izar - Editora JC

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izar - Editora JC
Edição 162 • Fevereiro 2014
S umário
Foto: Daniela Smania / TJESP
Capa – Desembargador Nalini e o desafio
8 de gerir o maior Tribunal do Brasil
Foto: Divulgação
14
Justiça e independência
Foto: José Geraldo da Fonseca
16
2
Justiça & Cidadania | Fevereiro 2014
A guerra civil na Síria e a banalidade do mal
6
Editorial – Os poderes do Ministério Público
18
Decisão judicial: operação delicada
20
Promoção da Saúde, Justiça e acessibilidade
26
Dumping social ou delinquência patronal na
relação de emprego?
38
Dom Quixote – Justiça comunitária já
atua em 14 estados beneficiando
milhares de pessoas
42
Justiça Itinerante – Ampliação democrática
do acesso à Justiça
48
Em Foco – OAB assume uma das maiores
tarefas humanas do país
50
Advogado é doutor
2014 Fevereiro | Justiça & Cidadania 3
Edição 162 • Fevereiro de 2014 • Capa: Daniela Smania/TJESP
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Gilmar Ferreira Mendes
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D
O a
Ano II - nº 4 - Outubro 2007
Henrique Nelson Calandra
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Magistrados Brasileiros
Colégio Permanente de
Presidentes de Tribunais de Justiça
2014 Fevereiro | Justiça & Cidadania 5
E ditorial
O Ministério Público é instituição permanente,
essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindolhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e
dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
Art. 127 da Constituição Federal
O
poder investigativo do Ministério Público
(MP) vem sendo questionado pelos que
entendem que essa competência deve ser
exercida única e exclusivamente pelo Execu­
tivo, por intermédio, por exemplo, da Polícia Civil.
Entretanto, a Constituição, ao determinar que o MP é
responsável por promover privativamente a ação penal
pública – e sabemos que isso pressupõe a existência
mínima de provas capazes para justificar a ação em juízo
–, deixou implícito que este tem o poder de investigar.
O dito popular “quem pode o mais, pode o menos”,
nem sempre se aplica, porque muitas vezes quem pode o
mais, não pode o menos – sobretudo no campo da atuação
pública ou do direito público, onde a regra de competência
há de ser uma regra absoluta. Alguém até pode mais, mas
não tudo. É preciso que a lei e a Constituição estabeleçam
quem pode. De outra forma, teremos muita gente
“podendo tudo”.
Assim, o princípio dos poderes implícitos e da Teoria
dos Poderes, aqui especificamente, quer afirmar que quem
tem o poder de desencadear a ação penal, e, para fazê-lo,
o faz por independência, é o Ministério Público, que pode
também realizar a fase precedente, a de investigação.
A Constituição diz que o MP pode realizar investigações
na forma da lei: o Código de Processo Penal, o Código
Penal, a Legislação Eleitoral e os Estatutos do Idoso e
da Criança e do Adolescente. Os exemplos de códigos e
6
legislação citados, que vêm desde a década de 1960, cabem
como referência, pois em todos eles está estabelecido que
o Promotor de Justiça pode, para formar opinião, e ainda
com o convencimento inicial, realizar investigações.
O artigo 129 da Constituição, inciso II, afirma que
compete ao MP zelar pelo efetivo respeito dos poderes
públicos e dos serviços de resguardo aos direitos assegurados na Carta magna. Cabe, portanto, ao promotor zelar
pelo efetivo respeito aos poderes públicos na Constituição,
e acompanhar se os direitos constitucionais do cidadão
estão sendo respeitados pelos poderes.
É ainda do texto do artigo 129 a prerrogativa para
que o Ministério Público possa realizar investigações e
expedir notificações e requisições para os procedimentos
de sua alçada e competência. Impedi-lo de realizar
investigações no campo penal significa atribuir ao Estado
essa prerrogativa, o que de certo modo contraria o sistema
constitucional que quer levar à construção de uma
sociedade justa e igualitária, razão e fundamento com que
se há de rechaçar a possibilidade de exclusão do poder
investigatório do Ministério Público.
O Ministério é público e não privado. Tudo que é feito
no MP tem como finalidade cumprir finalidades públicas,
sujeitas a controles, transparências, controle jurisdicional
ou do próprio interessado. Não há procedimentos
descartáveis no MP, muito menos informalidade. Tudo o
que é feito é também uma expressão do Estado. Quando
Justiça & Cidadania | Fevereiro 2014
Foto: Sandra Fado
Os poderes do
Ministério Público
a Constituição fala em expedir notificações, requisições
ou colher dados em seus procedimentos, ela aborda os
trâmites administrativos feitos para subsidiar a atuação
do Ministério Público, que pode ser feito em juízo, pelo
oferecimento de denúncia, ajuizamento de ação pública
ou, ainda, pela expedição de recomendações.
Decorre também da Constituição Federal a afirmação
de que o trabalho da polícia judiciaria é próprio ou típico
das carreiras policiais. Está no artigo 144. Nele se constata
que incumbe ao Estado a tarefa da polícia judiciária e há
quem queira ver nisso a possibilidade de estabelecimento
do monopólio em favor da Polícia Federal ou da Polícia
Civil nos estados, ou no Distrito Federal, o que é absolu­
tamente equivocado.
O motivo desse engano – na opinião dos defensores
da competência investigatória do MP – é o da tradição
no Brasil e em todo o mundo que esta fase precedente de
investigação, que chamamos de inquérito policial, seja
prescindível e dispensável. Exemplificando: se alguém
leva ao Promotor de Justiça todas as provas, os papeis e
as informações capazes de habilitá-lo ao oferecimento
imediato de denúncia, ele não está obrigado a requisitar o
inquérito policial.
Classificar o inquérito policial de prescindível significa
dizer que a atividade da polícia judiciaria é dispensável.
Quando necessária, ela deve ser primeiramente feita
pelas carreiras policiais ou pelas instituições policiais da
Polícia Civil.
Mas em nenhum instante a Constituição Federal
declara que incide ali um monopólio de exclusividade
para a polícia judiciária. Não é razoável e nem seria
constitucional que assim se estabelecesse porque é sabido
que do próprio sistema, com unidade e ordenação, decorre
que os parlamentares também podem investigar.
A aprovação da resolução no 23.396 que altera a
atuação do MP em crimes eleitorais, de iniciativa do
Ministro Dias Toffoli, foi decidida por maioria, com voto
contrário do Ministro Marco Aurélio Mello e discordância
do Procurador Geral da República, acompanhado pelas
manifestações também discordantes do presidente da
Associação Nacional dos Procuradores da República,
Alexandre Camanho, e do presidente da Associação dos
Membros do Ministério Público, César Mattar Jr.
As controvérsias levantadas repercutiram intensamente e o Ministro Dias Toffoli fez declarações que, ao retornar da viagem de Costa Rica, onde acompanha as eleições,
apresentará relatório onde analisará os argumentos do MP
e que “não dá para antecipar um posicionamento sobre
isso, seria até uma deslealdade com os ministros. A decisão de aprovar a resolução não foi individual, então não
posso mantê-la ou alterá-la individualmente. A decisão é
do colegiado.”
A iniciativa do Ministro Toffoli tem sentido lógico e está
a merecer observações e uma devida atenção no tocante
a certos açodamentos que vêm acontecendo à miúdo
com a instauração de inquéritos sem o procedimento de
acurada e responsável investigação, pois têm ocorrido
casos que, por falta de cuidados na apuração de denúncias
e fatos, instituições públicas e privadas e cidadãos probos
de reconhecido conceito estão sendo enxovalhados
e punidos moralmente, sem que posteriormente lhes
sejam reconhecidas culpabilidade, quando o malefício
praticado não será mais recuperado. Infelizmente a
calúnia, a mentira, a infâmia e a vilania têm sido usadas e
abusadas com uma constância impressionante, atingindo
indiscriminada e barbaramente a dignidade e a moralidade
dos ultrajados com prejuízos insanáveis, de pouco valendo
a busca material do dano à moral, vergastada e destruída.
A investigação preliminar pelo Ministério Público há de
ser necessária e rigidamente obrigatória para evitar o uso e
o abuso das denúncias assacadas aleatoriamente.
Portanto, pretender alteração no poder investigatório
do Ministério Público parece o mesmo que abjurar contra a
realidade que vivenciamos do Estado Democrático de Direito.
Orpheu Santos Salles
Editor
PS: Parte ponderável do editorial decorre da audição
de palestra do eminente jurista Márcio Fernando Elias
Rosa, Procurador Geral de Justiça do Ministério Público
do Estado de São Paulo.
2014 Fevereiro | Justiça & Cidadania 7
Desembargador Nalini
e o desafio de gerir o maior
Tribunal do Brasil
“É preciso acertar o passo com
a contemporaneidade e ser mais
ousado. A sociedade brasileira não
quer outra coisa de sua Justiça: que
ela seja efetiva, eficaz e eficiente”,
afirma o novo presidente do Tribunal
de Justiça do Estado de São Paulo.
E
m dezembro do ano passado, em votação realizada no Palácio da Justiça, na capital paulista, o
Desembargador José Renato Nalini foi escolhido por seus pares para ser o novo presidente do
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJESP). Durante o biênio 2014/15, o magistrado terá ao seu lado os
desembargadores Eros Piceli e Hamilton Elliot Akel, respectivamente os novos vice-presidente e corregedor-geral.
Eleito com 238 votos dos companheiros de colegiado
(66,8% do total de 356 desembargadores que participaram
da votação), o presidente Nalini substitui o Desembargador
Ivan Sartori no comando do tribunal paulista.
Nascido em 1945, na cidade de Jundiaí, José Renato
Nalini formou-se em Direito pela Universidade Católica
de Campinas. Após atuar como Promotor de Justiça,
ingressou na magistratura em 1976 como juiz substituto
da 13a Circunscrição Judiciária, com sede em Barretos.
Posteriormente, trabalhou também nas comarcas de
Monte Azul Paulista, Itu, Jundiaí e na capital. Em 1993, foi
promovido ao cargo de juiz do Tribunal de Alçada Criminal,
no qual ocupou os cargos de vice-presidente e presidente.
8
Desembargador desde 2004, Nalini integrou a Primeira
Câmara de Direito Público do TJESP e, cumulativamente, a
Câmara reservada ao Meio Ambiente, desde sua fundação,
em 2005, até ser eleito Corregedor-Geral da Justiça –
cargo que ocupava até então. Dentro do Tribunal também
integrou o Sexto Concurso de Outorga de Delegações, que
são os cartórios extrajudiciais, e presidiu o 183o Concurso
de Ingresso à Magistratura.
Nesta entrevista, além de sua carreira na magistratura
e de suas metas à frente da administração do TJESP,
Nalini também fala sobre sua paixão: a literatura. Autor
de vários livros – entre eles A rebelião da toga, Ética
ambiental, Constituição e Estado Democrático, Ética geral e
profissional, e Por que Filosofia? –, desde 2003 o magistrado
ocupa a cadeira de no 40 na Academia Paulista de Letras e
mantém um blog sobre as sessões de APL, meio ambiente
e Direito (http://renatonalini.wordpress.com/).
Justiça & Cidadania – Qual era sua expectativa em torno
da eleição para a presidência do TJESP, já que havia
muitos candidatos na disputa?
José Renato Nalini – Ofereci meu nome e minha experiência
para os colegas. Na verdade, exerci todas as atribuições
cometidas a um juiz durante a minha longa carreira. Fui
promotor durante quase quatro anos, depois ingressei por
concurso na magistratura em 1976. Passei pelo interior
e morei nas comarcas onde judiquei. Fui juiz auxiliar da
Corregedoria-Geral da Justiça, juiz auxiliar da Presidência
do Tribunal, substituto em segundo grau sem prejuízo
da assessoria administrativa à cúpula do Tribunal, juiz do
Tribunal de Alçada Criminal, no qual cheguei a presidir
o Centro de Estudos, depois fui eleito vice-presidente e
presidente. No Tribunal de Justiça, integrei a banca de
Justiça & Cidadania | Fevereiro 2014
Foto: Xxxxxxxxxxxx
Daniela Smania / TJESP
C apa, por Ada Caperuto
Desembargador José Renato Nalini, presidente do TJESP
concurso de ingresso, depois presidi a banca de concurso
para outorga de delegações, a banca de concurso de ingresso à
magistratura e fui eleito Corregedor-Geral da Justiça. Contei
com a colaboração de muitos – 128 – desembargadores para
visitas correcionais pelo interior. As comarcas não visitadas,
visitei-as pessoalmente. Percorri 70 mil quilômetros por
todo o Estado de São Paulo. Embora fossem quatro os
candidatos, todos os demais excelentes, nenhum dos outros
possuía essa experiência. Foi isso que talvez tenha levado
quase 70% do Tribunal a sufragar meu nome. Fiquei feliz por
vários motivos: por terminar minha carreira conduzindo
o Tribunal a que sirvo há quase 40 anos e pela prova de
maturidade dos meus pares ao escolher a experiência e a
disponibilidade de continuar a honrar a Justiça.
JC – Quais são suas principais propostas de gestão e,
dentre elas, o que pode ser considerado como prioridade?
Qual será a principal preocupação da presidência?
JRN – Levar adiante, com intuito de continuidade, uma
gestão exitosa, que foi a de meu amigo, o Desembargador
Ivan Ricardo Garisio Sartori, já se mostra um grande
desafio. Ao lado disso, pretendo continuar o caminho
“Costuma-se dizer que só não
erra quem nada faz. Mas, ao não
atuar quando deveria agir, já está
errando. Todos temos a obrigação
de contribuir para que o mundo
seja um pouco melhor porque nós
estamos nele. Se nascemos e não
modificamos a realidade, não terá
valido a pena ter nascido.”
2014 Fevereiro | Justiça & Cidadania 9
da informatização, não apenas com aprimoramento do
processo eletrônico, mas com a otimização do uso das
tecnologias de comunicação e informação disponíveis,
caminho salutar para conferir eficiência ao Poder Judi­
ciário. A principal preocupação da presidência hoje é
obter recursos financeiros para sustentar essa gigantesca
máquina de 2.400 magistrados, quase 50 mil servidores,
responsável por vinte milhões de processos. O Tribunal
de Justiça de São Paulo é não só o maior tribunal do
Brasil, mas a maior Corte de Justiça do mundo. Embora
tenha um orçamento alentado, maior do que o de vários
estados-membros da federação brasileira, seu gigantismo
é insuficiente para fazer face aos compromissos. Pratica­
mente 90% dos recursos são revertidos para o pagamento
do quadro pessoal. É preciso conscientizar a sociedade de
que, se ela quer solução rápida para as suas demandas, ela
precisa investir mais na sua Justiça.
JC – Ter trabalhado como juiz substituto e como
corregedor o colocou em contato frequente com
diversos municípios do interior. Qual a análise que faz
da atuação do TJESP no Estado de São Paulo, como um
10
JC – Em seu blog, o senhor comentou sobre a contribuição
dada à morosidade da Justiça pelos feitos de execução
fiscal. Seu trabalho como corregedor, aliás, foi marcado
por essa meta de reduzir as execuções fiscais, mais lentas
e custosas aos cofres públicos. Como está essa situação
no momento? O quê de concreto foi feito para ajudar as
prefeituras nesse sentido?
JRN – Dos 20 milhões de processos em curso por São
Paulo, 12 milhões são execuções fiscais. A rigor, a cobrança
de dívida estatal não é missão do Poder Judiciário. Este
existe para solucionar conflitos. Uma cobrança de IPTU,
por exemplo, não contém controvérsia, ao menos enquanto
não houver impugnação do devedor. Ocorre que, por
observância da Lei de Responsabilidade Fiscal, os gestores
públicos arremessam à Justiça milhares – senão milhões
– de CDA – Certidões de Dívidas Ativas, que ficam sob
a responsabilidade do Poder Judiciário. Na Corregedoria,
incentivei a utilização dos tabelionatos de protesto, após
contato com o Tribunal de Contas, e também a adoção
de estratégias de cobrança administrativa, a cargo da
própria entidade credora, sem prejuízo de edição de leis
que estabelecessem um piso para a cobrança judicial.
Cada processo custa de 1.300 a 1.500 reais se tramitar em
juízo. Não se justifica a cobrança de dívida fiscal inferior
a esse patamar. Houve aceitação por parte de inúmeros
municípios e também colaboração da Procuradoria-Geral
Justiça & Cidadania | Fevereiro 2014
do Estado em relação às execuções fiscais estaduais. Mas a
luta continua. Tanto que o CNJ discute a desjudicialização
das execuções fiscais em audiência pública e é urgente
rever a vedação de funcionários municipais atuando nos
Serviços Anexos Fiscais. Se isso ocorrer, a Justiça paulista
entrará em caos. A lógica seria a utilização de recursos
municipais para o funcionamento da Justiça estadual.
O município é entidade da Federação e não tem Justiça
municipal. Ele precisa arcar com o custo da Justiça no
limite de suas possibilidades. E se quiser arrecadar com as
execuções fiscais, precisa contribuir efetivamente com o
Judiciário de seu estado.
JC – E por falar em morosidade da Justiça, agora que o
senhor assume a presidência do Tribunal, quais são suas
propostas para buscar soluções para esse problema?
JRN – Continuar a informatização e a otimização dos
recursos tecnológicos disponíveis e já exitosos em outras
atividades; intensificar a instalação dos CEJUSC – Centros
Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania –, que
funcionam perfeitamente conforme se comprovou na
gestão passada; capacitar servidores para eliminar trâmites
ou fluxos desnecessários; otimizar a gestão de pessoal;
instituir sanção premial para retribuir o acréscimo
de produ­
tividade, tudo sem prejuízo de estimular a
criatividade e emular saudável competição para detectar
as melhores práticas; compensar Varas ou funcionários-padrão, etc. O Judiciário permaneceu durante muito
tempo em um hermetismo pernicioso. É preciso acertar
o passo com a contemporaneidade e ser mais ousado. A
sociedade brasileira não quer outra coisa de sua Justiça:
que ela seja efetiva, eficaz e eficiente.
JC – A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do
Senado aprovou, em dezembro do ano passado, projetos
que regulam as mediações judicial e extrajudicial e
outro que atualiza as leis que tratam da arbitragem. O
senhor acredita que a proposta de facilitar a resolução
de conflitos e desafogar a Justiça será atendida?
JRN – Sim. Sempre fui adepto das ADR – Alternative
Dispute Resolution do direito anglo-saxão e penso que
fomos tímidos, durante muito tempo, em adotá-las. São
Paulo avançará nesse campo, já que a coordenadoria
responsável por conciliação, mediação e outras práticas
foi entregue ao Desembargador José Roberto Neves
de Amorim, que, durante sua gestão no CNJ, foi um
“Ser juiz é algo que
satisfaz, na medida
em que o magistrado
sabe ser capaz de
resolver questões que
atormentam o seu
semelhante.”
Foto: Daniela Smania / TJESP
JC – Quais serão, do seu ponto de vista, os principais
desafios do cargo?
JRN – Aumentar a produtividade para que os processos
mereçam resposta jurisdicional de acordo com o direito
fundamental explicitado no inciso LXXVIII do artigo 5o
da Constituição da República; capacitar servidores para
que o uso das tecnologias seja otimizado; conscientizar
os parceiros – MP, advogados, defensoria, procuradorias
– de que o Judiciário precisa de todos para se tornar
eficiente. O projeto “Petição 10”, da Corregedoria-Geral da
Justiça, foi um passo na tentativa de tornar mais concisa,
objetiva, clara e direta qualquer peça processual. Não
se vencerá essa excessiva demanda se a singeleza ceder
lugar à complexidade em toda e qualquer ação judicial. É
óbvio que assuntos específicos merecem um tratamento
compatível. Mas há uma grande massa de demandas que
poderia ser solucionada por alternativas ao juízo e, mesmo
assim, continua a atravancar a capacidade de trabalho de
juízes e servidores. Na verdade, esse projeto de renovação
da cultura jurídica deveria ter início nas escolas de
Direito, que replicam um ensino tipicamente adversarial,
indicando o processo judicial como a única resposta
para as controvérsias humanas. Enquanto não prosperar
a cultura da pacificação e da resolução alternativa dos
conflitos menores, a vocação do Judiciário será o cresci­
mento vegetativo até o infinito. Já estamos no limite da
capacidade estatal de aumentar a máquina da Justiça. Esse
é um desafio não só do Tribunal de Justiça de São Paulo,
por sua dimensão, mas de todo o povo brasileiro.
todo, no que diz respeito ao acesso à Justiça por essa
grande massa populacional, distribuída por mais de
600 municípios?
JRN – Houve considerável ampliação do acesso à Justiça
em todo o Brasil a partir da Constituição de 1988, aquela
que mais acreditou no Judiciário. O aumento das demandas
é prova disso. O povo ainda acredita na Justiça. Assim não
fosse, não recorreria tanto ao Judiciário. Mas ainda falta
estrutura suficiente para um atendimento adequado, e
não nos utilizamos ainda de todas as potencialidades de
tecnologias de informação e comunicação – TIC. Temos
de reconhecer o trabalho às vezes heroico de juízes e
servidores, que se sacrificam para oferecer a prestação
jurisdicional a despeito de ausência de condições favoráveis.
Minha gestão na Corregedoria-Geral da Justiça priorizou
a motivação do funcionalismo, para que ele continuasse a
prestar bons serviços, a despeito de um período longevo
de falta de reconhecimento de sua importância, embora
justificável, ante as vicissitudes da Justiça Paulista com o
advento da Emenda Constitucional 45/2004. Eram quatro
Tribunais que tiveram de ser unificados, o que demandou
imenso esforço da administração à época. Somente hoje
o equacionamento das dificuldades pode ser encarado,
após a consolidação desse corajoso projeto que converteu
o TJESP no maior tribunal do mundo.
Desembargador José Renato Nalini, presidente do TJESP
2014 Fevereiro | Justiça & Cidadania 11
impulsionador do tema e emprestará sua expertise e seu
entusiasmo para sua intensificação em São Paulo. Tenho a
maior esperança de que o tema produzirá mais ambiciosos
resultados durante os próximos anos.
JC – Também no final de 2013, foi realizada a 8a Semana
Nacional de Conciliação, que atendeu a 42,5 mil pessoas.
Qual sua opinião sobre os mutirões e de que maneira isso
vem contribuindo para desafogar o Judiciário?
JRN – O “mutirão” é uma instituição da cultura brasileira.
Serviu para a edificação de moradias em um regime de
cooperação solidária. Embora talvez não seja exatamente
adequado para esses “tours de force” realizados na
Justiça, tem servido para evidenciar a intenção de um
enfrentamento diferenciado quando a situação reclama
certa audácia. Há inúmeros campos em que esse esforço
pode amenizar a situação: o julgamento pelo tribunal
do Júri, o setor das execuções fiscais – nessa área, a
Corregedoria-Geral da Justiça de São Paulo atuou
efetivamente na última gestão –, o nevrálgico problema das
execuções criminais e tantos outros. Tudo é válido quando
se cuide de reduzir o espaço entre o ingresso da pretensão
e a sua solução definitiva pelo Judiciário. Mas isso não
inibe a sociedade brasileira de rediscutir a sua Justiça.
Vamos continuar a crescer ou procurar outros caminhos
para a eficiência? É uma discussão da qual ninguém está
liberado, porque o equipamento estatal é sustentado
pelo povo, e este – por suas lideranças e pelos grupos
intermediários – tem mais do que o direito de rediscutir o
modelo de Justiça, tem a obrigação de fazê-lo para que as
futuras gerações não sejam severas ao avaliar a disfunção
do esquema de solução judicial de seus conflitos.
JC – Outra de suas metas enquanto corregedor referia-se à regularização fundiária, tendo desenvolvido um
trabalho com as prefeituras do interior do estado. Qual
sua opinião sobre isso quando observamos a situação da
capital paulista, com tantas ocupações irregulares – e
até considerando os recentes episódios de incêndios e
reintegração de posse?
JRN – A regularização fundiária é uma política pública
das mais importantes para a República Federativa do
Brasil. A vontade do constituinte fez com que a moradia
fosse explicitada como direito fundamental. O Estatuto
da Cidade, o programa “Minha Casa, Minha Vida”, tudo
evidencia a intenção de o Estado Brasileiro resgatar essa
mácula: permitir que seres humanos ocupem as ruas, sejam
transitórios moradores de glebas que muita vez chegaram
a adquirir, mas que, em virtude de empreendedores ines­
cru­pulosos ou ignorantes, não se convertem na ambi­
cionada propriedade. O programa de regularização fun­
diária levado a efeito pela Corregedoria-Geral da Justiça
12
de São Paulo foi um tento histórico e cívico. Mercê da
colaboração de muitos parceiros, notadamente as Secre­
tarias da Habitação, o Itesp, as associações de classe
extrajudiciais, como a Arisp, conseguiu-se regularizar um
número recorde de situações fundiárias. Com isso, não foi
apenas uma inclusão cidadã, que permitiu ao ocupante,
considerado até invasor, tornar-se titular de domínio, mas
uma alavanca para a economia doméstica. O dono da casa
pode obter financiamento para reformá-la. Há um sopro
de entusiasmo que sacode as comunidades e resgata uma
dívida social contraída há séculos. É importante que esses
projetos continuem e se aperfeiçoem rumo à democracia
participativa de que o Brasil tanto necessita.
JC – Além dos assuntos que estão na pauta do dia a
dia de seu trabalho como magistrado – a exemplo das
questões ambientais –, o seu blog na internet também
traz temas do cotidiano, observações humanísticas com
viés de crônica. Quantos livros o senhor já lançou nos
segmentos de ficção e de não ficção?
JRN – Sou muito escrupuloso em relação à ficção. Só
escrevi alguns contos, um deles com a participação de
outros amigos da área jurídica e lançado no ano passado. Fiz
uma biografia de certa forma ficcional de minha mãe, logo
após sua morte. Sou fruto de uma afeição profunda pela
filosofia e escrevi Pronto para partir?, que a RT-Thomson
Reuters preferiu chamar Reflexões jurídico-filosóficas
sobre a morte, lancei a 3a edição de Por que Filosofia?,
Direitos que a cidade esqueceu, Ética da magistratura, Ética
ambiental, estou reescrevendo A rebelião da toga, que é
uma revisita à minha tese de Doutorado na USP sobre
“Perspectivas do Poder Judiciário e do juiz no limiar do
século XXI”, e estou para lançar a 11a edição de Ética geral e
profissional. Gosto muito de história também. E leio como
verdadeiro devorador de livros. Uma de minhas angústias
é a impossibilidade de ler tudo aquilo de que gostaria. Não
haverá tempo suficiente!
JC – O senhor tem uma relação muito forte com a literatura,
inclusive como membro da Academia Paulista de Letras
desde 2003. O que significa a literatura para o senhor, até
pelo fato de ter criado um projeto de ressocialização do
apenado por meio da leitura? Aliás, quais são os resultados
e o status desse programa hoje?
JRN – A leitura é mágica. Permite uma viagem sem
custos. Propicia conhecer pessoas que nunca teremos
oportunidade de contatar, até porque já são falecidas.
Muda a forma de pensar. Todo livro ajuda você a crescer.
Meu maior prazer é a leitura. Por isso apoiei a proposta
de estimular os reeducandos a um projeto consistente de
leitura. Ideia que não foi bem compreendida e que gerou
algumas controvérsias. Mas precisamos acreditar no sistema
Justiça & Cidadania | Fevereiro 2014
“Se nascemos e não
modificamos a realidade, não
terá valido a pena ter nascido.”
penitenciário conforme concebido. A sanção é um castigo,
mas é também pedagógica. É a oportunidade de repensar
as opções, de reformular trajetórias. E os livros podem
fazer com que as pessoas reflitam sobre as suas escolhas.
Bons livros, em uma leitura orientada, consistente, mais o
dever de exprimir o que se extraiu dela, poderão auxiliar
na regeneração. O projeto continua e, por seu ineditismo,
ainda não há condições de uma conclusiva análise sobre
o seu êxito. Mas todas as tentativas são válidas em relação
a esse tema complexo que é o sistema penitenciário. Já
fizemos, também, uma experiência com as reeducandas
que tiveram curso de gastronomia com a equipe de Alex
Atala e David Hertz, e foi um sucesso. Também levamos
a Orquestra Bachiana, regida por João Carlos Martins, à
penitenciária no final do ano de 2013, no encerramento do
projeto “Qualidade de Vida”. Costuma-se dizer que só não
erra quem nada faz. Mas, ao não atuar quando deveria agir,
já está errando. Todos temos a obrigação de contribuir para
que o mundo seja um pouco melhor porque nós estamos
nele. Se nascemos e não modificamos a realidade, não terá
valido a pena ter nascido.
JC – Qual a influência da literatura no seu trabalho como
magistrado? Quais são seus autores e livros favoritos?
JRN – A literatura auxilia na concatenação de ideias, na
proficiência vernacular, a encontrar estilo que não seja a
repetição enfadonha dos termos técnicos em construções
sintáticas medíocres. Quem não lê não pensa, não escreve,
não sabe falar. Ler é fundamental. E sempre existe o que
aprender. Hoje, talvez o desafio seja a concisão. Temos
tempo de menos e tarefas demais. Encontrar boas fórmulas
de exprimir o pensamento, com clareza e sinteticamente, é
um talento que deveria ser mais desenvolvido e estimulado
nas carreiras jurídicas. Gosto muito de Cecília Meireles,
Lygia Fagundes Telles, Paulo Bomfim, Norberto Bobbio,
Umberto Eco, Machado de Assis, além dos meus favoritos
franceses desde Montaigne a Jean Baudrillard, Luc Ferry,
Gilles Lipovetsky e outros. Sou um aprendiz e continuo
tentando crescer.
JC – Falando um pouco sobre a magistratura, um dos
aspectos mais apontados pela classe na atualidade é a
falta de estímulo à carreira. Em sua opinião, por que
isso ocorre e qual a solução para reverter esse aspecto?
JRN – A magistratura já foi uma carreira bem atraente. Há
algum tempo, ela foi perdendo sua aura e isso em virtude
de múltiplas causas. Primeiro, houve um esgarçamento
dos valores em geral. Dentre eles, o respeito, a reverência, a
simbologia de algumas funções consideradas diferenciadas.
Depois, o volume de trabalho é avassalador, e o Estado-juiz
não tem condições de dar vazão à demanda. Isso faz com
que as críticas recaiam sobre o profissional encarregado
de oferecer soluções para os problemas humanos. Em
seguida, houve uma dessacralização geral da Justiça, tão
desacreditada em alguns setores, sobretudo em razão de
sua invencível lentidão e ineficiência. Tudo isso faz com
que as vocações se escasseiem e a magistratura passe a ser
considerada emprego público, assim como qualquer outro.
Para o vocacionado, ser juiz é algo que satisfaz, na medida
em que o magistrado sabe ser capaz de resolver questões
que atormentam o seu semelhante. Para quem procura
emprego, a magistratura é sofrível. Vive cobrança contínua
da sociedade, da mídia, dos parceiros, das corregedorias.
Isso tudo precisa ser repensado para que o juiz do futuro
volte a ser aquela pessoa plenamente realizada, feliz com
sua opção, e, portanto, em condições de melhor oferecer a
concreta Justiça humana a quem dela necessite.
JC – Em março de 2013, o presidente do Supremo
Tribunal Federal instituiu a Comissão de Estudo e
Redação de Anteprojeto de Lei Complementar para
dispor sobre o novo Estatuto da Magistratura, tendo
em vista que a Lei Orgânica da Magistratura Nacional
(Loman) está em vigor desde 1975. O que esperar em
relação a isso? A reforma do estatuto deverá atender às
atuais necessidades dos magistrados?
JRN – Há 25 anos, a Constituição previu o Estatuto da
Magistratura, por lei de iniciativa do STF, que substituirá
a Loman, Lei Complementar Federal 35, de 14.3.1979,
considerada à época fruto do autoritarismo. Espera-se que
a magistratura mereça atualização e incorpore as profundas
transformações do mundo desde a década de 1970/80 e que
a reforma venha por partes, para permitir uma discussão
tópica, e viabilize a aprovação de novo texto normativo.
Uma Lei Orgânica que tivesse a pretensão de prever tudo
o que é necessário para esse trato adequado do tema e não
deixasse flanco algum teria uma tramitação lenta e sujeita
a muitas discussões, o que inviabilizaria a sua aprovação
pelos próximos anos. De qualquer forma, é saudável uma
retomada de estudos e redação desse anteprojeto. A Justiça
depende de seus integrantes. Um novo estatuto poderá
estimular o recrutamento de pessoas vocacionadas e aptas
ao desempenho de missão imprescindível ao fortalecimento
da democracia brasileira.
2014 Fevereiro | Justiça & Cidadania 13
Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho
Desembargador do TJERJ
Presidente da 3ª Câmara Cível
Membro do Conselho Editorial
Nota do Editor
Um dos fatores que mais dignifica um magistrado na
sua judicatura é, indiscutivelmente, a sua independência,
livre de pressões, conchavos e interferências de quem quer
que seja: governante, potentado, poderoso, político ou seja
quem for.
O desembargador Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho,
é colaborador e um dos maiores incentivadores da Revista
desde a sua primeira edição, em maio de 1999 – quando
então exercia a presidência da Associação dos Magistrados
Brasileiros –, onde participa e pontifica no Conselho
Editorial com sua arguta inteligência e refinada culturas
jurídica e humanista, defendendo, como sempre, a
independência do Judiciário, o fortalecimento da instituição
e da magistratura e apontando caminhos em defesa do
Estado Democrático de Direito.
N
a Declaração de Independência dos EUA, de
4/7/1776, redigida basicamente por Thomas
Jefferson, está inscrito como postulado que
as 13 colônias rompiam com a metrópole
porque o rei da Grã-Bretanha, entre outros motivos, tentava
impor sua tirania fazendo os juízes dependentes da sua
vontade. Ali se lançava a semente da garantia fundamental
de todas as pessoas receberem julgamento por um tribunal
independente e imparcial, para decidir sobre seus direitos
e deveres ou sobre o fundamento de qualquer acusação
criminal, posteriormente reproduzida na Declaração
Universal dos Direitos do Homem – aprovada em
10/12/1948 pela Assembleia da Organização das Nações
Unidas. A partir de então, a garantia se consolidou no
mundo civilizado, integrando todas as constituições
contemporâneas, ainda que muitas vezes agredida e violada
por déspotas e ditadores de variados matizes e colorações
políticas, supostamente afrontados pela sua atuação.
Tais considerações vêm a propósito de uma indagação
que deve sensibilizar a todos, especialmente aos que
militam na área jurídica e, ainda mais especificamente,
14
Foto: Divulgação
Justiça e Independência
nas lides judiciais: será a independência dos juízes um
elemento ainda essencial ao adequado cumprimento de sua
relevante função social? Ou, pelo contrário, nestes tempos
de globalização em que vivemos, terá essa independência,
antes atributo primordial de qualquer julgamento, sido
engolfada tanto pela “tsunami” da jurisdição massiva
representada pelas súmulas com efeito vinculante, recursos
repetitivos, etc., quanto pela necessidade de atender a
metas e a outras exigências indevidamente centralizadoras
do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)?
Veja-se que este Conselho já se arvora até – parecendo
atender à justa indignação popular contra todas as formas
de corrupção – a inquirir alguns tribunais sobre suposto
percentual insuficiente de condenações em matéria
de improbidade administrativa. Isto, obviamente, sem
conhecer o conteúdo dos processos e ignorando que,
na quase totalidade dos casos, o Ministério Público não
recorreu da absolvição.
Assim, joga-se para a plateia, e não é à toa que a exCorregedora do CNJ já se aposentou voluntariamente e
surge como intrépida candidata, sem um recatado período
de quarentena e tendo utilizado a tribuna do Conselho
para pavimentar sua pretensão, à senadora pelo Estado da
Bahia.
Agora, mais recentemente, o Presidente do Supremo
Tribunal Federal (STF) e do CNJ, alçado à condição de
celebridade nacional pela relatoria da Ação Penal 470
(mensalão), decreta a prisão de um dos condenados
(Deputado João Paulo Cunha, ex-presidente da Câmara
Federal), mas não assina o mandado antes de se retirar para
um período de férias no exterior, permitindo-se ainda, lá
de Paris, criticar apontada omissão dos Ministros Carmen
Lúcia e Ricardo Lewandowski, que não o assinaram por
considerar que a tarefa caberia ao relator e não a seus
eventuais substitutos na Presidência do STF.
Ora, qualquer pessoa razoavelmente informada sabe
que o juiz criminal que decreta a prisão de condenado
deve, como ato de ofício e portanto como dever que não
pode ser esquecido, assinar o mandado, cuja preparação
Justiça & Cidadania | Fevereiro 2014
imediata não apresenta qualquer dificuldade, daí não ser
confortável a versão apresentada pelo relator de não havêlo assinado pelo início das férias no dia seguinte.
Por outro lado, a crítica pública e emitida do exterior
a seus colegas de Corte, um deles Vice-Presidente, que
agiram pela convicção de que a tarefa de assinar o mandado
era do relator, atinge também a independência judicial dos
criticados, sendo mais um episódio de pressão agravado
por se dirigir a juízes do STF.
Bem se vê que a independência judicial pode ser
afrontada da 1a instância ao STF, devendo ser, com valores
social e jurídico resguardados pela Constituição Federal,
defendida, independentemente da origem das agressões,
sejam internas ou externas ao Poder Judiciário, merecendo
repulsa ainda maior quanto mais elevado o cargo ou a
posição jurídico-política do autor do atentado.
Mais importante, entretanto, é a verificação de que tais
agressões à independência dos juízes debilitam o próprio
estado democrático de direito e ferem de morte os direitos
fundamentais estabelecidos na Constituição, tentando
fazer de juízes, cuja instituição, como qualquer outra,
também apresenta suas máculas, burocratas de toga ou
fantoches de um reino de faz-de-conta onde, mais do que
os direitos individuais e coletivos, deve contar a vontade
dos opressores.
Até porque, a democracia não convive com a ideia
da transformação dos juízes – por vocação institucional
destinados a garantidores dos direitos fundamentais da
pessoa humana – em insetos gigantescos como aquele
em que o gênio inquietante de Franz Kafka transformou
o caixeiro-viajante Gregor Samsa na obra-prima A
Metamorfose.
2014 Fevereiro | Justiça & Cidadania 15
A guerra civil na Síria e a
banalidade do mal
Lier Pires Ferreira
Advogado
Professor do Iuperj e do IBMEC
Foto: José Geraldo da Fonseca
16
E
m sua obra Eichmann em Jerusalém, de 1963, a
pensadora germano-americana Hannah Arendt
(1906-1975) cunhou a expressão “banalidade do
mal”. O pano de fundo para suas reflexões foi o
julgamento de Adolf Eichmann (1906-1962), militar e
político nazista enforcado na cidade de Tel Aviv, Israel, por
genocídio, crimes contra a humanidade e outras acusações.
Trabalhando como correspondente da revista The New
Yorker, Arendt não se limitou a descrever o julgamento,
mas adotou o próprio Eichmann como objeto de análise.
De ascendência judaica, Arendt viu um homem desprovido
de quaisquer distorções de caráter ou de ódios particulares
contra judeus e outros grupos étnicos. Adolf Eichmann
não era um “monstro”, mas um homem que acreditava no
que fazia. Por isso, realizava seu trabalho com máximos
zelo e eficiência, sem questionar o mal que pudesse estar
causando a terceiros. Suas ações estavam orientadas por
uma lógica estritamente burocrática e juspositivista,
segundo a qual os comandos exarados por seus superiores
deveriam ser cumpridos sem qualquer questionamento.
Com Eichmann em Jerusalém, Hannah Arendt retomou
um importante capítulo da filosofia moral – o mal radical
kantiano. Em um mundo marcado pelos horrores da
II Guerra Mundial, Arendt viu na filosofia kantiana o
renascimento de uma moralidade pura, autônoma, que não
dependeria da religião, do direito ou de outra fonte externa
de legitimação. Bastaria a relação íntima do homem com
sua consciência. Nesse sentido, mais do que uma categoria
ontológica ou metafísica, o mal representado por Eichmann
tem caráter histórico, político e jurídico, sendo produzido
e reproduzido por homens absolutamente comuns, que,
Justiça & Cidadania | Fevereiro 2014
“Sanada a questão das
armas químicas, a guerra civil
na Síria saiu das manchetes
internacionais. O mundo parece
satisfeito com sua atuação. Mas
o sofrimento do povo sírio está
longe de terminar.”
alheios a uma reflexão ética sobre si e sobre o mundo que
os cerca, agem em função de contextos e escolhas que
trivializam a dor e banalizam o mal.
É o que está acontecendo hoje na Síria. O conflito sírio
teve início em janeiro de 2011, pouco depois da eclosão
da Primavera Árabe. Em princípio, os manifestantes
protestavam pacificamente contra o governo de Bashar alAssad, no poder desde 2000, após suceder a seu pai, Hafez
al-Assad, que governara o país por três décadas. Com o
crescimento dos protestos, aumentou também a violência
política contra os manifestantes. Em um quadro já bastante
grave de violação aos direitos humanos, em agosto de
2011, a ONU fez sua primeira condenação contra as ações
do governo sírio.
A reprimenda das Nações Unidas não surtiu efeito.
Os conflitos na Síria estavam em uma espiral ascendente.
Manifestantes viraram insurgentes, e as palavras de ordem
haviam se transformado em uma sangrenta guerra civil.
Em março de 2012, após os bombardeios sobre a cidade
rebelde de Homs, o secretário-geral da ONU, Ban Kimoon, teceu novas e duras críticas ao massacre de civis e
requereu às autoridades sírias imediato acesso humanitário
ao país. Mas nada mudou.
Em maio de 2012, a violência alcançou novo pico.
Dezenas de civis foram massacrados em Hula por forças
leais ao governo. O massacre foi confirmado pelo chefe
da missão de observadores das Nações Unidas, Robert
Mood, provocando respostas em cadeia da sociedade
internacional. Alemanha, Bélgica, Bulgária, Espanha,
França, Itália, Holanda e Suíça expulsaram os embaixadores
sírios de seus territórios. Uma semana depois, o governo
sírio considerou persona non grata os embaixadores dos
EUA e de mais cinco países europeus. Nesse quadro,
o governo Barack Obama admitiu pela primeira vez o
uso da força. O número de vítimas continuava a crescer.
Discursos exaltados eram pronunciados de parte a parte.
Mas de concreto nada foi feito.
O ápice da repercussão internacional da guerra civil
na Síria ocorreu em meados de 2013, com as notícias de
que o governo local estava usando armas químicas contra
rebeldes e civis. Forças ocidentais capitaneadas pelos
EUA estiveram prestes a invadir o país, para o alento de
milhões de cidadãos sírios. Mas os debates no Conselho
de Segurança da ONU não permitiram o desembarque
das tropas. As divergências formais entre EUA, China e
Rússia diante do contexto geopolítico do Oriente Médio
obstaram uma solução definitiva e integrada, que cessasse
o morticínio e devolvesse a paz aos cidadãos sírios e aos
seus familiares. O uso de armas químicas foi estancado,
mas parece que o governo sírio ganhou um “alvará” para
continuar desrespeitando todas as normas de Direito
Internacional e matar seus concidadãos exclusivamente
com armas convencionais.
Sanada a questão das armas químicas, a guerra civil na
Síria saiu das manchetes internacionais. O mundo parece
satisfeito com sua atuação. Mas o sofrimento do povo
sírio está longe de terminar. Nos estertores de 2013, um
relatório do Oxford Research Group (ORG) intitulado
Stolen Futures: the hiddentoll of child casualties in Syria
revelou a face mais dura do mal que assola o país: a morte
de crianças e adolescentes. Em um conflito que já gerou
dois milhões de deslocados e mais de cem mil mortos,
os estudos do ORG mostram que entre março de 2011 e
agosto de 2013 houve 11.420 vítimas com idade igual ou
inferior a 17 anos, muitas das quais mortas por explosivos.
Dessas vítimas, comprovadamente 389 foram assassinadas
por franco-atiradores. O relatório também aponta que 746
crianças e adolescentes foram executados sumariamente,
sendo certo que centenas foram brutalmente torturados.
Os números levantados pelo ORG não são conclusivos
e consideram apenas vítimas devidamente identificadas
e cuja causa mortis seja conhecida. Há muitos mais.
Quantos? Isso já não é o que mais importa. As estruturas
político-jurídicas forjadas no segundo pós-guerra para
promover a paz e o bem-estar revelam-se incapazes
de estancar o morticínio e o sofrimento. Inerte, a
sociedade internacional resta insensível à dor alheia.
Como Eichmann, ela parece oca de valores e satisfeita
em tocar seu cotidiano, indiferente ao mal que se alastra.
Quantos ainda terão de perecer para que a indignação e
o amor à ética e ao direito façam cessar a guerra civil na
Síria? Quantos terão de morrer para que voltemos a ser
justamente humanos? Só o tempo dirá.
2014 Fevereiro | Justiça & Cidadania 17
Decisão judicial:
operação delicada
Luís Carlos Gambogi
“Embora comunique ideias, numa sociedade pluralista, o Direito
não pode ser visto como um instrumento que veicula uma leitura
fechada. Deve estar aberto aos novos anseios sociais e à própria
dinâmica da vida, que procura equilibrar a ordem e o movimento
ou que procura construir a ordem pelo movimento.”
Desembargador do TJEMG
Foto: Marcelo Albert/TJEMG
18
D
ois perigos rondam os aplicadores do Direito:
um deles, avançar demais, muito, enquanto
a sociedade não avança um único passo;
o outro, confinar-se nos estritos limites da
letra e deprimir a história. No Direito, devemos repelir a
interpretação contra legem, mas será sempre bem recebida
a interpretação practer legem ou infra legem porque
construídas a partir do embate travado entre a realidade
e a legislação. A princípio, o intérprete não pode se ligar
ao que diz literalmente a lei, mas ficar ali, na lida, lutando,
suando, pelejando, garimpando o verdadeiro sentido
das palavras e o verdadeiro sentido dos fatos. Diríamosparafraseando Tobias Barreto – que o operador do direito
deve navegar como o canoeiro: “arriba em parte aonde lhe
permite a força que imprime ao remo; e em parte aonde
lhe permite a força da correnteza”.
A dinâmica interpretativa do Direito não autoriza
decisões contra a ordem jurídica. Aqueles que decidem fora
da ordem normativa tornam-se socialmente perniciosos
porque, em se julgando acima delas, caminham por espaços
imaginários de poder e, ainda que tenham objetivos
generosos, põem em risco as poucas conquistas dos fracos
ao longo da história ao contraporem, à lei, o engodo.
Decisões judiciais fora da ordem jurídica são sempre um
risco e, por melhores que sejam, não compensam o déficit
democrático que produzem.
Porém, sabido que o intérprete não é um ser passivo,
que se limita a recolher os dados da realidade; o intérprete
Justiça & Cidadania | Fevereiro 2014
espalha as sementes que garantem o ciclo da vida porque está
no mundo como um ser ativo, num diálogo contínuo com
o mundo que o cerca. O Direito, não obstante conhecido e
estudado por métodos científicos, não é uma ciência neutra.
Além de sua visão de mundo, a sua opção doutrinária
encontra-se ingênita à interpretação. Por essa razão cumprelhe exigir de si mesmo que se liberte de seus dogmas pessoais,
das aparências e ilusões que nascem dos seus sentidos, enfim,
cabe-lhe construir criticamente sua interpretação; deve
submeter sua visão pessoal à legitimidade do “querer
social” implí­cito na autoridade da lei.
Não é empresa porque a aplicação da norma pressupõe
a interpretação do objeto investigado (o fato e a norma) e
o intérprete, ainda que dono de racionalidade crítica, não
consegue deixar de influir no resultado da interpretação.
Ao interpretar, leva consigo o cabedal de sua vida, seus
valores, enfim, um conjunto de princípios e ideais, que
não são meras opiniões ou hipóteses abstratas nem se
confundem com o conhecimento vulgar; em verdade, essa
sua matéria subjetiva, no âmbito cognitivo científico, opera
como que postulando um sentido, uma direção, atitude
que, em si mesma, carrega um grau de conhecimento que
penetra e fecunda o objeto investigado.
Para agravar a complexidade dessa delicada operação,
que visa interpretar e aplicar a lei, cabe mais uma vez
recordar que na história de todos os povos, quase sempre,
as teorias jurídicas e a jurisprudência precedem as leis ou
contextualizam-nas no tempo. Isto é próprio da função
interpretativa, de sua dinâmica. A lei fixa o ordenamento
positivo, que é estático; o Direito, no entanto, acompanha
a vida, que é dinâmica. Embora comunique ideias, numa
sociedade pluralista, o Direito não pode ser visto como um
instrumento que veicula uma leitura fechada. Deve estar
aberto aos novos anseios sociais e à própria dinâmica da
vida, que procura equilibrar a ordem e o movimento ou
que procura construir a ordem pelo movimento.
Por último, lembro que o Direito, se se quer democrático
e legitimado, deve ser justo em sua essência. A legitimidade,
por óbvio, só pode recair sobre o Direito Positivo. Este,
no entanto, embora tenha conteúdo definido, não tem
conteúdo definitivo porque é datado; portanto, requer o
trabalho da hermenêutica, o labor da ressemantização,
da contextualização, passando a ser fruto, a nascer de um
processo em que a própria juridicidade exerce um papel
de natureza reestruturadora na sociedade, missão esta que
retira o Poder Judiciário do calvário de conservar o passado
e o põe na função de implementar o futuro ao tempo em
que enfrenta os conflitos do presente. O duro, o desafiador,
o difícil é que, ao realizar essa delicada operação, o
magistrado precisa se equilibrar na leveza do seu espírito
de modo a que sua decisão não venha a estrangular a
natureza imperativa da ordem jurídica nem venha a criar
instabilidade, com posições que se colocam fora dos marcos
constitucionais e legais. Em suma, aplicar o Direito equivale
a dizer ao pássaro: você tem asas, mas encontra-se numa
gaiola linguística; se quer ser pássaro, cante!
2014 Fevereiro | Justiça & Cidadania 19
Promoção da Saúde,
Justiça e acessibilidade
Vera Lucia Góes Pereira Lima
Professora Titular (aposentada) da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
Maria Auxiliadora Bessa Barroso
Especialista em Saúde Pública e em Educação em Saúde Pública
Nora Zamith Ribeiro Campos
José Maria Arruda
J
Psicóloga
Comissária da Justiça da Infância, Juventude e do Idoso
Socióloga
Sociólogo
Promoção da Saúde e direitos de cidadania
ustiça e Promoção da Saúde apresentam importantes
interseções que abrangem o exercício dos direitos de
cidadania com equidade e qualidade de vida. Focaliza-se neste artigo a efetiva inclusão social das pessoas
com deficiência na gestão dos chamados “municípios
saudáveis”, em consonância com questionamentos pro­
postos na 21a Conferência Mundial de Promoção da Saúde
da Uipes1 (Pattaya/Tailândia, 2013). O presente trabalho
poderá inspirar reflexões e práticas inovadoras para o
aprofundamento das ações de PS.
Uma breve retrospectiva ajuda a compreender a interseção entre Justiça e Promoção da Saúde. Na década de
1970, a China convidou a Organização Mundial da Saúde
(OMS) a realizar missões de observação das atividades desenvolvidas em seu meio rural para a melhoria da saúde da
população. O relatório dessas visitas mostrou uma ampla
participação da comunidade em ações que elevavam o nível de saúde e a qualidade de vida das pessoas, revelando
uma visão ampliada de saúde, bem além da orientação predominantemente centrada no controle da enfermidade. Os
chamados “médicos descalços” coordenavam as atividades
de atenção aos anciãos, ajuda às escolas, envolvimento na
saúde ambiental, prevenção de doenças, uso de ervas me20
dicinais e promoção de campanhas de saúde, substituindo
assim velhos costumes e mobilizando a comunidade para a
formação de hábitos saudáveis (FERREIRA & BUSS apud
MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002).
O aproveitamento dessas ideias serviu de base para
o surgimento de uma nova compreensão de saúde e de
vida, presente em diversos documentos, os quais até hoje
inspiram políticas e programas mais progressistas em todo
o mundo.
Entre esses documentos, a Declaração de Alma-Ata
em 1978 enfatizou a importância da Atenção Primária
em Saúde, reconhecendo a saúde como uma das prio­
ridades da nova ordem econômica internacional (Ibid.,
2002). Ela reafirmou a definição de saúde da OMS como
o “completo bem-estar físico, mental e social, e não
simplesmente a ausência de doença ou enfermidade”,
defendendo-a como direito fundamental e principal
meta social de todos os governos (OMS, 1948). Enfatizou
a necessidade da educação relacionada aos problemas
prevalecentes de saúde, envolvendo a participação
comunitária. Ampliou, dessa forma, a visão do cuidado
da saúde com o envolvimento da própria população
e a ação de agentes de saúde, transcendendo a atenção
convencional dos serviços de saúde.
Justiça & Cidadania | Fevereiro 2014
Foto: Depositphotos/ AlphaBaby
Regina Celi Basílio Moreira Zandonadi
No Brasil, a 8a Conferência Nacional de Saúde (1986)
destacou os fatores que compõem uma nova visão de
saúde. Sem utilizar a denominação de Promoção da Saúde,
enunciou uma abordagem de saúde, como resultante da
alimentação, da renda, do meio ambiente, do trabalho e
do lazer, além do acesso aos serviços de saúde, próxima
do conceito de Promoção da Saúde que seria proposto,
meses depois, pela Carta de Ottawa (MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 1986).
A I Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, em Ottawa, Canadá, (1986), sob o patrocínio da OMS,
resultou na mencionada Carta de Ottawa, inspiradora de
novo paradigma conceitual e propositivo, o qual afirma
que “a saúde depende também de fatores políticos, econômicos, sociais, culturais, ambientais, compor­ta­mentais
e biológicos que a influenciam positiva ou negativamente”
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1996).
Tendo por pré-requisitos a paz, a habitação, a educação,
a alimentação, a renda, o ecossistema estável, os recursos
sustentáveis, a justiça social e a equidade, a Promoção da
Saúde baseia-se na capacitação da comunidade para atuar
na melhoria da qualidade de vida e saúde, incluindo sua
maior participação no controle desse processo, o que
demanda o conhecimento das próprias necessidades e a
identificação dos determinantes sociais da saúde visando
à sua transformação e à conquista de melhor qualidade de
vida com equidade (Ibid., 1996).
Percebe-se nesse processo a importância da Justiça,
cujo caráter mais evidente é a igualdade de direitos e
deveres que possibilitam a vida em comum. Uma sociedade
só é justa quando os cidadãos usufruem de condições
concretas, amparadas democraticamente. Sua conquista é
a base da igualdade, do equilíbrio e da justiça social, a qual
só se fará com a participação ativa do cidadão. Para tanto,
este deverá estar consciente de seus direitos e habilitado a
ter acesso à Justiça quando os vê desrespeitados, além de
conhecer os mecanismos que o habilitam ao seu exercício
quando os mesmos são violados. A aquisição dessas infor­
mações passa necessariamente pela educação, tendo como
corolário a responsabilidade sobre si e sobre os outros,
e a capacidade de tomar decisões (SOUZA, 2012). Tais
preo­cupações estão também presentes no conceito de
Promoção da Saúde.
Saúde em todas as políticas
O desenvolvimento econômico e social sustentável
depende da promoção e da proteção da saúde da população
com sua participação consciente. A Promoção da Saúde
2014 Fevereiro | Justiça & Cidadania 21
demanda o envolvimento de diferentes níveis de governo
e de outros setores (públicos e privados), exigindo uma
ação coordenada entre todas as partes envolvidas. Dessa
postura deriva a proposta de “saúde em todas as políticas”,
tema da 8a Conferência Internacional de Promoção da
Saúde – Helsinque, OMS, 2013, entendendo-se que saúde
e bem-estar estão intimamente ligados ao ambiente
socioeconômico (OMS, 2013).
Políticas e ações de promoção da saúde devem assegurar
oportunidades e recursos igualitários a todos. Isso inclui
a construção de ambientes saudáveis e a ênfase em
ações educativas para o desenvolvimento de habilidades,
permitindo-se assim escolhas para se alcançar uma
melhor qualidade de vida, o que pressupõe a capacidade
de as pessoas controlarem os fatores determinantes de
sua saúde, condição para o desenvolvimento pleno do seu
potencial de vida saudável.
Esses debates foram avançando em conferências
internacionais de Promoção da Saúde promovidas pela
OMS a partir da Conferência de Ottawa. Paralelamente,
a União Internacional de Promoção da Saúde e Educação
para a Saúde (Uipes) ampliou seu campo de ação a
partir de sua 16a Conferência Mundial de Educação em
Saúde, em Helsinque (1991), abrangendo a Promoção da
Saúde. Desde então, a Uipes vem realizando conferências
mundiais destacando temáticas, como: desenvolvimento
de políticas públicas saudáveis; ambientes saudáveis; saúde
e desenvolvimento; responsabilidade social; estratégias
intersetoriais e parcerias; saúde no mundo globalizado;
equidade no acesso à saúde; saúde em todas as políticas e
melhores investimentos em saúde.
Municípios saudáveis e direitos das pessoas
portadoras de deficiência
Entende-se como cidade saudável aquela onde haja
participação da comunidade na busca da qualidade de
vida de toda a população, com ênfase na equidade. A
inclusão social viabiliza, nesse espaço, a convivência e o
desenvolvimento das pessoas de todos os tipos e níveis
sociais na realização de seus direitos, suas necessidades e
suas potencialidades. Desde os anos 1990, a Opas/OMS
apoiara a utilização desse conceito no desenvolvimento
de municípios saudáveis na América Latina, estimulando
a criação de redes de municípios saudáveis (WESTPHAL,
2000).
No Brasil, em 1998, foi realizado em Sobral, Ceará, o
I Fórum Brasileiro de Municípios Saudáveis e, em 1999,
foi criada a Rede Brasileira de Municípios Saudáveis
durante o XV Congresso do Conselho Nacional de
Secretarias Municipais de Saúde – Conasems, reunindo 40
secretarias municipais. Em 2013, realizou-se em Brasília
o XXIX Congresso Nacional de Secretarias Municipais de
22
Saúde; no entanto, não se tratou da temática da “inclusão
dos deficientes” (RUMEL, et al., 2005), cuja relevância é
aqui reconhecida como indispensável nos debates desses
congressos.
A 8a Conferência Internacional de Promoção da Saúde
(2013) enfatiza em sua Carta de Compromisso que a saúde
é a base do desenvolvimento sustentável e, como direito
humano fundamental, deve incluir o conceito de equidade
(OMS, 2013), o que permite a todos (incluindo as pessoas
com deficiência) participarem das oportunidades neces­sá­
rias à elevação e à manutenção de sua qualidade de vida.
A Convenção Interamericana para a Eliminação de
todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas
Portadoras de Deficiência, ratificada pelo Decreto-Lei
no 3.956/01, assim define a deficiência: “Restrição física,
mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória,
que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades
essenciais da vida diária, causada ou agravada pelo ambiente
econômico e social” (BRASIL, 2001).
Essa questão assume expressiva proporção no Brasil
e vem mobilizando diversos segmentos da sociedade na
busca dos direitos dessa categoria de excluídos. Segundo
o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, o
número de deficientes no Brasil, em 2010, representava
cerca de 23,92% da população, alcançando um total de
45.623.910 de pessoas (GOVERNO DO ESTADO DE
SÃO PAULO, 2012).
Desde a Declaração dos Direitos das Pessoas Porta­
doras de Deficiência (ONU, 1975) e da Convenção sobre
os Direitos das Pessoas com Deficiência – CDPD da
ONU e seu Protocolo Facultativo (ONU, 2006), os países
signatários, inclusive o Brasil, estão legislando sobre
aspectos que contribuam para a integração plena desse
grupo nos direitos de cidadania. A CDPD e seu respectivo
Protocolo Facultativo foram ratificados pelo Congresso
Nacional e todos os seus artigos considerados de aplicação
imediata (BRASIL, 2008).
A Constituição brasileira também estabelece em seu
art. 24 que compete tanto à União quanto aos estados e
ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre a
proteção e a integração social das pessoas portadoras de
deficiência (BRASIL, 1988).
Inclusão social e acessibilidade
A legislação brasileira e as normas referentes à
acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência física
são abrangentes, falhando, no entanto, no seu cumpri­
mento. A Lei no 10.098 (2000) estabelecera normas gerais
e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das
pessoas portadoras de mobilidade reduzida “mediante a
supressão de barreiras e de obstáculos nas vias e espaços
públicos, no mobiliário urbano, na construção e reforma
Justiça & Cidadania | Fevereiro 2014
de edifícios e nos meios de transporte e de comunicação”
(BRASIL, 2000). Em decorrência, a Associação Brasileira
de Normas Técnicas – ABNT estabeleceu as normas
técnicas de acessibilidade, que alcançam todos os edifícios
públicos e privados de uso coletivo (BRASIL, 2004).
Aos municípios cabe legislar estabelecendo parâmetros
nos códigos de obras a serem seguidos nas construções
para que as mesmas sejam aprovadas de acordo com as
especificações da NBR 9.050 da ABNT (Ibid., 2004).
Em 2011, o governo federal instituiu o Plano Nacional
dos Direitos da Pessoa com Deficiência: Plano Viver
sem Limite (PVSL), elaborado com a participação de 15
ministérios e do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa
com Deficiência (Conade), o qual prevê um investimento
total de R$ 7,6 bilhões até 2014. A acessibilidade é um dos
eixos do PVSL, garantindo que os equipamentos públicos de
educação sejam acessíveis para as pessoas com deficiência,
inclusive por meio de transporte adequado (BRASIL, 2011).
O PVSL assegura a inclusão de vagas de Bolsa-Formação
para pessoas com deficiência, devendo investir em salas
de recursos multifuncionais; permitir a acessibilidade
nas escolas; promover a formação de professores para a
realização do atendimento educacional especializado; e
obter ônibus escolares acessíveis.
Quanto à formação universitária, o PVSL incluiu um
Programa de Acessibilidade na Educação Superior (BRASIL,
2011). No Ensino Técnico, o Programa Nacional de Acesso
ao Ensino Técnico e Emprego – Pronatec busca expandir e
democratizar a educação profissional e tecnológica no país
(MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2011).
O PVSL abriu espaço para a participação das pessoas
portadoras de deficiência na cidadania, dirigindo-se aos
Conselhos Tutelares, ao Ministério Público, ao Centro
de Referência de Assistência Social – Cras e a outros para
corrigir possíveis omissões, procurando dar condições
aos deficientes para fortalecerem sua autonomia, criando
facilidades para que se insiram no mercado de trabalho
por meio de programas de qualificação profissional.
Outro importante aspecto para a autonomia é a
questão da comunicação: “Acessibilidade também se refere
ao direito de se comunicar e ao de ser comunicado, dois
direitos que vêm sendo negados a pessoas com deficiência
– resultando em impactos na saúde” (RADIS, 2013, p. 1517). Tal precariedade é encontrada na rede de serviços do
SUS – baixa capacitação de profissionais para o uso de
Libras (Língua Brasileira de Sinais) nos debates eleitorais,
espetáculos artísticos, cursos de educação a distância,
além de outros.
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Fevereiro | Justiça & Cidadania
23
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Considerações finais
O problema focalizado neste artigo – a efetiva inclusão
social das pessoas portadoras de deficiência – é um exemplo
claro de dificuldades a vencer. Não se trata da construção
de legislação mais adequada e justa, pois as leis existem,
mas do cumprimento da legislação brasileira que garante
os direitos de cidadania aos portadores de deficiência.
Implica um compromisso de todos e em especial da gestão
dos “municípios saudáveis”, das unidades territoriais e dos
cenários comprometidos com os valores, os princípios e as
estratégias da Promoção da Saúde.
No momento em que a Política Nacional de Promoção
da Saúde (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2006) está sendo
submetida a um processo de ampla revisão e atualização,
o imperativo da inclusão das pessoas portadoras de
deficiência na sociedade deve ser reconhecido como uma
de suas prioridades, em particular do programa Saúde
em Todas as Políticas.
Notas
A União Internacional de Promoção da Saúde e Educação para a Saúde – Uipes (www.iuhpe.org) é uma associação mundial de profissionais
e instituições que tem como missão promover a saúde no mundo e contribuir para a equidade na saúde entre os países e dentro de cada país.
Opera em estreita cooperação com a OMS, a Unesco e o Unicef.
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RUMEL, D.; SISSON, M.; PATRÍCIO, Z. M.; MORENO, C. R. C., 2005. Cidade saudável: relato de experiência na coleta e disseminação de informação
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WESTPHAL, M. F., 2000. O movimento cidades saudáveis: um compromisso com a qualidade de vida. Ciência & Saúde Coletiva, 5(1). Rio de Janeiro:
Abrasco.
Ministério da
Previdência Social
Ministério da
Previdência Social
Outros sites consultados:
- www.healthpromotion2013.org
- www.conasems.org.br
24
Ministério da
Previdência Social
Justiça & Cidadania | Fevereiro 2014
Ministério da
Previdência Social
2014 Fevereiro | Justiça & Cidadania 25
* Ligação gratuita de telefones públicos ou fixos. De celular é cobrada tarifa de ligação local.
Foto: Arquivo pessoal
Dumping social ou
delinquência patronal na
relação de emprego?
José Augusto Rodrigues Pinto
D
Desembargador (aposentado) do TRT-5ª Região
Professor Adjunto IV da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia
1. Introdução ao tema
esde o século passado, mormente em sua
segunda metade, o Direito passou por
impressionante mutação estrutural que,
disseminando-se por todos os ramos –
clássicos ou emergentes – começa a consolidar resultados
neste início do terceiro milênio. Sendo a ciência jurídica
um complexo homogêneo, seria temerário dizer que a
transformação se dá com mais rapidez e densidade em
uns do que em outros segmentos. Mas, não é nenhum
despropósito considerá-la mais nítida e enfática nos mais
sensíveis ao anseio de efetivo equacionamento e solução
dos conflitos humanos espicaçados pelos impactos
sofridos em áreas estreitamente afins do conhecimento,
como as da Economia e da Sociologia. É o caso, sem
dúvida, do Direito Constitucional, por sua função de
“direito-síntese”, na magnífica definição de Chaves Junior1;
do Direito do Trabalho, por sua missão de sistematizar
um tipo de relação jurídica diretamente conectada
à dignidade material e moral da vida humana; do
Direito Processual, pela certeza de não poder continuar
sendo “apenas um meio para obter a defesa do direito
subjetivo e a paz jurídica”2, nem vendo o trâmite das
lides no Judiciário “ser reduzido à sua dimensão técnica,
socialmente neutra, como era comum ser concebido
pela teoria processualista” 3, sob pena de se reduzirem os
novos direitos sociais e econômicos “a meras declarações
políticas, de conteúdo e funções mistificadores.” 4
Nessas rápidas reflexões cabe o forte elo da mutação
estrutural do Direito com a figura do dumping social,
26
cuja irradiação ocupou espaço rapidamente no Direito
material e processual do Trabalho e chegou aos pretórios
nos autos de dissídios individuais.
A matéria ainda está em fase de maturação, considerando-se o tempo que levam a cautela jurisprudencial e
o conservadorismo normativo para absorver as inovações
doutrinárias até cristalizá-las em novos institutos e situações jurídicas. Daí as dúvidas e incertezas, que justificam
procurar resposta para duas questões que desafiam o poder de reflexão do jurista:
1ª) A figura ora denominada dumping social no Direito
do Trabalho corresponde ao conceito e ao conteúdo do
verdadeiro dumping, ou lhe é completamente estranha?
2ª) As medidas doutrinárias de reação repressiva, endossadas
pela jurisprudência, à sombra da qualificação de dumping
social, são as mais acertadas e eficazes?
2. Origem, conceito, natureza e objetivo do dumping
A expressão dumping provém do verbo inglês
“dump”, significando desfazer-se de algo e depositá-lo
em determinado local, como se fosse lixo. No mercado
internacional uma empresa executa dumping quando: (a)
detém certo poder de estipular preço de seu produto no
mercado local (empresa em concorrência imperfeita); e
(b) perspectiva de aumentar o lucro por meio de venda
no mercado internacional. Essa empresa, então, vende
no mercado externo seu produto a preço inferior ao
vendido no mercado local, provocando elevada perda de
bem-estar ao consumidor nacional, porque os residentes
Justiça & Cidadania | Fevereiro 2014
locais não conseguem comprar o produto a ser vendido
no estrangeiro.5
Ou seja, em síntese: uma prática de comércio internacional consistente na venda de mercadorias em praça
estrangeira por preço sistematicamente inferior ao do
mercado interno ou ao de produtos concorrentes, tendo
por meta eliminar a concorrência.
O conceito próprio do dumping, e sua ambientação
internacional, absolutamente claros na lição dos
especialistas, são estritamente econômicos, tanto quanto
a natureza e o fim colimado. Seu uso evoluiu na face
negativa do expansionismo industrial e da globalização
das trocas, responsável pela grave deterioração da ética
no comércio internacional com vistas à monopolização
final da atividade exercida.
Os resultados proveitosos para os seus agentes, potencializados pelo passar do tempo e pela mudança da dinâmica
econômica, lhe estimularam a multiplicação com maleabilidade formal que passou a dar a impressão de elasticidade
conceitual. Deve-se isso, em grande medida, ao que chamaremos de interiorização do dumping, processo de adotado no
âmbito exclusivamente nacional ou interno, e de alargamento
da ação da esfera comercial para a industrial, transparente
nessas variáveis ampliativas de seu alcance primitivo:
– Exportação por preço inferior ao vigente no mercado
interno para conquistar novos mercados ou escoar excessos
de produção.
–Venda por preço abaixo do custo para inviabilizar existencialmente a concorrência.
– Ato de venda de grandes quantidades a preço muito
abaixo do normal, ou virtualmente desconsiderado, fora do
alcance dos competidores.
Por esses atalhos se mostra a mudança no perfil
de outro ato de concorrência desleal, com o mesmo
fim de proveito ilícito, porém com evidente distinção
de gênese e de conceito original do dumping. Assim,
tangenciando a esfera econômica de identidade e
natureza, conseguiu-se a falsa impressão de ser possível
admitir extensões conceituais qualificativas do dumping,
onde apenas existem meios para sua prática, ou efeitos
dela decorrentes.
Antes de esmiuçarmos isso, ponderemos que nem
toda oferta de produto a preço inferior ao de empresas
concorrentes, no plano internacional, ou no interiorizado,
caracteriza o dumping, pois nenhuma patologia existe na
adoção de métodos apropriados para diminuir o custo
de atividade econômica por aumento de produtividade.
São exemplos disso o investimento em modernização de
equipamentos, o aperfeiçoamento de métodos e técnicas de
produção de bens ou prestação de serviços, o treinamento
e estímulo remuneratório de pessoal. A patologia de
conduta só aparece na malignidade do propósito de
sufocar a concorrência, usando fatores que a estimulam,
como deixa claro o preâmbulo do “Acordo” celebrado
pelos países da Comunidade Econômica Europeia para a
adoção de medidas antidumping:
Há que se distinguir o “dumping” das simples práticas
de venda a preços baixos que resultam de custos
2014 Fevereiro | Justiça & Cidadania 27
Foto: Depositphotos/aremafoto
inferiores ou de produtividade superior. O critério
essencial na matéria não é, com efeito, a relação entre
o preço do produto exportado e o do mercado no país
da importação, mas a relação existente entre o preço do
produto exportado e o seu valor normal.6
3. Extensões conceituais
A rapidez evolutiva dos fatos de nossa época gera uma
espécie de compactação dos ramos do conhecimento pela
interação de concepções que antes geravam institutos de
atuação hermética em cada qual. O impressionante boom
do domínio de recursos técnicos e científicos, impulsores
da produção diversificada de riquezas, propiciou aos
beneficiários do exercício do dumping enorme variedade
de meios abertos nas faixas mais vulneráveis à compressão
desleal de custos que, não utilizado por outras empresas,
terminará expulsando-as do mercado.
No rol daninho desses meios destaca-se, na área civil
dos negócios jurídicos, a inadimplência de obrigações
contratuais com fornecedores; na área tributária, a
sonegação; na área trabalhista, a fraude à legislação
tutelar, tão mais rentável quanto menor seja o escudo
normativo de proteção do trabalhador.
De outra parte, malgrado o desiderato do dumping
tenha um alvo muito preciso, assestando sua mira
apenas na empresa ou empresas que se deseja excluir
da competição, é óbvio que, por tabela, tumultua a
28
ordem jurídica, desequilibrando as relações colaterais de
interesse e envolvendo terceiros nas manobras espúrias
para completá-lo. Seguramente, a área mais dúctil
ao êxito dessas manobras é a da relação de emprego,
pelo flanco que o poder de direção, e sua face oposta,
a subordinação jurídica e econômica do trabalhador,
abrem à atrofia da planilha financeira impiedosamente
expurgada de encargos trabalhistas e sociais com o
mínimo de resistência do prejudicado, no mais das vezes.
As piruetas jurídicas usadas para chegar ao dumping
repercutem em toda a ordem social pelo clima de
insegurança e insatisfação a que dão lugar, e na dimensão
específica do consumo, pela perda de bem-estar destacada
por Frahm e Villatore em sua definição do dumping
autêntico. O óbvio enlaçamento dos expedientes jurídicos
(civis, trabalhistas e consumeristas) usados para conseguir
os malefícios econômicos do dumping provocam malefícios
sociais decorrentes de seu avanço e clímax, instigando o
raciocínio analítico a enxergar neles uma tipicidade de
extensão conceitual do próprio dumping, quando não
passam de modos para consumá-lo ou de efeitos danosos
da consumação.
Essa enganosa característica merece análise extremamente atilada, mormente pelas distorções de tratamento
repressivo de um imaginário dumping social trabalhista
(fusão das extensões social e jurídica), que iremos enfrentar proximamente em nossas especulações (ver n. 5 infra).
Justiça & Cidadania | Fevereiro 2014
4. Primeira extensão conceitual: dumping social
Cremos já estar patente que só cabe no conceito estrito
de dumping o conjunto de atos destinados a promover o
estrangulamento econômico da concorrência comercial,
com o concurso industrial indispensável à criação dos
produtos a ser comercializados. Entretanto, o alto teor
predatório da natureza do dumping pode ter repercussão
sob a forma de dano transindividual difuso que seus
efeitos impõem ao organismo social, ou de dano individual
homogêneo que impõe aos sujeitos dos contratos que
prejudicar. Apenas exemplificando, alternativamente:
o fechamento forçado de empresas congêneres, e/ou a
supressão de postos de trabalho devida ao encolhimento
do mercado, assim como a perda de clientela do fornecedor
de matérias primas a empresas extintas por sua pressão.
Genericamente danoso à sociedade é o colonialismo
econômico advindo do monopólio final. Individualmente
danoso ao empregado é o desemprego a que o lança
o fechamento da empresa com a qual mantinha sua
relação de emprego. As aparentes extensões conceituais
do dumping (social, no primeiro aspecto do exemplo,
jurídica, no segundo), não passam de efeitos colaterais
do dumping, nas áreas sociológica e jurídica.
O que procuramos situar e ilustrar é a demonstração
de não ser verdade que existem extensões conceituais do
dumping, mas sim efeitos colaterais (sociais e jurídicos)
de sua prática bem-sucedida. Efeitos – acentue-se – que
fundamentam o clamor reativo à deslealdade econômica
e a justa censura jurídica da conduta empresarial, porém
diversos e distantes do efeito principal do dumping.
Então, se existisse a extensão conceitual do dumping
social, seu conteúdo seria de deterioração da ordem
social pelos efeitos reflexos que ele provoca.
Daí se percebe que o comprometimento da ordem
social pode, sim, decorrer do dumping empresarial, e deve
ser reprimido com ele. Mas, se decorrer do mero exercício
abusivo do direito na execução dos negócios jurídicos, é de
ser reprimido em si mesmo, com outros desdobramentos.
A questão, que encararemos pouco adiante, é de dimensão,
(ver n. 7, a). O que não nos parece cientificamente desejável
é distorcer o conceito de dumping com extensões que
não lhe cabem, quando o que se observa são resultados
colaterais de sua prática sem nenhuma identificação com
a substância material do instituto. Isso continuará a ser
detalhado no item seguinte.
O dumping atropela preferencialmente o Direito em
três de seus mais importantes segmentos na dinâmica
social moderna: civil, na medida em que invade a área
das obrigações (contratos) e do direito de empresa;
trabalhista, na medida em que manipula malignamente
a relação individual de emprego; e consumerista, na
medida em que tumultua as relações de consumo.
Aqui defrontamos uma questão de dimensão, pois
na maior parte das vezes o que aparenta ser dumping é
mera malícia jurídica para tirar vantagem econômica do
ilícito contraual, à forfait do prejuízo que inflige ao outro
contratante ou a terceiros em face dos negócios jurídicos,
e ao próprio todo social.
Importante para a tese que procuramos firmar é
a veemente repulsa do Direito à confusão entre o fim
e os efeitos dos atos que lhe incumbe disciplinar. Em
hipóteses como a que analisamos, os efeitos do dumping
e da violação abusiva de direitos do trabalhador são
muito próximos da similaridade, mas o fim de cada um
denuncia naturezas totalmente distintas – sendo muito
estranho e inadequado forçá-los a partilhar uma só
identidade.
5. Segunda extensão conceitual : dumping jurídico
A meta econômica do dumping tumultua a ordem
jurídica tanto quanto a social. Até diremos que o faz com
intensa frieza porque, além dos danos diretos ou reflexos
que impõe aos sujeitos dos negócios jurídicos, deles se
serve como ponte para concretizar seu perverso projeto.
A primeira razão revela, com a máxima nitidez, o
aspecto da caracterização diferencial entre o dumping e a
simples execução contratual abusiva. O comportamento
nele delineado é possível pela disparidade legislativa,
no plano internacional, que move, por exemplo, a
empresa a encerrar a atividade econômica num país para
6. Dumping social na relação de trabalho
A extensão conceitual rotulada de dumping social
trabalhista corresponde, em verdade, à agressão
contratual à relação individual de emprego em benefício
do lucro do empregador com sacrifício dos direitos e
encargos sociais tutelares do empregado. É óbvio que,
indiretamente, isso atinge as empresas concorrentes, mas
fica longíssimo do propósito de extermínio empresarial,
este, sim, caracterizador do dumping puro.
Quando é intenção exercer o dumping (sem
qualificativos) a relação de emprego aparece como um
dos meios possíveis para o êxito do resultado, por duas
razões:
1ª As facilidades proporcionadas pela inexistência ou
fragilidade da legislação social de determinados países,
ou seu recorrente desrespeito num negócio jurídico em
que a desigualdade econômica dos sujeitos torna um deles
extremamente vulnerável às pressões ilícitas do outro.
2ª O considerável peso dos encargos contratuais e sociais
da mão-de-obra na composição da planilha de custos do
produto a ser oferecido ao mercado, devido a uma legislação
preocupada em proteger a pessoa do trabalhador.
2014 Fevereiro | Justiça & Cidadania 29
estabelecer-se em outro, de onde passa a exportar seu
produto a preço irresistível pela concorrência interna,
com o fim de extermínio da concorrência. Isso é dumping,
em toda a plenitude de sua natureza econômica, embora
com inevitáveis efeitos colaterais (social e jurídico). Seu
conceito equivocado como dumping social transparece
neste comentário:
Governos e empregadores de países altamente desenvolvidos
frequentemente acusam governos menos desenvolvidos de
praticar o dumping social por deliberadamente negligenciar
regras trabalhistas. Pode, então, ser o dumping social
invocado com o intuito de proteger o mercado interno de
países desenvolvidos das mercadorias produzidas pela mãode-obra carente de direitos mínimos do trabalhador: longas
jornadas de trabalho, utilização de mão-de-obra infantil,
precário sistema previdenciário etc. 7
A segunda razão não revela mais do que o simples
descumprimento ilegal de obrigações trabalhistas e
encargos sociais, que produz, em escala proporcional, os
mesmos efeitos colaterais (social e jurídico) do dumping,
mas se distingue, expressivamente, pela natureza e pelo
fim. As distinções se retratam na diferença dimensional
(ver n. 7, a) ressaltada no seguinte comentário:
[...] empresas que deixam de pagar direitos aos seus empregados acabam auferindo mais lucros e, consequentemente,
possuem mais recursos para enfrentar as empresas concorrentes, podendo colocar seus produtos no mercado a um
preço menor. 8
Por ambas as formas reprováveis de conduta a realidade
mostra como é fácil utilizar o Direito (do Trabalho, in
casu), inescrupulosamente, em busca do macro resultado
econômico do dumping pelo esmagamento da concorrência
empresarial, ou do micro resultado de ampliação do lucro
pela inadimplência contratual. Esta última hipótese é
que está sendo erradamente conceituada, venia permissa,
como dumping social.
7. Reação repressiva da doutrina e da jurisprudência
Já foi referenciado que, no plano do comércio exterior,
medidas de repressão ao dumping, no seu conceito próprio,
são concertadas em tratados internacionais e resoluções
de organismos supranacionais. Entretanto, no plano do
que denominamos interiorização do dumping, quer em
seu conceito próprio, quer em suas pretensas extensões
conceituais, são patentes a inexistência de legislação
protetora do trabalhador e a ineficiência de medidas
assestadas contra o desrespeito à legislação protetora
representada, em nosso Direito do Trabalho, pela CLT
e leis complementares, cujo sistema de penalidades
administrativas, além da irrisão dos valores, se notabiliza
30
pela inoperância da apuração das transgressões e da
execução judicial das escassas inscrições na dívida ativa
da União a que devem provocar.
O mal-estar causado por essa desoladora paisagem
instigou nossos doutrinadores ao preenchimento do
vazio normativo com barreiras substitutivas do mesmo
viés econômico do dumping, numa autêntica aplicação
do princípio terapêutico similia similibus curantur. Eis
o sumo da pregação doutrinaria, respectivamente, no
Direito material e processual do Trabalho:
O fato é que [...] o Direito Social não é apenas uma
normatividade específica. Trata-se, isso sim, de uma
regra de caráter transcendental, que impõe valores à
sociedade e, consequentemente, a todo o ordenamento
jurídico. 9
..........................................................................................
[...] a função jurisdicional passa a ser encarada como uma
função essencial ao desenvolvimento do Direito, seja pela
estipulação da norma jurídica do caso concreto, seja pela
interpretação dos textos normativos, definindo-se a norma
geral que deles deve ser extraída e que deve ser aplicada a
casos semelhantes. 10
A correlação desses pensamentos com a matéria da
nossa abordagem indica os próximos passos da reflexão,
atentos ao nexo crucial dessa neo-liberação com a
segurança da ordem jurídica. Tais passos conduzem a
três avaliações de acerto:
pertinente ao dano social perpetrado, fixada ex officio pelo
juiz da causa, pois a perspectiva não é de mera proteção
do patrimônio individual. 12
Dos termos gerais dessas conclusões não temos
por que discordar, numa primeira avaliação, diante da
já reconhecida evidência de ser possível uma efetiva
manipulação do Direito do Trabalho como meio ou
instrumento auxiliar para obter o fim econômico do
dumping, e o profundo abalo que isso traz à ordem social.
A segunda avaliação aponta firme tendência das
sentenças lidas para reprimir pecuniariamente, sob o
pretexto de suposto dumping social (no caso, trabalhista),
ainda que, et pour cause, num avanço meio errático. Tal
tendência, entretanto, não autoriza desprezar a adoção de
posicionamento contrário, a teor do abaixo transcrito:
Pedido de indenização pela prática de dano social feito
em ação trabalhista contra empresas do ramo calçadista
foi negado pelo juiz Luiz Carlos Roveda, titular da Vara
do Trabalho de Brusque [...] O juiz negou o pedido por
entender que não é da competência do Judiciário fixar
multas não previstas na legislação. Esses pedidos são
razoáveis e até se coadunam com os princípios gerais
do direito, porém, na essência, elegem o Judiciário para
suprimir as deficiências fiscalizadoras do Executivo e
a inércia do Legislativo e das organizações sindicais,
pondera o juiz.” 13
Do comportamento doutrinário;
Da repercussão judicial do comportamento doutrinário;
Do desvio de bom senso judicial quando identifica o dumping
em situações de simples transgressão de normas trabalhistas
e em impor e dosar sanções pecuniárias repressivas.
De nossa parte, convimos em considerar que a ortodoxia (ou o conservadorismo) deste último entendimento trafega na contramão do trânsito do Direito em
direção a uma atividade mais solta de preenchimento de
vácuos normativos contrários ao interesse social, bastante perceptível nesta observação:
A resposta à primeira avaliação é positiva e se condensa no excerto seguinte:
[...] no campo mais tradicional do ressarcimento do dano,
não se deve reparar só o dano sofrido (pelo autor presente
em juízo), mas o dano globalmente produzido (pelo réu à
coletividade inteira.) 14
As agressões reincidentes e inescusáveis aos direitos
trabalhistas geram um dano à sociedade, pois com tal
prática se desconsidera, propositadamente, a estrutura
do Estado social e do próprio modelo capitalista com
obtenção de vantagem indevida perante a concorrência.
A prática, portanto, reflete o conhecido `dumping social´,
motivando a necessária do Judiciário trabalhista para
corrigi-la. 11
O desrespeito deliberado e inescusável da ordem jurídica
trabalhista representa inegável dano à sociedade [...]
Portanto, nas reclamações trabalhistas em que tais
condutas forem constatadas (agressões reincidentes
ou ações deliberadas, consciente e economicamente
inescusáveis) de não respeitar a ordem jurídica trabalhista
[...] deve-se proferir condenação que vise à reparação
Justiça & Cidadania | Fevereiro 2014
Todavia, é na terceira avaliação que reside o nó
de toda a problemática perscrutada, bem merecedor
do radicalismo de tratamento do rei Górdio. E, pelo
que nos foi dado pesquisar e remoer, um nó que, no
entrechoque de fundamentações titubeantes, não está
sendo compreendido como conviria no confronto com
três fatores vitais de equacionamento correto da matéria:
dimensão, valoração e destinação.
Meditemos juntos sobre cada um deles.
a) Dimensão
É notório que as sentenças que estão sendo proferidas
na trilha doutrinária não distinguem a altura piramidal da
2014 Fevereiro | Justiça & Cidadania 31
figura do dumping da dimensão rasteira da inadimplência
contratual como fonte de lucro ilícito. Tomemos duas
ilustrações corretivas da miopia que embaça a clareza da
compreensão.
Determinada empresa15 foi condenada a pagar
R$50.000,00 (cinqüenta mil reais) a uma instituição
beneficente completamente estranha à lide trabalhista
julgada, sob pretexto de “indenização suplementar”
(grifamos) da condenação em horas extraordinárias
habituais. O juízo desconsiderou o fato provado de
ter havido compensação pelo sistema de banco de
horas, firmando-se na observância dos parâmetros da
convenção coletiva que a autorizou e na ilação (por falta
de apoio na instrução), das “inúmeras reclamações” de
idêntico perfil em que já se envolvera.
Num outro caso, certa empresa foi condenada a pagar
R$100.000.000,00 (sic, cem milhões de reais) por “danos
coletivos” dos empregados, ao fundamento de que não
pagava horas extraordinárias in itinere. Segundo a ilação
da sentença, bastante clara na expressão supositiva, o lucro
da empresa “teria sido” (sic, grifamos) de $200.000.000,00
(sic, duzentos milhões de reais) em cinco anos.16
As ilustrações refletem fielmente a conclusão já
expressa de que, em tese, empresas que assim trans­
grediram a legislação do trabalho elevaram ilicita­mente
seu lucro e superaram as concorrentes com a colocação
de produtos ou serviços a preços mais baixos (ver n. 5
supra). Note-se, porém, que em nenhuma das ilustrações
há o mínimo indício de prática de dumping, sendo claro
que o descumprimento das obrigações contratuais foi
um fim em si mesmo e não um meio de extermínio de
empresa(s) concorrente(s). Logo, o dano social que
respaldou as sanções não foi um efeito de dumping, mas
o simples reflexo do dano individual dos empregados
(no caso, à saúde, por excesso iterativo de jornada,
e financeiro, por privação do pagamento de horas
excedentes com adicional indenizatório).
Os exemplos que seguem, de caracterização do que
está sendo chamado dumping social, são dados por um
dos mais vibrantes áulicos do enquadramento linear
dos abusos contratuais do empregador nesse conceito:
subcontratações, contratação de falsas pessoas jurídicas,
transferência da atividade para localidades permissivas de
concorrência desleal sufocante da concorrência 17. Mas,
o que eles evidenciam é a essencialidade do diferencial
de dimensão para identificar o verdadeiro dumping, cujo
qualificativo social não compõe sua natureza, pois apenas
evidencia um efeito colateral.
b) Valoração
É igualmente notório estar faltando um critério de
valoração que oriente a quantificação do acréscimo
32
condenatório antidumping, por assim dizer. Valoração
em três sentidos: o da prova, o do peso da transgressão
contratual e o da proporcionalidade entre esta e a reação
repressiva.
Observe-se, na primeira ilustração feita acima, a
ausência de definição e de prova consistente da omissão
iterativa de pagamento de horas extraordinárias, única razão
para reconhecer uma situação de suposto dumping social.
Note-se, ademais, que nenhuma investigação processual
sustentou o fundamento das “inúmeras reclamações”
em que a empresa se envolveu, nem a proporção entre
o número de empregados que não reclamaram e o de
reclamações, e muito menos a correlação do número de
processos com o quadro de pessoal. Observe-se, ainda, que
o reconhecimento da prática do suposto dumping é desdito
pela constatação, na mesma sentença, de que “a autora não
se desincumbiu do ônus que lhe competia de demonstrar
que continuava trabalhando após a batida de ponto” (sic),
dúvida que repercutiu explicitamente na iliquidez da
condenação. Veja-se, por fim, que o valor arbitrado de toda
a condenação não passou de R$ 7.781,30, do qual, abatido
o líquido de R$5.000,00, a titulo de danos morais, ficam
pouco mais de dois mil reais para a condenação em horas
extraordinárias, que foi a base da indenização suplementar
por dumping social de valor vinte e cinco vezes maior.
Na segunda ilustração, a expressão conjectural “teria
lucrado” desnuda o irretorquível empirismo da proporção
entre o ganho sideral de duzentos milhões de reais e uma
reparação social não menos astronômica equivalente à
sua metade (cem milhões de reais).
c) Destinação
É notória a invariável definição da natureza indeni­
zatória de dano dada às sanções ao chamado dumping
social. Mas, as variações qualificativas denotam a vacilação
em encontrar o adjetivo certo: indenização suplementar,
dano à coletividade, dano coletivo. Esquisitíssimo é
que a destinação dos valores favoreça entidades de
direito público ou privado (organizações beneficentes,
FAT etc.), inteiramente alheias à lide que os originou, e
totalmente alheia ao(s) empregado(s) vítima(s) direta e
individual(ais) do dano de ordem material e moral.
Não há meio de conseguirmos alcançar a razão de ser
da escolha.
Reflitamos, por amostragem, sobre o cerne fáticojurídico dos casos concretos que mais se repetem: não
pagamento de horas extraordinárias habitualmente
prestadas e seu adicional. Ora, o excesso de jornada,
remunerado ou não, inflige um dano material de duas
ordens, ambas inseparáveis do empregado que as prestou:
a) pelo desgaste orgânico irrecuperável, redutivo da vida
útil de trabalho; b) pela inadimplência da contraprestação
Justiça & Cidadania | Fevereiro 2014
salarial indenizada. Se o juízo vê desproporção entre o
abuso patronal e a condenação, a ponto de merecer uma
indenização suplementar, só o empregado pode fazer
jus a ela, pois foi ele que sofreu diretamente o dano
material e moral causado pela inadimplência, nunca
a sociedade sobre a qual apenas se projeta o mal-estar
provindo da inexecução faltosa do contrato. Mesmo que
o reconhecimento seja de dano coletivo, a violência que o
produz é a direito individual homogêneo, cuja reparação
é devida ao conjunto dos titulares que o sofreram direta
e individualmente – e não a instituições públicas ou
privadas, escolhidas aleatoriamente pelo juízo, que não
sofreram dano de nenhuma espécie.
8. Reflexões dedutivas parciais
Os dados até aqui reunidos, embora não deslindem,
per se, o tema, já oferecem uma percepção parcial dedutiva,
na medida em que permitem extrair algumas conclusões
objetivas, a saber:
1ª) A aceitabilidade, numa ordem jurídica normativamente
estruturada, da criação e aplicação pelo Poder Judiciário
de sanções extralegais para reparar danos sociais insatisfa­
toriamente reprimidos pelo sistema estabelecido. Por sua
ousadia, a doutrinária exige extrema precisão de conceito,
natureza, finalidade e alcance das providências que tomar
e máximo comedimento de uso, a fim de manter incólume
o sentimento da segurança jurídica – oxigênio da sociedade
civilizada.
2ª) A evidente falta de formulação de uma teoria consistente
em torno do que vem sendo chamado de dumping social.
Essa falta compromete a firmeza da adoção pelo Judiciário
trabalhista, exatamente por falta de precisão conceitual,
de compreensão da natureza, de foco, de finalidade e de
comedimento da repressão.
3ª) A sensível ausência de critério uniforme para fixação de
valor de sanções pecuniárias, a título de reprimir o chamado
dumping social nos dissídios individuais do trabalho, além
de desvio de direcionamento da reparação do sujeito passivo
direto do dano (o empregado) para o indireto (a sociedade).
Essas deduções, claros sintomas de descompasso
entre a realidade fática e a percepção judicial, tingem
de tons negativos a imagem do Judiciário trabalhista.
De fato, uma das virtudes mais exaltadas da Justiça do
Trabalho é o idealismo dos seus agentes – um idealismo
que se equilibra perigosamente sobre o fio de navalha do
sectarismo ideológico. Assim, o super dimensionamento
da conduta contratual faltosa do empregador, ou o
sub-dimensionamento do conceito de dumping, como
se preferir, pode servir de salvo-conduto à constrição
econômica arbitrária da empresa, adquirindo um viés
de maniqueísmo ideológico, segundo o qual tudo que
provier do capital é pecaminoso e tudo que provier do
trabalho é angelical.
A fim de bem caminhar sobre o fio da navalha sem
cortar os pés é que tentaremos:
a)Nomear e conceituar, de modo juridicamente
seguro, o descumprimento abusivo das obrigações
da empresa na relação de emprego, distinguindo-o
da figura econômica do dumping.
b)Justificar a construção teórica da indenização
suplementar do dano que causa ao empregado
esse descumprimento abusivo.
c)Pautar critérios sensatos de quantificação do
dano e direcionamento do valor quantificado
para quem diretamente o sofreu e, portanto, seja
credor da reparação.
9. Deliquência patronal e condenação punitiva
O rumo para se chegar onde queremos pode ser
encontrado num substancioso trabalho do professor e
magistrado Rodrigo Trindade de Souza 18. Nele palpitam
idéias irretocavelmente cristalinas sobre comportamentos
dos sujeitos dos negócios jurídicos, em geral, e de
empregadores no contrato individual de emprego, em
particular. Com certeza, elas se ajustam, a molde de luva,
ao fecho conclusivo deste estudo.
Tais comportamentos, marcantemente anti-sociais,
no campo da relação de emprego, receberam do eminente
autor o duro e justíssimo rótulo de “delinquência
patronal” (grifamos). O castigo que merecem foi rotulado
de “condenação punitiva” (grifamos), tradução livre
do punitive damage do direito pretoriano ianque, que
preferiríamos chamar compensação punitiva, para evitar
o risco do pleonasmo.
Estabeleçamos com cuidado o conceito das figuras
com as quais trabalharemos daqui por diante.
Por delinqüência patronal entenda-se o comportamento anti-social do empregador, ínsito na transgressão
abusiva e iterativa dos direitos tutelares do empregado na
relação de emprego, impondo-lhe prejuízo material ou
moral muito superior ao valor de ressarcimento porventura assegurado em Lei.
Por condenação punitiva (ou compensação punitiva)
entenda-se a reparação pecuniária do dano diretamente
causado ao empregado, e indiretamente à sociedade, pelo
descumprimento patronal abusivo do contrato individual
de emprego, compensativa da insuficiência de reparações
asseguradas por Lei.
Estabeleçamos, também, a procedência das figuras
acabadas de conceituar. Sua gênese e consolidação
jurídica vêm da condenação de uma indústria fabricante
de veículos automotivos, que recondicionara certo
número deles e os lançara no mercado como sendo
2014 Fevereiro | Justiça & Cidadania 33
terceira baliza, avocamos as ponderações do Professor
Trindade, virtual paradigma das conclusões que enunciaremos ao final:
“O dumping é uma figura
de natureza econômica
inconfundível, pela origem,
conceito, e objetivo, com
o simples descumprimento
abusivo das obrigações
contratuais civis e trabalhistas
pelo empregador.
novos, sem dar conhecimento disso às revendas e ao
público consumidor. Provado o fato em ação promovida
por um dos adquirentes, o juízo condenou a empresa
a ressarcir-lhe o prejuízo pela desvalorização do bem
adquirido, estimando-o em razoáveis US$4.000,00. Indo
além, todavia, considerou que essa indenização não
bastava à reparação do dano social reflexo (no caso, a
ameaça de lesão jurídica difusa) imanente na conduta
astuciosa da ré; por isso, multiplicou-o pelo numero
de unidades recondicionadas (l.000) e acrescentou o
resultado (US$4.000.000,00) ao valor de ressarcimento
do adquirente pela desvalorização, intitulando-a punitive
damage. A Suprema Corte confirmou a condenação,
com a redução à metade do valor (US$2.000.000,00)
já determinada no segundo grau da jurisdição, mas
firmou-a como precedente de julgamento de lides
similares, estabelecendo três balizas de contenção do
arbítrio judicial, a saber:
1) O grau de intensidade da injúria.
2) A equivalência do valor da indenização com o
efetivo prejuízo.
3) O equilíbrio com sanções legais civis, penais e
administrativas de repressão da mesma conduta.
Para enquadrar com segurança o alvo visado na
34
[...] a comparação entre os valores das punitive damages e
as penalizações civis e criminais que possam ser impostas
por condutas ilícitas pode fornecer um indício de excesso
de fixação [...] No julgamento do Exxon Valdéss, houve
a análise de todos os demais prejuízos experimentados
pela ré lesionante por conta dos fatos determinantes dos
pedidos condenatórios, em especial a perda do navio e
da carga, custos com limpeza e diversas indenizações
compensatórias a que foi condenada. Verificando que a
Exxon teve de despender mais de US$3,4 bilhões entre
multas e indenizações ressarcitórias, fixou a Corte que
´é difícil imaginar mais adequada punição por conduta
negligente.´ 19
Este breve esboço da figura da condenação (compen­
sação) punitiva e de seus limites de bom-senso, afinidades
à parte, mostra a nítida diferença entre a noção econômica
do dumping e a noção jurídica da inexecução faltosa de
relações bilaterais: enquanto o primeiro visa à eliminação
da concorrência empresarial por estrangulamento
econômico, a segunda visa ao locupletamento ilícito
por violação dos direitos de um dos sujeitos do negócio
pelo outro. Transpondo isso, atentamente, para a
seara circunscrita da relação individual de emprego, a
conclusão é inevitável: enquanto a delinquência patronal
pode ser um dos meios de exercício do dumping, o
dumping dificilmente se completará com a simples prática
da delinquência patronal. Daí deflui que a conduta antisocial destinada a aproveitar a ausência ou a debilidade da
legislação trabalhista de determinado pais para colocação
de produtos cujo barateamento inviabilize a existência de
empresa ou empresas concorrentes nacionais (dumping),
causará danos diretos à ordem econômica, de que será
vítima a sociedade atingida pela pressão monopolista, e
à ordem jurídica, de que serão vítimas os trabalhadores
cujas relações individuais de emprego deteriorar.
Ao contrário, a conduta anti-social que tiver
por fim somente otimizar o lucro da empresa pelo
descumprimento abusivo das obrigações oriundas das
relações de emprego protegidas por legislação tutelar
interna (delinquência patronal), causará dano direto
aos empregados cujos direitos violar e apenas indireto à
ordem jurídica transgredida.
Logicamente, o dano social reflexivo do dumping deverá
ser reparado à sociedade. Mas, o dano trabalhista intrínseco
da delinqüência patronal só poderá ser reparado, com
justiça, aos empregados, que o sofreram diretamente. Isso
entra pelos olhos, como acreditamos já ter demonstrado
(ver n. 7 supra) nos casos de privação recorrente de salários,
Justiça & Cidadania | Fevereiro 2014
de prestação habitual de horas extraordinárias, ainda que
pagas, de falta de atendimento às normas de proteção da
saúde e segurança no trabalho, de sonegação de depósitos
de FGTS e de sua multa por extinção imotivada do contrato
etc. A dedução é tão instintiva que as próprias sentenças,
e a doutrina que as alimenta, apesar de proclamaram
o fundamento no dumping social, estão denominando
o pagamento punitivo pela natureza que realmente lhe
corresponde: indenização suplementar.
10. Síntese conclusiva
A exposição discursiva do tema cabe nesta síntese
conclusiva:
1) O dumping é uma figura de natureza econômica inconfundível, pela origem, conceito, e objetivo, com
o simples descumprimento abusivo das obrigações
contratuais civis e trabalhistas pelo empregador.
2) A circunstância de sua prática produzir colateralmente efeito social danoso, não autoriza atribuir-lhe a extensão conceitual de dumping social.
3) As medidas de repressão ao dumping, tanto no
plano internacional de sua origem, quanto no
plano interno a que sua prática se adaptou, são
absolutamente distintas de medidas jurídicas
para reparação dos danos social e individual que
também colateralmente causa.
4) O descumprimento abusivo das obrigações trabalhistas pelo empregador, magnificamente cabí-
vel no severo conceito de delinqüência patronal,
inflige um dano material e moral direto ao(s)
empregado(s), verdadeiro alvo da ilicitude empresarial, sem embargo de causar o que, no dumping
autêntico, é apenas um efeito colateral.
5) Assim, é pertinente dar à delinquência patronal o
mesmo trato repressivo dispensado ao dumping, para
desestimular sua prática, mediante compensação
punitiva ao(s) empregado(s) atingidos), além das indenizações acaso previstas na Lei trabalhista, e valor
proporcional à intensidade do dano material e moral
efetivamente infligido, como já vem ocorrendo a título de indenização suplementar por dumping social.
6) É lamentável engano destinar à sociedade, por meio
de instituições de direito público ou privado, o valor
da compensação punitiva, pois na delinqüência
patronal o prejuízo real a reparar é do empregado
por violação direta de direito individual.
7) Enquanto não regulamentada pela norma jurídica,
a compensação punitiva (que vem sendo imposta
com o nome de indenização suplementar) por dano
decorrente de delinqüência patronal (que vem sendo
denominada dumping social) deverá ser quantificada
de acordo com a gravidade do comportamento antisocial, a extensão e profundidade do dano causado e
a ponderação com sanções legais já previstas para a
ilicitude da conduta.
Notas
CHAVES JUNIOR, “Instituições de Direito Público e Privado”, Rio de Janeiro, Forense, 1988, p. 142.
Aut. e ob. cits., p. 125
3
SANTOS Boaventura de Sousa, “Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade”, 12 ed., São Paulo, Cortez, p. 167.
4
Aut. e ob. cits., p. 168.
5
FRAHM Catarina e VILLATORE Marco Antônio Cesar, “Dumping Social e o Direito do Trabalho”, www.scibd.com./A10 , consultado em
30.06.2011.
6
Google, “Medidas antidumping, Europa”, síntese da legislação da União Européia, verbete Dumping, consultado em 30.06.2011.
7
FRAHM Carina e VILLATORE Marco Antônio Cesar, “Dumping Social...” cit. , p. 2, consultado em 30/06/2011.
8
DE ANDRADE Alexsander F.S., “Dumping social sob a ótica da Justiça do Trabalho”, www.parana-online.com.br, consultado em 15/06/2011.
9
SOUTO MAIOR Jorge Luiz, “O dano social e sua reparação”, São Paulo, Revista LTr – Legislação do Trabalho, 71-1/1317,
10
DIDIER JR. Fredie, “Cláusulas gerais processuais”, Revista da Academia de Letras Jurídicas da Bahia, Salvador, n. 16, jun./dez. 2011, p.
11
Enunciado n. 04 da 1ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, Brasília, outubro 2007.
12
SOUTO MAIOR Jorge, “O dano social...”, cit., p. 1319.
13
“Indenização é indeferida na Justiça do Trabalho”, in Notícias Jurídicas, 21.09.2010, www.jusbrasil.com.br, consultado em 30/06/2011.
14
CAPELLETI Mauro, “Formações sociais e interesses coletivos diante da Justiça Civil”, apud SOUTO MAIOR Jorge Luiz, “O dano social...”, cit.,
p. 1320, destaque do original.
15
Cf. Proc. n. 0000900-76.2009.5.20.0004, Rte. Anne Marília Santos da Silva, Rda. G. Barbosa Comercial Ltda.
16
www.dgcdt.com.br,consultado em 30/06/2011.
17
SOUTO MAIOR Jorge Luiz, “O dano social...”, cit., p. 1318
18
DE SOUZA Rodrigo Trindade, “Punitive damages e o Direito do Trabalho – Adequação das condenações punitivas para a necessária repressão
da delinquência patronal”, São Paulo, Revista LTr – Legislação do Trabalho, 75-05/573 usque 587.
19
Aut. e obr. cits., p. 574/575, destaque nosso.
1
2
2014 Fevereiro | Justiça & Cidadania 35
Invista
em Itaboraí
A capital dos bons negócios.
Distante apenas 39km da capital do Rio de Janeiro, Itaboraí
é hoje a grande oportunidade de excelentes negócios para
empresas de diversos setores. Sede do Comperj - Complexo
Petroquímico do Rio de Janeiro, e com uma Base Industrial e
Tecnológica sendo implantada, o município terá em 10 anos, o
seu PIB estimado em R$17 bilhões e sua população chegará
a 1 milhão de habitantes nesse período.
Itaboraí
Esses empreendimentos estão
atraindo empresas de diversos
segmentos, pois hoje com a nova
administração municipal, Itaboraí
mostra um cenário de progresso
e de modernização da cidade.
Seu território faz divisa com Tanguá
e Maricá, municípios que serão beneficiados
pelo Arco Metropolitano do Rio de Janeiro, uma via
de escoamento que integrará uma importante região do
estado que compreende de Itaguaí à Itaboraí, promovendo o
desenvolvimento integrado de toda essa região.
36
Conheça Itaboraí, a cidade que será a
segunda capital do estado e o melhor
lugar para sua empresa.
www.itaborai.rj.gov.br
Justiça & Cidadania | Fevereiro 2014
2014 Fevereiro | Justiça & Cidadania 37
Justiça comunitária já atua
em 14 estados beneficiando
milhares de pessoas
A trajetória de sucesso do projeto
coordenado pela Secretaria de Reforma
do Judiciário traduz a importância da
cultura da mediação
U
ma das principais medidas do Ministério da
Justiça, transformadas em política pública
desde 2008, sob a administração da Secretaria nacional de Reforma do Judiciário,
está fazendo grande sucesso em 14 estados brasileiros e
no Distrito Federal, em áreas e regiões mais vulneráveis
socialmente e onde a justiça precisa ser mais acessível à
população.
É o programa “Justiça Comunitária” que caminha a
passos largos para ser implantado em todos os estados
brasileiros até o final de 2014.
O programa já pres­tou serviços a mais de 100 mil
brasileiros, com 80 Núcleos em pleno funcionamento,
onde os focos principais são a mediação de conflitos e
a adoção de uma política jurídica, baseada em buscar o
consenso entre as partes. Uma maneira de evitar trâmites
processuais, desobstruir a justiça, satisfazer as partes
envolvidas numa demanda e ainda levar a justiça aonde
o povo está. As mediações e a conciliação ocorrem,
principalmente, em questões de desavenças familiares,
vizinhança, posse, propriedade, dívidas comuns e até
casos que envolvem pensão alimentícia.
A ideia da Justiça Comunitária nasceu em 2000 dentro
38
do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJEDFT). A
proposta era levar à população informações jurídicas,
efetuar mediações de conflitos e realizar animações de
redes sociais, tendo sido planejada e testada por anos, até
que, em 2004, o Programa foi lançado, como um projetopiloto, pelo Tribunal em áreas carentes de sua jurisdição.
Foi um sucesso.
Em 2005, o Programa ganhou o Prêmio Innovare, que
completou dez anos em 2013 identificando, divulgando
e premiando ações de cidadania desenvolvidas, em
todo o Brasil, por operadores do direito, sejam eles:
advogados, defensores, magistrados, promotores e até
mesmo tribunais.
Na história do Instituto Prêmio Innovare, que conta
em seu catálogo “com mais de 3 mil projetos validados,
de boas práticas no judiciário” e que demonstram a
preocupação social da justiça brasileira e seus operadores,
conforme explica seu diretor Carlos Araújo em artigo
publicado na edição 159 da Revista J&C, o programa da
Justiça Comunitária é um dos mais relevantes.
Em 2006, foi criado dentro do Programa, ainda
existente apenas em áreas do TJEDFT, o mapeamento
social com um banco de dados formado na área de atuação
de cada Núcleo da Justiça Comunitária, com informações
sobre recursos locais, instituições, habilidades pessoais,
dificuldades da comunidade e pessoas que poderiam
ser agentes comunitários. A experiência comprovou que
os moradores “passaram a conhecer o potencial de suas
comunidades e começaram a estabelecer novas conexões
e fortalecer as existentes”, conforme diz um relatório sobre
as atividades iniciais do Programa.
Justiça & Cidadania | Fevereiro 2014
Foto: Isaac Amorim/ACS/MJ
D om Quixote, Carlos Alberto Luppi
Flávio Crocce Caetano, Secretário Nacional da Reforma do Judiciário
Em 2008, o Programa se tornou política pública do
Ministério da Justiça por meio do Pronasci – Programa
Nacional de Segurança Pública com Cidadania, permi­
tindo sua disseminação em todas as regiões do país,
estabelecendo “uma conexão entre problemas e soluções
que promoveu um maior senso de responsabilidade pela
comunidade, e criou uma espiral positiva de transformação
social”, diz um relatório oficial do Programa.
Em 2009, foi feita a primeira seleção de agentes comunitários, com 700 selecionados até 2011, orientados
por consultores especiais que ministram cursos de capacitação em técnicas de mediação comunitária e conciliação, noções de Direito, animação em redes sociais,
terapia comunitária, direitos humanos e cultura cidadã. Estes cursos são oferecidos também aos integrantes
das equipes multidisciplinares que atuam em cada
Núcleo, integradas por um psicólogo, um advogado e
um assistente social e toda a equipe capacita os agentes
comunitários.
O Programa compreende a formação de Núcleos
específicos em áreas comunitárias, reuniões semanais de
avaliação, formação contínua de seus agentes e funciona
em locais da própria comunidade, como escolas, templos
religiosos, instituições diversas e até residências. Ela não
funciona em um local fixo, ela vai aonde o problema
existe e o consenso e a conciliação são necessários, a
partir da mediação feita por seus agentes com o suporte
dos profissionais da equipe multidisciplinar.
O Programa foi tão bem aceito que já em 2012 havia
64 Núcleos instalados em 12 estados, número que vem
crescendo permanentemente, – agora já são 14 estados –
tamanha a demanda existente e seus êxitos comprovados
na conciliação de pessoas, na promoção do consenso e no
ajuste de acordos diversos.
O incentivo à redução de litígios é um dos quatro
eixos que estruturam o planejamento estratégico da
Secretaria de Reforma do Judiciário. Entre as diretrizes
de trabalho, no que diz respeito à cultura da mediação,
2014 Fevereiro | Justiça & Cidadania 39
a SRJ busca a reestruturação da justiça brasileira, com a
diminuição considerável do número de ações judiciais,
o estabelecimento de mecanismos legais e formas alter­
nativas de solução de conflitos, promovendo, ainda, total
desafogo no trabalho da justiça brasileira, ampliando a
possibilidade de acordos e satisfação das partes antes de
qualquer iniciativa litigiosa.
A mediação reconhece e valida os sentimentos das
partes, baseada no princípio da igualdade, e uma terceira
pessoa, imparcial, facilita a comunicação e colabora para
que “ambas cheguem a um consenso”. O Secretário Flávio
Crocce Caetano garante, até o final de sua gestão: ”Nosso objetivo é levar os Núcleos da Justiça Comunitária a
todos os estados e, de preferência, às regiões mais problemáticas e vulneráveis. Os agentes comunitários, membros da própria comunidade, são capacitados a atuar com
técnicas de mediação e educação para direitos. Eles são
orientados por uma equipe multidisciplinar formada por
advogado, psicólogo, assistente social. Estes profissionais
ajudam as pessoas a resolverem diversos problemas, estabelecendo um canal de comunicação entre elas focado na
importância do consenso, como, por exemplo, problemas
de família, vizinhança, questões relativas aos direitos do
consumidor”.
Através de pesquisas detectou-se que o brasileiro
prefere, em sua ampla maioria, o consenso à discussão.
Ou seja, prefere o diálogo para solucionar suas questões
de caráter jurídico.
Podemos citar como exemplo uma pesquisa realizada
pelo Centro de Estudos sobre o Sistema de Justiça
(CEJUS) da Secretaria de Reforma do Judi­ciário com
1300 cidadãos em 130 municípios brasi­leiros. A pesquisa
sobre Resolução Extrajudicial de Conflitos dos Serviços
Regulados por Agências Governamentais mostra que
o primeiro caminho de 63% dos entrevistados é tentar
contato direto com a empresa responsável pelo serviço,
enquanto que 15% buscam o Procon e somente 3% vão
direto ao Judiciário.
“O Brasil precisa implantar essa possibilidade legal
para fazer acordos”, diz Flávio Crocce Caetano.
No caso da Justiça Comunitária, os Núcleos utilizam
pessoas da própria comunidade que tenham concluído o
ensino médio, mas precisam ter vivência na comunidade
e receberem capacitação.
A Escola Nacional de Mediação e Conciliação, outra
importante iniciativa de sucesso da Secretaria da Reforma
do Judiciário, dá suporte a todo este trabalho.
Outro programa da SRJ dirigido pelo Secretário Flávio Crocce Caetano começa a se espalhar pelo país –
também transformada em política pública –, e se utiliza
dos serviços de orientação em direitos e de serviços do
40
Sistema de Justiça, com foco em solução por consenso
e mediação, para agentes comunitários – é o projeto da
Casa de Direitos.
“Recentemente – explica Flávio Crocce – nós inaugu­
ramos uma nova política pública, a Casa de Direitos. Ela
é a união do projeto Justiça Comunitária com os serviços
do Sistema de Justiça, de Registro Civil e da Caixa
Econômica Federal. Estas políticas fazem com que todos
os cidadãos tenham acesso à Justiça e que ela seja de
qualidade. Justiça de qualidade é aquela que reconhece o
direito e que é prestada no tempo certo”.
Será também implantada em todos os Estados como
plano da Secretaria de Reforma do Judiciário e, em
novembro de 2013, o primeiro passo foi dado com a
inauguração da unidade na Cidade de Deus, em parceria
com o Governo do Rio, a Caixa Econômica Federal e
diversos órgãos de justiça, com atendimento médio de
até 7 mil pessoas por mês.
A Casa de Direitos está disponibilizando serviços públicos de mediação de conflitos nas áreas comunitárias
em atuação conjunta com os Núcleos da Justiça Comunitária. Serviços como identificação civil – com emissão de
certidões de nascimento, casamento, óbito, escrituras –,
assistência integral da Defensoria Pública, atendimento
dos tribunais, do Detran e da Caixa Econômica já fazem
parte do dia a dia da população local.
A Casa de Direitos é uma unidade física fixa e funciona diariamente com agentes comunitários, consultores e equipes multidisciplinares. Outros serviços como os
relacionados ao Procon, Direito do Consumidor e Defensoria Pública da União funcionarão, inicialmente, em
sistema de itinerância. No caso da Cidade de Deus, por
exemplo, estes serviços estão sendo oferecidos em um
trailer localizado em frente à Casa de Direitos, onde também atuam os técnicos do Programa Justiça Itinerante do
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
A criação dos Núcleos da Justiça Comunitária
obedece a uma seleção feita na própria Secretaria, dentro
do Ministério da Justiça, a partir de editais específicos
para projetos com essa finalidade.
O Ministério da Justiça mantém uma verba anual de
cerca de R$ 4 milhões para este projeto e tem como planejamento a implantação de 10 núcleos por ano. O valor
da implementação de cada um custa em média 380 mil
reais, incluindo a compra de equipamentos, pagamento
das equipes multidisciplinares e outras despesas que garantam, comprovadamente, o pleno funcionamento de
uma das mais expressivas iniciativas de cidadania, hoje,
no país.
Até hoje, estima-se terem sido investidos R$ 20 milhões
no programa, elogiado internacionalmente.
Justiça & Cidadania | Fevereiro 2014
2014 Fevereiro | Justiça & Cidadania 41
O que se pretende é a efetividade do acesso da população à Justiça, o que passa, em um primeiro momento, pela
percepção dos Tribunais de que a população brasileira não
conhece o Judiciário e seus complexos caminhos procedimentais, não consegue acessar advogados ou defensores
públicos, quer pelo custo, quer pela ausência da instituição
“Defensoria Pública” em, ainda infelizmente, muitos locais,
quer por um endeusamento da Justiça, que a magistratura,
em seus castelos de cristal, incentiva, e a falta de informações claras e objetivas, no plano educacional, propiciam.7
A par disso, a população brasileira não tem ainda os
meios materiais e a formação necessária para acessar o
Judiciário como fazem as classes média e alta.
Refere o jornalista José Casado:
Justiça Itinerante
Ampliação democrática do acesso à Justiça
Cristina Gaulia
Desembargadora do TJERJ
Atendimento ao público no programa Justiça Itinerante.
O
Introdução
“Só pode conhecer e aplicar
apropriadamente o direito quem conhece os
fatos sociais, sendo capaz de discriminar-lhes
os traços característicos, perceber-lhes o
encadeamento, as causas e consequências
na estrutura social global. É indispensável
não só conhecer os fatos, como ser capaz de
compreendê-los em conexão com as forças
sociais em presença.”
modelo de organização judiciária almejado
pela Constituição Federal de 1988, este que
teve suas bases aperfeiçoadas pela Emenda
Constitucional no 45, em 30/12/2004, que
introduz na Lei Maior a chamada “Reforma do Judiciário”, tem como norteador principal o fortalecimento da
cidadania no Brasil.
Não à toa, a Constituição de 1988 é denominada
“cidadã”.
Uma Carta de princípios reitores e com propostas
objetivas de reforma das instituições públicas e dos
mecanismos de poder, com fulcro nos valores liberdade,
justiça e solidariedade, para se assegurar a dignidade da
pessoa humana em um Estado Democrático de Direito,
fazendo prevalecer a igualdade na pluralidade, é o projeto
preconizado pelos constituintes e que o Poder Judiciário
precisa incorporar de forma plena e consciente em definitivo.
Construir um novo Poder Judiciário, no qual a
cidadania encontre um Direito concretamente evoluído
em direção a uma ordenação congruente com o bem
comum, em todas as suas diversas singularidades plurais,
passa, inexoravelmente, pela ampliação do acesso ao
Judiciário, primeiro degrau de uma longa escada até o
alcançar real da verdadeira Justiça.
Nas palavras do Ministro do STF, Luís Roberto Barroso,
uma Constituição não é só técnica. Tem de haver, por trás
dela, a capacidade de simbolizar conquistas e de mobilizar o
imaginário das pessoas para novos avanços. O surgimento de
um sentimento constitucional no país é algo que merece ser
lembrado.1 (Grifo original)
42
Justiça & Cidadania | Fevereiro 2014
Para tanto, a efetividade das ações administrativas e das
políticas públicas do Judiciário deve ser a palavra de ordem.
É o próprio texto constitucional que estimula uma revisão
dos valores que devem guiar a magistratura: o artigo 37 da
Constituição determina a obediência “dos Poderes da União”
aos princípios que enumera, entre os quais a eficiência2.3
Se, no passado, portanto, palavras como efetividade
e eficiência eram lidas como meras ideais, com exclusivo
conteúdo programático, no presente, devem ser interpretadas
como conceitos transformadores da burocracia estatal, da
burocracia procedimental do Judiciário.
Para tanto é preciso de plano fazer desaparecerem as
“monoculturas da mente”, uma vez que estas “fazem a diversidade desaparecer da percepção e, consequentemente,
do mundo”.4
É necessário, portanto, um desvio da ultrapassada
“insinceridade normativa” para uma melhor compreensão
do conceito de força normativa da Constituição,
alcançando-se assim a essência da efetividade5.6
Diante desse quadro exsurge, forte no § 7o do art.125
da Constituição, o moderno mecanismo da Justiça
Itinerante como fórmula do pleno e efetivo acesso da
cidadania ao Judiciário, verbis:
(...)
Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os
princípios estabelecidos nesta Constituição.
§ 7o O Tribunal de Justiça instalará a Justiça Itinerante, com
a realização de audiências e demais funções da atividade
jurisdicional, nos limites territoriais da respectiva jurisdição,
servindo-se de equipamentos públicos e comunitários.
É um país com 770 mil advogados, mas apenas 5.500
defensores públicos. São 311 advogados para cada 100 mil
habitantes e apenas 3,9 defensores no mesmo universo. Os
poucos defensores existentes atendem 90% da população.
(...)
Órfãos ficam com oito em cada dez brasileiros que sobrevivem
com até três salários-mínimos mensais. Não têm quem os defenda – principalmente contra o Estado. Quando encontram
um defensor público, geralmente sobrecarregado, precisam
entrar na fila e contar os dias no calendário da burocracia (...).8
Funcionamento
Nos ônibus da Justiça Itinerante, programa de sucesso
do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, na data
de hoje atuando em 19 localidades9, o cidadão, mesmo
sem sapatos, é atendido pelo juiz togado em audiências
que primam pela simplicidade e pela informalidade.
A Justiça Itinerante do Estado do Rio de Janeiro
atua desburocratizando o processo civil e adotando
paradigmas da Lei de Juizados Especiais10 no plano
da conciliação, instrução e julgamento, nas áreas do
direito das famílias, órfãos e sucessões, cível, infância/
juventude/idoso, registro civil, regularização do estado
civil, e já agora podendo fazer o atendimento, também,
na área de Fazenda Pública, com fundamento na Lei
Federal no 12.153/0911, fundamentados os parâmetros
dessa competência, inclusive, por analogia, na norma do
parágrafo único do art. 22 da Lei Federal no 10.259/0112.
O magistrado designado para atuar na Justiça Itinerante
tem competência concorrente nas áreas especificadas acima
e atua, em auxílio ao(s) colega(s) a quem a competência
caberia originariamente, não só no curso do processo
de conhecimento, tentando a conciliação, e em caso de
inviabilidade de acordo, colhendo todo o tipo de prova
em audiências ou fora delas, mas também executando as
sentenças prolatadas.
A Justiça Itinerante no Estado do Rio de Janeiro
funciona, na grande maioria das localidades, uma vez por
2014 Fevereiro | Justiça & Cidadania 43
semana, sempre no mesmo dia, no horário compreendido
entre 9 h e 15 h, e no mesmo local onde o ônibus, desde a
inauguração, permanece estacionado.
Os calendários de atendimento anual são divulgados
na abertura do ano, logo após o recesso judiciário, desses
já constando os dias em que, por feriados ou pontos
facultativos, não haverá expediente.
Ao contrário, portanto, da forma convencional de
entrega da prestação jurisdicional, é o magistrado – com
sua equipe de servidores, e em parceria com o Ministério
Público e a Defensoria Pública, cujos órgãos de atuação
também se fazem presentes – que vai ao encontro do
cidadão que precisa do serviço judiciário.
O norteador que move a inauguração das Justiças
Itinerantes no Estado do Rio de Janeiro obedece a quatro
critérios objetivos sobre os quais se construiu o programa,
visando atender ao melhor gerenciamento dos recursos
financeiros, materiais e humanos, e à disponibilidade
maior ou menor de tais recursos no orçamento judiciário.
Tais critérios são: municípios em cuja lei emancipadora
não se incluiu a Comarca como célula judiciária própria;
municípios com grande densidade demográfica e baixo
índice de desenvolvimento humano; municípios com
grande extensão territorial e com distritos muito distantes
do fórum, e, por fim, territórios em processo de pacificação
via Unidades de Polícia Pacificadora (UPP).
Os primeiros critérios visam a economia de recursos
do FETJ13, eis que são indubitáveis que a alocação de um
ônibus da JI, embora com o custo que lhe é inerente, é
menos dispendiosa que a construção e a manutenção de
fóruns naqueles locais, ou mesmo postos de atendimento,
e que há melhoria do atendimento judiciário a cidadãos
que antes não tinham como acessar o Poder Judiciário.
Como bem consigna a magistrada Renata Vivas,
responsável pela Justiça Itinerante de Jardim Catarina, em
São Gonçalo:
Muitas pessoas aqui não possuem comprovante de
residência, o que obsta o acesso à Justiça e a busca por
direitos e cidadania. As habitações irregulares também
dificultam muito o trabalho dos Oficiais de Justiça. (...) Não
é fácil, requer uma doação maior e muita paciência, pois
são, na maioria das vezes, pessoas pouco esclarecidas, sem
estudo. É preciso explicar e repetir até que a pessoa consiga
compreender. Tanto a linguagem como a postura corporal
precisam ser diferentes. Aqui não há cadeiras altas, nem
tablados, é de igual para igual. Também brinco dizendo que,
entrou no ônibus, vamos resolver! E poder ver a satisfação,
o alívio e a alegria no rosto das pessoas não tem preço. Esse
contato é muito enriquecedor. Como, por exemplo, um casal
de idosos já separados há 30 anos e que nunca conseguiram
fazer o divórcio ou uma mãe que inicia processo de registro
dos seus cinco filhos.14
44
Por outro lado, no campo da pacificação social, presta-se
a Justiça Itinerante ao compartilhamento dos deveres e das
responsabilidades assumidos pelo Executivo Estadual com o
programa das UPP – Unidades de Polícia Pacificadora.
Nesse passo, um Poder Judiciário atento e presente,
como garantidor de práticas democráticas e dos direitos
fundamentais, durante décadas ausentes dos territórios
em processo de pacificação, é a medida exata de Justiça
distributiva necessária à verdadeira conquista da igualdade
em tais localidades15. Para a efetivação da proposta do
Executivo de levar segurança às áreas em processo de
pacificação, que voltam a integrar-se, assim, ao contexto
maior de convivialidade da cidade do Rio de Janeiro, muito
já se tem repetido sobre não ser suficiente a ação policial.
Na verdade, é necessário que a cidadania nesses
territórios deixe de ser uma cidadania de baixa densidade,
tornando-se uma cidadania igualitária. Tal concepção, sem
distorções ou cidadãos de segunda categoria, concretiza uma
cidadania que possibilita a emancipação e a criação de um
“novo senso comum político”, e, com isso, nas palavras de
Boaventura de Sousa Santos, revalorizando-se “o princípio
da comunidade e, com ele, a ideia de igualdade sem
mesmidade, a ideia de autonomia e a ideia de solidariedade”,
tendo “como corolário a descentração relativa do Estado.”16
Conclusão
Cabe ao Poder Judiciário, por meio da Justiça Itine­
rante, legítimo mecanismo constitucional de aprimo­
ramento da garantia de acesso ao Judiciário e à Justiça,
fortalecer o sistema de prestação jurisdicional no âmbito
de uma Jurisdição “comprometida com o processo de
democratização do direito e da sociedade”17.
Ao traçarem-se, portanto, as linhas-mestras da adminis­
tração judiciária na contemporaneidade, é inolvidável que,
ao lado de sua modernização estrutural, que vem sendo
concretizada nos últimos anos com sucesso pelo TJERJ, com
a construção e a modernização dos prédios judiciários, a
informatização e o processo eletrônico, e, mais recentemente,
com as inúmeras medidas de uma especial e intensa segurança
de pessoas e coisas entendidas como indispensável, está o
cidadão, este para o qual o serviço precisa ser otimizado, não
só no plano formal, mas principalmente no plano de uma
Justiça mais adequada do ponto de vista social.
Como dizem os ambientalistas, é preciso pensar a
sustentabilidade do meio ambiente sem esquecer-se do
homem, pois de nada valem os investimentos radicais
para um ambiente saudável se os seres humanos não forem
cuidados como parte essencial daquele.
O programa Justiça Itinerante vem realizando ao longo
dos seus já agora dez anos de existência, no Estado do Rio
de Janeiro, uma proposta diferenciada de acesso à Justiça
para populações diferenciadas.
Justiça & Cidadania | Fevereiro 2014
Não se contesta que tal diferenciação seja transitória,
mas ainda há muito a realizar, com a necessária expansão
do programa.
A forma é diferenciada pois as necessidades são
diferentes.
Assim como a arbitragem vem sendo incentivada e
regulamentada para as empresas que não podem ser prejudicadas com o tempo necessário ao justo processo legal,
como a mediação, que visa expandir o processo de solução
do conflito, buscando-o em sua essência mais profunda, e
não somente em suas consequências superficiais, ou como
os Juizados Especiais, que permitiram a consciência de
que todo conflito, mesmo os de menor complexidade, deve
ser resolvido para uma melhor pacificação social, também
a Justiça Itinerante tem um objetivo específico no plano
maior da jurisdição.
É por meio desse mecanismo de cunho procedimental
que políticas legislativas, como a erradicação do sub-registro de nascimento, a facilitação da transformação
das uniões estáveis em casamento, a interdição de pessoas
doentes e/ou idosas para fins de obtenção de benefícios
previdenciários, a pacificação de conflitos possessórios,
entre outras, podem ser concretizadas com baixo custo e
alto ganho para a sociedade.
À guisa de conclusão, consignamos que em 16/10/2012
entrou em vigor a Lei Federal no 12.726, que visa, por meio
da Justiça Itinerante, a solução de conflitos rurais e que
determina a instituição obrigatória dos “Juizados Especiais
Itinerantes, que deverão dirimir, prioritariamente, os
conflitos existentes nas áreas rurais ou nos locais de menor
concentração populacional.”18
No plano da democratização da Justiça, é chegada
a hora em que não nos basta mais que o rei nu circule
por convivas igualmente nus a falarem de suas roupas e
vestimentas acreditando que realmente estão vestidos.19
O programa Justiça Itinerante do Tribunal de Justiça
do Estado do Rio de Janeiro firma estratégia de transformação positiva e da integração da sociedade, devendo,
por conseguinte, ser incorporado ao planejamento administrativo e orçamentário da Administração Judiciária
dos Tribunais.
1
2
3
Fotos 1 e 2: Atendimento ao público no programa Justiça Itinerante.
Foto 3: Juiz Vitor Moreira Lima em atendimento no programa Justiça
Itinerante do Complexo do Alemão-Rio.
Notas
BARROSO, Luís Roberto. In Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4. ed.
São Paulo: Saraiva, 2013, p. 268-269.
2
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Op. cit. Art. 37: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da
União dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e
eficiência [...].”
3
Para melhor compreensão dos conceitos de eficiência e efetividade, é necessário visitar-se a teoria dos conceitos de Reinhart Koselleck, que, em
sua obra Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos, nas palavras do professor Julio Bentivoglio, revela: “O mundo é sempre
interpretado a partir da linguagem, mas Koselleck fará uma definição radical entre História das Ideias da História Conceitual. Na primeira,
história e ideias possuem apenas um vínculo externo tendendo a uma existência estática. São eternas, sua aparição ou desaparecimento marcam
1
2014 Fevereiro | Justiça & Cidadania 45
somente uma circunstância externa. Uma História das Ideias não nos diz nada do significado destas ou sobre as alterações semânticas ocorridas.
Mas quando uma ideia se converte em conceito, a totalidade dos contextos de experiência e significados sociopolíticos aparece. Na medida em
que concentra experiências históricas e articula redes de sentido, o conceito assume um caráter essencialmente plural”. BENTIVOGLIO, Julio.
A história conceitual de Reinhart Koselleck. Março de 2010. Disponível em: <http://www.periodicos.ufes.br/dimensoes/article/view/2526/2022>.
Acesso em: 20 jun. 2013.
4
SHIVA, Vandana. In Monoculturas da mente: perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia, São Paulo: Gaia, 2003, p. 15. Tradução de
“Monocultures of the mind”, 1993.
5
“É bem de ver que o próprio reconhecimento da força normativa às normas constitucionais é conquista relativamente recente no
constitucionalismo do mundo romano-germânico. No Brasil, ela se desenvolve no âmbito de um movimento jurídico-acadêmico conhecido
como doutrina brasileira da efetividade. Tal movimento procurou não apenas elaborar as categorias dogmáticas da normatividade constitucional
como também superar algumas das crônicas disfunções da formação nacional, que se materializavam na insinceridade normativa, no uso
da Constituição como uma mistificação ideológica e na falta de determinação política em dar-lhe cumprimento. A essência da doutrina da
efetividade é tornar as normas constitucionais aplicáveis direta e imediatamente, na extensão máxima de sua densidade normativa. BARROSO,
Luís Roberto. In O constitucionalismo democrático no Brasil: crônica de um sucesso imprevisto. Revista Fórum, Amaerj – Associação dos
Magistrados do Estado do Rio de Janeiro, Ano 11. Número 35, abr./mai./jun. – 2013, p. 34.
6
Não sem razão os termos “efetividade” e “eficiência” são considerados sinônimos por Houaiss que, em seu léxico, no verbete referente ao
vocábulo “eficiência”, apresenta como definição conceitual: “1. poder, capacidade de ser efetivo; efetividade, eficácia. 2. virtude ou características
de (alguém ou algo) ser competente, produtivo, de conseguir o melhor rendimento com o mínimo de erros e/ou dispêndios”, e no que tange
à palavra “efetividade”, sublinhar a “1. faculdade de produzir um efeito real. 2. capacidade de produzir o seu efeito habitual, de funcionar
normalmente. 3. capacidade de atingir o seu objetivo real. 4. realidade verificável; existência real; incontestabilidade. 5. disponibilidade real. 6.
possibilidade de ser utilizado para um fim. 7. qualidade do que atinge os seus objetivos estratégicos, institucionais[...].” In “Dicionário Houaiss
da Língua Portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p. 723.
7
O Ministério da Justiça lançou, em 16/12/13, o portal do Atlas do Acesso à Justiça, disponível em <http://www.acessoajustica.gov.br>, do qual
consta atualíssimo estudo elaborado em parceria com organizações públicas e privadas, que nas palavras do Secretário da Reforma do Judiciário,
Flávio Caetano, revela: “Ainda temos muita dificuldade de que direitos sejam garantidos pela Justiça. O sistema está congestionado, com mais
de 90 milhões de processos. E, por incrível que pareça, ainda falta acesso à Justiça porque não temos uma rede nacional de atendimento em
nosso País”. Nesse jaez, o secretário secundou a posição do Ministro da Justiça, Eduardo Cardozo, que declarou: “Efetivamente, nós temos um
instrumental que permitirá a juízes, membros do Ministério Público e operadores do direito, participarem mais ativamente dessa construção. É
nossa missão fazer com que a Constituição de 1988, o Estado de Direito, saia do mundo das normas e entre no mundo dos fatos”. In Maranhão
tem o pior acesso à Justiça e DF, o melhor, aponta estudo. Disponível em: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2013/12/maranhao-tem-o-pioracesso-justica-e-df-o-melhor-aponta-estudo.html>. Acesso em: 18 dez. 2013.
8
In Órfãos do Judiciário, texto de José Casado, pub. em O Globo, p. 15, ed. 24/12/2013.
9
São as seguintes as localidades onde atuam os ônibus da Justiça Itinerante: Tanguá, desde 27/4/04; Areal, desde 11/5/04; Levy Gasparian, desde
3/8/04; Macuco, desde 10/8/04; Mesquita, desde 30/11/04 (JI cujo funcionamento se encerrará em 30/1/14 em função da inauguração do fórum
de Mesquita em dez/13); Carapebus, desde 22/7/05; Jardim Primavera – Duque de Caxias, desde 25/8/07; Tocos – Campos dos Goytacazes,
desde 26/11/08; Santo Eduardo – Campos dos Goytacazes, desde 26/11/08; Jardim Catarina – São Gonçalo, desde 12/8/09; Manilha – Itaboraí,
desde 27/8/10; Cidade de Deus – Rio de Janeiro, desde 15/6/11; Complexo do Alemão – Rio de Janeiro, desde 22/7/11; Vila Cruzeiro – Rio de
Janeiro, desde 6/8/11; Batan – Rio de Janeiro, desde 14/9/11; Rocinha – Rio de Janeiro, desde 6/3/12; Quatis, desde 19/10/12; Jardim Gramacho
– Duque de Caxias, desde 29/10/12; Nova Sepetiba – Rio de Janeiro, desde 27/2/13.
10
Lei Federal no 9.099, de 12/9/1999.
11
A Lei no 12.153, de 22/12/2009, dispõe sobre os Juizados Especiais da Fazenda Pública no âmbito dos estados, do Distrito Federal, dos
territórios e dos municípios.
12
A Lei no 10.259, de 12/7/2001, dispõe sobre a instituição dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal, dispondo no
parágrafo único do art. 22 que “o juiz federal, quando o exigirem as circunstâncias, poderá determinar o funcionamento do Juizado Especial em
caráter itinerante, mediante autorização prévia do Tribunal Regional Federal, com antecedência de 10 dias.”
13
FETJ – Fundo Especial do Tribunal de Justiça, criado pela Lei Estadual no 2.524, de 22 de janeiro de 1996, do qual saem os recursos para a
construção de fóruns, dentre outros gastos gerais e específicos de manutenção material do serviço judiciário do ERJ.
14
In Boas práticas – uma juíza que faz a diferença. Revista Jus Correge da CGJ/ERJ, dez. 2013, n. 11, p. 23.
15
Consigne-se aqui em complemento meramente ilustrativo, eis que o assunto demandaria específica digressão detalhada, o que fugiria ao
objetivo deste trabalho, que uma política pública judiciária, como é o caso do programa Justiça Itinerante desenvolvido pelo Tribunal de Justiça
do ERJ, pode ser contextualizada no âmbito das chamadas ações afirmativas de inclusão social. A respeito, lição da professora Kellyne Laís de
Almeida, no texto A igualdade e a proporcionalidade – reflexões sobre a ponderação do legislador e a ponderação do juiz nas ações afirmativas,
esclarece: “As ações afirmativas são políticas de inclusão social, praticadas por entidades públicas ou privadas, com o objetivo de promover a
igualdade material pelo acesso a bens fundamentais de grupos humanos cuja história seja marcada pela discriminação de raça, de etnia, de
origem nacional, de gênero, ou até mesmo em razão de deficiências físicas ou mentais. Calcadas no imperativo de justiça distributiva, as ações
afirmativas pretendem o compartilhamento de reais oportunidades entre todos os membros da sociedade”. In Ponderação e proporcionalidade
no Estado Constitucional. DUARTE, David, SARLET: Ingo W. e BRANDÃO, Paulo de Tarso (orgs.). Rio de Janeiro: Lumen Juris/Direito, 2013,
p. 88.
16
SANTOS, Boaventura de Sousa. In Pela mão de Alice – o social e o político na pós-modernidade. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2001, p. 277-278.
17
Ibidem, nr. 17, p. 177.
18
Lei no 12.726, de 16/10/2012 – Acrescenta parágrafo único ao art. 95 da Lei no 9.099 de 26 de setembro de 1995, para dispor sobre o Juizado
Especial Itinerante.
19
Adaptação de trecho do texto “Descuido e descaso. A insustentável incoerência do ser”, de GAULIA, Luiz Antônio. In Cuidado e sustentabilidade.
PEREIRA, Tânia da Silva (org.). São Paulo: Atlas, 2014, p. 232.
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Justiça & Cidadania | Fevereiro 2014
2014 Fevereiro | Justiça & Cidadania 47
U
ma tarefa gigantesca foi assumida pela
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB): a de
acompanhar de perto em todos os estados o
sistema carcerário no Brasil, à beira de um
colapso, tão grandes e continuados têm sido os casos de
violação de direitos humanos relatados nos últimos anos.
Diante dessa situação, e a partir das denúncias
que a própria entidade fez à Organização dos Estados
Americanos (OEA), à Organização das Nações Unidas
(ONU) e à Human Rights Watch (HRW), em 2013, sobre
os assassinatos diários de presos e violações de seus
direitos nos presídios do Maranhão e de Porto Alegre
– com mais de oitenta casos, inclusive decapitações de
detentos, que causaram indignação nacional e inter­
nacional –, a OAB anunciou a criação, em caráter de
urgência, da Coordenação de Acompanhamento do
Sistema Carcerário.
Antes mesmo da posse oficial dos seus membros, a
Coordenação já tinha iniciado seus trabalhos, instando
todas as unidades da OAB a analisar a situação prisional
em cada Estado e Município brasileiros em busca de
violações de direitos e ocorrência de crimes ou abusos
cometidos entre os detentos, com a orientação de ajuizar
ações civis públicas cobrando dos governos melhorias
urgentes e continuadas nas condições dos presídios e das
cadeias nacionais, como uma espécie de mutirão nacional.
A Coordenação é presidida pelo advogado Adilson
Geraldo Rocha, de Minas Gerais, tendo como vice-pre48
Foto: Sergio Lima/Folhapress
OAB assume uma das maiores
tarefas humanas do país
sidente Marcio Vitor Meyer de Albuquerque, do Ceará, e
Umberto Luiz Borges D’Urso, de São Paulo, como secretário nacional. Dela também fazem parte 24 advogados de
diversos estados brasileiros. Eles estarão incumbidos de
acionar todas as instâncias da OAB nos estados e cidades.
Uma das medidas urgentes da Coordenação é requerer a todos os juízes dos estados que presos provisórios, à
espera de sentenças – e são 40 % da população carcerária
do país –, sejam imediatamente separados dos detentos
já condenados. Solicitará também que os presos sejam
separados de acordo com a gravidade dos crimes, em medida urgente e prática, para evitar assim a promiscuidade,
a exploração entre presos e também a ocorrência de crimes
de assassinato e de outras espécies atentatórias à dignidade
humana.
O jurista Miguel Reale foi convidado para dar a
partida na ação nacional da OAB e proferiu palestra na
solenidade de posse oficial dos membros da Coordenação,
em Brasília, convocando a participação de todos. Foram
convidados ainda o ministro da Justiça José Eduardo
Cardozo e o diretor geral do Departamento do Sistema
Penitenciário Nacional Antônio Eduardo Rossini. Todos
os presidentes das Seccionais da OAB foram chamados a
Brasília para participar desse esforço nacional da entidade,
visando tomar medidas urgentes e que possam evitar, a
curto e médio prazos, a explosão do sistema carcerário,
com reflexos danosos para toda a sociedade brasileira.
“O Estado é diretamente responsável pela proteção
Justiça & Cidadania | Fevereiro 2014
Foto: Depositphotos/3dmentat
E m foco, Carlos Alberto Luppi
da vida das pessoas submetidas à sua custódia”, declara
o presidente nacional da OAB, Marcus Vinícius Furtado
Coêlho, ao reafirmar o compromisso da entidade em lutar
pelos direitos humanos e pela dignidade das pessoas, de
forma incansável e permanente.
Os números que a OAB tem nas mãos para dar prosseguimento a este gigantesco trabalho de Acompanha­mento
do Sistema Carcerário são impressio­nantes e não passam
ao largo das observações internacionais da Human Rights
Watch que acaba, em janeiro, de denunciar amplamente o
país pela crônica violação de direitos humanos e crimes em
sua área de segurança e em seu sistema prisional. O Relatório da entidade global estranha que o país que “está entra as
democracias mais influentes do mundo nos assuntos regionais e globais, no plano interno se encontre entre os piores
na violação de direitos humanos.
De fato, o trabalho da OAB em acompanhar o sistema
carcerário do país, denunciar as violações e tentar diminuir
índices tão desalentadores é uma tarefa de “Hércules”. O país,
com 550 mil detentos, tem a quarta maior população carcerária do mundo e à frente dele estão os EUA, com 2,2 milhões; a
China com 1,6 milhão; e a Rússia, com 680 mil presos.
Em 2013, o registro oficial computou 218 assassinatos
nos 30 maiores presídios do país, mas estima-se que
o número de crimes nas cadeias e presídios cheguem,
anualmente, a mais de mil. Em muitos estados, o registro
oficial assinala apenas as chamadas “subnotificações”
em que os crimes são colocados sob a explicação de “em
averiguação” e “a esclarecer”, como acontece, por exemplo,
em Mato Grosso do Sul, com 14 casos assim qualificados.
A extensão disso pode ser avaliada quando se sabe que
10% da população carcerária está sob custódia policial nos
xadrezes e nas cadeias das delegacias – quase 60 mil presos.
A situação é mais deplorável ainda quando se sabe
que 94 % dos detentos do país estão enquadrados em
apenas 9 crimes básicos. Os crimes de tráfico de drogas,
onde se enquadram 125 mil detentos, e os crimes contra
o patrimônio (furto, roubo e estelionato), pelos quais
outros 240 mil detentos respondem, constituem 69% dos
casos. E ainda: 229 mil detentos não concluíram o ensino
fundamental, ou seja, 41,5 % da população carcerária do
país é semianalfabeta, não sabe ler nem escrever direito
ou, se sabe ler, não entende logicamente as coisas. E
mais: cerca de 110 mil presos já deveriam estar soltos por
terem cumprido suas penas, mas eles não sabem disso e a
lentidão da justiça, de maneira geral, impede sua soltura.
A Ordem dos Advogados do Brasil historicamente
prestou relevantes serviços ao país, ao estabelecimento do
estado de direito, à democracia. Esteve à frente de lutas
sociais e pelos direitos humanos em dezenas de situações
no país. Sempre se mostrou atuante, não medindo esforços
em benefício da população e na melhoria das leis e, em
boa hora, se junta aos esforços do CNJ para investigar e
acompanhar de perto a situação carcerária do país, com
ordens expressas de promover ações emergenciais para
evitar o caos, já bem perto de todos nós.
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Advogado é doutor
Eduardo Mayr
outor por direito e por tradição, acrescento.
O primeiro registro da palavra “doutor”
estaria em um Cânon do ano 390 d.C., por
Marcel Ancyran, editado pelo concílio de
Saragosso. É o que lembra o jurista mineiro Olavo Luís de
Mesquita Diniz, o qual acrescenta que, pelo mesmo, ficava
proibido declinar-se dessa qualidade – doctorum – sem
permissão (Code de L’Humanité, ed. 1778..., Verdon).
O que é certo, contudo, é que o título Doctores
Sapientiae só veio a ser utilizado em Roma e outorgado aos
filósofos e àqueles que promoviam conferências públicas
sobre temas filosóficos, notadamente jurídicos. Tem-se
notícia de que tais títulos honoríficos foram concedidos
a filósofos como Santo Tomás de Aquino, Duns Scott,
Rogerio Bacin e São Boaventura, cognominados ainda de
Angélico, Sutil, Maravilhoso e Seráfico, respectivamente.
As universidades foram avaras na concessão desse
título. A de Bolonha o outorgou a um advogado que
passou a ostentar o título Doctor Legum, ao lado dos
Doctores ex Ioix, somente dado àqueles versados na
ciência do Direito.
Em suas origens, esta honraria era atribuída a
advogados e juristas, e não a qualquer outra profissão. Há
notícias de protestos feitos em relação aos médicos, que
indevidamente se apropriaram do título, reservado aos
homens que cultivavam as ciências do espírito. O livro dos
livros, a Bíblia, refere-se aos “Doutores da Lei”, referindose aos jurisconsultos que interpretavam as leis mosaicas,
designando como Phisicum os médicos e curandeiros.
O bacharel em Direito que efetivamente milita e
exerce a profissão de advogado faz jus a esse título. Em seu
Dicionário de tecnologia jurídica, Pedro Nunes explicita:
“Bacharel em Direito – primeiro grau acadêmico,
conferido a quem se forma numa faculdade de direito.
O portador deste título, que exerce o ofício de advogado,
goza do privilégio de doutor” (ord. L 11 Tit. 66,42; Pereira
50
Foto: Arquivo pessoal
D
Desembargador (aposentado) do TJERJ
Advogado
e Sousa, Crim. 75 e not. 188; Trindade, pág. 157, nota 143,
in fine e pág. 529; Aux. Jur. 355, Ass 93).
Há notícias de um alvará régio editado por D. Maria Pia,
de Portugal, pelo qual os bacharéis em Direito passaram a
ter o direito ao tratamento de doutores. Como esse alvará
– lei, na época – nunca chegou a ser revogado, perdura o
seu efeito com a outorga do título de “doutor” a todos os
advogados militantes. Um rábula de notável saber jurídico
foi agraciado com esse título por meio de um alvará régio
especial: Antônio Pereira Rebouças, que não era formado
em nenhuma faculdade de Direito.
Essa lei remanesce em vigor, como tantas outras que
nunca foram revogadas, como o nosso Código Comercial,
que é de 1850.
Por tradição e por direito, são os advogados “doutores”.
Justiça & Cidadania | Fevereiro 2014
2014 Fevereiro | Justiça & Cidadania 51
GONÇALVES COELHO
ADVOCACIA
SÃO PAULO
Avenida Brigadeiro Faria Lima, 1478/1201 – Jardim Paulistano – (55) 11 3815 9475
52
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