui. Há documentos que, por causa do zoom, conseguimos ler de forma bem
melhor do que se eles estivessem em nossas mãos. Não é à toa que, há dois
anos consecutivos, em 2010 e em 2011, recebemos o prêmio do programa
Memória do Mundo, da Unesco. Não faz sentido ter um acervo desse e ele não
ser pesquisado. O que queremos é dizer para as pessoas do que dispomos e
facilitar a pesquisa e a produção de conhecimento.
Há algum projeto também para o prédio?
Temos a meta de construir um prolongamento do prédio para reaproveitar
a biblioteca, que hoje está apinhada e desorganizada. É preciso que esse
catálogo esteja digitalizado. Não se sabe, por exemplo, o número exato de
volumes que temos na biblioteca. Mas, só pelo visual, podemos dizer que são
mais de 20 mil títulos.
43
UBE | Entrevista
quintas
A Academia Pernambucano de Letras (APL), fundada
em 1901, foi pioneira, entre as academias de letras
brasileiras, ao receber entre seus membros uma
mulher, a escritora Edwiges Sá Pereira, em 1920.
Agora, depois de 111 anos de história, a instituição tem
pela primeira vez uma mulher no seu comando. No
final de janeiro deste ano, Fátima Quintas, acadêmica
desde 2002, assumiu a chefia da entidade, que segue
o modelo francês e tem 40 cadeiras, das quais oito
atualmente são ocupadas por mulheres. Depois
de 10 anos sendo gerenciada por Waldênio Porto, a
APL será presidida pela escritora e antropóloga nos
próximos dois anos.
A acadêmica foi eleita por aclamação no final do ano
passado e credita o fato a sua ativa participação na
instituição nos últimos 10 anos. “Acho que pesou
um pouco a questão da visão feminina. A mulher
costuma ver as coisas com mais acuidade, com
uma sensibilidade e olhar diferentes. Creio que isso
chamou a atenção”, opina Fátima Quintas. Nesta breve
entrevista à Revista da UBE, ela fala do pioneirismo
feminino em Pernambuco e de seus planos para a APL.
“Não gosto de
rótulos. Sou
francamente
universal”
44
Entrevista a Mariana Oliveira
FOTOS: hans manteuffel/divulgação
fátima
A escritora e antropóloga,
atual presidente da APL,
promete uma gestão sem
dualidade de gêneros
O que significa ser a primeira mulher a
presidir a APL?
A responsabilidade é enorme, porém a
gratificação em ter sido escolhida para
ocupar cargo de tamanha importância
ameniza o tom do peso. A vida só se
torna intensa na medida em que as
conquistas são alcançadas através
da obstinação de perseguir projetos;
do contrário, não haveria razão de
lutar pela efêmera existência. A APL
simboliza uma “Casa do Pensar”, o
que me impele a criar programas que
venham a revigorá-la na sua dinâmica
intelectual. Gosto tanto da ficção que
a arte de inventar me agrada. Falo em
inventar no sentido de dar à Instituição
um “modelo” literário/acadêmico
bem diversificado em atividades e
ações. Só assim, seguiremos uma
trilha latejante em debates, discussões,
seminários. Sendo uma “Casa do
Pensar” representa um locus propício à
reflexão. E nada mais percuciente que
a reflexão para conciliar os paradoxos
e as contradições. Pensar é o mesmo
que viver. E viver significa turbulência,
do que se infere que toda caminhada
resulta numa batalha permanente.
Afinal, a existência reclama finas
indagações. Mais indagações do que
respostas.
Por que só agora depois de mais de 100
anos de existência isso aconteceu?
Importante dizer que a APL recebeu
— entre os seus membros — a segunda
mulher a ingressar numa academia
brasileira, o que não é pouco. E na
data de 1920. Seu nome: Edwiges Sá
Pereira. A primeira mulher teria sido
Priscila Duarte, poetisa mineira, no
ano de 1909, na Academia Paulista.
Portanto, Pernambuco confirma seus
pioneirismos também nessa área. Vale
ressaltar que Rachel de Queiroz, a
primeira mulher a entrar na Academia
Brasileira de Letras, atinge tal conquista
somente em 1977. Logo, Pernambuco
sempre aplaudindo as antecipações.
Ao longo desses anos, como foi a relação
das mulheres com a APL?
Não conheço historicamente
preconceitos na APL em relação às
mulheres. Há, sim, uma admiração
pelo trabalho feminino. Confesso que,
como mulher, nunca senti a pressão
do preconceito em lugar algum.
Considero fundamental o suporte
da autoconfiança visando a vencer
os obstáculos. E mais: a profunda
determinação naquilo que se almeja.
Naturalmente que o ritmo social de
hoje permite que o feminino se afirme
com segurança. Entretanto, faz-se
imprescindível um estímulo interior
compatível ao desejo de se impor.
Ninguém escala uma montanha sem
antes planejar os passos da aventura.
A sua administração será marcada por
algum traço feminino?
O meu desejo é universalizar a
Academia, sem dualidades de gênero.
O pensamento do homem e da mulher
se complementa para galgar um
patamar uníssono. O traço universal
humaniza a humanidade, sem prejuízo
de características de cada sexo.
Como a senhora avalia a literatura feita
por mulheres em Pernambuco?
Pernambuco é um estado cheio
de pioneirismos, como se sabe. As
Revoluções Libertárias falam por si,
sem esquecer que o primeiro livro
no Brasil, aqui foi escrito, por Bento
Teixeira, A Prosopopeia, em 1601. Branca
Dias também foi a primeira mulher
educadora. Martha de Holanda (de
Vitória de Santo Antão) escreveu o
Delírio do nada no início do século 20,
época pouco propícia para precoces
emancipações. Distinguiu-se também
por ter sido a primeira mulher a
conseguir o título de eleitor no Brasil,
isso em 1933, antes de ser homologado
o direito do voto feminino, o que se
deu em 1934. Tais exemplos mostram
o vanguardismo da literatura feminina
em terras pernambucanas.
De modo geral, há algo que diferencie a
literatura feita por mulheres?
Preferia dizer que existe a literatura
produzida pela “voz” da mulher,
não necessariamente uma literatura
feminina. Pergunto: seria possível
distinguir fragmentos literários
(anônimos) de mulher ou de homem?
A condição humana é uma só;
sentimentos, angústias, anseios se
equivalem, ainda que sob a ondulação
da diferença. Uma diferença que não se
associa apenas às relações de gênero,
mas a perspectivas individuais. O
perspectivismo, tão exaltado por Ortega
y Gasset, talvez explique melhor as
variações do humano. Não gosto de
rótulos, nem de definições, nem de
engessamentos, sobretudo quando se
trata de observar o comportamento
humano. Sou mesmo francamente
universal.
45
UBE Quadrinhos
OTÁVIO DE SOUZA/DIVULGAÇÃO
Watchmen, de Alan
Moore e David Gibson,
sucesso no cinema, fez
parte da lista dos 100
maiores romances
Criando uma ponte
entre dois mundos
a migração dos roteiristas de hqs para a prosa
tradicional firma-se no mercado editorial,
trazendo suas obras ao panteão da literatura
Por Diogo Monteiro
46
47
UBE | Quadrinhos
E
48
m outubro de 2005, a revista Time preparou uma
lista, elaborada pelos
críticos Lev Grossman e
Richard Lacayo, dos 100 maiores
romances da língua inglesa lançados desde 1923, ano em que
a publicação foi fundada. Entre
medalhões como Lolita, Complexo
de Portnoy, O som e a fúria, Trópico de
Câncer e O apanhador no campo de centeio, um título chamou a atenção:
Watchmen, de Alan Moore e Dave
Gibbons, uma “novela gráfica”,
ou, para falar mais claramente,
uma história em quadrinhos. A
escolha reacendeu uma antiga
teima entre os que defendem que
as HQs, ou pelo menos parte delas, podem ser classificadas como
literatura e aqueles que refutam
totalmente a ideia. Em 1991, Neil
Gaiman e Charles Wess levaram o World Fantasy Award por
uma edição da revista Sandman,
com uma releitura bem própria
do Sonhos de uma noite de verão, de
Shakespeare. Art Spiegelman viu
seu Maus, biografia ilustrada da
experiência de seus ancestrais
em um campo de extermínio, receber um Pulitzer, em 1995.
Indiferentes aos arrepios
causados pela aproximação entre literatura tradicional e quadrinhos em determinadas pessoas – e aqui não se discute a
equiparação ou não das duas
formas de expressão –, alguns
autores têm feito mais: a travessia de uma linguagem para outra. Quadrinistas vêm se aventurando no mundo das palavras
desacompanhadas das ilustrações, com reconhecimento
do público e, em alguns casos,
também da crítica. É o caso do
inglês Alan Moore, aquele que
recebeu a deferência da revista
Time há sete anos. Em 1996, já
ostentando o frequente título de
o mais importante roteirista de
quadrinhos em terras britânicas, ele lançou A voz do fogo, um
conjunto de 13 histórias curtas,
todas ambientadas em sua ci-
FOTOS: divulgação
dade natal, Northampton, num
período que vai do ano 5000 a.C.
até 1995 da era atual. No livro,
Moore mantém-se fiel a várias
de suas obsessões, já exaustivamente exploradas na arte sequencial: feitiçaria, violência,
erotismo e estruturas narrativas
inovadoras (a primeira história do volume, por exemplo, é
contada em primeira pessoa por
um personagem primitivo, que
desconhece a língua falada ou
escrita). Ele deve estrear como
romancista este ano, com um livro a se chamar Jerusalém.
A fidelidade às temáticas recorrentes de sua obra nos quadrinhos também parece ser a chave
do sucesso da empreitada de Neil
Gaiman, que foi responsável –
assim como Moore – por uma reviravolta no mundo das HQs, durante os anos 1980, com a revista
Sandman e álbuns como Orquídea
negra e Livros da magia. Deuses es-
Alan Moore é um
dos autores da
novela gráfica
Watchmen
quecidos e decadentes, pessoas
desavisadas inseridas nas querelas divinas, monstros, personagens lúgubres e melancólicos e
gatos são recorrentes nos contos,
novelas e romances escritos pelo
festejado autor. Festejado é a palavra. Suas incursões na literatura
tradicional renderam-lhe diversos prêmios, quase todos especializados em ficção científica e
fantasia, como o Hugo, por quatro
vezes; o Locus, em cinco oportunidades; e três Bram Stoker
Award. A produção de Gaiman,
que nunca abandonou os roteiros
de quadrinhos, contabiliza uma
caudalosa produção de livros
desde 1991, entre seis romances,
11 obras infantojuvenis e várias
coletâneas de contos. “Minha ficção se debruça sobre medos e desejos primais”, define.
Fenômeno editorial no mundo todo, o autor de Deuses americanos e Os filhos de Anansi diz gostar
da possibilidade de permitir ao
leitor “criar um mundo na cabeça
dele”, mas sente falta do controle
“sobre o olhar de quem lê”, e do
quadrinho em branco, que deixa em aberto o pensamento do
personagem. Hoje, Gaiman passa
metade do seu tempo em viagens
e palestras pelo mundo. A última
de suas passagens pelo Brasil –
onde diz se sentir “um jogador de
futebol”, tamanha a aceitação do
público em suas passagens pelo
país – foi em 2008, para participar da Festa Literária Internacional de
Paraty (Flip). Nessa visita, ele defendeu que, nos Estados Unidos
e na Inglaterra, o debate contra a
visão das HQs como literatura arrefeceu, após o Pulitzer ganho por
Spiegelman e a menção de Moore
pela Time.
MUTARELLI
Entre os nascidos no Brasil, onde a
vida dos roteiristas de quadrinhos
Neil Gaiman tem
se aventurado na
literatura.
Lourenço Mutarelli
(acima, à dir.) é
o brasileiro mais
famoso a trabalhar
com as duas
linguagens
é por si só já bastante difícil, não
há muitos casos emblemáticos de
migração para o universo da prosa. Provavelmente, o caso mais
bem-sucedido é o de Lourenço
Mutarelli. Começando a carreira como cenarista dos estúdios
Maurício de Souza, o autor, que
também é ilustrador, passou por
vários fanzines e colaborações
para revistas até ganhar visibilidade com Transubstanciação, álbum
de 1991. Os traços expressionistas, os temas mórbidos, a obsessão pela morte e pelo submundo
social, projetaram-no no cenário
cultural brasileiro. Depois vieram
Eu te amo Lucimar, O dobro de cinco.
Em 2002, ele apresentou O cheiro
do ralo, seu primeiro romance,
escrito em cinco dias, de forma
“acidental”, diz ele.
Se já era respeitado por sua
produção nos quadrinhos, a entrada no mundo da prosa garantiu a Mutarelli uma projeção ain-
da maior. Outros cinco romances
vieram na sequência, sendo O
natimorto, Miguel e os demônios e A arte
de produzir efeito sem causa – que levou um terceiro lugar no Prêmio
Brasil Telecom – os mais bemrecebidos. Vieram as adaptações
para o cinema de O cheiro do ralo e
O natimorto – nesta, o autor, que é
também ator, opera como protagonista.
Em entrevistas, Mutarelli já
declarou que tem dois públicos
distintos, o dos quadrinhos e o da
prosa, que pouco se inter-relacionam. Resta saber qual dos dois
grupos se interessará pelo seu
mais novo livro, lançado no ano
passado, Quando meu pai se encontrou com o ET fazia um dia quente. Um
volume ilustrado em tinta acrílica pelo próprio criador, em que a
arte propositalmente não corresponde ao texto das páginas próximas. Nem só prosa, nem HQ. Ou
muito pelo contrário.
49
Frederico Pernambucano de Mello
reprodução
Foucault e as máscaras da história
50
É historiador.
Membro da
Academia
Pernambucana de
Letras.
Não é fácil ler Michel Foucault, filósofo da linha
dos que não transigem com a distância entre sua
mente treinada e a do leitor neófito. Menos ainda
alimentar a pretensão de ter entrado na posse
de sua filosofia, tecida de muitas originalidades,
de alguns paradoxos e de uma independência
intelectual que somente cede passo aos demônios
existenciais que lhe povoaram a mente pela
vida afora, como confessava sem biombos de
conveniência burguesa.
No Microfísica do poder, mergulha profundamente
na questão do que há de errático na trajetória do
homem em sociedade. Tudo quanto a simetria
lógica ou a harmonia estética nos permite supor
como linearidade previsível nos passos do
homem em sociedade, perde fé ante a proposição
de que vivemos acontecimentos ao acaso, sem
referências de origem ou presentes. Faz pensar
na imagem de Bertrand Russel sobre o oceano
do pensamento do homem, no qual a porção
governada pela lógica navegaria toda ela contida
numa casca de noz...
Baudrillard já nos tinha arrebatado a bengala
de algumas certezas sobre o mundo. O conforto
de uma ciência positiva capaz de mitigar nossa
angústia existencial. Ao berrar que nenhum
sistema universal seria digno de confiança, por
não ser aferível mediante troca com similar de
mesma envergadura - a inexorabilidade do que
chamou de “troca impossível” - já nos roubara
toda veleidade quanto a certezas universais. Mas
restavam as intrassistemáticas, salvas do incêndio
de suas lentes agudas. É aqui que Foucault vai
exercitar sua demolição filosófica, duvidando de
que a metafísica venha a encontrar a “origem
miraculosa” que vem buscando incessantemente,
ou de que a moral possa chegar um dia a um
perseguido “fundamento originário” digno
desse nome, ou de que qualquer origem tenha
por si, pelo fato de ser origem, uma perfeição
preambular ao desgaste da exposição à vida.
No campo mambembe do desdobramento
histórico, buscas assim não conduzirão a nada.
Por não ser a história fundamento da metafísica,
arrimo da moral ou fonte do valor. A história
não é senão resumo da diferença, cachimbou
sem emoção. E o que disse subiu na fumaça.
Pé ante pé, o homem não se cansa de remontar
os passos da humanidade no afã de chegar à
máscara primordial e, aí, emocionado, retirála, deparando-se com a essência inefável do
ser inaugural. A esse engano o tem conduzido
a metafísica sem cessar, seja no plano da razão
profana, seja no da fé religiosa. Engano mesmo,
porque a imagem original não nos perfilará
diante da perfeição ansiada. Ao contrário.
Sendo história, não irá além da discórdia entre
os elementos constitutivos. Ou ao disparate. A
origem eugênica seria, assim, ilusão metafísica
incorrigível, nunca realidade histórica. No campo
em que prevalece a construção, a máscara final
não será retirada ou frustrará a espera pelo
harmônico.
Relevante no estudo que empreende
é a identificação da história como saber
perspectivo. Situado. Não só por conta do tema,
o que não causaria arrepios num positivista
bem-comportado, mas por conta do autor. Aí o
arrepio é grande, por ter feito parte da história
imemorialmente a ilusão de um historiógrafo
situado fora do contingente, do secular, do
transitório, do valor de época, da tendência,
do modismo. Fora da própria história, enfim,
metido em trincheira metafísica de justificação
impossível.
Seguir Foucault é desarmar o espírito de
preconcepções, lavando-se de certezas aderentes.
É aceitar o segredo de que a coisa não encerra uma
essência imanente, e de que a imagem que dela
nos chega não passa de uma construção cultural.
Datada e situada, por conseguinte. Eis alguns dos
limites da cautela epistemológica draconiana
que se impõe, e nos oferta, o filósofo da cabeça
coerentemente raspada. Não é fácil acompanhar
Foucault. Ainda mais difícil é passar por suas
lições de olhos fechados.
51
UBE | Crítica
Preferência não se
discute; gosto sim
A eterna querela da crítica literária, sua
validade e a sua função
Por Carlos Augusto da Silva/Bula Revista*
A
52
situação da crítica literária junto a leitores,
intelectuais, jornalistas, está cada dia mais
irrespirável. Ser crítico literário,
estudar a literatura de forma acadêmica, está se tornando algo tão
complicado quanto apoiar o aborto, a legalização das drogas e a
discussão a respeito do casamento
gay. Politicamente correto é não
se importar com a teoria, lixar-se
para a tradição, mandar às favas
qualquer crítica ou crítico produzidos nos corredores da academia, sejam eles estruturalistas
ou formalistas, ligados às teorias
do imaginário ou às correntes dos
estudos culturais.
Os críticos recebem as piores
alcunhas: repetidores, macaqueadores, dependentes dos professores e dos grandes especialistas.
Aos seus detratores, a crítica é
tudo, menos um ato de inteligência diante de uma obra. Os profissionais que a isso se dedicam
ficam reféns da ditadura do gosto,
presos nas frases feitas utilizadas
como argumentos definitivos,
coisas do tipo “gosto não se discute”. O que dizer diante disso?
Primeiro, tentemos definir
para que serve a crítica literária.
Para que um crítico existe? Penso que o papel de um crítico é o
mesmo de qualquer intelectual
das ciências humanas: historiador, sociólogo, antropólogo. Des­
mistifiquemos, para que os que
se doem não cortem seus pulsos.
Não, um crítico não se julga superior aos outros leitores. Não é nem
se considera o dono da verdade.
Pelo contrário, sua obrigação, intenção e compromisso é o diálogo
permanente com tudo o que já foi
escrito, seja nas academias ou na
solidão da criação artística verbal.
Ser crítico é uma profissão
como outra qualquer, como ser
sociólogo também o é. A literatura
não é feita para os críticos apenas,
tal como a sociedade não existe
para os estudos sociológicos. Essas coisas existem para a humanidade como um todo, circunscrevem-se nela, fazem parte dela.
Mas nem todos têm tempo, intenção ou vocação para dedicarem
sua vida exclusivamente ao estudo da literatura ou da sociedade.
Aquele que quer ser crítico literário tenta compreender as relações, correlações, diálogos que
se estabelecem entre as obras e
os outros campos dos saberes a
fim de dimensionar o alcance, a
qualidade, o que há de comum e
diferente entre as mais variadas
obras; ele avalia sua recepção, sua
estrutura, seu alcance. Isso cria
padrões de qualidade (até mesmo
para serem rompidos), educa o
gosto, aumenta a percepção, possibilita a multiplicidade de leitura
e de diálogo sobre as obras. Para
isso, também serve a arte – para
ampliar nosso horizonte a respeito da vida. Mas isso demanda vocação e sobretudo tempo.
Se, ao menos em tese, a todas
as pessoas se destina um romance como A montanha mágica, do admirável Thomas Mann, poucos (e
cada dia mais poucos) têm ânimo
para enfrentar tal colosso de mil
páginas. Para estabelecer relações, ir em busca dos elementos
históricos, formais e sociais que
esse romance tece com o mundo,
nem se fale. É aí que entra o crítico, quase sempre acompanhado
em sua empreitada: colegas que
falaram do mesmo livro e concordaram ou não com as afirmações feitas pelo outro colega. Essa
discordância em nada diminui
a importância de nenhum dos
dois contendores – ao contrário,
enriquece-a. Quem ganha é o leitor, o público que consome (ainda
nesses dias de miséria intelectual) literatura, que, absorvido pela
53
UBE | Crítica
54
essas que a literatura se perpetua
e se reinventa no horizonte da
história.
O malfalado Sainte-Beuve dizia ser o crítico aquele que sabe
ler e ensina os outros a lerem. Eu
não iria tão longe. A crítica é um
instrumento indispensável, e até
os que a renegam são, mesmo
sem saber, por ela conduzidos em
muitos momentos de suas escolhas e de suas opiniões. Ela não
ensina a ler, mas potencializa,
melhora a leitura, o leitor, os autores e, por consequência, a literatura.
O primeiro contato com a crítica se dá na escola. O primeiro
crítico com o qual se tem contato é o autor do livro didático, que
lança sentenças inúmeras sobre
os escritores que fizeram e fazem
a história da literatura brasileira.
Um livro didático já seria uma
resposta àqueles que perguntam
“qual a serventia da crítica”. Mas
seria uma resposta ruim, na medida em que penso dever prevalecer, seja em nível escolar ou
superior, na graduação ou pósFOTOS: divulgação
pressa dos dias, carece de norte e
encontra na crítica uma indicação, um apoio daquele que, pago
para ser leitor, dedica seu tempo
e sua vida a entender uma obra e
ampliar-lhe o alcance, o sentido.
Geralmente, os detratores da
crítica não são os verdadeiros e
melhores amantes da literatura.
Não. Tratam-se dos pseudointelectuais, preguiçosos, um grupo
fraco (infelizmente grande), preso
à estupidez da certeza avalizada
por predileções pessoais. Na outra
ponta da corda, vemos um grupo
de leitores de gabarito conhecer
a crítica, apreciar um bom exercício interpretativo, reconhecer
nela não um ato estéril e tolo de
papaguear professores ou outros
críticos especializados. Ao contrário disso, os intelectuais comprometidos com a compreensão
do fenômeno literário, seja de
qual área for, veem na crítica um
ato de criação também.
O crítico, antes mesmo que
Wimsatt e Beardsley escrevessem
sobre a falácia intencional (aquela
que entrega nas mãos da intenção do autor todos os segredos
da interpretação literária), não é
um mero apontador de aspectos
como tempo, espaço, personagem e enredo. Muito menos um
sujeito que, induzido por uma
biografia, diz como funciona uma
obra. O exemplo de Sainte-Beuve
é marcante: crítica pautada em
biografia quase sempre é limitada e tímida no que diz respeito ao
enfrentamento do texto. Este tem
uma imanência, existe, é coisa
dada, a linguagem não é um mero
produto de uma subjetividade,
está inscrita num contexto social,
histórico, mas também de linguagem, de tradição. Dirão os ingênuos: “É preciso saber disso? Importa-me a história apresentada
pelo livro, ou entender a intenção
do poeta”. A esses, replicamos: a
literatura não carece desse tipo de
leitor e nem desse tipo de leitura.
Ela não enriquece, não acrescenta
e não é por causa de leituras como
Poucos leitores
enfrentam as
mais de 1.000
páginas da obra A
montanha mágica,
de Thomas Mann
(À esquerda)
graduação, o enfrentamento das
obras para depois se ter acesso ao
conhecimento da crítica.
Outro problema dos manuais
escolares é sua calcificação, seu
comodismo estagnante que não
revisa os julgamentos, os conceitos e nem o movimento canônico
que corrige erros da crítica imediatista que pode, em um arroubo,
condenar ao esquecimento um
autor de qualidade devido a um
julgamento precipitado. O grande Gustave Lanson, por exemplo,
se não atacou Charles Baudelaire,
ignorou-o, como também o fez
Sainte-Beuve, escrevendo sobre
sua vida, mas não sobre sua obra.
Os manuais podem também,
com seus resumos breves e sua
condensação massiva, desestimular a leitura. Por isso, apontá-los como uma justificativa da
crítica não é a resposta que a valoriza, mas que a reduz como os
manuais reduzem os fenômenos
literários.
Sendo o livro didático uma
resposta falha à pergunta a respeito da função da crítica, uma me
parece razoável: se ela não ensina
a ler, pode educar o gosto. E gosto
se discute, sim, embora o pensamento limitado diga que não.
Quando se chega nesse ponto
da querela, envolvendo a existência da crítica, sua validade e sua
função, penso ser preciso aceitar um fato: existe o bom gosto e
o mau gosto. O que é bom gosto?
É gostar do que é bom. E o mau
gosto? É gostar do ruim. Mas o
problema é como definir o bom
ou o ruim em literatura. A teoria
literária entra em cena com seus
instrumentos de análise, verificando o arranjo da obra, a estrutura do enredo, a adequação de
uma estratégia narrativa à trama
apresentada, as formas de se conseguir atingir a emoção do leitor,
os recursos de linguagem, como
metáfora, aliteração e outros, a
recepção desses textos ao longo
da história, sua capacidade de representação do real, seu aspecto
unicamente formal, estrutural,
linguístico.
Um bom exemplo é o precursor do texto teórico-crítico,
O crítico SainteBeuve (E) ignorou
o talento do poeta
Charles Baudelaire
A Poética, de Aristóteles. Nela, o
filósofo grego, querendo investigar o que é a poesia (nome que se
dava a tudo o que era literatura na
antiguidade clássica), acaba nos
dando uma aula de como deve
ser uma boa tragédia: quais elementos ela deve conter, quais os
procedimentos a serem operados
pelo poeta na sua composição,
a que aspectos temporais e espaciais ele deve obedecer, quais
as leis de composição devem ser
seguidas por ela, a fim de provocar no espectador uma emoção, o
efeito catártico, o terror e a piedade.
A Poética é um exemplo de
aplicação do método crítico porque, para Aristóteles demonstrar
a especificidade do fenômeno
literário, ele recorre a uma obra,
debruça-se sobre as minúcias de
um texto, serve-se de um exemplo, dá ao texto sua imanência,
mas sem esquecer-se do efeito que o texto deve ser capaz de
provocar no espectador-leitor. O
exemplo de obra literária por ele
considerada modelo é o Édipo rei
Geralmente,
os detratores
da crítica
não são os
verdadeiros
e melhores
amantes da
literatura
de Sófocles. Aristóteles não nos
ensina somente a ver como é uma
tragédia perfeita, ele nos ensina
que é pelo contato com a tradição que se buscam as bases para
o julgamento, para a comparação,
para a reflexão. Seu olhar cuidadoso a cada elemento da peça
de Sófocles possibilitou a ele nos
oferecer, enquanto leitores, instrumentos a partir dos quais nos
orientamos ao apreciar uma peça
e, para aqueles que escrevem peças, orientou no sentido de guiálos para um campo mais ou menos certo de como fazer bem feita
a sua tragédia. Suas regras são
uma camisa de força? Jamais. O
rompimento enriquece e o modelo, se educa, mostra também
quando precisa ser rompido para
se prosseguir dali em diante.
Preferir ou não preferir não
qualifica nada como bom ou
ruim. É possível e aceitável eu não
adorar uma obra muito boa e ter
apreço por uma obra cuja qualidade é discutível, talvez porque
esta, de qualidade incerta, dialogue mais com minha subjetividade eu a prefira a uma obra-prima.
Até aqui, tudo bem. O problema
é quando eu considero uma coisa boa só porque eu gosto dela ou
considero uma coisa ruim porque
não gosto da mesma. Nesse ponto, a razão cede espaço à emoção
(coisa legítima em se tratando de
seres humanos), porém o diálogo
intelectual se encerra. Não se tra-
55
UBE | Crítica
ta mais de discutir gosto, mas,
sim, preferências. Preferência,
eu concordo, não se discute,
mas gosto, sim. O papel do crítico não é fazer com que se goste
ou se prefira isso a aquilo, mas,
sim, com que sejamos capazes
de reconhecer quando algo,
em arte, é bom ou ruim, quando é bem-feito ou não: essa é a
única forma de reconhecer as
nuances do gênio humano e
onde ele se manifesta. Os patrimônios da raça humana devem
valer mais do que o patrimônio
das nossas preferências.
Que se prefira o razoável ao
genial, mas fazendo isso com
consciência, com honestidade,
sem se doer e se deixar magoar
56
FOTOS: divulgação
por se reconhecer com uma sensibilidade menos apta ao que tem,
de fato, qualidade.
Esta colocação me faz voltar
à questão do cânone. Essa discussão é quase sempre levantada
quando se debate ou não a necessidade de se ler e conhecer a literatura contemporânea e não ficar
preso “somente” aos medalhões.
Os críticos que se dedicam ao cânone e defendem sua leitura são
chamados de elitistas, donos da
verdade, preconceituosos, arrogantes. O próprio Harold Bloom,
atacado, apelidou seus oponentes de “militantes da escola do
ressentimento”. Mas o fato é que,
Otto Maria
Carpeaux
afirmava que os
professores de
História Literária
repetem sempre
os mesmos clichês
sem o cânone, não vejo como
compreender e dialogar com
competência sobre o contemporâneo. É uma encruzilhada,
pois o domínio do cânone é,
no mínimo, difícil. De forma
completa, impossível. Assim,
es­colher o contemporâneo em
detrimento do cânone pareceme uma escolha quase sempre
perigosa, haja vista que o tempo é mesmo curto, e conhecer literatura demanda tem­­po,
muito tempo – talvez, das artes, seja a que mais demanda.
A literatura contemporânea deve ser lida. Em nenhum
momento propomos o contrário. Pode ser bem apreciada,
analisada. Estar em diálogo
com o seu tempo é necessário ao
homem. Mas o leitor não especializado, porém costumaz, que lê os
clássicos, está mais preparado para
o novo. Saberá reconhecer-se ali,
na obra literária contemporânea,
não como um espelho de sua carne, não valorizando apenas o fato
de ela ecoar com maior vigor por
ter sido produzida em sua época,
mas, sim, como um humano que
carrega uma tradição atemporal,
presente nos livros de ontem e
de hoje. O leitor contumaz saberá algo mais e talvez o principal:
a língua, o nosso instrumento de
comunicação, serve para muitas
outras coisas, e pode tornar particular o alheio, por via da arte.
Já para um estudioso, um profissional da literatura, o cânone
é indispensável e deve ser sua
prioridade. Se Italo Calvino estava
certo ao dizer que “clássico é um
livro que nunca terminou de dizer
aquilo que tinha para dizer”, devemos ser honestos em reconhecer o fato de estarmos em uma
época cada dia mais escassa de
livros com essa envergadura. As
razões para esse empobrecimento
da literatura, não sabemos, e poderíamos fazer diversas conjecturas, mas todas seriam especu-
Harold Bloom
apelidou seus
oponentes
de “Militantes
da Escola do
Ressentimento”
lações carentes de embasamento
sólido. Mas a respeito do empobrecimento dos leitores, podemos
apontar, com certeza, a falta de
professores-leitores de literatura.
Uma sala de professores de uma
escola é um bom termômetro:
onde deveriam se reunir os intelectuais responsáveis pela formação cultural dos jovens, vemos
leitores (e quando são) de Crepúsculo, O caçador de pipas e O Código Da
Vinci. Esses sim, meros papagueadores do livro didático. O grande
crítico Otto Maria Carpeaux, em
sua monumental História da Literatura Ocidental, sentencia: “Enquanto
a crítica literária se ocupa continuamente de revalorizações, destruindo os ídolos da convenção e
revivificando autores ou épocas
inteiras injustamente esquecidas
ou desprezadas, os professores
de História Literária repetem sem
cansaço os mesmos clichês”.
O leitor que leva em consideração a crítica sabe mais reconhecer o valor e a importância
dos clássicos, e saberá discutir
com mais habilidade o que lê,
saindo do lugar comum das impressões e emoções causadas por
um enredo que o leve às lágrimas
ou ao riso. Clássicos e crítica formam um binômio perfeito porque ambos nos fazem reconhecer
o primordial em literatura: interessa mais o como é dito, e não o
que é dito. Os canônicos resistem
ao tempo por sua força de linguagem, até porque as histórias
já foram, de certo modo, todas
contadas. Os críticos cooperam
no entendimento e perpetuação
das obras porque olham para
os procedimentos estão atentos
ao conteúdo como consequência e parte da forma. Orie­n­tado
por esse binômio, talvez, possa
se chegar a um reconhecimento
mais pleno e satisfatório da literatura. Mas prepare-se aquele
que assim o fizer: estará no limbo
dos politicamente incorretos.
*Texto extraído da revista online Bula..
57
UBE | Entrevista
divulgação
“Você não vê
ninguém lendo
neste país”
marcos
58
Accioly
paixão intensa pela
arte de escrever
Poeta pernambucano analisa o atual
cenário cultural do Brasil e fala sobre
suas obras publicadas e inéditas
Entrevista a Paulo Carvalho
Marcus Accioly, 69 anos, 14 prêmios literários, é poeta que esconde sob formas clássicas e figuras mitológicas,
as questões contemporâneas mais pungentes. É um estrategista que não se “importa muito com a mídia” e com
os lançamentos, como gosta de ressaltar o pernambucano de Aliança. Sua estante de inéditos, quase 15 livros,
aliás, já supera a dos títulos publicados. Mas isso deve começar a mudar em breve e o poeta pretende apresentar
alguns desses títulos às editoras ainda em 2012. A Revista da UBE conversou com o poeta em seu gabinete no
Conselho Estadual de Cultura sobre esses e outros temas que envolvem sua carreira.
O senhor tem mais livros inéditos do que publicados.
O que significa ser um autor “inédito” num cenário que
atrela necessariamente o ato de escrever e a “imagem
de escritor” à publicação?
Eu tenho 14 livros publicados. São livros espessos,
como é o caso de Latinoamérica, com 620 páginas,
ou como Sísifo, que possui 408. Escrever, para
mim, é uma compulsão, uma necessidade. Diz
Alfonso Reyes, citado por Jorge Luis Borges, que
quando a gente não publica, acaba corrigindo o
livro interminavelmente. Eu descobri, então, um
jeito de não corrigir o livro dessa forma: é escrever
interminavelmente. Acontece que fiz um acúmulo.
Estou com quase 15 livros prontos. Escrevo
diretamente no computador e, claro, às vezes corrijo
alguns trechos aqui e ali. Mas são livros prontos.
Pretendo, neste ano de 2012 e talvez até neste mês
de julho, fazer uma viagem ao Rio de Janeiro. Será
uma peregrinação pelas editoras como se eu fosse,
assim, um estreante. Vou levar, naturalmente,
alguns desses livros para publicação.
Como eu viajava muito (trabalhei no Ministério
da Cultura, com Antônio Houaiss, e fui do
Conselho Federal de Cultura), tinha uma relação
de proximidade com as editoras. Hoje, estou um
pouco mais recluso e os livros, fatalmente, ficaram
acumulados. Às vezes, sinto-me um escritor inédito
ou póstumo, mas com muitos livros, escritos um
após o outro. Apenas para ilustrar essa obsessão,
hoje (uma quinta-feira do mês de julho), acordei às
4h da manhã. Quando eram 8h, eu já tinha quatro
horas de trabalho. Também tenho passado os finais
de semana em Itamaracá (gosto da natureza, do
céu aberto, do espaço livre – digo que saí do mar
canavial para o mar oceânico), também trabalhando
com o notebook.
Acho o seguinte: a minha geração cometeu um
grave erro. Um pecado. A geração anterior, de 45, de
30, foi para o sudeste e lá se estabeleceu. Lá, você
encontraria Bandeira, Cabral, Joaquim Cardozo,
Drummond. E lá, principalmente no Rio, você
encontraria as editoras. Nós, que somos da geração
de 60, aqui no Recife chamada de 65, tivemos o
problema sério da repressão. Uma época difícil de
publicar (eu mesmo me escondi profundamente,
passando a cantar os mitos gregos como se fossem
heróis ou anti-heróis latino-americanos). Hoje,
essa minha geração estaria no poder. Não no poder
político, mas na posição de exemplo, paradigma,
modelo, ícone para os jovens. Mas aconteceu uma
coisa estranha. Os jovens de hoje, por essa escassez
de publicação, especialmente em poesia (quando
você chega com um livro de poesia, o editor torce o
nariz ou fecha a cara, um pouco espantado – e, se
você chega com um livro de 600 páginas, ele tem
vontade de assassinar você rapidamente), não têm
um paradigma. Não buscam o poeta do passado. E
não estamos mais no Modernismo, mas no novo
ou Neomodernismo, no Pós-modernismo, melhor
dizendo. O tempo do simulacro, da televisão, do
computador. Um novo tempo que tem facilitado
muitas coisas, mas confundido outras (hoje, o
sujeito escreve um poema em dois minutos, publica
na internet e, quando você vai ver, não é nada).
59
UBE | Entrevista
60
Por que a opção por poemas longos como
Latinoamérica (2001), por uma poesia
épica contemporânea?
Eu digo que o épico é um temperamento. Há um poema de Castro Alves, um
poeta banido da Universidade, do qual
eu gosto muito. Este poema é Laço de fita.
É extremamente lírico. Ele diz: “Não
sabes, criança? ‘Stou louco de amores./
Prendi meus afetos, formosa Pepita /
Mas onde? No templo, no espaço, nas
névoas?! / Não rias, prendi-me / Num
laço de fita”. E um pouco mais adiante: “E agora enleada na tênue cadeia/
Debalde minh’alma se embate, se irrita.../ O braço, que rompe cadeias de
ferro,/ Não quebra teus elos,/ Ó laço
de fita!”. Então, de repente, você vê o
temperamento forte. O temperamento
épico de Castro Alves, dentro de um
poema extremamente lírico. Eu digo
sempre que a poesia que eu tento fazer
é um misto do popular e do erudito, da
vanguarda e da tradição e da lucidez
e da loucura. Uma linha de equilíbrio
entre esses pares. O poema longo num
país longo como o Brasil você pode e
deve, e os poetas do passado fizeram
muito isso, não só cantar, mas contar.
Cantar contando. Ou contar cantando.
Uma maneira de você realizar, digamos
assim, o inteiro. Não sou contra quem
escreve haicais ou quadras. Não, o poeta deve escrever o que quiser. Mas para
cantar um continente, como a América, ou o mundo de hoje que se tornou
fatalmente um mundo global, você não
pode cantar sem força e sem fôlego. O
sentido da busca da oralidade contida.
Mais ou menos como é a diferença,
em prosa, de quem escreve conto e
de quem escreve romances. O conto é
extremamente denso, extremamente
tenso, com uma carga poética extrema.
Mas no romance você respira. No caso
do poema lírico, há uma carga muito
grande. Em Baudelaire, por exemplo,
você tem uma poesia feita sob tensão.
Uma tensão contida que deixa o leitor
aceso até o final. Mas se você vai ler A
divina comédia, de Dante, Os Lusíadas, de
Camões, a Ilíada ou a Odisseia, de Homero, você tem uma pausa para respirar.
É como se você se sentasse em volta
de uma fogueira e todos começassem a
cantar e a contar aquela história.
FOTOS: divulgação
Marcos com integrantes
da Geração 65 reunidos
para participar de um
documentário de Luci
Alcântara
Em alguns livros, como Cancioneiro
(1968), Nordestinados (1971) ou Guriatã
(1980), há uma forte presença de
elementos da literatura popular. Como se
deu esse contato e apropriação?
Foi exatamente o meu início. Nasci
em um engenho de açúcar. Conheci
de perto o cordel. Aliás tenho um livro
inédito chamado Poética popular, em que
estudo exatamente a forma do lírico,
do épico, do dramático, no cordel e na
viola. Portanto, o meu contato primeiro
foi com a oralidade (note que até a
nossa fala é meio lenta, meio cantada).
Mas, quando concluí Cancioneiro (1968),
e depois Nordestinados (1971), desejei
buscar uma coisa nova, fora daquele
sistema. Além desse meu desejo, havia
o problema de como era possível dizer
as coisas. Por exemplo, no Cancioneiro
eu digo: “O cangaceiro luta por questão
de justiça, já que esta não existe onde
existe a polícia”. Isso não era bemvisto à época. Então, o que fiz eu?
Peguei os mitos dos marginais gregos,
Sísifo, Íxion e Narciso, e realizei uma
trilogia mitológica. Íxion, por sinal, é o
meu livro favorito. E está esgotado. Já
Narciso é um livro todo feito em sonetos
invertidos, como que num espelho
distorcido. Podemos até pensar que
Narciso é o homem apaixonado por si
mesmo, como diz a lenda, mas para
mim é o homem que não tem medo
de olhar para dentro de si próprio.
“Nós, que somos da
geração de 60, aqui no
Recife chamada de 65,
tivemos o problema
sério da repressão. Uma
época difícil de publicar
(eu mesmo me escondi
profundamente, passando
a cantar os mitos gregos
como se fossem heróis
ou anti-heróis latinoamericanos)”
Por isso que eu o fiz se afogando
ou morrendo à beira, não mais do
lago, mas à beira do mar, no sentido
das ondas da revolução. Íxion, outro
personagem formidável grego, é um
livro sobre a tortura. Em Latinoamérica,
eu deixo esse tema claro. Mas no Íxion
isso se passa no porão, o porão do
inferno. O Sísifo, quando cheguei com
o poema em cima do píncaro (Deus é
quem pode explicar como encontrei
isso), eu inverti o tempo e, ao invés
de ele empurrar para a pedra cair em
seguida, ele começa a empurrar para
baixo, até chegar à infância. Por isso,
a última palavra do livro é “menino”,
em que eu fiz deslocar o “ó” como
se fosse a pedra caindo. Esse livro foi
publicado e esgotado em 1976. Tenho
mais coisas escritas sobre ele do que
a grossura dele, que é de 408 páginas.
Um livro nunca republicado. Então,
veja que é um problema sério: não se
trata apenas de publicar livros novos,
mas de republicar os que já publiquei.
Lembro que Narciso ganhou o Prêmio da
Associação Paulista dos Críticos de Arte
e o Prêmio Olavo Bilac, da Academia
Brasileira de Letras.
Seus livros são como estratégias.
Latinoamérica conforma-se como uma
luta de boxe.
Eu gosto muito de lutas. Inclusive do
MMA (meu nome é Marcus Morais
Accioly, talvez até por isso...). Quando
fui fazer o Latinoamérica, um livro que
me levou 20 anos, decidi não dividi-lo
em cantos, mas em rounds, já que se
trata de uma luta não apenas política,
mas de uma luta de forças, uma luta
mortal na América Latina. Depois
de certa parte, o livro é dividido em
rounds de cinco minutos, com três
minutos de descanso. E assim fui
cantando todos os países da América
Latina. Fundamentalmente, é um
livro sobre anti-heróis, e não heróis,
como a epopeia tradicional. Por que
anti-heróis? Porque os nossos heróis,
do Brasil e de toda a América, foram
heróis destroçados. Foi uma luta.
Cada dia que eu pegava no livro para
trabalhar era como um treinamento
de boxe e, rigorosamente, é uma luta
contra os Estados Unidos. Uma luta
contra o imperialismo.
O senhor comenta que um livro que não
fica de pé na estante também não fica de
pé na história. O senhor fala igualmente,
nesse mesmo sentido, que não gosta de
“poeta com prisão de ventre”.
Hoje, temos não só escritores que
escrevem pouco, mas escritores que
nunca escrevem. Tenho um amigo
no Ceará chamado César Barreto. O
cearense, você sabe, tem um espírito
muito irônico e eu ia muito a Fortaleza
e aparecia nos restaurantes um rapaz,
um poeta, que era muito engraçado.
No início, eu o achava chato, mas
depois passei a achar engraçado,
quando ele vinha, declamava umas
quadras e ia embora. Um belo dia, eu
chego, sento-me, e pergunto a César
Barreto: “Cadê aquele poeta?”. E César:
“Ele não é mais poeta. Publicou um
livro”. Até publicar o livro era um
poeta do Ceará e agora não será mais
poeta.
O senhor foi secretário-executivo do
Ministério da Cultura. Como vê a gestão
atual do MinC?
Acho o cenário nacional cultural muito
confuso. Muito nebuloso. A cultura
que se faz hoje nos estados e nos
municípios é uma cultura de eventos.
Você traz um cantor famoso, todo
mundo dança, bate palmas, e nada
fica daquilo. Não há um plano rigoroso
de publicação, de compras de livros
para bibliotecas. A cultura do país está
ficando com um atraso muito grande.
Eu me aposentei da universidade,
mas nas últimas aulas que eu estava
dando, já tinha dificuldade de contar
até anedotas, porque as pessoas não
entendiam. Não estavam ligadas.
Tomadas por uma espécie de
alheamento. Você não vê ninguém
lendo nesse país. Nem jornal.
Acha que existe uma espécie de exagero
de teorização nas Universidades?
Durante muito tempo, teve início uma
espécie de teorização sobre tudo e
sobre nada. As pessoas procuravam
saber as últimas notícias do que estava
acontecendo no mundo (Jacques
Lacan, Derrida...) e traziam isso para o
pobre do aluno. Quando ele
ia escrever sua dissertação
de mestrado, ficava como
Procusto, um bandido
da mitologia. Dizem que
Procusto tinha uma cama
em casa na qual deitavam
pessoas que encontrava na
rua. Se a pessoa fosse menor
que a cama ele esticava a
pessoa até dar na bitola da
cama. Se fosse menor, ele
cortava os membros. É isso
que a Universidade é, ou tem
feito: um leito de Procusto.
Você não tem o direito de
escrever o que quer. Deve ser
dentro daquela bitola. Hoje,
as teses e dissertações são
metade de teoria e o texto é
o mínimo possível. Você não
pode escrever sobre poesia,
se você não lê poesia.
61
UBE | Posicionamento
ENTRE O
achaque e
a polêmica
sxc
Hoje, o campo
literário continua
sendo um espaço
rico para o debate e
o enfrentamento
de ideias
Por Paulo Floro
N
62
elson Rodrigues foi o
maior polemista que
a literatura brasileira
teve. E sua verborragia
sobre os mais diversos temas ainda
repercute nos dias de hoje. Fugindo das ideias amplamente aceitas,
ele se desvencilhava de um porto
seguro para atacar seus alvos com
um humor quase galhofeiro. “Toda
unanimidade é burra” é hoje uma
máxima conhecida até por quem
não leu uma única linha de sua
obra. Esse poder em gerar controvérsia, com certeza, ajudou a fazer
sua fama. Hoje, na literatura brasileira, pode não existir uma figura
exemplar como Nelson, nem que
desperte empatia como ele, mas
o meio segue cheio de achaques e
polêmicas, seja em relação a uma
obra específica, seja na voz opinativa e posicionamentos de seus
autores.
Há pouco, o professor aposentado da Universidade de São
Paulo e crítico literário Roberto Schwarz causou barulho com
o livro de ensaios Martinha versus
Lucrécia (Companhia das Letras).
Ele demorou 15 anos para tornar
pública sua opinião sobre o livro
de memórias de Caetano Veloso,
Verdade tropical (Cia de Bolso). Segundo ele, Caetano tem um “traço de personalidade muito à vontade no atrito, mas avesso ao antagonismo”. Disse também que o
cantor “festejou a derrocada da
esquerda como um momento de
libertação”. Um dos pontos mais
comentados diz respeito à análise
feita sobre o golpe militar de 1964.
“O memorialista compartilha os
pontos de vista e o discurso dos
vencedores da Guerra Fria”, disse. Em outro momento, critica o
“amor aos homens da ditadura”.
O ensaio abriu um debate quase
inevitável no meio literário, com
todos os especialistas, sejam críticos, professores, leitores, comentando as ideias de Schwarz.
Apesar de o crítico destacar
as qualidades literárias de Verdade
tropical, a polêmica entre os dois
quase sempre omitia esse detalhe.
O clímax veio com uma entrevista que Caetano Veloso concedeu ao suplemento Ilustríssima, da
Folha de S.Paulo, em que ele rebate
algumas posições de Schwarz. “É
envaidecedor que Schwarz tenha
escrito tanto (e com tanta energia) sobre meu velho livro. Claro
que não coincido com o grosso da
crítica ideológica”, disse em matéria assinada pelo editor Paulo
Werneck. Sempre solicitado para
dar opinião sobre os mais diversos assuntos, Caetano tem mag-
netismo para polemizar, o que
parece ter ajudado a repercussão
de Martinha versus Lucrécia. “Gosto
de obras que trazem uma nova
visão sobre algo e dos autores
polêmicos que considero inteligentes. Discordo de muitas coisas
que Caetano fala, mas qualquer
livro dele me interessa”, disse
Diogo Guedes, crítico literário do
Jornal do Commercio.
Para ele, as polêmicas hoje em
dia estão mais comuns, sobretudo fora do meio literário. “Hoje,
existem essas figuras comercias,
Lobão, Pondé, colunistas, mas,
ao mesmo tempo, acho que o
campo literário é menos debatido
como um todo, e uma das causas disso é que se tem uma visão
mais homogênea da produção literária, tanto por parte dos autores como dos críticos.” Dentro da
gama de festivais literários existentes hoje em dia, as polêmicas
e controvérsias também encontram campo fértil. É uma oportunidade para escritores trocarem
ideias sobre temas que pairam
no seu meio ao longo do ano e se
63
UBE | Posicionamento
encontrarem em uma mesa para
confabular com o público. Para o
pesquisador e mestre em Teoria
da Literatura, Cristhiano Aguiar,
esses encontros estão em um nível abaixo do satisfatório. “Muitas
vezes, a impressão que tenho é
de que os debates literários têm
sido muito mais um momento de
entretenimento do que uma troca
fecunda de ideias. Por outro lado,
talvez tenha sido sempre assim:
é a forma contemporânea das
conversas de salão (lembremos
aquelas cenas dos romances do
século 19, com seus bailes e saraus domésticos) e não há nada
de errado em que existam”, diz.
Aguiar ainda opina sobre a
qualidade das polêmicas de hoje.
“A controvérsia, a polêmica, não
precisam ser vistas como algo
alheio à literatura; a literatura é o
texto, os leitores e as circunstâncias de leitura. Mas nem todas as
polêmicas são interessantes, nem
todas implicam que o seu criador seja alguém digno de leitura e
atenção.” Mas, até que ponto esses debates ajudam a performance mercadológica dos autores e
suas obras? “Com certeza ajuda
na divulgação: autores desbocados sempre se tornam figuras
‘públicas’, viram comentadores
de outras polêmicas, ganham
perfis em revistas e jornais. Acabam se tornando uma imagem
da qual é difícil de descolar-se
também”, diz Guedes. Ele cita o
escritor francês Michel Houllebecq, para falar de alguém capaz de
provocar reações exaltadas com
seus textos – “o islamismo é a
religião mais idiota do mundo”,
tachou certa vez. No contraponto
de uma polemização pobre estão
os manuais politicamente incorretos que inundam as livrarias.
O Recife
64
Um livro recente que provocou
barulho entre a crítica especializada tem o Recife tanto como cenário como personagem. Orgia, do
argentino Túlio Carella, ganhou
imagens: divulgação
nova edição pela editora Opera
Prima. Representante máximo da
literatura homoerótica, a obra traz
os diários de Túlio durante o tempo em que viveu na cidade nos
anos 1960, a convite da Universidade Federal de Pernambuco. Ele
relatou suas andanças pelo cais
do porto, jogou-se na libertinagem gay pelo Centro, encontros
sorrateiros com homens brutos e
detalhou tudo. Chegou a ser encarado como um estrangeiro subversivo. Ainda em 1968, o livro
teve uma pequena edição, logo
esgotada.
Lida hoje, a obra ainda causa
estranheza e o tom visceral com
que relata uma realidade escondida da maioria das pessoas ain-
O pesquisador
e mestre
em teoria da
Literatura
Christiano
Aguiar diz que
“nem todas as
polêmicas são
interessantes,
nem todas
implicam
que o seu
criador seja
alguém digno
de leitura e
atenção”
Caetano Veloso
falou sobre
as críticas de
Schwarz no
suplemento
literário da Folha
de S.Paulo
da provoca alguma polêmica. Foi
nessa embalagem “provocadora”
que Orgia chegou às livrarias em
2011. Segundo seu atual editor, o
jornalista Álvaro Machado, isso
não implicou vendagens expressivas. “Como somos uma editora
pequena, não temos um esquema
de distribuição tão eficaz”, disse.
“Tentamos dar uma dimensão
maior à obra. Não precisamos sublinhar o escândalo, que a obra já
tem de sobra.” Entre pesquisa e
finalização, o editor levou entre
três e quatro anos para concluir a
edição.
“O autor era um visionário,
estava além do tempo dele. Ele
conseguiu enxergar, naquele
tem­po, questões sociais que vi-
vemos hoje, como as trocas sexuais baseadas nas relações sociais”, diz Machado.
Em Pernambuco, a cena local
ganhou um ingrediente provocador com a chegada do Urros Masculinos, o coletivo formado por
Bruno Piffardini, Artur Rogério e
Wellington de Melo. A ideia era
fazer uma provocação ao grupo
de escritoras do Vozes Femininas. Era uma forma de satirizar as
questões de gênero que orbitam
os debates sobre literatura. Eles
chegaram a organizar encontros
inovadores na cidade, como a
FreePorto (brincadeira com a Fliporto, maior festa literária do Estado),
que geraram opiniões diversas
pelo modo um tanto iconoclasta
com que atuavam. Nomes como
Marcelino Freire, Lucila Nogueira
e Ronaldo Correia de Brito participaram desses eventos.
Com tempo estimado para
terminar, o Urros encerrou suas
atividades no início deste ano.
“Na verdade, não pretendíamos
alcançar efeito nenhum. Ou até
queríamos: que as pessoas pensassem um pouco mais sobre
literatura e menos sobre o que
está à borda disso, por mais contraditório que possa parecer.” “O
Urros nasceu como uma iniciativa ao contrário, então o objetivo
maior é a autossabotagem. Nisso,
acho que fomos um sucesso”. O
atrito das polêmicas pode contribuir para um debate rico, mas
Michel
Houullebecq
provoca reações
exaltadas com
suas declarações
muitas vezes serve ao propósito
de julgamentos morais e ataques
às opiniões de seus autores, sem
dar muita importância ao que
publicam. “Aqui, no Recife, tem
algumas criaturas com esse hábito feioso. Mas é melhor nem comentar”, diz Wellington de Melo.
Quadrinhos
A arte sequencial brasileira tem
muito destaque nas livrarias, e
seus autores também são alvo de
polêmicas que alimentam imprensa e mercado. O mais conhecido deles é o cartunista Laerte, que, em 2009, passou a se
travestir usando roupas e itens
do vestuário feminino em tempo
integral. Fruto de uma crise exis-
65
tencial, essa transformação passou a refletir bastante em seus
trabalhos. Mais subjetivas, muitas tiras trazem críticas ao pensamento conservador do brasileiro e ataques contra a homofobia. O desenhista foi impedido
de entrar no banheiro feminino
de uma famosa pizzaria de São
Paulo, em janeiro deste ano. O
pedido partiu de uma cliente que
disse estar “constrangida” pelo
fato de a filha, menor de idade,
estar presente no local. “Ela não
entendeu a existência do transgênero. Para ela, travesti é uma
espécie de sem-vergonha, um
transformer, um palhaço. Eles
estão desinformados. Com boa
ou má-fé, eles estão praticando o preconceito”, disse Laerte,
à época. Hoje, tanto o atual trabalho quanto sua figura pública
provocam controvérsia.
Rafael Campos
Rocha mexeu com
a questão religiosa
em Deus, essa
gostosa
Já o artista plástico e quadrinista Rafael Campos Rocha mexeu em um meio que gera polêmica instantânea: a religião.
Sua estreia em livro foi a coletânea de tiras Deus, essa gostosa
(Quadrinhos na Cia). Na obra,
Deus é uma mulher negra que
possui poderes oniscientes e
onipresentes, mas é adepta dos
prazeres carnais e frivolidades
da vida humana. “Fiz um Deus
que fosse o oposto simétrico do
Deus das religiões monoteístas adotadas pelo homem moderno ocidental. Portanto, ela
é sexuada, feminina, noturna,
apátrida (isso é muito importante) e profundamente con­
tracultural”, conta.
A obra saiu primeiro no jornal Folha de S.Paulo e na revista
piauí. “Recebo e-mails, às vezes sombrios e ameaçadores,
FOTOS: divulgação
UBE | Posicionamento
O escritor e
dramaturgo
pernambucano
Nelson
Rodrigues
foi um dos
maiores
polemistas
brasileiros
às vezes só me chamando de
imbecil. Uma carta deliciosa foi enviada para a Folha, que
chama o meu trabalho de ‘um
deboche ignóbil e malicioso’.”
Polêmicos históricos
66
Nelson Rodrigues pode ser considerado o mais célebre dos polemistas, mas é possível dizer
que a literatura brasileira é pródiga nesse quesito desde muito
cedo. São muitos os exemplos. Já
em 1888, o carioca Raul Pompeia
trouxe para seu romance O Ateneu
um jovem complexado, vivendo
em um universo ansioso cheio
de regras e opressão. Chocou por
tratar de forma inédita temas
como masculinidade e homofobia. Defensor do ideário abolicionista, Pompeia envolveu-se
em diversas polêmicas, foi atacado pela imprensa, criticado
por intelectuais e envolvido em
escândalos amplamente divulgados. Isolado, suicidou-se no
Natal de 1895.
Mais tarde, na década de
1920, um grupo de escritores e
artistas resolveu escandalizar
a classe média paulistana com
uma semana de exibições que
antenava para o Modernismo,
vigente na Europa. Hoje, bastante relativizada, a Semana de
Arte Moderna entrou para a história
como um momento de rupturas
na literatura brasileira.
O mais célebre nome daquela geração, Oswald de Andrade,
tornou-se ícone por sua produção na literatura, teatro e jornalismo. Tinha um ideal nacionalista acurado e defendeu suas
posições em artigos publicados
em jornais de São Paulo e do Rio
de Janeiro. Seu pensamento de
vanguarda o colocou em choque com nomes como Monteiro
Lobato, em um célebre artigo
em que defende a pintora Anita
Mafaltti. Tido como “subversivo”, ele atacou conservadores
da esquerda e da direita e atacou
o nazismo crescente da época.
Papel da crítica
A cobertura especializada em
literatura, na imprensa brasileira, serve de combustível para
repercutir polêmicas do meio.
A importância da crítica está
sendo posta em xeque, mas sua
relevância não pode ser subestimada. A antologia Geração zero
zero, organizada por Nelson de
Oliveira, provocou reações contrárias entre os leitores, réplicas e tréplicas na Folha de S.Paulo.
Apesar do barulho entre escritores e editores, o pesquisador
Cristhiano Aguiar acha que isso
não tenha influenciado nas vendagens.
“No entanto, esta forma de
repercussão – críticas literárias
na imprensa e polêmicas entre
autores – não deve ser subestimada: essas discussões têm,
sim, um efeito, porém mais relacionado ao próprio meio literário e aos seus mecanismos
específicos (e idiossincráticos)”,
diz. “O importante é que todo o
barulho não nos impeça de fazer
o mais importante: ler.”
67
UBE | Gastronomia
LETRAS sem gosto
reprodução
Apesar da importância da
gastronomia na sociedade nacional,
comida é um item submergido na
literatura clássica nacional
Por Eduardo Sena
68
P
ilar da literatura inglesa do século 18, e considerada até hoje um
clássico literário daquelas paragens, a escritora Jane
Austen esteve durante toda a infância e adolescência dentro da
burguesia agrária da Inglaterra
daqueles idos. Fez valer a máxima sociológica de que o homem
é fruto do meio, e trouxe de forma marcante em grande parte
de suas obras, e com riquezas de
detalhes, as tradições domésticas de sua sociedade. Entre as
tantas daquela época, aparecem
de forma recorrente nos livros da
autora o famoso chá da tarde, os
suntuosos cafés da manhã da fidalguia inglesa, e o ambiente da
cozinha como um todo.
Com o Reino Unido atravessando, nesse período, a Revolução Industrial, essa inocência nas
obras de Jane é apenas aparente,
e pode ser interpretada de várias
maneiras. A mais preponderante
delas é o fato de a escritora verter em letras todos os costumes
vividos por ela, utilizando a comida como fio condutor de seus
romances dentro de um caráter
ficcional. Tomando como ponto
de partida as obras de Austen,
como instrumentos de formação da sociedade inglesa durante
muito tempo, é de se estranhar
que o Brasil não tenha nada parecido no gênero romance.
“Dentro do senso comum, os
valores que mais se sobressaem
ao Brasil como um todo é o futebol, o carnaval e a diversidade gastronômica. No entanto, é
muito escassa ou quase nula a
participação desses elementos
dentro dos produtos culturais
que temos, sobretudo os de iniciação”, aponta a socióloga Alba
Maranhão. A pedido da reportagem, quatro críticos culturais
elencaram 10 livros de formação
do brasileiro, aqueles clássicos
que “tem-que-ser” lidos na escola. Na lista, apareceram em
comum as obras: Dom Casmurro,
69
UBE | Gastronomia
Vidas secas, O cortiço, Macunaíma, A
moreninha, Memórias póstumas de Brás
Cubas, Grande sertão: veredas e Triste
fim de Policarpo Quaresma. Oito títulos em comum, quase uma unanimidade.
É interessante perceber que,
em nenhuma das obras identificadas, a comida aparece de
maneira relevante. “Dentro da
literatura clássica, os escritores sempre procuraram beber
na fonte das escolas europeias.
No Romantismo, por exemplo,
trouxeram a coisa da tragédia.
Já no Realismo e Naturalismo,
apostaram nas mazelas sociais.
Comida nunca foi vista como
algo importante e que mereça
destaque. É como se fosse abordar futilidade”, dispara Mário
Hélio, curador da Festa Literária Internacional de Pernambuco – Fliporto.
Nesse contexto de reflexão
social, as luzes são deitadas mui-
divulgação
to mais na ausência da comida do
que na presença dela como parte
de um rito. De Guimarães Rosa,
Grande sertão: veredas traz um pouco disso. Para ilustrar a falta de
alimento, ele fala da importância da mandioca e mostra a vida
em torno do polvilho (amido da
raiz). “O ato de quebrá-lo era
gostoso, parecia um brinquedo
de menino”, escreveu. O quinze,
da escritora cearense Rachel de
Queiroz, também traz essa mesma perspectiva. A obra, de 1930,
mas que retrata a grande seca de
1915, aborda o duro duelo entre o
homem e a terra, valendo-se da
fome para exprimir os anseios e
angústias da região.
Boom editorial
Se não comer, morre
Quintessência da literatura baiana, Jorge Amado não se cansava
de dizer: “Personagem tem de
ser vivo, de carne e osso. Se não
Gabriela, do
romance de Jorge
Amado, era uma
grande cozinheira
Doce poesia
Se no gênero romance, os motivos gastronômicos permeiam de forma pontual os livros,
na poesia a abrangência é mais notória, talvez por existir um foco maior dentro do tema
que está sendo escrito. Cronista gastronômica, a respeitada jornalista a Nina Horta certa
vez falou que quem escreveu os melhores poemas sobre comida foram Pedro Nava, Manuel Bandeira, Carlos Drummond e, sobretudo, Adélia Prado. “A poesia de Adélia oferece
uma comovente felicidade simples, surgida do fazer cotidiano”, constatou. Nesse contexto,
figura Casamento, poema que está no livro Terra de Santa Cruz (Editora Record, 2006) da
escritora mineira.
Casamento
70
Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como “este foi difícil”
“prateou no ar dando rabanadas”
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.
comer, morre”. Nas páginas de
Jorge, comia-se muito bem, diga-se de passagem. Da infinidade de frutas às merendas, doces e
iguarias da culinária baiana. Para
não falhar nesse quesito, o escritor consultava quituteiras famosas daquelas plagas, como Dona
Ayla, Dadá, Canô e Maria. “Talvez Jorge seja o escritor que mais
trouxe o elemento comida para
dentro das suas páginas, de uma
forma natural e leve, como uma
atividade no cotidiano do personagem”, afiança Mário Hélio.
Monteiro Lobato também era
um ávido defensor da comida
nacional em suas obras. Dizia
que “um país se faz com homens, livros... e uma boa gastronomia”. Chauvinista, criticava a
elite que executava receitas com
ingredientes brasileiros e as batizavam com termos franceses. No
Sítio do Pica-Pau Amarelo, sua obra
mais conhecida, ele elevou a
mesa a um instrumento de confraternização dos personagens
do sítio. Dona Benta e seus netos,
Narizinho e Pedrinho, o Visconde de Sabugosa e a boneca Emília utilizavam o ambiente da cozinha para narrar suas aventuras
e buscar conforto nos quitutes de
tia Nastácia. Entre os clássicos
acepipes, o virado de feijão com
torresmos, os bolinhos de chuva
e de polvilho e o indefectível café
coado na hora.
Para Hugo Viana, crítico de literatura do jornal Folha de Pernambuco, a comida dentro da literatura, seja ela clássica ou contemporânea, aparece sempre como
uma forma de contextualizar a
situação de tempo e de espaço.
“Por mais que não seja, de fato,
um elemento de grandeza dentro
das páginas, a gastronomia serve
para ilustrar algo subliminar do
personagem; seja o seu caráter,
uma impaciência, liberdade ou
código social”, defende.
O jornalista toma como
exemplo o livro O cheiro do ralo,
de Lourenço Mutarelli, que traz
uma visão complexa da vida
suburbana de São Paulo, passeando discretamente pelo fast
food. “Nesse romance, especificamente, o personagem se
apaixona por uma moça que é
garçonete. Portanto, a figura da
comida é meramente ilustrativa,
complementar e secundária. O
livro não se propõe a discutir os
hábitos alimentares de lanchonete, mas utiliza o artifício para
construir a identidade dos personagens”, explica.
Mesmo que na ótica da hierarquia literária ainda seja subjugada, o fato é que a gastronomia já desponta como um das seções mais procuradas dentro das livrarias. Deixando
de servir como plano de fundo para os livros técnicos, o assunto se transformou em
fonte de pesquisa, biografias e outros enredos. Segundo o site especializado em mercado editorial, Publish News, entre os 20 livros de não ficção mais vendidos em 2011,
figuram dois com motivos gastronômicos: A cozinha rápida de Ana Maria Braga, da
apresentadora de TV homônima, e 30 minutos e pronto, do badalado chef inglês Jamie
Oliver. Algo impensável, há 10 anos.
O chef de cozinha brasileiro Alex Atala, que ocupa o posto do 4º melhor mundo,
segundo a revista inglesa Restaurant, também já se aventurou no mundo das letras
lançando, em 2008, o Escoffianas brasileiras (Larousse do Brasil), revelando os pormenores dos ingredientes nacionais e suas receitas. Em Pernambuco, o jornalista Bruno
Albertim também naquele ano pôs nas prateleiras o seu Recife – guia prático, histórico
e sentimental da cozinha de tradição, contando a história de uma das cozinhas mais
importantes do Brasil – a pernambucana –, com um guia dos principais endereços do
Recife para se deleitar com tais ícones gastronômicos.
Igualmente evocando a cozinha típica do Estado, a pesquisadora gastronômica Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti (foto) condensou parte de seus copiosos estudos, aos
quais ela sempre se dedicou com afinco – na teoria e na prática, e lançou em 2009 o
livro História dos sabores pernambucanos. Um calhamaço de 359 páginas, divididos
em 13 capítulos, começando pelas heranças indígena, portuguesa e africana, até chegar aos tira-gostos, entradas, pratos de sustança, acompanhamentos e sobremesas.
“No início, as pesquisas eram para satisfazer uma curiosidade minha de saber que
pratos eram nossos e quais vieram de fora”, revela a escritora que foi criada no engenho,
e tem em todas as memórias da sua infância o cenário da cozinha da casa de sua avó,
onde passava horas vendo-a preparar os pratos. “Isso me marcou muito, o gosto da
culinária, o prazer de cozinhar”, afiança.
Ela lembra, ainda, que a literatura culinária de Pernambuco tem uma dívida com o
sociólogo Gilberto Freyre. “Em uma época na qual virou moda copiar receitas que não
eram nossas, ele alertou para esse grande patrimônio que é a comida de Pernambuco. Daí, começamos a valorizá-la, receber os amigos com pratos tradicionais, e também fazendo uma releitura deles, usando ingredientes da terra com nossa leitura”,
explica Maria Lectícia.
Pioneiro de todos
nessa arte, o escritor que
inaugurou a literatura gastronômica ocidental com o
livro A fisiologia do gosto,
Brillat-Savarin, dizia que
“sempre existiu uma íntima aliança entre a arte
de bem-dizer e a arte de
bem-comer”. Seja no Brasil, de Jorge Amado, ou na
Inglaterra, de Jane Austen,
o importante é perceber
que um prato não oferece
apenas ingredientes e receitas. Conta toda uma forma de estar no mundo.
71
divulgação
UBE | Cinema
VIRE A PÁGINA
e rebobine o filme
Literatura e cinema estão fortemente
interligados. Convidamos pesquisadores, críticos,
escritores e cineastas para debater a questão
Por Guilherme Carréra
A
72
sugestão de que a literatura pode ser
considerada superior
ao cinema talvez encontre respaldo na experiência
da adaptação cinematográfica de
um livro. Beber da fonte de um
material já existente para elaborar um roteiro colocaria o cinema
degraus abaixo como arte? Para o
cineasta, escritor e ensaísta Fernando Monteiro, não há como
hierarquizar. “Literatura e cinema são duas linguagens diferentes”, decreta.
Nascido em 1949, Monteiro
vem de uma geração marcada
pelo amadurecimento de cineastas europeus e norte-americanos, hoje, considerados referências. Sua incursão pelo cinema
não demorou a acontecer. Em
1972, produziu e dirigiu o curtametragem Visão apocalíptica do radinho de pilha, que viria a represen-
tar oficialmente o Brasil no Festival
Internacional de Guadalajara, no México. Quase que concomitantemente, estreou na literatura. Em
1973, saía o poema longo Memória
do mar sublevado, editado como
primeiro livro.
Essa predisposição para a câmera e para a pena lhe valeu experiência em ambos os domínios.
“Sou de uma geração apaixonada
pela literatura e pelo cinema, simultaneamente. Para nós, não
havia ‘supremacia’ de uma sobre
o outro, e vice-versa.” Monteiro
e sua turma, no entanto, não punham muita fé no impresso. “Nós
achávamos que a pena viria a ser,
progressivamente, ‘substituída’
pe­la câmera. Mas não foi o que
aconteceu.”
Anos de experiência nas duas
frentes levaram o literato cinéfilo a ministrar encontros sobre a
relação que se pode estabelecer
Hitchcock dirigiu
adaptações de
filmes que não
eram obrasprimas
entre literatura e cinema. Em linhas gerais, entrega: “Estudamos
como reconhecer os pontos falhos de uma má adaptação cinematográfica e, inversamente, os
méritos de uma bem-sucedida
adaptação para a tela”. Sem querer se alongar sobre os métodos
que utiliza em sala de aula, vai
de encontro ao público, quando o
assunto é como diferenciar uma
boa e uma má adaptação.
“O que se faz é a transposição
de um meio expressivo para outro, operação artística na qual os
valores da obra original estarão
presentes de forma necessariamente ‘alterada’ pela passagem
do conteúdo abstrato das palavras
para a concretude das imagens.
Será outro o livro vertido para o
cinema, ou seja, transformado
num filme”, deixa claro. “Não
haveria por que a plateia considerar o filme uma boa adaptação,
73
UBE | Cinema
FOTOS: divulgação
ana fonseca
74
tendo como base o critério da fidelidade total ao livro escrito.”
É o que pensa também o escritor Homero Fonseca. “É simplesmente impossível transportar para a tela as minúcias de um
livro. O tempo da leitura é um
(dias, semanas, meses), o do filme é outro (100, 120 minutos). O
melhor critério para julgar uma
adaptação é se ela captou ‘o espírito da coisa’, ou seja, a essência do romance, trasladada para
outra linguagem, a do cinema”,
explica.
Fonseca lançou, em 2007,
Roliúde, um romance curioso. E
que, de certa forma, toca nossa
discussão. Bibiu, o protagonista, é
um contador de histórias, dividido entre a caatinga e Hollywood.
Tem como hábito traduzir para o
linguajar do Nordeste as histórias cinematográficas de grandes
clássicos, como: King Kong (1933),
E o vento levou... (1939), Casablanca
(1942), entre outros. Essas tramas, por sua vez, se misturam
às intempéries que vive em seu
cotidiano nos anos 1940. “Mas
o livro não é sobre o cinema
hollywoodiano nem pretende ter
uma narrativa cinematográfica.
O livro é sobre um contador de
filmes, e a linguagem é a dele, o
ponto de vista, o ritmo narrativo.” Embora crave essa distinção,
o autor acredita que “cinema e
literatura se influenciam, fenômeno, aliás, que acontece com
praticamente todas as formas de
arte”.
Se Roliúde vai virar filme, Fonseca desconversa. Mas o fato é
que, no teatro, a história já foi
parar. “Dei plena liberdade ao
diretor e ator João Ricardo Oliveira, do Rio de Janeiro, para adaptar. Ele captou perfeitamente o
tal ‘espírito da coisa’. Toda vez
a que assisto, tenho a impressão de que a peça é o livro, mas
também é outra coisa completamente diferente. Em resumo:
é também outra arte, é teatro.”
Doutor em Cinema pela Universidade de Sorbonne (França),
Alexandre Figueirôa aplaude a
não hierarquização e explica por
quê. “Estamos falando de textos construídos a partir de signos diferentes. O livro tem como
base a palavra, e o filme, além
da palavra, conta com a imagem
e o som. Nem sempre é possível
na adaptação transformar o sig-
Fernando Monteiro,
Homero Fonseca
e Alexandre
Figueirôa afirmam
que não é possível
hierarquizar as
linguagens
no verbal em signo audiovisual.
Nesse processo de transposição,
haverá sempre algo do texto original que ficará para trás e novos
elementos que aparecerão no
novo suporte.”
Ao entrar no debate, Rosângela Neres, doutora pela Universidade Federal da Paraíba, estabelece uma diferença pontual.
“O cinema basicamente ‘mostra’
e a literatura ‘conta’”, afirma. A
professora, no entanto, credita à linguagem cinematográfica
um poder novo. “O cinema tem
apostado em conceitos relevantes, como o poético e o simbólico, na construção de adaptações
que apresentam certa autonomia
em relação ao texto literário.” E
não raro essas adaptações conseguem superar o texto original. “A
seleção da narrativa e os acréscimos poéticos estabelecidos em As
horas (2001), de Stephen Daldry,
e Direito de amar (2009), de Tom
Ford, por exemplo, abrilhantam
o novo texto. Considero essas
adaptações muito mais criativas
do que os próprios textos literários.”
Figueirôa reitera, citando os
cineastas Alfred Hitchcock e Luis
Buñuel. “Eles dirigiram adaptações de livros que não eram
necessariamente obras-primas,
mas que resultaram em filmes
interessantes.” Do norte-americano, temos Pacto sinistro (1951),
adaptado de um romance de
Patricia Highsmith, e Os pássaros
(1963), adaptação de um conto
de Daphne Du Maurier. Do espanhol, há A bela da tarde (1967), da
obra de Joseph Cassel, e, ainda,
Este obscuro objeto do desejo (1977),
adaptação livre do romance La
femme et le pantin, de Pierre Louys.
Quem é o dono da história?
Do proveito que se tira de um
conto ou de um romance, o conceito da autoria de um filme pode
ser estremecido. Para o crítico de
cinema e doutor em Comunicação pela Universidade Federal de
Pernambuco Rodrigo Carrero,
um filme de autor em nada tem
a ver com filmar um roteiro baseado em uma ideia original (e
entendamos original como dissociada de um texto literário). “O
conceito de autoria no cinema
tem muito mais a ver com estilo
e estética do que com conteúdo
e narrativa. Claro que todo diretor tem preferências por certos
temas, mas, no geral, ele coloca
suas impressões digitais na escolha dos ângulos e movimentos de câmera, no trabalho com
os atores, no uso da música e
dos sons.” Desse modo, retornamos ao mestre do suspense.
“Hitchcock talvez seja o melhor
exemplo, já que ele costumava
trabalhar frequentemente com
adaptações literárias, inclusive
Psicose (1960), mas a gente consegue reconhecer rapidamente um
filme dele.”
A suposição de que existe, de
fato, uma ideia original inquie-
A bela da tarde,
obra de Joseph
Canel, foi adaptada
para as telas por
Luis Buñuel
ta os pesquisadores. Fernando
Mendonça, doutorando em Teoria da Literatura pela UFPE e professor de uma disciplina sobre
adaptações cinematográficas, rechaça o conceito. “A cada dia fico
mais convencido que a suposição
de uma ideia original é hipótese
impossível, argumento impraticável, pois tudo já foi dito e contado.” Com isso, ele acredita que,
para um filme ter assinatura,
vale mais a forma como o argumento vai ser trabalhado do que
o argumento propriamente dito.
“Um cinema é original a partir do
momento em que ele estabelece
imagens e conexões que ainda
não foram previstas. Um cineasta
é um autor pelas escolhas que faz
para materializar uma ideia, não
pela ideia em si.”
Historicamente, o cinema
do século 19 estabeleceu forte
relação com o teatro. A França
75
FOTOS: divulgação
UBE | Cinema
dos irmãos Lumière investiria
suas duas primeiras décadas em
curtas-metragens inspirados no
cotidiano. “Só a partir de 1917,
quando o longa-metragem de
120 minutos passou a ser mais
aceito, as adaptações literárias
ganharam espaço”, explica Carrero. Mendonça lembra que a
década subsequente ajudou a
sedimentar a relação entre cinema e literatura. “Nos anos 1920,
a influência da literatura sobre
o cinema começa a se delinear
com mais recursos e conscientização, por conta das vanguardas
modernistas e da reflexão que
alguns cineastas teóricos, como
Jean Epstein e Serguei Eisenstein,
enxergaram frente aos benefícios
da relação entre as artes.”
Como analisar um filme em meia página de jornal
A visão de quem adapta
76
“Se a gente não gosta do que está
adaptando, o resultado não pode
prestar”, garante Bráulio Tavares,
escritor, compositor e roteirista
para cinema e televisão. “Eu procuro sempre absorver o espírito do autor, seu modo de ser, de
pensar, de sentir, de ver o mundo. Procuro acreditar na história
que está sendo contada”, ensina.
A lista de adaptações de Tavares é
significativa.
Além de já ter adaptado Gilberto Freyre, Nei Leandro de
Castro e Marco Carvalho, ele é o
responsável pela adaptação dA
Pedra do Reino (2007), de Ariano
Suassuna, para a televisão (embora o tratamento dado pelo diretor Luiz Fernando Carvalho se
assemelhe ao do cinema). “Tínhamos em mãos não apenas o
Romance da Pedra do Reino, que tem
700 páginas, mas também Ao sol
da Onça Caetana que tem umas 250
e As infâncias de Quaderna que deve
ter umas 500 (inédito em livro,
consultamos a edição em folhetim de jornal). Nós nos concentramos no primeiro livro, mas
esses outros dois serviram para
preencher as lacunas da história e explicar melhor o passado
dos personagens”. A crítica se
dividiu, mas esse não é o tipo de
retorno que o afeta. “Acho que a
maioria não gostou, mas a minoria que gostou percebeu bem as
nossas intenções.”
Na função de roteirista, Tavares diz que precisa encarar o desafio da adaptação com parcelas
semelhantes de liberdade e limite. “Todo processo criativo precisa de liberdade e de rédeas, mas
cada trabalho cria seu próprio
sistema de regras. Às vezes, o diretor chama o roteirista para escrever porque se identifica com
as ideias ou o estilo dele. Outras
vezes é o produtor que contrata
um roteirista para desenvolver
um projeto que ele quer produzir. Em cada situação dessas, o
grau de liberdade e de limitação
varia muito.” Como lema, um
só. “Eu diria que se a gente está
adaptando a obra de alguém deve
respeitar suas ideias, mesmo que
tome certas liberdades quanto à
forma.”
O currículo do cineasta Léo
Falcão conta com duas experiências do gênero. Seu primei-
A adaptação do
Romance da Pedra
do Reino para a TV
dividiu a crítica
ro longa-metragem Guia prático,
histórico e sentimental da cidade do
Recife (2008) é uma adaptação
de Gilberto Freyre. E o curta Palavra plástica (2010) foi realizado a
partir de poemas de Carlos Pena
Filho. O curioso é que ambos
são documentários, quase uma
exceção no rol das adaptações.
“No primeiro, o grande desafio
foi traduzir todos os aspectos
da obra de Freyre (como pesquisador e autor) num estatuto documental, mostrando um
Recife que também é meu. Já no
segundo, comecei de um segundo nível de adaptação: a partir
das leituras de artistas plásticos
dos poemas de Carlos Pena, criei
sequências de imagens que deveriam guardar uma relação não
apenas retórica, mas, sobretudo,
plástica.” Para Falcão, um cineasta não pode fazer com o material de um escritor o mesmo
que não pode fazer com o olhar
do espectador. “No fim das contas, o que fica é o filme, e não o
processo de adaptação ou as expectativas (frustradas ou superadas). Se o filme é bom, valeu.”
Lavoura
arcaica, obra de
Raduan Nassar,
ganhou versão
cinematográfica
Diante dos críticos de jornais, essa relação tende a ser
suspensa no momento em que se opina sobre um filme. “Para
avaliar um filme, é preciso olhar para ele como algo independente. Roteiro original ou adaptado, se o filme não se sustenta
como obra autônoma, é falha grave e deve ser apontada”, afirma o jornalista André Dib. Crítico de cinema do Diario de Pernambuco, ele gosta de avaliar uma obra sob o ponto de vista da
reinvenção. “Uma boa adaptação reinventa a essência da obra
original. No livro Cinemancia, Júlio Bressane trata do processo
de tradução como exercício de liberdade criativa. Ele parte do
caso de São Jerônimo, que converteu a Bíblia do sânscrito para
o grego, investigação que foi tema de um de seus filmes. Quantas liberdades foram tomadas para chegar até a Bíblia ocidental? Da literatura para o cinema, vale o mesmo.”
Jornalista cultural do portal Pernambuco.com, Júlio Cavani comunga da mesma opinião, mas abre exceção. “Se o
filme for baseado em um livro que possua uma importância
anterior, ressalvas podem ser feitas, principalmente, quando há algum tipo de deturpação em relação à essência do
material original.” Na hora de enumerar as adaptações bemsucedidas, destaca Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira
dos Santos, baseado no romance de Graciliano Ramos. Dib
escolhe Lavoura arcaica (2001), a adaptação de Luiz Fernando Carvalho do livro de Raduan Nassar, e justifica. “O filme
alia uma narrativa audiovisual com capítulos inteiros do livro,
praticamente lidos em voz over pelo personagem principal. O
resultado é maravilhoso. E muito raro. É um caso tão à parte,
que não dá nem pra usar como exemplo.”
Carrero, crítico responsável pelo site Cinerepórter, lembra, ainda, Cidade de Deus (2002), dirigido por Fernando
Meirelles e adaptado da obra de Paulo Lins, marco da cinematografia nacional, lançado há exatos 10 anos. “É um ótimo exemplo de síntese de um material muito amplo dentro
de uma narrativa concisa”, avalia. Quando se prepara para
resenhar sobre um filme, ele fica de olho na capacidade de
o mesmo ser verbalmente contido. “Acho essencial que os
responsáveis pela adaptação contenham o impulso natural
pela verborragia, porque bom cinema não é feito com excesso de exposição verbal. É preciso um trabalho de tradução
dessa verborragia em imagens e sons.”
Quando assistiu a Brás Cubas (1985), de Júlio Bressane,
Dib vai além ao comparar o filme ao texto original de Machado de Assis. “O diretor faz uma viagem de sons e luzes
que passa longe de descrever ambientes e personagens, de
transpor diálogos do romance original, itens de uma suposta
‘fidelidade’ que se confunde com reverência, ou até submissão. Em Brás Cubas, Machado, ou ao menos a busca por ele,
está na luz do filme.” 77
Hugo Monteiro Ferreira
A leitura, a literatura para infância
e a escola brasileira
78
Professor do
Departamento de
Educação da UFRPE.
Assessor Especial
da HMF Assessoria
Pedagógica.
Escritor. Palestrante.
Representante da
Cátedra UNESCO
de Leitura em
Pernambuco.
Este texto, de modo despretensioso, propõe
reflexões sobre a problemática da leitura no Brasil
e de como essa problemática se relaciona com a
escola brasileira e de como repercute na formação
do leitor. Por meio de tópicos curtos e diretivos,
procuramos trazer à tona alguns pontos, ao nosso
ver, relevantes para a discussão da temática.
Reconhecemos a brevidade das reflexões e suas
limitações. Desse modo, antecipadamente,
agradecemos sugestões e críticas que por ventura
existam. Outrossim, sugerimos que o texto seja
lido menos como verdades fechadas e mais como
pontos abertos à discussão.
Não se pode dizer que o Brasil é um país de
leitores assim como a França já foi no século
passado. Também não se pode dizer que o Brasil
é um país sem leitores, pois, de verdade, não
existem não-leitores. Em algum nível, todos,
sem exceção, desde que humanos, lemos. O que
podemos dizer, sem muito cuidado com possíveis
equívocos, é que, no Brasil, a leitura não é uma
prioridade para os governos de um modo geral.
É fato que a leitura – no sentido estrito da
palavra –, isto é, como sendo uma ação relacionada
à compreensão do código verbal tão-somente tem
sido motivo de discussões das mais diversas e das
mais intensas. No entanto, embora seja motivo de
discussão não tem sido pauta priorizada quando as
questões tocam nas políticas públicas sobre leitura,
formação do leitor, sobre a relação entre leitura e
escola. Em todo caso, nos dias contemporâneos,
existem iniciativas oficiais que nos levam a crer
que, cedo ou tarde, a problemática da leitura e
sua relação com a escola e mais precisamente,
a problemática da leitura literária e sua relação
com a escola serão temas que estarão no foco das
discussões mais acirradas sobre políticas públicas
de leitura. O PNLL, por exemplo, talvez seja um
indicativo do que estou prevendo.
Se entendermos que em 1920, 75% da
população brasileira eram analfabetos, isto é,
não possuíam a alfabetização escolar mínima,
compararemos com os dados apresentados nos
dias atuais, cerca de 9% são analfabetos no Brasil,
entenderemos que as problemáticas da leitura
no Brasil não são mais as mesmas e que, embora
ainda não sejam exatamente o que podem vir a
ser, tais problemáticas aparecem em destaque.
No entanto, o destaque que lhes é dado
parece-nos muito pouco relevante quando
comparado a questões também importantes para
a formação e manutenção de uma sociedade
crítica, criativa e cuidadosa. A leitura, quando
posta em oposição – se é que isso deva ser feito –
a outra maneira de construção e desdobramento
da informação, no Brasil, ainda ocupa espaço
desprivilegiado.
Nas casas das famílias brasileiras, com raras
exceções, a cronotopia do livro não é vista e nem
sentida. De verdade, o livro quase inexiste nas
casas. Desse lugar de onde falamos agora, falamos
da ausência da leitura no cotidiano doméstico dos
brasileiros e das brasileiras, porém não tratamos
de qualquer modalidade de leitura, exceto da
modalidade verbal escrita e mais precisamente da
leitura do livro.
É o livro, objeto muito antigo, nas famílias
brasileiras, um bem cultural de pouca frequência.
E quando dizemos de pouca frequencia, estamos
querendo dizer de pouco uso e de uso muito
pouco concretizado. O livro e a casa do brasileiro
não costumam ser, digamos, elementos unidos.
Em pesquisa recente, assinalamos que de dez
famílias pesquisadas somente duas tinham livros
em seus espaços domésticos.
Os livros e as leituras são questões
merecedoras de muitas atenções. Por razões
sociais e históricas, que o espaço não nos permite
aprofundar, no Brasil, nas famílias, a leitura de
livros é assunto de valor questionável. Ler um
livro, vimos em nossa pesquisa sobre leitura e
família, para alguns, pode ser considerada uma
perda de tempo muito grande e de consequências
não relevantes para a vida mercadológica.
A escola brasileira é uma invenção da
modernidade. É forjada sob a lógica do modelo
de sociedade burguesa do século 19 e tem nos
princípios e pressupostos das teorias racionalistas
sua linha diretriz de pensamento. Diríamos
que a escola brasileira não foi criada senão para
conseguir dar cumprimento aos ideários da lógica
mercantil e foi pela ótica do funcionalismo que a
leitura foi tratada na escola.
O livro para a infância (para mim, a palavra
“infância” remete tanto à criança quanto ao
adolescente) chegou às escolas brasileiras menos
como um livro que fosse do agrado dos leitores
reais, e mais como um livro que tivesse por
objetivo principal ensinar para meninas e meninos
– diferenciados pela classe social e econômica
da qual faziam parte – o que elas e eles deveriam
aprender a fim de que pudessem ser “legais”
representantes – futuros – do sonho mercantil.
A leitura de livros para a infância, nesse
sentido, foi menos uma ação de escolha do leitor
em formação e mais uma imposição do projeto
societário da época. A leitura na escola e a leitura
escolar – sem fazer distinção dos conceitos que
permeiam as duas expressões – não se deu – no
seu aspecto coletivo – pelo e por prazer, porém se
deu pelos processos da obrigação leitora.
A literatura para a infância, por exemplo,
foi utilizada no Brasil, no início do século 20
como uma estratégia pedagógica com vistas à
alfabetização de crianças escolares – isso por isso
mesmo não tem grandes problemas –, entretanto,
a questão é que tal estratégia pedagógica ignorava
as possibilidades oferecidas pela literatura e
reduzia a literatura a mero auxílio de ensino.
A redução da literatura a mero auxílio de
ensino é um dos mais equivocados atos da escola
brasileira, todavia, esse foi o espaço e o tempo
que a leitura do livro para infância conseguiu ter
na escola brasileira do início do século 20. As
consequências dessa desastrosa maneira de se
relacionar com a leitura de literatura foram muito
ruins para a formação do leitor literário no Brasil.
Uma leitura por obrigação nunca é, de
verdade, um ato de escolha. Ou seja, a leitura
obrigatória proposta pela escola brasileira no
início do século 20 para os leitores brasileiros em
formação menos ajudou a formar pessoas críticas
e mais contribuiu para que houvesse aversão ao
ato de ler. Leitores obrigados não são autônomos,
visto que não reconhecem no processo leitor um
momento de libertação.
A leitura de literatura deve ser uma ação de
escolha e feita sob a lógica do prazer. Somente
Não se pode dizer que o Brasil é um país de
leitores assim como a França já foi no século
passado. Também não se pode dizer que é um
país sem leitores, pois, de verdade, não existem
não-leitores. Em algum nível, todos, sem
exceção, lemos. O que podemos dizer, é que,
no Brasil, a leitura não é uma prioridade para os
governos de um modo geral
assim – de outra maneira ignoramos – é possível
que o leitor em formação possa viver uma
experiência que o conduza para a criatividade e
para a criticidade. Dizemos “conduza”, mas, de
fato, devemos dizer “construa”, posto que o sujeito
crítico e criativo é um sujeito “construído”.
O leitor criativo e crítico é aquele que construído
na e pela leitura não aceita – de modo mecânico
– ideias e ideários. O leitor crítico é sobremaneira
uma pessoa que utiliza a reflexão quando diante
de situações complexas que a vida lhe traz. A
criticidade é uma característica do sujeito leitor
forjada na leitura de literatura. A escola, se bem
orientada, pode e deve ser uma cronotopia de
construção desse leitor.
De mesma maneira, a escola também pode
e deve contribuir para a construção de sujeitos
criativos. Os sujeitos criativos são também os
sujeitos que se propõem ao novo e não fazem
uso da repetição como um elemento necessário à
construção da verdade. Os sujeitos criativos buscam
e encontram soluções para as situações complexas
que a vida individual e coletiva apresenta e fazem da
criatividade uma estratégia de melhoria social.
A criatividade é essencial ao desenvolvimento de
uma comunidade. Sujeitos leitores são criativos e são
críticos, isto é, são fundamentais para sociedades
que almejem o bem comum. Desse ponto de vista,
entendemos que o Brasil – considerando seu
projeto para o bem comum – necessita formar,
urgentemente, por meio das famílias e das escolas,
leitores críticos e criativos, posto que são tais leitores
a garantia de uma sociedade reflexiva e plural.
Este texto trouxe à tona reflexões as quais, se
lidas com cuidado, poderão levar o leitor a seguinte
sentença: a leitura no Brasil ainda é um desafio,
porém não é um desafio intransponível. A leitura
literária, feita nas famílias ou nas escolas, quando
não imposta, porém vivenciada pelo e com prazer,
é muito importante para a formação de sujeitos
críticos e criativos.
79
UBE | Infantojuvenil
reprodução
LEITURA
na infância
o rótulo “infantojuvenil” é escorregadio e
controverso, muitas vezes usado como justificativa
para uma produção pobre, moralizante e antipoética
Por Gianni de Paula Melo
H
80
á uma popular tirinha
do quadrinista Macanudo em que o gato Fellini
tenta apressar Enriqueta, quando
a menina está decidindo qual livro da sua estante deve ler. A personagem explica seu dilema com
muita sensatez: “O que acontece
é que vou ler muitos livros em
minha vida... Mas os que eu ler
na infância vou me lembrar pra
sempre”. O que a memória acolhe
e amarra é cruz para vida inteira;
se podemos, minimamente, definir nossas lembranças, melhor
para nós. Enriqueta, enquanto
leitora, já se sente pressionada
nesse sentido, consciente de que
as suas escolhas da infância são
determinantes para a relação que
vai estabelecer com as obras literárias. Tal lucidez, no entanto,
nem sempre podemos esperar do
leitor iniciante, daquele que está
começando a tatear esse universo
artístico complexo, por isso cabe
aos mediadores – pais, professores, educadores diversos – a responsabilidade de apontar textos,
autores e caminhos.
Essa relevância dos livros lidos quando criança para a formação intelectual e pessoal remete
ainda a responsabilidade do escritor, mencionada certa vez pela
professora e pesquisadora Luzilá
Gonçalves: “Fazer literatura infantojuvenil não é você escrever
qualquer brincadeirinha, envolve
uma sensibilidade importante.
Porque quando a gente desperta
uma pessoa para a beleza, a gente
não segura mais ela”. Na verdade, a responsabilidade do escritor
continua a mesma: fazer literatura. O termo (e rótulo) “infantojuvenil” é escorregadio e controverso, muitas vezes utilizado
como justificativa para uma produção pobre, moralizante e antipoética. Aliás, o bibliotecário e
comentador de livros para crian-
O pernambucano
André Neves é um
dos ilustradores
que tem se
destacado na área
ças, Marcus Crouch, é muito feliz
quando defende que “o autor honesto (...) escreve o que está dentro de si e precisa sair. Às vezes o
que ele escreve terá ressonância
nas inclinações e interesses dos
jovens, outras vezes, não”.
A palavra que deve interessar
ao leitor literário, seja qual for a
sua idade, é essa que compõe a
obra honesta. Mas, além de trazer
a verdade do seu autor, ela deve
apresentar compromisso estético
forte. A safra contemporânea de
publicações “para crianças” tem
assumido louváveis experimentações de forma e conteúdo; por
isso é válido se ater a alguns livros do catálogo “infantojuvenil”
81
UBE | Infantojuvenil
que preenchem olhos e alma dos
apreciadores exigentes.
Bili com limão verde na mão, assinado pelo poeta Décio Pignatari,
é uma desses trabalhos de grande potência poética e diálogo
elaborado entre o texto e as ilustrações. Reconhecido por muitos como uma espécie de Alice
no país das maravilhas tupiniquim,
o livro se utiliza de recursos literários complexos como o fluxo de consciência e dá um laço
entre poesia e prosa, explorando as estratégias verbovocovisuais
do Concretismo. Nele, vemos a
arte sem didatismo: não existe
intenção de afunilar as interpretações para um sentido único,
para “aquilo que a história quer
ensinar”. Bili... é a viagem imaginativa que toda literatura deve
ser, com um sentido formativo
que não busca as ações corretas,
mas a sensibilidade apurada.
Consolidar ações corretas, em
vez de problematizar o mundo e
o humano, é uma das ambições
equivocadas de parte da produção dita infantojuvenil. Na direção contrária a essa lógica, vem
livros como O pequeno fascista, de
82
imagens: divulgação
A poetisa Adélia
Prado rememora
sua infância em
Carmela vai à
escola.
Abaixo, ilustração
de Bueno para O
pequeno fascista
Fernando Bonassi, e Mentiras... e mentiras, da Tatiana Belinky. O primeiro já chama atenção
pelo título nada dócil e conta a história de um
menino sem limites, prejudicado por uma família desestruturada e uma sociedade ácida.
Se na “literatura adulta”, Bonassi demonstra
uma vocação para a polêmica, nos seus livros infantis não se despe desse traço e põe
em xeque a pureza das crianças, tratando o
assunto com criticidade, a partir de uma linguagem leve e lúdica. Porém essa desconstrução de mitos relacionados à formação moral
dos menores também está presente na obra de
escritores menos controversos. Aos 93 anos,
Tatiana Belinky já escreveu mais 250 livros
que circulam entre os mais jovens, incluindo peças, crônicas e poemas. Em Mentiras...
e mentiras, a escritora relativiza o comportamento que, desde cedo, seja no discurso dos
pais ou na narrativa de Pinóquio, aprendemos
ser incorreto. Segundo ela: “Há mentironas
e mentirinhas, mentiras maldosas e mentiras
bondosas, mentiras feias e mentiras bonitas,
mentiras covardes e mentiras corajosas, mentiras que valem a pena e mentiras que não
compensam o esforço”. Curiosamente, assim
como as publicações já citadas, essa também
não oferece verdades absolutas para o seu público, nem um mundo maniqueísta de resoluções fáceis.
Desmontar certos valores, no entanto, não
é obrigatório, mas apenas uma forma de re-
Ações em Pernambuco
Em consonância com essas preocupações do universo da literatura infantojuvenil, Pernambuco tem assistido a uma multiplicação de ações
regulares voltadas à formação do leitor. Projetos com diferentes focos
estão sendo desenvolvidos, para colaborar na educação das crianças,
estimular o contato com os livros literários e, assim, ampliar o senso de
humanidade. “O esforço de formar crianças e jovens leitores não deve
ser apenas um projeto escolar, mas, principalmente, da família e, por que
não dizer, de toda a sociedade”, lembra-nos o professor Antônio Nunes,
curador da Fliporto Criança.
O eixo desse grande festival direcionado aos mais jovens possui,
indiscutível relevância para reuni-los em torno dessa arte tão cara. No
calendário anual do estado, é uma das poucas atividades literárias previstas para esse público e possibilita um contato com importantes escritores e ilustradores sem a atmosfera de idolatrias. Além disso, serve
como vitrine de lançamentos e, é claro, momento de difusão do prazer
pela leitura, como comenta Nunes: “O nosso objetivo é levar ao nosso
público o melhor da literatura infantil e juvenil brasileira, além de realizar
atividades de valorização do livro e da leitura. Desejamos despertar nas
crianças pernambucanas tudo de bom que pode derivar dessa relação”.
Diante do efeito restrito que o evento pontual provoca, a Fliporto decidiu investir em ações continuadas em Olinda, para assistir a uma popularização da leitura mais efetiva na cidade. “Dentre estas, ganha destaque a Casa do Livro Infantil e da Leitura de Olinda (CLILO), um espaço
permanente para ações voltadas à formação de leitores, localizado no
centro histórico da cidade, motivo pelo qual, acreditamos, passará a fazer parte do roteiro turístico e cultural da cidade, bem como se integrará
ao cotidiano de suas crianças e jovens”, revela Antônio Nunes. Idealizado
para funcionar como um museu vivo, o espaço contará com biblioteca,
ambiente para exposição, sala de leitura e um quintal destinado às atividades ao ar livre.
Outra iniciativa de estímulo, dessa vez voltada mais para a produção, que está se mostrando sólida e profícua é o Concurso Cepe de Literatura Infantil e Juvenil. No ano em que realiza a terceira edição dessa
saudável disputa, a Companhia Editora de Pernambuco já apresenta um
catálogo coerente e rico. Sobre o surgimento dessa proposta, a escritora Luzilá Gonçalves, que coordena o concurso, explica: “Como a literatura infantojuvenil vem se expandido, não só pelo viés mercadológico, mas, sobretudo, no processo formativo, então percebemos que era
importante suprir essa lacuna”. Junto à Bagaço, empresa com histórico
compromisso no setor infantil, assistimos ao estabelecimento de certa
autonomia local nessa vertente do mercado editorial.
83
UBE | Confraternização
[Entrevista] ricardo azevedo
“Não se muda uma sociedade
com atos isolados”
divulgação
nunca tratou seu filho feito criança,
porque não sabia como crianças
deviam ser tratadas...”.
Além de escritor e ilustrador com mais de
100 títulos publicados, Ricardo Azevedo
também é doutor em Letras pela
Universidade de São Paulo, pesquisador
na área de cultura popular e professor
de cursos de especialização em ArteEducação e Literatura. O currículo
diversificado contribuiu para que autor
consolidasse um olhar crítico sobre a
formação do leitor literário e mantivesse
uma desconfiança contínua em relação à
chamada literatura infantil e juvenil.
84
Durante muito tempo, a literatura
direcionada às crianças e adolescentes
foi vista como uma produção de menor
relevância. Esse é um preconceito
superado?
Creio que, muito lentamente, a
chamada literatura infantojuvenil
venha ganhando mais interesse
por utilizar um tipo de linguagem
análoga às formas literárias
populares, assunto muito pouco
estudado; por trazer as riquíssimas
relações entre texto e imagem, outro
tópico pouco investigado; e por
possibilitar uma reflexão que reveja
os estereótipos culturais a respeito
de adultos e crianças. Na minha
visão, adultos e crianças são muito
mais parecidos do que diferentes e
isso precisa ser ressaltado sob o risco
de transformarmos o mundo num
ambiente esquizofrênico, baseado
apenas em “mercados”. Nesse
sentido, recomendo a leitura de Junius
Maltby, um pequeno e precioso texto
de John Steinbeck (em português, está
no livro O potro vermelho. Em inglês,
no livro The pastures of heaven). Traduzo
livremente um pequeno trecho:
“Robbie cresceu como uma pessoa
séria. Seguia os homens (Junius,
seu pai, e Jakob Stutz, um amigo de
seu pai), escutava suas conversas e
participava de suas discussões. Junius
Em sua opinião, nós também não
sabemos?
Eis o ponto: infelizmente,
imaginamos “saber” o que “é”
a criança, tanto que é comum
encontrar em livros o recado: “para
crianças de 10 anos”. Ignora-se
solenemente as características
pessoais, as experiências individuais,
as diferenças culturais, as crenças
e costumes de cada pessoa. Mais
que isso, ignoram-se as reais
potencialidades de crianças e jovens
e, no lugar disso tudo, consideramos
uma média estatística e burra. O
mundo e a educação serão melhores
quando não tivermos tanta certeza
a respeito do que sejam as crianças,
até porque, nesse dia, não teremos
tanta certeza do que sejam os adultos.
Sem dúvida, será um tempo mais
humano, diversificado e criativo.
No entanto, relevar que esse público
possui peculiaridades não seria voltar a
entender a criança, apenas, como “um
pequeno adulto”?
Nada disso. Primeiro, porque essas
ideias de Phillipe Ariès e outros
precisam ser matizadas. Basta ler um
texto escrito na Idade Média, ou em
períodos anteriores, para perceber
que, obviamente, sempre existiram
crianças e que elas sempre foram
amadas, cuidadas e protegidas.
Por outro lado, o que seria esse tal
“adulto”? Um bando de técnicos
egocêntricos e despolitizados que
ignora sua própria cultura e só pensa
em ganhar dinheiro para consumir
mais e mais? Se isso é o adulto,
estamos mal. Como disse, vejo muito
mais pontos em comum entre as
faixas de idade do que diferenças.
As diferenças certamente existem,
mas são conjunturais, enquanto
as semelhanças são de caráter
estrutural. Seria ótimo, se crianças e
jovens percebessem que seu pai e seu
avô também são aprendizes diante
das questões impostas pela vida
concreta e não estereotipada. Seria
ótimo se crianças e jovens, desde
sempre, fossem levados a perceber
que tomarão nossos lugares, serão
os protagonistas na construção do
futuro e que, para isso, precisam se
preparar, ser politizados, conhecer a
cultura humana.
Por que é tão difícil estabelecer uma
produção crítica voltada à literatura
infantojuvenil no país?
Creio que, no Brasil, essa reflexão
tem sido construída no âmbito das
universidades: basta citar os nomes
de Teresa Lajolo, Regina Zilbermann,
Vera Aguiar, João Ceccantini,
Renata Junqueira, Juliana Loyola,
Zaira Turchi, Flavia Ramos, Maria
Zélia Versiani, Nair Gurgel e muitos
outros pesquisadores trabalhando e
formando novos pesquisadores em
vários pontos do país. O problema
é que seus estudos são ignorados
pela chamada mídia. Mas não sinto
que a mídia discuta seriamente a
chamada literatura adulta, tirando
aquelas obras e autores nos quais
algumas editoras estão interessadas
em promover num dado momento.
Trata-se, enfim, de um cenário em
que a palavra cultura cabe muito
pouco.
direcionar o olhar das crianças, de
sobrepor lentes de entendimento.
Manter-se no simples e no tradicional também pode ser poético, basta
que a forma literária esteja a favor
da história, que a palavra flutue nas
páginas. Esse é o efeito alcançado
por Adélia Prado em Carmela vai à escola, em que velhas mensagens sobre
o valor dessa instituição e da família
estão colocadas com a acuidade de
uma grande poetisa, que rememora
a própria meninice passeando pela
linguagem artesanal elaborada nessa
fase da vida. A última frase do livrinho é de grande precisão literária,
pois Carmela nos diz que “Contada,
a vida de qualquer um fica bonita”,
obrigando-nos a lembrar que a boa
narrativa é menos o que de fato é dito
(ou vivido) e mais o “como é dito”, a
contação, o sentido artístico.
A memória pessoal também foi
matéria-prima da última obra publicada em vida por Bartolomeu
Campos de Queirós. O escritor mineiro, que faleceu em janeiro deste ano, relembra a própria infância
em Vermelho amargo, livro confessional que muitos dirão não se tratar
de um título infantojuvenil. Ora,
então o profundo e o existencial é
privilégio do universo adulto? Para
Queirós, que se dedicou a estudos
sobre aprendizagem e à militância
da educação pela arte, as interrogações feitas sobre a condição humana, quando ainda somos jovens,
não são tolas ou fáceis. Na verdade,
passamos a vida inteira tentando
responder as mesmas perguntas
que germinam lá no começo.
Assim como Adélia, ele ainda faz
do escrito literário um espaço de ode
à própria literatura. Enquanto a sua
conterrânea recorda com candura as
leituras decisivas datadas da época
narrada, como As reinações de Narizinho,
de Lobato, e Coração, de Edmundo
D’Amicis, ele revela a importância
da arte literária para suportar fardos
da juventude: “Eu suspeitava de que
o embaraço das letras amarrava segredos que só o coração decifra. Mas
uma certeza me vigiava: ler era meu
único sonho viável”.
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Luzilá Gonçalves Ferreira
Crianças, literatura, escola e prazer
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É escritora e
pesquisadora
com mais de 30
livros publicados
e professora do
Depto de Letras da
UFPE.
Nunca ouvi falar de um grande escritor que
não tenha sido um grande leitor em seus tempos
de criança. Que não tenha passado horas de
encantamento, isolado do mundo, um livro
à mão, alheio aos jogos dos amiguinhos, ao
movimento da casa, mergulhado em um reino
de fantasias, contos de fadas, aventuras de
heróis de ficção científica. Ou simplesmente
acompanhando acontecimentos corriqueiros,
mas transfigurados pela imaginação de um autor,
como o fizeram a senhora Leandro Dupré, com
as aventuras do cachorrinho Samba ou José
Mauro de Vasconcelos com seu Pé de laranja-lima.
Carlos Drummond de Andrade se deleitava com
Robinson Crusoé. Clarice Lispector, conta, em
Felicidade clandestina, como invejava a menina
sardenta e gorda que tinha um pai livreiro. Lucila
Nogueira descreve o encontro com Pele de Asno
em dias de chuva, num sótão da Rua do Lima. E
todos nós tivemos nosso livro preferido, que nos
fizeram sonhar, incentivaram nosso exercício da
fantasia e ajudaram a ler o mundo.
Os brasileiros leem pouco, dois livros e meio
por ano, em média, é o que revela pesquisa do
Ministério. Mas alguma coisa está acontecendo
que irá mudar, embora em prazo não tão curto,
o panorama da leitura nacional: é o esforço
que estão fazendo órgãos governamentais ou
as escolas, particulares ou da rede pública, na
formação dos pequenos leitores.
Nunca na história deste país, como diria
o outro, se publicou tanto livro para crianças.
Nunca tanto se fez para a formação de um
público infantil ou juvenil. Nunca se viu o
surgimento de tantos títulos e de autores, estes
nem sempre vocacionados para tal, diga-se de
passagem, pois muita gente está aproveitando
a ocasião para se lançar no mercado e produzir
textos que o professor indica, por força de
circunstâncias que todos conhecemos, por
pressão de editores, e interesses econômicos
diversos. A Câmara Brasileira do Livro, o
Movimento por um Brasil Literário, fundado
por Bartolomeu Campos de Queirós e Frei Beto,
a Biblioteca Nacional, a Federação Nacional do
Livro Infantil e Juvenil, o próprio Ministério,
estão engajados em belas campanhas que
buscam, com recursos do governo ou aliados a
empresas privadas, como a C&A ou a Gerdau,
para só citar dois nomes, atingir o maior número
passível de pequenos leitores.
Entretanto, escrever para crianças é muito
mais difícil do que se imagina. Foi o que se
percebeu em simpósio organizado por uma
dessas empresas, que reuniu especialistas em
literatura infantil, como Marina Colasanti,
Ana Maria Machado, Laura Sandroni, Marisa
Lajolo, Ana Dourado e Bartolomeu Campos de
Queirós. Este último, lembra a impossibilidade
de se viver sem as palavras e como a palavra
tem o poder de alterar o real. E acrescenta:
“Meu trabalho enquanto professor passou a ser
dar asas às fantasias das crianças”. Para ele,
o desenvolvimento da sensibilidade deve ser
um objeto de aprendizagem tanto quanto as
disciplinas comuns.
A Cepe, Companhia Editora de Pernambuco,
criou uma linha editorial dedicada ao público
infantojuvenil, com textos escolhidos por um
grupo de especialistas, e através de um concurso
para inéditos no nível internacional. Temos,
aqui, livros para os pequeninos, como Bia Baobá.
Bia é uma menina meio distraída, que presta
atenção em muitas coisas ao mesmo tempo,
esquece de tirar o chapéu quando toma banho
e não gosta de ir à escola em dias de chuva.
Temos histórias para adolescentes, como a do
menino de rua que, após muitos revezes, termina
por encontrar seu lugar na sociedade. Entre
essas duas linhas de faixa etária, estão livros
intermediários, mas que podem até interessar
adultos, como a nossa Cabra sonhadora, que usa
batom e perfume nos chifres, ou como o belo
Roda Moinho, poemas.
Tudo isso nos leva a colaborar na construção
da subjetividade do pequeno leitor, e neles
a capacidade de inventar seu próprio
destino. E nesse caminho, pais e,
sobretudo, a escola têm seu lugar
reservado, como escreve Bartolomeu
Campo de Queirós no final de seu artigo,
no livro Nos caminhos da literatura, publicado
pela FNLIJ:
“Mas não é fácil para a escola, usar
com plenitude a literatura. A escola faz
da literatura um instrumento pedagógico,
ela sempre quer que a criança leia para
saber, enquanto a literatura deve ser
lida pelo prazer de ler. E, sempre que há
sofrimento, na literatura, ela surge vestida
de beleza. Por ser assim, corre-se o risco
de a escola empobrecer a arte: querer
objetivar aquilo que só dialoga com a
subjetividade”.
Escrever para crianças é muito
mais difícil do que se imagina.
Foi o que se percebeu em
simpósio organizado por uma
dessas empresas, que reuniu
especialistas em literatura
infantil, como Marina Colasanti,
Ana Maria Machado, Laura
Sandroni, Marisa Lajolo, Ana
Dourado e Bartolomeu Campos
de Queirós
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Melchíades Montenegro Filho
Patrimônio da cultura
literária pernambucana
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É presidente da
Academia de
Letras e Artes do
Nordeste.
Em todo o mundo existem locais que
independente da vontade do homem tornam-se
ícones culturais, sejam quais forem as formas
de arte em que são apresentados: fotográficas,
cinematográficas, pictóricas, literárias, musicais
etc. Podemos exemplificar citando a Torre Eiffel
em Paris; a Torre de Londres, a ponte Golden
Gate em São Francisco; a cidade perdida de
Machu Picchu, no Peru, o Coliseu em Roma; o
Grand Bazaar em Istambul; a casa em que morou
Pablo Neruda em Viña Del Mar, no Chile, e uma
infinidade de outros lugares.
No Brasil, país de dimensões continentais
com uma riquíssima história e uma cultura de
meio milênio, além de uma pré-história que
remota a milhares de anos, não poderia faltar
áreas de interesses culturais que serviram de
cenário ou inspiração também às mais diversas
modalidades de arte. Citarei algumas: a esquina
das Avenidas Ypiranga e São João em São Paulo,
tema da música Sampa de Caetano Veloso; o Bar
Vesúvio em Ilhéus, citado no livro Gabriela cravo e
canela, de Jorge Amado; o Bairro de Copacabana
cenário de As noivas de Copacabana, uma minissérie
televisiva escrita por Dias Gomes e produzida pela
Rede Globo; Os pampas do Rio Grande do Sul na
trilogia O tempo e o vento de Érico Veríssimo, para
citar só essas.
Pernambuco, Estado de uma efevescência
literária quase cinco vezes centenária, está prenhe
de áreas, sítios, locais, logradouros e instituições
que nesses quinhentos anos de história serviram
de cenário, tema ou simples paisagem nos
meandros das obras literárias dos escritores
pernambucanos.
A mais antiga citação de um logradouro que
constitui o número um na história de Pernambuco
e do Brasil está na mais antiga obra literária
brasileira a Prosopopeia de Bento Teixeira, publicada
em 1601, quando no Canto XVII diz – “...A
natureza, mãe bem atentada,/ um porto tão quieto
e tão seguro,/que pera as curvas Naus serve
de muro.” Se refere ao porto do Recife.
No nosso estado, podemos relacionar
dezenas de locais ou instituições contidos nos
mais diversos tipos de obras literárias, poemas
clássicos ou cordeis, ficção, crônicas etc.
Listarei alguns: o Bar Savoy no poema Chopp de
Carlos Pena Filho; a feira de Caruaru na música
de Onildo Almeida, imortalizada na voz de
Luiz Gonzaga em canção homônima, A feira de
Caruaru; a Rua Nova no romance de Carneiro
Vilela, A emparedada da Rua Nova.
Não só dentro de citações em obras
existem ícones culturais em nosso Estado;
logradouros, instituições, restaurantes,
residências e outros tipos mais, existem em
abundância e são verdadeiros patrimônios da
cultura em Pernambuco.
A União Brasileira de Escritores - UBE,
com a sensibilidade do seu presidente
Alexandre Santos, considerando a
necessidade de valorizar e destacar
locais cuja história tenha contribuido
para o progresso da cultura literária no
nosso Estado, resolveu fazer de público o
Reconhecimento dos Locais de Interesse Literário. Esse
reconhecimento, de acordo com normas
estatutárias, foi concretizado com a fixação
de uma placa de outorga daquele local na
qualidade de Patrimônio da Cultura Literária
Pernambucana.
Em princípio três foram os agraciados:
a sede da União Brasileira de EscritoresUBE, na rua Santana, nº 202, Bairro de Casa
Forte, Recife, a Livraria Geração 65, na
Casa da Cultura e por último o centenário
Restaurante Leite, na Praça Joaquim Nabuco
nº 147, Bairro de Santo Antônio, no Recife
e que nesse ano de 2012 completa 130 anos
de funcionamento, sendo o mais antigo
restaurante do Brasil.