Acessar documento - Opinião Filosófica

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AGEMIR BAVARESCO
APRENDER A SER GAÚCHO
A SALAMANCA DO JARAU DE SIMÕES LOPES NETO
2003
1
SUMÁRIO
SUMÁRIO
2
APRESENTAÇÃO
3
INTRODUÇÃO
17
1 - O ITINERÁRIO DA LENDA: A APRENDIZAGEM SIMBÓLICA
1.1 - O símbolo do boi barroso: festa, trabalho e utopia
1.2 - O símbolo da Teiniaguá: religiões, culturas e etnias
1.3 - O símbolo da cruz: cristandade colonial , rebeldia e soberania do amor
1.4 - O símbolo da caverna: provas e metamorfoses da gauchidade
20
21
23
24
32
2 - DA CAVERNA PLATÔNICA À CAVERNA PAMPEANA
2.1 - A caverna platônica ou a epistemologia ético-cognitiva
2.2 - O arquétipo da caverna e as “salamancas” da história
2.3 - A caverna simoniana ou aprendendo a dizer “não”
41
43
47
52
3 - IDENTIDADE: “O GAÚCHO QUE ERA DANTES, AINDA ERA AGORA”
3.1 - Hora do agouro: “um gaúcho pobre Blau”
3.2 - A busca do boi barroso ou a infindável aprendizagem de ser gaúcho
60
60
65
4 - FONTES E PROJETOS DA CULTURA GAÚCHA: ETNIAS, RELIGIÕES E ÉTICAS
4.1 - Sacristão, santão, e “guasca desempenado”: “o soberano amor”
4.2 - Moura, Teiniaguá e “tapuia formosa”: a “nova gente”
4.3 - Gaúcho pobre, gaúcho rico e Blau Nunes “em paz”
66
68
70
75
CONCLUSÃO
81
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
83
2
APRESENTAÇÃO
É sempre de bom alvitre, para nos ajudar a avaliar a contribuição de
determinada obra, termos – ainda que de maneira sumária – uma idéia acerca dos
debates travados em torno do tema que ela aborda. Nessa medida, pela
importância da análise crítica de Agemir Bavaresco, mais ainda se justifica que
façamos essa breve retrospectiva.
Quando se realizou o Primeiro Seminário de Estudos Gaúchos, nos meses
de setembro/outubro de 1957, em Porto Alegre, cujas conferências foram editadas
pela UFRGS no ano seguinte, Darcy Azambuja registrava a seguinte perquirição:
“Mas então a lenda, tão linda, sobre a Salamanca do Jarau não é genuinamente
rio-grandense?”1
Para esclarecer essa questão, ele afirma que hoje o que conhecemos com
este nome é a estilização de Simões Lopes Neto da referida lenda2, “que nos legou
uma das mais belas páginas da literatura brasileira” 3, posto que ao exíguo núcleo
lendário inicial, mal conhecido em todo o Rio Grande do Sul, recebeu acréscimos
e uma forma literária que fixaram a lenda no imaginário e na cultura rio-grandense
e brasileira.
Walter Spalding 4, escrevendo sobre folclore afirma que embora Simões
Lopes Neto tenha já constatado a existência da lenda no Rio Grande do Sul, ela é
claramente de origem espanhola, razão pela qual Darcy Azambuja não a quis
incluir em seu estudo sobre as principais lendas rio-grandenses. Esse tema
folclórico é também encontrado na Argentina, país onde recebeu uma graciosa
forma, na versão de Rafael Obligado, em suas Leyendas argentinas.
Augusto Meyer em seu Guia do folclore gaúcho 5 diz-nos que essa lenda,
na versão simoniana, é “o aproveitamento da tradição rio-grandense da Salamanca
1
AZAMBUJA, Darcy. Primeiro seminário de estudos gaúchos. Porto Alegre: UFRGS, 1958, p.
127.
2
Idem.
3
Idem.
4
SPALDING, Walter. Poesia do povo. Revista do Instituto Histórico do Rio Grande do Sul. Porto
Alegre: Globo, ano XIII, IV trimestre, p. 160, 1933.
5
MEYER, Augusto. Guia do folclore gaúcho. Rio de janeiro: Gráfica e editora Aurora, 1951, p.
95.
3
do Cerro do Jarau, crendice da fronteira, misturada, porém, a sugestões colhidas
em fontes eruditas (Granada, Teschauer), resultando uma obra de cunho pessoal”.
Eis aí um primeiro problema que tem preocupado os pesquisadores. A
Salamanca do Jarau é conto ou lenda? Essa questão não está ligada apenas a uma
interrogação sobre as fontes históricas da Salamanca, mas também sobre a
originalidade da obra homônima. De fato, se formos buscar as origens históricoliterárias da Salamanca, recuaremos muito no tempo. Sabe-se que Pedro Ciruelo,
matemático e teólogo, escreveu um Tratado en cual se repruevan todas las
supersticiones y hechicerias (1628), no qual já relatava histórias de furnas
mágicas.
No Portugal quinhentista, pode-se encontrar “covas de Salamanca” como
expressão corrente, entendendo-se por isso lugares encantados e furnas que
guardavam tesouros, tal como aparece na comédia Bristo, ato II, cena 2, de
Antônio Ferreira: [...] foi-se a essa Índia, que é pior que as covas da Salamanca 6.
Observamos, pois, que essa tradição é muito antiga, perdendo-se nas
brumas do tempo e fixando-se, mais ou menos, com as características que hoje
possui, no século XVI. Remetendo-nos a uma referência etimológica podemos
confirmar a antigüidade do tema e mesmo os elementos básicos que a constituem.
Os substantivos Teiniaguá e Teiuiaguá são compostos de teiú e aguaíca. Teiú é a
designação indígena de lagarto, segundo o Dicionário Aurélio (Nova Fronteira,
1984). O étimo tupi significa “comida de gentalha”. Aguaíca (tupi) significa
“manceba, namorada que peca por obras”. Essa acepção de aguaíca se encontra
registrada no Diccionario portuguez-brasiliano e brasiliano-portuguez editado em
Lisboa pela Officina Patriarchal, em 1795. As formas Teiniaguá e Teiuiaguá são
equivalentes 7, mas acabou prevalecendo a primeira.
Paulo Carvalho Neto 8, estudioso do folclore platino, em sua obra Folklore
del Paraguai (1961), quando aborda os mitos e os casos (causos) trata das
6
Apud CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 6a. edição. Belo Horizonte:
Itatiaia; São Paulo: USP, 1988, p. 688.
7
Cf. LOPES, Cícero Galeno e BERND, Zilá (orgs.) Identidades e estéticas compósitas. Porto
Alegre: Centro Universitário La Salle, 1999, p. 29.
8
CARVALHO NETO, Paulo. Folkore del Paraguai. Quito/ Equador: Editorial Universitária,
1961, pp. 103-106 e p. 202.
4
palavras Teyú e Yaguá encontradas entre o léxico dos povos tupi-guaranís.
Existem algumas controvérsias a respeito dos vocábulos Yeguá e Yaguá. O
folclorista argentino Félix Coluccio em Fauna del terror em Latinoamérica
entende que não é Yeguá, mas Yaguá, que significa cão, em idioma guarani.
Chegou-se a aventar a possibilidade de tratar-se de duas lendas, que acabaram por
se fundir.
Fizemos uma investigação breve na literatura a respeito e somos de
opinião que temos aí não duas heranças folclóricas que se fundiram, mas um caso
de desenvolvimento e fixação da lenda. Ora, os vocábulos em questão são muito
semelhantes o que facilmente permitiria variações e corruptelas, além do que a
imagem do cão, arquétipo universal, está associada à imagem do diabo ou do mal.
Depreende-se daí, sem muita dificuldade, a transformação do antigo mito-macho,
o Teyú-Yaguá, mistura de lagarto e cão, em nossa sedutora e sensual Teiniaguá.
Em algumas versões da lenda, o professor de artes mágicas na furna de
Salamanca é o sacristão Clemente Potosi, pelo ano de 1332. Também no texto
simoniano o herói, o Santão, é um sacristão. O Cerro do Jarau, onde se desenrola a
narrativa de Simões Lopes Neto, localiza-se na Coxilha Geral de Santana, sobre a
fronteira com o Uruguai, ao norte da cidade de Quaraí/RS. Foi proprietário de
uma fazenda nessa região, o controverso general farroupilha Bento Manoel
Ribeiro que, segundo a crença popular, teria entrado no Cerro da Jarau e feito um
pacto com a Teiniaguá, saindo de lá com “o corpo fechado”.
Querem alguns, tomando o argumento de que a lenda da Salamanca do
Jarau já existia, atingir Simões Lopes Neto em sua originalidade de escritor.
Indiretamente, esse ponto diz respeito também à classificação da Salamanca em
lenda ou conto.
Eduardo Arriada em A universalidade de João Simões Lopes Neto
9
afirma:
“Devemos salientar o que hoje já é sobejamente conhecido, que tanto a matéria-prima
de seus contos ou lendas nada tinham de original. É o caso da “Salamanca do Jarau”,
apesar de o autor fazer referência ao texto de Carlos Teschauer, a verdadeira fonte é
9
ARRIADA, Eduardo. A universalidade de João Simões Lopes Neto. In BAVARESCO, A. e
BORGES, L. Travessia do pampa. Anais do Simpósio Simoniano Lendas do Sul. Pelotas:
EDUCAT, 2003, p. 73.
5
Reseña historico-descriptiva de antiguas y modernas supersticiones del Río de la Plata
(1896), de Daniel Granada.”
Quem primeiro aponta isso – e vamos precisar bem em que sentido – é
Augusto Meyer
10
. O autor de Guia do folclore gaúcho complementa sua
observação enfatizando que a Salamanca do Jarau é uma de suas criações mais
trabalhadas, com apuro na forma e na linguagem
11
. Portanto, laborarão em
equívoco os que cotejando os textos de Granada, Teschauer e Simões Lopes Neto
concluírem haver uma identidade textual, variando apenas no delineio dos
pormenores. Tal entendimento diminui – injustamente – a originalidade deste
último. Lígia Chiappini em João Simões Lopes Neto e Javier de Viana: dois
escritores fronteiriços e um diálogo hipotético afirma :
“O achado técnico de Simões leva a achados estilísticos decisivos, de um discurso que,
através da letra, mas contra ela, recupera a dinâmica e a musicalidade da voz. Ao
escolher Blau Nunes para rememorar o passado e refletir sobre o presente, Simões
Lopes vai coerentemente subverter tanto a linearidade da narrativa, quanto a lógica
racionalista que vê nas crenças do povo meras superstições de gente ignorante, como
ainda a lógica da frase escrita e culta” 12.
A obra de Daniel Granada, na parte que trata de Salamanca, Cerro
encantado e Cerro bravo contém informações históricas e folclóricas que em nada
destoam da interpretação geral simoniana, de inspiração ético-moral.
Talvez Simões Lopes Neto, cioso de seus brios de literato, temendo ser
tomado por um “plagiador” (ou mero compilador) ou ainda na inconsciência que o
gênio possui de seu próprio talento, hesitando quanto ao alcance do estatuto
literário de sua narrativa, acabou omitindo que fôra abeberar-se em Granada e
não, apenas, em Teschauer, conforme explicita o autor das Lendas do sul (1913)
na Elucidação. Ali ele faz referência à “cueva de San Cebrian”, cuja exata
descrição da localização se encontra em Reseña historico-descriptiva de antiguas
y modernas supersticiones del Río de La Plata (1896). Além de Granada, outra
fonte importante sobre esse tema folclórico é a obra História de Salamanca, de
10
MEYER, Augusto. A Salamanca do Jarau. In Prosa dos pagos. São Paulo: Livraria Martins
editora, 1943, p. 68.
11
Idem, p. 59.
12
CHIAPPINI, Lígia. João Simões Lopes Neto e Javier de Viana: dois escritores fronteiriços e um
diálogo hipotético. Freie Universität –Berlin/ Lateinamerika-Institut, nov 2002, p. 11 [texto
inédito].
6
Villar y Macias, editada na Espanha em 1887, na qual o autor reserva um capítulo
inteiro para as fontes históricas e bibliográficas sobre as lendas de cavernas
encantadas.
A hipótese em tudo sustentável de Simões Lopes Neto ter-se utilizado da
obra de Granada, além daquela de Teschauer, é muito mais plausível do que supor
que o criador de Tudinha teve conhecimento do trabalho de Villar y Macias, uma
vez que este se constitui em verdadeira raridade bibliográfica, sabendo-se existir
no Brasil apenas um único exemplar, pertencente à Biblioteca Nacional.
Recentemente Hilda Simões Lopes em seu artigo O cerro do Jarau e as
torres de Alhambra
13
levanta uma nova hipótese. Ao folhear a obra Cuentos de
La Alhambra (1832), do escritor e diplomata norte-americano Washington Inving
(1783-1859), a pesquisadora se detém na Leyenda del soldado encantado, na qual
lhe parece encontrar “uma versão européia da Salamanca do Jarau, de Simões
Lopes Neto”
14
. A autora traça um paralelo entre Blau Nunes e don Vicente,
personagem de Washington Irving. Diz ela no artigo citado:
“Enquanto Blau Nunes, o gaúcho, tem de seu apenas um cavalo, um facão e as
estradas reais, don vicente, o estudante espanhol, além da alegraia, leva consigo
um violão. O gaúcho Blau encontra um vulto de face branca e tristonha, o
sacristão que enfeitiçado, vive há 200 anos preso no cerro do Jarau que ficou
sendo "o “paiol das riquezas de todas as salamancas (furnas) dos outros lugares;
o espanhol don Vicente depara-se com um soldado dos reis católicos Fernando e
Isabel, encantado há 300 anos nas torres de Alhambra, guardando o teseouro do
último rei árabe. O vaqueiro gaúcho recebe uma onça de ouro furada pelo condão
mágico que o fará rico, o estudante espanhol acha uma estrela de seis pontas,
amuleto de extraordinário poder. Na lenda gaúcha, Balu irá adentrar o cerro do
Jarau sob as palavras “alma forte, coração sereno, vai”; já Vicente, o espanhol,
ao se encaminhar às torres de Alhambra ouvirá: “si tiene fe y valor, sigueme”. 15
Hilda Simões Lopes afirma que o escritor norte-americano Washington
Irving em sua obra Cuentos de La Alhambra (1832) refere-se ao sacristão versado
em artes mágicas da cueva de San Cebrian, cuja lenda é originária da cidade de
Salamanca, porém, na Leyenda del soldado encantado se desenrola em Granada,
onde chega o estudante espanhol, don Vicente.
13
LOPES, Hilda Simões. O cerro do Jarau e as torres de Alhambra. Diário Popular, Pelotas, 296-2003.
14
Idem.
15
Idem.
7
Está a nos parecer que pesquisadora supõe que a obra de Irving estabeleça
um novo elo na cadeia da tradição ibérica que chegou ao Prata e, posteriormente,
ao Rio Grande do Sul e em Simões Lopes Neto.
Este dado novo e instigante, cujo estudo merece uma atenção mais
cuidadosa, sugere-nos já algumas considerações preliminares. Hilda Simões
Lopes coloca que a obra de Irving é o registro de uma história oral e a de Simões é
prosa póetica a partir da história oral, sendo também mais rica em
desdobramentos16.
Ora, ainda que a lenda del soldado encantado seja desconhecida em
Salamanca e passada em Granada, tenha ganho roteiro, personagens e símbolos e
que a mesma realmente possua grande parecença com a lenda de Salamanca, pelo
menos, no sentido e na estrutura, entende-se que - carecendo um estudo mais
minucioso das fontes históricas dessas duas tradições orais e de uma analise
comparativa dos textos Leyenda del soldado encantado, de Washington Irving, e
da Salamanca do Jarau, de Simões Lopes Neto - pela tradição de Salamanca, a
qual em Daniel Granada é também um registro de história oral, se vai
desenvolvendo uma longa tradição escrita, que longinquamente, conforme
descrevemos, ao lado da voz popular, possuía também fontes cultas, escritas.
Nesse sentido, é lícito supor, tão válido quanto a nova hipótese proposta,
talvez mais até, em função de alguns dados fornecidos por Simões na Elucidação,
que se possa dizer que mais probabilidade há em que o escritor gaúcho tenha
bebido em Daniel Granada do que em Irving. Outro dado a confirmar essa
possibilidade é que o círculo das relações literárias de Simões, sobretudo aquele
que gravitava em torno da revista Ilustração Pelotense, lia muito os platinos, tais
como Javier de Viana e outros, tendo também acesso diretamente a Granada. Fica
em aberto também uma outra questão, a se considerar originária a fonte de Irving:
se a lenda desconhecida em Salamanca “atravessou os mares, chegou ao
continente sul-americano, recebeu nova roupagem, elementos indígenas, adentrou
o pampa gaúcho e se enfurnou no cerro do Jarau”
17
ou se, embora a obra do
escritor norte-americano seja publicação anterior a de Granada, essa lenda não se
16
Idem.
8
constitui em tradição paralela, cuja influência na ou proximidade com a versão
simoniana da Salamanca seja indireta. Eis um tema a desenvolver.
Entendemos que o problema da originalidade simoniana em A Salamanca
do Jarau já foi suficientemente esclarecido pelos estudos de Augusto Meyer acima comentado -, Regina Zilberman e Flávio Loureiro Chaves. Zilberman em A
Salamanca do Jarau: sentido e estrutura da lenda
18
coloca que a relação lenda-
conto se funda em aspectos híbrido-dialógicos. Ao classificarmos um texto,
examinando as relações entre o texto-matriz e suas versões, devemos fazê-lo
considerando o ângulo sob o qual nos interessa abordá-lo, principalmente, levando
em conta as predominâncias, isto é, se o pesquisador for um folclorista, tomá-lo-à
por lenda, se for um investigador de problemas literários encará-lo-à como conto,
sem que disso decorra qualquer falsificação na determinação do gênero a que
pertence a Salamanca do Jarau.
Flávio Loureiro Chaves vai ainda mais longe, tratando não mais da história
da Salamanca, em geral, mas especificamente da obra de Simões Lopes Neto,
afirmando que seu texto não pode ser considerado uma lenda nem uma versão
dela, mas um verdadeiro conto. Noutras palavras: criação literária. Para tanto
considera que Simões Lopes Neto constrói uma concepção pessoal dos antigos
temas míticos que podem elucidar o presente, sobretudo retirando o relato do nível
episódico para colocá-lo no plano simbólico 19.
Lígia Chiappini em No entretanto dos tempos (1988) ao examinar como
Simões Lopes Neto transformou a tradição oral em conto culto, também se ocupa
em lançar mais alguma luz sobre a distinção entre mitos, lendas e superstições 20.
Com muita acuidade, a autora preocupa-se com essas distinções, não para descer a
“bizantinisses”, mas para investigar quais os instrumentos que o escritor de
Lendas do sul utilizou para adequar seu estilo narrativo ao tema tratado, de origem
folclórica. Depois de fazer as distinções entre as categorias de lenda, mito e
17
Idem.
In FILIPOUSKI, Ana Mariza; NUNES, Luiz Arthur e ZILBERMAN, Regina. Simões Lopes
Neto: a invenção, o mito e a mentira. Porto Alegre: Movimento, 1973, pp. 81-92.
19
Cf. CHAVES, Flávio Loureiro. Simões Lopes Neto: regionalismo e literatura. Porto Alegre:
Mercado Aberto, 1982, p. 75.
18
9
superstição, através de conceitos e exemplos fornecidos por Câmara Cascudo,
Ambrozetti, Rafael Jijena, Bruno Jacorella, Afonso Arinos e outros, ela conclui
que o estatuto a ser atribuído à Salamanca do Jarau é uma mistura de tudo isso. É
lenda, quando se aparenta com a hagiografia; é mito quando se refere às origens
do Vale de São Tomé e do Cerro do Jarau; é superstição, quando aparecem os
monstros, as ninfas e os duendes que habitam a Salamanca21.
A fim de compreendermos melhor essa questão atentemos para a
etimologia do nome Blau Nunes. Blau, na heráldica, pode significar “muito
assustado, muito atrapalhado”, ou “aquele que está com o destino enredado”. Em
Nunes encontramos duas acepções de base etimológica: evoluído do termo latino
nonus, significa “aio, pagem” ou “pai”, evoluído de nonniu, significa
“testemunha”. No âmbito da diegese simoniana, o personagem Blau Nunes
desempenha essas duas funções: a de pai da “nova gente” e de narrador dos
acontecimentos 22.
O discurso de Blau reproduz uma história contada pela avó charrua na
terra dos espanhóis, onde havia a cidade de Salamanca e aí uma furna onde os
mouros guardavam um condão mágico no regaço de uma velha fada, princesa
moura encantada. Derrotados no campo de batalha, vêm para a América trazendo
a fada clandestina e são auxiliados pelo diabo/Anhagá-pitã. A fim de vencerem a
cristandade, ele a transforma numa lagartixa e o condão em luz fulgurante, na
forma de uma pedra vermelha, implantando-a na cabeça da Teiniaguá. Esse lugar
encantado, que possui a Teiniaguá como guardiã de tesouros, é chamado
Salamanca. É assim que em Simões Lopes Neto, bem como em toda a América de
tradição ibérica e lusa, Salamanca significa caverna ou furna encantada
23
. As
Salamancas (cavernas) como tema literário tornaram-se clássicas, principalmente,
20
Cf. CHIAPPINI, Lígia. No entretanto dos tempos. Literatura e história em João Simões Lopes
Neto. São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 150.
21
Idem, p. 157.
22
Cf. LOPES, Cícero Galeno, ob. cit., p. 31, nota 7.
23
Para maiores detalhes vide: MARTINS, Mauro Henrique Franzkowiak. Da caverna platônica à
caverna simoniana: uma leitura considerando os aspectos metafísicos. In BAVARESCO, A. e
BORGES, L. Travessia do pampa. Anais do Simpósio Simoniano Lendas do Sul. Pelotas:
EDUCAT, pp. 127-142.
10
no teatro espanhol, do que são exemplos Cervantes, com Entremés de la cueva de
Salamanca, e Hartzenbusch, que escreveu La redoma encantada.
Assim como as cavernas encantadas (Salamancas), a tradição de lagartos
ou lagartixas que possuem jóias incrustadas na cabeça, é secular, havendo sobre
isso até uma alusão em Flaubert, na obra A tentação de Santo Antão: Hás de ver,
estando a dormir sobre primaveras, o lagarto que só desperta todos os séculos,
quando lhe cai, de amadurecido, o carbúnculo da testa
24
.
Sob esse aspecto é interessante notar uma perspicaz observação de Darcy
Azambuja 25:
“O insigne escritor [Câmara Cascudo], em trabalho apresentado ao III Congresso SulRio-Grandense de Geografia e História, sob o título – “Seis mitos gaúchos”- assim se
refere à lenda: “Uma das tradições vivas do Rio Grande do Sul, elemento precioso de
sua literatura oral, é a história do sacristão de S. Tomé, o episódio maravilhoso do
“Carbúnculo”.
Com o devido respeito e magoadamente o digo: a única coisa que o homem do campo
rio-grandense sabia e sabe sobre carbúnculo é ser esse o nome de um antraz ou abcesso
que dá nos animais bovinos.”
Alerta Azambuja que se enganara Câmara Cascudo, ao declarar que
Simões Lopes Neto teria apenas dado forma literária a uma lenda ainda viva no
meio social gaúcho. O resgate que Simões faz deu um fôlego novo a esse
imaginário popular, que fatalmente se teria perdido 26. Simões Lopes Neto dá uma
nova complexidade à herança lendária, posto serem comuns histórias de sacristãos
dados a artes mágicas na península ibérica, do mesmo modo como as princesas
mouras encantadas em Portugal, conforme relata Rodney Gallop num livro
intitulado Portugal, A Book of Folk-ways (1936), sobre o folclore português.
24
Apud CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia;
São Paulo: USP, 1988, p. 743.
25
AZAMBUJA, Darcy, ob. cit., p. 126.
26
DIAS, Ana Cláudia. João Simões Lopes Neto, um escritor do mundo. In Diário Popular,
Pelotas, 9- 3-2003.
11
Nessa obra as princesas mouras apareciam com cauda de serpente. Só se
mostravam a olhos mortais em noite de São João, a pentearem os cabelos de ouro
com pentes do mesmo metal. Estão sempre as princesas montando guarda a um
tesouro que os infiéis abandonaram.
Simões Lopes Neto se apropria dessa tradição, sobretudo ibérica, e
constrói sua criação (a saga de Blau), baseada nesses mitos arcaicos, sobre aquilo
que Jung denominava de “imagens-arquétipos”
27
. O autor de Lendas do sul
(1913) não fornece uma versão requentada de uma lenda alienígena, aclimatada e
viva em solo rio-grandense, como parece nos soar a interpretação de alguns
estudiosos modernos, que seguem a linha de Câmara Cascudo. Ao contrário,
Simões faz um aproveitamento dessa tradição oral rio-grandense, já em vias de
extinção, mais as crendices da fronteira, em sugestões colhidas em fontes eruditas,
tais como Teschauer (expressamente declarada pelo autor) e Granada, obtendo um
resultado literário estrutural e estilístico, que confere ao conto A Salamanca do
Jarau a condição de uma obra-prima, digna de figurar, sem nenhum favor, numa
antologia universal do gênero.
O biógrafo Carlos Francisco Sica Diniz, autor da obra João Simões Lopes
Neto, uma biografia
28
é peremptório: “A lenda foi contada por alguns escritores
anteriormente, mas seu registro é único e definitivo” 29.
Simões Lopes Neto, após a leitura dos estudos folclóricos do padre Carlos
Teschauer
30
, na Revista Trimestral do Instituto do Ceará, de 1911, colheu os
elementos necessários para a redação da Salamanca do Jarau. Verificando os
catálogos da Livraria Universal, anexos à terceira edição (1928) do Cancioneiro
Guasca, (1910) constatamos o seguinte anúncio: “Encontra-se à venda o livro
Lendas do Sul (1913) – popularium”. Partindo daí, podemos observar a sutileza
dos matizes que envolvem a questão. O catálogo da Livraria Universal, onde
27
Cf. JUNG, Carl G. (org.) O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.
No prelo.
29
DIAS, Ana Cláudia. João Simões Lopes Neto, um escritor do mundo. In Diário Popular,
Pelotas, 9-3-2003.
30
TESCHAUER, Carlos. Lenda do ouro. In Revista (trimestral) do Instituto do Ceará. Fortaleza,
ano XXV, 1911, pp. 5 - 49. Publicado posteriormente, com ligeiras modificações, na Poranduba
riograndense. Porto Alegre: Globo, 1929, pp. 436-468.
28
12
consta o anúncio da 1a. edição de Cancioneiro Guasca, se referia à Salamanca do
Jarau como conto31 inédito. O próprio Simões Lopes Neto, na inconsciência de
que o gênio tem de si mesmo, publicou as Lendas do sul, como uma contribuição
ao popularium sul-riograndense, tomando a designação de empréstimo a
Apolinário Porto-Alegre. Essa denominação trazia o sentido de popularium como
o canto épico-poético, e assim foi tomada na hermêutica simoniana, fazendo das
Lendas do sul verdadeiras criações literárias, tais como os Contos gauchescos.
Isso pode ser observado, inclusive pela estrutura do discurso, o qual mantendo a
oralidade, passa sem sobressaltos da primeira para a terceira pessoa.
Esse renitente debate sobre a originalidade das Lendas do sul e mais
especificamente sobre a Salamanca do Jarau, é considerado por Luís Augusto
Fischer como uma questão secundária, do mesmo modo como o tema da condição
autóctone ou não dos enredos
32
. Faz, no entanto, interessante comentário:
“Durante muito tempo pareceu a alguns intelectuais do Rio Grande do Sul que
teria maior valor aquilo que fosse puramente local, com nascimento e
desenvolvimento não “conspurcados” por influência estrangeira 33.
E segue:
“Da mesma forma deve-se afastar do horizonte um debate igualmente nacionalista, mas
neste caso anti-castelhano. Por muito tempo, e por razões óbvias ditadas pela condição
de fronteira com os “outros” mais evidentes, o Rio Grande do Sul assistiu a uma insana
procura por distinção entre o gauchismo brasileiro e o platino, o que significava negar
as mais duras evidências, que nos aproximam muito mais do que nos afastam. O próprio
Simões Lopes entrou no debate, ao dizer no último parágrafo do texto, que deixa de
desenvolver determinadas lendas porque elas “são mais do acervo rio-platense-andino”.
Mas mesmo tal delimitação não o impediu, ainda bem, de freqüentar material que seria
menos brasileiro que argentino ou uruguaio. O que importa é a boa literatura” 34.
31
Intuitivamente o redator do catálogo expressaria o que teoricamente Flávio Loureiro Chaves dirá
72 anos depois: “ A Salamanca do Jarau, assim como foi redigida por Simões Lopes Neto, não é
uma lenda e nem tampouco apenas uma nova versão da lenda. É um conto : a aventura de Blau.”
(CHAVES, F. L. Simões Lopes Neto: regionalismo e literatura . Porto Alegre: Mercado Aberto,
1982, p. 79. )
32
FISCHER, Luís Augusto. Lendas do Sul, um roteiro de leitura. In BAVARESCO, A. e
BORGES, L. Travessia do pampa. Anais do Simpósio Simoniano Lendas do Sul. Pelotas: Educat,
2003, p. 66.
33
Idem.
34
FISCHER, ob. cit., pp. 67-68. Sobre as relações entre Simões Lopes Neto e a gauchesca platina
vide: SCHLEE, Aldyr Garcia. Simões Lopes Neto e a literatura dos povos platinos. In Letras de
Hoje. Porto Alegre: PUCRS, n. 77, set 1989, pp. 77-88; DUARTE, Márcia Lopes. Literatura e
identidade na América Latina: dois casos paradigmáticos. Simões Lopes Neto e Jorge Luís
Borges. Porto Alegre : UFRGS, 1995(dissertação de mestrado); CARVALHAL, Tânia Franco.
João Simões Lopes Neto numa leitura rioplatense. In MATTOS, Mário et alii. Anais do II
13
Luís Augusto Fischer35 faz uma aguda observação, quando relata o
aproveitamento da Salamanca do Jarau, de Simões Lopes Neto, em O tempo e o
vento, de Érico Veríssimo. Conclui ele que “a obra de Simões Lopes Neto, quando
de fato entra em circulação – refiro-me à edição feita pela Globo, apenas à
terceira, reunindo “Contos gauchescos” e as “Lendas do sul”, em 1949 -, catalisa
toda a retomada do tema regional no Rio Grande do Sul” 36.
Fischer relata ainda os desdobramentos da divulgação da obra simoniana
em escala maior, sobre o até então ficcionista urbano Érico Veríssimo, que, em
1949, começa a publicar sua obra principal. Anteriormente Flávio Loureiro
Chaves já havia apontado essa intertextualidade
37
. Depois de examinar vários
pontos de contato, Chaves desvela na obra de Érico Veríssimo, O tempo e o vento,
o núcleo da intenção simoniana no conto A Salamanca do Jarau: a interrogação
sobre a identidade do gaúcho, sobre sua terra e gente
38
. Lígia Chiappini chega a
considerar, nessa relação entre as preocupações históricas e a ficção de Simões
Lopes Neto, que as Lendas do sul, livro onde se acha A Salamanca do Jarau, é o
equivalente literário de Terra gaúcha (1955) 39.
Vários outros pontos importantes poderiam ser ainda lembrados acerca dos
debates travados em torno da Salamanca do Jarau, tais como a questão do
Seminário de Estudos Simonianos. Pelotas: UFPEL, pp. 98-110, e CHIAPPINI, Lígia. João
Simões Lopes Neto e Javier de Viana: dois escritores fronteiriços e um diálogo hipotético, 2002.
[Texto inédito, cedido gentilmente por Mogar Pagano Xavier]. Cabe salientar que Eduardo
Arriada já levantara a questão da influência da literatura platina, em especial de Javier de Viana
em Simões Lopes Neto (cf. MATTOS, Mário et alii. Anais do II Seminário de Estudos
Simonianos. Pelotas: UFPEL, 2001, p. 187).
35
FISCHER, L. A., ob. cit., p. 64.
36
Idem.
37
CHAVES, F. L. Simões Lopes Neto e Érico Veríssimo, um diálogo intertextual. In MATTOS,
Mário et alii. Anais do II Seminário de Estudos Simonianos, Pelotas: UFPEL, 2001, pp. 56-65.
38
Idem, pp. 64 - 65.
39
CHIAPPINI, Lígia, ob. cit., p. 140.
14
machismo40 e a miscigenação41, em autores como Moysés Vellinho e Manoelito
de Ornellas.
Um marco na trajetória da pesquisa simoniana foi a realização, em 1996,
do I Seminário de Estudos Simonianos, em Pelotas, entre os dias 10 e 14 de junho.
O encontro reuniu pesquisadores do porte de
Aldyr Schlee, Tânia Franco
Carvalhal, Barbosa Lessa, Sica Diniz, Flávio Loureiro Chaves, Luiz Antônio de
Assis Brasil e Mário Mattos. No programa, constaram duas palestras sobre a
Salamanca do Jarau, a de Barbosa Lessa e a de Aldyr Garcia Schlee, as quais
trouxeram ricas contribuições à discussão do tema
42
. No II Semnário, ocorrido
em 2000, vários desses debates foram aprofundados 43.
Para ficarmos na linha das hermenêuticas filosóficas da literatura
simoniana, entre as quais podemos destacar a benjaminiana (Luís Borges, Cláudio
Cruz), a estruturalista (Filipouski, Bordini, Luiz Arthur Nunes e Regina
Zilberman), a hegeliana (Bavaresco), a platônica (Franzkowiak Martins),
consideramos que o estágio em que se encontra a pesquisa Lopes Neta44 estava a
exigir uma obra do porte de Aprender a ser gaúcho: A Salamanca do Jarau, de
Simões Lopes Neto, de Agemir Bavaresco, que tendo estudado noutra obra a lenda
do Negrinho do pastoreio45, agora vem trazer nova luz às discussões clássicas
sobre a Salamanca, cujos alguns tópicos arrolamos sumariamente.
A leitura de Aprender a ser gaúcho, obra profunda, original, rigorosa e
crítica, nos ensina outra lição: aprender a ser simoniano. A clareza na exposição, o
40
Para maiores detalhes vide: LEAL, Ondina Fachel. O mito da Salamandra do Jarau: a
constituição do sujeito masculino na cultura gaúcha. In Cadernos de Antropologia . Publicação do
Programa de pós-graduação em Antropologia social. Porto Alegre: UFRGS- IFCH, 1992, pp. 7-14,
e LOPES, Hilda Simões. A prosa poética simoniana na Salamanca do Jarau. In MATTOS, Mário
et alii. Anais do II Seminário de Estudos Simonianos. Pelotas: UFPEL, 2001, pp. 111-123.
41
É interessante cotejar com o texto de Hildebrando Dacanal, A miscigenação que não houve. In
DACANAL, J. H. RS: cultura e ideologia. Porto Alegre Mercado Aberto, 1980, os itens 1.2 e 1.3
de O itinerário da lenda: a aprendizagem simbólica do presente ensaio de Bavaresco.
42
Cf. BORGES, Luís. Breve trajetória do resgate. In BAVARESCO, Agemir e BORGES, Luís.
História, resistência e projeto em Simões Lopes Neto. Porto Alegre: WS editor, 2001, pp. 97-98 e
nota 107, p. 114.
43
Vide o registro completo do evento, diretamente transcrito para o livro através da gravação e das
notas das taquígrafas , ambas condições conseguidas por Mogar Pagano Xavier, in II Seminário de
Estudos Simonianos. Pelotas: UFPEL, 2001.
44
Expressão cunhada por Guilhermino César, donde extraímos o termo “lopesnetino”.
15
método seguro de análise, a abordagem inusitada, levantando o véu de muitos
problemas, até agora somente tocados tangencialmente ou parcialmente
estudados, vem trazer uma significativa contribuição não só ao público
especializado, mas também ao leitor médio culto, interessado em melhor conhecer
esse manancial de prazer e pensamento que é a literatura do nosso Rapsodo
Bárbaro.
Pelotas, outono de 2003.
Luís Borges
45
BAVARESCO, Agemir. O núcleo ético-metafísico da lenda do Negrinho do pastoreio, de João
Simões Lopes Neto. In BAVARESCO, Agemir e BORGES, Luís. História, resistência e projeto
em Simões Lopes Neto. Porto Alegre: WS editor, 2001, pp. 9-64.
16
INTRODUÇÃO
O estudo da Salamanca do Jarau está situado no contexto das Lendas do
Sul de João Simões Lopes Neto, um dos maiores escritores regionalistas
brasileiros, que, freqüentemente, tem sido negligenciado em algumas histórias da
Literatura Brasileira. O renascimento pelo interesse da obra simoniana, as novas
pesquisas e vertentes hermenêuticas inexploradas fazem crescer a participação de
pesquisadores no aprofundamento da literatura gaúcha.
Contudo, a importância da obra de João Simões Lopes Neto extrapola os
limites do regionalismo sul-riograndense e insere-se no quadro geral da Literatura
Brasileira. Tal despertar vem ensejando novas linhas hermenêuticas da obra
simoniana, além de estudos biográficos, históricos e lingüísticos. Esta pesquisa
pretende, porém, analisar o sentido filosófico da lenda da Salamanca do Jarau,
estabelecendo uma relação entre o mito da caverna de Platão e o “mito da
caverna” de Simões Lopes Neto, mostrando que os personagens - sacristão,
Teiniaguá e Blau - constituem a expressão da contradição histórico-social que
emerge da situação de crise de identidade do gaúcho.
Ainda persiste entre os estudiosos de Simões Lopes Neto, o problema da
classificação da Salamanca do Jarau como lenda ou conto. De um lado, Flávio
Loureiro Chaves defende a hipótese de que a lenda “assim como foi redigida por
Simões Lopes Neto, não é uma lenda e nem é tampouco apenas uma nova versão
da lenda. É um conto: a aventura de Blau. Ou melhor, é um conto em cuja
elaboração o autor se apropriou da lenda, para incluí-la intencionalmente na
estrutura narrativa” (Chaves, 1982,79). De outro lado, Regina Zilberman entende
que a lenda se transforma, a partir de sua estrutura interna, na própria superação
enquanto lenda e na superação do mundo em que ela foi originalmente concebida.
Como vemos, a relação lenda-conto, estabelece já relações híbrido-dialógicas
entre texto original ou as várias versões da Salamanca do Jarau e o próprio texto
de Simões Lopes Neto. Segundo Cícero Galeno Lopes nada é puro, há sempre
uma hibridação no texto, especificamente na personagem Teiniaguá. Além disso,
17
a classificação será feita, de acordo com o ângulo pelo qual o texto é examinado
(Galeano Lopes, 1999, p.29-30).
Sem desconsiderar o problema literário, trata-se aqui, no entanto, do
problema hermenêutico-filosófico: Platão em sua obra A República, escreveu o
mito da caverna que se interpreta como sendo a sua teoria do conhecimento. Neste
mito, mostra que o homem vive na caverna e apenas conhece a sombra da
verdadeira realidade que se encontra no “mundo das idéias”. Esta leitura
tradicional dualista fundamentou, durante quase dois mil anos, toda a teoria
metafísica e ético-política platônica. Há, todavia, uma nova leitura da obra
platônica feita pela Escola de Tübingen, que propõe uma leitura integral de Platão,
incluindo os textos escritos e a tradição oral, resultando no caso do mito da
caverna uma leitura ético-cognitiva dialética unitiva.
Simões Lopes Neto também na Salamanca do Jarau descreve, segundo sua
abordagem, o mito da caverna do pampa: Blau, um gaúcho pobre, sai a campear o
boi barroso que fugira. No Cerro do Jarau encontra um vulto, que logo identifica
como o guardião da caverna misteriosa. Este indaga se Blau conhece a entrada da
caverna. A resposta de Blau reproduz uma história escutada de sua avó. Na terra
dos espanhóis havia a cidade de Salamanca e aí uma caverna onde os mouros
guardavam o condão mágico no regaço duma velha fada. A caverna do encontro
passa, então, a chamar-se de “salamanca”. Blau é o único de quantos por ali
passaram, que penetra na caverna.
Qual é a simbologia ético-cognitiva do gaúcho narrada na Salamanca do
Jarau? A caverna como imagem-arquétipo, é tratada em Platão como uma teoria
ético-cognitiva e, na lenda da Salamanca do Jarau, tratar-se-ia também de uma
teoria do conhecimento ou de uma teoria da identidade cultural? Qual é a verdade
que Blau descobre ao entrar e sair da caverna?
Na lenda a Salamanca do Jarau, constata-se que o texto aborda, sob a
forma literária, o problema da crise econômica e da crise de identidade do gaúcho.
A hipótese é se a crise econômica da região implicaria uma crise de identidade do
gaúcho; e se a procura da identidade perdida levaria a busca de uma nova
identidade pessoal e ético-social. Os vários símbolos apresentados na lenda (o boi
18
barroso, a Teiniaguá, a cruz e a meia-lua, a caverna) são de fato arquétipos da
cultura e constituem-se em princípios hermenêuticos, para compreender a situação
de crise identitária.
No primeiro capítulo, desenvolve-se de forma didática o roteiro da lenda,
organizando-o segundo quatro símbolos. O jogo da oposição dos símbolos mostra
a jogo da oposição de culturas subjacente no contexto sócio-cultural.
No segundo capítulo, aborda-se, especificamente, o arquétipo da caverna,
como símbolo fulcral da lenda, enquanto princípio epistemológico. Busca-se a
origem filosófica, no mito da caverna de Platão; depois, trata-se, brevemente, sob
o ponto de vista histórico-cultural, a procedência da tradição das “salamancas”,
baseado em Daniel Granada; e enfim, apresenta-se o processo de aprendizagem
simoniano, enquanto desconstrução da teoria do herói ocidental, baseado no
personagem-símbolo: a Teiniaguá. Ela é a figura híbrida que mostra a contradição
máxima de dois projetos de construção identitária: o do cristandade colonial e o
latino-americano gaúcho.
No terceiro capítulo, aborda-se, de modo específico, a perda e a busca da
identidade partindo-se de uma análise econômica dentro do período histórico do
fim do Império, ao inicio da República, que se estendeu até a eclosão da Primeira
Guerra Mundial.
Enfim, no último capítulo, retomam-se os três personagens centrais para
mostrar que eles são, ao mesmo tempo, fontes e projetos da cultura gaúcha. Blau
está diante da crise econômica e cultural e também da construção de novos
projetos identitários. O sacristão assume, num primeiro momento, a cultura da
cristandade colonial que se fundamenta na dualidade ética-religiosa; depois toma
uma atitude ascético-mística e se afasta deste projeto, para enfim, assumir uma
nova identidade gaúcha na aventura com Teiniaguá. Ela é a figura híbrida que
encarna a mestiçagem latino-americana.
Aprender a ser gaúcho é uma travessia ou uma busca do boi barroso que
Blau realiza na Salamanca do Jarau e que se torna um itinerário permanente de
todos os gaúchos e gaúchas.
19
1 - O ITINERÁRIO DA LENDA: A APRENDIZAGEM SIMBÓLICA
A lenda A Salamanca do Jarau (Lopes Neto, 1988, 140; daqui em diante
nós citaremos este texto com a sigla “S”, a página e a linha correspondente da
edição crítica estabelecida por Ligia Chiappini) é composta de 10 cenas. No
entender de Flávio L. Chaves, tratam-se de 10 capítulos que podem ser
organizados em 4 partes. O critério para estruturá-las é o discurso: 1ª parte - O
discurso do narrador (cap. I); 2ª parte - O discurso de Blau (cap. II); 3ª parte - O
discurso do guardião (caps. III, IV, V e VI); 4ª parte - A retomada do discurso do
narrador (caps. VII, VIII, IX e X). Vê-se que a 1ª e a 4ª partes pertencem a Simões
Lopes Neto, enquanto que a 2ª e 3ª conta-se a lenda da Teiniaguá e a origem do
cerro. A personagem central é Blau e sua aventura pelo pampa gaúcho. Simões
Lopes Neto apropria-se da lenda, apresentando-a em conto na forma de uma
narração (Chaves, 1982, 77-79).
Há três narradores: o que apresenta a narrativa é nomeado na terceira
pessoa; o segundo é Blau Nunes, que vive uma crise de identidade e está em busca
do seu destino, daí estar campeando o boi barroso; e o último é o sacristão. Na
verdade, os três narradores apresentam três versões narrativas que se
complementam como numa conversa. Blau conta a história que ouviu de sua “avó
charrua”, enquanto que o sacristão e a Teiniaguá são personagens da lenda
primitiva. É importante notar que Teiniaguá, a mulher-lagartixa, não tem voz
diretamente, ela só fala através do sacristão. O texto tem dois tempos: um
primordial, o do começo, o da instalação da primeira narrativa; e outro histórico
corresponde ao de Blau Nunes conversando com o santão (cf. Lopes Neto, 1999,
32).
Tomar-se-á a lenda capítulo por capítulo, com a finalidade de fazer uma
reconstrução do itinerário da aprendizagem feita pelos personagens através dos
símbolos, no próprio desenrolar da narração. O objetivo é elaborar um roteiro
didático de leitura que aponte, ao mesmo tempo, os principais temas, problemas e
vertentes interpretativas, as quais serão retomadas e desenvolvidas ao longo da
20
pesquisa. Segue-se a divisão em quatro partes adotada por F. Chaves, porém,
segundo o critério de quatro símbolos principais que estruturam a lenda.
Constata-se um jogo de oposição simbólico em vários níveis do texto
simoniano: entre os símbolos cristãos (a Cruz e o rosário) e o islamismo (a meialua dos mouros); entre os símbolos telúricos (terra, fogo, água e ar) que se
rebelam e se aliam com Teiniaguá para salvar o sacristão da condenação da morte,
e o milagre do Santíssimo e a Cruz que acalmam e dominam as forças da
natureza; entre o povo beato que acompanha o cortejo, sustenta o coro e a
cerimônia de condenação e as vozes dos índios, do povo autóctone esbravejando,
para que libertassem o sacristão; a oposição na interpretação da Teiniaguá: do
ponto de vista da cristandade colonial ela “é bicho imundo, mulher moura, falsa,
sedutora e feiticeira”, enquanto que a versão popular vê nela uma simpática
lagartixa, luminosa e hesitante, uma linda mulher, terna e apaixonada, nem
agressiva e nem diabólica. Enfim, a oposição em nível da estrutura narrativa entre
Deus e o Diabo. Uma leitura apressada pode cair na tentação de ir no desfecho e
afirmar a vitória de Deus sobre o Diabo. Porém, isso ignoraria o jogo das
oposições simbólicas, com a repetição das palavras, frases, expressões, da fala
poética que supera uma leitura retilínea. Ao contrário, a leitura simbólica é
dialética pois considera a relação entre magia e religião, mito e história, Diabo e
Deus, poesia e prosa, segundo a ambigüidade dos símbolos (cf. Chiappini, 1988,
224-227).
1.1 - O símbolo do boi barroso: festa, trabalho e utopia
Cap. I - “Campeando um boi barroso” ou aprender a ir “no rastro”
“E no tranquito andava, olhando para o fundo das sangas,
para o alto das coxilhas, ao comprido das canhadas”(S, 140,6).
O verbo campear (6 vezes: S, 140, 1-11; 141,34) marca o início do
capítulo. Campear é, num primeiro sentido, procurar o gado. Trata-se da busca de
um “boi encantado, que aparecia porém nunca era encontrado por muito
procurado que fosse” (Lopes Neto, 1988, nota 4, 165). Num segundo sentido, é
algo metafísico ou uma entidade ideal que inspira o caminhar de Blau: ele ia
21
“campeando e cantando”. O símbolo do boi barroso compreende-se pelo ato de
campear que significa procurar algo de imediato e concreto, e também buscar algo
que não pode ser apanhado ou apreendido definitivamente, permanecendo,
portanto, uma utopia. Considerando este duplo sentido, neste capítulo campear o
boi barroso significa o seguinte:
a) Aprendendo o trabalho enquanto festa: No início da lenda cita-se a
poesia do boi barroso. Segundo Simões Lopes, trata-se “duma antiga dança
camponesa, cuja música era ornada de versos que eram cantados durante o
folguedo” (id. nota 4). Esta poesia encontra-se originalmente no Cancioneiro
Guasca, porém, na lenda sofreu leves modificações, por exemplo, no primeiro
verso acrescenta-se a palavra: bonito. Embora o boi barroso sendo “logo
reconhecido”, ele sempre acaba escapando e nunca é preso, ou seja, ele não se
deixa apropriar. O gaúcho ao campear o boi barroso une trabalho, lazer, poesia e
música numa atmosfera festiva.
b) Aprendendo a buscar as causas do empobrecimento: Blau constata que a
época do trabalho como festa terminou, porque se conscientiza de “sua pobreza,
no atraso das suas cousas”. A organização produtiva da fazenda e a
industrialização do charque, na virada do século XIX e no início do século XX,
entra em declínio. As conseqüências disso são o empobrecimento econômico e a
perda das habilidades tradicionais do peão. Blau reconhece no “agora” de sua
situação presente, o que ele era antes e o que ele não é mais: perdeu todas as
habilidades (valente, domador e plantador) e busca uma causa de seu
empobrecimento: teria sido o encontro com o Caipora (S, 141,18)? O azar
(S,141,21)? Por que todas “as cousas corriam-lhe mal”? O certo é que “um gaúcho
pobre, Blau, de nome, ia, ao tranquito, campeando sem topar coo boi barroso” (S,
141, 33-35), pois não há mais trabalho e nem festa.
c) Aprender a mudar de rastro: Blau, enquanto estava campeando o boi
barroso, encontra-se com o santão - “um vulto de face tristonha” - que lhe diz que
“o boi barroso anda cumprindo o seu fadário” (S, 142,15). Então, Blau ouve a
orientação do santão e dirige-se para a entrada da Salamanca do cerro do Jarau.
Aqui, ocorre uma mudança do rastro físico, para o rastro da própria memória, ou
22
seja, o que sua avó charrua, lhe contara a respeito da lenda da salamanca. Blau
aprende uma tríplice mudança: do rastro do boi barroso utópico, para o lugar
geográfico da salamanca, enfim, para a memória histórica pessoal-familiar.
O ato de campear segue o movimento de passagem do exterior (o boi
barroso, o cerro) para o interior (a memória oral da lenda). Blau aprende a
conhecer que “um homem é para outro homem” (S, 142, 10), isto é, a
antropologia simoniana começa com o reconhecimento do outro: Blau, o gaúcho
descendente de índia charrua, encontra o santão.
Neste primeiro capítulo, aprender é “ir no rastro” da utopia (o boi
encantado), da cultura popular (a dança, a música, a poesia, a festa), das causas
dos problemas (o empobrecimento) e do reconhecimento do outro.
1.2 - O símbolo da Teiniaguá: religiões, culturas e etnias
Cap. II - O outro (espanhóis e mouros), “a gente pampeana” e a Teiniaguá
“...porque o sonho não tem lindeiros
nem tapumes” (S, 144,20)
O discurso de Blau introduz a origem da lenda na cidade de Salamanca na
Espanha e nomeia duas etnias: “os tais mouros e mais outros espanhóis”.
a) A guerra de religiões ou de duas culturas - oriente X ocidente: Há uma
luta, na Espanha, entre o catolicismo e o islamismo. Estes últimos são vencidos
pelos católicos, daí serem obrigados a “ajoelharem-se ao pé da Cruz Bendita”. Os
mouros, “fingidos de cristãos, passaram o mar e vieram dar nessas terras
sossegadas, procurando riquezas, ouro, prata, pedras finas” (S, 143,2).
b) A gente pampeana, Anhangá-pitã e Tupã. Como era essa “gente
nativa”? “Era gente sem cobiça de riquezas, que só comia a caça, o peixe, a fruta e
as raízes que Tupã despejava sem conta, para todos, das suas mãos sempre abertas
e fazedoras” (S, 143,19-22). A gente pampeana da campanha e da serra é sem
cobiça, ao inverso, dos europeus que cobiçam riquezas.
Aparecem duas entidades metafísicas: Anhangá-pitã, “do tupi-guarani:
diabo Vermelho” (S, nota 5, 165) e Tupã: para os tupis é o trovão, que os
23
missionários jesuítas designaram de Deus. O primeiro é identificado com o diabo,
enquanto o segundo é o doador generoso de bens.
c) A metamorfose da fada moura: Teiniaguá surge do sopro de Anhangápitã que através do condão mágico lhe tira a cabeça e implanta em seu lugar uma
pedra transparente, “vermelha como brasa”. Então, Anhangá-pitã carrega
teinianguá “sobre a correnteza do Uruguai, até as suas nascentes”. Porém, ele “só
não tomou tenência que a Teiniaguá era mulher”, porque se trata de um
personagem híbrido que assume muitas figurações no desenrolar da lenda. Daí, a
dificuldade de reconhecer uma única identidade, pois ela carrega em si o ser
híbrido mulher-lagartixa; a pluralidade étnica: moura e índia; a diferença etária
velha e jovem. Ela compreende o máximo de contradições e a capacidade de
metamorfosear-se, permanentemente, por isso Anhangá-pitã não foi capaz de
reconhecer sua identidade.
Neste capítulo, apresentam-se algumas etnias fundadoras da identidade do
gaúcho: os europeus e os índios. Além destes, somam-se, sabemos pela história,
os portugueses, negros e outros. O gaúcho é o resultado da miscigenação étnica.
Aprende-se que a identidade do gaúcho não se forma pela exclusão. A “gente
pampeana” forma-se pela inclusão de um conjunto étnico.
1.3 - O símbolo da cruz: cristandade colonial 46, rebeldia e soberania do amor
Cap. III - “Todo o povo sesteava, por isso ninguém viu”
“Tudo o que volteia no ar tem seu dia
de aquietar-se no chão” (S, 144,36)
46
O projeto da cristandade colonial é construído segundo J. Zanotelli da seguinte maneira:
Primeiramente o estado de cristandade é o resultado da fusão do Império Romano indo-europeu
com o cristianismo semita (a partir de 313, Constantino e o Edito de Milão), que se torna a matriz
etiológica; depois, esta matriz causal de nossa cultura é exportada e imposta para a América
Latina, África e Ásia sob a forma colonialista, ou seja, destruindo as outras culturas. “A Igreja
cristã adota a estrutura, as instituições, a burocracia e, em parte, a ideologia do Império Romano
como suas. Disto resultou o Estado de Cristandade” (Zanotelli, 1998, 85). Daí, que “é
imprescindível estudar as culturas ameríndias, pré-semitas, para não perdermos a memória e a
identidade americana, por outro lado não se entendem as culturas, e a identidade americana, sem
localizar a América Latina no quadro geral de desdobramento do Estado de Cristandade muitas
vezes confundido com Cristianismo e com a Civilização Ocidental” (id. p. 9).
24
O discurso do guardião do cerro (o santão) começa repetindo a frase que
afirma a dificuldade de Anhangá-pitã em reconhecer quem é Teiniaguá: “Não
tomou tenência que a teiniaguá era mulher”. A mesma frase repete-se três vezes:
nos capítulos II, III e X. Essa ambigüidade da Teiniaguá vai marcar toda a
narração, do começo ao fim, até a última frase da lenda. Se Anhangá-pitã é
incapaz de reconhecê-la, o sacristão vive o desafio de construir uma nova
identidade na companhia dela. a) O drama do sacristão: Este desempenha a sua
função na Igreja de São Tomé. Ele é atravessado pelo conflito entre a carne e o
espírito, pois é uma pessoa “banhada na água benta” e vive povoado de
“pensamentos maus”.
b) “Todo o povo sesteava, por isso ninguém viu”: O sacristão saiu às
escondidas da igreja e viu o milagre da lagoa borbulhando. Dela emergiu a
Teiniaguá que foi apanhada pelo sacristão e levada para o seu quarto dentro de
uma guampa. A conversa que se ouvia era que “quem prendesse a teiniaguá ficava
sendo o homem mais rico do mundo” (S, 146,28). O sacristão sonha com castelos
e palácios, campos sem fim, ouro e prata: “Tudo isto eu podia ter, porque era o
dono da teiniaguá”. Enfim, ele volta a si, após o toque do sino da igreja e vai
buscar comida para a lagartixa e eis que ao voltar para o quarto, a fim de alimentá-la,
tem uma surpresa: ela se transformara numa mulher: “Bonita, linda, bela, na
minha frente estava uma moça” (S, 147,35).
A frase: “Todo o povo sesteava, por isso ninguém viu”, repete-se três
vezes neste capítulo referindo-se ao sacristão em três situações diferentes: ao sair
da igreja, na volta ao quarto, quando estava com Teiniaguá e ao toque do sino para
a oração da tarde. Podem-se enunciar três hipóteses sobre o sentido deste
aforisma: 1) O sacristão pretende fugir do sistema de cristandade colonial: “Eu saí
da igreja [...] sem pensar em nada, nem de bem nem de mal; fui andando, como
levado” (S, 145,12s); 2) O sacristão infringe a disciplina da igreja, por isso não
quer ser notado: “corri para o meu quarto, na casa-grande dos santos padres, por
detrás da igreja” (S, 146,23); 3) Enfim, ele descumpre a sua função e não quer ser
percebido: “Pela primeira vez não fui eu que toquei [o sino]; seria um dos padres,
na minha falta” (S, 147,23).
25
Há neste aforisma, duas partes: a primeira, “todo o povo sesteava”, isto é,
ninguém percebe o que está acontecendo, todos estão dormindo. Enquanto, isso, o
sacristão sai, volta à igreja e introduz uma nova identidade no interior do círculo
eclesiástico: um personagem híbrido, a mulher-lagartixa. A segunda, “por isso
ninguém viu”, ou seja, ninguém enxerga que há uma nova realidade no interior da
comunidade. Esta não vê a perda da identidade, ou melhor, que se está operando
uma mudança. O sacristão está refazendo a sua identidade, no contato com
Teiniaguá, personagem coletivo, que representa a “nova gente”.
Cap. IV: A Teiniaguá dos tesouros e a princesa moura: prazer e condenação
“Serás o meu par, para do sangue de nós ambos nascer uma nova gente,
guapa e sábia, que nunca mais será vencida”(S,148,19)
Este é um capítulo central da lenda, pois descreve a contradição entre o
sistema de cristandade colonial, a resistência face ao mesmo e o esboço do projeto
de constituir uma “nova gente”.
Teiniaguá revela ao sacristão sua dupla face: “A teiniaguá que sabe dos
tesouros, sou eu, mas sou também princesa moura”. Ela detém o conhecimento
das riquezas e ao mesmo tempo é uma “mulher jovem, formosa” pronta para
formar um par com o sacristão.
“A princesa lhe oferece riquezas de todo o tipo. Não as riquezas que ela tem, mas que ela
sabe; ele terá tudo, inclusive seu corpo “rijo e não tocado”. A troca do ter por saber
desmaterializa os tesouros e lhes dá aquela dimensão de símbolo da essência divina, e do
conhecimento que se costuma associar aos tesouros ocultos, os quais só a busca perigosa
permite atingir” (Chiappini, 1988,203).
a) A cruz e a meia-lua, promessa e condição: “Serás o meu par, si a cruz
do teu rosário me não esconjurar” (S, 148,17), afirma, duas vezes, Teiniaguá. O
problema é que a doutrina católica proibia, na época, o casamento com
muçulmanos e quem o fizesse, sofreria penas da Igreja. Os muçulmanos eram
considerados pagãos: “Sobre a cabeça da moura amarelejava nesse instante o
crescente dos infiéis” (S, 148,23). Essa condição “si a cruz do teu rosário” será o
grande obstáculo para que a promessa se realize.
b) O sonho de uma nova cultura expressa-se no desejo de constituir um par
do qual nascerá “uma nova gente, guapa e sábia, que nunca mais será vencida,
porque terá todas as riquezas” (S, 148,19). Teiniaguá reconhece no sacristão
26
alguém que não a buscou com “olhos cobiçosos” e nem a procurou com ganância.
Por isso ela foi ao seu encontro. Se o sacristão abandona o duplo interesse
colonial: riqueza e sedução, Teiniaguá, de seu lado, declara-se como sendo “a rosa
dos tesouros escondidos dentro da casca do mundo” (S,148,1). A rosa é
“o símbolo da perfeição, mas também do amor, das riquezas imateriais, das forças ocultas
da alma, da verdade que é preciso descobrir depois de muito esforço, porque soterrada nas
grutas profundas do eu. Essa conjugação da rosa aos tesouros reforça a imaterialidade dos
mesmos. A rosa está ligada às águas primordiais; os tesouros à terra mãe” (Chiappini,
1988, 211).
c) Transgressão, profanação e o amor da moura: O sacristão tem
consciência de que vai distanciando-se das exigências postas pela cristandade: “E
a minha alma de cristão foi saindo de mim, como o sumo se aparta do bagaço,
como o aroma sai da flor que vai apodrecendo” (S, 148,35). De um lado, o rito
matrimonial católico impede que o sacristão case com a moura; de outro, a moral
católica, no sexto mandamento diz: “Não pecar contra a castidade”, o que o proíbe
de ter relações com ela. Diante desta dupla transgressão religiosa, o sacristão
sentia remorso: “E crivado de pecados mortais doía, quando o padre lançava a
bênção sobre a gente ajoelhada” (S, 148,40). Mesmo assim, ele afirma que “cada
noite era meu ninho o regaço da moura”.
Além destas transgressões, o sacristão comete uma profanação do cálice
sagrado. “Uma noite ela quis misturar o mel do seu sustento com o vinho do santo
sacrifício”. Então o sacristão busca “no altar o copo de ouro [o cálice] consagrado,
todo lavorado de palmas e resplendores”. Assim, os dois usaram o cálice “de boca
para boca, por lábios incendiados o passamos... e embebedados caímos,
abraçados” (S, 149,1-5).
A propósito o Cân. 1171 afirma: “As coisas sagradas, que foram
destinadas pela dedicação ou bênção ao culto divino, sejam tratadas com
reverência, e não se empreguem para uso profano ou não próprio a elas”. Por isso
a profanação implica punição, conforme recomenda o Cân. 1376: “Quem profana
coisa sagrada, móvel ou imóvel, seja punido com justa pena” (Código Direito
Canônico, 2001).
e) Condenação, tortura e resistência: O sacristão é flagrado “pelos santos
padres” e condenado por razões de direito (profanação), de doutrina moral (6º
27
mandamento) e disciplina (não cumpre com suas funções), vigente no sistema de
cristandade colonial, que tinha na religião inquisitorial um meio privilegiado de
manutenção do controle sobre “a nova gente”. “Afrontei o arrocho da tortura”,
“fui sentenciado a morrer”, “o povo clamando a morte do meu corpo e a
misericórdia para a minha alma”. Mesmo assim, o sacristão resiste e não confessa
“quem era ela e que era linda” e “por senha da vontade a boca não falou”.
f) Teiniaguá é a causa da condenação: A discriminação do projeto de
cristandade colonial enquadra-a dentro de diversos estereótipos: o fato de ser
mulher moura (“onde sobressaía uma meia-lua prendendo entre as aspas uma
estrela”- S, 149, 10), feiticeira ou “bruxa” (S, 148,31). Estas qualificações eram
típicas da Inquisição para argumentar em favor de um processo de condenação,
isto é, a aproximação com alguém que praticasse feitiçaria. Embora existam as
várias transgressões cometidas pelo sacristão, a causa fundamental, porém, ainda é
devida a aproximação com Teiniaguá: “Condenado fui por ter dado passo errado
com bicho imundo, que era bicho e mulher moura, falsa, sedutora e feiticeira” (S,
149, 25s). A mesma frase é repetida no capítulo seguinte, porém, nomeando a
causa moral da condenação: “por ter tido amores com mulher moura, falsa,
sedutora e feiticeira..” (S, 151,3). Esta versão permite que se identifique
Teiniaguá, como sendo a origem do mal (a figura de Eva). Porém, como se verá,
existe uma segunda interpretação que afirma o papel “salvador” da mesma (a
figura de Maria).
Este capítulo se conclui com a contradição entre dois desejos presentes no
sacristão, que são na verdade os dois interesses principais do projeto colonial: a
riqueza e a sedução. O sacristão vive “dois amargos desesperos: si das riquezas,
que eu queria só pra mim, si do seu amor, que eu não queria que fosse sinão meu,
inteiro e todo” (S, 149, 21s). Face a esse dilema a qual projeto ele irá aderir?
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Cap. V: Saudade, agonia e adeus: uma outra antropologia
“...chorei uma lágrima de adeus à teiniaguá encantada, dentro do meu sofrer
floreteou uma réstia de saudade do seu cativo e soberano amor”(S,149,35)
Tudo está pronto para o desfecho final: o enforcamento do sacristão. O
cenário é descrito de uma forma dramática. Ele está amarrado diante do carrasco e
está só com Teiniaguá no pensamento, presente na “saudade do amor”.
a) Saudade: Esta palavra é repetida, neste capítulo, quatro vezes com
sentido diferente. Um termo, ou quase um conceito, que implica memória do
passado e esperança para o futuro. A saudade não é fixação patológica, ou
melancolia, mas paixão de utopia. Estas são as passagens:
- “Saudade do seu cativo e soberano amor” (S, 149,37): O sacristão resiste
preso “como uma raiz que não quer morrer”, porque é a experiência do amor de
Teiniaguá lhe dá poder (“soberano amor”) para resistir ao momento da agonia
mortal.
- “Saudade parece que saiu para fora” (S, 150,1): Não se trata apenas do
passado, mas a saudade é futuro, pois “ponteou para algum rumo”.
- “Ao encontro doutra saudade” (S, 150,3), ou seja, ao encontro de Teiniaguá
que também é constituída pela saudade. Eles estão juntos na reciprocidade da
saudade.
- “A lágrima do adeus que a saudade destilara” (S, 151, 4): O gotejar lento da
lágrima supera, profundamente, a dor no amor. Como a destilação processa uma
substância elevando-a para um outro nível de realidade, assim, a saudade destila
este momento de agonia mortal, superando-a através da saudade amorosa.
b) “A lágrima do adeus”: Forma-se, ao redor do sacristão, todo o cortejo
para a execução da pena, na presença de autoridades religiosas (os santos padres),
civis (alcaide), militares (soldados) e o povo (chinas, piás, índios velhos). A
cerimônia religiosa segue o rito da bênção, o sino dobra a finados enquanto se
encomenda a alma. Em meio a cerimônia, o sacristão, derrama a lágrima do adeus
por Teiniaguá (S,149,36), que a “saudade destilara”.
c) A solidão do sacristão e o amor de Teiniaguá ou o sagrado e o profano:
“Fiquei sozinho, abandonado ouvindo [...] com os ouvidos do pensamento o
chamado carinhoso de teiniaguá” (S, 151, 30). Durante toda a cerimônia de
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“encomendação da alma”, o sacristão está fisicamente só, porém, está sempre
acompanhado de Teiniaguá (S, 151,32s). Há um vínculo invisível entre ambos:
“por essa força que nos ligava sem ser vista”. Essa força amorosa é descrita
plasticamente na união do sensível com o pensamento, culminando numa síntese
antropológica prazerosa entre o humano e o divino:
- O ouvido: “ouvir as ladainhas, mas com os ouvidos do pensamento ouvir o
chamado carinhoso de teiniaguá”.
- A visão: “os olhos viam a consolação da graça de Maria puríssima; mas, os
olhos do pensamento viam o riso mimoso da teiniaguá”.
- O olfato: “o nariz tomava o faro do incenso perfumando as santidades; mas o
faro do pensamento sorvia a essência das flores do mel fino de que a teiniaguá
tanto gostava”.
Dá-se a passagem unitiva entre o sacristão e Teiniaguá, sem mais fazer
referência ao religioso, denotando que há uma afirmação da identidade humana.
- O paladar: “a língua está seca de agonia, mas a língua do pensamento
saboreava os beijos de teiniaguá”.
- O tato: “o tato das minhas mãos tocava manilhas de ferro, mas o tato do
pensamento roçava pelo corpo da encantada" (S,151, 30-44).
Aqui, ocorre a superação da religião inquisitorial espanhola legitimadora
do projeto colonial. A religião católica ainda sob a influência da lógica
inquisitorial é dualista (separa corpo e alma), discriminadora (a mulher é “bicho
imundo” e causa de pecado), e prega uma moral que despreza o corpo, o prazer e
a afetividade. No entanto, esse capítulo aponta para outra antropologia, em que a
categoria da saudade amorosa valoriza o corpo de forma unitiva (os 5 sentidos e o
pensamento), representado na figura do sacristão e de Teiniaguá:
“Mas os olhos do meu pensamento, altanados e livres, esses, esses viam o corpo bonito,
lindo, belo, da princesa moura, e recreavam-se na luz cegante da cabeça encantada da
teiniaguá, onde reinavam os olhos dela, olhos de amor, tão soberanos e cativos como em
mil vidas de homem outros se não viram” (S, 150,25-29).
d) O caos, a sanga e o caminho para o Cerro do Jarau: Enquanto ocorria a
cerimônia de “encomendação da alma” do sacristão, de repente a lagoa provocou
um estrondo, abriu-se a terra, começou a correr uma sanga que desembocou no rio
Uruguai. E do meio da água lamacenta da sanga “todos viram a teiniaguá de
30
cabeça de pedra transparente”. O próprio Simões Lopes Neto assim se refere
numa nota explicativa: “Existe no arrabalde de S. Tomé a famosa sanga, que o
populacho de origem índia ainda hoje aponta como prova do acontecimento e
poder da teiniaguá encantada” (S, 165, nota 9, 41-41). Houve um alvoroço, pois
um terremoto quase destruiu a Missão de São Tomé. Passado este fenômeno,
pairou um grande silêncio, um “milagre se fez: “o Santíssimo perpassou a altura
das cousas” e “ventos, fogo, urubus e estrondo se humilharam, fenecendo,
dominados” (S, 151,26). O vento neste momento, é “o sopro do Verbo, o sopro do
Deus cristão, que tem o poder de ordenar o caos primitivo, com a energia
luminosa” (Chiappini, 1988, 212).
Então, o sacristão afirma que Teiniaguá o “enfeitiçou de amor, pelo seu
amor de princesa moura, pelo seu amor de mulher, que vale mais que destino de
homem”. Este amor o liberta de um duplo peso: o físico (“dores nos ossos e nas
carnes, sem peso de ferros no corpo) e o moral (“sem peso de remorsos na alma”).
Assim, “salvo por teiniaguá” parte “para o Cerro do Jarau, que ficou sendo o paiol
das riquezas de todas as salamancas dos outros lugares” (S, 152,11).
Cap. VI - Palavra mágica ou imperativo ético: “Alma forte, coração sereno”
“Mas, governa o pensamento e segura a língua: o pensamento dos homens é que
os leva acima do mundo, e a sua língua é que os amesquinha” (S, 153,40).
Com este capítulo se conclui a terceira parte da lenda. O sacristão está no
cerro do Jarau há duzentos anos. Ele é como um ser imortal, pois não dorme, não
tem fome e sede, nem dor e nem riso. Conhece todas as riquezas que estão dentro
do mesmo, porém, está “enfarado de ter tanto e de não poder gozar nada entre os
homens”. Superou todas as inclinações para o mal. Sua função é acompanhar os
homens que “quiserem contratar a sorte” na Salamanca do Jarau. (S, 152, 15-37).
Eis que Blau se apresenta e o sacristão lhe expõe o imperativo para entrar no cerro
e o que ele promete é garantido pela Teiniaguá: “Esses que toparam, tiveram o
que pediram, que a rosa dos tesouros, a moura encantada não desmente o que eu
prometo, nem retoma o que dá!” (S, 153, 5).
a) O imperativo ético do sujeito moderno ocidental: O aforisma “alma
forte, coração sereno” aparece cinco vezes neste capítulo e mais quatro vezes no
31
sétimo. Alguns entendem esta frase como uma fórmula mágica que “funcionaria
quase como um “abra-cadabra” (Chiappini, 1988,212). Propõe-se aqui, porém,
uma outra interpretação.
Trata-se, neste capítulo, de um imperativo ético, porque o santão se refere
ao modo de ser e agir de todo aquele que deseja entrar na caverna: “quem isso
tem, entra na Salamanca” (S,153,25); “Si entrares assim, si te portares lá dentro
assim, podes então querer e serás servido!” (S,153,37). O sentido deste aforisma é
dado pelo próprio sacristão: “alma forte” é saber governar o pensamento, pois é
este que eleva a pessoa acima do mundo; “coração sereno” é segurar a língua, pois
esta é que amesquinha o ser humano (cf. S, 153,40). Então, a “alma forte” é ter a
capacidade do domínio do pensamento para superar toda fraqueza; e o “coração
sereno” é a capacidade de dominar a vontade que se expressa na linguagem.
Enfim, trata-se da síntese ocidental do agir ético: governo da razão e serenidade
da vontade. Mais ainda, expressa o sujeito transcendental moderno kantiano, pois
é através do pensamento, ou a consciência que ele se põe acima do objeto.
b) Blau, o guasca diferente: O sacristão compara Blau com todos os que
foram até então no cerro. Os últimos “vieram arrastados pela ânsia da cobiça ou
dos vícios, ou dos ódios”; enquanto, “tu foste o único que veio sem pensar e o
único que me saudou como filho de Deus” (S, 153,10). O sacristão revela que
Blau foi o primeiro a saudá-lo como cristão e que na terceira saudação o
encantamento cessará, isto é, “a salamanca desaparecerá”.
Na terceira parte da lenda, o sacristão aprende a sair do sistema de
cristandade colonial. Unindo-se a Teiniaguá aos poucos vai transgredindo normas
e experimenta um outro valor: o da soberania do amor.
1.4 - O símbolo da caverna: provas e metamorfoses da gauchidade
Cap. VII - Provas, escolhas e negação: o nada e o tudo
“Pois que em sete poderes te não fartas, nada de te darei. Vai-te”.
“Eu te queria a ti, porque tu és tudo”(S,158,10).
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A quarta e última parte começa com o discurso do narrador. Este capítulo é
o mais longo de todos. Pode ser divido em duas partes: as sete provas e as sete
escolhas e negações.
“Quase todo o capítulo é dedicado, agora, a instruir Blau para essa travessia dentro da
gruta, à procura da Teiniaguá, mas também dentro de si mesmo, à procura da sua
identidade, dos seus avessos, das forças que movem a sua vida, e que estão nele e fora
dele, possíveis e impossíveis de serem vislumbradas por olhos humanos” (Chiappini,
1988, 210).
1ª Parte: As sete provas- Lígia Chiappini compreende o número sete como
sendo o símbolo da perfeição e a “expressão da ordem completa, de um ciclo”
(1988, 215). Blau Nunes resolve entrar na caverna e enfrenta as sete provas,
através de perigosos corredores. Elas tem o mesmo roteiro: começam com a frase
“Blau Nunes foi andando”; e no momento de passar pelo obstáculo, no final da
prova repete-se a frase: “E ele meteu o peito e passou”; uma vez ultrapassado o
obstáculo, da 1ª a 5ª provas, existem mãos carinhosas e invisíveis que o
acompanham e estimulam a passar adiante; essas mãos são como “espíritos
benéficos a auxiliá-lo no caminho” (Chiappini, 1988,217); também repete-se na
1ª, 3ª e 5ª provas a frase já conhecida no capítulo anterior: “alma forte, coração
sereno”.
Blau defronta-se em cada prova com personagens diferentes: 1ª provapassa no meio de espadas, empunhadas por homens lutando: “As armas
simbolizam as forças do espírito em luta contra forças inferiores” (Chiappini,
1988,215); 2ª prova- passa entre animais ferozes tais como jaguares e pumas:
“São tradicionalmente guardiães” (id. 215); 3ª prova- passa entre as caveiras e
esqueletos: “Imagem da morte, mas também, vaso da vida e do pensamento” (id.
216); 4ª prova- passa no meio do fogo, água, vapor e o vento: “Os quatro
elementos amalgamados, como forças terrestres e celestes que se fundem” (id.
216) ; 5ª prova- passa pela serpente (Boicininga, Mboitatá): “É ambivalente. É
protetora das fontes de vida e símbolo da imortalidade, dos bens superiores
simbolizados pelos tesouros ocultos. Mas também é o princípio do mal, do
inerente ao terreno” (id. 216); 6ª prova- passa no meio de moças com ar malicioso
e sedutor. Elas são as ninfas que criam “uma atmosfera erótica”, porém, estão
numa espécie de “paraíso natural” (id. 216); 7ª prova- passa no meio de anões que
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provocam risos: Estes “simbolizam também as forças inconscientes, como todos
os gnomos e duendes. Para Jung são guardiães do inconsciente” (id. 217).
Após passar as sete provas, o sacristão conduz Blau à frente de Teiniaguá,
disfarçada em uma velha que com o condão mágico lhe diz: “Por sete provas que
passaste, sete escolhas dar-te-ei” (S,157,17). Ela está detrás de um cortinado de
escamas de peixe-dourado. “O peixe é um animal freqüentemente ligado ao
sagrado e as escamas simbolizam proteção; a água e o mundo subterrâneo”
(Chiappini, 1988, 217). A atmosfera é de fato revestida de uma aura sagrada.
2ª Parte: Blau diante das sete escolhas- 1ª: ser jogador de cartas para
ganhar qualquer jogo (cartas, cavalos, osso, rifa etc.); 2ª: ser cantor e tocador de
viola, para conquistar as mulheres; 3ª: ser curandeiro, isto é, conhecer a arte de
curar com plantas ou provocar males, usando simpatias e agir sobre os outros
através de magias; 4ª: ser lutador para não errar golpe de tiro, lança ou faca contra
o inimigo; 5ª: ser político ou ter o poder de todos lhe obedecerem; 6ª: ser
estancieiro para ser rico de campo e gado; 7ª: ser artista, em geral, para praticar a
pintura, a poesia, a escritura, a música, a escultura etc.
a) O nada e o tudo- a primazia do amor: Diante das sete ofertas, Blau
responde categoricamente: Não! Na verdade, trata-se da negação de sete poderes.
Ele os recusa, porque o fundamental para ele era Teiniaguá encantada: “Eu te
queria a ti, porque tu és tudo [...] que atino que existe fora de mim, em volta de
mim, superior a mim. Eu te queria a ti, teiniaguá encantada” (S, 158,15). Por isso,
Blau pensa no que lhe fora oferecido e está “desanimado e penaroso”. Ele “não
lograra nada por querer tudo”, isto é, tinha dito não a todas as ofertas, na
esperança que lhe fosse oferecido o “tudo”: Teiniaguá encantada. Para Chiappini
o tudo é “o ser, o centro da vida, e eis porque ele nada obtém da Teiniaguá, pois
isso só conseguiria regressando ao útero materno, reintegrando-se à grande mãe,
refundindo-se na unidade primordial de que a história, entretanto, o distanciou
numa viagem sem volta” (Chiappini, 1988,220). Blau sai da gruta e recebe um
prêmio de consolação: a onça que se reproduz ao infinito.
b) A contradição- a onça mágica: Pronto para partir com seu cavalo, Blau
depara-se com o sacristão que lhe diz: “Nada quiseste; tiveste a alma forte e o
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coração sereno, tiveste, mas não soubeste governar o pensamento nem segurar a
língua” (S, 158,37). De fato, Blau durante as sete provas teve a alma forte e o
coração sereno, mas no momento das escolhas, não aplicou este princípio, porque
o seu pensamento e coração estavam em Teiniaguá. Porém, o sacristão não
condena este modo de agir: “Não te direi si bem fizeste ou mal”. Blau tem como
primazia o amor de Teiniaguá, acima de toda sorte de poder. No entanto, a
contradição nasce, de uma parte, entre o nada querer das sete escolhas, e, de outra,
aceitar do sacristão a moeda de ouro que lhe dá todo o poder.
Cap. VIII - “Acreditou na onça encantada”
“Mistério para o próprio Blau... muito rico... muito rico... mas todo o dinheiro
que ele recebia [...] todo desaparecia como desfeito em ar (S, 161,20).
Este capítulo se organiza em três dias de prova, para verificar se de fato a
“onça encantada” funcionava no mercado:
1º dia: A prova do prometido - “... foi pensando nas cousas que carecia e
que irá comprar”. Blau começa a usar a onça, para suprir as necessidades pessoais
mais imediatas, tais como, roupas, uma adaga, esporas e rebenque. De fato, a onça
mágica funcionava, conforme o prometido: “Ela te dará tantas outras quantas
quiseres, mas sempre de uma em uma e nunca mais que uma por vez” (S, 159,1).
Ele gastou três onças.
2º dia: Neste dia, ele compra, “só peças inteiras” e gasta quinze onças.
3º dia: No último dia, ele compra trinta cavalos e gasta quarenta e cinco
onças.
a) A fama da fortuna: Começando a comprar o mais necessário, Blau foi
aumentado o gasto proporcionalmente e enfim, a nova moeda foi testada: “Depois
desses três dias de prova, Blau acreditou na onça encantada” (S, 160,41). Agora,
Blau aventura-se em grandes negócios, “arrendou um campo e comprou o gado,
pra mais de mil cabeças, aquerenciado” (S,160,42). No entanto, todos começaram
a ficar intrigados com o fenômeno desta onça mágica, até o próprio Blau.
“Começou a correr a fama da sua fortuna” e ninguém conseguia explicar como um
“gaúcho despilchado de, ontem, pobre”, agora tinha tanto dinheiro para negociar.
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b) Mistério da riqueza: Nem o próprio Blau conseguia entender o seu
enriquecimento. “Mistério para o próprio Blau... muito rico... muito rico”. Há um
duplo fato: Nunca faltaram moedas, sempre teve o que precisasse, porém, “todo o
dinheiro que ele recebia, que lhe pagavam, todo desaparecia”, todas as moedas
“evaporavam-se, como água em tijolo quente” (S,161,25).
“Aqui, se lembramos da biografia de Simões, e do dinheiro que sempre lhe fugiu das
mãos, temos a tentação de associar essa onça furada ao Capital, que se reproduz,
separando os homens dos outros homens, como que amaldiçoados por algum demônio que
os faz escravos do dinheiro” (Chiappini, 1988, 221).
Cap. IX - Riqueza e solidão ou pobreza e companhia
“Prefiro a minha pobreza dantes à riqueza desta onça, [...] porque
separa o dono dos outros donos de onças”(S,162,35).
Blau enriquece, porém entra em crise, porque sofre um “cerco de
isolamento”.
a) Dinheiro maldito: Blau “comprava e pagava à vista, é certo”, porém, o
problema é que “todos com quem tratava e recebiam de suas onças”, depois
faziam maus negócios e perdiam “exatamente a quantia igual à de suas mãos
recebida” (S,161,30). O fato começou a se espalhar e isto foi associado a alguma
“mandinga arrumada na salamanca do Jarau”.
b) Distanciamento e solidão: Blau passa a “ser tratado de longe, como um
chimarrão rabioso”. Trata-se de um tríplice “cerco de isolamento”: Da peonada
que se afasta de sua companhia; dos negociantes que não mais comerciam com
ele; e dos andantes que cortam campo, para não abrigarem-se nos seus galpões.
Blau está completamente só: “Já não tinha com quem pautear; churrasqueava
solito, e solito mateava, rodeado dos cachorros” (S, 162,15).
c) A opção pela companhia: Blau pensa sobre sua solidão e decide “acabar
com aquele cerco de isolamento” e volta ao cerro, para devolver a onça de ouro ao
santão dizendo: “Devolvo! Prefiro a minha pobreza dantes à riqueza desta onça.
Adeus!” (S,162,35).
d) A implosão do cerro: Blau cumprimenta, por três vezes, o santão com a
tradicional saudação cristã- “Laus‟sus‟Cris” (Louvado seja Jesus Cristo): a
primeira vez, foi na ida ao cerro do Jarau (S,142,15); depois, ao retornar ao cerro
para devolver a onça de ouro (162,30); e, enfim, no ato de despedida, a expressão
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é modificada (“Fica-te com Deus, sacristão”, 162,35), porém, o que interessa é
falar o “Nome Santo”. Assim, ficou quebrado o encantamento, “e neste mesmo
instante, que era o da terceira vez que Blau saudava no Nome Santo, ouviu-se um
imenso estouro” (S,162,45). O cerro do Jarau ficou destruído com todos os
tesouros e, ao mesmo tempo, deste caos surge uma nova realidade.
“O número [a saudação por três vezes] é simbólico dessa união do céu e da terra, do
material e do espiritual que se processa na gestação do gaúcho que assimila a civilização
branca e cristã mas também integra o índio das origens e, através da Península Ibérica, o
mouro” (Chiappini, 1988, 211).
Entre a agonia da solidão e a felicidade da companhia, Blau opta por esta
última. A insatisfação da riqueza não responde a sua identidade, pois esta o
condena a viver separado dos outros, estado este que o leva quase à melancolia.
Ele vive o dilema de estar preso à identidade do passado e à crise no presente, pois
a tradição não responde mais à situação atual. A identidade originária é míticofolclórica, em que a contribuição indígena colabora com a utopia do projeto de
uma comunidade solidária. A idealização do gaúcho revolucionário, tem seu
destaque na tradição de o gaúcho ser originário do índio e do camponês. A roda
do chimarrão é a representação desta pobreza mitificada, no sentido de ser ele
desprendido de interesses e riquezas. Blau face à encruzilhada que se colocava,
opta pela pobreza, isto é, segundo a tradição indígena.
A implosão do cerro pode ser compreendida como o fim da sistema de
cristandade colonial e também da identidade da estância tradicional, daí a
impressão de um estado caótico, em que tudo se derrete: “o cerro do Jarau
apagou-se num desgoverno, como uma tropa de gado alçado, que espirra e se
desmancha como água passada em regador” (S, 163, 5). Com isso, abre-se a
possibilidade de recriação de novos projetos de identidade: nova ética , nova
religião, novas etnias.
37
Cap. X - Memória e travessia para o futuro
“Aquele par novo, de mãos dadas como namorados foi descendo a pendente do
coxilhão, para uma cruzada de ventura, em viagem de alegria”(S,1623,30).
“Blau Nunes também [...] foi baixando a encosta do cerro, com o coração aliviado e
retinindo como si dentro dele cantasse o passarinho verde” (S,163,35).
No último capítulo, Simões Lopes Neto, lança um olhar histórico
retrospectivo e mostra os possíveis projetos identitários para o futuro.
a) A visão do passado: Blau vê o interior do cerro como se fosse um “vidro
transparente” e enxerga “o que lá dentro se passava” (S,163,13), ao enfrentar as
sete provas com os seus respectivos personagens. Trata-se de uma memória do
passado.
b) As metamorfoses do novo: Na descrição da lenda há dois personagens
que passam por sucessivas mudanças- o santão e a Teiniaguá. Primeiro, Simões
Lopes lembra as três mudanças de Teiniaguá: 1ª) De “fada velha” ou “fada moura,
em teiniaguá” (S,143,30); 2ª) De “teiniaguá na princesa moura” (S,147,1); 3ª) De
“moura numa tapuia formosa” (S,163,20). Nas passagens de um estado para outro,
não se constata um personagem puro, mas híbrido como mostraremos abaixo. O
resultado de todas as transformações é uma “tapuia formosa”, uma mestiça de
índio, isto é, uma nova etnia.
Depois, descreve as mudanças do sacristão: 1ª) De “vulto de face branca e
tristonha” junto à Salamanca do cerro - o santão - (S, cap. I, 142) “para à figura
de sacristão de S. Tomé” (S, cap. III, 145); 2ª) De sacristão para santão, “o vulto
de face branca e tristonha” (S, cap. VII, 158) para virar um “guasca
desempenado” (S, cap. X, 163). Aqui, também o resultado de todas as
metamorfoses através das quais passou o santão é um gaúcho forte, desenvolto e
valente. Tanto Teiniaguá como o santão/sacristão têm suas origens européias. No
entanto, ambos após passarem por várias metamorfoses, inculturam-se e assumem
uma nova identidade formando o tipo gaúcho, que é um conjunto cultural de
etnias, religiões e éticas.
c) Uma nova identidade: O sacristão e a Teiniaguá, são duas personagens
“vindas do tempo antigo e de lugar distante”, conforme a nota do próprio Simões
Lopes Neto, o tempo é por volta de “1650, em que formou-se a lenda” e o lugar é
38
a região das Missões sobre o rio Uruguai (cf. S, 165, nota 11). Os dois unem-se e
formam um “par novo, de mãos dadas como namorados”, abandonam o exílio do
cerro do Jarau e partem para “uma cruzada de ventura, em viagem de alegria, a
caminho do repouso” (S, 163,30). O novo par começa uma nova travessia, pois a
identidade construída é dinâmica, daí uma dupla afirmação de movimento:
cruzada e viagem.
d) E agora, em paz: Blau deixa, também, o cerro e “estava certo de que era
pobre como dantes”, isto é, após passar pelas diversas provas e travessias,
renunciara todas as formas de enriquecimento. Não assumiu nenhum tipo de
projeto que lhe foi apresentado: nem o da cristandade colonial e nem o da estância
tradicional, mas, continua fiel aos costumes, pois “comeria em paz o seu
churrasco; e em paz o seu chimarrão, em paz a sua sesta, em paz a sua vida!”(S,
163,36). Por quatro vezes repete-se “em paz”, para afirmar a reconciliação que
Blau alcançara, após realizar a travessia no tempo e no espaço pampeanos. “Em
paz”, com a nova identidade, já realizada no “par novo”: o sacristão e Teiniaguá.
“Em paz”, com o novo projeto de identidade híbrida. “Em paz”, com a
aprendizagem de ser gaúcho.
Há em Simões Lopes Neto uma valorização dos símbolos. Ora, a
linguagem mítica é a mais apropriada para expressar o símbolo. De fato, Daniel
Granada ao escrever sobre as tradições latino-americanas oscila entre a ficção e o
ensaio erudito. Decididamente,
“a opção de Simões será aderir empaticamente ao mito desdenhando as explicações
realistas ou eruditas (algumas remetidas a notas). Tal adesão ao mito, para ser verossímil,
precisava ser expressa por uma prosa poética. Por isso, ele se demora a explorar alguns
motivos, apenas mencionados por Granada” (Chiappini, 1988,198).
Na última parte da lenda, a aprendizagem de Blau passa pelas provas e
pelo confronto de projetos. Em meio a todas essas metamorfoses, ele aprende que
a identidade do gaúcho é um projeto inclusivo de diversas etnias, religiões,
culturas e éticas.
De fato, só é possível compreender a Salamanca do Jarau, a partir deste
princípio hermenêutico simbólico. O autor trabalha com os símbolos dentro de um
horizonte mitológico. Compreendendo-se os símbolos, pode-se compreender a
39
linguagem simoniana; daí o motivo de terem sido organizadas as partes da lenda,
segundo os símbolos que a compõem.
Uma leitura que se ativesse a excluir um ou outro símbolo ou personagem
correria o risco de ser uma interpretação maniqueísta. Deus ou o Diabo, ou
Anahangá-pitã e Tupã no combate cotidiano dos personagens. São mitos,
superstições, símbolos que unificam os opostos. Mais ainda, há uma luta entre “as
forças de um mundo demoníaco (feminino, tenebroso, mas também luminoso,
reprimido, inconsciente) e as forças diurnas (luminosas, mas também tenebrosas)
de um mundo masculino, divino, dominante e consciente” (id. p. 224).
Visto o itinerário da lenda e sua estrutura temática, aprofunda-se, agora a
epistemologia da caverna, para compreender a relação entre este arquétipo mítico
da tradição cultural ocidental com a Salamanca do Jarau.
40
2 - DA CAVERNA PLATÔNICA À CAVERNA PAMPEANA
O símbolo da caverna tem uma epistemologia implícita que obedece a uma
lógica simbólica especulativa. A caverna é um símbolo que ensina a aprender
segundo o mito e a linguagem figurada. Cabe dizer, inicialmente, o que se entende
por epistemologia neste contexto. A epistemologia (do grego epistéme, ciência,
conhecimento + lógos, palavra, discurso) em geral, refere-se à teoria do
conhecimento e, em particular, ao conhecimento científico (métodos e objetos).
Ela trata de como se constrói o conhecimento, ou seja, de como se aprende. Há
uma tendência, hoje, de relacionar epistemologia e aprendizagem, e o processo de
evolução no conhecimento. Assim, é que “as formas do conhecimento, as
linguagens, as culturas, as idéias, teorias e modos de percepção formam parte de
processos evolutivos, cujos padrões podem ser estudados tanto a partir das
ciências naturais, quanto das humanas e sociais” (Assmann, 1998a, 153). Aqui,
entende-se epistemologia, enquanto processo de aprendizagem que se dá através
do desenvolvimento das culturas. A caverna é um arquétipo epistêmico que
mostra como se opera a aprendizagem nas culturas através de lendas ou mitos. A
caverna simoniana constitui-se, também, como se verá abaixo, num símbolo da
aprendizagem. Antes da análise, propriamente dita, da lenda simoniana, eis o
contexto hermenêutico da mesma e o arquétipo da caverna.
Dispõe-se de diversas hermenêuticas da Salamanca do Jarau. Segundo
Luís Borges, existem fundamentalmente 3 interpretações que são as seguintes:
a) Leitura psico-moral - A interpretação de Flávio Loureiro Chaves,
“considera que Simões Lopes Neto possui uma concepção pessoal de antigos
temas míticos que podem elucidar o presente”. Chaves afirma que Simões Lopes
Neto aproveitou a tradição oral rio-grandense e as crendices de fronteira,
relacionando-as com as fontes eruditas tais como, Granada e Teschauer,
resultando disto uma criação literária e estilística original. Sendo esta fundada “na
nova ordem que o texto assume, proveniente de uma interpretação pessoal das
tradições existentes” (Borges, 2002, 3-5).
41
Temos, afirma Chaves, em Simões Lopes Neto o ordenamento da “história
de Blau em três níveis, intencionalmente encadeados e confundidos no resultado
final: o folclórico, o psicológico e o mítico” (Chaves, 1982, 85). Disto decorre
que, “o verdadeiro tema simoniano está ancorado numa crise psicológica, a crise
do indivíduo que intui a totalidade, mas a reconhece inacessível” (id. p. 94). Por
isso, “o foco da narrativa está localizado na revelação psicológica da personagem”
(id. p.95), e embora se mantenha “estruturalmente a morfologia do itinerário
heróico, a „aventura‟ se desloca do plano mítico para o psicológico” (id. p. 99).
A leitura sob o ponto de vista moral da lenda mostra, segundo Chaves, que
“a apropriação do mito, por via de sua inclusão na estrutura narrativa, vem a ser
também sua degradação sob uma perspectiva essencialmente problemática - a da
moral cristã, à qual se acrescenta o preconceito machista duma sociedade
semifeudal e latifundiário. Daí por que a ética subjacente ao texto é toda ela
fortemente punitiva, encarando a ultrapassagem dos limites já estabelecidos pela
ordenação social como “desordem”, “desmedida”, “pecado” (id. p. 95).
b) Leitura crítica - Lígia Chiappini identifica a origem da lenda de
proveniência mouro-ibérica. Daí, sua leitura crítica, na medida em que esse
pressuposto “tem sido usado como argumento para glorificação do colonizador
contra os mitos pagãos, fazendo também apologia do masculino e do racional”
(Borges, 2002,5). Chiappini critica a leitura que “insiste na hegemonia da moral
cristã, dando um peso excessivo ao final, como se o desenlace tivesse o poder
instantâneo de apagar o desenvolvimento da narrativa”. A originalidade da versão
simoniana em relação às outras fontes “é a transformação da teiniaguá em Moura
Encantada (tema que na tradição portuguesa tem a ver com as ninfas e sereias) e a
inclusão da tentadora auto-oferenda dentre os prazeres e poderes que desvenda
para o sacristão” (Chiappini, 1988,225). Uma leitura que supervaloriza o final,
reitera Chiappini, não é capaz de se deter na caracterização direta ou indireta da
Teiniaguá que é diferente conforme o ponto de vista de quem a ela se refere.
c) Leitura feminista - Hilda Simões Lopes entende que o poder feminino
antes de representar a queda, é libertador na lenda da Salamanca do Jarau. O
sentido mais profundo da lenda está na busca do eu humano (masculino/feminino)
42
que se encontra na inteireza da mulher. Para a autora, parece, à primeira vista, que
a mulher representa, na literatura simoniana, uma desgraça. Ela, contudo o
contesta este tipo de leitura, pois “compreende que só a inteireza da condição
feminina e não sua representação como pecado e tentação, é capaz de recriar o
sonho não como ilusão, mas como o tesouro encantado da furna interior”(Borges,
2002,6).
Percebe-se que as três leituras não são excludentes, antes são
complementares: A leitura psico-moral aborda as relações dos personagens no
contexto sócio-cultural da lenda; a leitura crítica mostra a dialética do poder na
legitimação da assimetria sócio-política entre colônia-colonizador; e a leitura
feminista aponta o poder do feminino como força libertadora da ideologia do
machismo gauchesco ou do estigma de “causa do pecado”, veiculado pela tradição
judaíco-cristã (cf. Borges, 2002,6).
Face à estas leituras propõe-se, aqui, uma hermenêutica epistemológica da
lenda, isto é, parte-se, em primeiro lugar, do mito da caverna platônica num
movimento de ascensão ao mesmo tempo cognitivo e ético; depois, apresenta-se,
sinteticamente, a formação do arquétipo da caverna nas
culturas e,
especificamente, a origem da tradição da caverna da Salamanca do Jarau; enfim,
analisa-se o itinerário de Blau Nunes na Salamanca do Jarau, como uma negação
do princípio ético-cognitivo do herói ocidental - cf. item 2.3; depois, mostra-se
uma oposição ao projeto colonial pela resistência encarnada por Teiniaguá. Esta
considerada fora da sociedade é, no entanto, a que vai ser fator de desequilíbrio da
cristandade colonial, e apontar um novo princípio ético-cognitivo, baseado na
“soberania do amor”, sem no entanto delinear que tipo de ética nova seria esta.
2.1 - A caverna platônica ou a epistemologia ético-cognitiva
O alegoria da caverna platônica permite muitas hermenêuticas. Segundo
H. Assmann, há uma “pesada herança platônica” que é preciso criticar. Ele
apresenta alguns pressupostos que se encontram em Platão, sob o ponto de vista
estético, e que se pode aplicar o mesmo princípio para sua epistemologia: A
43
experiência do verdadeiro vem ao final, sendo que a vida cotidiana só é válida, se
alcançar este “depois”; o acesso ao mundo das idéias obedece a uma ordem exata,
cumprida por degraus; a verdade se alcança mediante uma ultrapassagem do
mundo e da vida; o reino da verdade é o término, isento da experiência cotidiana;
a condição básica para chegar à verdade é o rechaço do sensível e do corpo
(Assmann, 1998b, 239). A crítica de Assmann
é procedente, pois a leitura
tradicional de viés neoplatônico legitimou uma leitura dualista, em que a
metafísica submete o mundo sensível ao mundo das idéias. Mais ainda, há um
único movimento ascendente, - a escada, segundo Assmann - de baixo para cima,
e, praticamente, olvida-se o movimento descendente. Ora, manter a dialética
ascendente-descendente é o segredo metodológico platônico. Se há o movimento
para cima este implica o movimento descentente. Assim, guarda-se a unidade dos
opostos em toda filosofia platônica. Se ocorre, apenas, o movimento para cima,
tem-se uma filosofia que elimina o contingente e torna-se um finalismo metafísico
de sentido único. De fato, o problema acima referido insere-se dentro de duas
abordagens: A leitura tradicional ou exotérica - Platão ensina para fora de seu
grupo, aos principiantes - feita durante quase dois mil anos desde os
neoplatônicos, passando pela escolástica e culminando na modernidade em
Schleiermacher, está baseada unicamente nos escritos platônicos. A doutrina
exotérica é dualista, os pólos opostos nunca se conciliam: de um lado, há o mundo
material e, de outro, o espiritual das idéias que se opõem como contrários e
excludentes. Aqui, matéria e espírito não se unificam, antes o espírito se opõe à
matéria, as idéias às coisas. Temos um dualismo duro, opostos excluindo-se,
enfim, uma dialética sem síntese. Platão é, aqui, tratado como se fosse um novo
sofista, que pega os opostos sem os unificar, deixando-os num jogo de má
infinitude irredutível, ao momento de conciliação (cf. Cirne-Lima, 1997, 39-40).
No entanto, a nova leitura, feita a partir do século XX, é a da Escola de
Tübingen que parte dos não-escritos, ou leitura esotérica - é restrita aos iniciados,
apenas oral, destinada ao um grupo restrito de discípulos (Reale, 1997) . Nesta
abordagem, há em Platão perfeita conciliação dos opostos, na síntese inclusiva dos
mesmos, realizando-se o jogo ascendente-descendente entre realidade-idealidade.
44
Considerando essa crítica e também o ponto de vista que se deseja
desenvolver, isto é, a dialética inclusiva, que garante os dois movimentos
ascendente-descendente, para o objetivo deste trabalho importam dois aspectos,
como acima foi afirmado: o espistemológico e o ético (cf. Franzkowiak Martins,
2002).
Veja-se antes, em grandes linhas, a estrutura da alegoria da caverna que é
esta (cf. Platão, 1996, 39-43) :
a) Apresentação da alegoria (514a-517b): Sócrates convida Glauco a
imaginar o seguinte- alguns prisioneiros estão presos no fundo de uma caverna,
completamente imobilizados; na frente de si, enxergam algumas sombras
passarem sobre a parede da caverna; liberta-se um dos prisioneiros e ele começa a
ver os objetos; sai da caverna e depois volta.
b) O sentido da alegoria (517b-519c): a caverna representa o mundo dos
sentidos, o dia representa o mundo inteligível; existem dois níveis de realidade: o
inferior de sombras e o superior de realidades verdadeiras.
No contexto da República, a alegoria insere-se no projeto de construção de
uma cidade ideal. O filósofo passa por diversas etapas para elevar-se ao
conhecimento do Bem. Porém, depois ele volta e desce novamente à caverna para
reconhecer os verdadeiros modelos das imagens e, assim, criar o modelo da
cidade perfeita, conforme as idéias verdadeiras.
c) As ciências necessárias à formação do filósofo (521c-535a): A educação
do filósofo consiste fundamentalmente no ato de voltar a alma do mundo sensível
para a verdade. É só a matemática que vincula o mundo inteligível através do
mundo sensível Ora, isso aconteceu pela aprendizagem da aritmética, a geometria,
a astronomia e a ciência da harmonia.
Dessa forma, a matemática aplicada nas diversas disciplinas é uma
introdução para o exercício da dialética em que se realiza a verdadeira
aprendizagem das idéias. A dialética permite uma visão do todo que reúne o
conjunto dos saberes parciais.
d) O processo pedagógico e a escolha dos filósofos (535 a - 541b): Aqui,
Platão expõe a aprendizagem das ciências (Matemática, Astronomia etc).
45
Enumera as qualidades físicas, morais e as disposições intelectuais dos filósofos.
Aqueles melhores serão introduzidos na prática da dialética e assim possam
alcançar o bem.
Nesta breve síntese do mito da caverna, percebe-se que está subjacente o
problema epistemológico que se expressa, conforme o gráfico abaixo (Platão,
1996, 35). Há um movimento de diferentes graus do mundo sensível para o
mundo inteligível, sem haver ruptura, mas um processo dialético unitivo.
Mundo sensível
A
D
Mundo inteligível
B
E
C
|------------|-------------|------------------------|-------------------------------|
imagens
objetos reais
objetos de
imaginação
objetos matemáticos
objetos
de crença
objetos da
inteligência pensante
objeto da opinião
idéias
objetos de compreensão
ou da visão da inteligência
objeto da ciência
Trata-se do movimento de ascensão gradual da alma, partindo do sensível
até ao mundo inteligível. Essa elevação é uma contemplação simultânea dos
objetos, das outras pessoas e de si mesmo. Num primeiro momento, há o
movimento de ascensão que implica, depois, no movimento descendente que é o
retorno à caverna. O prisioneiro que se libertou volta para tirar os companheiros
da situação de cegueira em que se encontram. É uma dialética descendente em que
há uma relação entre os sujeitos. Essa relação é um processo de tomada de
consciência ética intersubjetiva. Os prisioneiros conhecem a aparência em que
estão vivendo por meio da responsabilidade daquele que voltou. Ora, esta
consciência ética é o resultado do encontro entre os prisioneiros. Daí o
desenvolvimento da ascensão através da relação com o outro - dimensão ética que produz o novo conhecimento - dimensão espistemológica.
O pressuposto epistemológico que é tematizado na alegoria da caverna, é
também ético. A distinção entre aparência e realidade, entre erro e verdade leva
para o caminho da busca da verdade, através do encontro com o outro. Tal
encontro aconteceu no ato de retorno à caverna, enquanto uma atitude ética de
46
libertar os que ainda permaneciam no nível da aparência. Então, a dialética
ascendente-descendente une num único ato conhecimento e ética. A ascensão
cognitiva é, simultaneamente, compromisso ético descendente de libertar o outro
da prisão da aparência. Portanto, o movimento do conhecimento ascendente da
alma carrega na sua dimensão imanente o movimento ético descendente, porque
implica relações intersubjetivas em relação aos outros prisioneiros no interior da
caverna. Assim, a ética é necessária no processo do conhecimento, porque as
relações intersubjetivas possibilitam a ascensão no conhecimento dos prisioneiros
(cf. Sardi, 1995, 100s).
A finalidade de apresentar a alegoria da caverna de Platão foi introduzir a
matriz epistemológico-ética, para fazer a hermenêutica da Salamanca do Jarau.
Esta leitura se justifica, pois como se verá abaixo, há no texto simoniano uma
experiência de aprendizagem simbólica, como foi apresentado acima - cap. 1 - e
ao mesmo tempo, há uma negação da ética do herói ocidental, conforme é
elaborada na teoria de Joseph Campbell. Por isso, Blau realiza uma entradaaprendizagem na caverna da própria identidade - autoconhecimento - para retornar
à caverna pampeana desafiado a construir uma nova ética. Antes de analisar a
caverna da lenda simoniana, mostra-se como o arquétipo da caverna surge nas
culturas em geral e, especificamente, na “salamanca” espanhola.
2.2 - O arquétipo da caverna e as “salamancas” da história
As cavernas, a exemplo, da alegoria platônica são na verdade um arquétipo
presente em todas as culturas. Assim é que “as cavernas habitadas por seres
fantásticos não têm pátria originária: são comuns a todos os povos em seu estado
de infância” (Granada, 1896, 86). As cavernas, desde os tempos mais remotos,
tinham uma função específica junto aos povos primitivos: serviram para localizar
as maravilhas imaginadas e descritas pelos mitos originários. Ora, na medida em
que as sociedades foram se transformando, também essas criações foram
migrando de espaço, ou seja, passaram das cavernas para as ruínas de castelos, de
mosteiros e casas antigas. Se as sociedades mudam, no entanto, as concepções,
47
das formas de crenças, mitos e criações mágicas “do modelo primitivo
permanecem intactas ou quase íntegras” (Granada, 1896, 87). Por exemplo, com o
advento do cristianismo, procura-se cristianizar muitas tradições ditas pagãs,
porém, mesmo assim sobrevivem ainda muitas narrações míticas pagãs.
a) Semelhanças entre as cavernas: Existem características semelhantes
entre as cavernas desde o oriente até as da Grécia e da Europa que depois são
levadas para o rio da Prata pelos espanhóis na América Latina. “Toda caverna
encantada é semelhante no fundo: todas respondem a uma mesma falsa idéia do
humano espírito insipiente” (Granada, 1896,89).
b) Condições exigidas para entrar numa salamanca: O acesso ao interior
das salamancas, em princípio é proibido, como acontece nos templos ou escolas
mágicas do Egito e Ásia. No entanto, somente o que tem muita coragem é capaz
de superar as provas de purificação para preparar-se, a fim de entrar na salamanca.
Ao visitante da caverna exigem-se certas qualidades: constância e valor estóico
diante dos perigos trevas, luz, personagens vestidos de branco, demônios de
diversas formas monstruosas, vozes, gemidos, chamas, dragões, serpentes aladas
etc.
c) As cavernas encantadas: Da Espanha para a América Latina. Qual é a
origem da caverna denominada de salamanca? Na Espanha existiam escolas de
magia em três cidades: Salamanca, Córdoba e Toledo. Foram os mouros habitantes provenientes do norte da África (Mauritânia), não cristãos - que
introduziram na península ibérica a arte da magia. Ora, a caverna de Salamanca
foi, segundo muitos historiadores, um local onde se desenvolveu especialmente
aquela arte. “A fama das maravilhas que era testemunha o que visitava a
misteriosa caverna de Salamanca, espalhou-se por toda a Europa, passou os mares
do ocidente, pela boca dos colonizadores do Novo Mundo, cujas cavernas
encheram de encantos e adivinhos. A caverna de Salamanca produziu assim na
América um grande número de salamancas” (Granada, 1896, 105).
No entanto, a origem das cavernas encantadas, tal como a de Salmanca,
não pode ser atribuída imediatamente à conquista feita pelos árabes da Espanha,
48
embora, eles sejam a causa mais próxima da continuidade desta tradição, segundo
os seus costumes característicos.
Em todo o Rio da Prata e no Rio Grande do Sul/Brasil as cavernas
encantadas receberam o nome de salamancas. São cavernas profundas e quase
impenetráveis, corre água, infundem terror e espanto aos que pretendem penetrar
no seu interior. Porém, aquele que consegue entrar, aprende muitas artes e
habilidades que lhe tornarão a vida mais fácil. “Daqui saíram adivinhos, homens
de fortuna, guerreiros sempre vencedores, políticos eminentes, músicos e poetas
sublimes, químicos e mecânicos maravilhosos, mulheres encantadas” (Granada,
1896, 93). Enfim, na Salamanca se satisfazem todos os desejos e aspirações, ou
seja, o que entra, pede o que quiser e lhe será concedido.
d) A salamanca de Jarau no Rio Grande do Sul é uma das mais lembradas.
Todos os proprietários dos campos próximos dos cerros de Jarau fizeram fortuna,
tendo como causa as consultas que faziam ao oráculo da salamanca. Aqui,
também no interior da salamanca existem salas maravilhosas que, para serem
alcançadas é preciso passar por diversas provas.
Dois exemplos: 1) Conta-se que na guerra dos Farrapos (1835-1845) do
RS o caudilho e general Bento Manuel Ribeiro obteve sucesso, riqueza e muita
sorte porque consultava a Salamanca do Jarau, situada ao norte do rio Quaraí,
onde passa a linha divisória entre o Uruguai e o Brasil. Simões Lopes Neto, numa
nota em sua lenda sobre a Salamanca do Jarau, assim confirma este exemplo:
“Salamanca - furna encantada; provém a denominação da cidade de Salamanca,
na Espanha, onde existia, diz-se, uma célebre escola de magia, no tempo dos
Mouros. A seguir a tradição local, o célebre caudilho Bento Manuel deveu a sua
sorte guerreira, política e de fortuna ao conchavo que ajustou na Salamanca do
Jarau. Antes dele, alguns, mas depois, nenhum outro aí obteve mais nada, desde “que o cerro pegou fogo” - quando acabou o encantamento” (Lopes Neto, 1988,
165).
2) Certo dia, um sujeito conduzia o gado, e eis que sobreveio uma
tormenta. Conduzido pelo cavalo foi parar junto ao cerro do Jarau, onde se
deparou com um homem que lhe disse: “Eu sou cristão, da cidade de Santo Tomé
49
(antigas missões jesuíticas), e aqui me trouxeram e estou encantado”. Este
convidou o vaqueiro a entrar na caverna prometendo-lhe mostrar o que estava
escondido no seio da salamanca que lhe servia de albergue. O vaqueiro entrou e
viu as pedras preciosas e o ouro. Ao despedir-se, o vaqueiro, recebeu uma onça,
que, segundo o que morava na caverna, nunca haveria de acabar. Assim,
aconteceu, muitas vezes tendo usado a onça, ela não se gastava, pelo contrário
permanecia no seu bolso. Porém, certo dia ficou com temor, que foi levado a tirar
a onça, “preferindo viver pobremente do fruto do trabalho” (Granada, 1896, 94). É
importante, notar que este segundo episódio será apropriado e interpretado por
Simões Lopes Neto na sua lenda da salmanca do Jarau.
e) A Salamanca do Jarau e a Teiniaguá: Cabe observar que os fenômenos
encontrados no interior das salamancas tais como, os tesouros, fogo e estrondos,
ou ainda, os cerros que se movem, as lagoas que se agitam não são algo exclusivo
do Rio da Prata, Paraguai e Brasil. Por exemplo, o diabo, serpentes aladas,
carbúnculos, Anhangá-pitã, Teiniaguá, “tudo é o mesmo, tudo tem uma mesma
causa ou origem e representa uma mesma coisa frente a imaginação do vulgo e do
homem primitivo: a mãe do ouro, a força da terra, o cerro ou a montanha
encantados que tremem, iluminam-se, relampejam e trovejam” (Granada, 1896,
124). É verdade que são fenômenos semelhantes em toda parte, no entanto,
quando chegaram os colonizadores espanhóis, as crenças e tradições do velho
mundo misturaram-se como os mitos indígenas autóctones.
Como se originou a tradição da Salamanca do Jarau onde morava a
Teiniaguá? As missões jesuíticas do Paraná e Uruguai foram fundadas no século
XVI na antiga província de Guaíra, as quais depois foram destruídas pelos
bandeirantes de São Paulo. Os índios que conseguiram emigrar, fundaram a
redução de São Tomé junto ao rio Uruguai (província argentina de Corrientes).
Um dia o sacristão da igreja de Santo Tomé viu as águas da lagoa fervendo.
Aproximou-se e viu sair das águas uma espécie de lagartixa, que tinha uma cabeça
brilhante ofuscando o olhar. O sacristão prendeu o animal, colocou-o numa
guampa com água e levou-o para casa.
50
O nome de Teiniaguá: Conta-se que os espanhóis também conheciam este
animal que tinha na cabeça uma pedra preciosa, porém, chamavam-no de
carbúnculo. Os guaranis denominavam-no de Anhangá-pitã, ou seja, diabo de pele
vermelha, pelo aspecto ígneo que apresentava seu corpo e sua cabeça. Granada
conclui que “o anhangá-pitã ou carbúnculo que Barco Centenero teve a fortuna de
ver repetidas vezes nas comarcas rio-platenses, não é outra coisa, nem menos real
e verdadeira, que a teiniaguá da Salamanca do Jarau que veio por-se na guampa
do sacristão da igreja de Santo Tomé” (Granada, 1896, 127-128).
A Teiniaguá-mulher e o sacristão: O sacristão saiu para buscar alimento à
Teiniaguá. Ao retornar ao seu quarto, eis que se depara com uma belíssima mulher
e lhe lança um desafio: “Se queres ouro e prata, diamantes e rubis, siga-me. Eu
entrarei na guampa em que tu me pusestes, e me levarás em tua mão para onde eu
te indicar: lá tu terás riquíssimos tesouros que todo caminhante inveja”. O
sacristão ficou perplexo com a tentação encantadora e não respondeu
imediatamente ao convite. Os padres da Companhia de Jesus, encarregados da
redução de São Tomé, notaram que o sacristão tornara-se tíbio na fé e negligente
no cumprimento dos deveres. Começaram, então, a observá-lo de perto.
Descobriram tudo o que se passava com a Teiniaguá, que se transformava em
impudica mulher feiticeira. Depois, ela desaparece, porém, o sacristão que tinha
pecado muitas vezes, foi preso, julgado e condenado, pronto para ser castigado.
De repente, ouve-se um estrondo em São Tomé. Armou-se um tumulto na cidade.
Diante disso os padres recusaram a castigá-lo. Ele ganhou, assim, a liberdade.
Onde a terra se abriu por causa do estrondo, formou-se um riacho, por onde
passou Teiniaguá, para prestar socorro ao sacristão.
De São Tomé ao cerro do Jarau: Então, Teiniaguá junto com o sacristão,
atravessaram a nado o rio Uruguai; pararam alguns dias em São Borja e logo
seguiram até os cerros do Jarau, num dos quais, está localizada a salamanca. Desta
caverna, certa noite, saiu um cristão natural de São Tomé, ao encontro de um
vaqueiro e lhe “deu uma onça com a qual, por mais que gastasse, nunca lhe
faltaria dinheiro”. “Já faz cerca de duzentos anos que a Teiniaguá trancou no cerro
do Jarau o sacristão de São Tomé, bom e são, porém arrependido e triste, habita os
51
imensos palácios maravilhosos da Salamanca do Jarau: rodeado de riquezas, as
contempla impassível, sem desfrutar das satisfações e regalos que, devidamente
aplicadas, proporcionam facilidades no mundo”(Granada, 1896, 130).
Vê-se que Granada faz a exposição dos temas em capítulos separados,
enquanto Simões Lopes Neto os reúne numa única lenda. Observa-se acima que
Granada expõe nos capítulos VIII (p. 85-96) e IX (p. 97-115) o tema das
“Salamancas”. Aqui, ele descreve a crença nas cavernas encantadas,
especialmente na Espanha e no resto do mundo. A história dos “salamanqueiros” é
destacada, bem como a sua adaptação na América. O capítulo X é denominado
“Cerros encantados- fogo e ouro” (p. 116-130). O carbúnculo é apresentado, aqui,
como sendo parente de Teiniaguá e de Mboitatá. Estes tem a função de guardar os
cerros e os tesouros nele escondidos. Granada, nos capítulos XI- “Cerros
bravos”(p. 131-149), XII- “Enterros e urnas”(p. 150-172) e XIII- “Lagoas
bravas”(p.173s), descreve figuras mitológicas que eram relacionadas às Missões
(cf. Chiappini, 1988, 190).
Como Simões Lopes apropria-se desta tradição na lenda da Salamanca do
Jarau? Qual é a sua originalidade na reelaboração da tradição encontrada?
2.3 - A caverna simoniana ou aprendendo a dizer “não”
Na obra Reseña Histórico-Descriptiva de Antiguas y Modernas
Supersticiones del Río de la Plata de Daniel Granada, encontram-se, praticamente
todos os elementos e personagens descritos na lenda de Simões Lopes (cf.
Granada 1896, 126-130). Não obstante, Simões Lopes em duas notas (6 e 9) no
final da lenda, ao invés de se reportar à Granada, cita o padre jesuíta alemão
Carlos Teschauer e a Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Ceará,
Fortaleza de 1911. Há, uma referência, explícita, aqui, da fonte donde Simões
Lopes serviu-se para elaborar a sua lenda. Augusto Meyer entende que houve uma
aproveitamento da “tradição rio-grandense da „salamanca do Cerro do Jarau‟,
crendice da fronteira, misturada, porém, a sugestões colhidas em fontes eruditas
52
(Granada, Teschauer), resultando numa obra de cunho pessoal (A Salamanca do
Jarau)” (id. 1957, 272).
No entanto, Hilda Simões Lopes (cf. Anais, 2001, 111-112), afirma que
antes de Granada e Teschauer, já em 1628, há um escrito de Pedro Ciruelo que
afirma existirem superstições e feitiçarias na catedral de Salamanca, na Espanha.
Se a obra de Daniel Granada (1896) é anterior a de Carlos Teschauer (1911), e se
este escreveu sobre a Salamanca em 1911, pode-se cogitar que Simões Lopes
Neto conheceu apenas a tradição mais recente e assim inspirado, tenha composto a
lenda, segundo a versão de Teschauer.
Mesmo assim, permanecem algumas indagações, tais como, será que
Simões Lopes serviu-se apenas da versão de Teschauer ou de ambas? Ele
conhecia a versão de Granada e cita apenas a de Teschauer, ou conhecia apenas a
versão de Teschauer? Existe quase um consenso, entre os simonianos, que “a
fonte básica é mesmo Daniel Granada, porque Teschauer se limita a resumi-lo,
quando não, a traduzi-lo ipsis litteris (Chiappini, 1988,190). Lígia Chiappini
sustentando esta tese estabelece um “estreito paralelismo dos textos de Granada e
Simões” com o objetivo de ressaltar a originalidade deste. Não é a intenção do
nosso estudo dirimir este problema, mas isso, fica aberta a pesquisa para uma
futura análise documental que comprove a origem da versão que influenciou de
forma determinante a composição simoniana. Aqui, o interesse é analisar como
Simões Lopes Neto se apropriou do material encontrado sobre as salamancas para
recriar no contexto pampeano a lenda gaúcha.
Uma primeira constatação que se há de fazer é a seguinte: A originalidade
simoniana é a ordem nova que ele confere a herança comum da lenda da
Teiniaguá inserindo-a na aventura de Blau Nunes (Meyer, 1960, 171-2). Além da
ordem nova, Simões Lopes problematiza o ethos ocidental e permite que se pense
um ethos pampeano. Daí, a epistemologia simoniana: Blau é capaz de dizer “não”
e Teiniaguá é um personagem híbrido que nega o modelo de mulher ocidental.
53
a) A teoria do herói ocidental e a desconstrução simoniana
No entender de Flávio L. Chaves, há uma dupla viagem na lenda: a
geográfica e a psicológica. Tratar-se-ia, portanto, de uma espécie de terapia em
que Blau vai tomando consciência de seu estado psicológico. Tem-se assim, na 1ª
parte, o início da viagem de Blau; na 2ª e 3ª partes, descreve-se a caverna; e na 4ª,
enfim, começa a viagem, de Blau no interior da caverna. Chaves interpreta a dupla
viagem inserindo-a na própria experiência existencial de Blau, segundo três
níveis: o folclórico (a lenda da Teiniaguá: imagem-arquétipo), o psicológico (a
viagem de Blau) e o mítico (o herói Blau). A aventura mitológica, segundo a
teoria
de
Joseph
Campbell
47
,
obedece
o
seguinte
esquema:
separação/iniciação/retorno.
Flávio Chaves aplica esta teoria, para analisar a Salmanca. O que ele
constata é que a 1ª etapa (separação) se cumpre, pois se tem o chamado à aventura
em que Blau se separa de seu chão à procura do boi barroso, passa o umbral da
entrada da caverna e entra numa zona desconhecida. Completa-se a separação,
porque Blau entra dentro de si, suspendendo os condicionamentos históricogeográficos.
A 2ª etapa (iniciação) passa pelo desafio das sete provas e a purificação do
eu. Obedecendo ao imperativo ético, - “Alma forte, coração sereno” - Blau supera
todas as provas e chega o momento do encontro com a deusa, ou seja, ele
defronta-se com a Teiniaguá maravilhosa. Esta lhe oferece sete escolhas em
retribuição às sete provas vencidas. No entanto, qual a surpresa: Blau recusa todas
as ofertas. A união mística entre o herói - Blau - e a deusa não se cumpre. Aqui,
acontece uma ruptura, pois Blau se rebela e não segue o esquema tradicional do
herói ocidental. Nesta recusa está a originalidade simoniana, pois ele rompe com a
teoria do herói e introduz um personagem que não segue o esquema vigente. Blau
não aceita o enriquecimento e permanece pobre. De fato, a figura do herói que
passa por provações e mesmo assim não triunfa, é o contraponto que mostra a
47
. Cf. CAMPBELL, Joseph. Le héros aux mille et un visages. Paris: Robert Laffont, 1978, p. 26.
In: CHAVES, 1982, p. 85s.
54
ambição do homem moderno em dominar a natureza pela razão e pela ciência.
Este é o modelo ocidental presente na filosofia de Francis Bacon e René
Descartes. Encontra-se, porém, em Blau, a desconstrução da figura do herói, pois,
Simões Lopes Neto realiza, consciente ou inconscientemente, a crítica das
“feridas geradas por esse projeto triunfal do Ocidente” (Dieguez e Stam, 2002, 2223).Por que não ocorre o encontro entre Blau e Teiniaguá? Segundo Chaves, isto
se deve a duas causas: a moral católica, na versão da cristandade colonial e a
ideologia machista.
b) A versão da mulher como símbolo do mal ou a submissão colonialista
Tudo começa, na Espanha/Salamanca, com o condão mágico que estava no
regaço de uma fada velha. Anhangá-pitã - o diabo - ao encontrar-se com a fada
moura “demudou-a em teiniaguá” e implantou na cabeça da lagartixa uma pedra
reluzente (S, 143,29-30). Teiniaguá aparece na missão jesuítica de São Tomé.
Aqui, ela é capturada pelo sacristão. Uma versão entende, unilateralmente, que
este é submetido por ela que o perverte e o faz abjurar a fé cristã (S, parte III,
146). Eis, segundo Chaves, as características da mesma, a partir da fala do vulto
ou do santão:
1) Mulher/bicho imundo, porque é a causa da tentação e do erro. Ela é a imagem
do abismo e da desordem; tem a conotação de falsidade, traição e feitiço.
2) Mulher/demônio, porque é associada ao Anhangá-pitã (Chaves, 1982, 92).
Há o desencontro entre a deusa - Teiniaguá - e o herói - Blau - por causa
da mulher tentação. Ocorre uma substituição da imagem-arquétipo (a mãe
universal) por uma variante da mulher que subverte e corrompe. Tem-se, aqui,
uma negação do mito, conforme Chaves, pois ocorre a passagem do mítico para o
histórico (tempo das reduções jesuíticas à margem do Rio Uruguai). O mito foi
relido à luz da tradição católica e da ideologia machista do regime latifundiário,
semifeudal da estância. A substituição da imagem-arquétipo opera a passagem do
mito para a história e daí a crise psicológica de Blau. Este intuiu a totalidade - a
mulher - porém, ela é inacessível. “Por isso, o texto não é propriamente uma
55
lenda; é um conto. Blau Nunes não é o herói; é uma personagem. E o que se narra,
na dupla viagem da Salamanca do Jarau, não é a conquista dos valores absolutos,
mas a situação-limite em que os valores justamente se relativizaram” (Chaves,
1982, 94).
A tese de Chaves é que o foco da narrativa é a revelação psicológica da
personagem. Por isso a apropriação do mito, através da inclusão na estrutura
narrativa, muda a ordem do mito. A causa desta mudança é “a moral cristã e o
preconceito machista” tendo uma ética punitiva subjacente ao texto que enquadra
o agir do personagem como desordem e pecado.
A terceira etapa da teoria de Campbell é o retorno, porém, não se realiza,
porque a ordem do mito foi rompida. O retorno no mito clássico é o momento em
que o herói harmoniza a ordem divina e humana. Aqui, não se dá a união entre a
esfera do sagrado e do mundo, uma vez que Blau no diálogo com Teiniaguá mulher/bicho imundo - e com o guardião do cerro não conquista os dois mundos.
Para Chaves a causa disto é a “ideologia católica/patriarcal/simoniana”. Blau, ao
retornar ao mundo humano, apenas recebe uma moeda de ouro mágica, porém,
esta não funciona como um elemento unitivo entre os dois mundos, antes se
constitui uma desgraça. Novamente, isto é causado pela maldição da Teiniaguá
que é o símbolo do mal. Assim, Blau não consegue a posse dos dois mundos,
devido á “tradição punitiva da moral católica” e mais do que isto ele não é mais
capaz de se situar na sociedade gaúcha, pois “já não tinha com quem pautear;
churrasqueava solito, e solito mateava, rodeado dos cachorros” (S, 162,13). Blau é
um personagem atravessado pelos conflitos. Ele volta ao cerro da Salamanca a fim
de purificar-se e devolver o talismã e voltar à sua primitiva “ordem”. Blau e o
sacristão estão no exílio do mundo humano, pois não podem gozar nada entre os
homens.
Há uma dupla viagem: a perseguição ao boi barroso fugitivo que faz Blau
ingressar na furna onde se encontra a Teiniaguá; e a busca de si mesmo nas
diversas etapas da lenda. O ponto de chegada desta dupla viagem é a destruição da
Salamanca e assim Blau volta a situação primeira: “E agora, estava certo de que
era pobre como dantes” (S, 163, 36).
56
O encantamento do sacristão terminou com a sua condenação “por ter
dado passo errado com bicho imundo”. Blau vive o conflito do arrependimento,
da culpa, da piedade e da remissão numa trama psicológica que culmina com a
destruição da Salamanca e a destruição do mito da Teiniaguá. Para Chaves há
uma deturpação do mito pela inclusão na história: “Assim acabou a Salamanca do
Cerro do Jarau, que aí durou duzentos anos, que tantos se contam desde o tempo
das Sete Missões, em que estas cousas principiaram” (S, 164, 1-3).
Há uma passagem do mítico para o psicológico e Blau retorna do mundo
heróico para o personagem vaqueano “pobre como dantes”. Aqui, conclui-se a
dupla viagem: “o percurso geográfico e a travessia psicológica em busca da
própria identidade” (Chaves, 1982, 99).
A tese de Chaves é de que, Simões Lopes leu a lenda da Teiniaguá a partir
do contexto social de seu tempo. Por isso ele subverte o mito originário, negando
a imagem-arquétipo da Mãe Universal, imagem da totalidade, que é, ao mesmo
tempo, símbolo de matriz e tumba, união do bem e do mal. No lugar daquela, cria
Teiniaguá que é a mulher/bicho imundo. Trata-se de criação simoniana que
condiciona a “visão de mundo” e situa o personagem na situação-limite da
história, “diante da crise de valores absolutos, outrora providos pelo mito, e que
agora têm de ser perquiridos na áspera trajetória do indivíduo em busca da própria
identidade” (Chaves, 1982, 99).
Na verdade, Simões Lopes mostra a instauração do drama em que Blau, o
gaúcho pobre, perdeu as habilidades essenciais e está diante de uma crise
econômica da sociedade gaúcha. A questão é se a lenda reflete, apenas, o contexto
sócio-econômico que provoca a crise psicológica de Blau, ou se a isto também
está ligado um conflito de interesses e projetos que se manifestam na crise de
identidade do gaúcho.
c) Aprender a identidade latino-americana ou a luta pelo reconhecimento
A luta pelo reconhecimento desta “nova gente” encontra em Teiniaguá o
símbolo da utopia, ou seja, a nova identidade. Ela oferece os “sete caminhos” das
57
“sete provas” e Blau sempre diz “não”. Este não consegue dizer o que deseja,
Teiniaguá, no entanto, permite a elaboração de dois projetos hermenêuticos,
segundo os interesses de cada leitura:
1) O projeto do estigma do mal, característico do modo de ver da cristandade
colonial é construído segundo J. Zanotelli pela fusão do Império Romano indoeuropeu com o cristianismo, a partir de 313, através de Constantino com Edito de
Milão. Depois, este projeto é levado e imposto para as colônias, o que causou a
destruição ou a submissão das outras culturas. Ora, a Igreja católica assume a
estrutura, as instituições e a burocracia do Império Romano. Esta fusão de
estruturas e ideologias constituirá o que se chama de Estado de Cristandade (cf.
Zanotelli, 1998, 85). Não se pode confundir, portanto, o cristianismo original e
seu projeto igualitário com o Estado de Cristandade/Civilização Ocidental e seu
projeto de cristandade colonial implantado na América Latina (id. p. 9). Ora, este
projeto se expressa na “sociedade machista, patriarcal e conservadora
privilegiando o protótipo masculino, sublimando em princípios e valores éticos
aqueles atribuídos da coragem pessoal, da valentia, da afirmação violenta de
masculinidade. Ao fazê-lo, estabeleceu uma unilateralidade ideológica que
procura excluir a mulher da esfera da ação, uma vez que ela é, de fato, encarada
como um objeto das relações de posse” (Chaves, 1982, 120).
Então, na cristandade colonial, “o mal estaria, no preconceito ou na
avalização de interesses de concepção colonial” (Galeno Lopes, 1999, p. 37). Na
história e nas narrativas europeu-ocidentais, costuma-se identificar o mal com a
parte que busca a mudança; assim esse projeto entende o personagem híbrido Teiniaguá -, apenas no seu aspecto maléfico. Não é capaz de reconhecer que ao
menos ele é contraditório, isto é, permite a existência da ambigüidade no
fenômeno da hibridação, logo portador de multidentidades e de uma leitura
plural.
2) O outro projeto interpreta Teiniaguá, como personagem fundador de
uma “nova gente”, ou seja, trata-se da hermenêutica do personagem híbrido que
será exposto abaixo - cf. item 4.2. Teiniaguá supera, enquanto personagem
híbrido, o maniqueísmo da luta entre o bem e o mal. A superação dá-se “pelo seu
58
amor de princesa moura, pelo seu amor de mulher, que vale mais que destino de
homem”...(S, 152, 6-7).
Apresentou-se uma epistemologia ético-cognitiva platônica, segundo a
nova interpretação da Escola de Tübingen. Esta abordagem supera uma visão
metafísica dualista e por conseguinte maniqueísta. Ora, esta nova hermenêutica
permite que se analise a “simbologia da caverna” como um arquétipo ocidental
cultural de uma forma igualmente dialética. Isto garante uma nova leitura da
Salamanca do Jarau que supera uma visão dualista, ou seja, Teiniaguá representa
o bem ou o mal? É causa de perdição ou redenção? Blau defronta-se com algo
profano ou sagrado? O seu comportamento é pecado ou virtude?
Jung entende que a caverna pode ter um duplo significado: “As cavernas
deixam entrever as regiões inconscientes, onde a nossa imaginação tem livre
curso. Além disso, as cavernas podem ser símbolo do ventre da Mãe Terra, onde
ocorrem transformações e renascimentos” (Jung, 2002, 285). Constata-se,
portanto, que o símbolo da caverna, representa, primeiramente, uma dimensão
interna, subjetiva do inconsciente da pessoa, e depois, o lado externo, objetivo da
realidade. Ora, o ato de entrar na caverna significa, ao mesmo tempo, penetrar no
inconsciente pessoal e social. Jung afirma que no “ventre” da caverna acontcem
“transformações e renascimentos”, ou seja, entrar na caverna expressa o desejo de
mudança quer seja pessoal ou social que implicará um nascer de novo: a
construção de uma nova identidade que se manifesta numa nova ética. Ou ainda,
entrar na caverna é aprender na dupla dimensão ético-cognitiva, tanto no sentido
platônico como na hermenêutica simoniana.
Esse significado jungiano do símbolo da caverna fortalece a interpretação
que se faz da lenda da Salamanca do Jarau. Pois, assim como a caverna platônica,
também a caverna pampeana de Simões Lopes tem uma dupla dimensão: Blau
aprende a entrar na caverna e nega o projeto da cristandade colonial reprodutor do
modelo de herói ocidental; ele aprende que há um outro projeto ético representado
por Teiniaguá e o sacristão. Blau entra na caverna pessoal e social, ou seja,
aprende que está se processando uma mudança - “transformações e
renascimentos”- que é a construção de uma nova identidade do gaúcho.
59
3 - IDENTIDADE: “O GAÚCHO QUE ERA DANTES, AINDA ERA AGORA”
O gaúcho que era no passado permanece sendo no presente, porém, algo
mudou na vida de o pampa. A identidade do gaúcho não se diluiu por completo,
mas ele vive uma nova situação: O gaúcho Blau está pobre. Esta é a constatação
mais evidente que a abertura da lenda apresenta ao leitor. Ora, esta situação
provoca uma crise de identidade. Por isso, seria a lenda da Salamanca do Jarau
uma tentativa do autor compreender a causa do empobrecimento do gaúcho? Esta
pergunta se justifica, de uma certa maneira, porque a 1ª parte aborda o problema
da pobreza do gaúcho, bem como a 4ª parte examina a aventura de Blau em
realizar as sete provas e assim tornar-se rico. Porém, no fim do percurso, chega à
dura constatação: “E agora, estava certo de que era pobre como dantes”(S,163,36).
Vê-se que o começo e o fim da lenda se ocupam do mesmo problema.
A frase síntese da 1ª parte é temporal: “o gaúcho que era dantes, ainda era
agora”. Este slogan é repetido três vezes indiretamente (S,141: linhas 22, 25 e 28)
para explicar três fatos diferentes, porém, é sempre a mesma afirmativa que faz
referência ao passado feliz e prolonga-se no presente infeliz.
3.1 - Hora do agouro: “um gaúcho pobre Blau”
Blau empobrece. Qual é a causa? O texto apresenta as seguintes
explicações:
a) A causa mítico-mágica: O encontro com o Caipora é o que origina o
empobrecimento: “No tranquito ia, cantando, e pensando na sua pobreza. No
atraso das suas cousas, desde o dia em que topou - cara a cara! - com o Caipora
num campestre da serra grande” (S,141,15-18). O Caipora é um ente proveniente
da mitologia tupi representado, conforme as regiões de diversas formas: uma
mulher unípede que anda aos saltos; uma criança de cabeça grande; um
caboclinho encantado; ou ainda, um homem agigantado, montado num porco-domato. Nos candoblés de caboclo ele corresponde à Oçãnhim dos nagôs. O Caipora
é um indivíduo que com sua presença provoca infelicidade e azar (Cascudo,1969,
60
344). Ora, Blau deparou-se com o Caipora, daí tornar-se um gaúcho azarado,
infeliz e sem sorte. Eis aí a causa do empobrecimento desde o dia em que se
encontrou com esta entidade mitológica.
b) A causa bélica: O gaúcho perdeu a força do combate. “Gaúcho valente
que era dantes, ainda era valente, agora; mas, quando cruzava o facão com
qualquer paisano, o ferro da sua mão ia mermando e o do contrário o lanhava...”
(S,141,22s). Antes, no século XIX, o gaúcho foi acostumado a mostrar sua
valentia guerreando nos embates internos (Guerra dos Farrapos) e externos
(Guerra do Paraguai). Agora, o pampa está reconciliado, já não se faz necessário o
perfil belicoso dantes. Por isso, perdeu-se o hábito do combate, embora o gaúcho
conserve a valentia, ele não sabe em que usá-la, daí a crise de identidade ética. O
que fazer com a valentia neste novo contexto?
c) A causa da habilidade de ofício: “Domador destorcido e parador, que,
por só pabulagem gostava de paletear, ainda era domador, agora; mas, quando
gineteava mais folheiro, às vezes, num redepente, era volteado...”(S,141,25s). O
gaúcho é um experto na habilidade de domar o cavalo. Esta é uma das
características do mesmo. Ele continua a ser domador, porém, perdeu muito desta
habilidade, pois já era volteado pelo ginete.
O ato de domar o cavalo é uma expressão de autonomia. Nos Artigos de fé
do gaúcho afirma-se: “Doma tu mesmo o teu bagual” (Lopes Neto, 1988, art. 2º,
123). Domar o cavalo é uma atividade de autonomia econômica, pois o gaúcho
usa o cavalo como meio de trabalho para cuidar da estância. Então, perder a
habilidade de domador é sintoma de enfraquecimento econômico.
d) As causas naturais: “De mão feliz para plantar, que lhe não chochava
semente nem muda de raiz se perdia, ainda era plantador, agora; mas, quando a
semeadura ia apontando da terra, dava a praga em toda, tanta, que benzedura não
vencia...; e o arvoredo do seu plantio crescia entecado e mal floria, e quando dava
fruta, era mixe e era azeda”(S,141,28s). Além de domador, o gaúcho era e é
plantador, porém, agora as sementes são destruídas pelas pragas; as árvores
frutíferas florescem mal e as frutas azedam. Vê-se que as pragas, o mau tempo, os
61
insetos, enfim as causas naturais acabam com a plantação. Ora, isto é mais um
agravante no empobrecimento do pampa.
Blau procura uma explicação porque “as cousas corriam-lhe mal”. Por que
ele perdeu as qualidades essenciais, isto é, a capacidade de combater, domar e
semear? Chegou a “hora do agouro” (S, 141, 21), intuiu ele. Esta hora é baseada
no vôo ou no canto das aves “à boquinha da noite”. São as agourentas corujas
grazinando no pampa o presságio de coisa má. O mau agouro manifesta-se na
perda das habilidades por causa da nova conjuntura sócio-econômica que envolve
o pampa. O texto reflete a inquietação na busca das causas que determinaram a
chegada desta “hora do agouro”.
Na verdade, todas as causas acima mencionadas assinalam a mudança que
está ocorrendo na estância no início do século XX. O peão vai aos poucos sendo
dispensado dos trabalhos tradicionais, porque o período das guerras de fronteira
terminaram, o cavalo é substituído pelo carro e as plantações são tratadas com
inseticidas. Enfim, a estância começa a ser mecanizada. Esta é a real causa da
situação de empobrecimento que Cyro Martins tratará em sua obra.
Pode-se dizer que Simões Lopes já antecipa a situação do gaúcho na
falência da estância tradicional, que Cyro Martins descreverá, posteriormente, em
sua “trilogia do gaúcho a pé “: Sem rumo (1937), Porteira Fechada (1944) e
Estrada Nova (1954). Martins nos anos quarenta descreve a mudança que ocorre
na campanha gaúcha. Trata-se da gênese do processo de marginalização do peão
da estância que se tornou o “gaúcho a pé”: “expressão simbólica do campeiro
despilchado do cavalo e da estância”. Este irá formar a “coroa de miséria” em
torno das cidades. Anda em busca de trabalho e de identidade: “E assim ia,
pelegueando a sorte, como sempre, sem rumo certo. Nenhuma das tentativas de
trabalho empreendidas até ao momento [...] iria decidir a sua vida”. Ele tem
saudade da vida da estância: “Gosto teria, isto sim - oh, vida macanuda! - se de
novo se visse na largueza da campanha, campeiro bem montado...”. Nega a
identidade atual: “Mas pra ser gaúcho como os de agora, não. E como diziam
sempre o Candinho, o Chico... que se encostavam todas as noitinhas no balcão do
62
boteco do seu Aparício para tomar canha, não havia mais lida campeira como a de
antigamente” (Martins, 1997,111).
Cyro Martins, em Porteira Fechada, cita, na abertura de seu romance a
seguinte passagem da Salamanca do Jarau: “E assim, por esse teor, as cousas
corriam-lhe mal; e pensando nelas o gaúcho pobre, Blau, de nome, ia, ao
tranquito, campeando, sem topar co‟o Boi barroso” (S, 141, 33-35). João Guedes
no romance acima citado, é o gaúcho honesto que foi expulso de seu pedaço de
terra, indo parar na periferia da cidade. Aqui ele será submetido ao
empobrecimento material e moral, sendo obrigado a roubar para poder sobreviver.
O autor faz referência a cenários e personagens ao redor de 1920, portanto,
próximo de Simões Lopes Neto, embora, as conseqüências que provocaram o
“gaúcho a pé” sejam posteriores. Martins em seu romance social desvia-se do neoromantismo de alguns regionalistas, para enfocar a temática da mudança no
pampa e da busca de identidade do gaúcho a pé. Neste sentido, há uma
aproximação entre os dois autores, embora os contextos sociais e as causas sejam
diferentes (Martins, 1992, 7-8).
Sandra Pesavento identifica com clareza o período em que ocorre a crise
econômica na região: “No período que se iniciou com a República e que se
estendeu até a eclosão da Primeira Guerra Mundial, a pecuária gaúcha se
encontrava estagnada, sem maior avanço de suas forças produtivas” (Pesavento,
1993,215). A crise era tanto na atividade da criação e na charqueada, como em
nível tecnológico, o que causava problemas no plano da produção e no mercado.
a) Em nível de criação, a atividade restringia-se ao tipo extensivo, em que
terras eram deixadas para preservação do pasto; não existiam cercas e havia muita
dificuldade em cuidar do rebanho; não se aplicavam princípios elementares de
higiene, por isso há muita perda de cabeças de gado pelas epidemias. Tudo isso
fez com que houvesse um medíocre crescimento do rebanho.
b) Em nível de mercado, a economia funcionava assim: O estancieiro
fornecia a matéria-prima para os charqueadores, que fixavam os preços do
produto. Porém estes e toda a economia rio-grandense era dependente “da
economia central de exportação brasileira e das necessidades geradas pelo
63
mercado interno”. Os lucros ficavam com as casas de venda do charque nos
mercados do centro que distribuíam as mercadorias para o norte e nordeste. “O
charqueador procurava ressarcir-se desta exploração que sofria às custas do
criador, oferecendo o preço mais baixo possível pelo gado” (Id. p. 215).
c) Em nível de equipamentos, “a estrutura produtora da charqueada, se
apresentava com grande descompasso tecnológico frente aos mais modernos
processos de conservação de carne utilizados já nesta época, no Prata, e que foram
os frigoríficos. Com métodos arcaicos, produzindo um artigo de baixa qualidade
num mercado altamente competitivo, a charqueada enfrentava inúmeros
problemas quanto à sua renda no mercado interno brasileiro” (Id. p. 215).
d) Os escravos e os custos de produção: O charque era destinado em
princípio à alimentação dos escravos e depois aos pobres dos centros urbanos. O
custo de produção, entretanto, tornava-se elevado, por exemplo, as taxas cobradas
pelo governo central sobre a importação do sal de Cádiz e o preço do frete via
ferroviária. Ora, tendo em vista que os consumidores tinham pouco poder
aquisitivo, não era possível aumentar o preço do charque.
e) A abolição e a concorrência: Segundo Mário O. Magalhães, “as
charqueadas, de modo crescente, foram perdendo importância: um pouco pela
Abolição, em 1888 (deixou de existir o escravo, que era o maior consumidor do
produto), um pouco pela própria Revolução Federalista, em l893 (desorganizou a
pecuária, na medida em que foi responsável pelo despovoamento dos campos), um
pouco pela concorrência externa (essa foi sempre intermitente com os saladeiros
platinos, mas se aguçou mais, havendo outros fatores de crise), um pouco - na
verdade, muito - pelo advento da carne frigorificada, a partir de 1917”
(Magalhães, 2002,78).
Foram apresentadas as diversas causas que desencadearam a crise sócioeconômico-cultural da região. Estas diferem daquelas apresentadas pelo texto da
lenda. No entanto, sabe-se que a intenção de Simões Lopes Neto não é fazer uma
análise sócio-econômica das causas da crise, mas apenas mostrar, sob o ponto de
vista literário, a situação do gaúcho Blau, confirmando assim, que um texto
sempre carrega a influência de seu tempo.
64
3.2 - A busca do boi barroso ou a infindável aprendizagem de ser gaúcho
No cap. I, da lenda da Salamanca do Jarau, Simões Lopes Neto repete
quatro verbos - olhando, campeando, cantando e pensando - no gerúndio “para
criar um clima de busca e espera” (Chiappini, 1988,191). A forma do verbo no
gerúndio expressa a ação acontecendo e se prolongando permanentemente para o
futuro. Ora, é este o sentido da ação de Blau que está começando a sua aventura
de buscar o boi barroso, isto é, de buscar a sua identidade, uma vez que ele se
encontra, como vimos acima, numa crise ético-existencial e econômica. A
repetição insistente, neste mesmo capítulo, da expressão o antes e o agora, mostra
a oposição temporal entre o passado e o presente, e a perda da identidade e ao
mesmo tempo a manutenção da mesma, porém, permanecendo a necessidade de
atualizá-la diante da nova situação em que se encontra o pampa.
Cyro Martins, no final de seu romance Estrada Nova, também descreve
um olhar esperançoso para o “gaúcho a pé”: “De repente, Janguta ergueu a
cabeça, encorajado por uma lembrança. Recordara-se de Ricardo, das suas
conversas, das idéias que tinha, sobretudo da sua esperança”. A busca da
superação do estado de penúria projetava-se para a vinda de libertadores: “Quando
viriam os homens dos quais ele falava com tanta crença? Aqueles homens que,
como dizia Ricardo, pensavam “na gente” e que um dia viriam pela “estrada
nova”, a galope, alvissareiros, cortando os campos verdes, acordando os pagos,
anunciando uma fartura de verão chuvoso, enriquecendo de alegria o coração dos
pobres”!(Martins, 1992, 191). Na verdade, a busca do “boi barroso” simoniano
continua junto ao “gaúcho a pé” de Martins. O primeiro quer a superação da
situação de empobrecimento do gaúcho Blau, enquanto o segundo projeta uma
“nova estrada” para o “gaúcho a pé”. Ambos colocam o problema da identidade,
que é uma infindável aprendizagem construída pelo pluralismo de fontes e
projetos da cultura gaúcha.
65
4 - FONTES E PROJETOS DA CULTURA GAÚCHA: ETNIAS, RELIGIÕES E
ÉTICAS
Freqüentemente as leituras da cultura gaúcha e especialmente de sua
literatura disputam um espaço interpretativo conflitivo, sobretudo, quando diz
respeito ao aspecto étnico, a religião e a ética. Por exemplo, as
“Lendas do Sul, e especialmente “A Salamanca do Jarau”, tem sido lida pela crítica como
uma representação da moral cristã sobrepondo-se à magia de um Rio Grande originário e
mítico. Tal leitura vê na progressiva derrota do mito pela religião uma forma de exaltação
da história do colonizador europeu, da civilização impondo-se aos cultos pagãos e
bárbaros. E, com a apologia dos valores ocidentais, a apologia do masculino e do racional,
contra o feminino e o instinto, sobretudo o sexual” (Chiappini, 1988, 189).
Antônio Hohlfeldt faz uma leitura sob o ponto de vista histórico das três
lendas simonianas, levantando a tese de que o autor teria “consciente ou
inconscientemente idealizado uma obra unitária, inaugurada com o Cancioneiro
guasca e precocemente encerrada com Casos de Romualdo” (1996, 36). A
intenção de Simões Lopes Neto é guardar a cultura gaúcha manifesta na “antiga
estirpe camponesa que libertou o território e fundou o trabalho social no Rio
Grande do Sul, essa - velha jóia pesada e tosca - acadinhada pelo progresso,
transmutou-se”. Ele se conscientiza de que está operando-se uma mudança nos
“usos e costumes, asperezas, impulsos, e, logo, aspirações, tão outras que as
primevas e incompassíveis formam, agora, diferente maneira de ser dos
descendentes dos continentistas”. Por isso, ele deseja preservar com “este livrinho
[Cancioneiro Gausca] o escrínio pobre; mas, que dentro dele resplandeça a
ingênua alma forte dos guerrilheiros, campesinos, amantes, lavradores; dos mortos
e, para sempre, abençoados Guascas!” (Lopes Neto, 1999, p. 9).
Partindo-se da tese da unidade da obra simoniana, pode-se dizer que diante
da mudança sócio-cultural, a finalidade é garantir a unidade cultural gaúcha.
Simões Lopes Neto em o Cancioneiro Guasca, recolhe a tradição oral popular e a
memória coletiva gaúcha, porque se estava operando uma passagem de um mundo
predominantemente agro-pastoril para o urbano, “cujas raízes, surgiram
justamente na região de Pelotas, graças à tradição das charqueadas, ponto de
referência de gradativa industrialização que caracterizaria a província até a
66
explosão getulista de 1926 e conseqüente centralização do poder político e
econômico em Porto Alegre com a decadência da região meridional” (Hohlfeldt,
1996, 37).
Existem muitas lendas no RS, no entanto, Simões Lopes escolhe apenas
três dentre elas, e as organiza nesta seqüência: M’boitatá, Salamanca do Jarau e
Negrinho do pastoreio. Antônio Hohlfeldt lança a tese de que esta ordem
corresponderia a uma intenção simoniana de apresentar as três tradições étnicas
que formaram o tipo cultural gaúcho:
a) No M’boitatá apresenta-se a tradição indígena, povo autóctone. A
lenda explicita o universo mítico anterior a chegada do branco.
b) Na Salamanca do Jarau tem-se a tradição européia (espanhóis) e
oriental (os árabes): “Com a narrativa, Simões Lopes incorpora à
tradição cultural rio-grandense não apenas a tradição ibérico-espanhola
(através dos espanhóis jesuítas e seu sacristão) como a tradição árabe
(através da fuga e encantamento da princesa moura). Temos, assim, a
tradição indígena, a árabe e a européia” (Hohlfeldt, 1996, 46).
c) E no Negrinho do pastoreio, está descrita a tradição do negro através
do negrinho escravo
48
e do português, na pessoa do estancieiro (id.
47).
Disto conclui Hohlfeldt que as Lendas do Sul tem um objetivo claro:
“busca a composição étnica, histórica - e porque não dizer - até mesmo
antropológica da civilização gaúcha, através de seus tipos principais,
representados cada qual por uma narrativa: o índio, o árabe e o espanhol, o
português e o negro” (id. p. 47).
Embora, as três lendas mostrem o predomínio de uma tradição em cada
uma delas respectivamente, pode-se constatar na Salamanca do Jarau a presença
das três tradições, a partir dos três personagens que compõem esta lenda: o
sacristão/santão, a Teiniaguá e Blau. Seguindo a apresentação destas figuras
48
. Um comentário sobre a lenda do Negrinho do pastoreio e a luta entre o estancierio e o
negrinho encontra-se na obra BAVARESCO, Agemir e BORGES, Luís. História, resistência e
projeto em Simões Lopes Neto. Porto Alegre: WS editor, 2001.
67
étnicas percebe-se o conflito de religiões e éticas que compõem a síntese cultural
do gaúcho.
4.1 - Sacristão, santão, e “guasca desempenado”: “o soberano amor”
Quem é o santão? Um ermitão, um místico, um sacristão ou um gaúcho? O
santão é sempre descrito, na lenda, como alguém de face branca e triste. Esta é a
representação clássica do ermitão em agonia: alguém que está fora do mundo e
deseja implementar um outro projeto de sociedade. No caso do sacristão/santão,
verifica-se este imaginário, pois ele deseja um novo projeto para o pampa. Ele se
retira da sociedade e depois volta no final da lenda, para unir-se com Teiniaguá.
Aqui, sim, unidos para “campear” uma nova identidade pampeana.
Antes disso, porém, logo no primeiro capítulo, o santão aparece a Blau:
“ali em frente, quieto e mano, estava um vulto de face branca... aquela face
tristonha!..(S,141,39). Depois, quando Blau acaba de narrar a estória ouvida de
sua avó: “o vulto de face branca e tristonha, falou em voz macia”(S,144,21). Após
Blau recusar todas as ofertas: “o vulto de face branca e tristonha, que tristemente
estendeu-lhe a mão”(S,158,35); Enfim, quando Blau vai ao cerro devolver a onça
de ouro: “Deu de cara com um vulto de face branca e tristonha, o sacristão
encantado, o santão”(S,162,26). Vê-se que é sempre a mesma caricatura que
marca o santão ao longo de toda a lenda.
O personagem santão passa por diversas metamorfoses que são as
seguintes: Na salamanca aparece como o guardião triste, depois na redução de São
Tomé (cap. III) transforma-se no sacristão inserido no projeto de cristandade
colonial. No cap. IV, cresce a oposição entre o projeto em que ele está inserido e o
novo contexto sócio-cultural do pampa. Ele retorna (cap. IX) à salamanca como
santão tendo as características de um ermitão, isto é, vive fora da instituição
religiosa e do sistema colonial, fora da sociedade dedicado ao ascetismo triste; Ele
carrega consigo uma síntese de experiências étnicas: “Faz duzentos anos que aqui
estou; aprendi sabedorias árabes”(S, 152,15) e conviveu com os espanhóis. Enfim
no último capítulo, ele assume a nova identidade como um “guasca
desempenado”.
68
O sacristão exerce sua função junto a redução de São Tomé. O problema
surge, quando certo dia ele foge pela porta da sacristia e se encontra com
Teiniaguá. Há uma insistente afirmação que “ninguém viu” (cap. III) a sua
aproximação com Teiniaguá. A preocupação é de não ser visto pelo povo, ou seja,
pela comunidade. Ele saiu, enquanto todos estavam sesteando e procurou escapar
pelos fundos da igreja. Isso mostra que há uma forte repressão moral na
cristandade colonial. O texto é perpassado de passagens religiosas, em que se
mostra esta oposição entre o sagrado e o profano: “A minha cabeça foi banhada na
água benta da pia, mas nela entraram soberbos pensamentos maus... O meu peito
foi ungido com os santos óleos, mas nele encontrou a doçura que tanto amarga, do
pecado... A minha boca provou do sal piedoso... e nela entrou a frescura que
requeima, dos beijos da tentadora” (S, 144, 30).
O contexto sócio-religioso da época é dominado pela dualidade excludente
entre uma moral de cristandade e a eroticidade de Teiniaguá. A partir deste
paradigma, a mulher é causa de pecado. Por isso, o sacristão declara: “O alcaide
levantou o pendão real e o carrasco varejou-me [...] por ter tido amores com
mulher moura, falsa, sedutora e feiticeira” (S, 151,1). Assim, ele vive numa
ambigüidade, pois se julga culpado de sua ação e ao mesmo tempo feliz, porque
ela o “efeitiçou de amor, pelo seu amor de princesa moura, pelo seu amor de
mulher, que vale mais que destino de homem” (S, 152,5). O sacristão é
atravessado por essa paixão irrefreável, que mostra o próprio dilema humano: “a
alma é um peso entre mandar e ser mandado” (S, 152,17). Mesmo querendo
mandar na própria vontade, o sacristão sente-se mandado pelos “olhos dela, olhos
de amor, tão soberanos e cativos como em mil vidas de homem outros se não
viram”(S, 150,29).
Ainda dependente de uma leitura tradicional platônica, o projeto de
cristandade colonial baseia-se numa antropologia dualista, que separa corpo e
alma. No entanto, temos na lenda uma superação deste dualismo na síntese do
“soberano amor”. Ligado ao soberano amor está a saudade, que não é melancolia
fixada no passado, mas trata-se de uma saudade amorosa que “salva” o sacristão.
69
O santão era o sacristão das reduções jesuíticas. Então, o santão apresentase, aparentemente, numa atitude estóica de resistência e resignação, guardando a
entrada da caverna de Jarau. No entanto, pode-se compreender a sua posição
como sendo um saída do sistema de cristandade colonial, até como uma certa
rebeldia à Igreja institucional, para afirmar uma mudança sócio-religiosa. O
santão é aquele que fugiu da redução de São Tomé. De fato, do ponto de vista
sociológico, o fenômeno dos ermitões e beatos é uma manifestação da
religiosidade popular, que de certa maneira transporta para o meio do povo uma
reinterpretação da Igreja oficial. Entende-se, portanto, que esta transformação do
sacristão em santão vai culminar numa nova síntese ética, étnica e religiosa: “o
guasca desempenado” após unir-se à Teiniaguá. “A saudação cristã repetida três
vezes selará o fadário do sacristão e lhe propiciará um novo nascimento, agora
como “guasca desempenado”, porque a obra do destino - da história - está
cumprida” (Chiappini, 1988,211).
4.2 - Moura, Teiniaguá e “tapuia formosa”: a “nova gente”
A Teiniaguá é como o santão, uma personagem que passa por muitas
metamorfoses. O que a diferencia, porém, do santão é que ela é uma personagem
híbrida, porque é, ao mesmo tempo, animal e mulher. Ela conhece todas “as
riquezas”, “sabe dos tesouros”, e mantém a memória das origens:
“As riquezas da Teiniaguá espalhadas aos quatro ventos são a própria história que se
repetirá, pela força da palavra, de boca em boca, para que a memória não deixe morrer
esse rastro das origens sagradas do gaúcho. O vento, espécie de intermediário do céu e da
terra, é como a palavra poética, que tenta refazer a unidade, perdida com a fragmentação
dos mitos no correr da história” (Chiappini, 1988,212).
Convivem nela o máximo de contradições: Ela é a síntese de etnias, pois é
moura e índia, ou seja, reúne em si o oriental, o europeu e o povo autóctone. Ela é
também, a jovem e a velha, isto é, a “princesa moura” (cap. IV) e a “velha
carquincha” (cap. X). Ela é uma “fada velha” (cap. II), algo mitológico e uma
mulher, (cap II: “Só não tomou tenência que teiniaguá era mulher”).
Uma outra contradição central em Teiniaguá é ser “bicho imundo” e causa
do pecado, e ao mesmo tempo, aquela que liberta o sacristão e, de certa forma é a
70
salvadora do mesmo (cap. V). Ela é a causa da condenação (“por ter tido amores
com mulher moura, falsa, sedutora e feiticeira”- cap. V) e de salvação do sacristão
(“Mas um milagre se fez, fiquei sozinho, abandonado, mas também ouvindo o
chamado carinhoso da teiniaguá” - cap. V). Há como que uma aproximação
ambígua entre a Teiniaguá/Eva (causa do pecado) e Teiniaguá/Maria (causa da
salvação: “os olhos do meu rosto viam a consolação da graça de Maria Puríssima
que se alonjava... mas os olhos do pensamento viam a tentação do riso mimoso da
teiniaguá”- S, 151,30).
A oposição entre o mal e o bem é enunciado no cap. II, quando aparece
Anhangá-pitã, que é a figuração indígena do diabo da cristandade européia. Frente
a ele está Tupã que é o bondoso. O mal faz parte da condição humana, porém, ele
toma feições sócio-culturais que, no caso da comunidade indígena, é amenizado
ou superado através das estruturas coletivas: “Anhangá-pitã folgou muito; folgou,
porque a gente nativa daquelas campanhas e a destas serras era gente sem cobiça
de riquezas, que só comia a caça, o peixe, a fruta e as raízes que Tupã despejava
sem conta” (S, 143,20). Ora, a Teiniaguá, passa a ser identificada como a única
causadora do pecado/mal.
Teiniaguá parece combinar em si ao mesmo tempo o bem (o divino) e o
mal (o diabólico), pois é “parente do diabo, [...] dos Zaoris: aqueles que, segundo
alguns por pacto divino e, segundo outros, por pacto diabólico, enxergam “através
dos corpos opacos”, capazes de “descobrir o que está oculto, embora seja debaixo
de sete palmos de terra” (Chiappini, 1988, 188). Ela não só é parente do diabo,
mas é “filha de Anhangá-Pitã”(id. p. 188). Essa ambigüidade de forças divinodiabólicas que Teiniaguá encarna prolonga-se do começo ao fim da lenda. Logo
no capítulo II, Blau fazendo memória do que a sua avó lhe contara afirma que
Anhangá-pitã, “cansado, pegou no cochilo pesado [...], só não tomou tenência que
a teiniguá era mulher” (S, 144,10). Ora, enquanto o diabo dorme Teiniaguá age de
tal forma que não é reconhecida como uma mulher. Ela não revela a sua
verdadeira identidade, mas permanece um ser híbrido. A cristandade colonial não
a reconhece; enquanto isso Teiniaguá vai passando por uma evolução identitária
até que ao final é reconhecida como uma nova mulher: a “tapuia formosa”. Essa
71
contradição permeia “o conto todo, implícita, tornando a explicitar-se no final,
como uma espécie de chave ou moral da história: a teiniaguá era mulher”
(Chiappini, 1988,193). No capítulo X, Teiniaguá é reconhecida por Blau Nunes,
enquanto personagem coletivo representante do gaúcho. Ela não foi reconhecida
por Anhangá-pitã, daí porque ele ficou desgostoso e se escondeu, pois não foi
capaz de tomar consciência que ela era uma mulher. O projeto da cristandade
colonial a identificou sempre como algo estranho e causador do mal. Há uma
incapacidade de reconhecer a identidade da mulher. De um lado, ela não seria
identificada com o pecado enquanto índia, e de outro, pode ser entendido, que
enquanto moura e mulher jovem é enquadrada dentro da cristandade colonial
como a origem do pecado. Nela está a culpa/castigo e também o prazer. Para a
moral institucional há o dilema entre o que prescreve a religião oficial e as
práticas não prescritas entre os nativos.
O drama do sacristão e da teiniagúá parece estar se encaminhado para uma
tragédia pampeana, pois o sacristão é condenado à morte. No entanto, a Teiniaguá
aparece como promessa de reconciliação: do sangue de nós ambos nascerá uma
nova gente (cf. S,148,20). E de fato, no cap. X, acontece a realização desta utopia,
os dois formam um par novo. No capítulo final acontece uma última metamorfose
em três momentos: “a velha carquincha transformou-se na teiniaguá”, “a teiniaguá
na princesa moura” e a “moura numa tapuia formosa”. O que temos, aqui, é uma
síntese de opostos superados no diálogo intercultural de diferentes experiências
históricas: a velha carquincha e a jovem moura; de etnias autóctones e
estrangeiras: a moura e a índia; de éticas tradicionais e locais: a ética cristã, a islã
e a indígena. O resultado desta interculturalidade é a “tapuia formosa”.
Teiniaguá (termo de origem indígena: teiú/lagarto + aguaíca/manceba) é
um personagem que faz parte da cultura popular nas regiões das Missões e da
Campanha do RS. A tese de Cícero Galeno Lopes é que Teiniaguá é um
personagem híbrido 49. A interpretação lenda-conto de Flávio L. Chaves já mostra
49
. García Canclini estudando as culturas híbridas afirma que a hibridação é uma noção
fundamental para compreender a história latino-americana. A tese da hibridação defende que a
modenidade européia não eliminou as tradições autóctones, mas “deu lugar a formas sincréticas
onde as matrizes indígenas, espanholas e portuguesas foram reelaboradas para constituir uma
mistura” (Bernd e Lopes, 1999, p. 22).
72
a relação híbrido-dialógica entre o texto ou as tradições originais e o texto do
autor. A interpretação corrente é que a Teiniaguá está marcada pelo mal, porém,
Cícero G. Lopes entende a partir da hibridação que é necessário compreender este
personagem, enquanto contraditório. O próprio nome Teiniaguá é híbrido, porque
é resultado da composição de um réptil e uma moça.
O par Teiniaguá e santão aparece no texto com as iniciais minúsculas
denotando a função ou categorias. No caso do santão parece apontar uma certa
transgressão. O nome identificaria o seu batismo cristão, no entanto, o suposto
nome nunca é mencionado. O nome teria sido importante, porque ele exercia a
função de sacristão. Porém, a ausência do nome poderia significar a perda de sua
identidade cristã-católica expressa na linha da doutrina da cristandade colonial.
Ele desempenhara a função de sacristão, perdendo essa atividade depois que fora
flagrado mantendo relações amorosas com Teiniaguá. A condição posterior após
sua expulsão da comunidade de Santo Tomé acontece junto ao cerro do Jarau.
Aqui, ele é denominado de santão. Este encontrara o amor junto à Teiniaguámulher. Ora, isto é uma contradição, porque se une com ela fora do casamento, o
que constitui para a Igreja católica um ato ilícito, portanto, pecaminoso. Além
disso une-se a uma “princesa moura”, de outra religião. A contradição está no
conflito entre “a cruz bendita” dos católicos e o “crescente dos infiéis”
muçulmanos. Há um processo de assimilação-hibridação em que se misturam
tradições religiosas e valores diferentes (cf. Galeno Lopes, 1999).
Teiniaguá é mulher-lagartixa graças a um pacto com Anhagá-pitã. Ora,
este pacto tem um caráter híbrido, porque ela recebe de um lado, o carbúnculo
deste último que lhe dá luz, ou seja, símbolo do pensamento e do poder além do
animal. De outro lado, ela herda, ao mesmo tempo, do pacto com o demônio o
estigma do mal. Esta caracterização do mal, presente em Teiniaguá, é devida à
versão religiosa que constrói as forças opostas no mundo como sendo a luta entre
o bem e o mal. Esta luta de opostos acontece historicamente, no caso, Teiniaguá,
em conseqüência de sua origem árabe, oposta aos espanhóis, é identificada como
a que encarna o mal.
73
Prosseguindo na análise do processo de hibridação religiosa em santão, e a
hibridação antropomórfica de Teiniaguá, pode-se constatar ainda no texto, outros
indícios relacionados à teoria do personagem híbrido. A miscegenação entre
árabes e cristãos ocorrida na península ibérica e seus desdobramentos religiosos; a
prática da magia atribuída aos árabes opõe-se e relaciona-se com o culto religioso;
Teiniaguá é identificada com uma bruxa, por isso é perseguida pelos tribuinais da
Inquisição espanhola; Teiniaguá toma diversas figurações e, ao mesmo tempo,
carrega em si diversas contradições que constituem um personagem com
multidentidades: ela é moura e convive com cristãos; é mulher é réptil, ou seja,
humana e não-humana; gera felicidade e causa infelicidade, provoca prazer ao
santão e leva-o ao pecado/castigo; é muçulmana e jovem e vem para a América no
ventre de uma fada velha, num navio cheio de cristãos e padres; ela é a causa da
condenação do sacristão (por luxúria, apostasia e sacrilégio) e da salvação pois ela
faz romper a terra, assusta os verdugos e liberta-o de suas amarras.
Percebe-se que a Teiniaguá encarna em si o máximo de contradição,
sobretudo na oposição entre o símbolo do mal (mulher/bicho imundo) e, ao
mesmo tempo, o símbolo do amor e da felicidade (“saudade do seu cativo e
soberano amor”, S, 149, 37; “de teiniaguá, que me enfeitiçou de amor” S, 152, 6).
Uma leitura unidimensional atribui a ela somente o mal, própria da herança da
cultura ocidental dualista que separa bem/mal. No entanto, segundo a tese do
personagem híbrido, Teiniaguá apresenta-se como a síntese da oposição pois ela
nasce da voz múltipla do povo, do embate de muitas consciências entre negativopositivo. “Esses sinais apareceriam ao longo da literatura gaúcha, como marca da
necessidade do amor e, simultaneamente, como marca do aprisionamento
masculino exercido pela mulher (humana e não-humana)” (Galeno Lopes, 1999,
35).
Segundo Cícero G. Lopes “a hibridez é já marca da transgressão. A
transgressão só é possível na desobediência e na paixão, i. e, na ação, na
mobilidade, na modificação (porque a pureza perece de imobilidade). Essas
marcas, como se pode perceber, estão nas ações do casal Teiniaguá-Santão,
especialmente nela, porque por dupla natureza, designada na nominação” (id., p.
74
35). Teiniaguá desestabiliza o sacristão, pois o leva a sair do estado de vida em
que estava submisso na redução de São Tomé. Ora, a ação dela pode ser
compreendida como o símbolo de superação da dependência colonial. “Talvez
esse tenha sido o maior pecado encontrado nas ações da Teiniaguá, que só pode
ser concebido sob a visão colonialista” (id., p. 35). Há rebeldia nas palavras e
ações do casal que se voltam contra o sistema de cristandade colonial e anunciam
a formação de um novo mundo, assim expresso por Teiniaguá:
“Serás o meu par.... si a cruz do teu rosário me não esconjurar... Si não, serás ligado ao
meu flanco, para, quando quebrado o encantamento, do sangue de nós ambos nascer uma
nova gente, guapa e sábia, que nunca mais será vencida, porque terá todas as riquezas que
eu sei e as que tu lhe carreará por via dessas” (S, 148, 17-21).
Na Salamanca do Jarau, pode-se encontrar referências cronológicas tais
como: São Tomé foi fundada pelos padres jesuítas em 1632. Aqui, o sacristão
ajuda no serviço litúrgico. Após ter sido condenado pelo pecado cometido com
Teiniaguá, consegue fugir com ela para o cerro do Jarau. Neste local, encontra-se
com Blau que descreve, então, as suas andanças.
4.3 - Gaúcho pobre, gaúcho rico e Blau Nunes “em paz”
O contexto sócio-cultural e simbólico-religioso em que Blau está inserido
é este:
“Ruínas de um mundo mágico e comunitário que persistem na sociedade dividida,
alicerçada na estância, na separação entre proprietários e trabalhadores da terra e do gado,
no racionalismo crescente, no moralismo cristão e no machismo do gaúcho guerreiro e
cavaleiro. Faíscas da memória coletiva, irrompendo volta e meia, feito fogo corredor no
meio da noite, nas histórias do povo anônimo dos pampas”. “Ruínas soterradas por
séculos de cultura branca e cristã, no entanto eloqüentes quando revividas pela palavra
poética que procura refazer a unidade, a beleza e a verdade perdidas num tempo tão
antigo” (Chiappini, 1988, 188).
Quem é Blau sob o ponto de vista étnico? Ele é um crioulo segundo
Simões Lopes (Lopes Neto, 1988, 33), ou seja, o resultado de uma miscegenação
étnica que inclui a união de uma índia com um branco (Blau que afirma: “Desde a
minha avó charrua”- S, 142, 25), de um negro com um branco, de uma índia com
um negro etc., sendo o branco representado pelo espanhol e português.
Simões Lopes através de Blau conta acontecimentos mítico-históricos
atualizando-os em sua forma literária. Nos Contos guachescos, Blau teria 88 anos
75
aproximadamente considerando-se que o livro foi publicado em 1912. Assim, ele
teria nascido em 1824 - momento de afirmação da soberania nacional; em 1835,
com 11 anos é furriel de Bento Gonçalves; em 1864, com 40 anos é chasque do
imperador na época da Guerra do Paraguai. Blau é um personagem que viu e
participou ao vivo dos acontecimentos históricos do século XIX. Daí, serem seus
relatos um importante instrumento para compreender a estrutura sócio-políticoeconômica do RS. Blau é também a construção de uma figura antropológicocultural que caracteriza o modo de ser gaúcho (cf. Hohlfeldt, 1966, 40-41).
Na introdução aos Contos Gauchescos, Blau é apresentado com detalhes:
a) Ele conhece toda a geografia do Estado - “Eu tenho cruzado o nosso
Estado” (Lopes Neto, 1988, 33).
b) Ele participou ativamente da história do RS: “O benquisto tapejara Blau
Nunes, desempenado arcabouço de oitenta e oito anos, [...] mantendo o seu
aprumo de forriel farroupilha, que foi, de Bento Gonçalves, e de marinheiro
improvisado, em que deu baixa, ferido, de Tamandaré” (id. p.33).
c) Seu temperamento é “a um tempo leal e ingênuo, impulsivo na alegria e
na temeridade, precavido, perspicaz, sóbrio e infatigável; e dotado de uma
memória de rara nitidez”.
d) Ele é um gaúcho sábio que aprendeu nas andanças do pampa: “E do
trotar sobre tantíssimos rumos: das pousadas pelas estâncias; dos fogões a que se
aqueceu; dos ranchos em que cantou, dos povoados que atravessou; do pêlo-apêlo com os homens, das erosões da morte e das eclosões da vida, entre o Balu moço, militar - e o Blau - velho, paisano -, ficou estendida uma longa estrada
semeada de recordações” (id. p.34).
e) Sua ética é a resistência autônoma: “Fazia-me ele a impressão de um
perene tarumã verdejante, rijo para o machado e para o raio”; autonomia aberta e
acolhedora, pois é um tarumã que abriga “dentro do tronco cernoso enxames de
abelhas, nos galhos ninhos de pombas”(id. p. 33).
A frase síntese da 3ª e 4ª parte, que Blau repete, é a seguinte: “Alma forte,
coração sereno”. Neste aforisma está subjacente que o modo de agir do gaúcho
deveria combinar a virtude da força e da serenidade. No entanto, Blau após ter
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passado pelas provas nega este imperativo, pois não aceita nenhuma oferta (cf.
acima item 2.3). Augusto Meyer afirma que na Salamanca existem dois temas
fundamentais “uma apologia da renúncia cristã e da redenção pelo amor” (Meyer,
1960, 183). O referido imperativo, de fato, parece apontar para a renúncia a fim de
passar pelas provas e alcançar o objetivo. Trata-se de uma ética teleológica
clássica, que Chaves situa dentro de uma ética cristã repressiva (Chaves, 1982,
100). A religião é marcada por uma moral dualista e ascética. Ao contrário, da
redenção pelo amor que aparece no caso específico de Teiniaguá, em relação ao
sacristão.
O ideário ético é a busca da felicidade. Por isso, Blau enfrenta as sete
provas e recusa todas as recompensas, porque lhe interessa o amor de Teiniaguá.
No entanto, a mulher não lhe é dada, em compensação lhe é oferecida a riqueza
através da “onça mágica”. A experiência da riqueza não lhe traz felicidade, ao
contrário resulta em solidão e agonia, quase melancolia. A riqueza não responde a
sua procura de felicidade, antes o isola dos amigos e vizinhos. Aquele mito da
produção sem trabalho que Décio Freitas chama de trabalho pastoril enquanto
diversão, agora, opõe-se ao trabalho produtivo, dentro de uma nova ordem que é o
capitalismo pastoril introduzido na estância. Há uma transição de uma economia
semi-feudal baseada na terra e tradição para uma economia de mercado. É nesta
transição que aparece a contradição da felicidade do que “era dantes” e a riqueza
“de agora”, que por enquanto, não o torna feliz.
A ética econômica obedece à lógica especulativa do lucro (a onça mágica
que se auto-reproduz) que se opõe a lógica do pampa, isto é, à lógica da
comunidade. De fato, o que ocorreu na região foi a passagem para a sociedade
empresarial (cf. Bavaresco e Borges, 2001). Tem-se, portanto, um passado
perdido que gera uma crise que se mostra em diversos aspectos: na identidade
representada do folclore, que projeta no comunitarismo indígena uma idade do
ouro do pampa; na roda do chimarrão, que mitifica o igualitarismo e esconde as
desigualdades estruturais da estância; na origem étnica, que descreve o gaúcho
resultante da união da rebeldia indígena e do espírito revolucionário camponês.
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De fato, estas e outras idealizações do gaúcho não corrrespondem mais à situação
presente.
Blau defronta-se com a herança da identidade do passado e o caos do
presente. Não há como reconstruir a estância. A implosão do cerro no final da
lenda mostra que o caos daí resultante, possibilita a recriação de várias vertentes
interpretativas da tradição do gaúcho. A construção da figura do gaúcho que
identifica o peão e o estancieiro, a partir de virtudes heróicas e da mesma tradição
que os irmana, entram em confronto com a situação de pobreza do peão e de
riqueza do estancieiro, ou seja, o passado mítico não consegue mais justificar a
situação do gaúcho à pé que Cyro Martins descreve em sua trilogia.
Blau está diante de várias possibilidades éticas: Ele quer o amor de
Teiniaguá, mas lhe é oferecido o valor da riqueza. O princípio da realidade vence
o desejo erótico, isto é, o princípio do prazer. Num primeiro momento, aceita este
princípio, porém, depois se despoja de tudo e devolve a moeda. Ele passa da
conquista do mundo exterior, para a conquista da caverna interior. A virtude
pareceria ser a pobreza honesta e a renúncia da riqueza. Ele experimentou o
desafio das provas, ou seja, assumiu a virtude do herói ocidental passando por
uma série de provações, mesmo ao preço de sacrifícios, renúncias e provações.
Porém, ele diz não a esse modelo de herói.
Ele era um gaúcho pobre e tornou-se um gaúcho rico e, agora, volta a
tornar-se um gaúcho pobre, porque entre a riqueza e a solidão, opta pela
companhia. “Blau vai desejar voltar à sua condição humana, ao devolver a onça
de ouro que, se lhe dava riquezas, da mesma forma o afastava do comum dos
mortais” (Chiappini, 1988, 210). De fato, Blau conhece o projeto de Teiniaguá e
do sacristão - “o par novo” - que já vivem a nova identidade realizada. A travessia
acontece pela busca do boi barroso, - projeto gaúcho - e não, pelas provas do herói
ocidental e da cristandade colonial. Agora abre-se a possibilidade do novo projeto
de identidade para a cultura gaúcha. No final do capítulo X, Blau assume a
tradição dos costumes - churrasco, chimarrão -, porém, não o projeto da estância
tradicional e nem da cristandade colonial, por isso ele pode viver em paz com a
nova identidade.
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No entender de Chiappini, há na lenda uma luta entre a religião católica e a
religião muçulmana representada respectivamente pela cruz e a meia-lua. Deste
embate nascerá a gente guapa e sábia: o gaúcho. Ela divide este duelo em três
momentos:
1ª Vitória da meia-lua: No cap. IV começa o duelo entre o “crescente dos
infiéis” (S, 148,23) que é representado pela cabeça da princesa moura e o sacristão
que tem o rosário e o crucifixo nas mãos. Para Chiappini, há neste capítulo a
descrição de um festim báquico que “tem muito de demoníaco mas tem muito de
divinal, quando o mel se mistura ao vinho do santo sacrifício, nesta verdadeira
ascese, momento epifânico de amor e poesia” (id. p. 203). O “festim dionisíaco”
descreve os vestígios e os símbolos da meia-lua vitoriosa sobre a cruz, e os padres
surpreendem o sacristão descomposto, “onde sobressaía uma meia-lua prendendo
entre as aspas uma estrela” (S, 149,10).
2ª Vitória da meia-lua: O cap. V continua descrevendo a luta entre as duas
religiões. Agora, os símbolos da cruz aliam-se aos símbolos do poder real,
característico da cristandade colonial: “Os santos padres, pasmados mas sisudos
[...], soldados de couraça e lança, e o alcaide, vestido de samarra amarela, com
dois leões vermelhos e coroa d‟el-rei brilhando em canutilho de ouro” (S, 150,15).
Começa a tortura do sacristão, porém, o que aparece em primeiro plano é a
“simbiose entre a natureza interna e externa, entre as águas cósmicas e as águas do
pranto dos amantes, pela magia do amor: o encontro de duas saudades - da
teiniaguá e do sacristão - provoca um ventarrão” (id. p. 205). Ora, esse fenômeno
natural provoca o choro e o desespero do povo. São anunciadas, segundo a
interpretação de Chiappini “sete pragas que parecem afirmar a vitória da meia-lua
contra a cruz”: 1ª) “Que a missão de S. Tomé ia perecer; 2ª) “e desabar a igreja;
3ª) “a terra expulsar os mortos do cemitério; 4ª) “que as crianças inocentes iam
perder a graça do batismo; 5ª) “e as mães secar o leite; 6ª) “e as roças o plantio;
7ª) “os homens a coragem” (cf. S, 151,15s).
3ª Vitória da meia-lua e depois da cruz: Ainda no cap. V, prossegue a
descrição “depois de um grande silêncio” “a cruz vence a batalha, mas,
curiosamente, para salvar o herege. Essa vitória da Cruz é, ao mesmo tempo, a
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derrota dos padres da igreja” (id. p. 208). A afirmação parece contraditória,
porém, entenda-se a derrota do projeto de cristandade colonial e a vitória de um
outro tipo de cristianismo que sabe fazer a síntese no amor: “Dá-se a passagem do
corpo para o espírito, mas através de uma grande sinestesia pela qual os cinco
sentidos, fundindo-se num corpo supersensível nos entregam com o sacristão, ao
mesmo tempo, aos êxtases do corpo e da alma, miticamente reconciliados” (id. p.
209). No entender de Chiappini o duelo acaba “com a vitória total da meia-lua
sobre o sino de Belém e a Cruz, até o Santíssimo trabalhando pelo Sacristão
sacrílego e sua amante”(id. p. 209). No entanto, “no desfecho do conto, a
divindade cristã vence seguramente Anhangá-pitã e a Teiniaguá. Blau traça uma
larga cruz de defesa no seu peito e na testa do cavalo e seu coração retine como
sino” (id. 224). Mesmo assim, percebe-se que o gaúcho nasce desta luta de
religiões, de fusões de etnias e culturas.
Blau é gaúcho, herdeiro da mistura de raças e culturas, fusão de tradições.
Ele “é índio, mas é também o português cristão e o mouro herege. Sangues e
culturas de todos esses povos e raças circulam na sua vida” (id. 221).
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CONCLUSÃO
De fato, ao longo da exposição percebe-se que o itinerário da lenda ou a
travessia para aprender a ser gaúcho é a busca de um novo projeto para si mesmo
(Blau) e para o pampa (o outro).
Considerando o contexto de globalização, em que se dá uma diluição das
identidades locais no global, urge elaborar uma abordagem filosófica de nossa
obra cultural, para ali encontrar a nossa identidade. Esta pesquisa não só quer
encontrar, mas quer firmar a identidade local. Daí, a oportunidade impar que se
apresenta à Filosofia de fazer uma hermenêutica da fortuna crítica simoniana.
Lançando mão dos textos, obras de arte, enfim de todas as manifestações culturais
e submetendo-os ao estudo e ao debate sistemático, criam-se as possibilidades de
realizar o referido objetivo.
A pesquisa da obra simoniana, e especificamente da lenda a Salamanca do
Jarau, foi importante para o desenvolvimento do método para uma filosofia
intercultural. Esta pesquisa se insere na tendência da “inculturação da filosofia”.
De fato, o gaúcho é o resultado de um processo de hibridação étnicocultural oriundo da união entre ibéricos e índias. Os índios não conheciam o
conceito de propriedade e o desejo de lucro. Estes teriam influenciado a formação
do gaúcho, que se tornou andarilho, sem apegar-se ao trabalho sedentário nem à
propriedade, daí ser chamado de vadio, ladrão pelos colonizadores que o
obrigaram a fixar-se como mão-de-obra semi-escrava. Blau Nunes é este tipo de
gaúcho que apostou na sorte da salamanca, porém não teve sucesso. Ele,
entretanto, “tangido pelo Destino”, ajuda a libertar os condenados - santão e
Teiniaguá - da mão dos colonizadores e abre o horizonte de um novo mundo:
“Aquele par, juntado e tangido pelo Destino [...], aquele par novo, de mãos dadas
como namorados, deu costas ao seu desterro, e foi descendo a pendente do
coxilhão [...] para uma cruzada de ventura, em viagem de alegria, a caminho do
repouso!...” (S, 163, 25-31). Ou seja, o casal partiu para formar “uma nova gente”,
isto é, o povo gaúcho.
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Aprender a ser gaúcho é aprender que a cultura gaúcha é o resultado do
amálgama de etnias, religiões e culturas. Não é um dado puro, mas é o resultado
da “ambigüidade entre o bem e o mal, o pagão e o sacristão, o demônio e o
divino” (Chiappini, 1988, 194) que os personagens Teiniaguá e o sacristão
representam ao longo da lenda.
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Texto para as orelhas:
QUE TRAMA É ESSADO SERÁ, DO É , DO FOI?
O título desta orelha, com jeito de epígrafe, tomei-o de Jorge Luis Borges como
uma interrogação que vivo me fazendo a propósito do caráter enigmático das
respostas que pretendemos sobre a gauchitude, a gauchidão, essa gauchidade que
é cada vez mais gauchicidade – e que se recompõe e se redefine neste
APRENDER A SER GAÚCHO, sob a forma de uma particularíssima,
aprofundada e convincente leitura de "A Salamanca do Jarau", de João Simões
Lopes Neto.
Entendo que nós, os sul-rio-grandenses, por virmos nos chamando de gaúchos,
temos nos metido numa armadilha do futuro em que a imaginação e a memória
funcionam às avessas, voltada aquela para o passado e projetada esta no presente
(como se todos estivéssemos nos olhando num espantoso calidoscópio, certos de
que mudam as figuras vistas, mas não mudam os pedacinhos que somos, na
formação das figuras; como se tudo fosse um interminável baile de máscaras no
qual todos trouxéssemos a fantasia escondida por baixo, fazendo de conta que não
era verdadeira nossa desconhecida identidade; como se fôssemos as peças
inumeráveis de um inacabável quebra-cabeças que só se decifra se for desarmado
e desmontado – como o gaúcho).
Se eu disser que, neste livro, Agemir Bavaresco – 48 anos, filósofo, professor
universitário e pesquisador (detentor, juntamente com Luis Borges, do Prêmio
Açorianos 2002, com "História, Resistência e Projeto em João Simões Lopes
Neto") retoma a trajetória de Blau Nunes a campear os nossos perdidos e a achar
os nossos caminhos, estarei indo além do que imagino que se deva dizer numa
orelha de livro.
Então eu não digo nada. O leitor que vá em frente: acompanhe Agemir a penetrar
no calidoscópio, a buscar os disfarces e a desarmar e desmontar o quebra-cabeças;
e que faça o seu aprendizado.
Aldyr Garcia Schle
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