Livro ENAPEGS V FINAL VERSAO HTML (2)

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Livro ENAPEGS V FINAL VERSAO HTML (2)
Gestão social como
caminho para a redefinição
da esfera pública
© UDESC - FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA
Impresso no Brasil.
Todos os direitos reservados.
Os conceitos e opiniões emitidos nesta publicação
são de responsabilidade de seus respectivos autores.
1ª edição - 2011
Editora UDESC
Universidade do Estado de Santa Catarina
Campus Florianópolis
Av. Madre Benvenuta, 2.007 – Itacorubi
88.035-001- Florianópolis – Santa Catarina
www.udesc.br
Organização:
Paula Chies Schommer e Rosana de Freitas Boullosa
Capa:
Jorge Schlichting Neto e Carlos Vilmar
Fotografia da Capa:
Andorinhas - Eduardo Trauer || etrauer.com Fine Art Photos
Diagramação:
Carlos Vilmar
Série Coleção Enapegs
Volume 5
Gestão social como
caminho para a redefinição
da esfera pública
Paula Chies Schommer
Rosana de Freitas Boullosa
ORGANIZADORAS
EDITORA DA
2011
Sumário
Apresentação
Fronteiras de aprendizagem da gestão social .......................................... 9
Paula Chies Schommer e Rosana de Freitas Boullosa
Gestão social como possibilidade de ampliação da esfera
pública: o que desejamos no V Enapegs?..................................................15
Edgilson Tavares de Araújo, Valéria Giannella, Vivina Machado de
Oliveira Neta e Paula Chies Schommer
Parte I - Expansão das fronteiras da gestão social
Coprodução e inovação social na esfera pública em debate no
campo da gestão social...................................................................................31
Paula Chies Schommer, Carolina Andion, Daniel Moraes Pinheiro,
Enio Luiz Spaniol e Mauricio C. Serafim
Decifra-me ou te devoro! As armadilhas da teorização sobre
movimentos sociais em gestão social........................................................71
Armindo dos Santos de Sousa Teodósio, Luciano Prates Junqueira,
Mário Aquino Alves, Patrícia Mendonça e Sylmara Lopes Francelino
Gonçalves-Dias
Como viver a participação política? Os desafios de novas
democracias e economias na (re) definição da esfera pública.........81
Carolina Leão, Cristiano de França Lima, Igor Vinicius Lima Valentim
e Júlio César Andrade Abreu
Espaço público e gestão social do patrimônio mundial: inventário
de valores......................................................................................................... 105
Eloisa Helena de Souza Cabral, Luis Antonio Eguinoa e Paulo de
Tarso Muzy
As metodologias integrativas como caminho na ampliação
da esfera pública............................................................................................ 139
Valéria Giannella, Edgilson Tavares de Araújo e Vivina Machado de
Oliveira Neta
Gestão social: conhecimento e produção científica nos Enapegs,
2007-2010........................................................................................................ 167
Airton Cardoso Cançado, José Roberto Pereira, Fernando Guilherme
Tenório, Ariádne Scalfoni Rigo e Vânia Aparecida Rezende de Oliveira
A tentativa de discutir filosofia da diferença, biopolítica e
produção de subjetividade no Enapegs 2011 ..................................... 191
Luiz Manoel Lopes, Eladio Craia, Guilherme Castelo Branco e
Jeová Torres Silva Jr.
Gestão social do desenvolvimento territorial como campo de
educação profissional................................................................................. 199
Tânia Fischer
Gestão social: ensino, pesquisa e prática – Pró-Administração –
CAPES................................................................................................................. 211
Fernando Guilherme Tenório e Anderson Felisberto Dias
Uma estrutura de observação para a formação em gestão social.217
Rosana de Freitas Boullosa
Parte II – Fronteiras de expansão da gestão social
Brasil: um outro patamar - propostas de estratégia.......................... 229
Ladislau Dowbor
El estado del arte del concepto de gestión social en el Chile
contemporáneo.............................................................................................. 283
Pablo Monje-Reyes
Museu íntimo: diálogos entre cultura, educação e estética............. 303
Dan Baron
Ecomoda: Coleção Primavera Silenciosa............................................... 333
Neide Köhler Schulte, Luciana Dornbusch Lopes, Lucas da Rosa,
Janaina Ramos Marcos e Ilma Godoy
Parte III – Revivendo o Enapegs
O V Enapegs: entre fatos e fotos................................................................ 343
Alessandra Debone de Sousa, Eduardo Trauer e Ives Romero
Tavares do Nascimento
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| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
Paula Chies Schommer1
Rosana de Freitas Boullosa2
Em meio à recente trajetória de consolidação da gestão social
como campo de conhecimentos e práticas interdisciplinares, os Encontros Nacionais de Pesquisadores em Gestão Social (Enapegs)
ocupam papel primordial. A cada edição, os Encontros são palco de
aproximação, estranhamento, identificação e ligação entre pessoas,
experiências e ideias. Pesquisadores, gestores e curiosos buscam
compartilhar suas experiências, descobertas e dúvidas, explorando
novos olhares sobre a gestão social, aprendendo com novas pessoas, temáticas e perspectivas de compreensão de suas realidades.
Na edição de 2011, o V Enapegs buscou explorar as possibilidades da gestão social como ampliadora e redefinidora da esfera
pública, esta última compreendida como um espaço de diálogo e
de intermediações de visões de mundo e de interesses diversos, associados a sujeitos e instituições que se articulam e agem coletivamente em torno de propósitos comuns, seja no âmbito estatal, das
relações entre Estado e sociedade e nas interfaces entre o público
e o privado.
Esta aproximação entre os conceitos de gestão social e de esfera pública parece ter colocado nova luz sobre um movimento crescente de revisão das fronteiras entre gestão pública, gestão privada
e gestão social. Esta luz parece indicar que a gestão é social quando
a compreensão da ação de gestão se dá em um contexto de problematização da coprodução do bem público, independente da posição do ator, o que aproximaria o problema das fronteiras da gestão
social ao problema da sua natureza. Esta nova dobradinha analítica
1 Paula Chies Schommer é professora da Universidade do Estado de Santa Catarina na área
de administração pública e professora colaboradora do Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social da Universidade Federal da Bahia.
2 Rosana de Freitas Boullosa é professora da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia, bolsista de produtividade tecnológica do CNPq e professora permanente do Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social da Universidade Federal da Bahia.
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Fronteiras de aprendizagem da gestão social
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pressupõe, porém, a compreensão de que o bem público não pode ser
o produto direto de um ator ou conjunto de atores e que, portanto, mesmo quando perseguido, o mesmo não pode ser alcançado
por uma ação individual ou por uma ação social orquestrada, pois
o bem público seria um subproduto resultante da ação social não
orquestrada.
Além disso, aquela mesma luz parece indicar que a gestão é
ainda mais social quando a compreensão dos efeitos da ação de
gestão sobre um futuro coproduzido modela a ação de gestão do
presente, produzindo um diálogo entre atores de uma arena que
só existe em função do observador-gestor-social, cuja natureza
não é disciplinar e cujas fronteiras são apenas fronteiras de aprendizagem. Quando isto acontece, a gestão pontualizada no tempo-espaço-sujeitos (con)cede espaço para uma gestão de um tempo-espaço-sujeitos que vai além de si mesmo, abrindo-se para uma
dimensão da gestão que é social.
Considerando essa perspectiva que problematiza a gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública, este livro
reúne textos relacionados ao que se discutiu durante o V Encontro
Nacional de Pesquisadores em Gestão Social (Enapegs), que ocorreu em Florianópolis/SC, em maio de 2011. O projeto editorial foi
desenhado a partir da compreensão de que a gestão social é um
campo que estamos aprendendo a construir, com dúvidas, incertezas e alguns avanços. Dentre as muitas formas de entender aprendizagem, buscamos compreendê-la como uma atividade que se dá
socialmente, situada entre a expansão das fronteiras do conhecimento já conquistado e as possibilidades de produção de novos conhecimentos, dado pelo movimento das fronteiras em expansão. A
este segundo movimento chamamos de fronteiras de expansão, ou
seja, o conjunto de possibilidades desencadeadoras de aprendizagem.
Os textos foram reunidos em três partes, além desta introdutória: uma primeira, chamada de fronteiras de expansão da gestão
social, aprofunda e expande temáticas sobre as quais se dedicam
grupos que constituem a Rede de Pesquisadores em Gestão Social;
uma segunda, chamada fronteiras de expansão da gestão social, ex-
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plora novos conteúdos e perspectivas, influenciando seus próprios
sistemas de aprendizagem; uma terceira, que busca expressar um
pouco do humor de um evento pautado pelos princípios de circularidade, diversidade, diálogo e dialógica, interdependência, incerteza e inclusividade.
Na seção Fronteiras de expansão da gestão social encontram-se os textos dos colegas pesquisadores que atenderam à chamada
inicial de propostas e conduziram os oito eixos temáticos do Encontro: 1) Coprodução e inovação social na esfera pública em debate no
campo da gestão social, de Paula Chies Schommer, Carolina Andion,
Daniel Moraes Pinheiro, Enio Luiz Spaniol e Mauricio C. Serafim; 2)
Decifra-me ou te devoro! As armadilhas da teorização sobre movimentos sociais em gestão social, de Armindo dos Santos de Sousa Teodósio, Luciano Prates Junqueira, Mário Aquino Alves, Patrícia Mendonça e Sylmara Lopes Francelino Gonçalves-Dias; 3) Como viver a
participação política? Os desafios de novas democracias e economias
na (re) definição da esfera pública, de Carolina Leão, Cristiano de
França Lima, Igor Vinicius Lima Valentim e Júlio César Andrade Abreu;
4) Espaço público e gestão social do patrimônio mundial: inventário
de valores, de Eloisa Helena de Souza Cabral, Luis Antonio Eguinoa e
Paulo de Tarso Muzy; 5) As metodologias integrativas como caminho
na ampliação da esfera pública, de Valéria Giannella, Edgilson Tavares de Araújo e Vivina Machado de Oliveira Neta; 6) Gestão social: conhecimento e produção científica nos Enapegs, 2007-2010, de Airton
Cardoso Cançado, José Roberto Pereira, Fernando Guilherme Tenório,
Ariádne Scalfoni Rigo e Vânia Aparecida Rezende de Oliveira; 7) A
tentativa de discutir filosofia da diferença, biopolítica e produção de
subjetividade no Enapegs 2011, de Luiz Manoel Lopes, Eladio Craia,
Guilherme Castelo Branco e Jeová Torres Silva Jr.; 8) eixo temático
composto por três contribuições: i) Gestão social do desenvolvimento
territorial como campo de educação profissional, de Tânia Fischer; ii)
Gestão social: ensino, pesquisa e prática – Pró-Administração – CAPES,
de Fernando Guilherme Tenório e Anderson Felisberto Dias e; iii) Uma
estrutura de observação para a formação em gestão social, de Rosana
de Freitas Boullosa.
Este conjunto contempla relatos do que foi apresentado, discu-
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tido e vivenciado em cada eixo temático, levantando questões integradoras e relacionando-as a referenciais teóricos que permitiram
explorá-las durante o evento e que oferecem perspectivas para investigação futura.
Na seção Expansão das fronteiras da gestão social encontram-se os textos: Brasil: um outro patamar - propostas de estratégia, de
Ladislau Dowbor; El estado del arte del concepto de gestión social
en el Chile contemporáneo, de Pablo Monje-Reyes; Museu íntimo: diálogos entre cultura, educação e estética, de Dan Baron; Ecomoda:
Coleção Primavera Silenciosa, de Neide Köhler Schulte, Luciana Dornbusch Lopes, Lucas da Rosa, Janaina Ramos Marcos e Ilma Godoy.
São contribuições de convidados muito especiais que estiveram
no V Enapegs, que evidenciam a pertinência da noção de gestão social para refletir e agir em contextos e amplitudes diversos. Cabe falar
em gestão social quando se discutem projetos de desenvolvimento e
de estruturação social de países como o Brasil e o Chile contemporâneos. É igualmente apropriado falar em gestão social ao observarmos as maneiras pelas quais construímos conhecimentos e práticas
em nossa intimidade, nas relações entre saberes, linguagens, significados e expressões. E cabe gestão social quando pensamos sua relação com o desenvolvimento sustentável e sua possível concretização
em um campo como o da moda e do design.
Na terceira seção, o leitor encontrará o texto O V Enapegs: entre fatos e fotos, de Alessandra Debone de Sousa, Eduardo Trauer e
Ives Romero Tavares do Nascimento, uma amostra das belas imagens
avistadas e dos sentimentos compartilhados pelos que participaram
do encontro em Florianópolis, nos dias ensolarados do outono de
2011. Pessoas e encontros que são parte de uma trajetória iniciada
em 2007, em Juazeiro do Norte, passando por Palmas, Juazeiro, Petrolina e Lavras, chegando a Florianópolis e seguindo para São Paulo,
que sedia o Enapegs 2012.
Além desta apresentação, a seção introdutória deste livro traz
o texto Gestão social como possibilidade de ampliação da esfera pública: o que desejamos no V Enapegs?, de Edgilson Tavares de Araújo, Valéria Giannella, Vivina Machado de Oliveira Neta e Paula Chies
Schommer. O texto foi escrito antes da realização do evento e enviado
Agradecimentos
Uma vez que este livro é fruto de um trabalho autenticamente
construído em rede, cabe reconhecer e agradecer aos que contribuíram para o Encontro e para esta publicação. São inúmeras pessoas,
organizações, recursos, capacidades e vontades mobilizadas e articuladas em torno de muito trabalho, um trabalho engajado, qualificado
e voluntário. Cada detalhe tem a marca de muitos e de diversos. Dos
diversos que fazem da Rede de Pesquisadores em Gestão Social uma
rede viva, dinâmica, interligada, capaz de construir e de aprender, em
permanente transformação.
Entre as organizações e grupos que mais diretamente participaram da construção do Enapegs, destacamos a Universidade do
Estado de Santa Catarina, Udesc, por meio do Centro de Ciências
da Administração e Socioeconômicas, Esag, que sediou o evento.
Em todos os momentos, a comissão organizadora local contou com
apoio irrestrito e entusiasmado da Diretoria da Esag, do Departamento de Administração Pública e do Programa de Mestrado em
Administração, da Reitoria, da Pró-Reitoria de Extensão, da Assessoria de Comunicação, da Editora, do Centro de Artes (Ceart)
e do Programa EcoModa, do Ceart. Participaram diretamente da
construção do evento professores e estudantes ligados ao grupo
de pesquisa Politeia - Coprodução do bem público: accountability e
gestão, do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Inovações Sociais na
Esfera Pública (Nisp) e do Laboratório de Aprendizagem em Serviços Públicos (Lasp).
Ainda em Santa Catarina, cabe ressaltar e agradecer ao apoio
do Governo do Estado de Santa Catarina, da Federação Catarinen-
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previamente aos participantes, colocando em discussão os princípios
que nortearam sua construção, buscando criar o clima para que tais
princípios fossem vivenciados.
Esta publicação é também fruto do trabalho do Observatório da
Formação em Gestão Social, uma iniciativa que nasceu em Enapegs
anteriores e foi cultivado e estruturado coletivamente por vários colegas e instituições que são parte da Rede de Pesquisadores em Gestão Social.
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se de Municípios (Fecam), da Escola de Gestão Pública Municipal
(Egem), do Recanto Champagnat e da Universidade Federal de Santa Catarina, por meio do Instituto de Pesquisas e Estudos em Administração Universitária (Inpeau).
No âmbito da Rede de Pesquisadores em Gestão Social, além da
gratidão a cada pessoa que dedicou algo de si a essa construção coletiva, destacamos grupos e instituições que se envolveram diretamente na organização do evento: Centro Universitário da FEI; Coletivo de
Estudos, Pesquisa e Intervenção da Mó de Vida Coop.; Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM); Federação Nacional dos Estudantes de Administração Pública (Feneap); Fundação Getulio Vargas/RJ/Ebape, por meio do Programa de Estudos em Gestão Social
(Pegs); Fundação Getulio Vargas/Eaesp; PUC Minas; PUC São Paulo;
TS – Núcleo de Trabalho em Gestão Social e Avaliação; Universidade
Federal da Bahia, por meio do Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social (Ciags) e do Observatório da Formação em
Gestão Social; Universidade Federal de Lavras, Universidade Federal do Ceará, Campus Cariri, por intermédio dos grupos de pesquisa
Laboratório Interdisciplinar de Estudos em Gestão Social (Liegs) e
Paideia, Laboratório Transdisciplinar de Pesquisa e Extensão sobre
Metodologias Integrativa para a Educação e a Gestão Social; Universidade Federal do Tocantins, por seu Núcleo de Economia Solidária
(NeSol); Universidade do Vale do São Francisco (Univasf); Universidade Federal Fluminense.
Agradecemos aos autores de artigos, relatos de prática, artigos
de iniciação científica e oficinas que submeteram e apresentaram
seus trabalhos, os quais estão disponíveis nos Anais do V Enapegs
(www.rgs.wiki.br). Muitos desses trabalhos foram indicados em regime de fast track para revistas científicas e vários deles foram publicados. Aos palestrantes, artistas, autoridades, gestores, estudantes,
técnicos e ouvintes que estiveram presentes, nosso agradecimento.
Nosso reconhecimento e gratidão especial aos que teceram palavras e produziram imagens para elaborar os artigos que compõem
este livro. E aos que dedicaram seu talento e sua vontade para sua
revisão, editoração e publicação em meio impresso e eletrônico.
Edgilson Tavares de Araújo2
Valéria Giannella3
Vivina Machado de Oliveira Neta4
Paula Chies Schommer5
Este texto traz à tona algumas conjecturas que circularam e
circulam entre algumas das pessoas que sonharam com a ideia
do V Enapegs antes que, muitos mais, botassem as mãos na massa para realizá-lo. Pode ser olhado como um exemplo de escrita
criativa, como uma daquelas pinturas que se fazem em conjunto, muitas pessoas, cada uma com um pincel na mão colocando
sua inspiração na tela e, ao mesmo tempo, sendo inspirado pelo
que @s outr@s estão desenhando. Assim, trata-se de um texto
aberto, como vários feixes de luz compondo um arco-íris, onde
o número das nuances possíveis só é dado nos limites da nossa
imaginação.
O texto é parte de um processo que se iniciou em 2010,
quando um grupo de amigos definiu alguns princípios que nos
orientariam inicialmente na construção deste V Enapegs:
1 Texto elaborado e difundido como parte da preparação para o V Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social – Enapegs, que aconteceu em maio de 2011, em Florianópolis
– SC, como convite à reflexão sobre os princípios que nortearam a construção do evento. O
texto original é mantido nesta versão em livro, organizado após o encontro.
2 Edgilson Tavares de Araújo é doutorando e mestre em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, especialista em Estratégias de Mobilização e Marketing Social
pela Universidade de Brasília / Unicef, bacharel em Administração pela Universidade Federal da Paraíba.
3 Valéria Giannella é doutora em Políticas Públicas do Território pela Universidade de Veneza (Itália). Líder do grupo de pesquisa Paidéia - Laboratório sobre Metodologias Integrativas
para a Educação e Gestão Social. Professora da Universidade Federal do Ceará – Campus Cariri.
4 Vivina Machado de Oliveira Neta é associada a Via Vida Desenvolvimento Organizacional.
Desenvolve e aplica metodologias integrativas, com foco em Diálogo e Gestão Criativa para
lidar com conflitos. Mestre em Desenvolvimento e Gestão Social pela UFBA/CIAGS.
5 Paula Chies Schommer é professora adjunta da Universidade do Estado de Santa Catarina
(Udesc/Esag) na área de Administração Pública e professora colaboradora do Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social da Universidade Federal da Bahia (Ufba/Ciags).
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Gestão social como possibilidade de ampliação da
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• Circularidade - que o próprio evento constitua espaço
de experiência e experimentação metodológica na forma
como é construído e nas reflexões que promove.
• Diversidade - de formatos, de áreas do conhecimento
científico e não científico, de organizações, de regiões e de
pessoas participantes.
• Diálogo e dialógica – abertura de possibilidades de interação com linguagens diferenciadas, com arte, teatro,
“contação” de histórias.
• Interdependência – estabelecendo conexões em rede e
atentando para o movimento que nos une.
• Incerteza – movimento de refletir, ao nos relacionarmos
com o conhecimento, com o pensamento, com o outro,
considerando as nossas pressuposições como uma, dentre
tantas outras possibilidades existentes – conhecidas e a
conhecer. Suspensão dos estados de “certezas”. Ampliação
do processo de aprendizagem.
• “Inclusividade” – capacidade de sustentar a tensão ao lidar com a diversidade, nos temas, posturas, conhecimentos que pareçam contraditórios, divergentes, incluindo-os.
Enriquecendo o diálogo, as perspectivas de gerar novas
percepções, novos olhares.
De lá para cá, seguimos em diálogo e decidimos compartilhar algumas ideias com os demais participantes do Enapegs,
convidando-os a entrar na conversa. Uma conversa sobre gestão
social e princípios que orientam nossa ação e nossos desejos em
relação ao evento. Começamos com este texto e nos propomos a
seguir por outros meios e em outros momentos, antes, durante
e depois do encontro, com quem mais desejar participar.
Edgilson Tavares de Araújo
Vivermos numa sociedade organizacional e de gestão nos
leva à necessidade de repensar a ideologia gerencialista criada entre o homem e a sociedade. Neste sentido, partimos para
novas definições sobre gestão, buscando compreendê-la como
Como fazer gestão?
Ao trazermos à tona as discussões sobre gestão social na
perspectiva das possibilidades para ampliação da esfera pública, per si, nos leva a pensar em novas questões:
Por que fazer gestão?
Que gestão?
Para que gestão?
Estas indagações geram tensões inquietantes na busca de
um novo sentido para compreender relações e processos sociais, geralmente mediados/regulados pela gestão que, tradicionalmente, apresenta-se como “pragmática e, portanto, não
ideológica, fundada sobre a eficácia da ação, mais do que sobre
a pertinência das ideias”. Trata-se de uma “metalinguagem” que
influencia fortemente diferentes atores6.
Cotidianamente, procuramos na gestão um sentido para a
ação individual e coletiva e, por vezes, para a vida. Ao tentar
explicar, ensinar e aprender gestão, sempre se valoriza a habilidade prática (craft) aprendida a partir, principalmente, da experiência enraizada no contexto. Henry Mintzberg, em sua última publicação, “Managing: desvendando o dia a dia da gestão”7,
enfatiza que gestão é algo que não se ensina, mas se pratica. A
gestão envolve ciência (análise das evidências e conhecimentos
sistemáticos), arte (compreensão e visão baseadas na intuição
e emoções; discernimentos criativos) e prática (experiência,
aprendizagem). Sabemos, porém, que raros são os momentos
nos quais concretamente temos oportunidades reflexivas sobre
a gestão enquanto prática, bem como, é raro nos permitirmos
6 GAULEJAC, V. Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. 2ª ed. Aparecida-SP: Idéias & Letras, 2007, p. 63 (Coleção Management , 4).
7 MINTZBERG. H. Managing: desvendando o dia a dia da gestão. Porto Ale-
gre: Bookman, 2010.
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processo relacional. Porém, dificilmente deixamos de lado o
pensamento instrumental que nos leva a sempre perguntar:
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experimentar novas experiências e obter discernimentos criativos.
Frente a tais argumentos, podemos fazer novas indagações:
O que as pessoas fazem da gestão?
O que a gestão faz com as pessoas?
Como as pessoas vivem na sociedade da gestão?
Tais questões podem guiar as discussões sobre a gestão social, já que para tentar respondê-las se faz necessário reconhecermos a diversidade de visões de mundo, lógicas, valores, formas
de comunicação, prioridades ao se viver... São diferentes pessoas e
organizações de todo o país que durante o V Enapegs poderão debater e vivenciar, num espaço de diálogo e dialógica, diferentes
formas de manifestação para expressar conhecimentos e visões
(tidas como científicas ou não) sobre a gestão social e a esfera
pública. Abrir este espaço significa a possibilidade de novas concepções e metodologias para a gestão social com a presunção da
ampliação da esfera pública. Compreendemos que construindo
coletivamente novos meios, poderemos chegar a novos fins. Para
tanto, é necessário estarmos dispostos e disponíveis a educar o
nosso olhar, escutar ativamente, respeitar o próximo e o coletivo,
deixar fluir a razão com emoção e vice-versa.
Não há dúvidas que a gestão, muitas vezes vista como espécie de conformismo ao sistema e às relações capital-trabalho, vem
sendo considerada cada vez mais necessária no âmbito do social,
mesmo para os mais céticos. Ao tratarmos da gestão cujo objeto
é o social, deve-se atentar para que tipo de gerenciamento, com
quais finalidades, características e racionalidades. Seria a gestão social uma contraposição à lógica taylorista, vista como uma
forma mais humanizada e compactuada para inovar e promover
mudanças, inclusive nas relações capital-trabalho? Ou seja, a qualificação da gestão como social altera essencialmente a concepção
de gestão?
A gestão social enquanto construto inovador in process que
vem ocorrendo em diferentes tempos e dinâmicas em torno de um
mesmo objeto (o social, enquanto coletivo, relacional e societário) vem buscando novos caminhos e explicações. Para isso, deve
Valéria Giannella
Pegando a deixa do Edgilson em seu texto: “A gestão envolve ciência (análise das evidências e conhecimentos sistemáticos),
arte (compreensão e visão baseadas na intuição e emoções; discernimentos criativos) e prática (experiência, aprendizagem). Sabemos, porém, que raros são os momentos nos quais concretamente temos oportunidades reflexivas sobre a gestão enquanto
prática, bem como é raro nos permitirmos experimentar novas
experiências e obter discernimentos criativos.”
Reflito em torno destas considerações, pois esta partição
lembrada pelo meu amigo Dido é tão real e afeta tanto a maioria
de nossas práticas de gestores que quando, por alguma conjuntura, conseguimos juntar aqueles aspectos todos numa ação só (saber sistematizado, intuição, emoções, arte e inspiração criativa....)
os êxitos são acima do normal e parecem extraordinários. Fomos
acostumados pela nossa educação de profissionais e cientistas
a manter estas dimensões separadas e que esta própria separação seria a garantia de validade do nosso saber científico. Hoje
esbarramos nos limites trazidos pela visão separada do mundo
que tanto fatigamos em conquistar. O mundo que vivenciamos
nos surpreende continuamente com sua variedade, diferença,
imprevisibilidade, complexidade e contradição. Não existe aparentemente um princípio só capaz de dar conta disto tudo, isto
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atrair de maneira indispensável a inclusividade de conhecimentos e atores necessários para construir e solidificar tal concepção,
zelando pela primazia essencial dos valores democráticos e da defesa de direitos manifestos em vários campos das Ciências Sociais.
Trata-se da necessidade de inovação nas lógicas e práticas gerenciais, de modo que se tornem mais éticas e humanitárias. Para
tanto, necessitamos além do “ser” e “estar”, compreender o “vir a
ser” gestor social. Compreensão esta que exige sentir a interdependência que nos torna viventes, iguais e diferentes, e apenas
a certeza das infinitas possibilidades de aprendermos juntos,
antes, durante e após o Enapegs.
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é exatamente o contrário do que fomos puxados a acreditar: que o
princípio de racionalidade científica (linear, instrumental, objetiva)
fosse a pedra de toque para podermos conhecer, intervir e dominar
a realidade natural e social.
Hoje, bem pelo contrário, a palavra integração emerge sempre mais como palavra-chave. Integração de sujeitos, integração de
lógicas e princípios norteadores, integração de antigas dicotomias,
integração das lições que as múltiplas culturas que convivem, muitas vezes, uma ao lado da outra, nos propõem sobre as maneiras de
gestão e de convivência com a natureza e com o Outro... A linda história do Espelho quebrado que Vivina vai nos contar, (se ela topar
com minha deixa) concretiza de forma linda e mais eficaz do que
muitas páginas de texto a situação em que nos encontramos.
Mais uma coisa me urge dizer, que caracteriza e especifica
meu entendimento do tópico que escolhemos para o Enapegs deste ano (a Gestão Social como caminho para a redefinição da esfera
pública). Pois entendo esta redefinição, de novo, como Integração (pelo menos nos vários sentidos aludidos acima) e vejo (no
sentido bem concreto do termo) a insuficiência de uma lógica participacionista apenas concebida como construção de arenas nas
quais os sujeitos capazes de utilizar os códigos consagrados da racionalidade científica têm vez e voz. Podemos sintetizar dizendo
que lutamos muito tempo em prol da passagem da racionalidade
cientificista à racionalidade dialógica para reconhecermos, hoje,
a sua total insuficiência. Para que estejam presentes em nossas
práticas de gestão as subjetividades e práticas sociais que o paradigma positivista, não podendo homogeneizar, obliterou, precisamos recorrer a novos formatos de ação, novas metodologias que
podemos chamar, referido a tudo o que falamos acima, de Integrativas. Elas nos permitem darmos voz aos que foram “ausentados”
pela lógica dominante e amplificar as tendências que o modelo de
produção socioeconômica dominante quis apagar. Elas remetem
à Sociologia das Ausências e das Emergências que Boaventura de
Souza Santos nos propõe (SANTOS, 20088), mas focalizam espe8 SANTOS, B. S. A sociologia das ausências e das emergências. In: A gramática do tempo: para
uma nova cultura política. 2ª ed. São Paulo: Cortez Editora, 2008.
Vivina Machado de Oliveira Neta
E pegando daí, neste exercício de gerir conjuntamente a escrita deste texto, de incluir as nossas diversas percepções, de
atuar de forma interdependente e de colocar em suspensão as
certezas que possamos ser tentados a crer relativas – sobretudo,
à gestão social... aceito o convite da amiga Valéria e inicio contando o mito do espelho de Olorum, que no candomblé, representa O
Criador.
Conta-se que no princípio havia uma única verdade no
mundo. Entre o Orun, mundo espiritual e o Aiyê, mundo
material, havia um espelho. Daí é que, tudo que se mostrava no Orun materializava-se no Aiyê. Ou seja, tudo
que estava no mundo espiritual refletia–se exatamente no mundo material. Ninguém tinha a menor dúvida sobre os acontecimentos como verdades absolutas.
Todo cuidado era pouco para não quebrar o espelho
da verdade. O espelho ficava bem perto do mundo material e bem perto do mundo espiritual. Naquele tempo vivia no Aiyê uma jovem muito trabalhadora que
se chamava Mahura. A jovem trabalhava dia e noite
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cificamente o aspecto do “como fazer” que ainda é fraco e pouco
desenvolvido na proposta de Boaventura.
Como agir, praticamente, a partir de amanhã, em nossos projetos sociais, quer que eu seja poder público, universidade ou terceiro setor?
Falamos de inclusão, mas ao praticá-la ainda caímos nas
práticas convencionais (baseadas na racionalidade lógico-verbal)
que excluem os excluídos de sempre. Podemos começar a pensar
em incluir a contação de histórias, a dramatização teatral, a expressividade dos corpos e as mil outras possibilidades expressivas que
o ser humano, se não cauterizado, usa normalmente para fazer sentido e dar sentido ao seu mundo para ampliar a esfera pública no
nosso e nos demais países do mundo em crise do terceiro milênio?
Eis a forma em que enxergo o desafio que o nosso V Enapegs
nos leva a pensar. Em Florianópolis teremos uma bela chance de
partilharmos reflexões, experimentos e anseios, em um formato
inovador, para avançarmos na direção desejada.
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ajudando sua mãe a pilar inhames. Um dia, inadvertidamente, perdendo o controle do movimento ritmado
da mão do pilão, tocou forte no espelho que se espatifou pelo mundo. Assustada, Mahura saiu desesperada
para se desculpar com Olorum. Qual não foi a sua surpresa quando O encontrou tranquilamente deitado à
sombra do Iroko. Olorum ouviu as desculpas da jovem
com toda a atenção. Em seguida declarou que daquele
dia em diante não existiria mais uma única verdade no
mundo. Declarou ainda: De hoje em diante quem encontrar um pedacinho de espelho em qualquer parte
do mundo, estará encontrando apenas uma parte da
verdade, provavelmente a sua verdade própria. Porque
o espelho reproduz apenas a imagem do lugar onde ele
se encontra. (MACHADO, VANDA, 2006)9
E o que este mito pode nos ajudar a refletir sobre gestão?
E na gestão do V Enapegs?
Com o mito quero ressaltar três dos princípios que norteiam
o encontro: Interdependência, Incerteza e “Inclusividade” e aí
seguirmos no nosso diálogo.
O mito expõe a quebra do grande espelho que, ao ser quebrado, nos re-liga com os seus pedaços. Nos re-liga para que ampliemos o encontro. A verdade só se refletirá novamente com a junção
dos pedaços de espelho. A Verdade para ser revelada deverá unir as
várias verdades, num movimento sistêmico, de interdependência.
Para Maturana, o social é uma dinâmica de relações humanas
que se funda na aceitação mútua. Ele nos diz: “Se não há aceitação
mútua e se não há aceitação do outro, e se não há espaço de abertura para que o outro exista junto de si, não há fenômeno social”
(MATURANA, 2006, p. 47)10.
Neste movimento do encontro, a gestão como ato relacional11,
9 MACHADO, V. Àqueles que têm na pele a cor da noite: ensinâncias e aprendências com o
pensamento africano recriado na diáspora. Faculdade de Educação. Universidade Federal da
Bahia. Salvador: UFBA, 2006. (Tese de doutorado).
10 MATURANA, H. R. Cognição, ciência e via cotidiana. Belo Horizonte: UFMG, 2006.
11 FISCHER, T. Poderes locais, desenvolvimento e gestão: introdução a uma agenda. In: FISCHER, T. (org.). Gestão do desenvolvimento e poderes locais: marcos teóricos e avaliação. Sal-
E a “Inclusividade”?
Olorum inclui a quebra do espelho: já que o espelho está partido, a única verdade se transformará em muitas verdades. Cada
pedaço de espelho refletirá uma verdade. “De agora em diante não
existirá uma única verdade”.
A gestão como ato inclusivo, de abarcar as diversidades, de
enriquecer as perspectivas e criar novas possibilidades de ação,
de reflexão. Gestão que inclui Razão e inclui emoção. Gestão que
inclui o processo na obtenção de resultados. Processo que se inclui como resultado. O Enapegs incluindo as múltiplas perspectivas, olhares, visões, conhecimentos, epistemologias.
E a Incerteza?
Como ter certezas com a existência dos múltiplos pedaços de
espelho? Como ter certezas se cada pedaço de espelho mostra um
pedaço da Verdade? “...tudo que se mostrava no Orun materializava-se no Aiyê. Ou seja, tudo que estava no mundo espiritual refletia-se
exatamente no mundo material. Ninguém tinha a menor dúvida
sobre os acontecimentos como verdades absolutas”. O princípio
da Incerteza que tem o sentido de um questionamento, de uma
atitude de permanente vigilância sobre a “tentação da certeza”,
como Maturana e Varela (1998) falam amplamente no livro A Árvore do Conhecimento12.
A gestão como suspensão dos estados de certezas que podem
empobrecer, que podem criar rigidez. Edgar Morin nos fala sobre
a necessidade de enfrentarmos a incerteza, diz que “conhecer e
vador: Casa da Qualidade, 2002, p.12-32.
12 MATURANA, H. R.; VARELA, F. J. The tree of knowledge: the biological roots of human understanding. Boston: Shambhala, 1998.
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interdependente, sistêmico que influencia e é influenciado pela
rede de convivência, pelos múltiplos saberes, conhecimento, pela
revisão de estruturas estabelecidas, pelas possibilidades de abertura de diálogos, de gerir os conflitos que emergem desta rede
de diversidade, de promover interrelações, de atuar em rede, de
expandir a atuação conjunta. De vivenciarmos no Enapegs a interdependência.
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pensar não é chegar a uma verdade absolutamente certa, mas dialogar com a incerteza [...] assim quando conservamos e descobrimos novos arquipélagos de certezas, devemos saber que navegamos em um oceano de incertezas” (MORIN, 2003, p. 59)13.
O princípio da Incerteza no V Enapegs pode contribuir para
que possamos abrir mão, refletir sobre algumas certezas que muitas vezes se tornam absolutas. E ao abrir mão, podemos também
criar um campo para proliferação de novas, de inovadoras possibilidades. A gestão como práxis, fluida, em que resultado inclui
processo e é processo em movimento.
Esta proposta do V Enapegs traz em si mesma o experimentar a gestão fazendo uma reflexão da gestão do encontro. Abrindo
possibilidades de olhar para si mesmo ao gerir. Fazendo a integração: teoria e prática.
E como é praticar a teoria?
E como é teorizar a prática?
Quais as possibilidades de refletir sobre as práticas?
Quais as possibilidades de criar novas práticas, de integrar
metodologias, de vivenciar as metodologias integrativas?
Desejamos criar juntos espaços de reflexão, ampliando as
possibilidades de atuarmos de forma interdependente, inclusiva. E fechando com a deixa de Edgilson que Valéria reforçou: “A
gestão envolve ciência (análise das evidências e conhecimentos
sistemáticos), arte (compreensão e visão baseadas na intuição e
emoções; discernimentos criativos) e prática (experiência, aprendizagem)”.
Que, no Enapegs, estejamos atentos, unidos, vivenciando, refletindo e unindo ciência, arte e prática. Aprendendo a gerir para que a Gestão Social seja um caminho para a redefinição da esfera pública.
Paula Chies Schommer
Quando finalmente paro para ler este texto que vem sendo
elaborado há certo tempo, meu coração vibra ao “ouvir” meus
13 MORIN, E. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 8ª ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
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colegas. Posso mesmo ouvir o som da voz de Edgilson e ver seu
jeito falando, ouvir Valéria e seu sotaque cada vez mais brasileiro,
ouvir e ver Vivina pronunciando as palavras em meio a seu rosto
sorridente. Sinto arrepio e profunda emoção ao ler a história do
mito do espelho, embora a tenha visto outras vezes.
Desde que começamos a desenhar esta quinta edição do
Enapegs, em uma reunião da Rede de Pesquisadores em Gestão
Social, no encontro de Lavras, Valéria, Vivina e Edgilson estiveram sempre presentes, com ideias, opiniões, incentivo, amizade,
compromisso. Além deles, muitas pessoas vem se envolvendo com
dedicação e entusiasmo. Há os amigos de longa data, amigos que
vamos fazendo ao trabalharmos juntos, pessoas que ainda não se
conhecem pessoalmente, de várias partes do país e de fora, que
escrevem, participam, sugerem, comprometem-se, ligam-se a essa
rede invisível e tão perceptível.
Sou grata à vida por me proporcionar estar com essas pessoas
vivendo a experiência de construir um encontro, de ajudar a tecer
fios e nós de uma rede, de aprender um pouco sobre gestão social
ao participar da gestão de um pequeno empreendimento coletivo.
Um dos grandes desafios disso tudo, me parece, é aproveitar os
potenciais de tantas pessoas reunidas. Construir o Enapegs usando
e desenvolvendo as potencialidades da rede. Estejamos todos atentos a esse desafio, ao que significa para cada um de nós essa oportunidade, ao que esse Encontro nos permite experimentar, aprender,
construir e destruir. A abundância é maravilhosa, mas pode gerar
frustrações se não formos capazes de percebê-la e lidar com ela.
Uma das coisas que esse evento tem me permitido perceber
é a força do coletivo, do engajamento, da participação. É só um
pequeno evento e me impressiona o que é possível fazer juntos.
Se podemos fazê-lo nesse encontro, nessa rede, podemos fazê-lo
em nossas instituições, em nossos bairros, nossas cidades. É impressionante o que acontece quando pedimos ajuda. As pessoas ajudam! A solidariedade está muito presente. É bonito o que
acontece quando pedimos opinião. As pessoas opinam! E ao opinar se envolvem, ao se envolverem trazem consigo outras tantas
possibilidades.
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Às vezes fico preocupada com os recursos financeiros (será
que vai dar?), e logo percebo que tudo vai se arranjar, que temos
muitas possibilidades, que dá para fazer muita coisa com os recursos de que já dispomos. E que o limite de recursos nos faz buscar soluções mais simples e baratas e nos faz pedir ajuda, um belo
exercício. Diante de uma de nossas parceiras que perguntava o
que faríamos se faltasse dinheiro, eu disse: não se preocupe, é um
evento simples, sem extravagâncias, seremos responsáveis e parcimoniosos nas despesas. E se faltar, no final a gente faz uma “vaquinha” e todos contribuem. Somos uma comunidade. E as contas
serão todas quitadas.
Tenho procurado ficar atenta aos princípios que definimos
nas primeiras conversas – experimentação, diálogo e dialógica,
interdependência, diversidade, inclusividade, incerteza.
Percebo o desafio da diversidade quando procuramos incluir no Enapegs diferentes áreas do conhecimento e pessoas de
diferentes origens. A tendência é agregarmos pessoas que são da
mesma área, do mesmo meio, os já conhecidos. É preciso buscar
com determinação, humildade e criatividade os que diferem de
nós em algo, para que possamos, primeiramente, perceber nossos
limites, até para saber a quem procurar, depois nos encantar com
as diferenças, com o que o outro sabe e eu não sei e, em seguida,
perceber o quanto temos em comum e o quanto podemos aprender juntos.
Percebo o desafio da “inclusividade”, por exemplo, quando
definimos um número limitado de participantes. Algo que imagino debateremos bastante.
O que mais tenho aprendido é valorizar a incerteza, algo
complicado para uma administradora como eu, ainda mais com
família de origem alemã (tudo tem que ser certinho, previsível).
A incerteza tem me surpreendido com a abundância de possibilidades. Percebo que a incerteza pode incluir o planejamento, os
critérios (e sua discussão, quando se percebe no meio do processo
que poderiam ser melhores), os limites predefinidos. E ir muito
além deles.
Diante disso tudo, sinto que aprendo sobre gestão social, so-
E, é claro, nos encontramos ao final de maio, em Florianópolis!
Até breve.
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bre como podemos atuar na esfera pública, sobre como podemos
nos conectar a outras pessoas, dialogar com elas, gerir com elas,
ampliar possibilidades, aprender juntos, construindo novos repertórios de ação e de interpretação.
Fico por aqui, convidando aos demais que quiserem entrar
nesse diálogo. No site da RGS (www.rgs.wiki.br) há uma página
que apresenta os princípios do evento. É possível usarmos esse
espaço para ouvir percepções dos demais participantes. Podemos
debater usando o Facebook, alguns já são “amigos” do “Enapegs
Encontro” por lá, outros podem se agregar. Quem preferir, pode
enviar email para [email protected] ou para os que iniciaram a conversa: Edgilson ([email protected]), Valéria ([email protected]), Vivina ([email protected]), Paula
([email protected]).
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Paula Chies Schommer1
Carolina Andion2
Daniel Moraes Pinheiro3
Enio Luiz Spaniol4
Mauricio C. Serafim5
1.Introdução
No âmbito de uma concepção ampliada de esfera pública,
que compreende, para além do Estado, múltiplas interações entre atores da sociedade civil, cidadãos articulados vistos como
sujeitos políticos engajados na definição do que constitui o interesse público e na sua realização, há espaço para refletir sobre estruturas sociais e organizacionais e modos de gestão pelos
quais se coproduzem bens e serviços públicos e são engendradas inovações sociais.
É nesse sentido que se orienta este artigo, que busca promover um diálogo entre um conjunto de pesquisas sobre coprodu1 Paula Chies Schommer é professora de administração pública da Universidade do Estado
de Santa Catarina (UDESC/ESAG), líder do grupo de pesquisa Politeia – Coprodução do bem
público: accountability e gestão e professora colaboradora do Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social da Universidade Federal da Bahia (Ciags/Ufba).
2 Carolina Andion é professora de administração pública e Diretora de Extensão no Centro
de Ciências da Administração e Socioeconômicas (ESAG) da Universidade do Estado de Santa
Catarina (UDESC). Doutora em ciências humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina, é líder do Núcleo de Pesquisa em Inovações Sociais na Esfera Pública e pesquisadora do
Centro de Pesquisa e Informação sobre Economia Pública, Social e Cooperativa, CIRIEC Brasil, filiado ao CIRIEC Internacional.
3 Daniel Moraes Pinheiro é professor de administração pública da Universidade do Estado de
Santa Catarina – UDE/ESAG, pesquisador do NISP (ESAG) e ORD (UFSC), membro do CIRIEC-Brasil. Doutorando em Administração (CPGA/UFSC).
4 Enio Luiz Spaniol é professor de sociologia, ciências políticas e comunicação no curso de
administração pública da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC/ESAG), pesquisador, doutor em sociologia política.
5 Mauricio Custódio Serafim é professor do Departamento de Administração Pública do Centro de Ciências da Administração e Socioeconômicas (ESAG) da Universidade do Estado de
Santa Catarina (UDESC). Doutor em administração pela FGV-EAESP e vice-líder do Núcleo de
Pesquisa em Inovações Sociais na Esfera Pública (NISP).
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Coprodução e inovação social na esfera pública em
debate no campo da gestão social
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ção do bem público e inovação social na esfera pública que, desde
2004, vem sendo realizado na Universidade do Estado de Santa
Catarina (UDESC), e os debates que, desde 2007, ocupam a cena
do Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social (Enapegs) e da Rede de Pesquisadores em Gestão Social (RGS). Coprodução e inovação social na esfera pública constituiu um dos eixos temáticos da quinta edição do Enapegs, realizado em Maio de 2011,
em Florianópolis, sob o tema central Gestão social como caminho
para a redefinição da esfera pública.
O tema do eixo foi proposto por pesquisadores da UDESC, ao
perceberem que o enfoque de administração pública que baliza
as pesquisas nesta instituição está em sintonia com a noção de
gestão social. Desejávamos explorar perspectivas teóricas e experiências de coprodução do bem público para a inovação social, na
expectativa de que isso nos permitisse aprender sobre suas implicações para (re) configurar a esfera pública e suas interfaces com
a esfera privada e a problematizar a relação entre gestão social e
gestão pública.
A constituição do curso de graduação em administração pública da UDESC, instalado em 2004, está fundamentada na noção
ampliada de público não restrito a estatal e na visão de que bens
e serviços públicos podem ser coproduzidos por governantes
e cidadãos, articulados em rede e intermediados por múltiplas
formas de mobilização, associação e organização autônoma, inclusive pela estrutura estatal e suas interrelações com a sociedade. São considerados sujeitos na esfera pública os cidadãos,
enquanto indivíduos e enquanto integrantes de movimentos,
grupos e organizações sociais, bem como os governantes, tanto os servidores públicos (ou burocratas) e os políticos eleitos
(representantes), e as organizações de mercado que de alguma
forma participam da produção de bens e serviços públicos e do
fomento a inovações sociais.
As estruturas e estratégias de gestão por meio dos quais esses sujeitos articulam-se entre si, tomam decisões e executam
ações são foco do interesse de pesquisadores em gestão social e
gestão pública, particularmente, em nosso caso, no que se refe-
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re às maneiras pelas quais é possível coproduzir o bem público
e engendrar inovações sociais na esfera pública. Entende-se que
se trata de um processo que exige intensa participação cidadã e
que promove aproximação entre governantes e cidadãos. Uma vez
que diferentes ideias, saberes e capacidades são empregadas no
processo de coprodução, há uma possibilidade objetiva de se estimular a criatividade, a aprendizagem e a inovação, ampliando-se
possibilidades de solução para problemas públicos e de desenvolvimento de capacidades dos sujeitos envolvidos. Processo este
que não é dado a priori e nem sempre é harmônico, envolvendo
diversidade de práticas que contemplam construção, contradição
e conflito. Nesse sentido, nos parece relevante compreender a
construção dessas práticas enquanto formas de ação coletiva que
visam transformar o espaço público, levando em conta seus dilemas e desafios.
Algumas das perguntas que inicialmente motivaram a exploração no eixo temático Coprodução e Inovação Social na Esfera
Pública e constavam da chamada de trabalhos foram: quais as
aproximações entre gestão social e gestão pública, uma vez que
esta seja orientada pela noção de coprodução do bem público? De
que modo os estudos relativos à gestão social (e seu repertório
teórico-conceitual e metodológico) podem contribuir para nossa
compreensão de experiências de coprodução do bem público? Em
que medida as inovações sociais geradas por essas experiências
demonstram capacidade para promover institucionalização de
novos saberes e práticas e para transformar padrões da esfera pública? Qual o alcance e os limites das inovações sociais oriundas
da sociedade civil e do mercado na esfera pública? Quais os dilemas da aproximação de diferentes lógicas na articulação entre as
esferas privada e pública?
Além destas e de outras perguntas, a chamada apontava para
quatro campos de manifestação do fenômeno da coprodução e
inovação social: em governos locais, em experiências de base associativa, na prática do investimento social privado e na iniciativa
privada, os quais serão abordados adiante.
A amplitude dessas questões e a diversidade desses cam-
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pos de ação apontam para a necessidade de uma base conceitual
para tratá-las, esclarecendo-se termos e suas interrelações, assim
como nos instiga a relacioná-las a nossas práticas como pesquisadores, professores e gestores. Optamos por delimitar o objetivo
central neste trabalho como o de explorar a relação entre estudos
sobre coprodução e inovação social na esfera pública e debates recentes no campo da gestão social, em particular na quinta edição
do Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social (Enapegs). No âmbito deste objetivo geral, pretendemos: i) apresentar
definições básicas de esfera pública, coprodução do bem público e
inovação social; ii) explorar relações entre estes termos, por meio
da descrição de algumas de nossas práticas em ensino, pesquisa e
extensão; iii) relatar sua discussão no âmbito do 5º Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social (Enapegs), realizado em
Maio de 2011, na cidade de Florianópolis; iv) sugerir questões e
caminhos de pesquisa relacionadas a esses temas em sua relação
com gestão social.
Cada um destes objetivos específicos corresponde a uma das
partes do texto ora apresentado, que se baseou em referenciais bibliográficos, na experiência de ensino, pesquisa e extensão dos autores e no processo de construção do eixo temático Coprodução e
inovação social na esfera pública no V Enapegs, incluindo a chamada
de trabalhos, a avaliação dos artigos recebidos e a participação nas
sessões de apresentação e discussão dos trabalhos durante o evento.
1. Definições basilares para o debate
Buscando estabelecer bases para um debate sobre os temas e
questões levantadas, apresentamos o que entendemos por coprodução do bem público e inovação social, partindo da apresentação
da noção de esfera pública, pois esta é transversal e articulada
tanto com a coprodução do bem público, quanto com a inovação
social; a esfera pública é o palco onde esses fenômenos ocorrem.
Em seguida, exploramos os dois conceitos citados, mostrando elementos do debate atual sobre eles e perspectivas teóricas que embasam nossa prática, explorada no item seguinte.
Delimitar o conceito de esfera pública, considerando suas diferentes acepções ao longo da história, os principais autores que
abordam a sua relação com espaço público, ação pública e opinião
pública, constitui um desafio para além do escopo deste texto6. Limitamo-nos a tratar de algumas de suas características, as quais
julgamos essenciais para compreensão dessa esfera como um campo amplo e diverso de relações entre sujeitos e instituições da sociedade civil que se auto-organizam influenciando o Estado e sendo
influenciados por este (ANHEIER e LIST, 2005). Entendemos a esfera pública como o palco no qual a coprodução do bem público e a
inovação social ocorrem.
A compreensão de esfera pública passa por sua relação com
a esfera privada. Originalmente, a esfera privada correspondia ao
espaço da casa, da família, do labor e do trabalho, da produção necessária à sobrevivência, ou seja, a economia, bem como ao espaço
da privacidade e das regras de convivência entre os membros da
família ou do feudo. Já a esfera pública correspondia ao espaço da
política, da participação dos homens livres na vida da cidade, da
discussão e deliberação sobre temas de interesse comum. Era o espaço da ação, no sentido proposto por Hannah Arendt, da atuação
do homem como animal político, da realização da condição humana
(ARENDT, 1997).
Como analisa Habermas (1984), com a ascensão da sociedade burguesa e o declínio do feudalismo, a esfera pública passou a
representar um espaço de discussão e articulação de interesses da
burguesia para exercer pressão sobre os governantes e sobre os detentores do poder tradicional. Era, portanto, socialmente restrita
(aos grupos burgueses). Mais tarde, para além dos interesses econômicos, nas cidades em formação e crescimento, as pessoas passaram a reunir-se em sociedades literárias, discutindo arte e literatura e as questões da intimidade a elas associados. Assim, temas da
literatura e da economia extrapolaram os limites da casa e do feudo,
6 Algumas das obras fundamentais que discutem a noção de esfera pública são A condição
humana, de Hannah Arendt, Mudança estrutural da esfera pública, de Jürgen Habermas, e O
declínio do homem público: as tiranias da intimidade, de Richard Sennett.
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2.1 A noção de esfera pública
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alterando tanto a esfera privada quanto a esfera pública, e fazendo
emergir a esfera social, esta a da moral, da convivência, das regras
de comportamento, que dialoga e por vezes invade a esfera íntima,
da privacidade.
Nesse contexto, emergiram debates sobre igualdade, liberdade
e publicidade, por meio da arte e crítica de arte, da ciência e filosofia, da moral, do direito e da política. A esfera pública passou a ser
espaço de crítica e transformação da ordem da dominação política,
inclusive da própria ordem da ideologia burguesa, ao revelar-se o
descompasso entre as propostas universalistas que continha e a realidade da sociedade de classes (REPA, 2007). Segundo Habermas
(1984, p. 42), a esfera pública passa a ser entendida como “a esfera das pessoas privadas reunidas em um público; elas reivindicam
que esta esfera seja regulamentada pela autoridade, mas o fazem
diretamente contra a própria autoridade, a fim de discutir com ela
as leis de troca da esfera, fundamentalmente privada, mas publicamente relevante”.
De acordo com a análise habermasiana, movimentos operários,
socialistas e democrático-radicais buscaram, em certa medida, efetivar a racionalidade da esfera pública liberal-burguesa. Entretanto,
a luta pelos direitos sociais e de participação democrática que se
conformaram no Estado de direito democrático e social geraram
mudanças estruturais da esfera pública, a partir do final do século
XIX. O Estado foi socializado pela influência de certos grupos, enquanto a sociedade foi estatizada sob um intervencionismo voltado
a promover o crescimento econômico e a conquistar a lealdade das
massas, por meio de compensações sociais (REPA, 2007).
Assim, ao tempo em que a esfera pública ampliou-se nas democracias de massa, perdeu sua função crítica. De um público burguês
restrito que pensa a cultura, passou a abarcar um público de massa
amplo que consome cultura, ou os produtos da indústria cultural. A
publicidade crítica foi subvertida pela publicidade como propaganda, a opinião pública tornou-se objeto de manipulação, tanto dos
meios de comunicação de massa como de políticas partidárias e
administrativas, orientados por pesquisas de opinião que refletem
interesses já privatizados (REPA, 2007).
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Posteriormente, novas experiências políticas e sociais relativizaram essa despolitização da esfera pública. Novos e diversos movimentos sociais, entre os quais o movimento negro por direitos
civis, o movimento feminista, o dos estudantes, o ecológico e o de
grupos sexualmente discriminados reforçaram a ideia de sociedade
civil, contraposta ao âmbito do mercado e ao do Estado e constituída por movimentos, organizações e associações mais ou menos
autônomas, gerando esferas públicas diversas, na visão de Repa
(2007). Assim, há na “nova esfera pública” uma reorganização dos
espaços de debate público e construção democrática, incluindo a
diversidade de atores da sociedade, para além dos limites dos grupos organizados de poder. A esfera pública têm assim seus limites
ampliados para além do Estado, incluindo outros atores da sociedade civil envolvidos com a produção do bem público, como os movimentos sociais, as associações, enfim, os cidadãos articulados em
torno de ideais e ações compartilhadas. Como definem Anheier e
List (2005, p. 216), “o conceito de público refere-se tanto ao caráter
coletivo da democracia – pessoas organizadas em um público que é
espaço de discussão e de tomada de decisão – quanto ao seu objeto,
o bem público”. Objeto este, o bem público, nem sempre tangível
e produzido por meio da ação social orquestrada, muito mais um
subproduto resultante da ação social não orquestrada.
Ao contemplar diversidade, a esfera pública que, para Laville
(2006), constitui simbolicamente a matriz da comunidade política, é também arena de expressão de significações contestadas, na
medida em que diferentes públicos buscam nele se fazer ouvir e se
opõem em controvérsias que não excluem comportamentos estratégicos e tentativas de eliminar outros pontos de vista (LAVILLE,
2006).
Considerada, pois, como conjunto que contempla diversidade,
a esfera pública ganha conotação mais ampla, associada a contextos democráticos nos quais os cidadãos são ao mesmo tempo iguais
(como parte do social) e únicos ou diferentes (como seres políticos). Iguais no direito à expressão, à participação livre de coação.
Diferentes em suas preferências, interesses e posições políticas.
Reunindo ambas as dimensões, os sujeitos atuantes na esfera públi-
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ca são idealmente livres para expressar-se e, por meio do diálogo e
da deliberação coletiva, engajando-se ativamente em espaços públicos, articulando-se, interagindo e exercendo a crítica, formam uma
opinião pública – ou a expressão do ponto de vista de muitos, capaz
de exercer pressão sobre questões políticas. Os interesses comuns
e consensos passam a orientar as próprias ações dos cidadãos e a
ação de políticos e governantes, refletindo-se nas políticas públicas
e na atuação do aparato administrativo governamental (TENÓRIO,
2004; OLIVEIRA, CANÇADO e PEREIRA, 2010).
Destacam-se, pois, a dimensão comunicativa e a dimensão política da esfera pública, ao ser compreendida como espaço de interação face-a-face e como campo político no qual os indivíduos engajam-se ativamente em processos de diálogo, reflexão e deliberação
democráticos (OLIVEIRA, CANÇADO e PEREIRA, 2010).
Importa reforçar que a esfera pública conecta-se à esfera estatal, mas não se limita e não se confunde com ela7. A esfera pública é
palco de atuação de diferentes sujeitos coletivos e instituições, incluindo os espaços e mecanismos de relação entre o aparato estatal
e os cidadãos, bem como variadas formas de ação coletiva, redes e
movimentos sociais. Pode ser vista, ainda, como espaço de intermediação entre Estado, Sociedade e Mercado (TENÓRIO, 2004), se
considerarmos essas três esferas como distintas.
Essa visão é coerente com a transição observada por Keinert
(2000) no Brasil, de uma perspectiva estadocêntrica de relação entre Estado e sociedade, que restringe público a estatal, para uma
perspectiva sociocêntrica, na qual a concepção de público é ampliada e se equipara a interesse público. Nesta visão, o público corresponde a um espaço de interações entre diversos interesses que,
articulados, definem valores e interesses comuns (DENHARDT;
DENHARDT, 2000). O que nos remete à perspectiva de sociedade
multicêntrica elaborada por Ramos (1989), que foge à centralidade
7 Inclusive em sua origem, a esfera pública como categoria histórica da sociedade burguesa, formou-se em contraposição ao poder, no interesse de estabelecer um Estado de direito que assegurasse, por lei e sanções, a circulação de
mercadorias e o trabalho formalmente livre, sem interferências estatais na dinâmica do mercado (REPA, 2007).
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do mercado ou do Estado e é coerente com a multidimensionalidade humana. Humano como ser que se realiza mais plenamente
na medida em que desenvolve sua múltipla natureza - ambiental,
econômica, social, cultural, política, espiritual.
Para Tenório (2004), a perspectiva descentralizada, diversa e
dialógica da esfera pública, na qual é possível identificar, compreender, problematizar e propor soluções dos problemas da sociedade,
opõe-se a um processo centralizador, tecnoburocrático, elaborado
em gabinetes, em que o conhecimento técnico é o principal argumento da decisão. Algo familiar na concepção da chamada velha
administração pública (DENHARDT e DENHARDT, 2003).
Nesse sentido, são propulsores recentes da (re) valorização da
esfera pública, tanto as limitações do Estado centralizador e burocrático em prover bens e serviços públicos de qualidade e em atender
aos diversos interesses da sociedade, por razões de eficiência econômica e de fragilidade política, bem como por tolher a potencialidade
dos cidadãos, desperdiçando suas capacidades como participantes
da esfera pública, tanto em sentido político como econômico.
Além de se considerar o potencial dos cidadãos, organizados
em grupos, comunidades, organizações ou movimentos, agentes do
mercado passam a ser reconhecidos como possíveis participantes
legítimos da provisão de bens e serviços públicos, seja como fornecedores do Estado, como provedores mais flexíveis e eficientes
das diversas preferências, ou como atores políticos, envolvidos em
políticas de responsabilidade social e de investimento social privado. Aptos também a participar de processos de aprendizagem e
inovação social na esfera pública.
A ideia de que bens e serviços públicos sejam providos e os
problemas públicos sejam equacionados de forma mais criativa e
efetiva por meio de estratégias complementares – colocadas em
prática de forma colaborativa pela burocracia estatal, por organizações de mercado e pelo engajamento de sujeitos e instituições
da sociedade civil em um espaço público compartilhado – liga-se
à noção de coprodução de bens e serviços em rede (SALM e MENEGASSO, 2009; HARISSON; CHAARI; COMEAU-VALÉE, 2012) e à
noção de inovação social, as quais exploramos a seguir.
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2.2 Coprodução do bem público
Entende-se coprodução do bem público como estratégia de
produção de bens e serviços públicos em redes e parcerias, contando com engajamento mútuo de governos e cidadãos, individualmente ou em torno de organizações associativas ou econômicas.
Por meio da coprodução, os cidadãos são ativamente envolvidos na
produção e na entrega dos bens e serviços públicos, tornando-se
corresponsáveis pelas políticas públicas (WHITAKER, 1980, ALFORD, 2002, COOPER e KATHI, 2005, BRUDNEY e ENGLAND, 2003,
DENHARDT e DENHARDT, 2003, MARSHALL, 2006, NADIR, SALM e
MENEGASSO, 2007; PESTOFF, 2009; DENHARDT, 2012).
A coprodução pressupõe práticas compartilhadas e a existência de canais de expressão de diferentes interesses e perspectivas,
intermediados pelo diálogo e pela construção de consensos e objetivos comuns, em processos permeados por conflitos, relações de
poder e articulações negociadas entre os diferentes atores em cena.
Por meio da participação direta e ativa de diferentes atores,
são definidas prioridades nos processos de elaboração, implementação, controle e avaliação de políticas públicas, tendo a democracia
como critério fundamental de desenvolvimento dos serviços públicos. Por meio de dinâmicas particulares de ação coletiva (CËFAI,
2007) – que são construídas em contextos temporais e espaciais
específicos – são mobilizados e articulados conhecimentos, recursos e capacidades de pessoas e organizações públicas e privadas,
viabilizando a construção de soluções compartilhadas, contando-se
com a responsabilização dos envolvidos.
Trata-se de um processo que pode promover diversas modalidades de participação cidadã e contribuir para aproximar governantes e cidadãos. Este último ponto é enfatizado por Boyle e
Harris (2009), que entendem coprodução como uma relação de
parceria igualitária entre usuários e servidores públicos estatais no
design e na entrega de serviços públicos. Para estes autores, coproduzir significa entregar serviços públicos em relações equânimes e
recíprocas entre profissionais, usuários de serviços, seus familiares
e seus vizinhos, tornando tanto os serviços como as comunidades
agentes de mudança mais efetivos.
8 Boyle e Harris (2009) observam que o contexto atual é mais favorável à coprodução de
serviços públicos, inclusive em função da crise econômico-financeira que, desde 2008, afeta
especialmente países europeus. Na Inglaterra, por exemplo, o tema vem ocupando espaço
nos discursos de governantes, policymakers e think tanks, como alternativa para lidar com
restrições fiscais e necessidades de provisão de serviços para cidadãos de diversas origens e
condições socioculturais que vivem no país. O que tem levado, segundo estes autores, à (re)
valorização de organizações de ajuda mútua, organizações locais e dos recursos disponíveis
nas famílias e comunidades.
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
A coprodução é assim uma importante estratégia de promoção da colaboração (REAY e HININGS, 2005), processo-chave para
promover novos arranjos que possibilitam o compartilhamento de
recursos e conhecimentos para promoção de inovação social. Esta
última, conforme será explorado adiante neste texto, é entendida
como uma nova proposta de solução para uma situação social avaliada como insatisfatória. Essas novas respostas aos problemas públicos (cada vez mais exigentes e complexos) exige a mobilização
de uma diversidade de competências, além de abertura, transparência e diálogo (HARISSON e KLEIN, 2007; HARISSON, CHAARI e
COMEAU-VALÈE, 2012). Boyle e Harris (2009) também acentuam
o potencial para soluções inovadoras permitidas pela coprodução
de serviços públicos, que desafia o pensamento mainstream nas
questões econômicas, sociais e ambientais e coloca as pessoas em
primeiro lugar.
Originalmente, o termo coprodução do bem público foi empregado, de acordo com Brandsen e Pestoff (2006), no âmbito do
Workshop in Political Theory and Policy Analysis na Universidade de
Indiana (EUA), na década de 1970, referindo-se à relação entre provedores ou produtores regulares e consumidores ou usuários de
um serviço (SILVA, 2011). De lá para cá, em várias partes do mundo,
novos modelos ou concepções de coprodução – influenciadas tanto
por uma agenda democrática/emancipatória, por um lado, como
por uma agenda neoliberal/gerencial foram colocados em prática.
Atualmente, o termo é largamente utilizado por governantes, centros de pesquisa e think tanks em países como Inglaterra, Estados
Unidos, Portugal e Austrália (SALM e MENEGASSO, 2010; BOYLE e
HARRIS, 2009)8.
De uma forma geral, o termo pode assumir dois vieses principais: um mais econômico-financeiro, outro mais político, admitin-
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do-se diversas combinações entre eles. A ênfase de cada um desses
vieses contempla a ideia de que a coprodução de bens e serviços
públicos tende a contribuir para:
Na perspectiva econômica – reduzir custos, gerar eficiência
econômica na produção de bens e serviços públicos e permitir atendimento a diversos tipos de necessidades, dificilmente passíveis de
serem contemplados por estratégias mais centralizadas ou orquestradas. A coprodução é vista, pois, como alternativa para lidar com
restrições fiscais e com dificuldades do Estado para responder à
diversidade de demandas dos cidadãos/consumidores, propondo
como caminho a lógica do livre mercado, acompanhada pelo envolvimento dos cidadãos/consumidores de bens e serviços. A ideia de
inovação está presente, como produto das ações e interações entre agentes do Estado, do mercado e da sociedade. Entre os riscos
implícitos desta abordagem, o de desconsiderar externalidades e
prejuízos sociais que acarretem resultados comprometedores do
equilíbrio ambiental e humano.
Na perspectiva política – gerar participação cidadã, emancipação política, aprendizagem social e desenvolvimento das múltiplas
capacidades humanas. O cidadão é visto como ente político que,
pelo engajamento em redes, aprende e desenvolve seus potenciais,
tornando-se sujeito ativo da vida política na comunidade, na cidade, na polis, engajando-se na definição do que constitui o interesse público em cada contexto espacial, temporal e sociocultural e
envolvendo-se na tradução e concretização desse interesse público
em bens e serviços.
Esses dois vieses e a combinação entre eles faz com que a coprodução, enquanto fenômeno, assuma diferentes formas e graus
de intensidade, dependendo do contexto sociopolítico no qual ela
ocorre, de seus objetivos, dos sujeitos envolvidos e dos recursos
disponíveis, entre outros fatores. Inúmeros trabalhos, desde a década de 1970 até os dias atuais, abordam diferentes tipos de coprodução. Uma das contribuições basilares nesse sentido é a de Whitaker
(1980), que distingue três formas de participação dos cidadãos na
provisão de serviços públicos: (i) aquela em que cidadãos solicitam
assistência aos agentes públicos; (ii) aquela em que cidadãos par-
Modelo de
coprodução
1.Coprodução
nominal
Caracterização do modelo de
coprodução
Estratégia para a produção dos
serviços públicos, por meio do
compartilhamento de responsabilidades entre pessoas da
comunidade, preferencialmente
voluntários, e o aparato administrativo público do Estado,
com o propósito, apenas, de
tornar eficientes esses serviços.
Participação do
cidadão na coprodução
Não há participação efetiva e de
poder do cidadão
sobre o Estado
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
ticipam da provisão uma vez que o serviço público em questão tem
por objetivo transformar o comportamento do cidadão, como na
promoção de saúde e na educação, por exemplo, em que o cidadão
precisa envolver-se para ser mais saudável e educar-se; (iii) aquela
em que há uma articulação ou um ajuste mútuo entre cidadãos e
servidores públicos estatais na definição do que e como deve ser
produzido e na sua realização.
Já Brudney e England (1983) propõem uma tipologia de coprodução que considera (i) a relação entre cidadãos enquanto indivíduos e os servidores públicos estatais na provisão de um serviço
ou bem (individual); (ii) a articulação entre grupos de cidadãos e o
aparato estatal (grupal); (iii) o engajamento coletivo de uma diversidade de sujeitos em interação, visando a provisão de bens e serviços (coletiva). A combinação das tipologias de Whitaker (1980) e
de Brudney e England (1983), por si só, evidencia diversas possibilidades de coprodução (SALM e MENEGASSO, 2010).
Mais recentemente, com base em diversas classificações de
formas de participação cidadã, noção esta crucial na concepção de
viés político da coprodução, Salm e Menegasso (2010) lançaram as
bases para uma tipologia de modelos coprodução de serviços públicos, identificando os seguintes possíveis tipos ideais (Quadro 1):
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| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
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2.Coprodução
simbólica
3.Coprodução
funcional
4.Coprodução
representativa
com sustentabilidade
5.Coprodução
para a mobilização comunitária
Estratégia para envolver os
Caráter fundamencidadãos na produção dos ser- talmente manipulaviços públicos para demonstrar tivo da participação
a presença do Estado.
Estratégia utilizada pelo aparato público estatal para produzir
serviços públicos de maneira
mais eficiente e eficaz (orientada pelo menor custo e pelo
resultado), com a participação
do indivíduo, do grupo ou da
coletividade.
Resultado da sinergia que se estabelece na
realização dos serviços públicos
de que participam os cidadãos, as
organizações da comunidade e o
aparato administrativo do Estado
que, no seu conjunto, interagem
em prol do bem comum.
Estratégia para a realização
dos serviços públicos de que
participa toda a comunidade,
orientada por princípios éticos
e pela democracia normativa,
com o propósito de manter a
sociedade permanentemente
mobilizada.
A participação do
cidadão ocorre por
meio da solicitação dos serviços,
de assistência ao
Estado ou por
ajuste mútuo com o
Estado.
Interação do cidadão
com o aparato administrativo estatal e/ou
delegação de poder
pelo Estado. Requer
engajamento cívico do
cidadão e da comunidade, empowerment e
accountability.
Permanente mobilização da comunidade e busca
de superação da
organização burocrática.
Quadro 1: Modelos de coprodução de serviços públicos baseados em tipologias de participação
Fonte: Salm e Menegasso (2010)
Nesta mesma linha, estudos recentes demonstram que, na prática, a forma que assume a coprodução pode variar de acordo com o
regime de governança ou do padrão de relação entre Estado e sociedade dominante (BERNIER, BOUCHARD e LÉVESQUE, 2003; ENJOLRAS, 2008). Para esses autores, os regimes de governança podem variar de modelos mais burocráticos até modelos mais participativos.
Modelos de
Governança/
Variáveis
Burocrático Corporativo e
competitivo
Comunitário
Em parceria
Atores envolvidos
Estado,
fundamentalmente
Estado, empresas e agentes de
mercado
Estado e
comunidades locais
Instrumen- Regulação
tos de políti- (intervenca pública
cionismo e
centralização)
Laissez faire
(Estado mínimo,
foco nas liberdades individuais)
Filantropia,
caridade
para com
os excluídos
Parceria entre
Estado, empresas e agentes
de mercado
e sujeitos e
instituições da
sociedade civil
Arranjos
institucionais para
coordenar
atores
Autoridade
Lei
Contratos
Qualidade
Preço
Princípios
Autoridade
Hierarquia
Êxito
Performance
Visão do
interesse
público
Benefício
Público
Oposição entre interesse
individual
e interesse
público
Padronização
de interesses
individuais
Benefício privado
Soma dos interesses individuais
Relações
pessoais
Solidariedade
Confiança
Benefício e
interesses
coletivos
Incentivo
(Estado como
mediador,
regulador)
Redes
Clusters
Deliberação
Pluralidade
de interesses
(individual,
coletivo e
geral) Acordo
(não redução)
dos interesses
individuais
Quadro 2: Modelos de Governança e suas variáveis constitutivas
Fonte: Adaptado de Bernier, Bouchard e Lévesque (2003) e Enjolras (2008)
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
Para distinguir esses modelos, cabe observar elementos como (i) os
atores envolvidos; (ii) os instrumentos de política pública colocados
em prática; (ii) os arranjos institucionais colocados em prática para
coordenar os atores e, (iii) os princípios e visões sobre o interesse
público. Essas distinções são detalhadas no Quadro 2:
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| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
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Vaillancourt (2009) complementa esse quadro explorando a
interface entre modelos de governança e tipos de coprodução (Quadro 3). Segundo esse autor, embora, na prática, ainda sejam dominantes abordagens binárias que privilegiam a relação entre Estado
e mercado ou Estado e sociedade civil, o fenômeno da coprodução,
em uma perspectiva de parceria, exige uma abordagem tripolar que
considera o compartilhamento de responsabilidades entre diferentes stakeholders individuais e coletivos, associando agentes do Estado, do mercado e da sociedade civil.
Modelos de
Governança
Burocrático
Não há
coprodução.
Tipos de Co- A política
produção
pública é
gerida pelo
Estado e os
serviços são
providos pelo
aparelho
estatal
e pelos
funcionários
públicos.
Corporativo e
competitivo
Comunitário
Em parceria
Há coprodução
com exclusiva
participação de
organizações
do mercado, o
que dá origem
às parcerias
público-privadas.
Há coprodução com
participação
exclusiva de
organizações da
sociedade civil.
Há um repasse
de parte ou
de todos
os serviços
públicos para
que sejam
oferecidos por
organizações
da sociedade
civil.
Há coprodução com a
participação
de agentes
do Estado,
do mercado
e da sociedade civil.
Quadro 3: Tipos de coprodução e modelos de governança
Fonte: Vaillancourt (2009)
A breve leitura dessas tipologias evidencia que tanto as noções
que fundamentam cada concepção de coprodução, como seus processos e seus resultados são variados. Em comum, a defesa de que
as relações de coprodução contemplam múltiplas possíveis contribuições à gestão pública contemporânea, entre elas: eficiência, no
sentido de melhores resultados a menores custos; ajustamento a
demandas específicas e aproximação entre produtores e consumidores; efetividade, no sentido de responsividade ou atendimento a
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
expectativas e necessidades; fortalecimento de laços sociais e solidariedade, forjando capital social; fomento e dinamização de redes
sociais; emancipação e empoderamento de sujeitos, gerando desenvolvimento político - individual e coletivo; aprendizagem social;
compartilhamento de responsabilidades e benefícios; formas inovadoras de prover serviços; inovação e transformação dos sistemas
sociais; preservação ambiental e humanização urbana.
Em suma, por razões de ordem financeira, fiscal, política, tecnológica, cultural, social, incluindo-se aí crise do Estado de bem
estar social, degradação ambiental, desigualdades sociais, sistemas
financeiros disfuncionais, enfraquecimento de laços sociais, defesa
de novos direitos, tecnologia de informação e comunicação, entre
outros, cresce atualmente o reconhecimento de que abordagens
tradicionais de serviços públicos não oferecem respostas às atuais
necessidades e às potencialidades de inovação social e tecnológica,
impelindo busca por inovações na forma de prover serviços públicos e de promover relações entre as pessoas.
Visão está que contém uma crítica à chamada velha administração pública, centralizada, burocrática, baseada em sistemas inflexíveis que ignoram relações entre provedor e usuário e possibilidades de serviços mais próximos das necessidades, contando com
recursos que as pessoas já possuem e podem colocar a serviço de
seu próprio bem-estar e de suas comunidades. Igualmente há uma
crítica à chamada nova gestão pública (new public management),
por considerar o cidadão prioritariamente como consumidor, privilegiando excessivamente a eficiência econômico-financeira e os resultados produzidos em termos competitivos da lógica de mercado,
minimizando a relevância de aspectos políticos, sociais, culturais
e ambientais na gestão pública. Por outro lado, tal visão se aproxima da concepção do novo serviço público (new public service) (DENHARDT e DENHARDT; 2003; DENHARDT, 2012), que prioriza a
valorização de servidores públicos e a aproximação entre cidadãos
e servidores como caminho para a qualidade do serviço público e
promoção do interesse público.
Uma vez apresentada a noção de coprodução do bem público, é possível apontar algumas questões: de que maneiras esta
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| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
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concepção pode afetar práticas de gestão pública e a formação de
profissionais para atuar na área pública? Quais as relações entre
a produção acadêmica e as tecnologias de gestão em coprodução
do bem público e gestão social? Quais relações entre coprodução
do bem público e inovação social? Questões estas que serão tratadas a seguir, começando pela apresentação do que entendemos por
inovação social. Na sequência, compartilharemos dados e reflexões
sobre como é possível e desafiador levar em conta, na formação e
na pesquisa em gestão pública ou gestão social, a existência e a hibridação desses múltiplos tipos de coprodução.
2.3 Inovação social na esfera pública
Inovação social pode ser entendida como toda nova abordagem – seja em termos de produtos, práticas, formas de intervenção, relações sociais e mesmo de instituições – implementada para
construir respostas a problemas socioambientais concretos na esfera pública (LÉVESQUE, 2006). A temática da inovação tem sido
tradicionalmente tratada no campo da economia, primeiramente
pelos clássicos (Adam Smith, David Ricardo e Karl Marx) e, em seguida, por Schumpeter (1983), até os trabalhos mais recentes. Atualmente, porém, temos assistido a uma ampliação do interesse em
compreender como ocorrem as dinâmicas de inovação no âmbito
da esfera pública. Trata-se de entender em mais detalhes de que
modo e em que condições são geradas novas soluções para responder aos problemas públicos, ou seja, como a sociedade cria novos
arranjos institucionais e influencia a criação de suas próprias regras e convenções, tornando-se, desse modo, mais autônoma politicamente (BAUMAN, 2000).
A ampliação do interesse pelas dinâmicas de inovação social
se justifica por diversas razões. A evidência da relevância de experiências colaborativas (como é o caso da coprodução do bem público) na aquisição de novos repertórios de soluções para os problemas públicos é uma delas. Como afirmam Duran e Thoenig (1996a;
1996b), a grande complexidade dos problemas públicos na atualidade exige múltiplas expertises e compartilhamento dos riscos
para o seu enfrentamento. O sistema de governança autocentrado
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
e hierárquico que estruturava a dominação do Estado num quadro
institucional claro cede lugar a um universo acêntrico, caracterizado pela explosão das fronteiras entre público e privado e entre o
local, o nacional e o supranacional. Amplia-se, assim, a necessidade de comunicação, articulação, ajustamento mútuo e formação de
redes entre agentes públicos e privados, tornando-se muito difícil
promover respostas efetivas, de forma isolada.
Em paralelo, essas respostas não podem mais ser (re) produzidas de forma homogênea para toda e qualquer situação ou território. As tradicionais políticas redistributivas, pensadas de forma
centralizada e que focalizam a diminuição das desigualdades inter
e intrarregionais - embora ainda necessárias em países desiguais
como o Brasil - são crescentemente acompanhadas de políticas incitativas e/ou constitutivas. Neste caso, busca-se incentivar o envolvimento dos cidadãos na construção de respostas inovadoras
para os problemas públicos ou, ainda, definir os procedimentos ou
o quadro institucional que serve de contexto para a ação pública.
Trata-se de criar “janelas de oportunidades” para o encontro entre
problemas, recursos e atores (DURAN e THOENIG, 1996a; 1996b).
Neste contexto, a inovação social torna-se um elemento essencial, pois ela possibilita a criação de novas regras e arranjos institucionais ou a recombinação dos existentes para promoção de novas
dinâmicas de desenvolvimento. Como afirmam Bouchard e Lévesque (2010), a inovação social é, geralmente, promovida por indivíduos e grupos que questionam e, em certa medida, transgridem
o instituído. Portanto, nem sempre, a inovação social é produto de
uma ação voluntária ou racional. Ela nasce, na maioria dos casos, da
conjugação de impasses estruturais com ações coletivas.
As inovações sociais tendem a florescer, portanto, quando há
empoderamento dos indivíduos e das comunidades, favorecendo
a emergência de atores (individuais ou coletivos) que são sujeitos
dos processos de desenvolvimento. Esses “empreendedores institucionais” (FLINGSTEIN, 2009) são capazes de transformar valores
e mobilizar pessoas e recursos, construindo acordos para que sejam possíveis formas de intervenção concretas em prol do interesse
público. Como destacam Harrisson, Chaari e Comeau Valée (2012),
49
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
50
a criatividade social depende de indivíduos e coletivos capazes de
construir analogias para resolver problemas públicos, o que implica produzir uma nova compreensão sobre a realidade social, mas
também uma capacidade de colocar essas ideias em prática.
Assim, a inovação social é compreendida não como um processo linear composto por fases sucessivas (pesquisa científica, invenção, inovação, difusão e adaptação), mas sim como resultante
de uma série de ajustes que mobilizam uma pluralidade de atores
e envolve boa dose de incerteza. A inovação resulta, pois, de dinâmicas geradas pelas interações entre diversos atores, como trabalhadores, cientistas, empreendedores, financiadores, gestores públicos, consumidores, ou seja, cidadãos que formam as diferentes
redes sociais que compõem um território (LÉVESQUE, 2006). Esses
processos não ocorrem de forma isolada, eles dependem do contexto, e estão inscritos em sistemas sociais que podem favorecer
ou dificultar a inovação enquanto motor de transformações sociais.
Nesse sentido, compreender as dinâmicas de ação coletiva que
produzem inovação social torna-se um importante vetor para entender como ocorrem os processos de institucionalização na esfera
pública e qual a influência disso na própria formação do Estado e
na sua atuação. Com base em Cefaï (2007, p. 8) entendemos que o
conceito de ação coletiva remete a “toda tentativa de constituição
de um coletivo mais ou menos formalizado e institucionalizado por
indivíduos que buscam atender um objetivo partilhado, em contexto de cooperação e competição com outros coletivos”.
Essa problemática da ação coletiva na esfera pública tem sido
exaustivamente analisada pelos estudiosos da sociologia e da ciência política, desde o início do século passado. Como afirma CEFAÏ
(2007), o campo de estudos sobre as ações coletivas é antigo e vasto, composto por diferentes paradigmas:
Esses paradigmas aparecem não somente como axiomas teóricos, dos quais derivam as hipóteses de pesquisa e de análise, mas que dão origem também a gramáticas da vida pública – matrizes de regras e de categorias
que ordenam a cena, em forma e sentido, da ação coletiva,
tanto para os atores ordinários ou experts, quanto para
os especialistas em ciências sociais e políticas. Regendo
as maneiras de ver, de dizer e de fazer, esses paradigmas
Sem nos atermos às particularidades de cada um desses paradigmas, o que fugiria aos objetivos deste texto, podemos afirmar
que os estudos sobre as novas formas de ação coletiva na esfera pública têm se ampliado, avançado nas últimas décadas e se mostrado
relevantes para ajudar a compreender “as novas dinâmicas democráticas, os novos modos de exercício da cidadania, a constituição
dos problemas públicos, a legitimação das intervenções públicas e
a instituição de novos regimes de ação pública” (CEFAÏ, 2007, p.8).
Em suma, trata-se de explorar possibilidades que mostrem as
capacidades e os obstáculos para que cada sociedade estimule a liberdade positiva, de auto-criação, de reexame de juízos, de questionamento das próprias premissas sobre as quais se assentam seus
julgamentos. A validade nesse sentido não é dada a priori pela norma ou pela autoridade (validade de fato), ela é construída (validade
de jure). Esta última como algo que se busca e nunca é encontrado
de forma definitiva (é um processo transitório). “A durabilidade da
sociedade é feita de ingredientes transitórios e mortais” (BAUMAN,
2000, p. 88). O que evidencia que a reflexão crítica é a essência de
toda autêntica política, enquanto distinta do político no sentido de
mero exercício do poder (espaço efetivo para subjugar a validade de
fato ao teste da validade de jure) (BAUMAN, 2000). A política, nesse
sentido, seria essa capacidade de auto-instituição da sociedade e a
sua essência seria a reflexão crítica (a necessidade de reexaminar a
validade de jure). Auto-instituição que não para, que não visa uma
sociedade perfeita (um final feliz), mas antes uma sociedade livre e
o mais justa possível.
4. Coprodução e inovação social na formação em
gestão pública
Apresentadas as noções de esfera pública, coprodução do bem
público e inovação social, buscamos neste item relacioná-las a nos-
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
impõem implicitamente uma ordem das coisas – sobre a
natureza dos coletivos, sobre o motivo das pessoas, sobre
a racionalidade das suas ações ou sobre suas formas de
justificação. ‘Cada perspectiva é uma forma de não ver e
também uma forma de ver’ (CEFAÏ, 2007, p. 21).
51
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
52
sa prática enquanto professores e pesquisadores. Inicialmente, no
contexto do curso de administração pública do Centro de Ciências
da Administração e Socioeconômicas da Universidade do Estado de
Santa Catarina (ESAG/UDESC) e, no próximo item, no V Enapegs.
A coprodução do bem público é um eixo norteador do curso de
graduação em administração pública da ESAG/UDESC. O desenho
do curso fundamenta-se na concepção ampliada de esfera pública,
apontando para a possibilidade de que bens e serviços públicos podem ser produzidos pelo aparato estatal e nas suas intermediações
com organizações do terceiro setor, movimentos sociais e cidadãos
articulados em redes fundadas no capital social, bem como organizações empresariais, sobretudo quando estas concebem seu papel
para além da finalidade lucrativa de seu negócio, admitindo papeis e
responsabilidades sociais, ambientais e políticas (SALM et.al, 2011).
O curso focaliza o reforço de dinâmicas de coprodução em regimes
de governança em parceria, com um interesse ampliado por dinâmicas que envolvam diversidade de agentes (Estado, do mercado e da
sociedade civil) nas ações públicas e ampliem o seu grau de participação na definição das agendas e na implementação das políticas
públicas.
Observando a coprodução como fenômeno de inovação social,
diretamente ligado a um modelo que clama por uma compreensão
do que é a gestão pública a partir dos próprios insumos gerados por
seus atores-produtores, é preciso pensar também que esta discussão
pode gerar uma multiplicidade de significados e o entrelaçamento
de conceitos, como pode ser visto neste artigo, ao mesmo tempo em
que produz inúmeras contribuições para a prática da gestão pública.
Como experiência curricular acadêmica, isto é, enquanto disciplina do curso de administração pública, trabalhar o conceito de
coprodução permite desenvolver diversos “novos olhares” sobre o
fenômeno da gestão. Ao transpor as barreiras da produção de serviços públicos simplesmente eficientes, adicionando-se a perspectiva
de (co) produzir o bem público, o foco passa a ser o de considerar
igualmente importantes aqueles que vão pensar e ofertar serviços
públicos e aqueles que irão receber, avaliar e cooperar no processo
de produção.
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
Boyle e Harris (2009) citam frases recentes de líderes do governo do Reino Unido, atribuindo à coprodução o potencial de tornar
os sistemas de provisão de serviços públicos e de políticas públicas
mais eficientes, efetivos e responsivos às necessidades das comunidades. O que torna a atenção social mais confiável, valorável e humana, e transformadora de quem a utiliza. Os cidadãos são vistos não
como usuários passivos dos serviços, mas como agentes ativos de
suas próprias vidas, dotados da capacidade de fazer suas próprias
escolhas, orientadas por critérios e necessidades coletivas. Tomar
conta de suas necessidades, sua saúde, suas vidas, reconhecendo que
seu bem-estar depende do bem-estar da coletividade e do sistema
como um todo.
Numa perspectiva prática, o trabalho de preparar gestores nesta perspectiva exige revisitar metodologias e práticas de abordagem
em sala de aula, e a relação de percepção entre a tensão teoria e prática. A coprodução poderá ser vista inicialmente pela observação de
experiências isoladas (a exemplo da ação responsável de uma empresa em parceria com um governo local ou uma organização da sociedade civil) e, a posteriori, a partir do entendimento das relações
existentes a nível macro (como a inserção em uma rede de proteção,
ou as relações com todos os públicos de interesse, no caso), tende a
vir a compreensão mais geral da prática da coprodução.
Deste modo, o desafio é provocar a ação reflexiva do estudante para com o conceito, para então repensar seu papel como gestor
público. É preciso intensificar os debates e a participação voluntária, ao mesmo tempo em que o processo de aprendizagem teórico-conceitual ocorre. É fundamental que o estudante de gestão pública perceba-se como ator-produtor, a partir de estudos dirigidos
e debates teóricos, atividades de campo, experiências vivenciais,
desenho de estudos de caso e relações interdisciplinares do conceito, levando à experiência prática. A partir desta perspectiva, é
possível enriquecer o painel de contribuições da coprodução para
a prática da gestão pública a ser conduzida por esses novos gestores. Se as pessoas simplesmente recebem, consomem ou usufruem
de um serviço, sem opinar e sem precisar dar algo em troca, suas
capacidades atrofiam. Da mesma forma, o conceito de coprodução,
53
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
54
ao fomentar uma capacidade reflexiva, de ações que podem, inclusive, transformar sistemas de provisão de serviços e fortalecer laços
comunitários, ao mesmo tempo precisa do desenvolvimento nos
gestores de valores que permitam a afluência destas capacidades.
Ao longo da experiência acadêmica com o conceito de coprodução, é possível perceber que o maior desafio está senão em mostrar que tais vantagens consistem em uma prática que deve partir
de uma lógica diferente, e como inovação social, exigirá uma nova
postura do gestor, mas também, enquanto estudante, uma sensibilidade maior para a aprendizagem. Mais do que soluções efetivas a
menores custos, reconhecimento dos recursos que os cidadãos possuem e pelos quais podem prover serviços para usuários, famílias
e comunidades, em parceria com os servidores públicos. O desafio,
portanto, está em não apenas gerenciar um processo de mudança,
mas o de perceber a razão desta busca, como uma lógica social que
desafia as concepções de administração pública consideradas mais
tradicionais.
Destaca-se ainda, que há certa “urgência” da sociedade que
também se predispõe a discutir novos assuntos, que se tornam
desafios maiores aos serviços públicos: demandas e expectativas
crescentes, novos problemas sociais e redução de orçamentos; o
que exige inovação radical, tornando os serviços mais eficientes,
efetivos e sustentáveis. Ao mesmo tempo em que exige aqueles que
enxerguem e traduzam estas novas demandas, ou gerenciem tais
desafios.
Apresentados esses desafios com os quais nos deparamos no
cotidiano das relações de ensino-aprendizagem na graduação em
administração pública e no mestrado em administração, na linha
de pesquisa em gestão pública e coprodução na UDESC, relatamos
brevemente o trabalho de dois grupos de pesquisa e extensão, os
quais lidam diretamente com os conceitos de coprodução do bem
público e de inovação social na esfera pública.
Um deles é o grupo de pesquisa Politeia, que surgiu em 2004,
junto com o nascimento do curso de graduação, denominado Co-produção do bem público sob a ótica da accountability, responsabilidade social e terceiro setor – Politeia. Entre os trabalhos do grupo,
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estão pesquisas e textos que tratam do conceito de coprodução e
suas manifestações em diferentes contextos e práticas e um amplo
trabalho de pesquisa de campo sobre capital social, realizado em
diversas regiões do estado de Santa Catarina.
Em 2011, o grupo passou a denominar-se Politeia - Coprodução do bem público: accountability e gestão, focalizando seu interesse no estudo e compreensão da “coprodução de bens e serviços
públicos em rede, envolvendo a participação ativa da burocracia
pública, de governantes, cidadãos e organizações empresariais e
associativas” (POLITEIA, 2011, p.1). Suas linhas de pesquisa atualmente são: i) Accountability sob a ótica da coprodução de bens e
serviços públicos, com foco no estudo da accountability como um
bem público coproduzido por meio da interação entre mecanismos
de controle da sociedade e do Estado; ii) Gestão da coprodução de
bens e serviços públicos – dedicada a estudos sobre coprodução de
bens e serviços públicos por meio da análise e desenvolvimento de
sistemas, processos e instrumentos de gestão organizacional (POLITEIA, 2011).
Já o Núcleo de Pesquisa e Extensão em Inovações Sociais na
Esfera Pública (NISP), fundado em setembro de 2010, tem por objetivo gerar, disseminar e intercambiar conhecimentos – além de promover ações de extensão, de forma articulada com o ensino – sobre
inovações sociais no campo da administração pública, com ênfase
nas áreas da sociedade civil e da economia social, bem como das
redes sociais, capital social e desenvolvimento comunitário. Possui
como foco o estudo e o apoio a ações coletivas que vêm promovendo inovações sociais na esfera pública (de forma institucionalizada
ou não). Isso inclui iniciativas provenientes tanto do Estado, como
da sociedade civil e das empresas, além dos novos arranjos institucionais que se constroem na articulação negociada entre esses
agentes para promoção do interesse público. Em particular, interessa ao NISP desenvolver estudos sobre redes sociais, empreendimentos que emergem na interface entre as economias pública e
privada, além dos novos formatos institucionais que propõem e/ou
implementam políticas públicas e promovem o capital social, com
vistas a fomentar novos estilos de desenvolvimento.
55
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56
As duas linhas de pesquisa do grupo são: i) Sociedade Civil,
economia social e interfaces entre esferas pública e privada e; ii)
Redes sociais, capital social, empreendedorismo e desenvolvimento comunitário (NISP, 2012). Inclui-se nesta segunda linha estudos
interdisciplinares focados no campo da sociologia econômica, sobretudo aqueles ligados às novas formas de empreendedorismo
coletivo e institucional e sua contribuição para a promoção de inovações sociais na esfera pública. Atualmente, estão em andamento dois projetos de pesquisa – Conhecendo o investidor social da
Grande Florianópolis e; Fishing alone: uma investigação do capital
social na comunidade da Costa da Lagoa – e um programa de extensão – o ESAG Comunidade, que visa fortalecer a rede social local
e promover o desenvolvimento comunitário na região da Grande
Florianópolis.
Foi em função dessas e outras concepções e experiências de ensino, pesquisa e extensão em gestão pública no âmbito da UDESC/
ESAG, diretamente relacionadas à gestão social, que se encontrou
motivação para propor um eixo temático no V Enapegs, buscando
conhecer outras experiências e promover debate sobre elas.
5. Coprodução e inovação social na esfera pública
no V Enapegs
A chamada de trabalhos do eixo temático Coprodução e inovação social na esfera pública no 5º Enapegs estimulava a submissão
de trabalhos que tratassem de:
(i) Coprodução e inovação social em governos locais – fundamentos da coprodução do bem público como noção que
orienta a gestão pública e sua relação com a gestão social; experiências de coprodução de bens e serviços públicos no âmbito local de governo, envolvendo participação direta e compartilhada de governos e sociedade; cidadania, participação
e democracia em governos locais; inovação social na gestão
pública municipal; estruturas e estratégias de coprodução
de bens e serviços públicos (redes, parcerias, conselhos, fóruns); participação e coprodução em políticas públicas; inovação social e desenvolvimento local; governança pública
Algumas das perguntas que motivaram a exploração desse eixo
temático foram: quais as aproximações entre gestão social e gestão
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para a coprodução e inovação social.
(ii) Coprodução e inovação social em experiências de base
associativa – coprodução de bens e serviços públicos originadas na mobilização e articulação da sociedade civil em
torno de organizações e projetos compartilhados e/ou em
rede; modos alternativos de organização social e econômica
articuladas à política e à cidadania; cooperativismo e associações de produtores e seu papel no desenvolvimento territorial; economia social e solidária e seus impactos nas dinâmicas de desenvolvimento; tecnologias sociais geradas a partir
de experiências de base associativa.
(iii) Coprodução e inovação social na prática do investimento
social privado – relações entre setor privado, governo e sociedade civil em experiências de investimento social privado;
formas de investimento, perfil e dinâmica de atuação dos atores envolvidos; formação de redes de investidores; definição
e redefinição teórica e perspectivas para o debate acerca do
investimento social privado; organizações da sociedade civil e o investimento social privado; limites e perspectivas do
movimento do investimento social privado; setor privado e
sua relação com desenvolvimento comunitário; investimento
social privado e as questões da sustentabilidade; o papel do
Estado na prática do investimento social privado; tecnologia
social e inovação social.
(iv)Coprodução, inovação e gestão social na iniciativa privada – empresas – papéis e práticas de inovação social para o
desenvolvimento; cooperativismo e associações de produtores; redes de franquias; polos, aglomerações e redes empresariais e institucionais; filosofia enxuta, logística reversa
e produção socialmente responsável; empreendedorismo e
sua relação com novas demandas de ordem social, ambiental
e econômica; responsabilidade social empresarial e seus impactos na esfera pública.
57
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
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pública, uma vez que esta seja orientada pela noção de coprodução
do bem público? De que modo os estudos relativos à gestão social (e
seu repertório teórico-conceitual e metodológico) podem contribuir
para nossa compreensão de experiências de coprodução do bem público? Em que medida as inovações sociais geradas por essa experiências demonstram capacidade para promover institucionalização
de novos saberes e práticas e transformar padrões da esfera pública?
Qual o alcance de inovações sociais oriundas da sociedade civil e do
mercado na esfera pública? Quais os dilemas da aproximação de diferentes lógicas na articulação entre as esferas privada e pública?
Os trabalhos selecionados para apresentação no Eixo 1, listados no Quadro 4, a seguir, trouxeram à tona questões sobre diferentes aspectos que envolvem o debate sobre coprodução na esfera
pública, suas perspectivas e seus limites enquanto estratégia para
promoção de inovações sociais.
Artigos
1.
2.
3.
4.
5.
6.
8.
9.
O Orçamento Participativo (OP), a esfera pública e a pedra no caminho, de autoria de Valdemir Pires e Larissa de Jesus Martins;
Participação de crianças e adolescentes na formulação de políticas públicas, de
autoria de Frederico Ferreira de Oliveira e Andréia Cristina Barreto;
Vivências de empoderamento no exercício da participação social em conselhos
gestores de políticas públicas, de autoria de Maria Elisabeth Kleba e Dunia Comerlatto;
Participação de Organizações da Sociedade Civil em Políticas Públicas, de autoria
de Júnia Fátima Carmo Guerra e Armindo Santos de Sousa Teodósio;
A Contribuição da Gestão Social Para os Desafios da Gestão da Sustentabilidade
Empresarial, de autoria de Silvia Antonia de Morais e Patrícia Emerenciano
Mendonça;
Um Estudo das Ações para Divulgar e Consolidar o Balanço Social no Brasil, de
autoria de Cássio Afonso Medeiros Lana, Denise Carneiro dos Reis Bernardo,
Luiz Gustavo Camarano Nazareth e Fabrício Molica de Mendonça;
Uso de mídias sociais nas empresas paulistas de transporte público: uma pesquisa exploratória, de autoria de Fernando do Amaral Nogueira, Mário Aquino Alves
e Eduardo Henrique Diniz;
Desempenho em Organizações Sem Fins Lucrativos na Perspectiva dos Sujeitos
Envolvidos em sua Dinâmica, de autoria de Rejane Roecker e Eloise Helena
Livramento Dellagnelo;
10. A Agricultura Familiar Potencializando a Segurança Alimentar: análise dos
resultados do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA Doação Simultânea)
nos estados da Bahia e Minas Gerais, de autoria de André Rodrigues dos Santos,
Naldeir dos Santos Vieira, Palloma Rosa Ferreira e Thiago Teixeira Sant’Ana e
Castro
11. O Associativismo na Agricultura Familiar dos Estados da Bahia e Minas Gerais:
potencialidades e desafios frente ao Programa de Aquisição de Alimentos
(PAA), de autoria de Venícios Oliveira Alves, Naldeir dos Santos Vieira, Telma
Coelho da Silva e Palloma Rosa Ferreira
12. Programa de Honra em Estudos e Práticas em Ecossocioeconomia: estratégia
de transformações a partir do território da Microbacia de Rio Sagrado, Morretes (PR), de autoria de Carlos Alberto Cioce Sampaio, Adriana Dias, Flávia Keller
Alves e Oklinger Mantovanelli Junior
13. O Caso do Crédito Rotativo Solidário da APJ de Teófilo Otoni-MG: os impactos
nos empreendimentos participantes e na organização concedente do crédito,
de autoria de Matheus Benedito Moreira Teixeira e Agnaldo Keiti Higuchi
14. Entre Modelos e Figuras: o Problema da Transição nas Empresas “Recuperadas”, de autoria de Fabio Bittencourt Meira
15. Processo de Modernização da Produção de Leite no Brasil e Argentina e Seus
Impactos Sobre a Produtividade e o Trabalho Para a Pequena Produção, de
autoria de Marcio Borges, Cristina Drumond, Cezar Guedes e Héctor Alimonda;
16. Destinos Indutores do Desenvolvimento Turístico Regional: Há Necessidade de
Gestão Social?, de autoria de Érica Beranger Silva Soares, Magnus Luiz Emmendoerfer, Thiago de Melo Teixeira da Costa e Lara Pereira Monteiro;
17. Governança Municipal e Desenvolvimento Local: Estudo de Caso da Indústria
Criativa Artesanal Têxtil de Resende Costa - MG, de autoria de Pamela Torres
De Oliveira, Gustavo Melo Silva e Magnus Luiz Emmendoerfer;
18. Análise da Estratégia de Desenvolvimento Regional Sustentável do Banco do
Brasil sob a Ótica do Desenvolvimento Local e Sustentável: Estudo de Caso do
Município de Ervália - MG, de autoria de Viviane Angélica Caetano, Suely de
Fátima Ramos Silveira e Alexandre Matos Drumond;
18. Gestão social da saúde pública: existem esferas públicas virtuais em saúde no
Brasil?, de autoria de Arlete Aparecida de Abreu, Lucas Silvestre de Carvalho,
José Roberto Pereira;
20. Incubação de Cooperativas Populares: um estudo de multicaso em Nazaré/
BA, de autoria de Airton Cardoso Cançado, Naldeir dos Santos Vieira, Ioná Q.
Nascimento e Ana Cláudia A. Gonçalves
21. Da Atitude Consorcial à Gestão Social: Eppur si Muove, de autoria de Luiz Roberto Alves;
22. Gestão intergovernamental e Institucionalidade: A Questão na Região Metropolitana de Maringá, de autoria de William Borges, Eliane Barbosa da Conceição e
Márcia Ferreira.
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Artigos
59
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60
Artigos de Iniciação Científica
1.
2.
Projeto Microbacias II: construindo qualidade de vida no meio rural, Alexandra Dalmolin, Fernanda Matsukura Lindemeyer, Kelly Cristine de Assis
Gestão Social em Cooperativas Agropecuárias: análise do trabalho de Organização do Quadro Social (OQS), Alex dos Santos Macedo, Nora Beatriz
Presno Amodeo (orientadora), Diego Neves de Sousa
Relatos de Prática
1.
2.
3.
4.
5.
6.
A Experiência da Inserção da Dimensão Ambiental na Disciplina Gestão da
Tecnologia da Informação em uma Instituição de Ensino Superior localizada em Salvador-Ba, por Thereza Olívia Rodrigues Soares;
Tecnologia Social do Direito à Cidade: Relato De Uma Experiência de
Pesquisa Participativa, por Dagmar Silva Pinto de Castro, Sibelly Resch,
Cristiane Gandolfi, Thaís Bernardes Nogueira e Antônio Coelho de Souza
Nascimento
Articulação D3 e a Nova Arquitetura de Apoio às Organizações Sociais do
Brasil, por Rubén Pecchio Vergara
Inclusão Profissional de Pessoas com Deficiência no Contexto Baiano:
Avanços e Desafios na Articulação entre os Atores Envolvidos, por Melissa
Santos Bahia
A estratégia participativa de monitoramento de projetos territoriais na
Serra do Brigadeiro, por Elisa de Jesus Garcia e Marcelo Miná Dias;
Programa Comunidade Escola o espaço da gente, por Luciano Martins de
Oliveira e Danieli Nunes Pereira.
Oficinas
1.
2.
Negócios Inclusivos: metodologias de análise da contribuição das empresas para a melhoria das condições de vida de populações em vulnerabilidade social, por Armindo S. S. Teodósio, Adriana Furtado, Graziella
Comini, Anita Moura, Laura Boaventura de Andrade, Marisa Seoane Rio
Resende e Pedro Paulo Gonçalves de Barros.
Elaboração de Casos para Ensino em Administração Pública e Gestão
Social (APGS) no Contexto da Coprodução e Inovação Social na Esfera
Pública, por Magnus Emmendoerfer e Alan Macabeu.
Quadro 4 – Trabalhos do Eixo Coprodução e Inovação Social na Esfera Pública no Enapegs 2011
Fonte: programação detalhada Enapegs 2011
A simples leitura dos títulos dos trabalhos revela a diversidade
de temas que foram associados a coprodução e inovação social. Por
um lado, tal diversidade revela riqueza de possibilidades teórico-conceituais e, sobretudo, de campos de ação em que tais noções
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revelam-se oportunas para análise das dinâmicas sociais, organizacionais e de gestão. Por outro lado, a diversidade desafia a delimitação e coerência do que se entende por coprodução e por inovação
social.
Sumarizando o que foi apresentado e discutido, veem-se diferentes conceitos, tipos de estruturas organizacionais nas quais se
concretizam as experiências, bem como diferentes finalidades:
• Conceitos e temas: participação, empoderamento, gestão
social, gestão intergovernamental, administração pública,
gestão da sustentabilidade, ambiente e tecnologia da informação, governança municipal, comunicação e mídias sociais,
desempenho em organizações sem fins lucrativos, associativismo, ecossocioeconomia, produtividade e trabalho em pequenas produções, desenvolvimento local, desenvolvimento
regional e desenvolvimento sustentável, território, crédito solidário, incubação de cooperativas, cooperativismo, qualidade
de vida, articulação entre atores envolvidos em certa política,
negócios inclusivos.
• Organizações nas quais se exercem: conselhos de políticas
públicas, grandes empresas e institutos/fundações empresariais, empresas públicas, pequenas empresas, universidades,
consórcios de desenvolvimento local ou regional, comitês de
microbacias, organizações sem fins lucrativos, pequenos empreendimentos, organizações de crédito solidário, esferas virtuais de promoção da saúde pública, cooperativas agropecuárias, cooperativas populares e incubadoras de cooperativas
populares.
• Finalidades: elaboração de políticas públicas, definição do
orçamento público municipal, elaboração e divulgação de balanços sociais, uso de mídias sociais, promoção da segurança alimentar por meio da agricultura familiar e da aquisição
de alimentos, gestão territorial em microbacias, elaboração
de programas de crédito solidário, gestão de empresas recuperadas, qualificação da pequena produção, promoção da
saúde pública, promoção da qualidade de vida no meio rural,
monitoramento de projetos territoriais, apoio a organizações
61
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
62
sociais no Brasil, inserção profissional de pessoas com deficiência, ensino de tecnologia da informação, fomento das relações comunidade-escola, melhoria das condições de vida de
populações em vulnerabilidade social.
Destacaram-se discussões sobre experiências localizadas de
coprodução e inovação social, tais como: o Programa de Aquisição
de Alimentos na Bahia e Minas Gerais; o Projeto Microbacias em SC
e PR, o Crédito Rotativo Solidário em Teófilo Otoni, a indústria Criativa Artesanal têxtil de MG; as cooperativas populares em Nazará/
Bahia, a gestão intergovenamental em Maringá, entre outros. Experiências que mostram vitalidade e diversidade de possibilidades de
experimentação, de aprendizagem, de inovação.
Entre os temas que geraram intenso debate, destacam-se: (i)
participação dos cidadãos na esfera pública e na formulação de políticas e programas e nas dinâmicas de desenvolvimento territoriais;
(ii) tecnologias sociais e estruturas de apoio à inovação no campo
da gestão social; (iii) a contribuição da gestão social para a concepção de novos estilos de desenvolvimento e para a sustentabilidade;
(iv) negócios inclusivos e seus impactos em vulnerabilidade social.
Dentre os principais dilemas e desafios levantados,
destacam-se:
• As dificuldades da gestão compartilhada e o gap ainda existente entre sociedade civil, Estado e mercado no Brasil;
• Nas experiências de coprodução analisadas, muitas ainda são
incipientes enquanto promotoras de reais espaços de participação e descentralização das decisões, ressalta-se o despreparo de muitos cidadãos para envolverem-se em processos
participativos;
• O desafio da gestão social considerar a diversidade dos públicos, ampliando seu potencial de inclusão, em particular das
populações mais desfavorecidas;
• A necessidade de construção de enfoques teóricos/metodológicos mais consistentes no campo da gestão social que partam
de análises comparativas e levem em conta as particularida-
4.1 Perspectivas de pesquisa associando coprodução do bem público, inovação social e gestão social
Das discussões travadas durante o Enapegs no eixo coprodução
e inovação social na esfera pública destacaram-se como perspectivas para novos estudos na interface com o campo da gestão social:
• A importância de novas tecnologias de comunicação e articulação entre as pessoas, particularmente por meio da internet
e, em particular, das redes sociais, como instrumentos que facilitam tanto a coprodução como a inovação social;
• O potencial do diálogo e da troca de saberes entre organizações da sociedade civil, governamentais e empresariais, algo a
ser potencializado de modo situado, em cada contexto;
• O potencial de aproximação entre estudos sobre gestão social
e gestão pública, esta compreendida em perspectiva ampliada
de esfera pública e do fenômeno da gestão nesse contexto; o
que exige aprofundar o estudo sobre a relação entre esfera
pública, esfera privada e esfera social;
• O papel das universidades como agentes ativos e incentivadores da coprodução e da inovação social na esfera pública,
sobretudo ao fomentarem a aprendizagem cidadã, entre acadêmicos e nas relações com a sociedade;
• A importância das redes de intercâmbio científico que se
expressam, por exemplo, no observatório da formação em
gestão social, em fase de constituição no âmbito da Rede de
Pesquisadores em Gestão Social, e em pesquisas sobre negócios inclusivos. Podemos compreender a própria produção
do conhecimento acadêmico, uma vez articulado com outras
formas de produção de conhecimento, como processo de co-
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
des de cada empreendimento (associação, fundação, cooperativa), a realidade nacional, e o cenário global (sem cair nos
modismos).
Nota-se que as palavras-chave do eixo – coprodução, inovação
social e esfera pública – foram pouco frequentes nos trabalhos. Não
foram abordadas diretamente, mas de modo indireto, associados a
muitos outros temas e termos.
63
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
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produção de bens e serviços públicos. Que serão tanto mais
ricos quanto gerarem oportunidade para engajamento e compartilhamento de distintos saberes, expectativas e visões de
mundo;
• Gestão social como intermediadora de relações de coprodução, propulsora da inovação e dinamizadora e enriquecedora
da esfera pública. Compreendida a gestão social como gestão
concertada entre diversos atores da sociedade, como processo de deliberação horizontalizado e participativo, de decisão
compartilhada, no qual todos têm direito à fala, à participação
social, privilegiando-se a dimensão dialógica e relacional da
gestão, sem nenhum tipo de coação (TENÓRIO, 2002; 2004;
2012). Além de manifestar-se, todos têm direito ao engajamento na definição e na produção das ações e políticas públicas. Ou, ainda, gestão social como modo especial de problematizar e de gerir realidades sociointeracionais complexas,
associada a uma nova configuração do padrão de relações
entre Estado e sociedade para o enfrentamento dos desafios
contemporâneos (BOULLOSA e SCHOMMER, 2008, 2009).
• O potencial de inovação da coprodução do bem público e da
gestão social como promotoras de emancipação, ao contrapor-se a modos de gestão fundamentados em hierarquia, controle
e racionalização, ou modos de gestão que veem o cidadão apenas como consumidor, e sim privilegiando o entendimento esclarecido como processo, a transparência como pressuposto e
a emancipação enquanto fim último (CANÇADO, TENÓRIO E
PEREIRA, 2011).
5. Considerações Finais
Nossa disposição a partir do que aprendemos no Enapegs é a
de seguir aprendendo, cientes de que há muito a descobrir, a experimentar, a coproduzir, a inovar. Inclusive em nossas práticas como
pesquisadores, cidadãos e gestores sociais que estamos aprendendo a ser. O que só pode acontecer, de acordo com a concepção que
apresentamos, de maneira compartilhada com outros, da academia
e de fora dela, especialmente com os praticantes que estão na linha
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
de frente, fazendo acontecer a coprodução e a inovação. Exige-se,
pois, dos estudiosos do tema engajar-se em contextos sociopráticos
de inovação e aprendizagem situada.
Em relação aos termos aqui enfatizados – coprodução do bem
público, inovação social, esfera pública e gestão social – observa-se que são de certo modo genéricos, abrangendo diversidade de
práticas e possibilidades de interpretação, o que ao mesmo tempo
constitui sua riqueza, seu potencial, e seu desafio no que se refere à
conceituação e aplicação.
Quanto às novas concepções de gestão pública, apesar de
encontrar limitações nos procedimentos de sua constituição, especialmente no ideal de sua universalização – limitações estas
identificadas na exclusão social, no despreparo de lidar com os
códigos oficiais institucionalizados, na mistificação (assumindo
uma quase forma metafísica) das informações, na linguagem jurídica rebuscada e no ceticismo político de maiorias – podem ser vitalizadas por uma nova geração de indivíduos e mecanismos que
são forjadas em novas relações de poder e em novas relações de
ensino-aprendizagem.
Estas novas formas de poder e de aprendizagem podem surgir já na infância, como frutos de uma tradicional desestruturação
para uma nova reestruturação familiar e de novas relações tecnológicas. Para este novo ser humano, enquanto os espaços são diminutos, os conhecimentos fluem mais rápidos; enquanto os empregos desaparecem, as formas inovadoras e criativas de suprir o
conhecimento e a existência emergem; enquanto os espaços para
direcionar as ações públicas do Estado em benefícios privados são
elitizados e sofrem um constante cerceamento, as posturas de honestidade e de solidariedade ecoam em multidões sedentas por um
senso de justiça. Nestas gerações conectadas em redes, de todos os
tipos e espécies, com a curiosidade aguçada como predisposição
para a descoberta e a pesquisa, as novas formas de existência política, econômica, social, cultural, artística e educativas são gestadas.
Há um circular constante de curiosidades, de descobertas, de
exigências, de necessidades, de aspirações. Da democracia da
palavra, à democracia do pão. Da democracia da arte, à democracia
65
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
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da mobilidade urbana. Da democracia da pesquisa, à democracia
da estética. Da democracia do exercício privado à democracia da
produção do bem público.
Estas gestações em rede nem sempre são organizadas, se
constituem sem liderança definida e se moldam com propósitos
dialógicos em constante consolidação e reconfiguração enquanto
trajetória. Pode-se supor que exatamente por seu formulário não
estar composto a priori, que estas gerações de diversas idades, de
diversas origens, de diferentes crenças e raças, de diversas classes
sociais e categorias profissionais e de diferentes ideologias, sentem-se motivadas para fazer uma construção conjunta com procedimentos mais ou menos democráticos.
Talvez estejamos na fronteira de um novo tempo, de uma nova
concepção de Estado ou de uma nova gestão. Os tradicionais modelos arbitrários, burocráticos, opacos, omissos, pouco acessíveis
e pouco democráticos podem ser superados por ações políticas e
modelos de gestão da coisa pública coproduzida e corresponsabilizada, transparente, acessível e controlada pelo cidadão. Cidadão
este que se sente corresponsável pelo bem público, produzindo e
usufruindo, de forma compartilhada e solidária, o produto gerado
pela sociedade da qual ele é parte integrante e indissociável.
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Armindo dos Santos de Sousa Teodósio1
Luciano A. Prates Junqueira2
Mário Aquino Alves3
Patricia Mendonça4
Sylmara Lopes Francelino Gonçalves-Dias5
Nos últimos anos, uma série de discussões e textos, tanto científicos quanto ligados à práxis da Gestão Social, tem colocado o fenômeno dos movimentos sociais como tema central para o entendimento das perspectivas de avanço da cidadania, democracia, luta
por direitos e construção de identidades nas sociedades contemporâneas. Quer seja nos países centrais, quer seja nas nações periféricas ou marcadas pelo desenvolvimento econômico e consolidação
democrática tardios, movimentos sociais são compreendidos como
sinônimo de avanço e maturidade cidadã na construção de sociabilidades em contextos complexos.
No entanto, a profusão de textos, eventos e discursos enfatizando a relevância dos movimentos sociais encobre uma série
de dificuldades ligadas à sua teorização e à construção de quadros compreensivos que expliquem sua dinâmica, papel e perspectivas nas sociedades contemporâneas. Essa realidade também encobre igual número de desafios relacionados à interação
entre múltiplas organizações da sociedade com atores governamentais e empresariais privados na construção de políticas, programas e projetos de intervenção na realidade social, que sejam
1 Armindo dos Santos de Sousa Teodósio é professor do Programa de Pós-Graduação em Administração da PUC Minas. Doutor em Administração de Empresas pela EAESP-FGV.
2 Luciano A. Prates Junqueira é professor titular da FEA-PUCSP e coordenador do NEATS – Núcleo
de Estudos Avançados do Terceiro Setor da PUCSP. Doutor em Administração da Saúde pela USP.
3 Mário Aquino Alves é professor adjunto da Fundação Getulio Vargas SP e coordenador do Centro de Estudos em Administração Pública e Governo. Doutor em Administração de Empresas pela
EAESP-FGV.
4 Patricia Mendonça é professora do Centro Universitário da FEI e colaboradora da EAESP-FGV.
Doutora em Administração Pública pela EAESP-FGV.
5 Sylmara Lopes Francelino Gonçalves-Dias é professora do curso de Gestão Ambiental da Escola de
Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo - EACH-USP. Administradora e Pedagoga. Doutora em Ciência Ambiental pelo PROCAM-USP. Doutora em Administração pela EAESP-FGV.
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
Decifra-me ou te devoro! As armadilhas da teorização
sobre movimentos sociais em Gestão Social
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capazes de efetivamente garantir novas formas de desenvolvimento social e sustentabilidade.
Se o gerenciamento cotidiano no campo da Gestão Social se
depara com as ambiguidades, labirintos e armadilhas que a idealização dos movimentos sociais e as redes de ação coletiva impõem,
também, no campo científico a introdução do tema é delicada. E,
infelizmente, na maioria das vezes resulta em teorizações frágeis,
marcadas pela dualização e dicotomia interpretativa de um fenômeno que parece exigir um olhar multidisciplinar, dialético, fundado na complexidade e na análise efetivamente crítica de um objeto
de análise.
Até mesmo pelo forte vínculo que o campo da Gestão Social no
cenário brasileiro mantém com a produção científica em Administração, quando acontece a crítica, muitas vezes peca pela destruição e demonização do objeto de análise. É assim quando se discute
racionalidade nas organizações, responsabilidade social empresarial e participação no ambiente organizacional e na esfera pública,
para nos atermos apenas a alguns dos tantos objetos de análise ora
“santificados” pelas análises administrativas, ora “demonizados”
por pretensas análises críticas em Gestão Social.
Os estudos sobre movimentos sociais, historicamente no Brasil e na América Latina, situam-se no campo das ciências sociais,
conforme nos lembra Maria da Glória Gohn. Diferentemente de outras partes do mundo, nas quais as reflexões sobre sociedade civil e
as organizações que nela se constituem congregam pesquisadores
de diferentes campos científicos, os estudos sobre movimentos sociais fundamentalmente se balizaram nas discussões provenientes
das análises sobre mobilização e ação coletiva dentro das teorias
sobre ação social. Ainda que com grande sinergia com o campo da
política, só em algumas obras e em certos casos percebe-se um entrelaçamento mais consistente e vigoroso da teoria social com as
narrativas pautadas pela sociologia política e pelas discussões acerca da cultura política. E esse vigor só começa a se manifestar recentemente, sobretudo no contexto da produção científica brasileira.
Esse cenário tem se alterado significativamente nos últimos
anos, com a dominância de interpretações que assumem o surgi-
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
mento dos chamados “Novos Movimentos Sociais” como um fato
das últimas três décadas, colocando em xeque os modelos interpretativos baseados em uma sociedade organizada a partir do conflito
entre capital e trabalho. Isso é o que leva autores como Alain Touraine a destacar o caráter mais fortemente cultural desses “Novos Movimentos Sociais”, pautados pela ampliação da agenda e do repertório
de lutas por inclusão social e reconhecimento de identidades.
Se essa realidade não deixa de ofuscar toda uma tradição de
teorização que se assentava nos conflitos de natureza econômica
e ideológica em torno das disputas entre capital e trabalho, parece
ser também inconsistente deixar de lado alguns elementos dessa
dinâmica que dialeticamente podem se manifestar na ação coletiva dos movimentos sociais contemporâneos. A articulação entre os
estudos sobre “Novos Movimentos Sociais” e suas agendas identitárias e culturalistas de lutas e as mobilizações por formas mais decentes e justas de inserção no mundo do trabalho parece ser para
Michael Burawoy um dos mais promissores caminhos de teorização contemporâneos. Tarefa essa ainda por ser construída e, por
que não, pelo campo de estudos e discussões da Gestão Social!? No
entanto, para tal, é necessário deixar de lado o apego a noções marxistas tradicionais, fato ora feito de forma apressada por muitos
que produzem textos em Administração, ora tomado como heresia
por aqueles que ainda explicam o mundo a partir das categorias
centrais do pensamento marxiano.
Outra característica que demarca formas e abordagens distintas sobre o mesmo fenômeno é a teorização sobre movimentos
sociais que se desenvolve a partir dos países centrais e aquela originária de países periféricos, notadamente na América Latina. Para
David Lewis, essa é uma demarcação ainda muito presente nas discussões sobre Gestão Social, denotando ênfases diferentes, que poderiam convergir, mas que permanecem distantes nos estudos que
são gerados tanto no chamado “Norte” quanto no “Sul”. A produção científica dos países centrais se preocuparia basicamente com
as formas, dinâmicas e ações de mobilização e acesso a recursos
desenvolvidas por movimento sociais e organizações da sociedade civil, enquanto a teorização latino-americana manteria o foco na
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questão da politização, conquista e ampliação de ambientes democráticos de deliberação e construção de direitos e políticas públicas
e acesso à cidadania, sobretudo em sua dimensão política.
Como que seguindo um passo dependente das discussões
provenientes da sociologia e da ciência política, o campo da Administração no Brasil observou nas últimas décadas o vertiginoso
crescimento de análises sobre organizações não-governamentais.
Tais teorizações, na sua grande maioria, fundamentam-se em pressupostos de teorias sobre movimentos sociais típicas dos estudos
desenvolvidos nos Estados Unidos.
Não é por mais que uma sensação muito expressiva que parece dominar o ambiente de discussão sobre Terceiro Setor e ONGs
no campo da Administração brasileiro, o de que tudo se resume
a estratégias e acesso a recursos. Por outro lado, quando surge a
crítica a essa visão despolitizada da atuação das ONGs, na maioria
das vezes, vem para desconstruir e desestruturar reflexões sobre
formas de organização, articulação e hierarquização de recursos e
pessoas em movimentos sociais. O resultado de tal embate, ao contrário do que se essa crítica pretensamente avançada e exigente se
propõe a realizar, é o antagonismo e a dualização, reforçando críticas e polarizações em contrário. No entanto, a teorização vigorosa,
na maioria das vezes, subsiste naquilo que ultrapassa dualizações
e dicotomias.
Um desafio nesse ponto é entender movimentos sociais como
estruturas organizacionais, mas também como formas de articulação política e ação coletiva, operando uma mescla de teorizações
de diferentes campos e epistemologias. Porém, dada a fragilidade
de fundamentação teórica que marca a formação de muitos pesquisadores em Gestão Social provenientes da Administração, a articulação de diferentes epistemologias acaba virando um mosaico malconstruído, muito distante da tão desejada, e tão difícil de operar,
bricolage.
O resultado desse quadro é, por exemplo, o uso de teorizações
comportamentalistas para analisar motivações de ação voluntária
em movimentos sociais cuja articulação se pauta muito mais na
convergência ideológica e identitária, ou até mesmo, a partir de
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
frames de ação coletiva. Tais discussões, invariavelmente, apontam
uma fragilidade organizativa dos movimentos sociais, oferecendo
uma narrativa teórica exageradamente normativa (dever ser), com
inúmeras receitas em direção ao sucesso gerencial. O revide vem
através de outros artigos e discussões que se propõem a resgatar
a análise dos movimentos sociais do lugar despolitizado e banal a
que foram remetidas por esse tipo de estudos, dicotomizando e polarizando as discussões. Novamente, a dificuldade parece estar em
compreender os movimentos sociais como formas organizativas
que não querem ser formas organizativas, como bem destaca Tânia
Fischer, mas que acabam sendo essas duas coisas simultaneamente.
No entanto, uma série de discussões em Gestão Social apresentam
os movimentos sociais de forma saudosa daquilo que nunca foram
e outra série de análises de forma saudosa daquilo que já foram um
dia, mas desvaneceu-se.
Ao tomarmos o campo de estudo da Gestão Social como multidisciplinar e centrado na compreensão de processos socialmente construídos, situados historicamente e constituídos de tensão
entre diferentes projetos de desenvolvimento social, abrimos uma
porta para uma reflexão menos descritiva e mais dinâmica acerca
dos movimentos sociais e suas formas operativas.
A interlocução da Gestão Social com as perspectivas de análise centradas nos movimentos sociais oferece potencial para elaboração de modelos de análise dinâmicos, que busquem não apenas
situar a Gestão Social em espaços multiescalares de articulação da
sociedade civil, Estado e mercado, mas também traçar as conexões
entre os diferentes formatos organizacionais envolvidos, em suas
dimensões simbólica e estratégica, sem que se perca de vista sua
inserção em um contexto permeado por contradições e conflitos e
fortes desigualdades, que irão delinear a construção de alternativas
de ação coletiva. Produzir conhecimento sobre movimentos sociais
na gestão social a partir da realidade brasileira impõe o imperativo
analítico de não se desconsiderar as desigualdades que estruturam
a esfera pública, sejam eles de ordem econômica, política, social,
cultural ou mesmo ambiental.
A gestão social não pode se ater somente à análise de formas
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institucionalizadas de articulação. Para tanto, as narrativas interpretativas sobre movimentos sociais precisam dar conta simultaneamente de formas que estariam localizadas no nível associativo
local, envolvendo fenômenos relacionados ao associativismo local,
associações civis, iniciativas comunitárias e sujeitos sociais envolvidos com causas sociais ou culturais do cotidiano, ou voltados a
essas bases, como são algumas organizações não-governamentais;
e também para formas interorganizacionais, dentre as quais se
destacam os fóruns da sociedade civil, associações nacionais de
ONGs e redes de redes, que buscam se relacionar entre si para o
empoderamento da sociedade civil, representando organizações
e movimentos do associativismo local. Além disso, precisam problematizar essa ação coletiva a partir dos laços que guardam com
mobilizações denominadas de redes de movimentos sociais, que se
articulariam na esfera pública, a partir da mobilização local e interorganizacional. Essa é o legado interpretativo que Scherer-Warren
nos oferece, mas que, no entanto, parece passar despercebido para
muitos que buscam problematizar a ação de movimentos sociais na
Gestão Social. Quando muito, essa incorporação é feita de forma incompleta e superficial, mais parecendo uma obrigação formalística
para aprovação de artigos em eventos e periódicos científicos do
que sua apropriação efetiva como fundamentação teórica e metodológica que o é por definição.
Nesse ponto é que se abre a discussão para a busca de uma
compreensão da intersetorialidade para além de lugares comuns.
Tida atualmente por diferentes modelos compreensivos da gestão
social como estratégia fundamental para se ter uma visão global
dos problemas existentes, permitindo, assim, um trabalho integrado entre os diversos atores da sociedade civil, do Estado e do mercado imbricados em um território, nos lembram Junqueira e também
Alves que é a partir dela que novas práticas sociais e estruturas de
governança se formam. Porém, a maioria das teorizações que ora
se apresentam, entrelaçando o tema dos movimentos sociais com
a intersetorialidade, ora celebram as parcerias, convergências e
harmonias administrativas, que mais lembram as harmonias administrativas de Taylor e Fayol tão precisamente problematizadas por
• Redes e parcerias intersetoriais: análise da interação entre
identidades, imagens e reputações organizacionais na construção
da relação entre organizações dos movimentos sociais, outras
organizações e a audiência (outsiders do campo).
• Movimentos sociais e políticas públicas: análise do engajamento
para a construção de políticas, enfocando as relações de conflito/
cooperação envolvidas e suas estruturas de governança e
controle social;
• Análise organizacional de movimentos sociais, articulando
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
Tragtenberg, ora denunciam que algo de podre se irradia no reino
da governança, visto que o Estado colonizaria a sociedade civil, que
se venderia para o mercado. Se isso não deixa de ser verdade, também não o é verdade por completo. Mas, para avançar para além
desse lugar-comum seria preciso romper com noções “santificadoras” de esfera pública provenientes de pressupostos habermasianos e também com noções fatalistas de espaço público derivadas da
compreensão arendtiana. Infelizmente, pouco disso se apresenta
nas discussões sobre Gestão Social na realidade brasileira.
Os desafios de uma teorização vigorosa no campo da Gestão
Social estão em captar estes processos organizativos, que não se
inscrevem em institucionalidades, sejam elas legais ou promovidas
pela organização interna de determinada associação. Ao mesmo
tempo em que não podem deixar de lado a articulação com esta
mesma institucionalidade, uma vez que o próprio processo organizativo dos movimentos, bem como a construção de alternativas
para atender a suas demandas envolverão a mobilização de recursos e a emergência de lideranças e estruturas, formais e informais,
que irão penetrar nos arranjos institucionais existentes.
Nesse quadro, se apresentam alguns eixos de discussão que
carregam possibilidades e também grandes riscos para o avanço da
compreensão dos movimentos sociais na Gestão Social. No entanto,
esses riscos são necessários e como que tencionando esse campo de
reflexão, podem levar a avanços compreensivos. São eles, a saber:
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interpretações clássicas em estudos organizacionais desde, por
exemplo, Selznick e suas discussões sobre liderança e abertura
tecnocrática, até análises contemporâneas que resgatam,
por exemplo, a relevância da compreensão tocquevilliana de
sociedade e democracia para dialogar com as teorias sobre
estruturas organizacionais;
• Participação vista como fenômeno dual e contraditório,
envolvendo processos organizativos internos e relações com
instituições externas ao aparato organizativo dos movimentos
sociais; e compreendida como ação tencionada por tendências ao
insulamento tecnocrático e à abertura organizacional, recorrendo
para tanto desde a literatura sobre teoria da burocracia até os
estudos sobre participação em políticas públicas.
A teorização sobre movimentos sociais na Gestão Social brasileira compõe um quadro que inspira preocupação e certo desapontamento com os caminhos da produção científica, mas também e,
ao mesmo tempo, convida a reflexões para além das áreas de normalidade que dominam a construção de conhecimento em Administração e, infelizmente, também em Gestão Social. Este pequeno
texto, escrito com a pretensão de ter o status de ensaio, longe de
oferecer respostas definitivas a esses desafios analíticos, espera
sim despertar o leitor para a busca da “imaginação sociológica”, tão
vigorosamente discutida por Wright Mills, e fazer da discussão sobre Movimentos Sociais e Redes um tema efervescente nos Enapegs
que virão.
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Carolina Leão1
Cristiano de França Lima2
Igor Vinicius Lima Valentim3
Júlio César Andrade de Abreu4
Fonte: www.wordle.net
1 Carolina Leão é doutoranda em Sociologia Económica e das Organizações no ISEG/UTL
(Portugal) e UFRPE (Brasil). Bolseira da FCT. Em Portugal, é membro do Coletivo de Estudos,
Pesquisa e Intervenção da Mó de Vida Coop. e do SOCIUS – Centro de Investigação em Sociologia Económica e das Organizações do ISEG/UTL. No Brasil, é membro do “Teoria e Prática
- Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisa” (CNPQ).
2 Cristiano de França Lima é mestre e doutorando em Sociologia pela Faculdade de Economia e Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Bolseiro da FCT. Em Portugal,
é membro do Coletivo de Estudos, Pesquisa e Intervenção da Mó de Vida Coop. No Brasil, é
membro do “Teoria e Prática - Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisa” (CNPQ) e Professor da Faculdade Escritor Osman da Costa Lins (FACOL).
3 Igor Vinicius Lima Valentim é doutor em Sociologia Econômica e das Organizações pelo
ISEG/UTL (Portugal). Em Portugal, é membro do Coletivo de Estudos, Pesquisa e Intervenção
da Mó de Vida Coop. e do SOCIUS – Centro de Investigação em Sociologia Económica e das
Organizações do ISEG/UTL. No Brasil, é líder do “Teoria e Prática - Núcleo Interdisciplinar de
Estudos e Pesquisa” (CNPQ) e Professor da UFF.
4 Júlio César Andrade de Abreu é doutor em Administração pela UFBA. Em Portugal, é membro
do Coletivo de Estudos, Pesquisa e Intervenção da Mó de Vida Coop. No Brasil, é membro do
“Teoria e Prática - Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisa” (CNPQ) e Professor da UFF.
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
Como viver a participação política? Os desafios de
novas democracias e economias na (re) definição
da esfera pública
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| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
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1. Introdução
No Brasil contemporâneo é possível notar uma marcante separação entre política e economia, naturalizada para todos os setores
da vida. Essa separação é característica do modelo de democracia
liberal hegemônica (SANTOS, 2002; WOOD, 2003) e pertinente
àqueles que buscam (re) produzir o status quo atual, por se beneficiarem enormemente dele. Descola-se economia de política, gerando um processo de insolvência democrática, no qual todas as
dimensões da vida e da coletividade são privatizadas e ficam subordinadas ao mercado.
Naturalizam-se os fins e desprezam-se os meios. A lógica capitalista, hoje, não domina apenas os meios de produção: capitalismo
cognitivo (LAZZARATO, 2006), que produz desejos, vontades e conquista corações e mentes (GRAMSCI, 1978).
A democracia hoje dominante não estimula e até mesmo inibe
a participação efetiva das pessoas. Embora nos discursos o mundo pareça cada vez mais participativo, a participação é entendida
como atuação por meio de representantes, o que acaba por (re)produzir uma esfera pública constituída por poucos, ou seja, em última
instância, privada, na qual o que deveria ser público é muitas vezes
apropriado de modo privado. Interesses públicos e privados não
podem ser claramente distinguidos. Não se discute política como
relacionada à organização das pessoas em sociedade, com suas finalidades e meios para atingi-las.
Ora, mas se nem todos participam ativamente da construção
dos rumos do Estado e se nem todos vivem essas decisões, como
(re)definir os contornos entre o público e o privado quando vive-se
uma democracia representativa limitada apenas ao voto? Como redefinir a esfera pública a partir de outras concepções de democracia que não aquela representativa, hoje dominante no Brasil?
Parece necessário viver! A partir das problematizações elaboradas, este ensaio tem como objetivo apontar para a necessária
busca de experiências que estimulem a vida, ao construírem formas
diferentes de economia e de democracia daquelas hoje dominantes,
suscitando um questionamento: em que medida elas contribuem/
podem contribuir para redefinições da esfera pública?
2. A lógica capitalista: produção de uma
hegemonia e influência sobre os valores e a vida
Vivemos a hegemonia da lógica capitalista, fundada sobre os
interesses individuais, a propriedade privada e o lucro, valores que
têm sido gradualmente transpostos e insistentemente naturalizados em todas as esferas relacionais da vida no planeta. Essa lógica
também toma como bases o desenvolvimento técnico-científico, a
falácia do desenvolvimento econômico como solução para todos os
problemas, a acumulação irrestrita do capital e a mercantilização
de todas as esferas da vida: tudo se pode comprar e tudo está à
venda.
Estimulam-se diariamente, na maior parte de nossas relações,
o individualismo, o utilitarismo e a competição: contribuímos diariamente para a destruição da vida de muitos e do próprio planeta
do qual somos parte.
O conceito de hegemonia em Gramsci é desenvolvido através
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
Este ensaio é resultado da análise e reflexão do coletivo que coordenou o eixo Democracias” na construção de “outras economias”:
trilhas para a redefinição da esfera pública no V Encontro Nacional
de Pesquisadores em Gestão Social. O conteúdo elaborado tem em
conta os textos apresentados e os respectivos debates realizados
nos grupos de trabalho (GTs) contemplados no eixo.
Começamos discorrendo a respeito da lógica capitalista contemporânea, seus valores, e a construção de uma hegemonia. Abordamos a investida de mercantilização de todas as esferas da vida,
não se limitando à produção de bens e serviços, mas também ao
“domínio” das almas e mentes. Em seguida, partindo da percepção
do Estado como uma instituição gerida por uma classe (ou fração
de classe) hegemônica, problematizamos seu papel de protetor e
sua relação, na atualidade, com a sociedade, na (re) criação de instrumentos democratizantes “da” e “na” esfera pública. Por último,
à guisa de conclusão, apontamos esta esfera em pleno movimento,
num processo contínuo de (re) configuração por meio da inserção
de novos sujeitos sociais, tais como os movimentos sociais e políticos e as mais variadas práticas socioeconômicas.
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| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
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da ideia de uma liderança ou direção exercida no meio político, cultural, intelectual, econômico ou social por uma classe, um bloco de
classes ou mesmo um Estado-Nação. A hegemonia é constituída por
um conjunto de ações variadas de cooptação, domínio pela força ou
pelo consentimento, através de diversas instituições da sociedade
civil ou do Estado (ALMEIDA, 2002). Neste contexto, forma-se um
bloco de alianças que representa uma rede de instituições, de relações e ideias na qual uma classe ou fração de classe dominante se
torna dirigente (GRAMSCI, 1978) e procura desenvolver respostas
aos problemas da sociedade de acordo com seus interesses.
Gramsci (1978) coloca que a sociedade civil e a sociedade política (Estado) representam a função hegemônica do grupo da elite dominante, o qual obtém um consenso espontâneo das grandes
massas. Este é derivado da posição “histórica” de prestígio daquela
elite e ao mesmo tempo - dentro de uma visão derivada do pensamento de Karl Marx - pela função desempenhada no mundo da
produção. Quando este consenso espontâneo falha, existe todo um
aparato de coerção estatal que garante “legalmente” a disciplina na
sociedade.
Ou seja, não é difícil perceber que se busca cotidianamente
a construção de um consenso espontâneo da maioria das pessoas com relação aos mais diversos assuntos, ao mesmo tempo em
que se (re) produz um aparelho estatal coercitivo, para assegurar
que tudo corra como planejado pelas elites dominantes5. Entretanto, quando alguns setores da sociedade não se identificam com os
apontamentos da hegemonia estabelecida, podem ocorrer conflitos, contrariedades e reivindicações (SOUZA, 2005).
Gramsci (1978) defende que para se derrubar ideias e valores
arraigados não basta uma revolução armada, também é imperativo
ter uma revolução de pensamentos que comporte uma transformação social baseada em novos valores culturais. Eagleton (1997)
5 O sociólogo norte-americano Franklin Harry Giddings engendrou a expressão “consentimento sem consentimento” que revela o consenso da população sobre a ordem determinada
enquanto controle exercido por uma classe sobre a outra. Segundo ele, [...] se em anos vindouros (o povo conquistado) vier a admitir que a relação disputada fora pelo mais alto interesse de todos, será possível sustentar razoavelmente que a autoridade foi imposta com o
“consentimento dos governados”, da mesma forma quando um pai impede a criança de correr para uma rua movimentada (citado por Chomsky, 1997, p. 260).
6 Os recursos técnico-científicos engendrados no capitalismo, por sua natureza, não atendem aos interesses das diversas experiências e práticas socioeconômicas balizadas por princípios distintos daqueles da lógica capitalista. Precisam ser reinventados para que possam
estar a serviço de interesses diferentes.
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
mostra a atualidade do pensamento gramsciano e apresenta a extensão das ações necessárias para superar uma hegemonia constituída, alertando que não basta a ocupação de fábricas ou mesmo o
confronto direto com o Estado na contemporaneidade.
O que deve ser afrontado, segundo Eagleton (1997), é toda a
área cultural em que a hegemonia mantém domínios sobre valores,
costumes, discursos, práticas e rituais. Nesta via, é relevante salientar que este afrontamento não ocorreria somente a partir de um
entendimento relacional destes domínios, mas também considerando a inexistência de um lugar privilegiado, a partir do qual seria
possível compreender definitivamente as relações que circulam no
mundo (VEIGA-NETO, 1995).
Por enquanto, não é difícil notar o contínuo desenvolvimento de
novos meios técnico-científicos, potencialmente capazes de resolver
problemas de nossas sociedades. Porém, ao mesmo tempo, mostra-se evidente a incapacidade das forças sociais organizadas e das
formações subjetivas constituídas em se apropriarem desses meios
para torná-los operativos (GUATTARI, 1990), ou seja, para usá-los de
forma a efetivamente solucionar os mencionados problemas6.
Félix Guattari (1990) qualifica o atual estágio do capitalismo
como Capitalismo Mundial Integrado (CMI), já que tende a descentrar seus focos de poder das estruturas de produção de bens e de
serviços para as estruturas produtoras de subjetividade, por intermédio, especialmente, do controle que exerce sobre a mídia.
Portanto, o capitalismo como lógica hoje dominante não está
ligado exclusivamente à produção de bens e serviços, mas ele próprio é um modo de produção de lógicas, de mundos. Gilles Deleuze
(1992) retrata bem isso quando afirma que o capitalismo hoje não é
mais dirigido para a produção, relegada com frequência à periferia
do Terceiro Mundo e à China, mesmo sob as formas complexas do
têxtil, da metalurgia ou do petróleo. Vivemos um capitalismo que
não se limita a comprar matéria-prima e vender produtos acabados, nem a comprar produtos acabados e montar peças destacadas.
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Na versão terrestre do paraíso prometido, o capital substituiu Deus na função de fiador da promessa e a virtude que nos faz
“merecê-lo” passou a ser o consumo (ROLNIK, 2006). Consequentemente, quem não consegue obter êxito na competição do mercado é
esmagado pelas leis normativas da sua racionalidade instrumental
e utilitária. O espaço-tempo da vida cotidiana dos indivíduos e dos
grupos está sendo cada vez mais objeto de mercantilização: “tudo
se vende e se compra no mercado da vida quotidiana: amor, trabalho, honra, dignidade, justiça, violência, crime, bens e serviços de
consumos vários, órgãos do organismo humano, morte, etc.” (FERREIRA, 1997, p. 23).
Nessa linha de pensamento, Lazzarato (2006, p. 88) afirma
que, nos países ocidentais, o assalariamento permanece sendo a
forma dominante sob a qual o capitalismo explora a cooperação e o
poder de invenção das subjetividades quaisquer. A condição de assalariamento permeia uma relação de poder que logrou o consenso
espontâneo da sociedade, por possibilitar uma integração por subordinação dos cidadãos (FRANÇA-LIMA, 2008).
Vivemos e construímos sociedades de consumo, nas quais os
valores predominantes dizem respeito ao “ter”. Cultivamos valores
que enfatizam o competir, o dominar e o descartar, para além da
vitória do mais forte e mais bem preparado. Essa cultura de massa
“não oferece condições ao ser humano de enxergar-se internamente, de questionar-se sobre valores. A tendência é repetir modelos
sem indagar-se” (ZANETI, 2006, p. 82).
Uma parte da população passa a achar que não existem alternativas fora do que é apresentado e difundido hoje como natural.
Cada vez mais somos perpassados por uma dolorosa percepção de
impotência para curarmos as misérias que enxergamos.
Mas o capitalismo não é algo exterior a nós: somos nós mesmos que o construímos diariamente. É possível considerar que,
para que se tornem espontâneos no cotidiano, os valores precisam
ser cultivados como aspectos do nosso viver (VALENTIM, 2011).
Precisam ser “cotidianizados”. Entretanto, a lógica capitalista busca
naturalizar em nós apenas alguns valores, em detrimento de outros.
Questionar os valores dominantes da lógica capitalista e/ou
7 A teoria do Fim da História retomada ao final do século XX, defendida por Francis Fukuyama, preconiza tal fatalidade ao defender que o capitalismo e a democracia liberal constituem
o ponto culminante da evolução histórica da humanidade.
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
cultivar valores diferentes destes no nosso cotidiano exige um esforço redobrado. Muitas vezes somos estimulados a pensar que o
melhor a fazer é nos calarmos e interiorizarmos os valores que são
considerados como os mais desejáveis para nós, a partir de outrem.
Portanto, como Lazzarato (2006) salienta, a criação e a efetuação de mundos possíveis passam a ser os objetos da apropriação
capitalista. Dito de outra maneira, a empresa que produz um serviço ou uma mercadoria cria um mundo, já que os produtos e serviços
precisam estar inseridos nas almas e nos corpos dos trabalhadores
e dos consumidores: “no capitalismo contemporâneo, a empresa
não existe fora do produtor e do consumidor que a representam”
(LAZZARATO, 2006, p. 99). Os alvos são nossos corações, intelectos,
vontades e disposições (FOUCAULT, 2005).
Com a inserção de produtos e serviços nos valores, desejos e
necessidades das pessoas, a busca incessante pelo lucro capitalista
a qualquer preço torna-se cada vez mais concreta e “natural” (VALENTIM, 2011). E a questão não está restrita a produtos e serviços.
O trabalho, como ele é hoje tratado, é parte de uma engrenagem de
construção de mundos e de maneiras de viver, pensar, agir e sentir.
Como bem apontado por Guattari e Rolnik (2007), as transformações trazidas pelo capitalismo contemporâneo para a subjetividade funcionam no próprio coração dos indivíduos, em sua maneira de perceber o mundo, de se articular com as cidades, com os
processos do trabalho e com a ordem social.
Não obstante, essa lógica contribui para a produção e reprodução das relações que estabelecemos com o corpo, com a alimentação, com a “natureza”, com o que consideramos passado, presente
e futuro. Em suma, “ela fabrica a relação do homem com o mundo
e consigo mesmo” (GUATTARI e ROLNIK, 2007, p. 51), fazendo com
que criemos e reforcemos a ideia de que as coisas “são assim”, de
que o mundo “é assim” e, principalmente, de que não há como organizarmos a vida de outras maneiras7.
Concordamos com Suely Rolnik (2006) quando ela afirma que
políticas de subjetivação mudam de acordo com os regimes, já que
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eles dependem da construção de subjetividade para serem viabilizados, ganharem consistência e concretude no cotidiano de todos
e de cada um. Nesse sentido, vale ressaltar mais uma vez que no
capitalismo contemporâneo a produção de subjetividade passa a
ser um princípio desta lógica. É fundamentalmente das forças subjetivas, especialmente as de conhecimento e criação, que a lógica
capitalista contemporânea se alimenta, motivo pelo qual é considerada por alguns como “capitalismo cognitivo” (LAZZARATO e NEGRI, 2001; COCCO, 2001; GALVÃO et al., 2003).
O capitalismo cognitivo se pauta em uma lógica de operações
perversas cujo objetivo é o de fazer da potência humana de criação e de conhecimento o principal combustível de sua insaciável
máquina de produção e acumulação de capital. Ganâncias, riquezas
financeiras e ambições se naturalizam como valores humanos e se
espalham para todas as dimensões da vida.
Segundo Lazzarato (2006), o capitalismo é cognitivo por não
restringir-se ao domínio ou controle de meios de produção, mas
principalmente por produzir mundos (ROLNIK, 2006; DELEUZE,
1992), sentidos, desejos e valores. Isso se naturaliza nas relações
entre professores e alunos, pais e filhos, médicos e pacientes, políticos profissionais e até as mais altas esferas governamentais.
Dito de outra maneira, uma imensa maioria das pessoas passa
a viver, considerar natural, aspirar e trabalhar em função de valores
como a ambição, a competição, a acumulação financeira e o tão proclamado “sucesso” (VALENTIM, 2011), o qual é quase sempre sinônimo de alguma propaganda em revista ou televisão. Valores como
os citados são, então, naturalizados, produzidos e reproduzidos, em
maior ou menor escala, em todas as esferas da vida.
Nossas existências tendem a se tornar cada vez mais utilitárias, enquanto o valor do “outro” está cada vez mais restrito ao que
ele ou ela pode nos agregar para atingirmos os objetivos que almejamos. Vivemos os sonhos dos deuses capitalistas, do sucesso e da
vitória (ROLNIK, 2006).
Não consideramos, entretanto, que o capitalismo é um sistema
social e econômico totalizante. Refutamos, ainda, a afirmação do
“fim da história”. Concordamos com o educador Paulo Freire que “a
3. Estado versus Sociedade? Por uma nova cultura
política
O Estado, que deveria funcionar em prol do bem comum e em
prol do público (pessoas), cada vez mais transborda exemplos de
privatização em todos os níveis: age-se em função de interesses privados.
O Estado contemporâneo, alinhado à lógica capitalista, atua
como agente político (propiciando mecanismos repressivos e apaziguadores da ordem vigente) e como agente econômico (criando
a estrutura e os meios para o bom funcionamento do sistema econômico hegemônico). Portanto, ele é parte construtora da lógica
capitalista, do sistema do capital (MÉSZÁROS, 2002), também contribuindo para sua naturalização, inclusive por meio da condução
de diversas políticas públicas, tais como a educação.
Nesse sentido, interesses públicos e privados não podem ser claramente distinguidos. Esta distinção se torna ainda mais difícil de ser
efetuada já que, como abordado anteriormente, não basta verificar
quais entes controlam, regulam ou têm a posse dos meios produtivos.
Hoje, Estados e empresas privadas estão alinhados, na maior
parte das situações, tendo em vista que seus integrantes agem de
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
História [...] é um tempo de possibilidades e não de determinismo”
(2010: 53).
À medida que o capitalismo, como vimos, propicia um consenso espontâneo, também suscita práticas sociais de resistência e rejeição, que podem ser traduzidas em práticas solidárias, coletivas
e contraditórias, conformando, assim, espaços de educação para
outro tipo de participação política na esfera pública.
A esfera pública não pode ser entendida como uma simples extensão de grupos de interesse, nem como um mero prolongamento de grupos organizados ou de setores dotados de poder (GAIGER,
2003). Dessa forma, apenas reproduziria mecanismos hierárquicos
de destruição de bens públicos, desprovidos de princípios democráticos efetivos. Numa perspectiva democratizante, postula um espaço
não homogêneo, ou seja, que aceita a diferença. Resta-nos indagar
como, na atual fase do capitalismo, esta diferença se processa. 89
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
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acordo com uma lógica que produz e estimula desejos e valores semelhantes. Também são controlados os meios de produção de sentidos, de desejos e de valores, e não apenas os meios de produção.
O Estado contribui significativamente com a atual tendência
predominante da mercantilização da vida, em particular, da esfera
pública. É a expansão dos valores capitalistas a todas as dimensões
da sociedade que se reflete claramente na prática democrática contemporânea no Brasil (COUTINHO, 1999; NOGUEIRA, 1999; AVRITZER, 2006), conduzindo, por sua vez, a um modelo de democracia
liberal hegemônica (SANTOS, 2002; WOOD, 2003), que tem como
característica marcante a separação entre as dimensões econômica
e política. Esta separação é extremamente útil e pertinente à classe
mais privilegiada e hegemonicamente dominante, que consegue,
através de todo um aparato legal do Estado, fazer prevalecer suas
visões, naturalizando valores e comportamentos.
Segundo Ellen Wood, a hegemonia inseriu uma “cunha entre o
econômico e o político” (WOOD, 2003, p. 28). Partindo de um olhar
da realidade social brasileira, é importante questionar quais são as
raízes de seus problemas e analisar a dimensão política. Ao constatarmos (WOOD, 2003; GRAMSCI, 1978; SANTOS, 2002; AVRITZER,
2006; NOGUEIRA, 1999; COUTINHO, 1999), que ocorre um descolamento da política com a economia, parte-se para um aprofundamento da temática a partir de um exame do capitalismo neoliberal e
hegemônico enquanto modelo produtivo dominante na sociedade.
Este esforço analítico será responsável pela compreensão da cisão
entre economia e política no modelo democrático atual.
Percebe-se um esforço para enclausurar a dimensão política
do capitalismo, empurrando esta para um lugar no qual as relações
de trabalho, as questões de produção e fluxo do circuito do capital
possuem uma característica perene e isolada. Perene, pois se refere a uma eternidade, à ideia de que o capitalismo sempre existiu
e sempre existirá. Isolada, pois descola o capitalismo da história,
vinculando-o a leis naturais invioláveis.
A dimensão política é aqui entendida como participação ativa
dos cidadãos na esfera pública. A política consiste, neste raciocínio,
nas ações dos cidadãos nesta esfera. Consideramos que política tem
8 O termo “poderes econômicos”, segundo a perspectiva que adotamos, refere-se à supremacia de uma teoria econômica emergida a partir do século XVIII. Esta supremacia, segundo
Laville (2004), deveu-se a três reducionismos criados pela compreensão estreita daquela
teoria: a) redução de toda economia à economia de mercado; b) a redução de todo mercado
ao mercado autorregulado e, c) a redução de toda a empresa econômica à empresa capitalista. Maciel e Serafim (2011), baseando-se na obra “A Política” de Aristóteles, argumentam
que vivemos na lógica da “chrematistike” e, não da “oikonomia” (economia). A primeira é
movida exclusivamente pela busca da acumulação, enquanto a segunda trata da boa utilização dos bens.
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
a ver com a organização das pessoas em sociedade, com organização coletiva.
Na visão ideológica da economia política burguesa, a sociedade
é tida como algo abstrato (WOOD, 2003; GRAMSCI, 1978; KOHAN,
2004). A abstração da sociedade faz com que a esfera política no
capitalismo tenha um caráter diferenciado. O capital, em sua nova
fase, tem logrado subtrair da linguagem democrática os aspectos de
transformação dos modos por meio dos quais as pessoas se organizam e das consequentes relações de poder. Para Wood (2003), a organização capitalista foi tecida em longos embates de poderes políticos que foram se tornando, aos poucos, “poderes econômicos”8.
Esta autoridade da propriedade privada passa a organizar a sociedade em benefício próprio.
A separação da esfera econômica da esfera política explicita a
privatização da política. Esta pode ser traduzida na função “social”
do Estado, protegendo os trabalhadores dos riscos advindos da ordem econômica em vigência. Cria-se uma ideia ilusória de que o
Estado pertence a todos, uma vez que toda a sociedade, através do
sufrágio universal, participa da constituição dos quadros diretores
estatais (cargos eletivos).
São trabalhados os meios, mas supõe-se que os fins e objetivos
são comuns a todas as pessoas, não se discutindo esses fins nem a
forma de atingi-los (não se discute política como organização das
pessoas em sociedade com suas finalidades e meios para atingi-las): “naturalizam-se os fins e a lógica capitalista”.
O sistema político hegemônico da contemporaneidade, operacionalizado através da democracia representativa liberalista, está
deste modo construindo uma democracia hegemônica de mercado.
A democracia hegemônica na contemporaneidade, vigente no
91
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
92
cenário do capitalismo global, que segrega a economia do debate político é baseada em três pilares (AVRITZER, 2006; SANTOS, 2002). O
primeiro pilar deriva da afirmação weberiana de que em um Estado
moderno os indivíduos perderiam o controle sobre as arenas políticas, administrativas, militares e jurídicas. Para Weber, o indivíduo
passaria a ser controlado por uma burocracia especializada e hierarquizada, pois somente esta estaria apta a dirigir o Estado moderno
e toda sua complexidade. O segundo pilar foi constituído durante
a formação da teoria democrática nos séculos XVIII e XIX, quando
houve grande debate sobre a racionalidade e a mobilização. Segundo
Avritzer, vários autores “como Ortega y Gasset, Karl Manheim, Eric
Fromm e Max Horkheimeir” (apud SANTOS, 2002, p. 565), contribuíram para a formação da democracia hegemônica ao se posicionarem contra uma racionalidade participativa na política. Tal visão era
sustentada pela ideia de que a participação popular era apenas uma
“pressão irracional das massas” (SANTOS, 2002, p. 566). A principal
consequência deste argumento é o governo das elites como garantia de uma manutenção da ordem. O terceiro e último pilar refere-se
à ideia de que todas as formas de iniciativas coletivas são similares
e geram uma contradição entre mobilização e institucionalização
(SANTOS, 2002).
A partir dessa separação entre economia e política, que em nosso entendimento torna-se uma falácia, a sociedade parece se comportar de modo cada vez mais passivo, com menos mecanismos para
participar na política. Esta ideia é defendida pela teoria da democracia contemporânea que, segundo Pateman, enquanto nesta o “conceito de participação assume um papel menor”, é dada grande relevância aos “perigos inerentes à ampla participação popular em política”
(PATEMAN, 1992, p. 10).
Dessa forma, ao considerar a realidade socioeconômica brasileira, se constitui um ambiente extremamente hostil para a eliminação das desigualdades sociais e para criação de políticas públicas
amplas e equitativas. Nestes registros, a democracia restringe-se aos
arranjos institucionais, em especial ao sufrágio universal. Cria-se,
portanto, duas ideias ilusórias: a primeira, de que o voto puro e simples pode promover transformações na economia nacional e na forte
9 Grifos da própria autora.
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
desigualdade social reinante. Esta ideia é no mínimo limitada, como
é igualmente limitada a democracia hegemônica vigente. A segunda,
como consequência da primeira, que o Estado pertence a todos.
Góes (2007) afirma que uma democracia representativa liberalista acentua as desigualdades sociais e monopoliza as decisões
políticas e econômicas no mundo. Para Sartori (2008), este tipo de
democracia consiste num sistema de controle e de limitação de poder.
A teoria democrática contemporânea, por defender a participação por meio de representantes, como já indicado, acaba por
ajudar a (re)produzir uma esfera pública constituída por poucos,
ou seja, em última instância, privada, na qual o ser público é apropriado de modo privado.
Ao contrário da teoria democrática contemporânea, a participação tem um papel importante na teoria da democracia participativa. Nesta, a participação “refere-se à participação (igual) na tomada de decisões e “igualdade política” refere-se à igualdade de poder
na determinação das consequências das decisões [...]” (PATEMAN,
1992:61)9. A teoria participativa centra-se numa definição ampla
de “político” e, principalmente, apreende a democracia no seu aspecto educativo - e não meramente numa função protetora - o papel
social do Estado -, como faz crer a teoria contemporânea.
Tomando como base a teoria da democracia participativa, chegamos ao cerne deste ensaio: a redefinição da esfera pública. Uma
vez que o Estado não pertence à sociedade e a partir da premissa
que a economia está descolada da política, indagamos: em que medida o surgimento dos novos movimentos sociais, da diversidade de
práticas socioeconômicas em desenvolvimento por trabalhadores,
de novas práticas sociais (incentivadas e vivenciadas por uma camada da população até então invisibilizada pela economia de mercado)
tende a redefinir a esfera pública? Como têm dialogado com o Estado? Como (re)definir os contornos entre público e privado quando se
vive em uma democracia representativa limitada ao voto?
Não podemos deixar de salientar que, desde a metade da década de 1970, os movimentos sociais, as ONGs e outros sujeitos so-
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| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
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ciais passam a assumir um papel consideravelmente relevante no
desenvolvimento de resoluções para determinadas necessidades e
exigências sociais. Também é imprescindível sublinhar que, neste
período, a participação dos mais diversos movimentos sociais na
reivindicação de formas de participação social na esfera pública política influenciou grandemente o processo de transição democrática a partir da década de 198010.
Segundo Daniel (2000), a sociedade civil e os governos devem,
e é de suma importância, atuarem em conjunto, para multiplicar
o envolvimento e a participação dos cidadãos na gestão pública
por meios de mecanismos democratizantes. Nenhum sujeito, seja
ele público ou privado, institucional ou não institucional, tem suficientes conhecimentos e informações para tomar as resoluções dos
desafios sociais e políticos vigentes, que são de características complexas, dinâmicas e diversificadas (KOOIMAN, 2003).
A utilização de instrumentos democratizantes na esfera pública, os quais estimulem a interação entre os sujeitos sociais, necessitam estar concatenadas a um novo paradigma de ação pública
estatal. Só dessa forma, acreditamos que terá eficácia no campo da
participação ativa.
No novo paradigma de ação pública estatal, o eixo central não
se limita aos órgãos e aparatos do Estado, incorpora também as
diversas interações, a relação Estado e sociedade. Neste contexto,
a sociedade é tratada como diversidade social no que concerne
às suas instituições e organizações, o que vale considerar que as
transformações que alteram a esfera pública e a relação Estado/
sociedade são complexas e diversas.
Aferimos, partindo do exposto até agora, que é urgente a prática cotidiana de uma nova cultura política. Esta pressupõe: a) uma
democracia que, conforme Touraine (2000), implica na destruição do
sistema hierarquizado e da visão holística da sociedade; b) a configuração de uma esfera pública que admita as diferenças e; c) a conformação de indivíduos autônomos, críticos e reflexivos, distintos dos
indivíduos-massa das sociedades contemporâneas (OLIVEIRA, 2001).
10 Em relação ao Estado, neste período estava em questão o modelo tecnocrático de administração pública, caracterizado pela centralidade administrativa e pelo sistema burocrático,
até então em funcionamento na gestão pública brasileira.
Entre os diagnósticos possíveis e as perguntas por responder,
parece-nos necessário conhecer que conteúdos outras práticas/
experiências econômicas - que contrariam a lógica do capitalismo
- acrescentam aos processos democratizantes. Logo, é pertinente
a pergunta feita pelo educador Paulo Freire: “como trabalhar, não
importa em que campo [...] sem ir conhecendo as manhas com que
os grupos humanos produzem sua própria sobrevivência?” (FREIRE, 2010, p. 81).
No centro das preocupações que nos motivaram a criar o eixo
“Democracias” na construção de “outras economias”: trilhas para a
redefinição da esfera pública”, coordenado por este coletivo durante o V Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social (Enapegs) está, como refere Santos (2000), o fato de que a experiência
social em todo o mundo é muito mais ampla e variada do que aquilo
que a tradição científica ou filosófica ocidental conhece e considera
importante.
Scherer-Warren (2006) afirma que a realidade dos movimentos sociais é dinâmica e nem sempre as teorizações têm acompanhado este dinamismo. Portanto, é preciso esmero nas análises
sobre as mais diversas experiências sociais em desenvolvimento.
Estas experiências tecem, na realidade socioeconômica, em particular do Brasil, relações nas quais coabitam num mesmo espaço e
tempo, o velho e o novo, o constituído e o constituinte.
Não pretendemos aprofundar a revisão bibliográfica sobre a
temática da diversidade das experiências que tentam reinventar
formas de economia, convivência e participação. Cabe situar, entretanto, o surgimento de um conjunto de iniciativas, em especial
a partir da década de 1980, no Brasil, de vários movimentos sociais e políticos, ONGs, experiências de orçamento participativo em
governos progressistas, o avanço de cooperativas de trabalho, de
associações de trabalhadores, as parcerias entre o poder público
e a sociedade, entre outros. O que implica em mudança “da” e “na”
esfera pública.
Em âmbito internacional, também há uma efervescência de
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
4. À guisa de uma conclusão: espaços e tempos de
reinvenção das “democracias”
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movimentos, como as conferências mundiais das Nações Unidas, fóruns de ONG e movimentos sociais, Agenda 21 locais, a abordagem
de redes, entre outras. Há que destacar, em 2001, a realização do
1º Fórum Social Mundial no Brasil, chegando à sua 11ª edição em
2011, possibilitando um espaço de encontro, diálogo e cooperação
entre os movimentos sociais, poderes públicos e diversos atores11.
Como a esfera pública é alterada com estas iniciativas e experiências? Quais conteúdos estas vêm pautando a agenda política e
econômica na esfera pública? Novos sujeitos sociais12 têm vindo a se
inserir na arena pública e política, por via dos movimentos sociais,
o que, em certa medida, constitui pontes que disseminam informações e acesso aos recursos e benefícios por parte da população.
Por meio daquelas experiências, no âmbito das relações do Estado com a sociedade, estão sendo assinaladas demandas para uma
maior distribuição do poder no processo de tomada de decisões que
afetam a vida societal. Porém, como analisamos anteriormente, o capitalismo hoje tem avançado na mercantilização de muitos espaços
sociais, por meio dos valores e princípios por uma grande parte da
população assimilados como “naturais” e “irreversíveis”. Mas, nos
interstícios deste sistema hegemônico, há quem esteja criando e recriando outros modos de vida, de produção, de relações humanas.
Ainda de forma tímida e latente, os diferentes sujeitos sociais
que têm ocupado o espaço público e político, têm tentado reconstituir e decifrar o labirinto13 político. Este tem sido reconfigurado
11 O Processo do FSM inspirou a organização de outros fóruns temáticos (como os realizados na Argentina, Colômbia e Palestina), regionais e internacionais (como os fóruns sociais
europeu, mediterrâneo, américas, asiático, africano, pan-amazônico). Esses são parte do processo de internacionalização e de enraizamento do FSM, e vêm acontecendo desde o final de
2011. Também as atividades paralelas congregam diversas instâncias da sociedade: Fórum
de Autoridades Locais, Fórum Parlamentar Mundial, Fórum Mundial de Juízes, Acampamento Intercontinental da Juventude, Forunzinho Social Mundial, entre outros.
12 A ideia de sujeitos sociais está intrinsecamente relacionada a de sujeitos que, na perspectiva deste ensaio, participam na arena política e/ou pública, formulam e possuem capacidades de produzir fatos naquela arena e, até mesmo, esboçam um projeto social.
13 O termo “labirinto”, aqui utilizado, surge intrinsecamente ligado à noção expressa por
Ruivo (2000, p.25): “Compreende-se, assim, que o labirinto constitua, simultaneamente, o
lugar mais fechado e o mais aberto. Mais aberto, porque qualquer pessoa pode nele penetrar.
Não existe, porém, garantia de que o resultado de tal ato redunde em algo diferente de uma
repetição infinita de passos que a nada levam, de um rodeio cego em torno de um centro que
se não vislumbra. Por essa razão, primando a sua essência pela complexidade, ele será também ao mesmo tempo, em termos sistêmicos, o lugar mais fechado (em torno do seu centro)”.
14 As informações sobre o PL 865 constam no documento elaborado pelo FBES para a negociação com o governo federal, denominado “Fortalecimento das políticas públicas de Economia Solidária no governo Dilma Rousseff”.
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
por novas formas hierárquicas de poder, que colocam, por sua vez,
novos desafios à sociedade e ao próprio Estado, no que respeita ao
processo de democratização de todas as esferas estatais.
A emergência desses sujeitos sociais, até então invisibilizados,
vem forjando a sua participação política no seio da sociedade brasileira, engendrando possibilidades de uma subjetividade coletiva
que, além de alterar a própria esfera pública, também transforma o
significado e a representação do território onde se localizam. Trazem novas problemáticas e dilemas para a (re)configuração da ação
política e dos processos/mecanismos de democratização daquela
esfera. Estes processos oferecem-nos um vasto campo de pesquisa
e diálogo com a produção dos conhecimentos emergentes.
Para exemplificar o que aqui explicitamos, ressaltamos a recente mobilização do movimento da economia solidária no Brasil,
face ao Projeto de Lei 865 (PL 865), que criou a Secretaria Especial
de Micro e Pequena Empresa.
O PL 86514 foi apresentado, em 3 de março de 2011, pelo governo
federal ao Congresso Nacional, para aprovação em caráter de urgência,
sem efetuar consulta pública ao movimento da Economia Solidária.
Entre os seus objetivos estava a transferência das atribuições da Economia Solidária – então a cargo do Ministério do Trabalho e Emprego
– assim como do Conselho Nacional de Economia Solidária e da Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes) para a nova secretaria.
Tal projeto de lei ignorava todo o processo participativo histórico do movimento, as conquistas de diálogo efetuadas junto às
diversas instâncias governamentais para a construção de políticas
públicas e a pluralidade de empreendimentos econômicos solidários inscritos naquele movimento. Esta atitude mostra e reforça a
ideia do quanto o Estado brasileiro se pauta pela separação entre
economia e política.
Contudo, contrariando a forma como o processo para a aprovação do PL 865 foi desencadeado, a esfera pública foi tomada por
espaços de debate, de consulta e diálogo, forjados pelos sujeitos
sociais que estão na base da Economia Solidária no país. Por meio
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| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
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de audiências públicas estaduais, nacionais e da criação de uma comissão tripartite no Congresso Nacional (formada pelo Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES), Senaes e Frente Parlamentar
de Economia Solidária), aqueles sujeitos forçaram a ampliação do
conflito à esfera pública política. No dia 25 de agosto de 2011, o governo federal revê a sua posição e retira as atribuições da Economia
Solidária do PL 86515.
A inspiração do desenvolvimento do eixo temático “Democracias” nos processos de construção de “outras economias”: trilhas para
a redefinição da esfera pública foi amparada pela percepção, tal
como referida por Scherer-Warren (2006), do limite que as ciências
têm em acompanhar o dinamismo das experiências sociais, econômicas e políticas levadas a cabo por grupos sociais marginalizados
e invisibilizados pelo modelo econômico hegemônico16.
Para vincar a necessidade de ampliar a perspectiva sobre a
abordagem da democracia e a contribuição específica dos movimentos sociais para além das esferas institucionais, é pertinente
mencionar a reflexão de Costa (1997) de que
parece necessário reconhecer que as contribuições democratizantes desses movimentos não podem ser enxergadas unicamente a partir das instâncias institucionais, esperando-se deles o aperfeiçoamento dos mecanismos de intermediação de interesses ou a renovação
da vida partidária, minada em países como o Brasil
pelas velhas práticas autoritárias e pelos novos casuísmos. Suas possibilidades residem precisamente em
seu “enraizamento” em esferas sociais que são, do ponto de vista institucional, pré-políticas. E é no nível de
tais órbitas e da articulação que os movimentos sociais
estabelecem entre estas e as arenas institucionais que
podem emergir os impulsos mais promissores para a
construção da democracia.
15 No documento “Governo revê posição e retira atribuições da Economia Solidária” pode-se confirmar o recuo do governo federal, face às mobilizações do movimento, retirando as
atribuições da Economia Solidária do PL 865.
16 Os autores do presente ensaio coordenaram o eixo temático no V ENAPEGS, ocorrido em
Florianópolis, Santa Catarina, 26 a 28 de maio de 2011. Com quatro sessões, contou com 22
apresentações de trabalhos. O eixo teve como proposta a análise e a vivência de experiências
acerca dos processos de democracia que buscam a emancipação social, bem como a construção de novas realidades econômicas.
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
Corroborando a vivacidade com que grupos sociais têm vindo
a recriar formas de produção, de organização e de se fazerem atuantes
na esfera pública, os diversos trabalhos inscritos e apresentados no eixo
temático trouxeram para o debate experiências de desenvolvimento local, tais como: o Centro de Desenvolvimento Comunitário das Timbaúbas, localizado na cidade de Juazeiro do Norte, Ceará; o desenvolvimento territorial sustentável promovido no recôncavo baiano; incubadoras
de empreendimentos solidários (desenvolvendo o papel de mediação
entre estes empreendimentos e o poder público); fábricas recuperadas
por trabalhadores e a experiência particular da Empresa Social Solidarium, entre tantas outras.
Casos como o projeto de extensão universitária desenvolvido em
Guaratuba, Paraná, construído numa perspectiva de diálogo entre a
universidade e a comunidade, demonstram o quanto a esfera pública é
um espaço em pleno movimento, transformação de fomento contínuo a
novas formas de ser e de estar dos cidadãos.
Não podemos perder de vista que, apesar do desenvolvimento
dessas experiências e práticas se inserir num contexto capitalista, elas
têm grande potencialidade na “redefinição de valores, símbolos e significados, num jogo de interação e reciprocidade entre o instituído e o instituinte” (GOHN, 2005, p. 19). O instituído aqui é compreendido como o
que se conhece e está formalizado (normalizado), e o instituinte como
o que está em formação, ou seja, o “novo” que se manifesta de forma
latente, mas que logra inserir-se nas práticas instituídas.
As práticas sociais apresentadas nos quatro GTs que constituíram
o referido eixo temático também remetem para a afirmação de Scherer-Warren (2006) de que, para os sujeitos se tornarem atores de novas
formas de governança, é necessário que a participação destes seja
contemplada em diferentes espaços. Segundo a autora, os espaços
em que ocorrem o empoderamento político e simbólico das organizações de base são os das mobilizações de base local, nos quais
afirmam e consolidam as identidades coletivas, reforçando o sentimento de pertença.
Também os simbolismos e místicas das lutas (os cultos das
bandeiras, das músicas, dos ritos) valorizam a premissa da unidade
na diversidade e da força interior para prosseguir com a luta. Por
99
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
100
sua vez, os projetos/utopias são os que promovem a longevidade e
significado ao movimento (projetos de reforma agrária, território
comunal, reconhecimento das diferenças de gênero).
Outros espaços nos quais se vão engendrando as propostas
que visam a transformação social e de negociação com o Estado e
o mercado são os fóruns da sociedade civil. Nestes, é possível que
as organizações de base construam canais de representação e de
mediação política para negociar com o Estado e o mercado.
Por fim, a autora assinala que há múltiplas formas de atuação
que podem estar na origem das parcerias entre sociedade civil, Estado e mercado. E a gestão das políticas públicas poderá ser mais
ou menos cidadã - o que significa ser influenciada pela sociedade civil - dependendo das relações de força e das possibilidades de convergência entre representantes das redes de movimentos sociais,
da esfera estatal e do mercado.
Destarte, a experiência vivida no eixo “Democracias” nos processos de construção de “outras economias”: trilhas para a redefinição da esfera pública através dos trabalhos apresentados e debates
travados, apresenta forte sinalização de que está sendo desbravado
um processo de redefinição da esfera pública. Contudo, não se trata
do desbravamento de um caminho, mas sim de várias trilhas, que
vão se adaptando, serpenteando e se definindo a cada novo passo.
Percebemos claramente, através deste eixo temático, que estamos
aprendendo novas formas de caminhar, construindo contra-hegemonias, alternativas reais que redefinam a esfera pública. Estamos
aprendendo a viver e a construir uma real participação política, que
não seja fragmentada. O desafio ainda é enorme. O caminho é longo e estamos distantes da chegada. Mas caminhamos na certeza de
que várias trilhas foram e estão sendo desbravadas.
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Eloisa Helena de Souza Cabral1
Luis Antonio Eguinoa2
Paulo de Tarso Muzy3
Este artigo pretende operacionalizar a orientação do V Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social - Enapegs 2011 e
do seu Eixo 4 – Gestão Social, Arte e Cultura: Valores e Tecnologias
para a Gestão do Patrimônio das Cidades, qual seja, a oportunidade
de discutir o tema com a finalidade de comunicar achados cientificamente relevantes e propiciar o desenvolvimento de agendas de
pesquisa. Considerando a centralidade dos valores para as iniciativas que abordam a questão do patrimônio mundial, cultural e natural, material e imaterial, examinamos um conjunto de documentos
de agências internacionais representativas para o tema e o conteúdo dos projetos apresentados relativos ao Eixo. Identificamos um
inventário de valores, aceitos pelas agências e comunicados pelos
projetos aos seus públicos constituintes. Esses valores induzem as
metas, normas e os objetivos esperados nesses públicos, os quais
passam a responder por atitudes e posturas práticas infundidas
pela gestão social desses projetos. O inventário de valores do patrimônio organiza-se em seis grupos temáticos que reconhecemos na
área: valores da temporalidade; valores da vida; valores da arte; valores da cultura; valores da natureza; valores do desenvolvimento
social; e valores do progresso econômico. Sugerimos uma agenda
de pesquisas e fazemos a conexão com outros estudos nas áreas
de psicologia, sociologia das organizações, e sociologia econômica,
que possam contribuir para o desenvolvimento de uma cultura de
avaliação de impacto que contemple o exame dos resultados alcançados e dos valores transmitidos pela gestão social na área.
1 Eloisa Helena de Souza Cabral é doutora em Ciências Sociais e professora titular de Sociologia
da Faculdade de Administração da Fundação Armando Álvares Penteado.
2 Luis Antonio Eguinoa é mestrando em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local pelo
Centro Universitário UNA, Belo Horizonte.
3 Paulo de Tarso Muzy é doutor em Física pelo Instituto de Física da Universidade de São Paulo e
pesquisador do Grupo de Mecânica Estatística daquele Instituto.
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
Espaço público e gestão social do patrimônio
mundial: inventário de valores
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| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
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1. Introdução
Apesar do reconhecimento da importância dos valores associados às iniciativas, públicas ou privadas, que envolvem o interesse público e a explicitação inequívoca de valores, nem sempre
é satisfatória a consideração desses valores como elementos identificáveis na gestão e mensuráveis nos resultados. Alega-se a razão
prática da generalidade, ou intangibilidade, atribuída aos valores,
resultante da postura recorrente de tratá-los como elementos subjetivos ou meramente descritivos no exame racional, na implementação, na execução, e na avaliação de uma iniciativa. Resta, aos valores, pertencerem à categoria abstrata das pretensões e o processo
de gestão não os inclui como resultados avaliáveis, embora possa
ressaltá-los como premissas, corroborando um discurso que já se
denominou de Dicotomia Fato/Valor (PUTNAM, 2002).
Sob o aspecto teórico, Putnam (2002) mostra a inconsistência
lógica da manutenção dessa dicotomia entre os fatos, considerados
como elementos objetivos e avaliáveis, e os valores, considerados
como elementos subjetivos e apenas descritivos dos fenômenos.
Sob o aspecto prático da gestão e da avaliação de impacto, Cabral
(2012) desenvolve instrumentos e metodologias para superar essa
imprecisão, considerando fatos e valores em um mesmo nível de
relevância. Elemento fundamental nessas contribuições é a identificação do inventário de valores relevantes na área e que possa ser
aplicado às iniciativas, possibilitando a comunicação e comparação
dos achados avaliativos.
O tema do patrimônio mundial cultural e natural, material e
imaterial (o qual designaremos, para sermos breves, por patrimônio), que engloba as preocupações com o meio ambiente, a cultura,
os patrimônios artístico, histórico e natural, oferece um exemplo
tratável dessa situação. Estruturalmente, as considerações sobre
esse tema são fundamentadas em valores e os projetos e programas
na área apresentam esforços na materialização desses valores em
atitudes, objetivos, metas e comportamentos, os quais a gestão social deve observar e perseguir. Constatam-se generalidade e abrangência suficientes no tema, que percola nas iniciativas, mantendo
homogeneidade de propósitos, fundados nos valores.
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
Porém, no exame da gestão e na prática da avaliação temos
dificuldades em consolidar instrumentos que apurem a satisfação, o bem-estar, o deleite, a transmissão, ou efetivação dos
valores pretendidos nos resultados alcançados, como medidas
quantitativas e dotadas de comparação interpessoal. Podemos
tomar como exemplo o esforço das propostas de avaliação contingente; de custo-benefício; e de impacto, para estabelecer sistemáticas de monetarização de impactos; de disposição de pagar
ou de aceitar; e de precificação, para contemplar explicitamente
os valores, não exclusivamente econômicos, subentendidos nos
resultados alcançados (MOTA, 2006; CHAMP, BOYLE e BROWN,
2003; NAVRUD e READY, 2002).
Este artigo pretende contribuir para a fase inicial desse problema, apresentando um inventário de valores afetos ao patrimônio que
possa ser útil às metodologias de avaliação que contemplem os valores como atributos constituintes do impacto das iniciativas nessa
área. Esse inventário constitui-se em um referencial para a gestão social desses bens, cujos valores se materializam nos objetivos, metas e
atitudes assumidos na gestão. Evidentemente, esse esforço não pretende, e nem mesmo poderia pretender, exaurir essa identificação,
mas, sim, contribuir para a explicitação desses valores.
O tema do patrimônio abrange questões que transcendem as
fronteiras nacionais, seja pelo sentido da preservação, seja por sua
exposição ao interesse econômico, por exemplo, no turismo, na
sustentabilidade, na arte, e na cultura - na exploração de suas potencialidades e oportunidades, e na gestão de atividades e projetos
específicos. Essa importância, que é social e econômica, enseja a
manifestação de agências internacionais e a conformação de acordos, ajustes, termos de conduta e orientações aceitas no planeta.
Essas manifestações explicitam os valores associados ao tema, que
podem, por sua vez, ser reencontrados na forma de motivações,
posturas e atitudes nos projetos e iniciativas desenvolvidos na área.
Inventariar esses valores exige metodologicamente um exercício de
coleta e identificação nas fontes documentais e sua revisão experimental no debate, na literatura e na prática da gestão social desses
projetos.
107
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108
Para tanto, são fundamentais uma concepção normativa da
gestão social desenvolvida pelo primeiro autor e apresentada em
outras edições do Enapegs (CABRAL, 2011); uma metodologia de
avaliação (CABRAL e MUZY, 2009, 2011), que permita identificar e
apurar a capacidade da gestão social em publicizar esses valores e
comunicar-se com os públicos constituintes das manifestações na
área; um campo de interesse e pesquisa ao qual se aplique a investigação desses valores (CABRAL, EGUINOA e MUZY, 2010); e um
espaço institucional que possibilite a apresentação e a discussão
acadêmica dos achados, das contribuições, das práticas e das reflexões dos interessados, colimando-os de acordo com o referencial
aceito e confrontando-os com o exercício da gestão social.
Esse lugar, como institucionalidade, foi propiciado pela organização do V Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social
- Enapegs, realizado em Florianópolis (SC), entre os dias 26 e 28 de
maio de 2011, sob a direção da Profa. Dra. Paula Chies Schommer,
e com o tema da Gestão Social como Caminho para a Redefinição
da Esfera Pública. Como ambiente dialógico, contou com a colaboração de 41 pesquisadores (Abdon Cunha, Adriana R. T. de Mello,
Alex B. Vasconcelos, Aline F. Guimarães, Alpeniano S. Filho, Amélia
C. Passos, Ana L. C. de M. Barbosa, Ana Luíza R. do Valle, Andrea P.
dos Santos, Angela Lucas, Carlos A. C. Sampaio, Carlos Cavalcante,
Carlos H. Guimarães, Cláudia S. Ribeiro, Cleber V. Fernandes, Cleonisia A. R. do Vale, Geraldo F. Teixeira, Geraldo Ferna, Gustavo M.
da Costa, Isabel J. Grimm, Ivone Lemke, Jeová T. Silva Jr., Kadma Lanubia, Luciene A. da Silva, Luiz R. Alves, Marcia R. Ferreira, Marcio
Kuniyoshi, Maria A. de Figueiredo, Maria A. J. Corá, Maria V. de C.
Pardal, Natália C. Marra, Rafael C. B. Peixoto, Rebeca R. Grangeiro,
Regina Fer, Renata C. Duca, Robinson H. Scholtz, Sérgio Dantas, Sílvia H. Passarelli, Sueline S. de Souza, Washington Souza e Willian
A. Borges) que atenderam ao chamado de trabalhos para oferecer
suas contribuições ao eixo temático proposto pelos autores desta
nota e denominado Gestão Social, Arte e Cultura: Valores e Tecnologias para a Gestão do Patrimônio das Cidades.
A gestão social, considerada como a que reproduz valores e
produz benefícios, associados à missão organizacional, quando
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
processo para a produção, consumação, exploração e apropriação
pública dos bens do patrimônio, incorpora de modo exemplar o
conteúdo valorativo desses bens, que, de certo modo, os define e
os torna singulares. Esse conteúdo, dada a circunstância da publicidade dos bens, constitui-se em um corpo de valores explicitados
em declarações validadas internacionalmente e tomadas como referencial para as iniciativas na área.
De acordo com Schwartz (2005), valores são crenças indutoras
de sentimentos e reações, relacionadas aos objetivos desejados, que
transcendem e se apresentam em situações diversas, orientando
pessoas, organizações e ações. Os valores associados ao patrimônio
e expressos nas declarações, nas organizações e nas iniciativas da
área, qualificam os bens patrimoniais como um bem público, especialmente quanto às diretrizes que inspiraram a Declaração de Budapeste sobre o Patrimônio Mundial, 1972, quando se estabeleceu
que qualquer atentado contra o patrimônio se constitui em atentado ao espírito humano e à herança comum de toda a humanidade.
Essa constatação é que nos permite examinar conjuntamente,
no que concerne aos valores, os temas do meio ambiente, da cultura, e dos patrimônios artístico, histórico e natural, sintetizando-os a partir da transindividualidade, indivisibilidade e titularidade
indeterminada características que, de acordo com Mourão (2009),
definem a natureza difusa do direito que se lhes aplica e está na
base da criação das normas, na sua discussão e na concordância
internacional exposta nessas manifestações.
As orientações e os apontes das várias manifestações e convenções da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura/United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (Unesco) corroboram esta abordagem norteando
políticas e ações de salvaguarda dos patrimônios cultural e natural
e do patrimônio imaterial das nações e definem os valores inerentes a esse patrimônio, considerando o direito de herança das gerações futuras como referenciais do sentido de pertencimento que
carregam. Para tanto, especialmente a Convenção da Unesco para a
Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, considera os
monumentos, os conjuntos e os locais de interesse. Como Patrimô-
109
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
110
nio Cultural Imaterial, a Unesco (2003) entende as práticas, representações, expressões, os conhecimentos e as técnicas - juntamente
com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes
são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos,
os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural.
Na primeira parte deste artigo, apresentamos as considerações emanadas de órgãos, como a Unesco, que se pronunciaram
oficialmente em assembleias internacionais, materializando os
acordos, e aos quais nos referimos. Na segunda, refletimos sobre
a capacidade da gestão social e dos instrumentos necessários
para perseguir essas recomendações, considerando as discussões havidas durante o V Enapegs. Na terceira parte, apresentamos um inventário de valores sugeridos pelo exame documental
e pelas evidências, valendo-nos de um instrumento de análise, o
Mapa de Bens Públicos (MBP) (CABRAL, 2010). Na quarta parte,
como conclusão apresentamos as diretrizes de um processo de
investigação do conjunto inventariado e algumas possibilidades
de aplicação desses instrumentos, em linhas e agendas de pesquisa.
2. O reconhecimento internacional da questão do
patrimônio
O tema do patrimônio recebeu reconhecimento mundial em
um conjunto de Instrumentos Internacionais Legais em Cultura
e nas Orientações para a Aplicação da Convenção do Patrimônio
Mundial Cultural e Natural, ambos da Unesco, emanadas do comitê intergovernamental para a proteção do patrimônio mundial
do Centro do Patrimônio Mundial1 e as diversas convenções, declarações e manifestações, entre as quais destacamos: a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural (UNESCO, 2002), a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural
(1972), a Declaração de Budapeste, de 1972, a Convenção para a
Salvaguarda do Patrimônio Imaterial, de 2003, e a Convenção sobre
a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, de
2005. Todos elementos norteadores legais das várias políticas e
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
medidas de salvaguarda para a preservação do patrimônio comum da humanidade, na atualidade.
Era unânime, nas respectivas épocas, e motivava essas declarações, o fato de o patrimônio cultural e o natural estarem cada vez
mais ameaçados de destruição não apenas pelas causas naturais,
mas também pela evolução da vida social e da econômica. Considerava, por exemplo, a Convenção para a Proteção do Patrimônio
Mundial, Cultural e Natural realizada em Paris em 1972, que “a degradação ou o desaparecimento de um bem do patrimônio cultural
e natural constitui um empobrecimento efetivo do patrimônio de
todos os povos do mundo” e reconhecia de forma bastante clara que
determinados bens se revestiam de excepcional interesse, o que indicava a sua preservação como elementos do patrimônio mundial
da humanidade.
O termo patrimônio mundial, cultural e natural respondia, naquela convenção, por três elementos principais, a saber: No seu
conteúdo cultural: os monumentos – obras arquitetônicas, de escultura ou de pintura monumentais, elementos de estruturas de caráter arqueológico, inscrições, grutas e grupos de elementos com
valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte
ou da ciência; os conjuntos – grupos de construções isoladas ou
reunidos que, em virtude da sua arquitetura, unidade ou integração
na paisagem, têm valor universal excepcional, do ponto de vista da
história, da arte ou da ciência; e os locais de interesse – obras do
homem, ou obras conjugadas do homem e da natureza, e as zonas,
incluindo os locais de interesse arqueológico, com um valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico, ou
antropológico.
No seu conteúdo natural, considerava os monumentos naturais, constituídos por formações físicas e biológicas, ou por grupos
de tais formações, com valor universal excepcional, do ponto de vista estético ou científico; as formações geológicas e fisiográficas e as
zonas estritamente delimitadas, que constituem habitat de espécies
animais e vegetais ameaçadas, com valor universal excepcional, do
ponto de vista da ciência ou da conservação; e, finalmente, os locais
de interesse natural, ou zonas naturais estritamente delimitadas,
111
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
112
com valor universal excepcional, do ponto de vista da ciência, conservação ou beleza natural.
Essa constatação da possibilidade de perda, de necessidade da
preservação e a consequente classificação dos conteúdos aponta
que as declarações eram orientadas por dois grupos gerais de valores, que, em síntese, poderiam responder à questão: A quais valores
se atende, quando se pretende uma política acerca desse patrimônio? Podemos apontar duas aproximações efetivas:
Valores da temporalidade: obrigação de transmissão às gerações futuras (Artigo 4o):
Cada um dos Estados parte na presente Convenção deverá reconhecer que a obrigação de assegurar a identificação, proteção, conservação, valorização e transmissão às gerações futuras do patrimônio cultural e
natural referido nos artigos 1o e 2o e situado no seu
território constitui obrigação primordial. Para tal, deverá esforçar-se, quer por esforço próprio, utilizando
no máximo os seus recursos disponíveis, quer, se necessário, mediante a assistência e a cooperação internacionais de que possa beneficiar, nomeadamente no
plano financeiro, artístico, científico e técnico. (UNESCO, 1972, s/p, grifo nosso)
Valores humanos: função dos patrimônios cultural e natural na
vida coletiva (Artigo 5o):
Com o fim de assegurar uma proteção e conservação
tão eficazes e uma valorização tão ativa quanto possível do patrimônio cultural e natural situado no seu território e nas condições apropriadas a cada país, os Estados parte na presente Convenção esforçar-se-ão na
medida do possível por:
a)Adotar uma política geral que vise determinar uma
função ao patrimônio cultural e natural na vida coletiva e integrar a proteção do referido patrimônio nos
programas de planificação geral;
b)Instituir no seu território, caso não existam, um ou
mais serviços de proteção, conservação e valorização
do patrimônio cultural e natural, com pessoal apropriado, e dispondo dos meios que lhe permitam cum-
A percepção da importância dos valores, atribuída pela Convenção, é de tal evidência que aspectos legais inerentes à necessidade
de identificação, valorização, instituição de serviços específicos de
proteção e conservação, restauração dos patrimônios cultural e
natural, por meio de estudos, pesquisas, investimentos e medidas
de salvaguarda diversas, aparecem nos textos oficiais dessa e das
demais convenções. Assim, seguindo a técnica jurídica, o legislador
considerou que o estabelecimento, ou a sugestão, de normas deveria se fundamentar em princípios e, portanto, os valores são assim
apresentados para justificar e fundamentar as normas propostas,
enquanto estas operacionalizam e manifestam aqueles valores fundamentais.
No ano de 2002, reconhecido como Ano das Nações Unidas
para o Patrimônio Cultural, quando se celebram os 30 anos da convenção de 1972, o Comitê do Patrimônio Mundial adota a Declaração de Budapeste sobre o patrimônio e já se fazem notar, de forma
mais explícita e clara, novas dimensões valorativas, incluídas nas
orientações que indicavam outros valores com os quais se pretendia atuar (UNESCO, 1972, s/p).
1.
Nós, membros do Comitê do Patrimônio Mundial,
reconhecemos o caráter universal da Convenção
para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e
Natural (1972) e, consequentemente, a necessidade
de assegurar a sua aplicação ao patrimônio em
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prir as tarefas que lhe sejam atribuídas;
c)Desenvolver os estudos e as pesquisas científicas e
técnica e aperfeiçoar os métodos de intervenção que
permitem a um Estado enfrentar os perigos que ameaçam o seu patrimônio cultural e natural;
d)Tomar as medidas jurídicas, científicas, técnicas, administrativas e financeiras adequadas para a identificação, proteção, conservação, valorização e restauro
do referido patrimônio; e
e)Favorecer a criação ou o desenvolvimento de centros nacionais ou regionais de formação nos domínios
da proteção, conservação e valorização do patrimônio
cultural e natural e encorajar a pesquisa científica neste domínio. (UNESCO, 1972, s/p, grifos nossos)
113
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114
2.
3.
a)
b)
c)
d)
e)
f)
4.
a)
toda a sua diversidade, enquanto instrumento de
desenvolvimento sustentável de todas as sociedades,
pelo diálogo e pela compreensão mútua;
Os bens inscritos na Lista do Patrimônio Mundial
representam riquezas que nos são confiadas para
serem transmitidas às gerações futuras, que delas
são as legítimas herdeiras;
Tendo em conta a vastidão dos desafios a vencer a
favor do nosso patrimônio comum, nós:
encorajamos os países que ainda o não tenham
feito a aderirem, logo que possível, à Convenção e
bem assim aos outros instrumentos internacionais
relativos às proteção do patrimônio;
convidamos os Estados parte na Convenção a
fazerem o inventário e proporem a inscrição, na Lista
do Patrimônio Mundial, dos bens do patrimônio
cultural e natural em toda a sua diversidade;
zelaremos pela preservação de um justo
equilíbrio entre a conservação, a sustentabilidade
e o desenvolvimento, de modo a proteger os bens
do patrimônio mundial através de atividades
adequadas que contribuam para o desenvolvimento
social e econômico e para a qualidade de vida das
nossas comunidades;
uniremos esforços para cooperar na proteção do
patrimônio, reconhecendo que qualquer atentado a
esse patrimônio constitui um atentado ao espírito
humano e à herança comum da humanidade;
defenderemos a causa do patrimônio mundial pela
via da comunicação, da educação, da investigação,
da formação e da sensibilização;
zelaremos por assegurar, a todos os níveis, a
participação ativa das nossas comunidades locais
na identificação, proteção e gestão dos bens do
patrimônio mundial.
Nós, Comitê do Patrimônio Mundial, cooperaremos
e procuraremos o apoio de todos os parceiros a
favor do patrimônio mundial. Para esse efeito,
convidamos todas as partes interessadas a que
cooperem e promovam os seguintes objetivos:
reforçar a Credibilidade da Lista do Patrimônio
Mundial enquanto testemunho representativo,
geograficamente equilibrado, dos bens culturais e
naturais de valor universal excepcional;
patrimônio mundial;
c) promover a adoção de medidas eficazes com vista
d)
a garantir o desenvolvimento das Capacidades,
com vista a promover a compreensão e aplicação da
Convenção do Patrimônio Mundial e instrumentos
associados, nomeadamente pelo apoio na
preparação de propostas de inscrição de bens na
Lista do Patrimônio Mundial;
desenvolver a Comunicação para sensibilizar o
público e incentivar a sua participação e o seu apoio
ao patrimônio mundial. (UNESCO, 1972 e 2002, s/p,
grifos nossos).
Reafirmando os valores da temporalidade, o documento inova
ao reconhecer dimensões econômicas e sociais e indica o desenvolvimento sustentável como valor econômico do patrimônio; e a
diversidade, o diálogo e compreensão mútua como valores da sociabilidade.
Já a Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para
a Educação, a Ciência e a Cultura, em sua 32a sessão, realizada em
Paris, em 2003, adota a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial e define a centralidade desse patrimônio
como
as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos,
artefatos e lugares culturais que lhes são associados que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os
indivíduos reconhecem como parte integrante de seu
patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em
função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade
humana (UNESCO, 2003, p.4).
Se os documentos anteriores reconheciam o espaço geográfico
da presença das manifestações do patrimônio, como a natureza, os
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
b) assegurar a Conservação eficaz dos bens do
115
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
116
sítios históricos e os conjuntos construídos, essa nova declaração
inclui o campo social, as tradições e expressões orais, incluindo o
idioma como veículo do patrimônio cultural imaterial; as expressões artísticas; as práticas sociais, os rituais e atos festivos; os conhecimentos e as práticas relacionados à natureza e ao universo; e
as técnicas artesanais tradicionais. Essa inclusão refere-se preliminarmente aos instrumentos existentes em matéria de Direitos Humanos, em particular à Declaração Universal dos Direitos Humanos
de 1948, ao Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais, de 1966, e ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos, de 1966 (UNESCO, 2003, p.3).
Essa manifestação dialoga com a convenção anterior, ao atribuir ao patrimônio cultural imaterial a “fonte de diversidade cultural e garantia de desenvolvimento sustentável”, considerando a
relevância da dimensão ou do valor econômico desses bens. Considera, ainda, a interdependência entre o patrimônio cultural imaterial e o patrimônio material cultural e natural, tratado nas outras
declarações, permitindo que se estabeleça um vínculo indissociável
de valores entre essas duas dimensões. Notavelmente, reconhece o
aspecto da economicidade desses bens e de sua reprodução e exploração sustentável no sistema econômico, como oportunidade de
reconhecimento e estimativa de valor (UNESCO, 2002).
Reconhece, porém, atenta à suas condições iniciais de motivação e da possibilidade de perda, que os processos de globalização e
de transformação social, ao mesmo tempo em que criam condições
propícias para um diálogo renovado entre as comunidades, geram
também, da mesma forma que o fenômeno da intolerância, graves
riscos de deterioração, desaparecimento e destruição do patrimônio cultural imaterial, devido, em particular, à falta de meios para
sua salvaguarda (UNESCO, 2003, p.3).
No campo das sociabilidades, o esforço das declarações reafirma os valores da diversidade cultural e a criatividade humana,
ao reconhecer que as comunidades, em especial as indígenas, os
grupos e, em alguns casos, os indivíduos, desempenham um “importante papel na produção, salvaguarda, manutenção e recriação
do patrimônio cultural imaterial, assim contribuindo para enrique-
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
cer a diversidade cultural e a criatividade humana”(UNESCO 2003,
p.3) incluindo aqui os valores estéticos e artísticos da produção
dos povos e o conceito de autenticidade do bem (MACHADO, 2011,
p.85). Ao considerar “inestimável função que cumpre o patrimônio
cultural imaterial como fator de aproximação, intercâmbio e entendimento entre os seres humanos” (UNESCO, 2003, p.4) considera
tais elementos valores essencialmente humanos, promotores de
uma cultura da paz.
A Declaração Universal da Unesco sobre a Diversidade Cultural, de 2003, aprovada por 185 Estados-Membros, representa o
primeiro instrumento efetivo de definição do padrão internacional
destinado a garantir a preservação e a promoção da diversidade
cultural, o diálogo intercultural e a compreensão dos valores abrangidos pelo termo diversidade cultural. Nesse campo, a declaração
destaca a identidade, a diversidade e o pluralismo, reconhecendo-os
como patrimônio comum da humanidade, na garantia dos valores
humanos, associados às diferenças culturais; dos valores sociais,
associados às tradições e à organização das sociabilidades; e dos
valores morais, de temperança, respeito, comportamento, generosidade e entendimento, associados ao reconhecimento da diversidade e do gênero.
Compreende-se o termo diversidade também como sinônimo da
pluralidade, multiplicidade, heterogeneidade e variedade, o que amplia consideravelmente o campo dos valores em direção aos valores
morais, atitudes e comportamentos, reconhecidos na vida social.
A inclusão do tema da diversidade permite o diálogo com outros valores sociais, reconhecidos e examinados em outras declarações no mesmo período, cujo tema, então, excedia as questões do
patrimônio. Tomemos como exemplo a Conferência Mundial sobre
Políticas Culturais (Mundiacult), realizada pela Unesco, no México,
em 1982, quando se discutiu a relação entre cultura e desenvolvimento e, pela primeira vez, se tratou do princípio de políticas culturais baseadas no respeito à diversidade cultural.
Assim, para a pluralidade, podemos atribuir, além dos valores
intrinsecamente culturais e costumes socioculturais, como os modos de ser e viver, as festas populares, as diversas manifestações
117
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118
do espírito humano, os valores artísticos inerentes ao patrimônio
material, como os sítios, as obras de arquitetura expressivas, e todo
o conjunto de bens inscritos como de patrimônio, os valores econômicos da diversidade cultural geradores de desenvolvimento participativo, termo definido pela Mundiacult (1982), como “o enriquecimento da identidade profunda de um povo, das suas aspirações,
da qualidade integral da vida tanto no plano coletivo quanto individual” (ÁLVAREZ, 2008, p. 35).
A identificação desses valores, tomados como núcleo das propostas de políticas na área do patrimônio, sugere a reflexão acerca
da sua expressão como referencial a ser perseguido pela gestão social dos bens do patrimônio cultural, material e imaterial, enquanto
bens públicos, consumidos no espaço público de realização e manifestação dos objetivos lançados pelas declarações internacionais.
Esse exame diz respeito, por exemplo, aos aspectos econômicos da
atualidade manifestados por esses bens e sua consumação. Álvarez
(2008),quando discute o cruzamento entre os conceitos de globalização e identidade cultural na atualidade, afirma, “aceleram-se as
trocas simbólicas e materiais, aceleram-se a corrida tecnológica e a
multiplicação dos meios de informação; acelera-se também a assinatura de acordos comerciais que vão integrando mercados e volatilizando coisas e pessoas, os quais circulam pelo planeta como se
fosse a ‘aldeia Global’ de Marschall McLuham” (p. 29).
Nesse contexto e na linha de raciocínio de que se está processando uma globalização econômica, uma globalização tecnológica e uma
globalização política, a autora afirma que a globalização cultural seria
“a transmissão ou a difusão, através das fronteiras nacionais, de conhecimentos, ideologias, expressões artísticas, informação (mídia) e
estilos de vida” (ÁLVAREZ, 2008, p. 30). É nesse sentido comunicativo que o referencial de valores aceitos internacionalmente, enquanto
conjuntos afetos às dimensões da temporalidade, do humano, do artístico, da natureza e da economia presentes nos bens do patrimônio e
identificados, por exemplo, nas declarações acima, oferece um padrão
normativo legal de orientação planetária, de contrato social explícito,
que deve ser contemplado na produção, consumação e exploração, enfim, da gestão dos bens do patrimônio.
O tema da gestão dos bens do patrimônio permite, de maneira exemplar, examinar a capacidade de transmissão de valores
associados à qualidade dos bens públicos repositórios das fontes
motivacionais em relação ao patrimônio de uma sociedade. Essa
condição de bem público, inerente aos componentes do acervo do
patrimônio, está vinculada ao seu usufruto social e é, através desse
usufruto, reconhecida e considerada na forma de valores, enquanto
condição especial do atributo de bem público, evidenciando algumas dimensões humanas, sociais e econômicas, que afetam esse
usufruto.
Assim, a sua descoberta, identificação, preservação, acesso,
disponibilização, guarda e apreciação, como práticas vinculadas à
gestão, manifestam uma forma especial de interesse público bem
determinado pela natureza de fonte de valores históricos, culturais,
naturais e artísticos que permeiam a temporalidade de uma sociedade. Temos então dois aspectos definidores desses bens e moduladores de sua gestão. Primeiramente, identificamos uma dimensão
da espacialidade dos bens. Enquanto efetivadora do interesse público, a gestão pode ser tratada em sua generalidade por um conjunto de valores que define o espaço do usufruto, como de interesse público. A partir da consideração da finalidade da gestão, temos
uma dimensão temporal, pois, por ter como objeto o repositório
cultural identificado nos bens, adquire uma dimensão de acesso à
temporalidade, à história inscrita na própria existência desses bens
(MASSEY, 2008).
Considerando, como Cabral (2008), que a gestão social se caracteriza e é conceituada como a que reproduz valores e produz
bens públicos, podemos tratar a gestão dos bens do patrimônio
como social visto que, a partir do seu objeto de interesse – o fato
social representado nesses bens –, tem como vínculos as duas dimensões apontadas: uma indicando o espaço público articulado e
a outra indicando a representatividade temporal comunicada. Ambas as dimensões dotam o processo de gestão dos valores sociais de
significados considerados relevantes pelos indivíduos, assumidos
pelas organizações e pelas sociabilidades construídas no entorno
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
3. Gestão social e bens do patrimônio
119
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120
dos bens e contemplam os valores pecuniários que traduzem uma
representação do valor econômico atribuído a esses bens.
A convergência da gestão em direção aos valores pode ser
verificada experimentalmente por meio do exame de iniciativas e
práticas na área e o V Enapegs 2011, dirigido ao tema Gestão Social
como Caminho para a Redefinição da Esfera Pública. Esse encontro
apresentou-se como um espaço acadêmico e dialógico, oportuno
para a construção de uma amostra exploratória de comunicações e
projetos. Para o exame da natureza específica da gestão social, considerando o foco dos bens do patrimônio o Eixo 4 – Gestão Social,
Arte e Cultura: Valores e Tecnologias para a Gestão do Patrimônio
das Cidades constituiu-se no esforço dirigido para examinar aquele tema central enfocando a condição de “bem público” do acervo
cultural, do patrimônio histórico e das manifestações artísticas das
cidades, vinculando o seu usufruto social às formas de descoberta,
preservação, acesso, disponibilização, guarda, apreciação e comunicação dos bens do patrimônio.
Nesse sentido, o Eixo 4 procurou operacionalizar os princípios
que nortearam aquele encontro, quais sejam: circularidade (como
ambiente de experiência de novas tecnologias); diversidade (como
intersecção entre áreas do conhecimento e organizações diversas);
dialógica (como integração de linguagens e perspectivas das manifestações culturais e artísticas); interdependência (incentivando
a conexão em rede nesse campo); incerteza (valorizando a criação
própria dos meios cultural e artístico); e inclusividade (apostando
na originalidade específica própria do fazer cultural e do artístico).
Entre os temas abordados no Eixo 4, surgiram contribuições
em áreas tão diversas como: fotografia; teatro do oprimido; valor
econômico e simbólico do patrimônio cultural; cultura digital; patrimônio imaterial, arte e ofícios, saberes populares, tradições e
celebrações do sagrado; manifestações culturais; educação multicultural; empreendedorismo socioambiental; design e artesanato;
educação para o patrimônio; literatura; jornalismo; e comunicação.
Nesses temas, discutiu-se a gestão social em suas múltiplas dimensões – econômica, valorativa, operacional e de protagonismo social
–, que, em condições específicas de sua intervenção na área do pa-
1. o patrimônio imaterial, como locus do enraizamento de
identidades na modernidade, na temporalidade da juventude
e na afirmação de seus vínculos de pertencimento;
2. a transdisciplinaridade, capilaridade e a leveza próprias da
arte e da cultura, para abordar positivamente a questão do
reconhecimento da igualdade pretendida pela gestão social;
3. o fenômeno da comunicação humana, entendido como
capacidade da gestão social para possibilitar a expressão
das manifestações diversas, atendendo, portanto, ao
quesito da diversidade;
4. e a importância da necessidade da avaliação como método e
instrumento aferidor e explicitador de mudanças, impactos,
valores e resultados dos processos de gestão.
No debate conclusivo do encontro, os participantes assim se
expressaram, acerca da relevância da proposta do eixo e das orientações da organização do V Enapegs: “A gestão social dos bens e
processos do patrimônio contribui com a interpretação da condição humana, dando forma ao informe, de modo que descobrimos
facetas antes ignoradas dos objetos, dos seres e dos seus produtos
artísticos e culturais dotados de múltiplos e diversos significados”.
Analisamos os artigos e as experiências apresentados nesse
encontro com o concurso de uma metodologia desenvolvida por
Cabral (CABRAL e MUZY, 2009; CABRAL, 2012) para a explicitação
de valores no tratamento de projetos, cujo instrumento principal,
o MBP, visa identificar o conteúdo valorativo e sua vinculação com
os indivíduos e grupos sociais representados. Inicialmente, a elaboração de uma listagem de valores faz-se por meio do exercício de
identificação dos termos e seus conteúdos na literatura pertinente,
por exemplo, nos acordos internacionais e nos artigos. Com uma ro-
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trimônio, produz resultados e reproduz os valores comunicados
pela natureza desses bens. Quatro aspectos merecem relevância,
para as conclusões das discussões havidas:
121
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
122
tina de questões e inferências (CABRAL, 2012), a metodologia permite arrolar os bens públicos produzidos nos projetos e associá-los
aos valores que se pretende evidenciar com a sua consumação, materializando os pressupostos do conceito de gestão social apresentado acima, que vincula a reprodução de valores e a produção de
resultados.
A questão central que se apresenta, após a identificação de um
termo, é saber se o seu conteúdo pode se desdobrar como prática
de gestão, identificável nos projetos. Nesse sentido, os projetos são
o campo de verificação do conteúdo esperado. Esse processo de inventariar bens públicos e respectivos valores vale-se do conceito de
públicos constituintes (CABRAL, 2008) para associar os valores aos
públicos que interagem nessas iniciativas. Esses públicos, no caso
do patrimônio, são identificados como os instituidores dos projetos, seus beneficiários, funcionários, patrocinadores, doadores e
sujeitos consumidores do bem do patrimônio na forma de participantes, frequentadores, clientes, etc. Esses públicos são dotados
de expectativas com o projeto, necessidades a serem preenchidas,
capacidades de colaboração, interesses na sua participação, e representações do significado social da iniciativa - Encir (CABRAL, 2008).
Esses atributos podem ser diversos, coerentes ou contraditórios
entre si, porém, por meio desses públicos e do processamento do
interesse público difuso é que os valores serão socialmente comunicados e percebidos no espaço público.
Essa metodologia mostrou-se bem-sucedida para desenhar os
vínculos entre valores e resultados de projetos sociais e identificar
o conteúdo valorativo que deveria ser investigado nos processos
avaliativos, no sentido apontado por Sen (1999), que denominava
de evaluative space a essa vinculação que permite precisar o objeto
da avaliação. Tomado no contexto da avaliação, o MBP é construído
a partir do referencial do espaço público e corrobora para afastar a
pretensa intangibilidade dos benefícios, outrora tomados como expressões abstratas ou como resultados desconectados dos valores
sociais que os conformam. Tomado além do contexto da avaliação,
o MBP pode ser tratado como um instrumento para inventariar os
valores centrais de um projeto. Sua aplicação a projetos na área
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
do patrimônio permite um tratamento analítico para explicitar seu
conteúdo valorativo.
Resulta desse tratamento dos documentos e do conteúdo dos
projetos apresentados no encontro um inventário de valores, comunicados aos públicos constituintes, e de metas, normas e objetivos
esperados nesses públicos, os quais passam a responder por atitudes e posturas práticas infundidas pelos projetos. Esses achados, que
compõem o inventário de valores e que denominaremos, por brevidade, de valores do patrimônio, se organizam em seis grupos temáticos, que reconhecemos no tema do patrimônio: valores da temporalidade; valores da vida; valores da arte; valores da cultura; valores da
natureza; valores do desenvolvimento social e do progresso econômico. Um tema designa, portanto, uma área de impacto dos valores
do patrimônio sobre a expressão, material ou imaterial, do homem e
da sociedade. A recorrência ao conceito de impacto pretende apreender as possibilidades de mudanças, ou transformações, que a consideração dos valores, pelos indivíduos, possa operar na área, ou no
tema em questão, na dinâmica da vida social.
Dos seis temas identificados, o primeiro, a temporalidade, indica as crenças e os princípios que refletem a duração, a permanência e o tempo histórico como fiador das identidades. Indica valores
que conferem à construção histórica da existência de cada um, em
perspectiva com o seu tempo, o seu passado individual, o passado
coletivo e a projeção do futuro. De um lado, concerne ao aprendizado e à experiência, enquanto de outro, concerne ao campo das
possibilidades, das expectativas, em que se opera a possibilidade
do devir e da perpetuação da existência da espécie.
Os valores da vida, associados ao patrimônio, refletem a capacidade humana de atribuir significado universal e moral ao mundo,
partilhando-o com o semelhante e com a diversidade dos seres. Dizem respeito à construção da identidade, e da hierarquização das
escolhas para si e para o outro.
Os valores da arte reconhecem a criatividade e os sentimentos
propiciados pela fruição dos bens do patrimônio. Dizem respeito à
manifestação da subjetividade humana, como expressão do espírito
na construção da linguagem plástica, da invenção e do livre arbítrio.
123
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124
Os valores da cultura concernem à autenticidade, à originalidade,
à informação e à representação simbólica. Dizem respeito ao cultivo e
ao aprendizado dos costumes e técnicas da civilização e das diferenças
entre os resultados do fazer humano.
Os valores da natureza refletem a relação do homem com o planeta e com o território. Dizem respeito à ambiência, ao espaço que nos
contem, limita, provê e acolhe, nos alimenta e no qual realizamos a experiência com a exterioridade, com a monumentalidade.
Os valores do desenvolvimento social concernem à proteção,
à legalidade e às sociabilidades relacionadas à responsabilidade
do homem pela construção e por sua intervenção nos bens do patrimônio. Dizem respeito à inserção do indivíduo na coletividade,
no senso de convergência e disputa, nas expectativas comuns e no
exercício da individualidade e no reconhecimento do outro e da diferença no semelhante.
E, por fim, os valores do progresso econômico apontam para a
sobrevivência, a economia e a responsabilidade sobre a consumação dos bens e o valor do resultado do trabalho humano medido
nessa escala. As designações desenvolvimento social e progresso
econômico são usadas para mantermos vínculo com as orientações
da Comissão Stiglitz-Sen-Fitoussi (STIGLITZ, SEN, FITOUSSI, 2010)
que apresentou um relatório do desenvolvimento humano contemplando-o como crescimento e progresso nas esferas social e econômica, na tentativa de unificar essas dimensões, e incentivando
a análise da conexão entre o mundo social e o mundo econômico
para o desfrute do bem-estar humano.
Os valores do patrimônio classificados nessas seis dimensões
apresentam-se, por vezes, de modo convergente, manifestando-se de
maneira semelhante em duas ou mais das dimensões, relatando, portanto, uma região fronteiriça entre elas, na qual os valores guardam
sua identidade, porém representam escolhas próprias das dimensões,
ou se aplicam especificamente a cada uma das dimensões. Assim é,
por exemplo, que encontramos no tema vida o valor entendimento que
pode guardar congruência com o valor de participação, no tema desenvolvimento social. Essas convergências podem ser apuradas na prática através da técnica estatística de análise de similaridade, usada, por
Quadro 1: Inventário de valores do patrimônio.
Temas
Valores do Patrimônio
Temporalidade
Identidade nacional; Pertencimento; Consideração
com o futuro; Tradição; Memória; Herança;
Equilíbrio; Opção para o futuro; Valor da existência.
Vida
Exemplo; Patrimônio comum; Respeito; Diversidade;
Entendimento; Generosidade; Justiça; Paz; Tolerância;
Liberdade; Vida excitante; Limpeza; Recreação e
lazer; Biodiversidade.
Arte
Cultura
Natureza
Criatividade; Design; Simbolismo; Beleza;
Representação e significância; Harmonia;
Sensibilidade; Opção para o futuro; Excepcionalidade;
Autenticidade.
Integração; Centralidade; Originalidade;
Conhecimento; Técnica; Multiplicidade – Variedade.
Preservação; Recursos naturais; Beleza natural;
Paisagem; Fruição; Meio ambiente; União com a
natureza; Monumentalidade; Biodiversidade.
D e s e n v o l v i m e n t o Bem-estar; Desenvolvimento; Legalidade;
Social
Responsabilidade; Limite; Autoridade autorização;
Capital social; Segurança nacional; Integração;
Cooperação; Participação; Credibilidade;
Comunicação; Prestígio.
Progresso Econômico
Sustentabilidade; Economicidade; Trabalho; Escassez;
Riqueza; Risco; Perdas; Qualidade; Economia;
Garantias; Acumulação; Consumo; Reserva de valor.
Fonte: elaborado pelos autores
4. Conclusão: uma agenda de pesquisa
O inventário de valores do patrimônio não apresenta uma fina-
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exemplo, por Schwartz (2005). Outro exemplo dessa semelhança que
pode ser investigada quantitativamente é dado pelos valores responsabilidade, capital social, integração, contidos no tema desenvolvimento
social e pelos valores de progresso econômico, como sustentabilidade e
trabalho. O Quadro 1 apresenta o inventário dos valores do patrimônio
com a sua vinculação temática.
125
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126
lidade em si. Como um elenco coletado na literatura, e identificado
metodologicamente em uma amostra de iniciativas, o inventário
supõe alguns focos de interesse para a pesquisa experimental, submetendo-o à validação por meio de instrumentos de apuração das
hierarquias e correlações eventualmente detectadas no conjunto.
Para tanto, é preciso que esse inventário seja confrontado com outros esforços estabelecidos e validados que identifiquem estruturas
valorativas. Entre esses esforços, destacamos três contribuições.
Primeiramente, o fundamental e reconhecido estudo estrutural dos valores humanos de Schwartz (1992), iniciado em sua colaboração com Bilsky (SCHWARTZ e BILSKY, 1990) e de seus colaboradores no Brasil liderados por Tamayo (TAMAYO e PORTO, 2005).
Esses estudos identificam aspectos motivacionais e psicológicos,
em termos de um conjunto estabelecido de valores, de um elenco
de dez tipos motivacionais e quatro dimensões que os agrupam. Os
resultados são colhidos com instrumentos validados que se tornaram referência metodológica na área.
O confronto de listas, como a apresentada neste artigo, e de sistemas estruturados permite o estabelecimento de determinantes
das escolhas sociais e das preferências motivacionais individuais,
sugerindo a comparação interpessoal e o exame de padrões grupais mensuráveis. A extensão dessa metodologia para o estudo dos
valores organizacionais e para áreas específicas (TAMAYO e PORTO,
2005; PATO e TAMAYO, 2006) permite comparar esse inventário
com os achados da cultura organizacional e com as oportunidades
empresariais na área do patrimônio, examinando possíveis lógicas
e estratégias de compartilhamento de valores.
Em segundo lugar, sugerimos atenção às contribuições ao
exame do conceito de valor público de Moore (2002) e Bozeman
(BOZEMAN, 2007; JØRGENSON e BOZEMAN, 2007). Esses autores
oferecem casos de identificação de valores públicos e inventários
desses valores. O exame comparado dessas contribuições com o
inventário sugerido pode esclarecer a questão do estabelecimento
da agenda política e da administração pública para a área do patrimônio e a questão do conflito e da convergência dos interesses
públicos e políticos em termos de comprometimentos valorativos.
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Em terceiro, destacamos a oportunidade de investigar a relação entre esse inventário e o conceito de espaço público contido na
argumentação normativa acerca dos valores do patrimônio e na sua
instrumentalidade enquanto garantidores de normas e atitudes. As
iniciativas do Terceiro Setor são responsáveis, em grande medida,
pela atualidade do tema do patrimônio, por sua repercussão e comunicação sociais, e pela gestão de seus bens. Cabral (2008), estudando a gestão das organizações sociais de interesse público, considerou o Terceiro Setor como espaço relacional de lógicas diversas,
discursos e racionalidades emergindo do Estado, do setor mercantil e da comunidade, interconectados por um propósito comum de
proteção e desenvolvimento sociais.
Nesse campo intermediário de relações sociais, as organizações pertinentes apresentam-se como empreendimentos privados, que atuam formal ou informalmente movidas por propósitos
solidários e cooperativos que se originam na expressão pública de
cidadãos que interpretam a questão social, por exemplo, do patrimônio, e expressam-se por meio das suas missões organizacionais
com o objetivo de participar da produção de bens públicos nessa
área de interesse.
Tratando o Terceiro Setor enquanto manifestação do espaço
público, a autora o identifica como o espaço equipado de atributos,
ou valores, que o definem normativamente e que são: representação de interesses coletivos; democratização; qualidade; efetividade:
visibilidade; cultura pública; universalidade; autonomia; controle;
defesa social; e sustentabilidade. Essa estrutura de valores impõe
que a gestão social dessas iniciativas seja a que produza os bens e
reproduza valores inerentes ao seu espaço de atuação. Portanto, o
exame do inventário proposto relacionado aos atributos normativos do espaço público permite que se investigue o conteúdo instrumental associado aos valores como indutores de normas e atitudes.
Metodologicamente, essas três linhas de investigação impõem
à pesquisa e às iniciativas na área a adoção de práticas de avaliação
para explicitar mudanças e impactos provocados por essas iniciativas, comunicando-os socialmente como um referencial da relevância dos bens e da adequação das iniciativas à valoração que lhes é
127
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
128
socialmente atribuída. Como instrumento de gestão, a avaliação é
recomendada pela literatura da área e, se conduzida em consonância com o conteúdo valorativo que determina a relevância social
dos bens do avaliados, pode se constituir em um referencial para
a gestão social nesse campo. É nesse sentido que relembramos a
necessidade de superar a dicotomia Fato/Valor (PUTNAM, 2002),
apontada no início deste artigo, conduzindo metodologias de avaliação que considerem os fatos e os valores, ambos como avaliáveis
e mensuráveis para a determinação dos impactos.
O inventário dos valores do patrimônio é a matéria-prima para
a elaboração experimental de afirmações usadas nas avaliações de
valores2. A vinculação com os temas permite que se mensure a percepção dos valores, pelos públicos constituintes das iniciativas, e
projetos, de acordo com os temas estruturais da área. Embora exceda aos objetivos desta nota, é importante ressaltar que a mensuração é realizada com a aplicação de questionários nos quais as
afirmações construídas acerca dos conteúdos que determinam os
valores do patrimônio, em um projeto específico, são submetidas
aos públicos constituintes para que a elas sejam atribuídas notas
em uma escala de Likert. O tratamento robusto dos dados obtidos
fornece hierarquias dos valores, análise das tensões e convergências, análise fatorial de clusters de valores, entre outros.
Finalmente, é importante ressaltar que a prática da avaliação
interessa não somente à pesquisa, mas principalmente ao estabelecimento de instrumentos e meios de comunicação e publicização dos
resultados, dos impactos, e do conteúdo que concerne aos interesses
dos públicos que se associam nas iniciativas do patrimônio. Assim, as
ações de responsabilidade social empresarial, relevantes quanto ao aspecto da sustentabilidade econômica e da divulgação e reconhecimento das iniciativas, demandam práticas avaliativas que sustentem uma
cultura de avaliação dos impactos. Chaterji, Levine e Toffel (CHATERJI
e LEVINE, 2006; CHATERJI, LEVINE e TOFFEL, 2009) e Vogel (2005)
problematizam os aspectos da insuficiência dos mecanismos correntes e usuais de avaliação e a fragilidade dos estudos de caso que procuram estabelecer correlações entre o desempenho econômico das
empresas e suas iniciativas de apoio a projetos de responsabilidade.
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É nesse sentido que os estudos da sociologia econômica (PORTES, 2010; ZELIZER, 2011; BEN-NER e PUTTERMAN, 1998; MONDADORE, 2009; CARRUTHERS, 2010 e 2011; MARTES, 2009) sustentam esforços para examinar o significado social da atribuição
dos valores, inclusive econômicos, aos bens considerados publicamente na vida social. A investigação experimental do compartilhamento e disseminação de valores (CABRAL e MUZY, 2010), para
a qual o inventário apresentado pretende ser útil, pode expressar
contribuições valorativas à expressão econômica da relevância dos
bens do patrimônio, configurando um referencial que permite comunicar o impacto de resultados e a reprodução de valores naqueles bens dotados de relevância para o patrimônio mundial, cultural,
natural, material e imaterial.
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| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
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Notas
1 Estabelecido em 1992, o Centro do Patrimônio Mundial é o ponto focal e coordenador, dentro da Unesco, de todos os assuntos relativos ao patrimônio mundial, e tem o seguinte endereço: The World Heritage Centre United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization. Disponível em: <http://whc.unesco.org>. Acesso em: 16 out. 2011.
2 Alguns dos valores identificados exigem uma descrição sumária, que oferecemos a seguir. A
contextualização destes, e daqueles imediatamente reconhecidos, para a elaboração de afirmações avaliáveis, é obra específica de cada situação, ou projeto particular.
Temporalidade
Identidade nacional: senso de identidade com a nação.
Pertencimento: senso de pertencer a um grupo de referência permanente.
Consideração com o futuro: senso de continuidade e persistência.
Opção para o futuro: possibilidade de usufruir do bem no futuro.
Valor da existência: a temporalidade do bem que é relevante apenas por sua existência.
Memória: senso de lembrar e ser lembrado.
Tradição: garantia de ter origem e reproduzir conhecimento.
Herança: senso de merecer um legado.
Equilíbrio: senso de moderação e aprendizado com a experiência.
Vida
Exemplo: proximidade com situações, ou pessoas exemplares.
Patrimônio comum: interligação do usufruto e da posse.
Respeito: senso de respeitar o próximo e a natureza.
Diversidade: convivência com a diversidade.
Entendimento: reconhecimento de razões alheias às suas.
Generosidade: senso de oferta.
Justiça: senso de justiça.
Paz: natureza pacífica do patrimônio.
Tolerância: reconhecimento das diferenças.
Liberdade: senso de liberdade do patrimônio.
Vida excitante: disposição para atividades arrojadas, novas e radicais.
Limpeza: percepção de limpeza.
Recreação e lazer: oportunidades de mitigação do estresse.
Criatividade: inovação.
Design: valor comunicado pela concepção e elaboração de um objeto.
Beleza: relevância do belo.
Simbolismo: capacidade de unificar símbolos.
Representação e significância: relevância da arte.
Harmonia: senso de simetria e proporcionalidade.
Sensibilidade: capacidade de sensibilização.
Excepcionalidade: garantia de relevância e importância.
Autenticidade: qualidade de veracidade e conferência com sua origem.
Cultura
Integração: capacidade de integrar interesses.
Centralidade: capacidade de representar um foco central.
Originalidade: garantia de unicidade.
Conhecimento: relevância para o saber.
Técnica: relevância para a instrumentalidade.
Multiplicidade – Variedade: garantia da diversidade cultural.
Natureza
Preservação: garantia de manutenção.
Recursos naturais: relevância e posição hierárquica dos recursos naturais.
Beleza natural: relevância do belo.
Fruição: deleite, prazer e usufruto.
Meio ambiente: preocupação com o meio ambiente.
União com a natureza: senso de pertencimento.
Paisagem: senso de localidade e imersão no continente.
Biodiversidade: consideração da biodiversidade.
Monumentalidade: senso de grandiosidade do patrimônio.
Desenvolvimento Social
Bem-estar: garantia de vida digna.
Desenvolvimento: relevância para o desenvolvimento das pessoas.
Legalidade: aceitação de normas legais.
Responsabilidade: senso de pertencimento.
Limite: reconhecimento de seus próprios limites.
Autoridade - autorização: senso de necessidade de autorização para uso e consumo.
Capital social: reconhecimento da capacidade e relevância dos bens do patrimônio.
Segurança nacional: relevância estratégica para a nação.
Cooperação: senso de união com objetivo comum.
Integração: senso de pertencimento e coesão social.
Participação: relevância da participação.
Credibilidade: confiança no valor dos bens.
Comunicação: significado dos bens.
Prestígio: mesmo que eu não usufrua, outros o valorizam e me conferem prestígio.
Progresso Econômico
Sustentabilidade: durabilidade.
Economicidade: uso econômico.
Trabalho: resultado do trabalho.
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Arte
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138
Escassez: finitude.
Riqueza: padrão de valor econômico.
Risco: fonte de possibilidade de perda.
Perdas: senso de perda iminente.
Qualidade: senso de valor superior pela qualidade.
Economia: importância do bem para a economia como recursos.
Garantias: importância do bem como garantia econômica.
Acumulação: senso de acréscimo de valor.
Consumo: fonte de valor para consumo.
Reserva de valor: fonte de preservação de valor.
1. Ideias iniciais
Valéria Giannella1
Edgilson Tavares de Araújo2
Vivina Machado de Oliveira Neta3
Este capítulo relata e reflete sobre as experiências possibilitadas, dentro do V Enapegs, pelo eixo temático “O papel das Metodologias Integrativas na ampliação da esfera pública”. O eixo não teve
chamada de trabalhos, pois os seus coordenadores avaliaram que
seria mais interessante abrir um espaço de experimentação direta
de técnicas e vivências integrativas, que permitisse aprofundar a
compreensão deste conceito, do que escutar relatos de experiências. Estes, por mais interessantes que fossem, continuariam a nos
deixar confinados pela dominação do código lógico-verbal.
Logo, a escolha foi de privilegiar o aspecto vivencial e que toda
reflexão, troca e partilha se embasasse nele como num chão vivo e
sensível. Esta abordagem foi, aliás, comungada pelo evento como
um todo, cuja coordenação escolheu proporcionar aos participantes vivências integrativas em momentos chaves, assumindo poder
marcar, desta forma, um caráter de evento criativo, inovador e realmente capaz de estimular trocas e aprendizagens valiosas.
Queremos iniciar um trabalho que nos parece ao mesmo tempo desafiador, instigante e necessário. É a descrição de técnicas e
dinâmicas cujo intuito é de ir além do domínio da racionalidade
linear-instrumental e do código lógico-verbal, sendo os dois tidos,
pelo paradigma dominante, como as mais refinadas, evoluídas e le-
1 Valéria Giannella é doutora em Políticas Públicas do Território pela Universidade de Veneza
(Itália). Líder do grupo de pesquisa Paidéia - Laboratório sobre Metodologias Integrativas para a
Educação e Gestão Social. Professora da Universidade Federal do Ceará – Campus Cariri.
2 Edgilson Tavares de Araújo é doutorando e mestre em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, especialista em Estratégias de Mobilização e Marketing Social pela Universidade de Brasília / Unicef, bacharel em Administração pela Universidade Federal da Paraíba.
3 Vivina Machado de Oliveira Neta é associada a Via Vida Desenvolvimento Organizacional. Desenvolve e aplica metodologias integrativas, com foco em Diálogo e Gestão Criativa para lidar
com conflitos. Mestre em Desenvolvimento e Gestão Social pela UFBA/CIAGS.
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
As Metodologias Integrativas como caminho na
ampliação da esfera pública
139
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140
gítimas ferramentas para interpretarmos e operarmos na realidade ao nosso redor. Ao mesmo tempo reconhecemos que o domínio
da racionalidade linear-instrumental e do código lógico-verbal são
hoje os bastiões da prisão na qual estamos socialmente e individualmente engaiolados, dispositivos que limitam nossa possibilidade
de ver, sentir e sonhar.
Descreveremos algumas das vivências praticadas no V Enape4
gs e refletiremos sobre o tipo de prática integrativa que cada uma
delas permite, sobre as dimensões e inteligências, normalmente
silenciadas, que elas nos permitem revelar ou, literalmente, descobrir. Tocaremos também numa avaliação dos efeitos que, a nosso ver, estas vivências possibilitaram aos participantes e em que
elas podem ajudar nos contextos que nos são mais habituais: o da
sala de aula e o dos trabalhos comunitários e organizacionais, para
os muitos e muitas que, insatisfeitos com suas práticas habituais,
queiram experimentá-las.
2. O que são as Metodologias Integrativas
O referencial das que hoje chamamos de Metodologias Integrativas surge, no final de 2007, a partir da consideração de práticas
participativas cuja observação tornava evidente uma característica meio paradoxal que as marcava. Estas, apesar de fundar-se num
discurso de inclusão e ampliação do número de sujeitos envolvidos
na esfera pública, continuavam utilizando técnicas e métodos que,
de fato, reafirmavam a exclusão clássica dos mais pobres, assim
como de todos os que consideravam os assuntos ligados à dimensão pública, algo distante e incompreensível. O episódio que, concretamente, levou a este insight, foi: Salvador, Bahia, final do ano
de 2007, analisando os desdobramentos de um projeto de desenvolvimento comunitário participativo na periferia da cidade - Pe-
4 Por limites de espaço estamos abrindo mão da descrição da vivência da História Inventada,
praticada no começo da reunião anual da Rede de Gestão Social. Elementos descritivos desta
técnica podem ser encontrados em Giannella e Moura (2009). É também impossível desenvolver aqui a descrição da oficina ministrada por Dan Baron e Manoela Sousa: “A teatralidade dos
espaços público e íntimo: implicações para a gestão coletiva e criativa”, que integrou a programação do eixo sobre Metodologias Integrativas. No entanto, uma contribuição do próprio Dan
Baron – Museu íntimo: diálogos entre cultura, educação e estética – encontra-se neste volume.
5 Eis o quadro obtido associando ao chefe de família itapagipano à quantidade de anos de estudos. A situação é a seguinte: 6,42% declararam sem instrução ou menos de 1 ano; 13,19%
de 1 a 3 anos de estudo; 29,68% de 4 a 7 anos; (resultando estes três segmentos no 49.29%
do total); 17,02% de 8 a 10 anos; 29,54% de 11 a 14 anos; 4,17% 15 anos de estudo ou mais;
revelando que a maioria dos chefes de família tem baixa escolaridade; esses índices se reproduzem entre os demais integrantes da família, considerando a elevada taxa de evasão escolar.
6 O Índice de Analfabetismo Funcional (Inaf) é construído através da aplicação de testes e
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nínsula de Itapagipe, refletíamos, especificamente, acerca de uma
atividade de construção de cenário futuro, realizada conforme os
moldes de uma metodologia participativa já amplamente testada
em contextos europeus. Ao relatar os resultados desta atividade,
se tornou gritante o fato de que estávamos usando modalidades de
envolvimento da comunidade local as quais, com efeito, acabavam
confirmando as formas tradicionais de exclusão. Ao pedir para os
participantes para analisarem a realidade do seu bairro, identificando avanços, problemas e soluções, assim como ao pedir-lhes
para imaginarem um cenário futuro (dali a 10 anos) estávamos
selecionando involuntariamente aqueles que possuíam alguma familiaridade com esta forma de pensamento (analítico, sistemático,
projetivo). Considerando que a região5 na qual estávamos atuando
apresentava taxas elevadas de analfabetismo e percentagem muito
baixa de moradores com estudos de grau médio e superior, estávamos excluindo, de fato, a grande maioria dos que, em princípio,
pretendíamos incluir: aqueles que não se relacionam com o mundo
preferencialmente analisando, diagnosticando, levantando dados,
problemas e soluções, mas, nem por isso, deixam de ter suas próprias modalidades de acesso e interpretação da realidade.
Esta observação nos leva ao cerne da recente reflexão sobre os
limites aparentes das instâncias participativas quando confrontadas
com a situação concreta dos sujeitos que deveriam ser protagonistas
desta participação. Como materializar o ideal da participação cidadã
em um país (para falar apenas do Brasil) cuja situação com respeito
à educação da população é, pelo menos, crítica? Citaremos aqui as
considerações de Pinho (2010), o qual, depois de trazer a tona vários fatores culturais e de história política que dificultam a adesão
dos brasileiros a um etos participativo, coloca dados sobre a situação
educacional da população os quais, aparentemente, fecham a boca
de qualquer preconizador da participação cidadã.6 O autor conclui:
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Assim acreditamos que, na situação do Brasil, fica muito distanciada a possibilidade de interações deliberativas, onde todos tenham voz, porque a capacidade de
compreensão da realidade, de efetivo engajamento e
acompanhamento de um debate, de construção de raciocínios e verbalização dos mesmos ficam extremamente prejudicados (PINHO, 2010, p. 46).
O que acaba sendo sugerido, entre outros elementos que aqui
não cabe citar, é que “mais do que lutar pela participação que ficaria
comprometida nas condições estruturais [...] da realidade brasileira, empurrando massas para o debate onde serão tragadas pelos
mais capacitados, seria lutar pela progressão das condições educacionais” (PINHO, 2010, p. 51).
O argumento de Pinho (2010), independente de estarmos
de acordo ou não com ele, parece muito interessante, pois leva às
consequências extremas um problema fundamental implícito na
assunção da chamada racionalidade dialógica, comunicativa ou argumentativa, saudada, faz alguns anos, como uma grande revolução
no campo das ciências sociais aplicadas. Através destes adjetivos
se chama atenção para a dimensão de construção cooperativa do
sentido e do acordo intersubjetivo acerca da realidade, especialmente em situações que visam à resolução de problemas. Como já
destacado em Giannella (2008), desta forma tenta-se tirar a racionalidade do domínio exclusivo do cálculo, do tecnicismo, da instrumentalidade e objetividade absoluta, para colocá-la no campo da
comunicação intersubjetiva, da escuta do outro e da necessidade
de entendê-lo. Apesar disso, o ponto crítico destas referências é
que elas nos apresentam um mundo no qual o direito de cidadania
pertence apenas aos bem educados, àqueles que saibam participar
questionários, a cada dois anos, a cerca de dois mil pessoas em todas as regiões do Brasil.
Segundo o Inaf, em 2007, além de um 7% de analfabetos, o Brasil apresenta uma percentagem de 21% de pessoas, as quais, se bem que capazes de decodificar letras e números, são
incapazes de interpretar um texto simples ou ler números na casa dos milhões. Isto é, são
analfabetos funcionais. O autor continua adicionando dados sobre a quantidade de estudantes que, na terceira série do ensino médio, tem os conhecimentos da língua portuguesa exigidos para este estágio escolar. Apenas 1 em cada 4 estudantes alcançaria este nível desejado
enquanto, passando para a oitava série, este índice passa a ser de 1 a 5 (VILELA, 2008 apud
PINHO, 2010).
[...] apesar da imensa relevância da chamada “virada
argumentativa” nas ciências sociais aplicadas, ela acaba enfatizando ainda, de forma quase que exclusiva, a
dimensão do raciocínio lógico-formal como única base
de diálogo. Restam no escuro aqueles aspectos radicalmente humanos que são as emoções, os sonhos, os desejos [...] Nosso desafio é o de passarmos de uma visão
abstrata e “esterilizada” de racionalidade a uma “integral”, que fale do sujeito real e reconheça o conjunto de
materiais que influenciam comportamentos e decisões
de cada ser humano: a razão com a emoção o cálculo
com o sonho e o desejo, o interesse com a ética (GIANNELLA, 2008, p.18).
A partir deste tipo de reflexão começamos a identificar na clássica atitude dicotômica própria da visão cientificista (positivista),
um ponto fundamental de vulnerabilidade com vistas à efetivação
das ambições de ampliação da esfera pública e da participação cidadã. A separação entre razão e emoção, mente e corpo, matéria e
espírito, ciência e arte, objetivo e subjetivo, capacidade analítica e
criativa, calculo e intuição, planejamento e improvisação, tem sido o
leme da visão que nos criou (socialmente, educacionalmente e cientificamente). Logo, o que precisamos buscar neste momento de crise e
de busca de novas referências é, de vez, a integração destas dicotomias,
antes tidas como opostas.
Portanto, chamamos de Metodologias Integrativas (MI) as abordagens, técnicas e métodos norteados pela busca de uma recomposição entre as partes cindidas do ser humano. A mente se incorporando, a racionalidade tornando-se sensível, a ciência subjetivando-se,
o método abrindo-se para a intuição e a criatividade etc. Em termos
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da luta para apresentar os melhores argumentos racionais para
sustentar seus pontos de vista na exigente arena democrática. Pois,
cabe perguntar: e aqueles cujo acesso à instrução e educação foi
praticamente negado, quais serão as suas reais possibilidades de
participação? Será inelutável continuar com a ideia de que a racionalidade, agora argumentativa ao invés de tecnicista, é indiscutivelmente a única e superior entre todas as formas dos seres humanos
interpretarem sua realidade?
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de definição elas representam uma evolução coerente do que chamamos anteriormente de Metodologias não Convencionais (GIANNELLA,
2008; GIANNELLA e MOURA, 2009), cumprindo a passagem de uma
definição negativa para uma positiva. O embasamento teórico mais detalhado e o enraizamento desta proposta no campo da virada paradigmática, do positivismo para o pós-positivismo, que caracteriza as MI
também pode ser conferido em Giannella (2008).
Para finalizar esta parte introdutória é interessante observar
que esta proposta origina-se de uma instância de inclusão dos radicalmente excluídos, os quais, mais ainda do que economicamente carentes, são o/as que são subjugados pelos códigos da racionalidade
dominante, lógico-verbais, analíticos e sistemáticos. No entanto, ela
se revela libertadora para qualquer sujeito e, mais especificamente,
oportuniza novas abordagens e novos olhares sobre todo processo
educativo. Isso significa que as MI se propõem a ser um referencial
relevante no âmbito das ações de gestão social, extensão universitária, aprendizagem organizacional e das práticas participativas dos
mais variados tipos, assim como no campo da didática formal, isto é,
em sala de aula.
De fato, olhando para as mais atuais pesquisas sobre as dinâmicas
cognitivas e, em particular, de aprendizagem, assim como as afirmações de muitos neurocientistas, o que chama atenção é o destaque que
assume a mesma questão levantada acima: a importância da re-ligação
entre as polaridades dicotômicas que estruturaram o paradigma positivista. É reconhecido o efeito facilitador da existência de um envolvimento emocional e prazeroso ao nos adentrarmos em qualquer experiência de aprendizagem, assim como está clara a capacidade do medo
e das tensões serem fatores de desestímulo ou até de trava do processo. Ao mesmo tempo, acompanhando pesquisas como a de Gardner
(2000), também se reconhece a existência de múltiplas inteligências,
fato que invalida a ideia tradicional de que, apenas as capacidades lógico-matemáticas destacam uma pessoa como inteligente, para afirmar
as inteligências linguística, musical, espacial, corporal-cinestésica, intra e interpessoal, naturalista, existencial, como outras tantas modalidades de conhecer e interpretar o mundo. Afinal de contas, tudo indica
que chegou a hora de, para além da crítica, agir no sentido de expan-
Meu maior desafio era aceitar o novo, pois apesar de ser
educadora militante, tinha muita resistência à transformação. Por mais que falássemos de uma educação diferente, estava presa no medo de errar. Com o passar dos
dias fui me entregando àquela metodologia que dava autoconfiança para me libertar [Gorete Barradas (educadora popular), em BARON, 2011, contracapa].
Apontamos aqui para algumas práticas que instigam e oportunizam processos de re-integração, dos corpos, das emoções e das nossas
capacidades de expressão criativa, em nossas propostas pedagógicas.
É importante destacar que a simples leitura destas indicações não
pretende resolver o problema da capacitação de sujeitos (professores,
educadores, gestores sociais) formados de acordo com outros paradigmas educativos. O uso de técnicas, vivências e dinâmicas não pode ser
trivializado, como se estas existissem fora e independentes de arcabouços teóricos e processos vivenciais de re-construção subjetiva do
próprio educador. Assim, o intuito das linhas a seguir é apenas o de
revelar a existência de um âmbito de possibilidades, talvez escondidas
para muitos; estas possibilidades, caso interessem, pedem a abertura
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dirmos esta visão reducionista, que pretende o mundo compreensível
e explicável só a partir da racionalidade linear, instrumental e objetivista, para reconhecermos que, será a dança contínua entre razão e
emoção, ciência e arte, corpo e mente, subjetivo e objetivo,... que pode
nos permitir uma aproximação com a complexidade do mundo que
nos rodeia. É exatamente seguindo este norte que experimentamos
Metodologias Integrativas em diferentes espaços de aprendizagem.
No entanto, reconhecemos que esta recomposição não é nada óbvia,
nem natural e que, muitas pessoas que poderiam aproveitá-la (professores, educadores, técnicos, agentes de desenvolvimento, lideres comunitários), ainda estranham bastante ao ouvir falar de re-integração
dos corpos ou das artes, ou emoções, nos processos que, diariamente,
lhes cabe facilitar. Expressões de surpresa e perplexidade, ou até de
espanto, desenham-se nos rostos dos que escutam estas afirmações;
embora, muitas vezes, estas mesmas pessoas afirmem as insatisfações
e angústias vivenciadas em sala de aula, ou em outros lugares de suas
práticas, por não conseguir mobilizar a integralidade da inteligência
dos estudantes, nem estimular seu interesse e capacidade criativa.
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de processos de formação, capacitação e ressignificação que os educadores precisam fazer de suas próprias práticas.
2.1 A importância das Metodologias Integrativas para o fortalecimento da Gestão Social
Antes de entrarmos nos relatos e análises das Metodologias Integrativas vivenciadas no Enapegs, cabe brevemente destacarmos a
importância delas para a Gestão Social, principalmente, no que diz respeito às mudanças nos processos de formação de gestores impactando
nos modos de gerir as organizações.
A busca por outras racionalidades substantivas, noéticas, dialógicas e comunicativas para o agir da gestão é geralmente anunciada
como pressuposto dos conceitos de Gestão Social. Não por acaso, autores como Tenório (1998; 2008), Carvalho (1999), Singer (1999), ou
Fischer (2002), França Filho (2003; 2008) enfatizam em suas conceituações, de modo mesmo que indireto, que a gestão social busca novas racionalidades para romper com o mainstream da gestão e do seu
fundamento numa racionalidade apenas instrumental. Cabe, porém,
questionar até que ponto as práticas de partilha e trocas de saberes
e os processos de formação em gestão social, entendidos aqui como a
base para a proposta mudança paradigmática, também têm alterado
seus modos “racionais” de ensino-aprendizagem.
Parece-nos aqui existir uma das chaves para mudança paradigmática pretendida pela gestão social: escutar ativamente, equalizar
participativamente e mediar efetivamente vozes e pensamentos distintos, porém comuns, quanto à finalidade de transformar o social.
A partir do reconhecimento da heterogeneidade de referenciais
teóricos sobre gestão, cuja epistemologia não é evidente (GUALEJAC,
2007) e sabendo-se que a gestão social é um campo ainda em construção, embora precocemente institucionalizado (BOULLOSA e SCHOMMER, 2009), as Metodologias Integrativas podem contribuir para consolidar as práticas neste campo. Assim, elas atuam não apenas como
meio para favorecer o diálogo entre comunidades, gestores sociais e
universidades, mas também entre os próprios pensadores, propositores e estudiosos daquilo que chamamos de Gestão Social. Para tanto, propomos que os diferentes atores, envolvidos no fazer e pensar
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epistemologicamente a Gestão Social, se disponham a colocar entre
parênteses, mesmo que momentaneamente, os tradicionais modelos
prescritos pelos experts em gestão, mergulhando na experimentação
do novo – principalmente em termos de formação.
A relativa falta de ousadia nas experiências de formação em Gestão Social nos coloca diante das ambiguidades e ambivalências que
caracterizam a institucionalização deste campo enquanto apenas
mais uma disciplina, no qual em verdade, pretende-se a prática inter
e transdiciplinar. Muitas vezes ensina-se, sem se questionar igualmente o como e o que ensinar (CONTRERAS, 2005). Fala-se e prega-se a
Gestão Social, mas, será que se faz uma gestão diferenciada, de fato,
da sala de aula ou dos outros contextos pedagógicos? Estas são questões que muitas vezes não estão no centro das discussões dos eventos
científicos. O que se percebe de modo mais evidente ou é o medo de
experimentar e dialogar não apenas usando o cognitivo, mas também
o sutil, o corpo e as emoções; ou as resistências com aquilo que muitas
vezes é visto como “diferente”. Acreditamos que ao usar Metodologias
Integrativas, olhando, escutando ativamente, movimentando o corpo,
tocando, cantando, sentindo, sorrindo, encenando, brincando, não
apenas aprendemos lições sobre gestão, mas temos a oportunidade de
fazer Gestão Social, já que precisamos decidir e agir num dado espaço-tempo considerando o Ser humano de modo integral. Assim, também
consideramos a aprendizagem como um processo e não como um produto, que aprender não é somente uma atividade cognitiva, mas também emocional e corporal (CONTRERAS, 2005); e que a gestão é um
mix entre a ciência que traz a análise sistemática dos conhecimentos, a
arte que inspira discernimentos criativos e traz a integração, e a habilidade prática que faz conexões alicerçadas em experiências tangíveis
(MINTZBERG, 2010).
Ao propor algumas vivências integrativas, durante o V Enapegs, pudemos perceber a necessidade e os ganhos ao se mudar os
processos básicos da gestão no sentido de sair do ritmo implacável que esta tradicionalmente vem nos impondo. Assim, pode-se
perceber que é necessário mudar a lógica da “gestão gerencialista”
que impõe a brevidade e variedade de atividades, a fragmentação e
descontinuidade, a mera orientação para a ação, a natureza lateral
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nas relações de trabalho (MINTZBERG, 2010). Começamos a compreender que, para aprender gestão social, é preciso “desaprender”
(CONTRERAS, 2005) formas consolidadas e aparentemente naturais de pensarmos, não apenas a gestão, e sim, no geral, o governo
de processos coletivos.
Passaremos agora a relatar e analisar alguns momentos do evento
que foram desdobrados através do uso de MI, além das vivências que
compuseram a proposta do eixo específico sobre MI. Compreendemos
que, estas experimentações todas, resultaram em um evento diferente, no sentido de ampliar e aprofundar nossa capacidade de praticar o
que acreditamos ser a Gestão Social.
3. A abertura do V ENAPEGS. O mito do espelho. Olhar no espelho e reconhecer no outro o que há de melhor em si: o primeiro desafio
Nadie aprende solamente con mirarse en el espejo.
Todos aprendemos - y a veces nos transformamos al afrontar las diferencias que desafían nuestra experiencia y suposiciones (HEIFETZ e LINSKY, 2003 apud
CONTRERAS, 2005, p. 268).
Um mito. Uma história. Pessoas se reconhecendo. Pessoas reconhecendo-se. A dança do diálogo com o mito do espelho abriu o
Enapegs. O mito do espelho (MACHADO, 2006) ajudou a construir
alguns dos princípios que nortearam o Enapegs. Traduzi-lo numa
vivência foi a possibilidade de dar corpo à alma, daquilo que já estava acontecendo e antecedia o encontro.
O auditório é o local da vivência e cerca de 80 pessoas estão lá
para participar. Paula Schommer, a coordenadora geral do evento,
inicia o encontro falando do vínculo entre alguns dos princípios do
Enapegs e o que será experimentado naquele momento.
Iniciamos a vivência com uma música suave para ajudar os
participantes a entrarem em contato com seu corpo, suas emoções, contribuindo para que estivessem presentes, reduzindo as
possibilidades de estarem com o corpo presente e, no entanto,
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
ausentes, afastados pelo pensamento, distanciados da experiência do aqui e agora.
Após este contato consigo, estimulamos o encontro com as
pessoas, e forma-se um grande círculo com pares de pessoas voltadas uma para a outra. Cada pessoa recebe um pedaço de espelho.
Solicitamos que, ao estarem uma em frente à outra, cada uma se
reconecte com a respiração, com o corpo, seja com o bem-estar, seja
com as tensões do corpo, assim como com as pressuposições que
possam estar presentes ao estarem frente a frente.
O passo seguinte é olhar o parceiro da dupla e falar de uma a
três qualidades que percebe, que sente, esta pessoa expressa. Por
exemplo, um parceiro diz ao outro: eu vejo em você coragem. Depois de fazer este reconhecimento, quem falou coloca o espelho que
está na sua mão para que o parceiro que está sendo reconhecido se
veja. Aqui um importante aspecto é colocar atenção no “como” este
reconhecimento é realizado: no ritmo, naquilo que é sentido, naquilo que faz sentido, abrindo mão da pressa, abrindo a possibilidade
de confrontar o desconhecido, de conectar razão e emoção.
Seguindo o fluxo, o outro parceiro faz o reconhecimento para
quem já lhe reconheceu. Após este movimento é solicitado que,
aquela que primeiro falou vire o espelho na sua própria direção e
faça um auto-reconhecimento, com as mesmas qualidades que externou como sendo do outro. Usando o exemplo anterior a pessoa
dirá para si mesma: eu vejo em mim coragem. Esta última orientação, no entanto, só é fornecida após o primeiro par ter falado um
para o outro, ou seja, o par que já fez o reconhecimento mútuo. A
partir desta primeira interação todos os demais pares que se formarão no giro da roda seguirão esta orientação: reconhece o outro e se
reconhece com as mesmas qualidades que reconheceu no outro.
O pedaço de espelho serve como elemento instigador que coloca frente a frente a si mesmo e faz o encontro de si com o outro. Ajuda a perceber a diversidade, ao mesmo tempo em que as diferenças
que vejo no outro podem tornar-se semelhanças quando altero a
perspectiva de que sou responsável também pelo que percebo. Instiga a entrar em contato com as partes de mim que estão no outro,
ajuda a experimentar que somos partes de muitas partes. Ajuda a
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aproximação estimulando um contato que a intimidade de externar
as qualidades pode causar, ajuda a aproximar os mundos da razão
e da emoção – reconhecer e ser reconhecido por qualidades que
são, na maioria dos casos, intuídas, sentidas, já que muitos, estão
se encontrando pela primeira vez. E, mesmo os que já se conhecem,
criam a possibilidade de externar algo que, mesmo conhecendo o
outro não ousava expressar.
E a roda vai girando e as pessoas vão se descontraindo. Aquilo
que inicialmente parecia uma tarefa até incômoda, toma a forma,
para alguns, de passos de uma dança. E nesta dança do reconhecimento podemos exercitar a essência do diálogo. Diálogo como reconhecimento mútuo (OLIVEIRA NETA, 2009). Diálogo no entendimento de que cada pedaço de espelho espelha o outro e a si mesmo
nas qualidades expressadas, que vão além do código lógico verbal
porque incluem a razão com a emoção, porque incluem o corpo com
a mente, porque incluem a música, porque incluem os sentidos. A
roda se completa quando o primeiro par se encontra novamente.
Há um contraste entre o momento inicial e o desenrolar da interação que marca a vivência. No momento inicial, ao lidar com o
desconhecido: como dizer qualidades daquela que eu nunca vi, que
estou encontrando agora, pela primeira vez? Como me sentir à vontade para expressar tal intimidade? Como lidar com as pressuposições - o que será que o outro vai pensar? Como vai receber o que eu
vou expressar? Como lidar com as diferenças - e se eu não identificar qualquer qualidade, o que fazer? Como lidar com a possibilidade de inadequação... E agora, no momento final, quando aconteceu
a interação? Agora o sentimento de aproximação e pertencimento
se faz presente. Há uma perceptível diferença entre este momento
e o início da vivência proposta.
O giro da roda inclui contar o mito:
Conta-se que no princípio havia uma única verdade no
mundo. Entre o mundo espiritual, chamado de Orun e
o material, chamado de Aiyê, havia um grande espelho:
o grande espelho da verdade. Tudo aquilo que se mostrava no Orun materializava-se no Aiyê. Ou seja, tudo
que estava no mundo espiritual refletia–se, exatamen-
E contando o mito provocamos a reflexão desta experiência vinculando-a aos princípios do Enapegs: Circularidade - que
o próprio evento constitua espaço de experiência e experimentação metodológica na forma como é construído e nas reflexões que
promove. Diversidade - de formatos, de áreas do conhecimento
científico e não científico, de organizações, de regiões e de pessoas
participantes. Diálogo e dialógica – abertura de possibilidades de
interação com linguagens diferenciadas, com arte, teatro, “contação” de histórias. Interdependência – estabelecendo conexões em
rede e atentando para o movimento que nos une. Incerteza – movimento de refletir, ao nos relacionarmos com o conhecimento, com o
pensamento, com o outro, considerando as nossas pressuposições
como uma, dentre tantas outras possibilidades existentes – conhecidas e a conhecer. Suspensão dos estados de “certezas”. Ampliação
do processo de aprendizagem. E encerrando a vivência, compartilhamos significados. De acordo com Bohm (2005) os significados
coletivamente compartilhados são poderosos. Instigamos então o
diálogo experimentando a definição de Bohm:
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te, no mundo material. Ninguém tinha a menor dúvida sobre os acontecimentos como verdades absolutas.
Todo cuidado era pouco para não quebrar o espelho da
verdade. Naquele tempo vivia no Aiyê uma jovem muito trabalhadora que se chamava Mahura. A jovem trabalhava dia e noite ajudando sua mãe a pilar inhames.
Um dia, inadvertidamente, perdendo o controle do movimento ritmado da mão do pilão, tocou forte no espelho que se espatifou pelo mundo. Assustada, Mahura
saiu desesperada para se desculpar com Olorum. Qual
não foi a sua surpresa quando O encontrou tranquilamente deitado à sombra do Iroko. Olorum ouviu as
desculpas da jovem com toda a atenção. Em seguida
declarou que daquele dia em diante não existiria mais
uma única verdade no mundo. Declarou, ainda: de hoje
em diante quem encontrar um pedacinho de espelho
em qualquer parte do mundo, estará encontrando apenas uma parte da verdade, provavelmente a sua própria verdade, porque o espelho reproduz apenas a imagem do lugar onde ele se encontra (MACHADO, 2006).
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Diálogo é um processo multifacetado, que vai além das
noções típicas do linguajar e do intercâmbio coloquial.
É um método que examina um âmbito extraordinariamente amplo da experiência humana: nossos valores
mais intimamente arraigados, a natureza e intensidade
das emoções; os padrões de nossos processos de pensamento; a função da memória; a importância dos mitos culturais herdados; e por fim a maneira segundo a
qual nossa neurofisiologia estrutura a experiência do
aqui-e-agora (BOHM, 2005, p. 7).
Cantamos juntos uma música de Rita Lee, chamada Atlântida,
que fala de um mito.
Atlântida!
Reino perdido
De ouro e prata
Misteriosa cidade...
Atlântida!
Terra prometida
Dos semideuses
Das sereias douradas...
Eu sou o pescador
Que parte toda
manhã
Em busca do tesouro
Perdido no fundo do
mar...
Desde o Oiapoque
Até Nova York se
sabe
Que o mundo é dos
que sonham
Que toda lenda é
pura verdade...
Ao final, os participantes se cumprimentam e se abraçam,
abrindo um encontro. Um encontro onde as pessoas possam
criar possibilidades de realmente se encontrarem, de partilhar
“re-conhecimento”, partilhar emoção, dialogar, incluindo corpomente, razãoemoção, teoriaprática, objetivando o subjetivo,
subjetivando o objetivo. Sonhando com um mundo mais justo,
mais igual e defrontando uma realidade que nos pede alterar o
modo de condução, o modo de agir, o modo de ensinar, o modo
de aprender o modo de fazermos encontros. O modo de nos encontrarmos.
Entramos na sequência de salas que vão hospedar o nosso eixo
temáminhar implica, nas mudanças no equilíbrio, que se desloca de
passo em passo, e da atenção focada na respiração, lenta, mas ritmada
e profunda.
Esta proposta de desaceleração e concentração na materialidade do corpo e da respiração, normalmente é percebida como
‘na contramão’ dos ritmos e do tipo de foco, exclusivamente cerebral, que se vivencia em eventos como este, bem como nos
processos de gestão nas organizações. Apesar da surpresa, as
reações que este tipo de proposta costuma gerar, são muito
positivas. As pessoas que se dispuseram a integrar o trabalho
estão, provavelmente, em busca de algo novo. Elas já tinham alguma queixa ou angústia, derivante das modalidades hipercognitivistas e que excluem qualquer possibilidade vivencial, assim
como da tradicional falta de tempo que grande parte das apresentações e falas sofre, neste tipo de eventos. Nossas programações estão sempre superlotadas e o fato de estarmos atrasados
é regra. Assim, a pressa para recuperar o tempo perdido e a
pressão sobre qualquer elemento que possa aparecer uma “perda de tempo” são máximas.
Nesta situação, a proposta de nos darmos um tempo para
nos reconectarmos conosco mesmo, com nossas percepções
mais simples e com a nossa própria respiração, pode se revelar
uma proposta libertadora. Os participantes encontram, inesperadamente, o espaço para se sentir, física e emocionalmente: podem apreciar o entusiasmo, o cansaço, ou a tensão; têm
a possibilidade de ‘assentar a poeira’ das muitas informações
adquiridas, das ideias e argumentos consensuais ou conflituosos; podem, finalmente, simplesmente chegar até o aqui e agora, levando os seus corpos para junto de suas mentes e se sentir
presentes. Esta simples experiência pode ser extremamente benéfica e prepara o terreno para os passos seguintes.
Durante alguns minutos procuramos nos reencontrar com
a respiração e com as sensações do corpo e apreciar a relação
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4. O eixo sobre Metodologias Integrativas. A presença do Corpomente nos processos pedagógicos
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entre as nossas mentes superestimuladas e corpos esquecidos.
Assim, depois disso, iniciamos alguns alongamentos bem suaves, aproveitando imagens cotidianas ou brincando com a força
de gravidade, para que os movimentos surjam de forma natural
e quase sem esforço. Estas práticas conseguem normalmente,
em poucos minutos, levar os participantes a um estado de leveza, com uma sensação mais harmoniosa e equilibrada entre
corpo e mente, e mais dispostos para continuar buscando.
E agora perguntamos para você leitor/a: o que está percebendo neste momento, ao ler estas possibilidades, talvez nunca experimentadas durante de uma conferência? Como está
sentindo isso repercutir no seu corpo/mente? Relaxou? Ficou
irritado/a? Tem vontade de fazer um teste? Será que isso responde a alguma inquietação que você já vivenciou? 7 Está se perguntando o que isso tem a ver com Gestão Social? E o que você
pensa que uma abordagem desta natureza tem para contribuir
com processos pedagógicos?
5. As possibilidades do conhecimento intuitivo/
empático
Ao nos concentrarmos no corpo, na respiração e na busca da
presença, no momento, já estamos, de fato, experimentando as Metodologias Integrativas. No entanto, na maioria dos casos, estamos
acostumados com o predomínio do código linguístico e racional, e
pedimos por explicações que se encaixem neste padrão. Iniciar com
uma introdução e uma definição do que são as MI seria o tradicionalmente esperado. Ao invés disto, acordamos que privilegiaríamos
o recurso a outros códigos, na tentativa de reequilibrar o costumeiro
domínio da fala, analítica e sistemática. É claro que, não queremos
descartar ou menosprezar o papel destas modalidades; nosso objetivo, no entanto, é revelar e apreciar outras, normalmente esquecidas
e, acima de tudo, explorar os resultados de um uso integrado delas.
Assim, combinamos que, antes de atender a pergunta óbvia: ”O
7 Estamos usando aqui uma modalidade de escrita dialógica no modelo já experimentado em Oliveira Neta (2009).
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que são as Metodologias Integrativas”, procuraríamos experimentá-las. A experiência então, já tem início desde o momento em que solicitamos que se colocasse foco na respiração e no movimento do corpo.
Esta foi a alternativa que tomou o lugar da tradicional introdução. Eis
então que, para entrarmos no cerne da definição, para apreender as MI
e sobre as MI, propomos a ‘leitura das mãos’.
Ao falarmos de leitura das mãos, logo chegam à cabeça imagens
de ciganas de saias rodadas, pedindo para prever o seu futuro. Porém,
neste caso, não é bem disso que estamos falando. Ao invés de prever o
futuro nas mãos das pessoas, esta proposta se baseia na ideia de que a
própria mão é um dos mais importantes meios que nos permite interagir com o nosso entorno; por meio dela manipulamos o mundo, trabalhamos, tocamos, acariciamos, batemos, criamos etc. Assim, pedimos
aos presentes para se juntarem em duplas e ficarem confortavelmente
sentados, pegando um nas mãos do outro. Este pegar das mãos é realmente um entregar: a pessoa cujas mãos vão ser ‘lidas’ as entrega ao
parceiro, o qual as acolhe nas suas próprias mãos e começa a observá-las, tocando-as, percebendo o seu calor, textura, forma, cor, maciez,
dureza, calos, cuidado de detalhes, dedicando uma atenção especial a
cada elemento e a cada uma das mãos, enquanto entidade única e nunca igual a nenhuma outra; exatamente como cada pessoa. Cada um (a)
da dupla dedica um tempo à observação das mãos do outro tentando
perceber o elo entre elas (mãos) e a própria pessoa a quem estas mãos
pertencem. O que estas mãos estão me dizendo do ‘dono’? Que pessoa
é esta? O intuito não é julgar, mas, apenas, explorar e entender. No final,
há um tempo para que cada dupla possa ter um momento de socialização das percepções obtidas ao longo da experiência: cada um vai
revelar para o/a outro/a o que sentiu e receber o retorno do parceiro.
Após isso, há um momento de socialização geral da experiência
entre o grupo como um todo, sem que haja nenhuma pressão para que
se fale, apenas deixando espaço para que, quem tiver algo importante
para comentar, ressaltar, e/ou refletir, tenha a oportunidade de fazê-lo.
Depois desta ‘leitura’ se torna evidente o poder que, por meio de uma
escuta ativa do outro (que inclui emoção e razão), através da observação das mãos, temos de ampliar o conhecimento e a compreensão do
outro à nossa frente. Para não tirar a graça da experiência, para quem
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quiser experimentá-la, não vamos contar nada de episódios acontecidos. Apenas diremos que esta simples dinâmica de observação e ‘escuta’, não baseada na racionalidade analítica e linear, e sim em dimensões
como, a intuição e as emoções, impressiona bastante pela quantidade e qualidade das descobertas que as pessoas são capazes de fazer,
quando incentivadas a abrir canais de percepção do mundo costumeiramente desvalorizados, quando não abertamente censurados.
Na roda geral do grupo, ao refletirmos sobre as colocações feitas
pelos e pelas participantes, se faz também o link entre a vivência realizada e as MI. Já experimentamos várias vezes a clareza que o conceito
assume após esta prática direta, a qual, pelo visto, permite encurtar,
e muito, o caminho, de outra forma, mais tortuoso, da compreensão
analítica e cognitiva. Ao mesmo tempo, queremos frisar o fato de que,
esta compreensão não é desvalorizada, mas apenas deslocada do seu
costumeiro lugar privilegiado. O que se busca, especialmente na parte
de encerramento da experiência, é uma compreensão ampliada, que
inclui a analítica, o que pode acontecer, justamente, pelo fato de termos não apenas falado de uma forma mais integrada de conhecer o
mundo (neste caso, o mundo que é o outro), e sim experimentado-a
diretamente.
6. A escuta ativa: desmecanização e ritualização da comunicação8
Passamos assim para mais uma etapa da programação do nosso eixo sobre MI no V Enapegs. Tínhamos previsto a possibilidade
de vivenciarmos uma “Roda de Escuta” após o jantar do primeiro
dia de evento, pois era este o único horário em que poderíamos
aproveitar de pelo menos duas horas, sem problemas de chocar
8 A Roda de Escuta é o resultado de um patchwork de práticas e referenciais teóricos bastante diversos, mas todos marcados por alguns elementos comuns de ordem epistemológica e pragmática.
A ideia de que eu ‘não possuo a verdade’, mas apenas visões parciais dela e que, portanto, ‘preciso da verdade do outro’, é um elemento comum de todas as possíveis ascendências identificáveis.
Por sinal, destacamos a coerência desta constatação com o Mito do Espelho contado acima. Alem
disso, algumas referências mais próximas são: a Escuta Ativa (SCLAVI, 2000); o peacemaking
(GLASSMAN, 1998) e o counselling, além de práticas de tomada de decisão típicas de povos indígenas. A referência de Rubem Alves à “Escutatória”(ALVES, 2005) também são iluminantes. No
espaço destas notas não vai ser possível aprofundar a reconstrução das raízes teóricas desta prática.
Para alguns elementos a mais veja-se (GIANNELLA e MOURA, 2009).
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com outros limites, a não ser o do nosso próprio cansaço. A Roda de
Escuta foi abordada em Giannella e Moura (2009) e tem sido repetidamente experimentada, durante os últimos dois anos, sendo uma
das que mais nos proporcionam insights, surpresas e aprendizados. Assim, não nos cansamos de construir ocasiões para que mais
pessoas possam aproximar-se desta modalidade de comunicação e
fruir das reflexões profundas que ela costuma provocar.
Para entendermos tudo o que segue é útil dizer que esta modalidade de comunicação nos coloca num espaço ritualizado, diferente daquele que se instaura normalmente ao discutirmos em
reuniões ou até, simplesmente, em grupos de amigos, onde a comunicação é balizada pelos mecanismos de afirmação do ego e do
“concordo-discordo” (MARIOTTI, 2000). Podemos ir com a mente
a muitas das nossas discussões, nas quais é fácil reparar a luta entre as verdades que estão se confrontando. Acontece com frequência que cada um esteja mais preocupado com a afirmação da ‘sua’
verdade do que, realmente, no escutar o que outro tem para dizer.
Provavelmente, todos nós já experimentamos a sensação de quase não ouvir a fala do outro de tão ocupado, enquanto ele falar, a
bolar o que deverá retrucar dali a pouco. Ou até de interromper o
outro antes que tenha terminado de falar, convencidos de que já sabemos e entendemos o que vai dizer. Aliás, a interrupção do outro
enquanto ele fala é corriqueira, e raramente é tida como ofensiva;
posso até interrompê-lo para concordar com o que está falando...
Assim, usando uma metáfora, poderíamos dizer que este tipo de
dinâmica comunicativa se aproxima mais de uma luta do que de
um ato cooperativo; o objetivo é convencer o outro a abandonar a
verdade dele para abraçar a sua. Tem apenas um vencedor: o que
conseguirá alcançar o objetivo exposto. Portanto, de forma quase
inevitável, vistas as condições, este tipo de dinâmica não costuma
gerar grandes avanços na possibilidade de entendermos quem está
em nossa frente.
Estas considerações estão na base da proposta da roda de escuta enquanto espaço de comunicação ritualizado pela presença
de algumas regras e dispositivos de ação. Estes têm a função de
evitar-nos a recaída em mecanismos de interação que são, ao mes-
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mo tempo, totalmente aceitos socialmente, mas completamente
disfuncionais, com vistas a uma comunicação mais rica, profunda
e capaz de realmente aumentar as possibilidades de entendimento
recíproco e convivência pacifica.
A nossa roda, portanto, se constrói ao colocarmo-nos sentados
em círculo e ao adotarmos a técnica do ‘objeto falante’ como dispositivo que governa a dinâmica da comunicação. Quem estiver com
o objeto falará, atentando para as regras expostas abaixo e, quando
tiver terminado, irá novamente ao centro da roda, colocará o objeto
no chão e voltará ao seu lugar. Só então, outra pessoa poderá ir pegar o objeto e ter sua vez para falar.
Dinâmica e regras para a roda de escuta9
- Toda roda acontece em torno de um tópico ou uma pergunta/
questão relevante para o grupo. Escolham qual será a questão objeto da roda. Chamamos isso de pergunta/questão geradora.
- Definam se terá um facilitador (a) ou não. Isto não é obrigatório; depende do grupo. Seu papel é de relembrar as regras no
começo da roda e de intervir – caso necessário – para tratar algum
problema inesperado que aconteça ao longo da vivência. O facilitador (a) será alguém legitimado pelo grupo, mas, muito apropriadamente, este papel pode ser revezado entre os integrantes, conforme
a familiaridade do grupo com a prática da escuta.
- Usem a técnica do ‘objeto falante’. Isto significa que elegeremos um objeto (pode ser qualquer coisa, mas usamos, de preferência, algo de bonito e atraente), o qual será colocado ao centro da
roda. Qualquer um (a) a que queira falar deverá levantar, ir até o
centro da roda, e pegar no objeto. É ele que é o que nos dá o ‘poder
de fala’ e, por outro lado, ninguém pode interromper quem tiver o
objeto falante em mão. Quando terminar, quem falou recolocará o
objeto ao centro e voltará ao seu lugar. A roda se encerra quando
ninguém mais for buscar o objeto novamente.
- Na roda de escuta costumamos dizer que se fala e se escuta
‘pelo coração’; significa esperar que sua fala surja de dentro, não apenas de uma construção cerebral e sim do seu sentir e da sua vivência.
9 Trata-se de uma versão modificada do texto presente em Giannella e Moura (2009, p. 52-53).
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
- Quando falar, procure ‘a medida certa’, não fale mais do que é
necessário. Se você ficar conectado com seu coração, isto virá naturalmente.
- Quando escutar, fique atento e aberto à escuta das emoções
e das reações suas, do falante e do grupo. Porém seja testemunha!
Apenas registre sem julgar e sem, por enquanto, raciocinar sobre
esse material. Eis uma possível exploração do “escutar pelo coração”.
- Tente não interpretar o que está sendo dito com base nos
seus pressupostos; procure entender os pressupostos de quem fala.
- Quando chegar a vontade de contestar ou rebater o que foi
dito por alguém, tente entender porque isto está acontecendo; o
que aquela fala mexeu dentro de você.
- Não cruze conversa com ninguém; não acuse; não aponte, seja
para concordar ou discordar. Fale na primeira pessoa, com base na
sua vivência direta.
- Os conteúdos de uma roda são confidenciais. Mantenha sigilo
sobre o que foi relatado. Isto permite (junto com outros detalhes)
fazer com que o espaço criado seja percebido como seguro pelos
participantes.
Por último, duas dicas gerais:
- Encare e dê as boas-vindas ao silêncio: relaxe nele, escute-o e
aproveite! Dentro do silêncio vai aparecer o tempo para falar e para
escutar.
- Se você se desapegar da vontade de afirmar seu ego e conseguir observar e se sintonizar com a sutileza do que está acontecendo com o grupo, tudo ficará bastante claro: o tempo do começo e do
fim, de se calar e de falar. Só se dê a chance de experimentar.
Boa Escuta!
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6.1 Algumas considerações sobre a roda de escuta
A temática da roda que experimentamos no V Enapegs foi “O
que era importante para mim na minha infância?” Como foi dito, o
conteúdo de cada roda é confidencial e, portanto, não cabe falar a
respeito. As considerações aqui evidenciadas são pequenos acenos
às muitas questões levantadas por esta vivência.
As funções de uma roda de escuta: ela é um excelente dispositivo para explorar questões/problemas e, também, para tratar
conflitos de uma forma criativa (SCLAVI, 2000). A capacidade exploratória da roda talvez se explique pensando na seguinte situação:
temos um objeto multifacetado e estranho no centro de um círculo
de pessoas e, cada uma delas só pode relatar exatamente o que, da
sua posição, ela observa. No final, evidentemente, o conhecimento
que cada integrante do círculo terá daquele objeto estranho será
muito maior do que no começo, simplesmente por ter escutado os
relatos dos demais. Conforme a assunção de que, nossas sociedades
contemporâneas são ‘complexas’ e que, portanto, muitas das questões que nos rodeiam são ’multifacetadas e estranhas’ (que poderia
ser outra definição de complexidade), entende-se o valor de uma
dinâmica que nos permite aproximar, de forma respeitosa e fértil
a diferença de ponto de vista e o como essa diferença se constrói
e consolida ao longo das nossas vidas. O que impressiona normalmente, ao encerrarmos uma roda, é a sensação de liberdade e amplidão devida à prática da escuta do outro; o receio de poder ficar
preso pelas regras se transforma no seu exato oposto.
Outra questão é a possibilidade da roda ser um método eficaz de gestão de conflitos. Neste caso a questão geradora seria
uma formulação, aceita pelo grupo, do conflito a ser tratado10. Esta
possibilidade se fundamenta nas duas regras expostas anteriormente: “Tente não interpretar o que está sendo dito com base nos
seus pressupostos; procure entender os pressupostos de quem
fala” e “Não cruze conversa com ninguém; não acuse; não aponte,
seja para concordar ou discordar. Procure falar em primeira pessoa, com base na sua vivência direta”. Estas simples indicações de
10 Poderia ser, por exemplo, um princípio geral infringido pela ação de algum
integrante do grupo.
7. Da impossibilidade de concluir
Ensaiar uma conclusão para este artigo é algo difícil, já que as
experiências vividas, quando as consideramos em sua multidimen-
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
comportamento são, muitas vezes, suficientes a transformar a uma
dinâmica conflituosa em uma de diálogo possível. O fato é que o
conflito se alimenta frequentemente de premissas implícitas discordantes, mas não tematizadas, da incapacidade e/ou não vontade
de reconhecer uma posição outra, de feridas que dependem mais
da falta de escuta do que da real vontade do outro. Até a presença,
na roda, de outras pessoas além das diretamente em conflito (sejam elas duas ou mais), pode ser um elemento que contribui com
o se instaurar de um processo dialógico onde antes existia apenas
possibilidade de choque. Pois estas demais pessoas, ao relatar a visão delas, a partir de sua vivência direta, além de funcionar de testemunhas para a expressão do conflito, ampliarão a percepção possível da questão em jogo e mostrarão para os diretos interessados a
existência de possibilidades alternativas de se olhar e interpretar o
fator gerador de conflito.
Uma observação final deve ser feita sobre o fato da roda se
tornar um espaço seguro para falar, onde não se tem medo de ser
julgado. Este processo ocorre, de costume, enquanto a roda acontecer. Pessoas que começaram com ‘um pé atrás’ e meio desconfiadas
com ‘estas coisas estranhas’, se soltam completamente e presenteiam o grupo com testemunhos íntimos e riquíssimos, que jamais
teriam imaginado poder fazer no começo. Esta possibilidade de se
desconstruir o medo é crucial em qualquer processo de ensino e de
aprendizagem, de suma utilidade, portanto, quer em sala de aula,
quer em contextos comunitários. Esta capacidade de se criar um
espaço de escuta, íntimo e aconchegante, também resulta de várias
das regras colocadas acima. Só que aqui, por limites de espaço, deixaremos com vocês, leitores, a tarefa de descobrir quais delas são
mais propícias para isso. Uma consideração derradeira, portanto,
se impõe, e diz respeito à hipótese de considerarmos as regras da
roda de escuta, nortes possíveis sempre que estivermos envolvidos
em processos de comunicação que impliquem em múltiplos atores.
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sionalidade, não se exaurem na mera descrição das palavras. Por
mais que detalhássemos, em qualquer tipo de linguagem, não conseguiríamos explicitar todas as nuances das percepções e reflexões
convergentes em aprendizados, que as MI nos proporcionaram durante o V Enapegs. Aprendemos coletivamente sobre a essência da
Gestão Social já que tivemos a possibilidade de nos percebermos
enquanto Ser humanos, capazes de dialogar, mediar, sentir, se doar.
O respeito, a disposição, a tentativa, a solidariedade e a noética11 se
fizeram naturalmente presentes entre os e as participantes destas
mediações de sentidos, significantes e significados cognitivos, emocionais, culturais, políticos, éticos, estéticos e espirituais. Eis aqui a
chave para a mudança paradigmática anunciada no início do texto
e que entendemos ser um caminho necessário para os gestores sociais de nossos dias, em suas práticas.
Ao nos olharmos no espelho e reconhecer no outro suas/nossas qualidades; ao caminharmos e reconhecermos o nosso corpo
vivo no espaço; ao conhecermos o outro pela leitura das mãos, confiando na nossa intuição e emoção, juntas com nossas capacidades
de observação analítica; ao escutarmos ativamente, buscamos a
compreensão e a capacidade de agirmos para futuros melhores.
Por fim, queremos nos despedir com uma citação do Fernando
Pessoa que, para nós, sintetiza poeticamente a necessidade deste
momento:
Referências
“Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas
usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer
os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de
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11 A noética (do grego nous: mente) é uma disciplina que estuda os fenômenos subjetivos da
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| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
Airton Cardoso Cançado2
José Roberto Pereira3
Fernando Guilherme Tenório3
Ariádne Scalfoni Rigo5
Vânia Aparecida Rezende de Oliveira6
1. Introdução
A Gestão Social, como campo de conhecimento científico, vem se
consolidando na última década do século XXI no Brasil. Existem cursos (extensão, graduação, especialização e mestrado) sobre o tema e
periódicos especializados, como os Cadernos de Gestão Social e a Revista Administração Pública e Gestão Social – APGS, dentre outras.
Em 2008, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (Capes) lançou o Programa de Apoio ao Ensino e
à Pesquisa Científica e Tecnológica em Administração - Pró-Administração (Edital Pró-Administração Nº 09 /2008) com o objetivo
de estimular a realização de projetos conjuntos entre programas
de pós-graduação em Administração e, entre as áreas prioritárias,
constava a Gestão Social (Capes, 2011a).
1 Artigo publicado anteriormente na Revista de Administração Pública e Gestão Social, APGS,
vol. 3, n.2, abr./jun 2011.
1 Airton Cardoso Cançado é Doutor em Administração (UFLA), Professor do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional e do Curso de Administração da Universidade Federal do
Tocantins (UFT), coordenador do Núcleo de Economia Solidária da UFT e membro da Rede de
Pesquisadores em Gestão Social (RGS).
3 José Roberto Pereira é Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), professor
associado da Universidade Federal de Lavras (UFLA), Bolsista CNPq, Pesquisador Mineiro pela
Fapemig e membro da Rede de Pesquisadores em Gestão Social (RGS).
4 Fernando Guilherme Tenório é Pós-Doutorado em Administração Pública pelo Igop/Universitat Autónoma de Barcelona (UAB). Professor Titular da Escola Brasileira de Administração
Pública e de Empresas (Ebape) da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Coordenador do Programa
de Estudos em Gestão Social (PEGS). Bolsista CNPq e membro da Rede de Pesquisadores em
Gestão Social (RGS).
5 Ariádne Scalfoni Rigo é Mestre em Administração pela Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE), doutoranda em Administração e professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA)
e membro da Rede de Pesquisadores em Gestão Social (RGS).
6 Vânia Aparecida Rezende de Oliveira é mestre e doutorada em Administração pela Universidade Federal de Lavras (UFLA) e membro da Rede de Pesquisadores em Gestão Social (RGS).
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Gestão Social: conhecimento e produção científica
nos Enapegs, 2007-201011
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A Associação Nacional dos Programas de Pós-graduação em Administração (Anpad), em seus encontros anuais, chegou a criar, em
2003, a área Gestão Social e Ambiental, que, em 2005, passou a ser
uma subárea da área Administração Pública e Gestão Social, permanecendo assim até 2008. Em 2009, com a reestruturação das áreas
temáticas, a área Administração Pública e Gestão Social é dividida
em 12 temas e nenhum deles contempla a Gestão Social plenamente,
que permanece apenas como título da área. Em 2010, essa área foi
excluída da Anpad, tanto no título quanto no conteúdo, sendo identificada como Administração Pública7. Em 2009, foi enviada uma lista
de 279 pesquisadores à diretoria da Anpad apoiando a criação da
área de ‘Sustentabilidade, Gestão Social e Ambiental’, pois a área de
Gestão Ambiental também teve o mesmo destino da Gestão Social. A
diretoria da Anpad rejeitou a proposta8, pois não considerou a Gestão Social (e também a Gestão Ambiental) como uma área do conhecimento, e, sim, como uma área de aplicação como gestão hospitalar
e gestão do agronegócio (NASCIMENTO, 2010).
Atualmente, um dos principais espaços para a discussão da temática da Gestão Social é o Encontro Nacional de Pesquisadores em
Gestão Social – Enapegs. O evento é realizado anualmente pela Rede
de Pesquisadores em Gestão Social9 - RGS desde 2007. Queremos
mostrar, com este estudo, que Gestão Social é uma área de conhecimento relevante dentro das ciências sociais aplicadas, pela produção
científica já realizada e pela organização de centenas de pesquisadores na Rede Nacional de Pesquisadores em Gestão Social (RGS).
Assim, esse texto tem como objetivo analisar e discutir a produção
específica sobre Gestão Social nos Enapegs realizados entre 2007 e
2010, no intuito de compreender como vem sendo construído o entendimento sobre a temática neste espaço.
Além desta introdução, este texto tem mais 4 seções. Na próxima seção apresenta-se uma breve contextualização conceitual da
Gestão Social e a construção das categorias teóricas de análise. Na
seção seguinte são apresentados os resultados e discussão. Ao final
do texto estão as considerações finais.
7 Informações obtidas no site da instituição: www.anpad.org.br, acesso em 31 de março de 2010.
8 A proposta não foi levada para a Assembleia da Anpad, a decisão foi somente da diretoria.
9 Mais informações sobre a Rede de Pesquisadores em Gestão Social no site: www.rgs.wiki.br.
A delimitação do campo da Gestão Social tem sido, intensamente, debatida entre pesquisadores brasileiros na última década. Por um lado, a intensa utilização do termo tem levado à sua
banalização e, por outro, tem estimulado o seu desenvolvimento
como campo de conhecimento científico dentro das ciências sociais aplicadas.
Segundo Fischer (2002) e Fischer e Melo (2006), é necessária
a construção de um “mapa” que dê significado à Gestão Social, um
marco teórico que permita melhorar a gestão das organizações e
interorganizações. França Filho (2003, 2008) aponta para a necessidade de referenciais teóricos e metodológicos mais consistentes para a Gestão Social, sob pena da banalização do termo.
Boullosa (2009) e Boullosa e Schommer (2008, 2009), por outro
lado, mostram uma preocupação com a rápida institucionalização
da Gestão Social, argumentando que ela pode deixar de ser um
processo inovador, uma oportunidade para inovação em políticas
públicas e se transformar em um produto modelizado, limitando
seu desenvolvimento.
Apesar do campo da Gestão Social ainda estar em construção (BOULLOSA, 2009; BOULLOSA; SCHOMMER, 2008, 2009;
FISCHER; MELO, 2006; FRANÇA FILHO, 2003, 2008; GIANELLA,
2008; PINHO, 2010), já foram realizados alguns avanços.
Oliveira, Cançado e Pereira (2010) apresentam e discutem
uma aproximação teórico-conceitual entre Gestão Social e esfera
pública na perspectiva habermasiana. Cançado, Tenório e Pereira
(2011), após uma revisão do estado da arte da Gestão Social, apresentam suas características. Segundo os autores a Gestão Social
acontece por meio da “tomada de decisão coletiva, sem coerção,
baseada na inteligibilidade da linguagem, na dialogicidade e no
entendimento esclarecido como processo, na transparência como
pressuposto e na emancipação enquanto fim último” (CANÇADO;
TENÓRIO; PEREIRA, 2011, p.697).
A seleção dos artigos analisados no período de 2007-2010
nos eventos do Enapegs levou em conta a presença do termo “ges-
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
2. Gestão Social: breve contextualização conceitual
e metodologia de análise
169
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
170
tão social” em alguma parte do texto, pois a intenção foi entender
como este termo é utilizado pelos autores. Dessa forma, a pesquisa foi realizada em três fases: pré-análise; análise; inferência e interpretação. Essas três fases correspondem à análise de conteúdo
desenvolvida e aplicada por Bardin (2009).
Na pré-análise foi realizada uma leitura inicial (ou leitura flutuante, segundo a terminologia de Bardin) e a escolha dos documentos a serem analisados (corpus). A segunda fase consiste na
adequação do corpus às categorias teóricas de análise identificadas. A última fase acontece com a interpretação dos resultados e a
realização das inferências sobre o material produzido.
O interesse nesse estudo foi construir as categorias teóricas
de análise de forma a identificar a utilização do termo [Gestão
Social], em outras palavras, mapear e entender como os autores
percebem e utilizam este termo.
Essa perspectiva de análise é quantitativa e qualitativa, pois
se pretende entender o sentido da utilização do termo [Gestão Social], e as informações quantitativas estão relacionadas à quantidade de trabalhos em cada categoria e sua evolução no tempo.
Foram identificados textos que tratam, conceitualmente, da
Gestão Social, propondo avanços no entendimento do termo e/
ou tecendo críticas, bem como aqueles que tratam a gestão social
como dimensão central.
Os demais textos oferecem um mapa da utilização do termo
nos ENAPEGS. Essa análise mostrou a grande variação de entendimentos (ver Quadro 1) utilizada, o que constitui mais uma justificativa para a realização deste trabalho. Podem-se definir as
categorias teóricas de análise identificadas nesse estudo como
compostas por uma grade mista (VERGARA, 2005), pois partimos
de algumas categorias a priori e foi-se construindo outras, à medida que os trabalhos foram analisados. Paralelamente, houve casos
em que as categorias teóricas foram agrupadas por aproximação,
fortalecendo-as, conforme sugere Bardin (2009).
Gestão Emancipatória (GE)
Gestão Participativa (GP)
Gestão do Desenvolvimento Social
(GDS)
Descrição
Textos que tratam de maneira conceitual o termo Gestão
Social, propondo avanços no seu entendimento e/ou tecendo críticas. Nestes textos a Gestão Social foi identificada como uma dimensão central, mesmo que o texto tenha
características de outras categorias de análise.
Textos que interpretam a Gestão Social como uma gestão que
proporciona a emancipação ou empoderamento das pessoas.
Não necessariamente os termos emancipação e/ou empoderamento10 estão presentes no texto, mas no seu sentido. Os
textos incluídos nesta categoria de análise percebem a Gestão
Social como uma gestão onde o ser humano se desenvolve e
com isto a própria sociedade se desenvolve nas mais variadas
dimensões: ambiental, econômica, cultural etc. Pode estar
presente ou não nos trabalhos a perspectiva do território.
Textos que interpretam a Gestão Social como uma gestão onde
a participação11, nas mais diversas formas, é sua característica central. Alguns textos trazem a perspectiva do território
enquanto unidade de análise e outros não, ambos os tipos de
artigos foram considerados. Nesta categoria de análise foram
incluídos, também, os textos que tratam da gestão democrática/ participativa/ descentralizada/ dialógica / compartilhada/
cidadã de Projetos/ Programas/ Políticas Públicas ou ONGs/
Cooperativas/ Organizações da Sociedade Civil.
Textos que entendem a Gestão Social como a gestão de Projetos ou Programas Sociais, Políticas Públicas, Políticas Públicas
Sociais (conduzidos ou não pelo Estado) e dos aspectos
sociais da Administração Pública. Esta categoria de análise
contempla também textos que apresentam a Gestão Social
como Gestão Social do desenvolvimento, gestão de redes e
interorganizações. Nestes textos não fica clara se a condução
dos projetos /programas/ políticas seria democrática/ participativa/ descentralizada/ dialógica/ compartilhada/ cidadã.
10 Neste trabalho, entendem-se emancipação e empoderamento como conceitos próximos.
11 Existe uma vasta literatura sobre os termos (que não são sinônimos) e não é objetivo deste trabalho discuti-la. O que interessa aqui são os resultados da emancipação/ empoderamento sobre a percepção das pessoas em relação ao mundo. Emancipação é entendida aqui
como livrar-se da tutela, obter autonomia sobre seus atos e pensamentos. Este texto também
não tem o objetivo de discutir os diversos significados da palavra participação, cuja literatura também é vasta. O que interessa aqui é que o processo de gestão possibilite aos membros
da organização (nos seus mais diversos formatos) tomar parte nas decisões na mesma, nos
mais diversos níveis.
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
Categorias Teóricas de Análise
Identificadas
Gestão Social
(GS)
171
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
172
Categorias Teóricas de Análise
Identificadas
Gestão em Organizações Sem
Fins Lucrativos
(GOSFL)
Gestão da Responsabilidade Social Empresarial
(GRSE)
Formação em
Gestão Social
(FGS)
Outras Formas de
Gestão Relacionadas (OFGR)
Descrição
Textos que entendem a Gestão Social como gestão de ONGs,
Terceiro Setor, Cooperativas, Organizações da Sociedade Civil
(nas suas mais diversas formas) ou qualquer organização sem
fins lucrativos, inclusive gestão pública. Estão nesta categoria
de análise textos que interpretam a Gestão Social como uma
gestão onde a dimensão econômica (ou a racionalidade utilitária) não é central e/ou textos que entendem que a Gestão
Social é uma gestão contrária à gestão que visa lucro (gestão
estratégica, gestão privada, gestão empresarial, gestão neoliberal etc.) e, ainda, trabalhos que entendem a Gestão Social
como a gestão da dimensão social em cooperativas.
Textos que entendem a Gestão Social como a gestão das
ações de Responsabilidade Social das empresas (Responsabilidade Social Empresarial ou Corporativa), relacionada a stakeholders internos e/ou externos, ou os próprios
resultados destas ações. Estão incluídos, também, nesta
categoria de análise textos que interpretam a Gestão
Social como Responsabilidade Socioambiental, Gestão
Socioambiental e Gestão Ambiental.
Textos que apresentam experiências de formação em Gestão Social, avaliação de programas e/ou cursos de Gestão
Social, proposição de perfis para o gestor social e, ainda,
críticas aos programas/cursos sobre Gestão Social. Estão
incluídos, também, nesta categoria de análise textos que
realizam análise de redes de pesquisadores e da produção científica em Gestão Social.
Textos onde não foi possível identificar o significado atribuído ao termo Gestão Social. Em alguns trabalhos o termo
só aparece no título, resumo ou palavras-chave. Nesta
categoria de análise estão também textos onde aparecem
algumas concepções sobre Gestão Social, porém, o(s) autor
(es) não se posiciona(m), se limitando a apresentá-las.
Quadro 1 – Categorias teóricas de análise dos textos sobre Gestão Social, apresentadas nos Enapegs de 2007 a 2010.
Fonte: elaborado pelos autores, 2011.
Pode-se notar que há uma hierarquia entre as categorias de análise com base na seguinte ordem: Gestão Social (GS), Gestão Emancipatória (GE), Gestão Participativa (GP), Gestão do Desenvolvimento
Social (GDS) e Gestão de Organizações Sem Fins Lucrativos (GOSFL).
3. A produção científica sobre Gestão Social no
âmbito dos Enapegs
No Quadro 2 apresentam-se os resultados da busca de artigos nas
quatro edições do evento realizadas até o ano de 2010 (2007, 2008,
2009 e 2010). Nos dois primeiros eventos, todos os artigos foram convidados e foram publicados em formato de livro. Nos eventos seguintes,
12 Caso algum autor não concorde com a interpretação do sentido do termo Gestão Social em seu
trabalho, existe abertura para a discussão, que se apresenta como muito frutífera para a continuação das pesquisas na área. A comunicação pode ser feita pelo e-mail: [email protected].
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
Esta hierarquia é intencional e tornam as categorias teóricas de análise
mutuamente excludentes.
Cabe ressaltar que os trabalhos foram analisados em sua unidade,
independente de autor (es), pois a análise de cada texto foi feita em separado, bem como o significado atribuído ao termo Gestão Social.
As categorias teóricas de análise construídas atendem às sugestões de Bardin (2009), pois pelo que foi descrito acima são mutuamente
excludentes e sua homogeneidade está relacionada à percepção da utilização do termo Gestão Social, ou seja, apenas este princípio “governa”
a distribuição dos trabalhos nas categorias. As categorias são pertinentes, pois mesmo quando não é possível identificar o significado do uso
do termo Gestão Social no trabalho, o texto foi classificado. Em relação
à objectividade e fidelidade elas podem ser descritas como portadoras
destas características, pela própria descrição detalhada das mesmas.
Outro aspecto a ser colocado em destaque é que a maioria dos textos não tem a Gestão Social como conceito central, desta forma, em muitos deles, o termo aparece de maneira secundária e não há preocupação
dos autores em conceituá-lo, por não ser objetivo do trabalho (ou por
ainda não haver consenso sobre o termo). Assim, os artigos classificados em cada uma das categorias não estão utilizando da maneira correta ou incorreta o termo, não é este o tom da classificação. Entende-se
que os autores utilizam o termo de acordo com sua própria interpretação do mesmo. Ao classificá-los não é a intenção dessa análise diminuir
a importância de nenhum trabalho e muito menos criticar a utilização
do termo Gestão Social pelos autores12.
173
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
174
com chamada de trabalhos, apenas alguns artigos selecionados fizeram
parte do livro do evento.
Enapegs - Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social
Dados do Evento
Realização: Rede de Pesquisadores em Gestão Social
Site: http://www.rgs.wiki.br
Local do Evento/Realização/Instituição:
I Enapegs: Juazeiro do Norte/CE, LIEGS - Laboratório Interdisciplinar de Estudos
em Gestão Social, UFC-Cariri – Universidade Federal do Ceará - Campus Cariri.
II Enapegs: Palmas/TO, NESol – Núcleo de Economia Solidária, Universidade Federal do Tocantins
III Enapegs: Juazeiro/BA e Petrolina/PE, NIGS – Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Tecnologias em Gestão Social, UNIVASF – Universidade Federal do Vale do
São Francisco.
IV Enapegs: Lavras/MG, Incubacoop - Incubadora Tecnológica de Cooperativas
Populares, Universidade Federal de Lavras.
Qualis Eventos Capes: não tem.
Obs.: desde o primeiro evento os melhores artigos são destinados à submissão fast
track13 nos periódicos: Organizações & Sociedade, RAP – Revista de Administração
Pública, Revista ADM. MADE, RGSA – Revista de Gestão Social e Ambiental, Cadernos Gestão Social e APGS – Revista Administração Pública e Gestão Social
Ano
(série)
2007
(I)
Tema
Gestão
Social:
práticas
em debate,
teorias em
construção.
Descrição do
Método de Pesquisa Utilizado
Busca por [Gestão Social] em
todos os artigos
Quantidade
de Artigos
Selecionados
9
Observações
Todos os artigos
foram publicados em um livro
com o nome do
evento: Silva Jr. et
al. (2008a) *.
Livro disponível
para download no
site do evento.
13 A submissão fast track é realizada por meio da indicação da organização do evento dos melhores artigos para o periódico, dentro da linha editorial. A revisão dos artigos é geralmente feita de maneira mais rápida que as submissões tradicionais. A partir de 2009 a Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Administração (Anpad) também adotou
esta prática em seus eventos.
2009
(III)
2010
(IV)
Os desafios
da formação
em Gestão
Social
Busca por [Gestão Social] em
todos os artigos
Gestão
Social e
Políticas
Públicas de
Desenvolvimento:
Ações,
Articulações
e Agenda.
Busca no CD do
evento por “Gestão Social”
Gestão Social e Gestão
Pública:
Interfaces
e Delimitações
11
8
Busca em cada
um dos artigos
por [Gestão
Social]
29
Total
57
Média/Evento
Todos os artigos
foram publicados
em um livro com
o nome do evento: Cançado et
al. (2008). Livro
disponível para
download no site
do evento.
Coletânea de artigos selecionados
foram publicados
no livro: Rigo et
al. (2010).
Artigos disponíveis
no site do evento.
Coletânea de artigos selecionados
foi publicada no
livro: Pereira et al.
(2011)
14,25
Quadro 2 - Artigos sobre Gestão Social identificados nas edições 2007, 2008, 2009 e 2010 do
Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social.
* Os artigos publicados no Enapegs de 2007 estão com a data de 2008, pois a publicação foi
realizada no ano seguinte em formato de livro com todos os artigos, porém, foram considerados como 2007, pois os mesmos foram relativos ao evento de maio de 2007.
Fonte: elaboração dos autores a partir dos dados da pesquisa, 2011.
Os dois primeiros eventos foram realizados com artigos publicados
na íntegra em forma de capítulos de livros. Em 2007, os autores foram
convidados de forma individual e em 2008 as instituições apoiadoras do
evento escolheram até dois trabalhos para enviar. No ano de 2009, foi
realizada a primeira chamada de trabalhos, com 149 submissões. Em
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
2008
(II)
175
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
176
2010 o número de submissões chegou a 306, conforme Quadro 3.
Ano
2007
2008
2009
2010
Total
Trabalhos
Submetidos ao
Evento
14
21
149
306
490
Trabalhos
Aprovados
para o Evento
Trabalhos
Selecionados para
Análise
137
248
29
57
14
21
76
9
11
8
Trabalhos
Selecionados
para
Análise (%) *
64,3%
52,4%
10,5%
21,2%
23,0%
Quadro 3 - Artigos sobre Gestão Social submetidos, aprovados e selecionados para análise
nas edições 2007, 2008, 2009 e 2010 do Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão
Social.
* Refere-se à quantidade de artigos selecionados para a análise neste trabalho em relação à
quantidade de artigos publicados no evento.
Fonte: elaboração dos autores a partir dos dados da pesquisa, 2011.
Nota-se, pelo Quadro 3, que os maiores percentuais de artigos
que se utilizam da expressão Gestão Social e, por isso selecionados,
são referentes aos dois primeiros anos. O fato pode ser explicado
pelo direcionamento dos convites enviados aos pesquisadores e
suas instituições. Quando da abertura de submissões quase 90%
dos trabalhos aprovados para o evento não se utilizavam da terminologia Gestão Social, o que representa certa perda de foco do
evento, mas pode ser considerada natural em um campo em construção. A partir de seu amadurecimento, no ano seguinte, já foram
identificados cerca de um em cada cinco trabalhos utilizando-se da
terminologia. É importante destacar que esse crescimento pode, no
futuro, representar uma tendência para o evento.
O Gráfico 1 sintetiza os resultados da busca realizada nos Enapegs (de 2007 a 2010), apresentando a quantidade de artigos por
ano e acumulada. Foi inserida ainda uma linha de tendência baseada na quantidade de artigos por ano.
Pode-se notar, pelo Gráfico 1, que em termos absolutos, a quantidade de publicações no Enapegs utilizando-se o termo Gestão Social se
amplia muito em 2010, levando a linha de tendência a um viés de alta.
No Quadro 4 apresentam-se as referências dos artigos identificados nos eventos.
Ano
Evento/Série
Quantidade
de Artigos
2007
I Enapegs
9
Referências
Enapegs - Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social
Total: 57 Artigos
Carrion (2008),
Carrion e Calou (2008),
França Filho (2008),
Schommer e França Filho (2008),
Silva Jr (2008a),
Silva Jr (2008b),
Silva Jr et al. (2008c),
Tenório (2008a),
Tenório (2008b)
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
Gráfico 1 – Quantidade de artigos identificados nos Enapegs (2007-2010) por ano, acumulado e linha de tendência linear.
Fonte: elaboração dos autores a partir dos dados da pesquisa, 2011.
177
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
178
Ano
Evento/Série
Quantidade
de Artigos
2009
III Enapegs
8
2010
IV Enapegs
29
2008
II Enapegs
11
Referências
Borges et al. (2008),
Cançado, Iwamoto e Carvalho
(2008),
Finco e Finco (2008),
Gianella (2008),
Gomes et al. (2008),
Guerra e Pereira (2008),
Junqueira (2008),
Moretti (2008),
Rocha e Santos (2008),
Silva Jr et al. (2008b),
Villela (2008)
Boullosa e Schommer (2009),
Boullosa et al. (2009),
Carmo, Silva e Fonseca (2009a),
Emmendoerfer e Silva (2009),
Fajardini e Davel (2009),
Gonçalves e Silva Jr (2009),
Junqueira et al. (2009),
Ramos et al. (2009)
Bauer e Carrion (2010),
Becker e Boullosa (2010),
Botrel, Araújo e Pereira (2010),
Cabral (2010),
Cançado, Procópio e Pereira (2010),
Carvalho e Pereira (2010),
Coutinho (2010),
Dreher, Ullrich e Tomio (2010),
Ferreira, Liliane et al. (2010),
Ferreira, Roberto et al. (2010),
Freitas, Freitas e Dias (2010),
Freitas, Freitas, Pedra e Amodeo
(2010),
Gonçalves (2010),
Iwasaki (2010),
Lana e Ashley (2010),
Maciel e Fernandes (2010),
Meirelles e Pereira (2010),
Evento/Série
Quantidade
de Artigos
Referências
Melo e Régis (2010),
Mendes e Santos (2010),
Moura, Moura e Calil (2010),
Muniz, Onuma e Pereira (2010),
Oliveira e Pereira (2010),
Pinho e Sacramento (2010),
Salm e Menegasso (2010),
Santos Filho (2010),
Silva Jr e Nascimento (2010),
Sousa et al. (2010),
Souza et al. (2010),
Zani et al. (2010)
Quadro 4 – Artigos identificados sobre Gestão Social nos Enapegs (2007-2010)
Fonte: elaboração dos autores a partir dos resultados da pesquisa, 2011.
Depois de realizada a análise, os trabalhos foram alocados nas
categorias teóricas. Os resultados estão no Quadro 5.
Categorias Teóricas de
Análise (Qtde.) {%}*
Gestão Social– GS (8)
{14,0%}
Gestão Emancipatória - GE
(3) {5,2%}
Gestão Participativa - GP
(23) {40,4%}
Gestão do Desenvolvimento Social - GDS (6) {10,5%}
Textos Identificados**
França Filho (2008) **, Schommer e França
Filho (2008)**, Silva Jr et al. (2008c)**, Tenório (2008a)**, Tenório (2008b)**, Boullosa
e Schommer (2009), Junqueira et al. (2009),
Cançado, Procópio e Pereira (2010).
Carrion e Calou (2008) **, Silva Jr (2008b)**,
Carmo, Silva e Fonseca (2009a).
Borges et al. (2008), Finco e Finco (2008),
Giannella (2008), Rocha e Santos (2008), Villela
(2008), Fajardini e Davel (2009), Emmendoerfer
e Silva (2009), Gonçalves e Silva Júnior (2009),
Bauer e Carrion (2010), Botrel, Araújo e Pereira
(2010), Cabral (2010b), Carvalho e Pereira (2010),
Coutinho (2010), Ferreira, Liliane et al. (2010),
Ferreira, Roberto et al. (2010), Freitas, Freitas e
Dias (2010), Lana e Ashley (2010), Maciel e Fernandes (2010), Meirelles e Pereira (2010), Muniz,
Onuma e Pereira (2010), Oliveira e Pereira (2010),
Santos Filho (2010), Zani et al. (2010).
Silva Jr (2008a)**, Gomes et al. (2008), Junqueira (2008), Pinho e Sacramento (2010), Dreher,
Ullrich e Tomio (2010), Mendes e Santos (2010).
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
Ano
179
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
180
Categorias Teóricas de
Análise (Qtde.) {%}*
Gestão em Organizações
Sem Fins Lucrativos - GOSFL (9) {15,8%}
Gestão da Responsabilidade Social Empresarial
- GRSE (4) {7,0%}
Formação em Gestão Social - FGS (3) {5,3%}
Outras Formas de Gestão
Relacionadas - OFGR (1)
{1,8%}
Textos Identificados**
Cançado, Iwamoto e Carvalho (2008), Guerra e
Pereira (2008), Silva Jr et al. (2008b), Ramos et al.
(2009), Freitas, Freitas, Pedra e Amodeo (2010),
Salm e Menegasso (2010), Silva Jr e Nascimento
(2010), Sousa et al. (2010), Souza et al. (2010).
Moretti (2008), Becker e Boullosa (2010), Iwasaki (2010), Melo e Régis (2010).
Carrion (2008) **, Boullosa et al. (2009), Moura,
Moura e Calil (2010).
Gonçalves (2010).
Quadro 5 – Síntese da categorização da Análise de Conteúdo dos artigos publicados nos ENAPEGS (2007 a 2010).
* O percentual calculado foi arredondado para uma casa decimal.
** Os textos Carrion (2008), Carrion e Calou (2008), França Filho (2008), Schommer e França Filho
(2008), Silva Jr (2008a), Silva Jr (2008b), Silva Jr et al. (2008c), Tenório (2008a) e Tenório (2008b)
foram considerados como publicados em 2007, pois são referentes ao ENAPEGS daquele ano, conforme descrito anteriormente.
Fonte: elaboração dos autores a partir dos dados da pesquisa, 2011.
Continuando a análise, no Quadro 6 estão apresentadas as distribuições destas categorias por ano.
Categoria
GS
GE
GP
GDS
GOSFL
GRSE
FGS
OFGR
Total
2007
5
2
1
1
9
2008
5
2
3
1
11
2009
2
1
3
1
1
8
2010
1
15
3
5
3
1
1
29
Total
8
3
23
6
9
4
3
1
57
%
14,0
5,3
40,4
10,5
15,8
7,0
5,3
1,8
100,0
Quadro 6 – Distribuição da frequência das categorias teóricas de análise em artigos publicados nos Enapegs (2007 a 2010).
Fonte: elaboração dos autores a partir dos dados da pesquisa, 2011.]
4. Considerações Finais
O desenvolvimento do campo científico da Gestão Social tem
um espaço privilegiado nos Enapegs. O evento tem se apresentado
como um espaço importe para discussão dos temas relacionados
à área e pode ser considerado como a principal ação da RGS atualmente. Apesar de ser um evento recente, observa-se um amplo
crescimento. A decisão da Anpad de retirar a área de Gestão Social e, também, de Gestão Ambiental parece ter sido um incentivo a
mais para os pesquisadores da área. Mesmo sendo um evento ainda
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
A categoria que se destaca é a GP, com mais de 40% dos trabalhos, o que reforça o caráter participativo intrínseco aos processos
de Gestão Social. É importante destacar que, mesmo sem estar representada em 2007, a quase totalidade dos artigos selecionados
para análise, e que, portanto, utilizam-se do termo Gestão Social,
está em categorias hierarquicamente superiores à GP.
A segunda categoria com maior frequência é a GOSFL com cerca de 15,8% dos textos. A gestão deste tipo de organização tende a
ser menos hierarquizada e mais flexível pela sua própria natureza.
A exemplo da categoria GP a categoria GOSFL não aparece no primeiro evento, mas apresenta um viés de alta no horizonte de tempo
da análise.
A categoria GS aparece com apenas um texto a menos que a
categoria GOSFL, o que representa cerca de 14% dos trabalhos selecionados para análise. Essa categoria se concentra, praticamente,
no evento de 2007, mas com presenças menores em 2009 e 2010.
Isto pode ser explicado pelo próprio tema do evento de 2007: “Gestão Social: práticas em debate, teorias em construção” e pelo tipo de
escolha dos artigos, a partir dos seus autores convidados.
As demais temáticas estão diluídas nos eventos e têm baixa
frequência. Dessa forma, podemos inferir que os autores que publicam no Enapegs, de maneira geral se utilizam do termo Gestão
Social com um significado próximo à gestão participativa e gestão
de organizações sem fins lucrativos. Além disso, existe uma parcela
dos autores preocupada em avançar no entendimento e na construção teórica e conceitual da Gestão Social.
181
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
182
sem avaliação (Qualis Capes) muitos autores tem buscado este espaço para apresentar e discutir suas pesquisas. Outra característica
do evento, nestes primeiros anos, é acontecer fora dos grandes centros: Juazeiro do Norte/CE (2007), Palmas/TO (2008), Petrolina/
PE e Juazeiro/BA (2009), Lavras (2010) e a quinta edição em Florianópolis (2011).
Apesar de ser um campo em construção nota-se que já existem
certas tendências em consolidação, como a questão da participação
como processo essencial da gestão social.
Como sugestão para novas pesquisas fica a possibilidade da
continuidade deste estudo nos próximos eventos, bem como a pesquisa em outros eventos e também em periódicos. Outra possibilidade é uma análise mais aprofundada dos textos de determinada
categoria para entender as nuances da utilização do termo pelos
autores, o que poderia ser feito aliado a uma entrevista com os próprios autores, obtendo mais informações para a inferência.
Referências
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BAUER, M. A. L.; CARRION, R. M.. Gestão social do território: entre a ideologia e a utopia. Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social
– Enapegs, 4, 2010, Lavras. Anais..., Lavras: Incubacoop, 2010. 1 CD-ROM.
BECKER, C.; BOULLOSA, R. de F. Avaliação de práticas de investimento social corporativo: problematizando seus desafios e discutindo alternativas
metodológicas. Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social –
Enapegs, 4, 2010, Lavras. Anais..., Lavras: Incubacoop, 2010. 1 CD-ROM.
BORGES, A.C.V. et al. Ensino e pesquisa em administração e gestão social: uma experiência de interação academia-sociedade. In: CANÇADO, A.C. et al. Os desafios da formação em gestão social. Palmas-TO:
Provisão, 2008. p. 37-54.
BOTREL, M. de O.; ARAÚJO, P. G. de; PEREIRA, J. R.. Entre a gestão pública e a gestão social de bens culturais no Brasil. Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social – Enapegs, 4, 2010, Lavras.
Anais..., Lavras: Incubacoop, 2010. 1 CD-ROM.
BOULLOSA, R. de F. et al. Avaliação participativa de práticas de ensino
______ . SCHOMMER, P.C. Gestão social: caso de inovação em políticas
públicas ou mais um enigma de Lampedusa? Encontro Nacional de
Pesquisadores em Gestão Social – Enapegs 3, 2009, Juazeiro/Petrolina. Anais..., Juazeiro/Petrolina: NIGS/Univasf, 2009. 1 CD ROM.
______ . SCHOMMER, P. C. Limites da natureza da inovação ou qual o
futuro da gestão social? Encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração – Enanpad, 32., 2008, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: ANPAD, 2008. 1 CD-ROM.
______ . Revisando a experiência transdisciplinar da residência social
na formação em gestão social e desenvolvimento através da perspectiva da aprendizagem situada e significativa. Colóquio Internacional
sobre Poder Local, 11, 2009, Salvador. Anais... Salvador: CIAGS/UFBA,
2009. 1 CD-ROM.
CABRAL, E. H. de S. Uma abordagem normativa para a gestão social
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Social – Enapegs, 4, 2010, Lavras. Anais..., Lavras: Incubacoop, 2010.
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CANÇADO, A. C. et al. Os desafios da formação em gestão social. Palmas-TO: Provisão, 2008.
_____ . TENÓRIO F. G.; PEREIRA, J. R. Gestão social: reflexões teóricas e
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Luiz Manoel Lopes1
Eladio Craia2
Guilherme Castelo Branco3
Jeová Torres Silva Jr.4
A tentativa de aproximar as discussões relativas aos temas supracitados se deu em virtude dos professores Luiz Manoel Lopes
(UFC-Cariri), Eladio Craia (PUC-PR) e Guilherme Castelo Branco
(UFRJ) trabalharem para estabelecer conexões mais ampliadas com
as diversas linhas de pensamento contemporâneo que se propõem
a transformar e introduzir novos modos de gestão pública e social
no país. Neste sentido, a proximidade com a pesquisa e o trabalho
do professor Jeová Torres (UFC-Cariri) possibilitou esta tentativa
de apresentação no V Enapegs. Após várias trocas de mensagens
via correio eletrônico, nos vimos em plena Florianópolis/SC para
discutir no eixo temático 7 deste evento, considerações sobre o biopoder, a diferença e a produção de subjetividade.
Apresentamos o nosso propósito a partir da seguinte colocação: o objetivo deste eixo temático consiste em propagar a discussão da gestão social sem perder de vista a importância de fazer
política em torno da diferença, da resistência ao poder que coloca
a vida como objeto e aos mecanismos de produção de economia
subjetiva que ocorrem no capitalismo tardio. Neste sentido, esta
1 Luiz Manoel Lopes é doutor em filosofia e professor da Universidade Federal do Ceará – Campus Cariri.
2 Eladio Craia é professor do curso de graduação em Filosofia e do Programa de Pós-graduação
em Filosofia da PUC-PR. Graduado em filosofia pela UNR (Argentina). Mestre em filosofia pela
UNICAMP. Doutor em filosofia pela UNICAMP.
3 Guilherme Castelo Branco é doutor em filosofia e professor da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. - URFJ.
4 Jeová Torres Silva Jr é mestre em administração e professor da Universidade Federal do Ceará –
Campus Cariri. Pesquisador do Laboratório Interdisciplinar de Estudos em Gestão Social - LIEGS/
Universidade Federal do Ceará – UFC.
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
A tentativa de discutir filosofia da diferença, biopolítica
e produção de subjetividade no Enapegs 2011
191
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
192
discussão pode ser compreendida como uma atividade da linha de
pesquisa: biopolítica e produção de subjetividade do Liegs - Laboratório Interdisciplinar de Estudos em Gestão Social do Campus da
UFC no Cariri. O Liegs procura desenvolver esta articulação - entre
gestão social e as temáticas da filosofia da diferença, biopolítica e
produção de subjetividade - através do Projeto Gestão Social nas
escolas para tratar os conceitos com jovens do ensino médio.
O eixo temático também trouxe as articulações entre os propósitos do Laboratório de Filosofia Contemporânea da UFRJ (CNPq),
do Curso de Filosofia da PUC-PR e do Lapenc - Laboratório do Pensamento Contemporâneo (Grupo de Pesquisa do CNPQ - Programa
de Extensão do Campus da UFC no Cariri) que desenvolve o evento
Usina de Ideias - Pensamento Contemporâneo no Ensino Médio. Os
componentes deste eixo temático exercem suas atividades nos grupos, programas e instituições supracitadas.
A tentativa desta aproximação com a gestão social não é única e exclusivamente pertencente a este eixo temático, tanto é que
tomamos como norte um texto que mesmo sem fazer referencias
teóricas à gestão social sinaliza para uma das suas temáticas mais
destacadas: a economia solidária. Nesta perspectiva, o debate foi
em torno do resgate da produção da vida coletiva e por isto nos
norteamos pelo excelente texto de Patricia Ayer de Noronha (2007)
intitulado “Artes femininas da existência: economia solidária e
transformação subjetiva”.
Na ocasião do V Enapegs, infelizmente o professor Guilherme
Castelo Branco não pode fazer-se presente ao encontro. As apresentações do eixo temático seguiram as orientações dos referenciais teóricos de Foucault e Deleuze-Guattari. A partir do texto de
Noronha (2007), começamos a discussão sobre como fazer gestão social e economia solidária com populações que residem em
bairros das grandes cidades brasileiras e não possuem nenhuma
assistência por parte do Estado. A discussão girou também em não
se deixar cair no aprisionamento que o biopoder exerce sobre as
vidas dos habitantes destes bairros periféricos e, sobretudo, em
evitar que a gestão social seja um meio de propagação do biopoder.
A tentativa de discussão deu-se inicialmente pela preocupação de
1)
Filosofia da diferença
A filosofia da diferença refere-se a remover os hábitos de pensar que nos deixam apaziguados dentro de campos limitados de
condicionamento. Trata-se de abandonar o condicionamento para
entrar no domínio da gênese e da produção de modos de existências. O plano teórico que sustenta este afastamento denomina-se
“crítica aos possíveis”. Neste plano, enfoca-se que o possível não é
anterior ao real, pelo contrário, o real é que permite o aparecimento dos possíveis. Em resumo, a filosofia da diferença trata de pensar
e viver o real com o cuidado de não identificá-lo com o atual. O real
é estudado como virtual-atual. Os processos de atualização e as derivações econômicas e políticas que decorrem daí, são “os objetos”
de estudo da filosofia da diferença.
2)
Biopolítica
A melhor revelação do significado de biopolítica foi apresentada pelo escritor português Antonio Guerreiro (2008):
O paradigma biopolítico dos estados totalitários, na
sua dimensão exacerbada, é um revelador daquilo que
se tornou, entretanto politicamente decisivo nas democracias parlamentares do nosso tempo: a vida biológica. Sem a referência à biopolítica, não podemos
compreender o movimento de despolitização generalizada que tomou conta de projectos e instituições e reduziu o discurso político à discussão e gestão das contingências sociais e econômicas. O factor biopolítico
obrigou a repensar as categorias políticas tradicionais
(GUERREIRO, 2008, p. 10).
3)
Produção de subjetividade
A filosofia da diferença vem ao encontro deste aspecto da pro-
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
apresentar tópicos sobre a importância de se compreender como
a civilização ocidental orientou-se pela opção de privilegiar a identidade e a representação em detrimento da diferença e repetição.
Neste aspecto, foi proposto que a apresentação ocorresse em três
partes, quais sejam:
193
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
194
dução de subjetividade, fora do modelo de identidade, sobretudo
fora do que o capitalismo destruiu em termos de agenciamentos
coletivos. Tomemos, por exemplo, um caso tipicamente da cultura
nordestina e, sobretudo da Região do Cariri, localizada no sul do
Ceará: até bem pouco tempo era comum a reunião de amantes da literatura de cordel, os quais se reuniam para cantar e ouvir versos,
tudo era feito ao ar livre, mas atualmente é raríssimo encontrarmos este tipo de agenciamento coletivo, na região, devido ao que o
“capitalismo” provocou em termos de destruição de subjetividades.
O modo de produção capitalista serializou, modelou, registrou os
indivíduos, dando-lhes uma subjetividade precária e paupérrima.
Todavia, a subjetividade, como nos diz Felix Guattari, não é passível de totalização ou de centralização no indivíduo. “Uma coisa é a individuação do corpo. Outra é a multiplicidade dos agenciamentos de subjetivação: a subjetividade é essencialmente fabricada e
modelada no registro do social” (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p.31).
O que podemos notar pela linha de pensamento de Guattari, sobre a
produção de subjetividade, é que atualmente começam a aparecer,
no Brasil, trabalhos apontando uma saída aos modelos estabelecidos. Tomemos, por exemplo, o ensino da História do Brasil, a qual é
ensinada pela perspectiva do homem europeu. Quando os negros,
nos movimentos sociais, trabalham exaustivamente para que a Lei
10.639/03 seja implementada, é justamente para que a história do
Brasil seja vista através de uma outra subjetividade.
Em seu livro Cosmovisão africana no Brasil: elementos para
uma filosofia afrodescendente, Oliveira (2003) faz a seguinte citação
sobre o assunto:
Este livro dedicar-se-á, portanto, a um desses universos de referência que é a Cosmovisão Africana – construída com sabedoria e arte pela tradição e atualizada
com sagacidade por seus herdeiros. A herança da cosmovisão africana altera a discussão sobre a identidade brasileira. Com efeito, os afrodescendentes foram
alijados de sua terra de origem e menosprezados em
suas terras de ocupação, por outros. Negados ontologicamente em qualquer parte do mundo, suas culturas
foram rotuladas como atrasadas, animistas, folclóricas,
bárbaras, primitivas, o que evidencia o racismo a que
Na introdução do livro, Oliveira (2003) expõe como o capitalismo mundial integrado organiza-se através de dois pólos: produção econômica e produção subjetiva. O privilégio sempre recai
para o lado da produção econômica em detrimento da produção
subjetiva e acrescenta:
Acontece que o CMI não é o único regime de signos
existente. Muito pelo contrário, existe uma pluralidade
de regimes semióticos, tanto entre culturas diferentes,
quanto no interior de um mesmo território nacional.
Ocorre que o CMI hegemonizou os sistemas socioeconômico e político-cultural. Mas, hegemonia não significa onipotência, predomínio não significa existência
exclusiva. Com efeito, a cosmovisão africana configura-se num outro regime semiótico, agenciando desejos e
promovendo valores, no mínimo antagônico, as agenciadas pelo CMI. O capitalismo mundial integrado, na
sua pretensa totalidade, não consegue evitar as linhas
de fuga que se desprendem de sua malha; linha de fuga
essas que potencializam a criação de outros regimes
semióticos (OLIVEIRA, 2003, p.19).
O texto orientador de nossas tentativas de inserção nas discussões sobre a gestão social começava colocando por linhas intensivas
que expressavam algo promissor para nossos propósitos. O texto
fazia alusão aos processos de atualização de virtualidades, deixando assim entrever que o papel da gestão social é muito próximo ao
da gestante e dos movimentos de criação, o que deixa em aberto vários caminhos que podem ser utilizados como modos de vencer as
adversidades, sobretudo problematizando o conhecimento como
fator de condicionamento das vidas. Vejamos o que estas linhas de
intensidade escritas por Noronha (2007) nos dizem:
O grupo é antes um processo e não uma estrutura estável. Sistemas sempre em desequilíbrio, no grupo os elementos em causa não são tanto os sujeitos e os conteúdos, mas forças que interagem, criando diversas configurações e assumindo várias formas de organização,
desintegração, coordenação e conflito. Esta formulação
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
foram historicamente submetidos a população africana e seus descendentes (OLIVEIRA, 2003, p.17).
195
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
196
inicial, de orientação deleuze-guattariana a respeito de
que se passa em um grupo, ainda um tanto enigmática,
mas que pretendemos desdobrar neste texto, encontra
na experiência que vem se desenvolvendo há 11 meses
com um coletivo de mulheres artesãs, no Centro Cultural Dona Luiza, localizado no Bairro Saudade em BH,
mais do que uma ressonância teórica, uma ressonância
política. Em dezembro de 2004, iniciamos, em associação com uma educadora com trajetória em assessoria
a diversos movimentos populares e sindicais, uma experimentação coletiva singular que ocorre no Centro
Cultural Dona Luiza, sede do grupo Iúna de Capoeira
Angola (NORONHA, 2007, p.1).
A temporalidade é importante, neste caso, por permitir-nos
ver e viver o passado, levando-se em conta que já se passaram sete
anos deste o início destes trabalhos com as comunidades em tela
apreço. Diante do texto citado, buscamos tratar de duas questões
básicas: 1) A importância do conceito de linha de fuga; e 2) Como a
gestão social se inscreve no paradigma biopolítico. A partir destas
duas questões fizemos questionamentos e debatemos com um público que está começando a ter interesse por estas aproximações.
Existem outros exemplos proveitosos para que possamos visualizar como os processos de diferenciação, que fazemos parte, podem
ser lidos por estas três linhas que nos propomos a discutir. Atualmente, podemos perceber, através do conceito de biotopos como a
cura da desertificação vem se dando como linhas de fuga em relação à fábrica de subjetivação condicionadora. A constatação dessas
linhas de fuga pode ser acessada através do sítio www.tamera.org,
que apresenta um novo modo de gerir a água enquanto vida e ao
mesmo tempo enquanto curadora da terra. Através de quatro princípios básicos – água, energia, alimentação e educação – introduz-se diferenças na maneira de viver da humanidade diminuindo a
desigualdade social e fazendo da natureza uma aliada.
Em síntese, a filosofia da diferença pode contribuir para dinamizar a gestão pública e social, sobretudo por destacar o aspecto
importantíssimo da determinação recíproca. Tal aspecto vem ao
encontro da abordagem crítica que questiona o modo do homem
moderno, do sujeito, da pessoa determinar-se em relação a sua
Referências
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Nau, 2000.
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de Janeiro: Editora 34, 1996.
______; ______. O que é a filosofia? São Paulo: Editora 34, 1992.
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em: http://www.culturgest.pt/actual/biopolitica.html
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Disponível em xa.yimg.com/kq/.../artes+femininas+da+existênci1.doc
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afrodescendente. Curitiba: Publicação Ibeca, 2003.
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em construção. Fortaleza: Imprensa Universitária UFC, 2008.
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
existência. Neste sentido, consideramos que um novo enfoque sobre a estrutura da determinação do sujeito, face ao pensamento e
à existência, venha ser extremamente enriquecedor no que diz respeito ao debate atual sobre a administração pública e social. Para
concluir, tudo isto implica em supor que a filosofia da diferença
pode ser aplicada aos cursos de formação de futuros gestores que
cuidarão das esferas pública e social.
197
Tânia Fischer1
1. Contextos de referência para o campo da gestão
social
A gestão social é um campo de trabalho com múltiplos enclaves e conexões, é também uma construção epistêmica e requer formação qualificada e, mais especialmente, formação profissional qualificante.
No reordenamento da educação em face da imperiosa necessidade de formar profissionais para o desenvolvimento, é preciso
reconhecer em que país estamos, já que a demografia nos diz que o
Brasil está mais mestiço, mais feminino, mais velho, mais migrante
e menos (um pouco menos) desigual.
Há também características culturais novas, com muito maior
diversidade e formas de representação social inovadoras, como as
multidões que ocupam territórios convocadas por mídias sociais.
Neste novo cenário, o Brasil caminha para ser a sexta economia do mundo. É líder inconteste da América Latina, disputa espaços de representação e de gestão de política e economia globais.
Os desafios que se colocam para o Brasil na perspectiva de se
tornar um país com maiores índices de desenvolvimento tem como
ponto de convergência a necessidade de formar pessoas para diversas áreas de atuação como energia, gestão metropolitana, meio
ambiente, defesa, transportes e multimobilidade, produção de alimentos, uso de recursos hídricos e desenvolvimento de serviços
como segurança e educação, como refere o Plano Nacional de Pós-graduação 2011-2020 (BRASIL, 2010. v. 2).
A contemporaneidade é portadora de hibridizações múltiplas
nas convergências e choques de culturas. Migrações, novos forma1 Tânia Fischer é professora titular da Universidade Federal da Bahia e coordenadora do Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social (Ciags/Ufba). Doutora em administração pela USP, mestre em administração pela UFRGS e graduada em pedagogia pela UFRGS.
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
Gestão social do desenvolvimento territorial como
campo de educação profissional
199
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
200
tos de cosmopolismo, densificações urbanas, multi, inter e transescalares, desordenamento de territórios e territórios-rede (HAESBAERT, 2006) novas convergências, simetrias e assimetrias sociais
desafiam os profissionais em todos os campos.
Prosseguem os problemas estruturais de desigualdade, de
concentração de renda, serviços de educação e saúde foram expandidos, mas não são de qualidade nem estão acessíveis para todos.
Há fluxos migratórios em todos os sentidos, migração qualificada dos expatriados do antigo primeiro mundo e a migração dos
pobres nas rotas sul/sul. Há também uma intensa intramobilidade
dos brasileiros que vão trabalhar nos novos investimentos de infraestrutura e serviços como nas cidades do pré-sal, nas ferrovias e
aeroportos e nos grandes complexos habitacionais.
Intensificam-se os problemas de mobilidade e segurança. As
cidades densificam-se e o Brasil atrai eventos estruturantes esportivos e culturais.
“Cenário de demandas e desafios, a dinamização de economia
é simétrica à ampliação de ofertas e trabalho, à organização de instrumentos de gestão financeira e à capitalização do desenvolvimento local” (DOWBOR, 2009).
É neste novo desenvolvimentismo como um processo auspicioso em que nos situamos redefinindo a substância, os contornos
e limites de um território: o campo da gestão social.
Pretende-se contribuir para problematizar a delimitação e os
significados deste “território simbólico” que é o campo (na perspectiva de Pierre Bourdieu) de gestão social, que não é apenas um
espaço construído, mas um lócus de práticas significativas movido
por comunidades de interesse que são os gestores, pesquisadores
e demais praticantes.
O país está necessitando de novas formas de governabilidade
(na perspectiva de Michel Focault) levando a um estágio sustentável de desenvolvimento com maior integração sócio-produtiva,
maiores investimentos em serviços públicos da infraestrutura e
cuidados sociais, do direito ao lazer, aos bens e serviços culturais o
que implica em maiores investimentos e regulação social.
O novo ciclo do desenvolvimento brasileiro requer profissio-
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
nais qualificados para diferentes escalas e tipos de ocupações em
territórios com níveis diferenciados de crescimento econômico e
integração socioprodutiva.
Assim sendo, a gestão social do desenvolvimento territorial
depende de profissionais qualificados, orientados pelas necessidades do contexto.
O campo da gestão social origina-se das práticas e saberes
emergentes no novo ciclo de desenvolvimento brasileiro, nos meados dos anos 90 estando em processo até aqui.
Orientada pelos novos ideais desenvolvimentistas e fortemente ancorada em processos de desenvolvimento de territórios, a gestão social é objeto de debates nem sempre convergentes, e perspectivas de análise tão contraditórias quanto complementares.
O campo da gestão social do desenvolvimento territorial está
sendo construído pelas práticas e saberes da natureza caracteristicamente interdisciplinar, ao mesmo tempo recorte epistemológico
e construção social. A gestão social do desenvolvimento territorial compreende problemas de alta complexidade que demandam
ações convergentes de profissionais oriundos de organizações tão
distintas quanto uma prefeitura, uma empresa, uma cooperativa
ou um movimento associativo, o que resulta em um grupo multicultural, multiinstitucional de grandes diversidades, convergente
nas práticas de trabalho na gestão de diferentes escalas territoriais.
(FISCHER et al., 2011).
Pactos territoriais como as UPPs do Rio de Janeiro, o Pacto
pela Vida na Bahia, os conselhos de planos diretores urbanos ou de
políticas setoriais, as mobilizações que resultam em ocupações de
territórios e parcerias multiescalares (do micro local ao transnacional) que se articulam em função do desenvolvimento territorial
vão requisitar gestores com competências de diversas naturezas e
níveis.
Interorganizações orientadas ao desenvolvimento territorial
são híbridas, intensamente dinâmicas e mutantes quando atuam
em convergência para desenvolver territórios. Esta ação em convergência é integrativa e aponta, como um sentido obrigatório ao
desenvolvimento.
201
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
O conceito de desenvolvimento territorial é hoje percebido por
Mangabeira Unger como “ampliação de oportunidades para aprender, trabalhar e produzir” (UNGER, 2009, p.11).
Figura 1 – Interorganizações e desenvolvimento territorial
202
Fonte: Elaboração própria
A relação de imbricação entre desenvolvimento enquanto processo e território como ancoragem resgata as concepções de desenvolvimento sustentável de Ignacy Sachs, entre outros, que, no limiar
da conferência Rio + 20 que se realizará no Brasil em junho, reitere
as dimensões sociais, ambientais, culturais econômicas e espaciais
que deve ter o desenvolvimento territorial (SACHS, 2007, p.298).
Qual é a natureza da gestão social enquanto campo de conhecimentos e práticas que requer profissionais competentes?
A gestão social é um campo que nasce da necessidade de profissionais com competências ressignificadas relativamente aos
princípios que orientam a administração científica no início do século XX. Não por acaso, a gestão (e não a administração) foi categorizada como especialidade interdisciplinar pelo CNPQ. A gestão
pode estar associada à saúde, à educação, à cultura, às engenharias
e a muitas outras disciplinas e interdisciplinas. Remete sempre à
prática e delas se origina. A gestão social é, por excelência, a gestão
das convergências, das organizações que trabalham em conjunto
(interorganizações) em conexões interinstitucionais que se realizam em espaços territorializados, como ilustra a figura a seguir:
Figura 2: Campos da gestão social
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
2. A natureza da gestão social como campo profissional: convergência logos e práxis?
203
Fonte: Elaboração própria
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
204
Se a gestão é um ato relacional que necessita de um ou diversos territórios para ser exercida, ela ocorre no sentido do
desenvolvimento ou como um motor e instrumento do desenvolvimento da sociedade territorializada em bairros, em cidades e regiões, em redes sociais (territórios virtuais) ou em espaços simbólicos como os “territórios de identidade” da Bahia
(http://www.seplan.ba.gov.br/mapa.php).
A gestão social é, portanto, um campo de conhecimentos e
práticas, saberes e fazeres orientados pelos valores de recriação de territórios em diferentes níveis escalares, fortalecendo
os poderes locais. Retoma-se aqui o conceito de poder local
“como relação de forças por meio das quais se processam alianças e confrontos entre atores sociais, territorializados em espaços geradores de identidades e práticas sociais específicas”
(FISCHER, 1993), já bastante estudado pelos grupos de pesquisa que ancoraram o Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social (Ciags), sediado no Núcleo de Estudos sobre
Poder e Organizações Locais (Nepol) do CNPQ e que volta como
tema de pesquisa no retorno de cidades e regiões como protagonistas do desenvolvimento nacional.
Se cada época tem os “seus temas”, como disse Paulo Freire,
cada época tem também os profissionais que a constroem.
3. Um campo em construção: percursos identitários, hibridização e convergências possíveis
A construção do campo de gestão social é um exercício
árduo, compartilhado por “tribos de territórios acadêmicos”
que hoje formam a Rede de Gestão Social que promove o Enapegs, mas se encontra em outros eventos como os Enanpads,
os Enanpurs e os Colóquios Internacionais sobre Poder Local,
entre outros, refletindo a multi/inter/transdisciplinaridade. A
problematização do campo tem sido feita por muitos integrantes desta tribo que reúne diferentes especialidades, gerações e
inserções acadêmicas (CANÇADO e FERREIRA, 2011).
O campo de conhecimento e práticas denominado “gestão
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
social do desenvolvimento territorial” tem, no Brasil, uma década de institucionalização como recorte epistemológico com fins
de pesquisa e ensino, não obstante ser a gestão social uma prática perene. Entende-se que a construção social do desenvolvimento territorial é tarefa de coletivos, de indivíduos que atuam
em conjunto, em interorganizações que reflitam interesses plurais das instituições que operam no espaço público (FISCHER et
al, 2011). Há um perceptível mosaico teórico e metodológico e
diferentes versões sobre a história deste campo tão novo, como
se pode depreender pela produção e pela programação dos
eventos que discutem as convergências público e associativo, o
papel dos empreendimentos sociais, as temáticas associadas ao
socioambiental, as articulações com o investimento social privado e tantas outras.
Mais do que uma ruptura com os paradigmas que orientam a gestão como campo de práticas e conhecimentos, estamos
vivendo a emergência de novos campos de atuação e saberes
neste início de decênio. Novas profissões, novas ocupações ressignificam tanto as práticas quanto os saberes, as redes de significados, as tecnologias e os instrumentos de trabalho. Logos
e práxis, ética e efetividade nas dimensões do indivíduo, dos
relacionamentos entre humanos e das transações mais complexas de formatos reticulares e interorganizacionais evocando o
saber ser, saber interagir e, se acrescenta o saber gerir que requerem mediações e conexões que se transformam no campo
de gestão da sociedade como ela se apresenta em seus desafios.
Os profissionais que fazem a gestão da sociedade em seus
múltiplos territórios podem ser identificados como gestores sociais, desde que exerçam o papel de mediadores de polaridades
e de convergências como ilustra a figura 3.
205
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
206
Figura 3: Dimensões da gestão social
Fonte: Elaboração própria
Se existe um campo de saberes e práticas em construção, mas
já com identidade, pode-se formar gestores sociais profissionais?
4. Possíveis itinerários formativos face aos significados e sentidos da gestão social
A gestão social pode ser considerada um campo de conhecimentos e práticas, tendo, portanto, dimensões epistemológicas e
praxiológicas articuladas.
Um campo de conhecimento supõe uma interorganização
de domínios cognitivos que podem se articular multi, inter ou
transdiciplinarmente segundo categorização de Jean Piaget
(PIAGET, 1970, p. 84).
Quando a gestão social é orientada ao desenvolvimento de ter-
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
ritórios temos uma dimensão praxiológica substantiva.
O que nos solicitam as práticas em tempos de convergência?
Como gerir interorganizações como um consórcio público que congrega prefeitos, sindicatos, gestores empresariais, gestores de cooperativas, movimentos sociais, lideranças indígenas e afrodescendentes e outras redes como fóruns e conselhos?
As propostas de desenvolvimento territorial decorrem da
identificação de problemas de educação, saneamento, habitação,
saúde, e outras que, por sua vez estão imbricadas em produção de
bens, serviços, conectadas com organizações de mercados plurais
(empresas, cooperativas, associações de produtores).
Os espaços de prática e os domínios de conhecimento e suas
tecnologias articulam-se em interorganizações de um lado e em
composições multi/ inter e transdisciplinares do outro.
Desta relação das teorias e das práticas, emergem os perfis de
gestores sociais necessários para atuar em nós organizacionais (governo, empresa, movimentos) nas conexões interorganizacionais
(pactos, conselhos, fóruns), nas redes de redes mais complexas e
em outros níveis escalares mais e mais complexos.
Para qualificar o gestor social do desenvolvimento territorial
que requisitos devem ter os itinerários formativos? Por itinerário
formativo entende-se um conjunto articulado de ofertas de ensino
constituído de eixos curriculares e dinâmicas de ensinar e aprender traduzidos em designs, ambientes de aprendizagem, recursos
e ferramentas.
Os itinerários de formação profissional segundo o Plano Nacional de Pós-graduação 2011-2020 devem integrar “inovações
curriculares e de formação e dar atenção à diversidade curricular” (BRASIL, 2010, v. 2, p. 8) “bem como ao desenvolvimento social com um todo e de tecnologias sociais em particular” (BRASIL,
2010, v. 2, p 175).
Estamos em tempos de internacionalização, mas também de
interiorização do ensino para desenvolver competências profissionais de respeito à diversidade também de valorização da qualidade e relevância. Itinerários formativos para gestores sociais podem
incorporar os princípios que o escritor Ítalo Calvino propôs para
207
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
este milênio: agilidade, simplicidade, precisão, consistência e multiplicidade.
O desenho curricular que encerra este texto é representativo da estrutura do Programa de Desenvolvimento e Gestor Social
da UFBA e é um itinerário formativo de gestores sociais que se
inicia com a graduação superior tecnológica e avança até o mestrado profissional.
Com esta proposta, produto de ação compartilhada de professores, pesquisadores, estudantes e parceiros, espera-se contribuir para a gestão social do desenvolvimento, desafio do país
de tantos territórios.
Figura 4 – Proposta curricular interdisciplinar e profissional
integrada em diferentes níveis de formação
208
Fonte: Elaboração própria
BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva,
2007. (Coleção Estudos; 20).
BRASIL. Ministério da Educação. Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior. Plano Nacional de Pós-Graduação (PNPG) 20112020. Brasília, DF: Capes, 2010. v. 2. 608 p.
CANÇADO. A. C.; PEREIRA, J. R. Gestão social: por onde anda o conceito. In.
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FISCHER, T. Poder local, governo e cidadania. Rio de Janeiro: Editora da
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FISCHER, T. Proposições sobre educação profissional em nível de pós-graduação para o PNPG 2011-2020. IN: BRASIL. Ministério da Educação. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Plano Nacional de Pós-Graduação (PNPG) 2011- 2020. Brasília, DF: Capes, 2010. v. 2. p
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SACHS, I. Rumo à Ecossocioeconomia:teoria e prática do desenvolvimento.
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UNGER, R. M. O que a esquerda deve propor. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
Referências
209
Fernando Guilherme Tenório1
Anderson Felisberto Dias2
Como já mencionado em outros textos que refletem as discussões ocorridas no âmbito do Encontro Nacional de Pesquisadores
em Gestão Social – Enapegs (TENÓRIO, 2010), o tema gestão social
se institucionalizou a partir da realização, em 1992, na Bolívia, do
Seminário Iberoamericano de Desarrollo de Profesores en Gerencia
Social organizado pela RedIberoamericana de Instituciones de Formación em Gerencia Pública (CLADAECI/INAP – PNUD).
Motivadas por essas intenções, algumas instituições de ensino
e pesquisa em administração pública e empresarial, nacionais e internacionais, passaram a direcionar suas atividades para a formação e capacitação de gerentes, técnicos e lideranças comunitárias.
No âmbito da Fundação Getulio Vargas, no entanto, desde 1989 já
realizávamos atividades de extensão em parceria com a Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro no intuito de desenvolver nos moradores de diversos municípios da região metropolitana do Rio de
Janeiro habilidades para gerir projetos comunitários.
Como desdobramento dessa iniciativa surge, em 1990, o Programa de Estudos em Gestão Social – Pegs – vinculado à, então denominada, Escola Brasileira de Administração Pública (Ebap) da
Fundação Getulio Vargas (FGV). Desde então, o Pegs tem desenvolvido ações no âmbito da pesquisa, do ensino e da extensão com o
intuito de contribuir com a consolidação da gestão social enquanto
1 Fernando Guilherme Tenório é Pós-Doutorado em Administração Pública pelo Igop/Universitat Autónoma de Barcelona (UAB). Doutor em Engenharia da Produção pela UFRJ. Mestre em Educação pela UFRJ. Bacharel em Administração pelo Instituto Metodista de Ensino.
Professor da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio
Vargas (Ebape/FGV). Coordenador do Programa de Estudos em Gestão Social (PEGS).
2 Anderson Felisberto Dias é doutorando em Administração pela Ebape/FGV. Mestre em Administração pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e administrador pela mesma instituição. Pesquisador do Programa de Estudos em Gestão Social (Pegs) da Ebape/FGV.
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
Gestão social: ensino, pesquisa e prática –
Pró-Administração – Capes
211
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
212
campo de conhecimento. Nesse mesmo sentido, diversas outras iniciativas surgiram e hoje contribuem para o fortalecimento da área3.
A parceria com a Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro,
maior fonte de inspiração para a consolidação do Pegs, capacitou,
ao longo de vinte e três anos, cerca de 900 moradores, com o envolvimento de mais de 90 alunos da graduação, do mestrado e do
doutorado da Ebap. Oferecidos nas instalações da Catedral de São
Sebastião do Rio de Janeiro e ofertados às comunidades através de
comunicados das pastorais e paróquias da Região Metropolitana,
os cursos se baseiam na pedagogia emancipatória de Paulo Freire
(2005), na filosofia de trabalho com comunidades de Clodovis Boff
(1986) e nas formas de transferência de tecnologia social do Instituto de Tecnologia Social (ITS). Os cursos visam capacitar os participantes para gerir projetos comunitários ou estimular o desenvolvimento de lideranças para a inserção de moradores em espaços de
deliberação de políticas públicas como os Conselhos Municipais de
Políticas Públicas.
Com o curso de Gestão de Projetos Comunitários, espera-se que os participantes desenvolvam habilidades necessárias
à elaboração, à execução e à avaliação de seus próprios projetos,
possibilitando autonomia na resolução dos problemas de suas comunidades. A transferência de tecnologia de gestão visa sanar uma
deficiência comum às comunidades, normalmente carentes de ferramentas que lhes permitam a implementação de projetos próprios
e acesso às fontes de recursos. A ausência de pessoas capacitadas
em gestão de projetos torna essas comunidades vulneráveis aos interesses de organizações que se utilizam do argumento da filantropia para aumentar suas receitas.
O curso de Formação Política e Cidadania, por sua vez, pretende instrumentalizar lideranças comunitárias com o intuito de
torná-las aptas a representar o interesse das comunidades na discussão de políticas públicas em espaços como os Conselhos Municipais de Políticas Públicas. Pretende-se, com isso, o empoderamento
gradativo da sociedade civil no sentido de uma aproximação junto
3 Para detalhamento dessas iniciativas, ver Cançado (2011).
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
ao poder público na participação das decisões políticas e na resolução das demandas da sociedade. Argumenta-se que essa iniciativa
contribui para o exercício da cidadania deliberativa como instrumento de participação crescente da sociedade na gestão pública e
na defesa de seus interesses.
Essa iniciativa ganhou o apoio da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) através do projeto
Transferência de Tecnologias em Gestão Social que possibilitou
a implantação do Laboratório de transferência de tecnologias
em gestão social nas instalações da Cáritas Arquidiocesana do Rio
de Janeiro. Inaugurado em julho de 2011, o laboratório permitirá
a disseminação dessa prática para outras regiões do estado, além
de possibilitar a intensificação das atividades de pesquisa, ensino e
extensão da Ebape.
Não só no âmbito acadêmico, mas também na implementação
de políticas públicas, a gestão social tem se mostrado como alternativa recorrente para a democratização da gestão e para a possibilidade de abertura dos espaços de decisão na esfera pública.
Podemos citar como exemplo atual o Programa Territórios da Cidadania, política lançada em 2008 cujo objetivo é o de promover o
desenvolvimento econômico e universalizar programas básicos de
cidadania por meio de uma estratégia de desenvolvimento territorial sustentável. Nele a gestão social aparece como tema norteador
para a democratização da gestão do programa.
Especificamente no que se refere à academia, a Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) demonstram valorizar cada vez mais a integração
entre as universidades e a comunidade e, em um sentido às vezes
restrito, as ações de extensão dos núcleos e programas de pesquisa
relacionados à gestão social, servem para alimentar os inúmeros
relatórios de suas instituições.
O tema também se tornou prioritário para agências de fomento. A Capes, por exemplo, lançou o Edital Pró-Administração (nº
09/2008) em novembro de 2008, cujo objetivo é o de estimular no
país a realização de projetos conjuntos de pesquisa e apoio à capa-
213
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
214
citação docente utilizando-se de recursos humanos e de infraestrutura disponíveis em diferentes IES.
Com o intuito de possibilitar a produção de pesquisas científicas e tecnológicas e a formação de recursos humanos pós-graduados na área de Administração, o edital pretende contribuir, assim,
para ampliar e consolidar o desenvolvimento de áreas de formação consideradas estratégicas, através da análise das prioridades e
das competências existentes visando à melhoria de ensino de pós-graduação e graduação em Administração e Gestão. A gestão social
foi destacada como uma dessas áreas temáticas estratégicas. Chamou atenção o número de projetos aprovados que possuem o tema
como foco. Dentre os 21 projetos, três apresentam o termo gestão
social no título.
O projeto Gestão social: ensino, pesquisa e prática é um dos
projetos contemplados pelo edital, cujo cronograma de execução
compreende o período de outubro de 2009 a setembro de 2013,
e possibilitou a formação de uma rede de pesquisadores pertencentes a quatorze instituições de ensino superior (sete associadas
e sete colaboradoras). Sob a coordenação do Pegs da Ebape-FGV, a
rede é formada pelas seguintes instituições associadas: Universidade Federal de Lavras (UFLA); Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro (UFRRJ); Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP); Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí); Universidade Federal do Ceará (UFC). Além dessas, integram a
rede as seguintes instituições colaboradoras: Universidade de Arte
e Ciências Sociais do Chile (ARCIS); Universidad Autónoma de Barcelona (UAB); Universidad Andina Simón Bolívar (UASB); Universidade Federal de Viçosa (UFC); Universidade Federal Fluminense
– Pólo Universitário de Volta Redonda. (UFF); Universidade Federal
do Rio de Janeiro – Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (COPPE); Universidade Federal do
Tocantins (UFT).
Pretende-se que essa rede contribua com o avanço de diferentes práticas e teorias sobre gestão social de forma que se possa sistematizar os conhecimentos dispersos e transformá-los em
Referências
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agenda. Recife: Univasf, 2010, p. 53-60. (Coleção Enapegs, v. 3).
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
instrumentos didáticos, recursos tecnológicos para aprendizagem,
formação de pesquisadores, publicação de artigos e livros, como
previsto no edital Pró-Administração.
Com o intuito de fortalecimento do campo de conhecimento,
contribuir para a consolidação da Rede de Pesquisadores em Gestão Social (RGS) se tornou uma prioridade para o projeto. Nesse
sentido, dentre os três encontros anuais previstos, determinou-se
que um ocorreria durante o Encontro Nacional de Pesquisadores
em Gestão Social (Enapegs). Logo, a partir de 2010, toda a rede de
pesquisadores é levada ao encontro com recursos do projeto no intuito de discutir e disseminar seus estudos junto à RGS. Foi com
esse objetivo que a mesa Gestão social: ensino, pesquisa e prática – Pró-Administração – Capes foi realizada durante o V Enapegs
realizado em Florianópolis. Durante a mesa, o projeto foi apresentado aos presentes que puderam esclarecer com os coordenadores
das equipes locais detalhes sobre os estudos nelas desenvolvidos.
O principal objetivo da mesa foi, portanto, proporcionar um momento de troca de experiências e de disseminação das iniciativas
dessas instituições no intuito de contribuir para o desenvolvimento
do tema.
215
Rosana de Freitas Boullosa1
1. Introdução
Parece haver certo consenso sobre a compreensão da gestão
social como um campo interdisciplinar de práticas e conhecimentos que ainda está em construção ou em vias de consolidar-se. A
gestão social não possui um objeto que lhe é próprio ou uma clareza no qualitativo social que particularizaria a gestão. Tampouco
significa uma abordagem peculiar, que a distinguiria com clareza
de outros campos, mas, por outro lado, não dá par negar que há um
conjunto de temas que lhe são próprios, como a economia solidária
e a responsabilidade social, cujas existências vêm dando impulso à
gestão social neste processo de consolidação.
Como práticas e temáticas distintas se aproximaram e se identificaram sob a alcunha de gestão social foi objetivo de investigação
de Boullosa e Schommer (2008; 2010), que apresentaram a teoria
da institucionalização precoce da gestão social, que teria passado
de um processo de aprendizagem, calcado em muitas trocas entre
pessoas, ideias e percepções de lacunas e de oportunidades, a um
produto da aprendizagem2. Rapidamente, porém, numa passagem
quase contemporânea a anterior descrita pelas autoras, o que seria um produto de aprendizagem se transformou em produtos de
ensino e aprendizagem. Assim, a dinâmica de construção da gestão
1 Rosana de Freitas Boullosa é doutora em políticas públicas pela Università IUAV di Venezia e
professora adjunta da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia. Compõe o quadro permanente do programa de pós-graduação em gestão social, Ciags/Eaufba, é líder do grupo
de pesquisa Processos de Inovação e Aprendizagem em políticas públicas e gestão social, editora
da Revista NAU Social e coordenadora do projeto Observatório da Formação em Gestão Social.
2 Segundo Tenório (2009), a preocupação com o entendimento da gestão social tem marco inicial
em 1992, no Seminario Iberoamericano de Desarrollo de Profesores en Gerencia Social, organizado pela Red Iberoamericana de Instituciones de Formación em Gerencia Pública (CLADAECI/
INAP PNUD), em Santa Cruz de la Sierra (Bolívia), de 19 a 21 de agosto daquele ano. Naquele
momento, o conceito era muito mais voltado a explicações sobre a extensão universitária, porém,
abriu espaços para novas perspectivas de uma gestão concertada entre os diversos atores da sociedade (TENÓRIO, 2009, p.2).
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
Uma estrutura de observação para a formação em
gestão social
217
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
218
social vem sendo permeada, pontuada e modelada por diferentes
experiências de formação naquilo e daquilo que está sendo construído, ou seja, a própria gestão social. Mais do que um learning
by doing, temos vivido um doing by learning. Em palavras claras,
vamos aprendendo e construindo a gestão social à medida que vamos ensinando o que é esta tal de gestão social. E foi justamente
esta particularidade na dinâmica de construção da gestão social,
interdependente da dinâmica de construção da formação em gestão social, que deu origem e justificou a ideia de uma estrutura de
observação para a formação em gestão social.
O quadro da oferta de formação em gestão social é hoje bastante amplo. Para começar, conta com duas propostas de graduação, uma na Universidade Federal da Bahia, a primeira do país, desenhada e implementada como graduação tecnológica e, portanto,
de viés profissionalizante, e uma segunda na Universidade Federal
do Ceará/Campus Cariri. Ambas precisaram da interlocução oficial com o campo disciplinar da administração pública para terem
seus projetos institucionalmente aprovados, mas seus currículos
revelam suas claras intenções em gestão social. Além destes cursos específicos, são cada vez mais frequentes cursos de graduação
em universidades e centros universitários públicos e privados, que
ajudam a ilustrar a crescente capilaridade da oferta avulsa de disciplinas de gestão social no país e evidenciam a tendência à transformação de tais disciplinas em trilhas curriculares, que podem vir
a dar origem a novos cursos específicos de gestão social (ARAÚJO,
BOULLOSA e GLÓRIA, 2010).
Uma gama muito mais ampla distingue a oferta de formação
em gestão social em nível de pós-graduação, lato e stricto senso.
Há, por exemplo, o concorrido Mestrado Multidisciplinar e Profissional em Desenvolvimento e Gestão Social, promovido pelo Centro
Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão social (Ciags/Eaufba), na Bahia; o Mestrado Profissional em Gestão Social, Educação
e Desenvolvimento Local, oferecido pelo Centro Universitário UNA,
em Minas Gerais; a Especialização em Gestão Social, oferecida pelo
Sesi/Unidus/Unicemp, em São Paulo, dentre outros que também
oferecem o nome gestão social em seus diplomas de conclusão de
2. A proposta do Observatório
O Observatório da Formação em Gestão Social é um projeto de
pesquisa tecnológica que vem sendo desenhado e implementado,
desde meados de 2010, por quatro diferentes Universidades brasileiras: a Federal da Bahia (Ufba), a Federal do Ceará/Campus Cariri
(UFC/Cariri), a do Estado de Santa Catarina (Udesc) e Pontifícia Católica de São Paulo (PUC-SP), contando com o apoio e participação
de outras universidades e centros de pesquisa, no âmbito da Rede
Nacional de Pesquisadores em Gestão social (RGS).
O seu objetivo principal é constituir-se como um lócus para
discussão, sistematização, consolidação e expansão do campo da
Gestão Social, a partir de três eixos de observação e análise: (1)
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
curso. Além destes cursos específicos, há um grande número de
doutorados, mestrados acadêmicos e mestrados profissionais que
aceitam que teses e dissertações em/sobre gestão social sejam desenvolvidas e defendidas, como é o caso da Pontifícia Católica, em
São Paulo, da Fundação Getulio Vargas, no Rio de Janeiro, e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
As primeiras observações que subsidiaram a elaboração do
projeto do Observatório (BOULLOSA et alli, 2012) mostraram que o
conjunto da oferta de formação específica e não específica, além de
ser pouco articulado entre si, carregava consigo o gérmen da pluralidade da gestão social, oferecendo interpretações bem diferentes
sobre perguntas importantes, tais como: O que a gestão social tem
de próprio, o que lhe é peculiar ou que o não lhe pode faltar? A
gestão social possui um objeto conformar de um campo próprio? E
o que acontece quando trazemos estas perguntas para a formação
em gestão social? Como as diferentes aproximações disciplinares
reverberam sobre e ressignificam a formação em gestão social? Em
que medida a pluralidade epistemológica da gestão social se reflete
nas diferentes propostas de formação em curso pelo país? O que
pretendemos quando formamos gestores sociais? Há modos e tempos de produção de conhecimento próprios da formação em gestão
social? Em que medida a interdisciplinaridade pode modelar tal
formação?
219
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
220
Inovação, (2) Ensino- aprendizagem e (3) Avaliação. A estrutura
em três eixos foi desenhada para acolher, acompanhar, ajudar a organizar e explorar as principais questões e temáticas que vêm estimulando pesquisadores e professores a atuar e contribuir criticamente para com a formação em gestão social. Cada um dos eixos de
observação foi estruturado a partir de uma pergunta orientadora,
das quais derivam objetivos específicos.
(1) O Eixo Inovação, orientado pela pergunta “Quais as fronteiras e a natureza do que vem sendo ensinado como gestão social?”
e coordenado por uma parceria entre a UFC/Cariri e a Ufba, possui
como objetivos específicos:
(a) Mapear e classificar os conceitos de Gestão Social
trabalhados pela Ufba e universidades parceiras
e suas relações de complementaridade com
outros conceitos, tais como desenvolvimento,
desenvolvimento territorial, desenvolvimento
socioterritorial, gestão ambiental, gestão dos
problemas sociais, tecnologia social etc.;
(b) Mapear a oferta de formação em Gestão Social
em cursos de graduação e pós-graduação
(stricto e lato sensu) e disciplinas avulsas em
outros cursos de graduação e pós-graduação
nas universidades parceiras;
(c) Desenvolver uma bibliometria online da
Gestão Social, organizada pela Ufba, aberta à
comunidade interessada;
(2) O Eixo Ensino-Aprendizagem, orientado pela pergunta
“quais os traços definidores da relação ensino-aprendizagem em
Gestão Social?” e coordenado por uma parceria entre a Udesc e a
Ufba, possui como objetivos específicos:
(d) Mapear e classificar os projetos políticopedagógicos dos cursos de graduação e
pós-graduação que oferecem regularmente
formação em gestão social;
(e) Mapear e classificar as metodologias de ensino
(3) O Eixo Avaliação estrutura-se orientado pela pergunta “em
que medida a formação em Gestão Social consegue alterar as práticas profissionais de seus egressos?”. Coordenado por uma pareceria entre a PUC/SP e a Ufba, possui como objetivos específicos:
(g) Construir o perfil dos alunos que ingressam nos
cursos de graduação em gestão social;
(h) Avaliar os egressos dos cursos de graduação
e pós-graduação inteiramente voltados à
formação do gestor social;
(i)
Realizar observação do observatório (metaobservatório), para o controle e melhoria das
ações desenvolvidas e busca de alcance dos
próprios objetivos.
3. Os desafios e as primeiras conquistas
Desde a sua criação, o Observatório FGS vem enfrentando
os desafios de implementação de uma estrutura de observação
com muitos olhos e muitas mãos e com o desejo de que estes se
ampliem ainda mais. O modelo de gestão adotado é o de gestão
colegiada, com uma equipe de trabalho em cada uma das universidades parceiras, sob a batuta de coordenadores locais e de uma
coordenadoria geral, que hoje está na Ufba. Há projetos de diferentes agências de fomento que estão ajudando a implementar o
Observatório FGS, como o Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq)
e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia, além de
bolsas de iniciação científica e tecnológica das universidades parceiras. As equipes desenvolvem projetos próprios e projetos em
conjunto com outras universidades e formadoras deste Obser-
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
em Gestão Social, com particular atenção às
metodologias inovadoras, não convencionais
(GIANNELLA; MOURA, 2009) e integrativas;
(f) Catalogar e classificar os planos de ensino de
disciplinas que discutem a Gestão Social dentro
de outros cursos;
221
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
222
vatório FGS. Alguns projetos também são desenvolvidos entre as
quatro parceiras.
Dentre os projetos que estão sendo atualmente realizados,
além de trabalhos de conclusão de curso, dissertações de mestrado e teses de doutorado, que também são desenvolvidos no âmbito
deste Observatório FGS, destacam-se:
• Mapeamento quantitativo e qualitativo da evasão do curso de
graduação em gestão pública e gestão social da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia;
• Bibliometria da gestão social, que pretende indexar inicialmente toda a produção bibliográfica em gestão social produzida pelas universidades parceiras nos últimos cinco anos.
Inicialmente, foram pensados os seguintes critérios de classificação/entrada: (a) tipologia do produto científico ou tecnológico; (b) autoria; (c) ano de publicação; (d) local da publicação; (e) circulação; (f) filiação do autor; (g) titulação do autor;
(h) palavras-chave; dentre outros.
• Mapeamento da pluralidade interpretativa do conceito da
gestão social junto ao público de formadores e formandos em
gestão social, nos principais cursos oferecidos no país, sob a
coordenação de Edgilson Tavares de Araújo, que também desenvolve a sua tese de doutoramento na PUC/SP, no âmbito
deste Observatório FGS;
• Avaliação do perfil dos ingressos no curso de graduação em
gestão pública e gestão social da Escola de Administração da
Universidade Federal da Bahia;
• Glossário ou Dicionário da Formação em Gestão Social, que
está sendo elaborado a partir de um primeiro conjunto de verbetes que foram considerados pelos parceiros como próprios
da gestão social, sobretudo da formação em gestão social, envolvendo as quatro universidades parceiras;
• Análise dos projetos político-pedagógico dos cursos que oferecem formação específica em gestão social, a partir de dois
sub-eixos de análise: (a) diretrizes político-pedagógicos e
(b) hipótese de contexto. Estes sub-eixos já foram discutidos
e amadurecidos em duas Oficinas: uma primeira no III ENA-
Por último, entendemos que a observação e análise do conjunto da oferta de formação em gestão social devam ser realizadas
prestando muita atenção ao contexto no qual o conhecimento é
produzido e pretende ser difundido. Nesta mesma perspectiva, as
propostas de formação superior também se desenvolvem no plano social, como as experiências sobre as quais este Observatório
se debruça. Qualquer possibilidade de oferta formativa, tanto em
nível de graduação quanto de pós-graduação, contém, ainda que
implicitamente e precariamente, uma resposta ao problema para
que vamos ensinar? Os processos de formação acontecem em uma
sociedade por meio de grupos sociais que possuem visões distintas, do que é possível chamar de finalidades educativas. Portanto,
pressupõe certo posicionamento sobre a relação entre homem e sociedade que irá sustentar o projeto e as técnicas pedagógicas, bem
como delimitar aquilo que se define como currículo. Entende-se
neste processo que o currículo é escolha e opção, determinadas por
fatores pessoais (visões de mundo e concepções teóricas daqueles
que constroem as propostas), institucionais e políticos (interesses
das instituições formadoras) (BOULLOSA et alli, 2009).
O conceito de currículo proposto por Macedo (2008), por
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
PEGS (Petrolina-Juazeiro, 2009) e uma outra no XI Colóquio
sobre o Poder Local (Salvador, 2009).
• Catalogação dos planos de ensino de disciplinas avulsas na
temática da gestão social, junto às universidades parceiras.
Inicialmente, estamos trabalhando em três linhas para análise dos planos de ensino: Conteúdo programático: constituído
pela ementa da disciplina, sequencia de conteúdos proposta
pelo professor responsável, bem como a bibliografia básica indicada para os respectivos conteúdos; Metodologias inovadoras: atividades inovadoras de ensino-aprendizagem pensadas
no plano, tais como os métodos de avaliação, atividades práticas entre outras; Informações gerais: constituídas pela carga
horária da disciplina, nome, titulação, ano da última titulação
e formação do professor, enquadramento da disciplina na grade curricular (se obrigatória, eletiva ou tópicos especiais).
223
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
224
exemplo, de modo abrangente e priorizando a intercriticidade a
que deve possuir. Com ele, compreendemos currículo como uma
tradição inventada, como um artefato socioeducacional que se
configura nas ações de conceber / selecionar / produzir, organizar,
institucionalizar, implementar / dinamizar, avaliar conhecimentos
e atividades, visando dada formação, configurada por processos
e construções constituídos na relação com o conhecimento eleito
como educativo. Pode-se entender, portanto, que o currículo é o conhecimento eleito como formativo para o indivíduo, neste caso, o
gestor social. Aqui aparece uma preocupação com possíveis contradições que possam existir quanto a este conhecimento, que a priori,
pode visar a ampliação do público. Há uma relação intimista entre
currículo e formação, aqui entendida como a construção de qualificações, em geral constituídas na relação com o conhecimento eleito
como formativo. Como uma construção social e articulado de perto
com outros processos e procedimentos pedagógico-educacionais, o
currículo atualiza-se, ou seja, os atos de currículo, de forma ideológica e, neste sentido, veicula uma formação ética, política, estética
e cultural, nem sempre explícita (âmbito do currículo oculto), nem
sempre coerentes (âmbito dos dilemas, das contradições, das ambivalências, dos paradoxos), nem sempre absoluta (âmbito das derivas, das transgressões), nem sempre sólida (âmbito dos vagamentos e brechas) (MACEDO, 2007, p. 25).Tal concepção de currículo
aos processos formativos em gestão social é plenamente aplicável
na medida que questiona a existência de ambiguidades e ambivalências que certamente se situam no âmbito oculto, dos dilemas,
contradições, transgressões, vagamentos e brechas existentes.
Com algumas palavras para concluir, já nos parece possível
inferir alguns dos elementos nas institucionalizações disciplinares
sobre os conteúdos escolhidos como formativos para os gestores
sociais. Isso leva a uma inflexão revolucionária: o que os processos de formação (e seus currículos) em gestão social têm feito com
os gestores sociais? Quais conteúdos e modos de aprendizagem da
gestão social são necessários para a ampliação do público e resgate do homem público? Boullosa et all (2009) apontam que a construção dos currículos em gestão social possuem focos distintos:
Referências
ARAÚJO, E.T.; BOULLOSA, R.F.; GLÓRIA, A.C. F. Tão Longe, Tão Perto: Reflexões sobre a Relação entre Gestão Social e Serviço Social como Possibilidade da Inovação e Aprendizagem. In: PEREIRA, J. R. (Org.); CANCADO,
A. C. (Org.); SILVA JUNIOR, J. Torres (Org.); RIGO, A. S. (Org.). Gestão Social
e Gestão Pública: Interfaces e Delimitações. 1. ed. Lavras: Editora UFLA,
2011. v. 1,. 298 p.
BOULLOSA, R.F.; SCHOMMER, P. C. Gestão Social: Caso de Inovação em Políticas Públicas ou mais um Enigma de Lampedusa. In: Rigo, A.S.; SILVA Jr,
J.T.; SCHOMMER, P.C; CANÇADO, A.C.. (Org.). Gestão Social e Políticas Públicas de Desenvolvimento: Ações, Articulações e Agenda. 1 ed. Juazeiro/
BA-Petrilina/PE: Universidade Federal do Vale do São Francisco, 2010, v.
3, p. 63-92;
BOULLOSA, R.F. e SCHOMMER , P.C. Limites da Natureza da Inovação ou Qual
o Futuro da Gestão Social? Anais do XXXII ENANPAD Encontro Nacional de
Pós-Graduação e Pesquisa em Administração. Rio de Janeiro: Anpad, 2008;
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
quanto à agregação de conteúdos com base no idealizado perfil de
competências do gestor social; o anseio de inovar conceitual e empiricamente como forma de solidificar o campo; e as tentativas de
inovação em termos de estratégias de ensino. Deste modo, os projetos pedagógicos vêm se configurando como modelos em testagem,
contemplando ou pelo menos tangenciando, algumas das questões
relacionadas, por exemplo, à representação prática do cidadão-gestor social que se deseja formar.
Qualquer proposta formativa carrega consigo o enunciado de
interpretações sobre o presente das relações sociais, assim como
um projeto de fruto social, mesmo quando suas estruturas já perderam grande parte de sua clareza ou transformaram-se em mosaicos
curriculares, cujas pátinas são difíceis de serem resgatadas. Nesta perspectiva, a recente trajetória da formação em gestão social
apresenta-se como fecunda oportunidade de pesquisa ativa para o
desenvolvimento do seu próprio objeto de investigação. Esperamos
com isto que o Observatório, é o que desejamos, consiga realmente
funcionar como uma meta arena discursiva de atores institucionais
que cada vez mais investem recursos cognitivos, econômicos, materiais etc. na oferta de percursos formativos em gestão social.
225
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
226
BOULLOSA, R.F. et all. Avaliação participativa de propostas e práticas pedagógicas na formação em gestão social: descobrindo olhares e construindo novos horizontes de pesquisa. In In: ENAPEGS - Encontro Nacional de
Pesquisadores em Gestão Social, III Anais..., LIEGS: Petrolina (PE) e Juazeiro (BA), 2009;
BOULLOSA, R.F; SCHOMMER, P.; GIANNELLA, V.; JUNQUEIRA. L. Observatório da Formação em Gestão Social: inovação, ensinoaprendizagem e avaliação. Nau Social , v. 02, p. 169-183, 2011;
GIANNELLA, V.; MOURA, M. S. Gestão em rede e Metodologias não Convencionais para a Gestão Social. 1. ed. Salvador: CIAGS-UFBA, 2009. v. 500.
100 p.;
MACEDO, R. S.. Currículo - campo, conceito e pesquisa .1. ed. Petrópolis:
Vozes, 2007;
SCHOMMER, P.; BOULLOSA, R. F. . Com quantas andorinhas se faz um verão? Práticas, relações e fronteiras de aprendizagem. In: Schommer, P.C.;
Santos, I. G. (Org.). Aprender se aprende aprendendo: construção de saberes na relação entre universidade e sociedade. 1 ed. Salvador: CIAGS/
UFBA, FAPESB; SECTI; CNPq, 2009, v. 1, p. 19-44;
TENÓRIO, F. G. (Re)visitando o conceito de gestão social. In: SILVA JR; J.
MÂSIH, R. T.; CANÇADO, A.C.; SCHOMMER, P. C. Gestão Social. Práticas em
debate, teorias em construção. LIEGS/UFC: Juazeiro do Norte CE, 2009, p.
37-57.
227
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
Ladislau Dowbor2
O Brasil está partindo, nesta segunda década do milênio, de
um novo patamar. Resistiu de forma impressionante à maior crise
financeira desde 1929, e está apontando rumos baseados fundamentalmente no bom senso, e numa visão equilibrada dos interesses econômicos, das necessidades sociais, e dos imperativos ambientais. A visão econômica tradicional, presa às simplificações do
Consenso de Washington, envelheceu de repente e não corresponde aos desafios de uma sociedade moderna e complexa, que tem de
buscar novas articulações de política econômica, social e ambiental.
Constatamos hoje que a presença de um forte setor estatal não
é um estorvo, é um suporte fundamental. A regulação das finanças não implica burocratização, é uma proteção necessária contra
a irresponsabilidade. Assegurar melhores salários e direitos aos
trabalhadores não é demagogia, é a forma mais simples e direta
de gerar demanda e uma conjuntura favorável. Apoiar os mais pobres da sociedade não é assistencialismo, é justiça, bom senso, e
dinamiza a economia pela base. Investir nas regiões mais pobres
não é um sacrifício, prepara novos equilíbrios ao gerar economias
externas para futuros investimentos. Fazer políticas sociais não é
um “bolo” que se divide, pois é o investimento na pessoa que mais
gera dinâmicas econômicas, como já analisava Amartya Sen. Apoiar
movimentos sociais não é distribuir benesses, é dar instrumentos
de trabalho a organizações que conhecem profundamente a realidade onde estão inseridas, e apresentam flexibilidade e eficiência
nas suas áreas específicas. Fazer política ambiental não “atrasa” o
progresso, pois muito mais empregos geram as alternativas energéticas e o apoio à policultura familiar, do que extrair petróleo e des1 Documento elaborado como insumo para a discussão no Conselho de Desenvolvimento
Econômico e Social – CDES (www.cdes.gov.br), em abril de 2010.
2 Ladislau Dowbor é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e
Estatística de Varsóvia, professor titular da PUC de São Paulo e consultor de diversas agências das Nações Unidas. Seus numerosos trabalhos sobre planejamento econômico e social
estão disponíveis no site http://dowbor.org
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
Brasil: um outro patamar1 - propostas de estratégia
229
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
230
matar para buscar lucros de curto prazo. Manter uma sólida base
de impostos, não é “tirar da população”, é assegurar contrapesos
indispensáveis para o desenvolvimento equilibrado do país.
A constatação dos avanços não implica subestimação dos desafios. O contexto internacional continua instável, com boa parte dos
desequilíbrios do sistema financeiro privado dos países desenvolvidos simplesmente transformada em desequilíbrios públicos, gerando déficits impressionantes. Os desafios sociais, em que pesem
os grandes avanços dos últimos anos, continuam imensos, exigindo
iniciativas mais abrangentes. O conjunto do sistema tributário ainda aguarda uma revisão em profundidade, buscando maior racionalidade e justiça na captação, e maior eficiência e redistribuição
na alocação orçamentária. A modernização e o resgate da dimensão
pública do Estado ainda aguardam uma reforma política cada vez
mais premente. As políticas ambientais precisam ser consolidadas
e absorvidas na cultura tanto da administração pública, como das
empresas e do comportamento do consumidor. De certa forma, os
rumos tornaram-se mais claros, e a confiança da sociedade aumentou ao ver que os resultados os confirmam. Mas são etapas de uma
construção que exige um constante repensar das estratégias.
Um eixo chave a se considerar, é o aproveitamento racional
dos potenciais impressionantes que o país possui, e a sua conjugação com os novos desafios ambientais. Temos a maior reserva de
solo agrícola parado do planeta, uma das maiores reservas de água
doce, temos clima e mão de obra, isto numa época em que a pressão
por alimentos e biocombustíveis aumenta por toda parte. E o Brasil hoje domina tecnologias de ponta nesta área. Tem uma matriz
energética invejável numa época em que a mudança do paradigma
energético-produtivo está se tornando peça chave da construção do
futuro. Tem a médio prazo eventos internacionais que o projetam
mais ainda no cenário mundial. A disponibilidade maior do petróleo abre novas perspectivas. Juntando estes e outros fatores, se o
país conseguir evitar a tentação de mais um ciclo agroexportador,
ou o uso apressado dos novos recursos, e souber proteger o seu
meio ambiente e aprofundar a construção de um novo equilíbrio
social, a continuação do círculo virtuoso tem boas perspectivas. Em
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
grande parte o futuro dependerá de como o Brasil administrará a
equação da produção, do emprego, da renda e do meio ambiente.
O Brasil tem aberto novos caminhos, mas os desafios são grandes.
Não basta ter rumos, é preciso conseguir resultados. Imensa
importância tem a lenta construção de formas mais democráticas
de tomada de decisões. Frente ao peso político dos grandes grupos
econômicos e das elites tradicionais a eles aliadas, o governo tem
assegurado uma política de equilíbrios, buscando estimular a economia e assegurar as contrapartidas em termos sociais, e cada vez
mais em termos ambientais. Os programas simplesmente funcionam, e funcionam porque são negociados, assegurando uma base
razoável de apoio político. Mas também funcionam, no caso dos
grandes programas sociais, porque no primeiro e segundo escalão
técnico, que são as pessoas que carregam efetivamente o peso da
gestão, estão pessoas que em geral vêm dos movimentos sociais, e
conhecem efetivamente os problemas, sabem que tipo de parcerias
têm de ser organizadas, entendem de mobilização em torno aos
programas. Os movimentos sociais têm um papel vital nestes processos, e crescente no futuro. Com todas as dificuldades, gerou-se,
entre os diversos setores, uma cultura da negociação, da pactuação,
do respeito aos interesses nucleares dos diferentes segmentos.
A visão desenhada no presente texto obedece a certas definições conceituais que se consideram adquiridas, e fazem parte do
ideário básico que vem se cristalizando no país. Assim, antes de
tudo, estaremos distinguindo o conceito de crescimento econômico, na visão estreita de dinamização do produto interno bruto, do
conceito de desenvolvimento que envolve a progressão equilibrada
nos planos econômico, social, ambiental e cultural. O conceito de
sustentabilidade, aqui utilizado, refere-se à sustentabilidade ambiental, na definição clássica do Relatório Brundtland, de resposta
às necessidades presentes sem comprometer as das gerações futuras. O conceito de desenvolvimento local ou regional não se refere
a uma opção por uma unidade particular como o município, mas às
complexas articulações territoriais que exigem os programas que,
em última instância, exercem o seu impacto em espaços geográficos concretos. O conceito de planejamento não se refere a algum
231
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
232
tipo de planejamento central autoritário, mas aos processos pactuados de definição de programas estruturais que permitem reforçar
na gestão governamental a visão sistêmica que ultrapassa os cortes setoriais, e a visão de longo prazo que assegura a continuidade
entre ciclos de gestão governamental. O conceito de governança é
aqui utilizado no sentido amplo da gestão que envolve tanto a máquina governamental propriamente dita, como as articulações com
o conjunto de atores sociais organizados que participam do processo decisório e impactam os rumos do desenvolvimento.
Não se trata aqui de elaborar um plano no sentido tradicional,
que nos levaria a apresentar propostas para todos os setores, inclusive à política de esportes, à política florestal e assim por diante,
com todos os projetos. O presente documento tem dimensões muito limitadas, e busca desenhar em grandes traços o novo referencial, tanto nacional como internacional, que incide sobre os rumos
desta década. Na parte propositiva, e buscando capitalizar acúmulos anteriores, privilegiou-se os eixos de ação que podem ser considerados “estruturantes” pelo peso sistêmico nas mudanças que
estão ocorrendo no país. Isto envolve tanto uma visão para o futuro,
como no caso das políticas tecnológicas que estão adquirindo peso
determinante no planeta, como a correção dos desequilíbrios herdados que pesam sobre o conjunto e precisam de correção acelerada, como a inclusão produtiva. Não haverá texto desta amplitude
que recolha a unanimidade das visões, nem que responda a tantos
interesses específicos. A lista de coisas a fazer é grande. O que se
busca aqui é uma visão articulada dos principais eixos que ajudarão
a dinamizar o conjunto.
O texto que segue resume de forma ampla um conjunto de
discussões que há cinco anos vem se desenvolvendo no CDES, refletindo o amplo espectro de participantes, mas também os numerosos documentos, propostas e resoluções que têm sido discutidas
com os mais variados setores da sociedade, além de consultas com
especialistas das principais áreas de atividade. Há uma forte convergência no conjunto das visões, ainda que muita diversidade nas
propostas. Recolhemos aqui as que nos pareceram mais contribuir
para uma visão sistêmica coerente, e privilegiando a visão de con-
I – UM NOVO PATAMAR
1. O novo contexto internacional: riscos e oportunidades
2. Um novo modelo: o caminho do bom senso
3. A política macroeconômica: pragmatismo e flexibilidade
4. Os resultados: bases para uma nova expansão
Não há dúvida que estão soprando bons ventos. Há um clima
de confiança que está se generalizando. Aqui não há vencedores
nem vencidos. A melhor imagem é a de uma boa maré, que levanta
todos os barcos. Para além do detalhe das propostas para o país nos
diversos setores, esta é a visão: um Brasil que se desenvolve, com a
participação de todos, de maneira sustentável, e por meio de decisões democraticamente negociadas.
1. O novo contexto internacional: riscos e
oportunidades
A crise financeira internacional de 2008 marcou um divisor de
águas. As grandes simplificações relativas à dicotomia entre Estado
e mercado, com o seu peso ideológico, deram lugar a atitudes de
bom senso, de pragmatismo de resultados, de busca de equilíbrios.
De certa forma, inovar em política voltou a ser legítimo. Este pensar de maneira inovadora é hoje essencial. No plano internacional,
a crise não desaparece. Um PIB mundial de 60 trilhões de dólares,
e 860 trilhões de dólares em papéis emitidos, gera instabilidade.
Os déficits do setor especulativo privado foram transformados em
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
junto. Buscamos também evitar a tentação de um texto que de tão
geral e prudente, pouco significa.
Para efeitos de sistematização, e evitando um texto demasiado
burocrático, dividimos a apresentação em duas partes: a primeira trata do novo patamar de desenvolvimento que de certa forma
constitui o referencial das mudanças ocorridas durante a última
década, e aponta os ajustes necessários. A segunda se concentra na
estratégia de desenvolvimento que permitirá ampliar as dinâmicas
apresentadas na Agenda Nacional de Desenvolvimento anterior.
233
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
234
déficit público, perda de aposentadorias e desemprego, e tanto os
Estados Unidos como a Europa têm pela frente a busca de novos
mecanismos de equilíbrio. Não se configura um horizonte estável e
equilibrado no planeta. Para o Brasil, a diversificação das relações
externas, com ênfase no Sul-Sul e na integração latino-americana,
deve continuar prioritária.
No plano financeiro, o patamar do Brasil é hoje radicalmente
diferente. Com 35 bilhões de dólares de reservas em 2002, o país
estava à mercê de ataques especulativos. Hoje, com 250 bilhões em
reservas, credor e não mais devedor do FMI – fato que financeiramente não é essencial mas é importante em termos simbólicos - diversificação comercial, e melhor equilíbrio entre o mercado interno
e externo, o país tornou-se uma referência internacional. A forma
como se manobrou entre os escolhos da crise financeira de 2008,
inclusive com multinacionais repatriando grandes volumes de recursos das filiais para salvar as suas matrizes, passou a ser vista no
mundo como uma prova de que bom senso e pragmatismo rendem
mais do que as simplificações ideológicas. Isto gerou confiança, que
permite hoje ao Brasil inclusive fazer exigências aos capitais que
entram. O sucesso gera sucesso.
No plano comercial, uma população mundial que aumenta
em 70 milhões de habitantes por ano, com ampliação do consumo,
além do reforço pela opção por biocombustíveis, devem manter a
tendência para uma demanda forte por commodities. O Brasil, com
a maior reserva mundial de solo agrícola parado, e 12% da reserva
mundial de água doce, tem aqui trunfos excepcionalmente fortes.
Mas deverá entrar cada vez mais em cena o problema da regulação
internacional dos preços das commodities, hoje mais dependentes
dos movimentos dos capitais especulativos do que propriamente
do equilíbrio de oferta e demanda. Como exemplo, o comércio mundial de petróleo é de 85 milhões de barris por dia, e as trocas especulativas (papéis) diárias atingem 3.000 milhões de barris. O Brasil
tem um forte papel a desempenhar na promoção de mecanismos de
regulação nesta área.
Em termos geoeconômicos, a tendência é para um deslocamento da bacia do Atlântico para a bacia do Pacífico, com os fortes
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avanços da China e da Índia, que representam 40% da população
mundial, e de demais países hoje muito dinâmicos como a Coréia
do Sul e o Vietnã, ou simplesmente fortes como o Japão. Isto representa desafios estruturais para o Brasil. É de se lembrar aqui
que, enquanto os Estados Unidos realizaram a conexão ferroviária
Atlântico-Pacífico em 1890, nós ainda sequer temos uma conexão
adequada por rodovia. O deslocamento favorecerá tanto uma orientação mais integradora de infraestruturas na América Latina, como
melhor equilíbrio de ocupação e uso do território no Brasil, ainda
fortemente atlântico na demografia e na economia. O oeste, para
nós, adquire nova importância.
Outro fator essencial do novo contexto internacional é a crescente presença dos desafios ambientais no planeta. Enquanto a crise financeira internacional migrou dos bancos para os ministérios,
e saiu das manchetes de jornais, a realidade da mudança climática,
da liquidação da vida nos oceanos pela sobrepesca oceânica industrial, a destruição das matas (particularmente importantes no Brasil e na Indonésia), a erosão dos solos, a contaminação generalizada dos rios, dos lençóis freáticos e dos mares, geram preocupações
que, independentemente dos resultados de Copenhague, exigem
uma inclusão mais generalizada da visão da sustentabilidade ambiental em todas as decisões de políticas de desenvolvimento, tanto
no setor público como no privado. O Brasil tem como se situar com
vantagem neste plano, e deverá desempenhar um papel importante
na Cúpula Mundial do Meio Ambiente de 2012 “Rio +20”.
No plano social, as preocupações são igualmente crescentes.
Com a explosão especulativa na área dos grãos, a fome no mundo
passou de 900 milhões para 1020 milhões de pessoas. De fome e
outras causas absurdas morrem 10 milhões de crianças. A Aids já
matou 25 milhões de pessoas. O Banco Mundial estima em 4 bilhões
o número de pessoas no mundo que estão “fora dos benefícios da
globalização”. São situações insustentáveis. O equilíbrio social das
políticas econômicas está adquirindo uma grande centralidade no
planeta, e o Brasil, que mostrou durante os últimos anos a viabilidade de políticas que equilibram os objetivos econômicos e sociais,
adquire aqui uma legitimidade excepcional.
235
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
236
No plano político, frente a uma economia que se globalizou em
grande parte, estão começando apenas agora a se construir espaços de concentração internacional. Encerra-se, de certa maneira, a
fase de monopólio de poder pelos Estados Unidos e de forma geral
dos países desenvolvidos. Os BRICs começaram a ocupar o espaço
político internacional, o G-20 começa a abrir um espaço regular de
negociação, e o Brasil em particular assume uma forte presença internacional devida em grande parte ao modelo econômico, social e
ambiental inovador e equilibrado que desenvolve, e que está simplesmente dando certo. O aprofundamento destas políticas, cuja
tecnologia organizacional deu aqui grandes passos, deve marcar os
próximos anos, e reforça o papel internacional do país.
Em termos de novo contexto internacional, a integração latino-americana está adquirindo um papel crescente. Esta política, é
preciso dizê-lo, se caracterizou no passado mais pela criação de siglas do que de fatos, enquanto predominava a articulação de cada
país com grupos particulares de interesses norte-americanos. Hoje
se constata avanços no plano das instituições, de mecanismos de financiamento, de infraestruturas (ainda incipientes), de codificação
das migrações, da própria academia. O Brasil tem um papel fundamental a exercer por razões tanto do seu peso específico, como
pelas inovações políticas que tem desenvolvido e por haver tantas
coisas em comum em termos dos dramas sociais herdados. A América Latina está adquirindo identidade.
Um último ponto essencial decorre dos avanços tecnológicos,
e em particular na área das tecnologias de informação e comunicação. O papel do acesso ao conhecimento, o barateamento das
infraestruturas e dos equipamentos individuais, a generalização
da conectividade planetária, a ampliação do acesso aos conhecimentos de todo o planeta, o surgimento de inúmeras atividades
econômicas na chamada sociedade do conhecimento – todas estas
mudanças estão se mostrando muito mais aceleradas do que previsto. Se no século passado os grandes embates políticos se davam
em torno da propriedade dos meios de produção, na era da nova
economia o acesso ao conhecimento e a definição dos seus marcos
legais tornam-se questões centrais. No caso do Brasil, o salto para
2. Um novo modelo: o caminho do bom senso
O Brasil optou pelo enfrentamento da desigualdade como seu
eixo estratégico principal. A materialização da estratégia se deu
através da ampliação do consumo de massa. A visão enfrentou fortes resistências no início, mas os efeitos multiplicadores foram-se
verificando no próprio processo de ampliação das políticas. Com
a visão de bom senso de que o principal desafio do Brasil, a exclusão econômica e social de quase a metade da sua população, podia
ser um trunfo, o país encontrou um novo horizonte de expansão no
mercado interno. A crescente pressão da base da pirâmide social
brasileira por melhores condições de vida, articulada com a determinação do governo de promover as mudanças, gerou um círculo
virtuoso em que o econômico, o social e o ambiental encontraram
o seu campo comum.
Os avanços sociais sempre foram apresentados no Brasil como
custos, que onerariam os setores produtivos. As políticas foram tradicionalmente baseadas na visão de que a ampliação da competitividade da empresa passa pela redução dos seus custos. Isto tem
duas vertentes. Enquanto a redução dos custos pela racionalização
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a economia do conhecimento pela generalização da banda larga e
outras formas de acesso ao conhecimento abre importantes perspectivas de inclusão produtiva e melhoria de qualidade de vida. O
desafio é cobrir o hiato entre estes desafios tecnológicos e o atraso
educacional no plano interno, para ocupar o espaço correspondente no plano internacional.
No conjunto, o Brasil desempenha hoje na cena internacional
um forte papel como parceiro adulto, portador não só da sua força
econômica e riqueza cultural, mas também de propostas práticas
e de bom senso no enfrentamento dos principais desafios sociais
e ambientais, e de solidariedade com países em dificuldades. A
confiabilidade e o respeito angariados não só ampliam o espaço
de manobra do país, como se refletem fortemente, como se notou
no caso da aprovação da Copa e das Olimpíadas, no sentimento de
confiança em si no conjunto da população. Neste plano, o país parte
realmente de outro patamar.
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| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
238
do uso dos insumos e pelo aproveitamento das novas tecnologias
produtivas e organizacionais é essencial, pelo avanço de produtividade que permite, a redução de custos pelo lado da mão de obra
reduz o mercado consumidor no seu conjunto, e tende a ter o efeito
inverso. Ao reduzir o mercado consumidor, limita a escala de produção, e mantém a economia na chamada “base estreita”, de produzir pouco, para poucos, e com preços elevados.
É importante lembrar que faz todo sentido, para uma empresa
individual, achar que com menos direitos sociais ou menores salários poderia reduzir os seus custos, tornando-se inclusive mais
competitiva relativamente aos seus concorrentes. Mas a aplicação
desta visão ao conjunto das empresas resulta em estagnação para
todos. Em termos práticos, o que faz sentido no plano microeconômico, torna-se assim um entrave em termos mais amplos, no
plano macroeconômico. As políticas redistributivas aplicadas de
forma generalizada, atingindo, portanto, o conjunto das unidades
empresariais, geram também mercados mais amplos para todos,
reduzindo custos unitários de produção pelas economias de escala,
o que por sua vez permite a expansão do consumo de massa, criando gradualmente um círculo virtuoso de crescimento. Se sustentada por mais tempo, esta política passa a pressionar a capacidade
produtiva, estimulando investimentos, que por sua vez geram mais
empregos e maior consumo. A expansão simultânea da demanda e
da capacidade produtiva promove desenvolvimento sem as pressões inflacionárias de surtos distributivos momentâneos. A espiral
de crescimento passa a ser equilibrada. E a verdade é que os setores, que estagnam em termos salariais e de direitos sociais, também
tendem a se acomodar em termos de inovação em geral.
Esta compreensão dificilmente se generaliza com explanações
teóricas apenas. No entanto, a constatação de que funciona quando
aplicada de maneira sustentada, e que viabiliza os negócios de cada
um, convence muita gente, que vê os resultados práticos. De certa
forma, o Brasil encontrou o seu rumo ao transformar o seu maior
desafio, a pobreza, e a falta de capacidade de compra que a acompanha, em vetor de expansão do conjunto da economia. A distribuição, ao estimular a demanda, é que faz crescer o bolo.
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
Uma segunda mudança, também ditada pelo bom senso, encontra-se na ampliação das políticas sociais em geral, envolvendo
a educação, a saúde, a formação profissional, o acesso à cultura e à
internet, à habitação mais digna. Aqui também está se invertendo
uma visão tradicional. A herança teórica, das simplificações neoliberais, é de que quem produz bens e serviços, portanto o setor produtivo privado, gera riqueza. Ao pagar impostos sobre o produto
gerado, viabiliza as políticas sociais, que representariam um custo.
Deveríamos portanto, nesta visão, maximizar os interesses dos produtores, o setor privado, e moderar as dimensões do Estado, o gastador. A realidade é diferente. Quando uma empresa contrata um
jovem engenheiro de 25 anos, recebe uma pessoa formada, e que
representa um ativo formidável, que custou anos de cuidados, de
formação, de acesso à cultura geral, de sacrifícios familiares, de uso
de infraestruturas públicas as mais diversas, de aproveitamento do
nível tecnológico geral desenvolvido na sociedade. As políticas sociais não constituem custos, são investimentos nas pessoas. E com
a atual evolução para uma sociedade cada vez mais intensiva em conhecimento, investir nas pessoas é o que mais rende. A compreensão de que os processos produtivos de bens e serviços e as políticas
sociais em geral são como a mão e a luva no conjunto da dinâmica
do desenvolvimento, um financiando o outro, sendo todos ao mesmo tempo custo e produto, aponta para uma visão equilibrada e
renovada das dinâmicas econômicas.
Um terceiro elemento chave é a política ambiental. A visão
tradicional amplamente disseminada apresenta as exigências da
sustentabilidade como um freio à economia, empecilho aos investimentos, entrave aos empregos, fator de custos empresariais mais
elevados. Trata-se aqui simplesmente de uma conta errada, e amplamente discutida já em nível internacional, com a refutação do
argumento da externalidade. Fazer o pré-tratamento de emissões
na empresa, quando os resíduos estão concentrados, é muito mais
barato do que arcar depois com rios e lençóis freáticos poluídos,
doenças respiratórias e perda de qualidade de vida. Para a empresa ou uma administração local, sai realmente mais barato jogar os
dejetos no rio, mas o custo para a sociedade é incomparavelmen-
239
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240
te mais elevado. Desmatar a Amazônia gera emprego durante um
tempo, mas não o mantém, a não ser com a progressão absurda da
destruição. Aprofundar os investimentos em saneamento básico,
em contrapartida, gera empregos, reduz custos de saúde, e aumenta a produtividade sistêmica. Investir em tecnologias limpas tende
a promover os setores que serão mais dinâmicos no futuro e melhora a nossa competitividade internacional. E ao tratar de maneira
sustentável os nossos recursos naturais, capitaliza-se o país para as
gerações futuras, em vez de descapitalizá-lo. Fator igualmente importante, na economia global moderna, uma política coerente em
termos ambientais gera credibilidade e respeito nos planos interno
e internacional, o que por sua vez abre mercados. A verdade é que
a política ambiental ganhou nestes anos uma outra estatura, e se
incorpora na nova política econômica que se desenhou no país.
Um quarto eixo de política econômica encontra-se no resgate
da capacidade de planejamento das infraestruturas do país. Boas
infraestruturas, ao baratearem o acesso ao transporte, comunicações, energia, água e saneamento, geram economias externas para
todos e elevam a produtividade sistêmica do território. O custo tonelada/quilômetro do transporte de mercadorias no Brasil é proibitivo, pois transportar soja e outros produtos de relação peso/
valor relativamente baixo, em grandes distâncias, por caminhão,
gera sobrecustos para todos os produtores. O resgate do transporte
ferroviário, a reconstituição da capacidade de estaleiros navais e
de transporte de cabotagem, a priorização do transporte coletivo
nas metrópoles, o barateamento do acesso a serviços de telecomunicações e de internet banda larga, a busca da produtividade na
distribuição e uso de água e em particular no destino dos esgotos,
o reforço das fontes renováveis na matriz energética, conformam
uma visão que pode abrir um imenso caminho de avanço para o
conjunto das atividades econômicas. O planejamento e a forte presença do Estado são aqui essenciais. As infraestruturas constituem
grandes redes que articulam o território. Constituem neste sentido
um dos principais vetores de redução dos desequilíbrios regionais
do país precisam, por exemplo, ser ampliadas nas regiões mais
pobres, para dinamizar e atrair novas atividades, e são políticas
3. A política macroeconômica: pragmatismo e flexibilidade
Um dos pontos mais fortes da ampliação das perspectivas de
desenvolvimento está na estabilização de um modelo de gestão
macroeconômica. Neste plano também estamos frente a um novo
patamar. Trata-se aqui do equilíbrio nas políticas de salários, de
preços, de crédito, de câmbio, de previdência, de investimentos e
de arrecadação. Tecnicamente complexa, e foco de pressões constantes, a política macroeconômica no Brasil obedecia a uma visão
neoliberal sofisticada em termos teóricos, mas que resultava ao fim
e ao cabo em baixo crescimento e injustiça social, sempre com tom
de seriedade e austeridade. A contenção salarial e os altos juros
seriam justificados como instrumentos de proteção do povo contra a inflação. Esta área da economia sofre de um pecado original:
poucas pessoas a entendem, e encontra-se portanto pouco sujeita
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
públicas que podem arcar com este tipo de investimento de longo prazo justamente nas regiões onde não geram lucros imediatos.
Isto envolve planejamento, visão sistêmica e de longo prazo. As metrópoles brasileiras estão se paralisando por excesso de meios de
transporte e insuficiência de planejamento. O resgate desta visão e
a dinamização de investimentos coerentes com as necessidades do
território constituem um trunfo para o desenvolvimento e deverão
desempenhar um papel essencial nesta década.
Assim, políticas distributivas ancoradas numa visão de justiça
social e de racionalidade econômica, a ampliação dos investimentos nas pessoas através das políticas sociais focalizadas, a gradual
incorporação das dimensões da sustentabilidade ambiental no conjunto dos processos decisórios de impacto econômico, e a dinâmica de investimentos de infraestruturas que tanto reduzem o custo
Brasil através das economias externas como melhoram a competitividade internacional, conformam um modelo que, em clima democrático e de paz social, está abrindo novos caminhos. Ter um modelo que não apenas faz sentido teórico, mas funciona, e convence
grande parte dos atores econômicos e sociais do país, é um trunfo
importante.
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242
a escrutínio democrático. E o passado inflacionário deixou marcas
no inconsciente coletivo.
Em termos resumidos, a política adotada pode se resumir na
expansão da economia pela inclusão progressiva da base da pirâmide social, o que aumenta a demanda agregada, o que por sua vez
gera emprego, investimentos e maior demanda, levando o conjunto
a uma espiral virtuosa de desenvolvimento. O nó da política macroeconômica está no equilíbrio das diferentes variáveis, tanto em termos de montantes como de ritmo. A política adotada caracterizou-se por uma grande flexibilidade e rapidez de resposta às mudanças
das tendências nacionais e internacionais, uma boa dose de pragmatismo, e a busca de equilíbrios entre os interesses envolvidos.
Em termos práticos, a fase inicial, de 2003 a 2005, caracterizou-se por reajustes macroeconômicos ortodoxos, visando tranquilizar os agentes econômicos quanto à estabilidade das regras do
jogo, cumprimento dos compromissos financeiros, contenção das
pressões inflacionárias. Paralelamente, iam se construindo os instrumentos de gestão das políticas sociais, que têm como recurso
escasso não o dinheiro, mas a capacidade administrativa, que se desenvolve mais lentamente. As minireformas tributária e previdenciária permitiram por sua vez estabilizar as contas. O bom preço
das commodities e a diversificação dos acordos comerciais permitiram a redução da vulnerabilidade externa.
A segunda fase, de 2006 a 2008, já se caracteriza pela articulação das políticas em torno a uma dinâmica acelerada de crescimento pela inclusão, lançando as bases das dinâmicas atuais. O cadastro unificado das famílias pobres, a unificação dos programas
sociais no Bolsa Família, a forte progressão do salário mínimo (que
envolve também o aumento das aposentadorias), o apoio à agricultura familiar (Pronaf), a expansão do crédito (crédito consignado,
financiamentos do BNDES e de outros bancos do Estado), a gradual
expansão dos investimentos, geraram uma dinâmica de consumo
na base da sociedade, e um reforço de investimentos no setor privado. O resultado foi uma forte expansão do emprego formal, com
mais demanda. Em outros termos, o Estado assumia a sua função
de indutor do desenvolvimento. A maior demanda não gerou infla-
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ção, na medida em que a capacidade ociosa do aparelho produtivo
permitiu rápida expansão da oferta. A expansão do gasto público
foi coberta pela maior arrecadação que resultou do crescimento
econômico (passou de 5% em 2008) e da maior formalização da
economia, permitindo tanto manter os compromissos com a dívida
como expandir as políticas sociais.
A fase da crise financeira de 2008 submeteu esta política à dura
prova. A amplitude da crise e o pânico internacional gerado provocaram no país o travamento do crédito, a suspensão dos investimentos
privados, a transferência de recursos das filiais brasileiras de grupos
estrangeiros para salvar as matrizes (35 bilhões de dólares só em
2008), e um clima geral de insegurança. Diante da queda da arrecadação do Estado, a visão ortodoxa seria de contenção dos gastos
do governo, com um ajuste fiscal contracionista. Com a visão desenvolvimentista já estabilizada na etapa imediatamente anterior, o governo optou por um conjunto de medidas anticíclicas, respondendo
de forma rápida e diversificada aos diversos desequilíbrios à medida
que se manifestavam. Manteve a expansão do salário mínimo (12%
em 2009) gerando expectativa positiva no mercado; assegurou desonerações tributárias e incentivos nos setores críticos; utilizou as
reservas cambiais para o financiamento das exportações (o financiamento externo havia estancado totalmente); reduziu o compulsório
(que, aliás, os bancos comerciais utilizaram para comprar títulos do
governo, em vez de fomentar a economia); reduziu o financiamento
da dívida para priorizar o apoio às atividades produtivas; utilizou os
bancos estatais para estimular a economia através de um amplo espectro de linhas de crédito; as alíquotas do imposto de renda foram
subdivididas ao se constatar o aperto da crise nos setores da classe
média baixa. Os programas sociais não só não foram reduzidos, como
expandidos, e a dinamização da construção no programa Minha Casa,
Minha Vida passou a gerar atividades e empregos de forma muito capilar no conjunto da economia.
Os prognósticos negros apontados na época não se materializaram. O que se concretizou é a visão de uma política macroeconômica multifacetada, pragmática, e orientada pelo equilíbrio
dos interesses, e sobretudo pela compreensão de que uma base
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mais ampla de mercado interno ajuda todos os setores, inclusive
o setor exportador, que teve como compensar a redução dos mercados externos com o consumo interno. E sedimentou-se a ideia
de que um Estado atuante é simplesmente necessário. Hoje o país
passa a enfrentar os desafios estruturais sabendo que a capacidade de gestão macroeconômica passou as provas, e para o setor
privado que precisa estar tranquilo quanto às regras do jogo, isto
representa um novo patamar.
Independentemente da crise financeira, um outro vetor de
política econômica foi se construindo e está se tornando central,
que são os grandes investimentos de infraestrutura tão longamente
adiados. O Programa de Aceleração do Crescimento, o Programa de
Desenvolvimento Produtivo, a expansão dos investimentos da Petrobrás, o PAC II, e também o Plano de Desenvolvimento da Educação, os planos de generalização de acesso à banda larga, de ordenamento do uso da água e numerosos outros estão ao mesmo tempo
dinamizando os investimentos e mantendo a conjuntura elevada, o
que facilita todos os ajustes, e introduzindo nos mais diversos setores uma visão estrutural, sistêmica, com resgate de mecanismos de
planejamento e de longo prazo. Isto tensiona a capacidade gestora
do Estado, que já não desempenhava tais atividades, e coloca novos
desafios de modernização administrativa.
Se há uma visão teórica a resgatar, é que os equilíbrios macroeconômicos são dinâmicos, que é possível gerar maior demanda
sem excessiva pressão inflacionária, aumentar o fomento do Estado
sem gerar déficit irresponsável, encontrar um novo equilíbrio entre
mercado interno e mercado externo sem dramas cambiais, que é
possível colocar condições à entrada de capitais especulativos sem
ser declarado “controlador” pelo mercado especulativo internacional e assim por diante. Sobretudo, é possível reduzir os desequilíbrios sociais e regionais sem prejudicar os setores mais abastados
e as regiões mais ricas, ao assegurar que todos se beneficiam, mas
os de baixo em ritmo mais acelerado. O bom senso funciona. Não só
a boa maré levanta todos os barcos, como o Estado pode ser providencial em assegurar que a maré se mantenha.
Os resultados são hoje concretos e bastante evidentes. Em números redondos, o nível de emprego formal aumentou em 12 milhões desde 2002. A formalização gera melhor arrecadação, o que
financia boa parte da política de apoio. O salário mínimo teve um
aumento de capacidade real de compra de 53,67% no período,3 o
que atinge cerca de 26 milhões de pessoas. O aumento do salário
mínimo também aumenta a capacidade de negociação dos trabalhadores. Indiretamente favorecidos com este aumento são os aposentados, cerca de 18 milhões de pessoas. O Bolsa Família atinge
hoje 12,4 milhões de famílias, melhorando, como ordem de grandeza, as condições de vida de 48 milhões de pessoas. Em boa parte
isto significa crianças alimentadas, e seguramente menos angústias
nas famílias de baixa renda. Entre 2003 e 2008 19,5 milhões de pessoas saíram da pobreza.4 O Pronaf teve os seus recursos aumentados de 2,5 bilhões de reais em 2002 para 13 bilhões em 2009,
dinamizando a produção de cerca de 2 milhões de produtores rurais. O programa Territórios da Cidadania está aplicando cerca de
20 bilhões de reais nas regiões mais atrasadas do país. O programa
Luz para Todos está atingindo milhões de pessoas que não tinham
como guardar uma comida ou um remédio de maneira conveniente. O Prouni, passando já de meio milhão de estudantes, também
mostrou resultados impressionantes quando se avaliou o seu desempenho no conjunto das universidades, refutando o argumento
do nivelamento por baixo.
A visão do assistencialismo simplesmente não representa a realidade. O Bolsa-família é o único que constitui simples transferência de recursos, e constitui uma parcela relativamente bastante pequena do conjunto. Ainda assim, vinculado ao segmento de saúde e
frequência escolar, enquadra-se no investimento social.5 A renda na
3 DIEESE – Mercado de Trabalho Brasileiro: evolução recente e desafios, DIEESE, 10 de março de 2010 - http://www.dieese.org.br/ped/mercadoTrabalhoEvolucaoDesafiostexto2010.pdf
4 Marcelo Neri, Instituto Brasileiro de Economia da FGV, informe Ensp, 26 de março 2010
http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/informe/materia/index.php?origem=3&matid=20887
5 Ver artigo de primeira página da Folha de São Paulo de 18 de abril de 2010, p. A13 – “Foi
uma pequena grande década,” diz Marcelo Neri, chefe do Centro de Políticas Sociais da FGV-Rio. “E a melhora na renda hoje é muito mais sustentável, pois está apoiada mais na renda
do trabalho”. Na média da década, a renda do trabalho explicaria 67% da redução da desi-
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4. Os resultados: bases para uma nova expansão
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base da sociedade gera consumo imediato, tanto de bens de consumo básicos que melhoram a alimentação, a higiene, como o pequeno investimento familiar que pode ser constatado em cada “puxada” nas casas modestas, dinamizando a produção de materiais de
construção e de equipamento doméstico básico. A realidade é que o
efeito multiplicador dos recursos é muito grande quando orientado
para a base da sociedade. E em termos de qualidade de vida, cada
real disponibilizado para as famílias mais pobres gera uma melhora
incomparavelmente superior do que nos grupos mais ricos. A produtividade social do dinheiro, a sua utilidade real, cai rapidamente
à medida que o nível de renda se eleva.
O fato é que a desigualdade está se reduzindo no Brasil, de
maneira lenta, pois o atraso herdado é imenso, mas muito regular
nos últimos anos. O índice Gini caiu de 0,53 para 0,496. Para efeitos
de comparação, é de 0,46 nos Estados Unidos, 0,33 na Itália e 0,26
na Alemanha.7 A persistente desigualdade está ligada ao fato que
a renda de todos se eleva no Brasil, e de maneira mais acelerada
entre os pobres do que entre os ricos. Mas como o ponto de partida é muito baixo para os pobres, mesmo um percentual elevado
representa mudanças pequenas em termos absolutos. Em termos
regionais, verifica-se também um crescimento muito mais acelerado no Nordeste e outras regiões mais pobres, mas aqui também a
desigualdade se reduz de maneira lenta.
Um ponto central, e relativamente pouco apontado, é que se
desfazem gradualmente os preconceitos que tanto alimentaram a
oposição aos programas destinados à base da pirâmide social. Longe de se “encostar”, os pobres estão demonstrando uma impressionante capacidade de aproveitamento positivo dos recursos. São
pobres não por falta de iniciativa ou de criatividade, mas por falta
de oportunidade. E na verdade a propensão a “se encostar” se manifesta democraticamente em diversos níveis sociais.
A organização de políticas destinadas à faixa mais pobre da
gualdade. O Bolsa Família, cerca de 17%; os gastos previdenciários, 15,7%. Desde 2003 foram criados 12,2 milhões de empregos formais”.
6 Ipea – Desigualdade e Pobreza no Brasil Metropolitano – Comunicado da Presidência n. 25, p. 3
http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/comunicado_presidencia/comunicado_da_presidencia_n25_2.pdf
7 Ipea – Pobreza, Desigualdade e Políticas Públicas – 12 de janeiro de 2010, p. 9 Comunicado
da Presidência n. 38 - http://www.ipea.gov.br/default.jsp
8 O artigo mencionado na Folha de São Paulo comenta: “O Brasil tem hoje 30 milhões de miseráveis sobrevivendo com R$ 137 ao mês. Mas eles seriam mais de 50 milhões se a velocidade
da diminuição da pobreza não tivesse se acelerado nos últimos anos”. FSP, 18/04/2010, p. A13
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
população tem como obstáculo principal não a falta de recursos,
mas a dificuldade de gestão de um sistema de apoio extremamente
capilar, destinado a pessoas que frequentemente não têm endereço postal, CPF, conta em banco, ou até certidão de nascimento. De
certa forma, o Estado não existia para estes 25% da população do
país. Construir os cadastros, os canais de comunicação e os mecanismos de gestão desta parte da população exigiu um imenso esforço administrativo ainda em curso. Assim, um impacto indireto
das políticas de inclusão foi a geração de correias de transmissão
entre a máquina do Estado, os poderes públicos locais, os movimentos sociais, e em última instância as famílias. O aprendizado
organizacional do Bolsa Família, do Pronaf expandido, dos comitês de gestão do programa Territórios da Cidadania, das inúmeras conferências nacionais e regionais realizadas, criaram formas
mais densas de interação entre o Estado e a sociedade, vetor de
melhores práticas administrativas para o futuro.
Nesta lenta transição para um Brasil economicamente viável,
mas também socialmente justo e ambientalmente sustentável, os
avanços são indiscutíveis, mas o passivo social herdado de séculos
de desequilíbrios é grande. O país continua a ostentar uma desigualdade dramática.8 O desmatamento da Amazônia se reduziu de
28 para 7 mil quilômetros quadrados ao ano, o que é uma grande vitória, mas ainda é um desastre. As periferias metropolitanas
continuam sendo explosivas e necessitam de políticas de apoio radicalmente mais amplas. Os atrasos na qualidade da educação, no
acesso a uma saúde mais decente, na generalização de políticas ambientais, na democratização do acesso ao crédito, fazem parte dos
inúmeros desafios. No geral, o país tem pela frente tanto o aprofundamento das políticas inclusivas, como a adequação da máquina do
Estado e dos processos decisórios da sociedade em geral. A direção
a seguir é hoje muito mais clara, os instrumentos básicos de gestão
começaram a ser estruturados. Os resultados obtidos e a experiência adquirida abrem uma nova agenda, com novos desafios.
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II- EIXOS ESTRATÉGICOS PARA A AGENDA
NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO
1. O papel do Estado: desafios da gestão democrática
2. O papel das tecnologias: a transição para a economia do conhecimento
3. Os novos horizontes da educação
4. Trabalho decente e inclusão produtiva
5. Uma política nacional de apoio ao desenvolvimento local
6. O papel das infraestruturas: transportes, energia, comunicação, água
7. O potencial da agricultura
8. Intermediação financeira: o crédito como fomento
9. Política tributária
10. Políticas ambientais
11. Políticas sociais
Não se trata aqui de detalhar os planos setoriais, ou insistir
na importância da educação, da saúde, da cultura, dos transportes e semelhantes, uma listagem que seria longa das necessidades. Busca-se identificar os principais desafios, ou eixos estratégicos de ação que mais poderiam ter efeitos multiplicadores
sobre o conjunto das nossas atividades. De certa forma, buscar
as iniciativas que liberam potenciais latentes. A modernização
do aparelho de Estado, com as suas amplas ramificações, pode
aqui servir de exemplo de eixo estratégico. Em termos de objetivos, a visão aqui, evidentemente, não se restringe a acelerar
o crescimento, pois se busca, além da eficiência econômica, os
resultados mais amplos em termos de qualidade de vida e de desenvolvimento sustentável. A quantidade não basta, e cada vez
mais é a evolução qualitativa que está se tornando central no horizonte brasileiro. O objetivo geral é uma sociedade que funcione
melhor, mas que as melhorias sejam sentidas por toda a gente, e
que não seja às custas das futuras gerações.
Preocupações excessivamente ideológicas têm travado as necessárias mudanças para um Estado mais eficiente. A crise financeira de 2008 ajudou a convencer a sociedade de que o Estado tem
de ter uma presença atuante, não só como regulador como no caso
das finanças, mas como indutor do desenvolvimento, redistribuidor no caso de promoção dos equilíbrios sociais e regionais, e frequentemente, como no caso das políticas sociais e de grandes infraestruturas, como executor ou contratante. Está sendo igualmente
resgatada a importância do Estado como planejador, dimensão que
permite que se articulem as visões sistêmicas e de longo prazo, e
que as opções sejam amplamente debatidas.
O resgate do papel do Estado é exigido por condições objetivas que resultam da própria evolução das atividades econômicas. A
urbanização generalizada do país faz com que grande parte das atividades hoje constituam bens de consumo social, como abastecimento
de água, sistema de esgotos, urbanização, segurança, ordenamento
do território e assim por diante. A expansão da dimensão pública das
atividades é, portanto, natural. O Brasil já tem um grau de urbanização, da ordem de 85%, no nível de país desenvolvido, onde o peso
do Estado no PIB oscila entre 40 e 60%. Isto implica um Estado com
mais funções organizadoras, e mais descentralizado.
Um outro fator chave do papel expandido do Estado resulta da
presença crescente das políticas sociais no conjunto das atividades do
país: saúde, educação, cultura, lazer, informação e outras atividades
centrais ao investimento no ser humano dependem vitalmente da presença do Estado, inclusive para assegurar a democracia de acesso para
todos, já que o setor privado se concentra nos segmentos mais ricos da
sociedade. A generalização deste tipo de serviços, e a forte elevação em
termos de qualidade, exigem uma ampliação dos meios.
A crise financeira de 2008 deu uma medida da fragilidade dos
mecanismos de concertação internacional. A pouca operância dos
organismos multilaterais, inclusive do FMI, ficou patente. As medidas que foram tomadas no âmbito dos Estados nacionais. Com
a ampliação das atividades especulativas, que atingem não só derivativos (863 trilhões de dólares, 15 vezes o PIB mundial), como
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1. O papel do Estado: desafios da gestão democrática
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os grãos, o petróleo ou outras commodities, e na ausência de capacidade global de regulação, o papel dos Estados se vê reforçado. Inclusive, o papel regulador no plano internacional se dará por
acordos entre Estados.
A modernização da máquina pública, e não a visão neoliberal de um Estado mínimo, aparece, portanto, como um eixo
estratégico de primeira importância. O direcionamento das mudanças está igualmente se tornando claro. O novo modelo que
emerge está essencialmente centrado numa visão mais democrática, maior representatividade cidadã, maior transparência,
com forte abertura para as novas tecnologias da informação e
comunicação, e soluções organizacionais para assegurar a interatividade entre governo e cidadania.
Um ponto chave está no financiamento público das campanhas. A corrida por quem consegue mais dinheiro para se eleger
gera campanhas imensas a cada dois anos, custos elevadíssimos, e
uma predominante representação dos grandes financiadores corporativos, inclusive de grandes grupos transnacionais. Em termos
financeiros isto gera custos para todos, na medida em que as contribuições para campanhas são repercutidas nos custos empresariais e transferidas para o consumidor. Em termos de qualidade da
disputa eleitoral, desqualifica as propostas, e reforça a propaganda
agressiva dos mais diversos tipos. Ponto essencial, o resultado são
bancadas de grupos econômicos, em detrimento de uma bancada
do cidadão. O candidato deve obter o voto pelo respeito que consegue na sociedade, e não pelo dinheiro que consegue recolher.
O adensamento tecnológico do conjunto da máquina pública
é central para gerar uma administração transparente, e uma cidadania informada. O avanço impressionante das tecnologias de informação e de comunicação nos últimos anos está permitindo uma
mudança qualitativa na administração, mas precisa ser generalizado para atingir todos os setores de atividade e os três níveis da
federação. Um choque tecnológico, particularmente no judiciário,
bem como a integração com sistemas estaduais e municipais, deverá contribuir muito na racionalização do conjunto.
A base do país são os 5.564 municípios, que podem passar a
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ter sistemas avançados de informação gerencial e de informação
para a cidadania. O município é onde o cidadão mora, tem maior
interesse, conhece melhor a realidade, pode se organizar para participar. O Estado no seu conjunto funcionará de maneira deficiente enquanto os municípios, blocos básicos da sua construção, não
evoluírem para uma gestão mais eficaz e transparente. O apoio na
modernização gerencial na base da sociedade constitui um eixo de
grande importância, e pode ser promovido como contrapartida de
suporte e financiamentos.
Particular atenção deverá ser dada ao desenvolvimento integrado de sistemas de informação mais adequados. A conta PIB
precisa ser complementada com indicadores mais completos
que reflitam efetivamente a evolução da qualidade de vida da
população, tanto em nível nacional como estadual e municipal.
Há um forte avanço metodológico neste plano, os números existem, e se trata de apresentá-los numa nova sistemática de contas
públicas que permita assegurar uma cidadania informada. Uma
articulação com o IBGE, Ipea e outras instituições deverá ser
promovida neste sentido.
A organização sistemática de correias de transmissão entre a máquina de governo, nos seus diversos níveis, e os diversos segmentos da sociedade, é hoje indispensável como forma
de ampliar a dimensão participativa da gestão pública. O aporte
extremamente positivo da experiência do CDES está sendo capitalizado com instituição semelhante no Estado da Bahia, e muitos municípios já adotaram conselhos locais ou intermunicipais
de desenvolvimento. Os poderes legislativos são essenciais para
transformar em leis as propostas de políticas, mas as próprias
políticas precisam ser regularmente discutidas diretamente com
os diversos segmentos, sindical, empresarial, da sociedade civil
organizada, de forma a assegurar maior agilidade, transparência
e dimensão cidadã às decisões públicas. A construção de consensos e a compatibilização de interesses diferenciados que os conselhos permitem – bem como as conferências setoriais e outras
formas de consulta – já deram provas de seu papel importante
na construção de processos mais democráticos de governança.
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Construir consensos pode ser trabalhoso, mas depois as políticas funcionam.
No conjunto, trata-se de aprofundar a evolução de um Estado
com tradição de administração de privilégios, para um Estado efetivamente articulador dos interesses da sociedade, mais democrático
no processo decisório, e com maior equilíbrio entre as dimensões
representativas e participativas. O Brasil precisa se dotar, nos diversos níveis, de uma máquina publica administrativa à altura dos
resultados econômicos, sociais e ambientais que tem alcançado.
2. O papel das tecnologias: a transição para a economia do conhecimento
Se no ciclo econômico do século XX o desenvolvimento se calculava pelo número de máquinas e o volume de bens físicos, hoje a
valorização da produção se dá muito mais pelo conhecimento incorporado. A educação tem um papel chave neste processo, mas de
maneira muito mais ampla trata-se de uma política nacional de elaboração, promoção e difusão do conhecimento em todos os níveis.
O Brasil herdou uma dualidade tecnológica, em que coexistem setores de ponta e imensos atrasos em grandes setores da economia e
regiões do país. A homogeneização do desenvolvimento através do
amplo acesso, gratuito e inclusive fomentado, a todo tipo de conhecimento, constitui um eixo fundamental da mudança para um país
mais equilibrado. Considerando os grandes esforços desenvolvidos
neste sentido por uma série de países, a própria competitividade internacional do Brasil exige uma dinâmica radicalmente mais
ampla, e uma maior centralidade no conjunto das opções de longo
prazo. De forma geral, trata-se de ampliar e articular as iniciativas
nas áreas de ponta, e ao mesmo tempo ampliar a apropriação dos
conhecimentos tecnológicos mais simples na base da sociedade.
Os avanços tecnológicos mais significativos estão se dando nas
áreas onde a sustentabilidade está ameaçada: alternativas energéticas limpas, onde o Brasil tem grandes vantagens à partida; alternativas de meios de transporte com menos impactos climáticos
(veículos elétricos e híbridos); tecnologias de produção visando à
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redução do consumo de matérias-primas; tecnologias da construção visando à redução de consumo energético (chuveiro, ar condicionado, materiais); cultivos consorciados e outros avanços que
reduzem a pegada ecológica; biotratamento de esgotos e técnicas
de saneamento; tecnologias organizacionais na gestão de redes integradas de transmissão de eletricidade. A lista é longa e o leque
que se abre constitui uma das marcas da economia moderna. Pode
se fazer muito mais com menos impacto, menos esforço, melhores
condições de vida, e com inclusão produtiva generalizada.
No plano da apropriação generalizada de tecnologias simples
(ou avançadas, segundo o caso), a gestão atual abriu caminhos e
adquiriu experiências, com o vetor de democratização de acesso do
Ministério da Ciência e Tecnologia, com formas de articulação de
iniciativas como a Rede de Tecnologias Sociais, com as experiências
de tecnologias sociais no quadro da Fundação Banco do Brasil, com
o desenvolvimento das experiências de apoio à produção familiar
no Ministério de Desenvolvimento Agrário, com iniciativas da própria sociedade civil como no caso do programa Um Milhão de Cisternas da Articulação do Semi-Árido (ASA), e a maior abertura da
Embrapa para tecnologias de pequena agricultura familar e assim
por diante. São iniciativas que geraram um acúmulo importante de
experiências, mas que têm de se transformar em um movimento
mais profundo e articulado de fomento tecnológico generalizado. O
exemplo da Índia, que criou um programa especial de formação de
1,2 milhão de técnicos para animarem núcleos de fomento tecnológico em cada vila do país, atuando em rede, dinamizando as bases
produtivas mais atrasadas, é inspirador.
O Plano Nacional de Banda Larga adquire aqui uma importância central. O conhecimento está cada vez menos localizado em
bibliotecas e na cabeça de especialistas, e cada vez mais disponibilizado online em todo o planeta. Em termos econômicos, o conhecimento é um bem não rival, o seu consumo não reduz o estoque, e
precisa ser de livre acesso sempre que possível. E inteligência é um
capital democraticamente distribuído, independentemente de classe social. Trata-se, portanto, de um vetor privilegiado de redução
dos desequilíbrios sociais, e indiretamente ambientais. Transitar
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na rua é uma atividade gratuita, mas permite atividades comerciais.
Da mesma forma, o livre acesso ao conhecimento, e a sua circulação
nas enxovias deve ser generalizado, e permitirá dinamizar um conjunto de aplicações em atividades econômicas, sociais e culturais.
A tecnologia tem um grande poder de despertar as pessoas para a
inovação, e assegurar a circulação das inovações tende a gerar uma
dinâmica que se amplia, na linha do que tem se chamado de inovação aberta (open innovation).
Nas cidades onde tem sido implementado, o acesso aberto à
banda larga tem gerado inúmeras atividades econômicas, ao facilitar o contato direto entre produtores e consumidores, desintermediando e desburocratizando as atividades comerciais e financeiras,
facilitando a complementaridade entre atividades econômicas da
região. Nas regiões onde se generalizou o acesso, as pessoas não
precisam se deslocar para resolver os problemas, são os bits que
se deslocam, com redução radical de custos. Neste sentido, a banda
larga constitui um dos principais vetores de promoção de economias externas, e de redução dos custos no país.
No conjunto, com o barateamento dos equipamentos, a generalização do acesso à internet por celular, o avanço das tecnologias
do wi-fi urbano e semelhantes, o eixo das tecnologias da informação e da comunicação constitui, em termos de custo-benefício, e da
rapidez de implantação, um eixo privilegiado de mudança no país,
onde o econômico, o ambiental, o social e o cultural casam de forma
coerente. E sendo um sistema de acesso generalizado, mais do que
um sistema oneroso de ajuda, é um instrumento que estimula as
pessoas a se apropriarem do seu desenvolvimento.
3. Os novos horizontes da educação
A evolução para a sociedade do conhecimento, o adensamento tecnológico de todos os processos produtivos, a conectividade
planetária que permitem as tecnologias de comunicação, a disponibilização online de todo o conhecimento humano, o barateamento
radical dos equipamentos, tudo isto está por sua vez redesenhando
os horizontes da educação. Há um acordo generalizado quanto à
importância estratégica da educação. Mas há um problema básico,
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que é cansaço dos alunos, que em casa ou na lan house têm acesso ao mundo, e na escola decoram o comprimento do Nilo e semelhantes. Em outros termos, está se gerando uma grande distância
entre o conceito de educação, e a sociedade do conhecimento que
se generaliza de forma acelerada. O fato de uma imensa parcela dos
alunos abandonarem a escola tem de merecer uma atenção central.
A educação, é um mínimo, tem de ser interessante. E não só para o
aluno, para o professor também.
Há um conjunto de medidas no sentido de melhorar a escola
atual. As medidas envolvem melhores salários para os professores,
redução drástica do número de alunos por sala, generalização da
capacitação, sistemas online de apoio técnico e de conhecimento
específico dos cursos, material escolar muito mais dinâmico do que
apenas o livro escolar. A elaboração e disseminação de softwares de
gestão escolar como os desenvolvidos pelo SPB (Software Público
Brasileiro) também é essencial, permitindo às diretorias pensarem
educação. O acesso banda larga em todas as escolas está avançando rapidamente, a eletrificação está hoje atingindo a quase todos, a
generalização do wi-fi urbano deve permitir que, o que foi visto na
aula, o jovem possa confrontar com outros conhecimentos em casa.
Mas é preciso hoje pensar que todo o conhecimento que o
menino estuda hoje na escola terá na ponta dos dedos amanhã no
trabalho, e o que ele deve realmente assimilar são metodologias
de trabalho, de certa forma aprender a navegar, organizar, quantificar, cruzar conhecimentos de maneira criativa. Estamos na era
da cabeça bem feita, e não bem cheia, e inclusive a rapidez com
que os conhecimentos se tornam obsolescentes já não permite o
armazenamento.
O conhecimento da humanidade está cada vez menos no livro
escolar e na cabeça do professor, e cada vez mais online, disponível
gratuitamente, livre do canal estreito da “disciplina”, permitindo
cruzamentos interdisciplinares, apresentações em multimídia, dinâmicas efetivamente criativas. A criança e o adolescente têm uma
imensa curiosidade por conhecer as coisas, e uma imensa teimosia
em recusar o que é simplesmente empurrado. Forçar as crianças a
passar horas sentadas, imobilizadas, copiando coisas anotadas no
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quadro, gera pessoas disciplinadas, sem dúvida, mas não criativas.
De forma mais ampla, é importante lembrar que hoje cada adulto profissional passa horas por semana, quando não por dia, estudando, se atualizando, porque este é o rumo das coisas. Ou seja, a
educação deixa de ser apenas uma etapa de preparação para a vida,
é uma preparação para uma interação permanente, que durará toda
a vida, com sistemas de conhecimento, exigindo sistemas muito mais
abertos.
No Paraná está se desenvolvendo a experiência de Arranjos
Educativos Locais. Visa articular, em cada município, os diversos subsistemas de informação organizada, buscando uma escola um pouco
menos lecionadora, e mais articuladora do conjunto dos conhecimentos necessários ao desenvolvimento local. Hoje o conhecimento
não está apenas na escola, está nas empresas, nos centros culturais,
na televisão, no computador em qualquer parte, nas revistas científicas, nas pesquisas desenvolvidas por faculdades regionais. A visão
é de assegurar que o aluno aprenda a se apropriar das informações
disponíveis, a transformá-las em conhecimento, e não só individualmente, mas em colaboração.
Nas universidades, os alunos trabalham com xerox de capítulos
isolados. 30% dos livros recomendados estão esgotados e não são
reeditados, mas a cópia não é liberada. O MIT, nos Estados Unidos,
criou ou OCW (Open Course Ware), e disponibiliza gratuitamente online todos os cursos, artigos dos professores. Em poucos anos, tiveram 50 milhões de downloads de textos científicos em todo o mundo.
O impacto de enriquecimento científico planetário é imenso. Há uma
contradição profunda entre investirmos tantos recursos em educação, e restringirmos o acesso aos conteúdos.
A educação é um imenso universo. Somando alunos, professores
e administradores, são 60 milhões de pessoas, quase um terço da população. E estamos entrando na sociedade do conhecimento, em que
a capacidade criativa terá muito mais importância do que o esforço
bruto. Temos de dar a prioridade estratégica a esta área, investir fortemente na modernização do que temos e, sobretudo, preparar as
novas dimensões da escola como espaço de criação e de articulação
de conhecimentos.
A desigualdade de renda está diretamente vinculada ao desequilíbrio em termos de inclusão produtiva. O país tem uma população ativa de 100 milhões de pessoas, mas um emprego formal privado de 31 milhões. Esta conta, que não fecha, inclui o desemprego e,
sobretudo, um imenso setor informal. Segundo o IBGE, houve uma
diminuição da informalidade no conjunto dos ocupados, que caiu de
46,5% em 2002 para 42,7% em 2008.9 A evolução está sendo positiva, mas o volume herdado é muito grande. A dimensão do setor
informal significa que a subutilização da força de trabalho constitui
um imenso desafio, mas ao mesmo tempo um vetor de oportunidades através da inclusão produtiva. Para a produtividade sistêmica do
país, é vital o aproveitamento mais produtivo desta massa da população, através do emprego decente.
Em grande parte, trata-se aqui de ampliar políticas em curso.
Os avanços do salário mínimo estão sendo muito significativos. Deverão continuar para se atingir um nível que permita efetivamente
uma vida digna com este nível de remuneração. É sem dúvida um dos
principais instrumentos de construção do equilíbrio social.
A jornada de trabalho constitui outro vetor essencial de melhoria da qualidade de vida do mundo do trabalho. Dois dias de descanso semanal já são hoje vistos internacionalmente como um mínimo.
No quadro de atividades econômicas que cada vez mais exigem força
mental mais do que força física, a própria produtividade passa por
um esforço melhor distribuído. E o aumento de produtividade do
trabalho pela incorporação das tecnologias, nos últimos anos, assegura a possibilidade de se reduzir a jornada e de manter os salários,
pela melhor distribuição dos resultados desta produtividade. A mais
longo prazo, com crescentes aportes tecnológicos, a tendência é simplesmente inevitável. E termos uma parte da população desesperada
por carga excessiva, e outra por não ter como se inserir de maneira
digna nos processos produtivos, não faz sentido.
A garantia do direito ao emprego, de ganhar produtivamente
a sua vida, a qualquer pessoa, é outra tendência que deverá gerar
9 DIEESE – Mercado de Trabalho Brasileiro: evolução recente e desafios, DIEESE, 10 de março de 2010 - http://www.dieese.org.br/ped/mercadoTrabalhoEvolucaoDesafiostexto2010.pdf
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4. Trabalho decente e inclusão produtiva
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impacto positivo sobre o desenvolvimento, em diversas dimensões.
Todo município do país tem inúmeras necessidades de melhorias
na qualidade de vida urbana, que envolvem sistemas de microdrenagem, saneamento básico, manutenção urbana, arborização, constituição de cinturões verdes para abastecimento em hortifrutigranjeiros, melhoria de residências e assim por diante. São atividades
simples, pouco intensivas em capital e intensivas em mão de obra.
Assegurar um salário mínimo e carteira assinada, para aproveitar os
desempregados no conjunto de melhorias que cada cidade precisa, é
uma questão de bom senso, e tem como resultado melhores infraestruturas urbanas, avanços ambientais, dinamização econômica geral
pelo fluxo de renda gerado, redução drástica do desespero que é não
ter uma fonte de renda. Qualquer pessoa deve ter o direito de ganhar
o pão da sua família, quando há tantas coisas a fazer. São atividades
de retorno imediato, pelas economias geradas, e que não substituem
necessariamente contratos mais amplos de empreiteiras. E dizer que
não há emprego quando há tanto trabalho por fazer implica que o
problema chave é de inadequação de formas de organização social.
O apoio à micro e pequena empresa constitui outro vetor de
inclusão produtiva. Em que pesem os avanços em termos de simplificação da vida burocrática destas empresas, este setor de atividades necessita de fomento muito mais dinâmico tanto em termos
de capacitação, como de financiamento, de sistemas de informação
comercial online, de generalização da conexão banda larga, de fomento tecnológico, de abertura das leis de licitação para facilitar o
acesso, de condições jurídicas para as administrações municipais
poderem privilegiar pequenos produtores locais nas compras e assim por diante.
Com a evolução para uma densidade tecnológica maior de todos
os processos produtivos, até os mais simples como construção de casas, o acesso às mais variadas formas de capacitação e requalificação
está se tornando essencial. Os diversos esforços do MCT, do Sebrae
e de outras instituições precisam se traduzir em cada município de
certo porte, ou grupo de municípios menores, em núcleos de fomento
integrado. Foi-se o tempo em que uma pessoa faz um curso e já sabe
o que precisa: com a constante alteração dos processos produtivos, a
5. Uma política nacional de apoio ao desenvolvimento local
O desenvolvimento local integrado constitui um dos grandes recursos subutilizados do país. São hoje 5.565 municípios que têm de
passar a se administrar melhor. Este eixo é fundamental porque em
última instância, é o nível onde as políticas têm de funcionar, onde os
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interação entre o mundo do trabalho e a qualificação ou requalificação precisa ser permanente.
É importante lembrar que o financiamento das atividades produtivas da micro e pequena empresa continua burocratizado, difícil
e, sobretudo, extremamente caro. As iniciativas do Banco do Nordeste e mais recentemente do Banco do Brasil com o programa DRS (Desenvolvimento Regional Sustentável) mostram novos caminhos que
precisam ser generalizados. Em particular, nos programas do BNB,
às linhas de crédito foram-se acrescentando apoio à comercialização,
capacitação gerencial e outras formas de ajuda, dependendo das realidades. Financiamento não é só dinheiro, é viabilização do negócio, e
são outras formas de intermediação financeira que se tornam necessárias, articulando em cada território os diversos sistemas especializados de apoio que ainda pouco conversam.
Um programa especial precisa ser desenvolvido para as periferias dos grandes centros urbanos. A pesquisa Fase/Pólis mostra
que 27% dos jovens entre 15 e 24 anos nas periferias metropolitanas estão fora da escola e sem emprego. O custo social é gigantesco.
Será necessário, na realidade, um tipo de Pronaf urbano, no sentido
de promoção sistemática e fomento de atividades econômicas que
podem envolver desde melhoria do próprio bairro, ou de aproveitamento de acesso banda larga para prestação dos mais variados serviços, como já se tem vários exemplos.
No conjunto, a inclusão produtiva não se resolve com uma medida, envolve um conjunto articulado de iniciativas com formação,
desburocratização, acesso banda larga, canalização inteligente das
compras públicas, financiamento e outras iniciativas diversificadas
em função das realidades locais, com forte participação das esferas
municipais e intermunicipais.
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investimentos se materializam, onde as pessoas poderão dizer se estão vivendo melhor ou não. Ao fazer comparações internacionais, as
pessoas tendem a ver países, sem ver a estrutura mais detalhada. Os
sistemas locais de gestão que caracterizam as economias mais avançadas são muito sofisticados. Para utilizar uma imagem, uma economia
industrial não funcionará de maneira adequada se as unidades que a
compõem, as empresas, não forem bem administradas. De forma semelhante, os “blocos” com que se constrói o país são os municípios,
unidades básicas. A boa gestão local não é condição suficiente, mas
sem dúvida necessária.
As tentativas e avanços na boa gestão local são numerosas, mas
fragmentadas. Há o movimento de cidades educadoras, o Paraná
está inovando com Arranjos Educativos Locais, Santa Catarina com
Conselhos Regionais de Desenvolvimento, o programa Territórios
da Cidadania está inovando com Comitês de Gestão locais e regionais, há ainda numerosas tentativas setoriais buscando a excelência ambiental, como a Agenda XXI local, ou melhor saúde com o
movimento Cidades Saudáveis. Mais recentemente, estão surgindo
movimentos como Nossa São Paulo, onde as organizações da sociedade civil estão se organizando em movimentos suprapartidários
para junto com outros atores sociais locais promover o desenvolvimento equilibrado. Falta uma política integrada de apoio ao desenvolvimento local, pois a boa gestão na base da sociedade tende
a tornar todas as iniciativas, sejam de governo em diversos níveis,
empresariais ou de movimentos sociais mais produtivas.
Este investimento na governança local é essencial para a produtividade de um conjunto de instituições de apoio, como o Sebrae, Senac,
Sesi, Embrapa, DRS e outros alcancem um nível superior de produtividade, ao se tornarem sinérgicos ao nível de cada município, ao invés
de oferecerem fragmentos de apoio que pouco se articulam. Mas também é fundamental para a eficiência dos programas sociais, dos investimentos privados. É importante lembrar que praticamente inexistem
no Brasil instituições de formação em gestão municipal, ordenamento
do território ou políticas integradas de gestão local. São muitos os municípios inovadores, mas não se generalizam os aprendizados adquiridos. A dinamização da governança na unidade básica da federação
6. O papel das infraestruturas: transportes, energia, comunicação, água e saneamento
Considerando as dimensões do Brasil, o papel das infraestruturas é essencial. Uma unidade empresarial pode ser eficiente na
sua forma de gestão interna, mas se incorre em grandes gastos com
transporte, cortes de energia ou de água, e um sistema ineficiente de
comunicação, deixa de aproveitar as economias externas que uma
boa rede de infraestruturas pode assegurar. Trata-se aqui de iniciativas que vão além do poder decisório da empresa, pois exigem
grandes investimentos, precisam ser organizadas em redes coerentes, geram efeitos difusos: é uma área privilegiada de presença do
Estado tanto no planejamento como nos investimentos, ainda que a
execução e a gestão possam ser confiadas a empresas privadas. De
toda forma, pelo seu efeito estruturante e o seu impacto que irradia
sobre o conjunto das atividades, esta área deve ser vista como um
dos grandes eixos estratégicos. Entram aqui, tradicionalmente, os
setores de transportes, energia, comunicações e água/saneamento,
redes que têm de chegar a cada um, com os seus grandes troncos, e
a capilaridade final.
O Brasil é essencialmente atlântico nos seus centros econômicos, e são portuários ou semiportuários os principais polos, de
Manaus a Porto Alegre, incluindo o eixo São Paulo/Santos, e com a
notória exceção de Belo Horizonte. Como o custo tonelada/quilômetro aumenta radicalmente à medida que se passa sucessivamente do transporte por água para o ferroviário, o rodoviário e o aéreo,
a definição da matriz intermodal de transporte do país torna-se
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pode ser um propulsor importante da racionalidade do conjunto.
Finalmente, é importante lembrar que viver bem na nossa cidade,
ou no município em geral, é o que queremos da vida. Várias cidades já
se dotaram de instrumentos de avaliação da qualidade de vida, permitindo ver, de ano a ano, se as coisas estão melhorando, quais são as
principais deficiências, as propostas. É neste nível que melhor pode se
materializar a dimensão participativa da governança, porque é onde o
peso dos problemas e o alívio das soluções são diretamente sentidos.
É, no melhor sentido, a base da democracia.
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essencial. Com dois terços da mercadoria gastando pneu e combustível fóssil pela opção rodoviária, os sobrecustos para toda a produção tornam-se muito pesados. O resgate dos estaleiros navais, a
dinamização do transporte de cabotagem, a articulação intermodal
com grandes eixos ferroviários de integração para o interior, e o uso
do caminhão apenas com a chamada “espinha de peixe” de distribuição final, em trajetos curtos, de carga fracionada, é a matriz evidente. Trata-se aqui de alterar a composição das infraestruturas de
forma sistêmica. São investimentos grandes e de longo prazo, mas
que deverão render redução do custo-Brasil para todos os setores
de atividade e melhorar a produtividade sistêmica do país.
A readequação da matriz de transporte de passageiros exige
reformulação semelhante, particularmente nas grandes cidades.
Ditadas mais por interesses comerciais do que pelo interesse da
população, as opções levaram a um sobredimensionamento do
transporte individual. São Paulo anda em média 14 quilômetros
por hora, os veículos se deslocam em primeira e segunda. Se estimarmos em 15 mil reais o valor médio do veículo, e 6 milhões de
veículos, são 90 bilhões de reais em meios de transporte praticamente imobilizados, gerando grandes custos em combustível, doenças respiratórias, e uma média de 2h:40m perdidas por dia, em
que o paulistano nem trabalha nem descansa. Os motoqueiros morrem numa média de 1,5 por dia. E o metrô ostenta os seus poucos
60 quilômetros. Transporte exige forte presença de planejamento,
e organização da matriz em função da qualidade de vida da população. As soluções são conhecidas, e torna-se essencial voltar ao tema
do financiamento público das campanhas, para que as autoridades
públicas representem os interesses do cidadão. A matriz de transporte de média ou longa distância deve também ser repensada, pois
o transporte aéreo representa custos imensos e pouca racionalidade para trajetos curtos ou médios: trens de grande velocidade, movidos à energia hidroelétrica, melhoram a mobilidade, o conforto
das pessoas e o clima.
No plano da energia, o Brasil tem uma situação notoriamente
favorável. Com a imensa base hidroelétrica, não enfrenta os dramas
que assolam a China ou os Estados Unidos fortemente dependentes
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do carvão. No plano da oferta, o potencial da bioenergia a partir da
cana-de-açúcar pode ainda ser amplamente expandido, tanto pelas
reservas de solo subutilizado como pela disponibilidade de água. O
conhecimento acumulado no quadro do ciclo anterior do Proálcool
ainda assegura uma grande eficiência no processo. O desafio hoje
está na corrida pelas tecnologias de aproveitamento dos subprodutos como o etanol celulósico, alternativas ao plástico tradicional e
outros na linha das biotecnologias em geral. Com a descoberta do
Pré-Sal, o quadro brasileiro, que já era favorável, torna-se excepcional. A gestão das oportunidades abertas, numa visão coerente e de
longo prazo, sem ceder às pressões pelo gasto imediato, torna absolutamente central a firme definição do plano de uso dos recursos
energéticos do país.
Os desafios maiores, portanto, em termos de energia, estão
mais no plano da demanda e do uso racional do que no plano da
oferta. A matriz de transportes, por exemplo, tanto no plano de
transporte de mercadorias como de pessoas, é profundamente irracional, e acarreta grandes desperdícios. As tecnologias da construção hoje disponíveis também podem reduzir drasticamente o uso
de energia, em particular no uso do ar condicionado e do chuveiro
elétrico, com construções mais inteligentes, células fotovoltaicas,
aquecedores solares entre outros. Estas mudanças na cultura do
uso da energia têm diversos impactos positivos, ao reduzir a pegada
ecológica, ao gerar empregos através dos investimentos e serviços
de instalação e manutenção, ao dinamizar a pesquisa tecnológica,
ao estimular estilos de vida mais inteligentes.
O Pré-Sal merece naturalmente uma estratégia em si. Nas mais
diversas análises, é positivo constatar quantas pessoas estão ao
mesmo tempo entusiasmadas pelas oportunidades, e conscientes
das ameaças. A tentação de gastar uma riqueza inesperada é evidentemente forte. Mas se constata também que a visão geral defendida pelo governo é coerente: é uma riqueza brasileira, que não
deve ser alvo de simples concessões; é uma riqueza de todo o país,
e não do território onde se situa; é uma riqueza de longo prazo, de
uso comedido. E os resultados devem ser prioritariamente utilizados para ciência e tecnologia, educação, saúde e o resgate da dívida
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social do país. Evitando a tentação do lucro fácil e rápido, se evitará
o destino de tantos países que estão vendendo o presente sem organizar o futuro.
A comunicação está passando a desempenhar um papel central na racionalidade da organização do território em geral. Pequenos municípios ou pequenas empresas, ainda ontem isoladas, hoje
resgatam a sua viabilidade ao se conectarem com redes mais amplas, ao romperem o isolamento. As mudanças envolvem desde a facilidade de gestão de estoques até a redução de custos de transportes: são os bits que viajam, e não as pessoas. A universalização do
acesso às comunicações tornou-se hoje vital, e a preços condizentes
com os custos reais dos processos, evitando-se a tendência de estabelecimento de autênticos pedágios sobre a circulação da informação e do conhecimento. É uma área em plena revolução tecnológica,
e constitui um dos principais eixos de democratização da sociedade. A regulação do setor, em consequência, precisa ser democratizada, e a transparência nos processos é vital. Em termos de custo-benefício, conforme vimos, é uma das atividades que mais permite
gerar economias externas tanto para as empresas produtoras como
para as famílias. Os preços hoje cobrados não são admissíveis. A
estratégia que emerge em numerosos países, é de assegurar o livre
trânsito nas infovias da internet (inclusive nos celulares), da mesma forma como é livre o trânsito nas ruas, o que não impede que
sejam criados negócios a partir do potencial de comunicação. Mas
a própria comunicação, na medida em que gera capacidade criativa de todos os atores sociais, deve ser aberta. O Plano Nacional de
Banda Larga deve assegurar um marco regulador para o conjunto
das atividades do setor.
A água no Brasil sofre em grande parte do mesmo drama de
outras riquezas: como o Brasil tem muitas, a tendência é o desperdício. A água é meio de transporte (inclusive muito subutilizado em
várias regiões do país), eixo vital para a agricultura que consome
cerca de 70% do total, fonte de energia hidroelétrica, fonte de proteínas através da pesca, insumo essencial para um conjunto de setores
industriais, fator importante de lazer em particular para as cidades,
atrativo turístico, além, evidentemente, do consumo das pessoas.
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No conjunto, vender água rende, mas fazer esgoto e tratamento não
aparece. Gera-se assim um grande problema, no caso do Brasil não
de abastecimento, e sim de destino final. Para os que usam a água,
livrar-se dela é mais barato. Água contaminada dentro da empresa pode ser tratada com baixos custos. Uma vez diluída nos rios, a
poluição se generaliza, e a recuperação é incomparavelmente mais
cara. Os cerca de 60 mil toneladas de fezes que produzimos diariamente, têm na maioria o mesmo destino, espalhando bactérias, e
multiplicando os custos. A excessiva quimização agrícola com irrigação intensiva contamina tanto os lençóis freáticos como os rios e
as orlas marítimas. A gestão da água envolve dinâmicas inovadoras
de gestão, como os comitês de bacia e, sobretudo, uma mudança no
tratamento de um bem essencial que está sendo maltratado. Muitas
das medidas passam por iniciativas de nível tipicamente municipal,
mas os impactos são regionais, e a governança articulada entre esferas de governo torna-se importante. O saneamento básico e o uso
racional da água em geral constituem hoje sem dúvida um dos eixos
estratégicos da agenda. O impacto positivo para o meio ambiente é
central, mas é também econômico, social e cultural.
No conjunto, as infraestruturas hoje obedecem a uma visão
ampla e de longo prazo no quadro do Programa de Aceleração do
Crescimento, complementado pelo PAC II. Os dois programas permitem visualizar um desenvolvimento integrado, pois incorporam
os diversos planos setoriais, como o Plano Nacional de Logística e
Transportes, o Plano Nacional de Desenvolvimento de Recursos Hídricos, o Plano Nacional de Energia 2030. Mais Saúde, planos de
desenvolvimento urbano, em um leque articulado de ações. Resgata-se assim não só o planejamento, como a intersetorialidade.
Conjugando a capacidade articuladora do PAC e do PAC II, o reforço
financeiro que deverá vir do Pré-Sal, a dinamização que geram as
perspectivas da Copa e das Olimpíadas, e a solidez atual da gestão
financeira no país, as perspectivas são positivas. E os impactos serão econômicos no barateamento pelas economias externas geradas e demandas de investimentos induzidos, ambientais pela racionalização de uso dos recursos (particularmente hídricos), sociais
pela melhoria das condições de vida dos segmentos mais pobres
265
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
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da população. A capacidade de gestão e os diversos entraves gerados por interesses particulares constituem o elo fraco do sistema,
e nos remetem ao problema da racionalização da máquina pública.
No entanto, é gerando as dinâmicas que se obtém gradualmente a
racionalização dos procedimentos, a desburocratização, a gestão
mais eficiente.
7. O potencial da agricultura
O Brasil tem mais de 150 milhões de hectares de boa terra a
ser incorporada no processo produtivo, mais do dobro do que é
hoje utilizado para a lavoura temporária e permanente somadas.
Isto constitui a maior reserva de solo parado do planeta. E os recursos hídricos são também entre os mais abundantes, tanto em águas
de superfície como no aquífero Guarani. Com esta disponibilidade
de terra e de água, e um clima ameno, além do acúmulo de capacidade tecnológica, diversificação do mercado externo, e mercado
interno crescente, a agricultura deve ser vista como um eixo estratégico de primeira importância para o desenvolvimento do país. E
não só como fonte de produtos: segundo a PNAD 2008, 30 milhões
de pessoas vivem no campo. A agricultura familiar emprega 10 milhões de pessoas.10 As próprias condições de vida e de trabalho no
campo representam um objetivo estratégico.
Tem sido colocado com razão que com a evolução planetária
para a biocivilização, o Brasil tem trunfos importantes. Domina amplamente a tecnologia do biocombustível e a cana-de-açúcar representa de longe a melhor relação entre energia consumida e energia
produzida. A produção de grãos, ainda ontem estabilizada na faixa
de 100 milhões de toneladas, hoje beira 150 milhões, com fortíssimo potencial de mercado mundial que necessita cada vez mais do
produto, pelo aumento da população, escassez de terra e de água, e
aumento da demanda por biocombustível. Os avanços da pesquisa
na utilização dos resíduos para produção de biocombustível celulósico, plástico biodegradável e outros subprodutos estão na fase
não da pesquisa fundamental, mas de redução de custos. Estamos
claramente chegando a uma mutação profunda, conforme relatório
10 IPEA – PNAD 2008, Primeiras Análises, Setor Rural – 29 de Março 2010 – Comunicados n. 42
11 IAASTD - http://dowbor.org/wp/?p=1147
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recente do International Assesment of Agriculture, Science and Technology for Development (IAASTD) 11.
A expansão quantitativa hoje já não basta. A racionalização do
uso dos recursos hídricos, evitando tanto desperdícios como contaminação por agrotóxicos e excesso de quimização constitui um
objetivo importante, na linha da produtividade sistêmica do território, envolvendo todos os recursos. A redução do custo dólar da
unidade de produto, ao reduzir a componente importada dos insumos constitui outro. A pegada ecológica das unidades produtivas,
pela evolução para combustíveis renováveis, tanto é favorável para
a conta de emissões do país, como para a força dos produtos nos
mercados internacionais com regras ambientais cada vez mais estritas. As relações de trabalho frequentemente medievais têm de ser
transformadas no sentido de assegurar critérios de emprego decente. E evidentemente a agricultura ilegal, tanto por desmatamento na
Amazônia e no Cerrado, como por destruição de matas ciliares, uso
de mão de obra escrava, uso de produtos químicos sem proteção adequada para os trabalhadores e semelhantes tem de ser combatida,
não só no local de produção, mas em toda a cadeia, desde a venda de
insumos, até o acesso ao crédito e no circuito comercial. O mercado
internacional está evoluindo rapidamente para a rastreabilidade geral dos produtos (tagging), e as mudanças deste setor agrícola, para
uma excelência não só produtiva, mas também social e ambiental, só
pode contribuir para reforçar a economia do país.
A agricultura familiar, por sua vez, responsável por 70% da
produção dos nossos alimentos, e ocupando 10 milhões de pessoas, necessita de um sistema integrado de serviços de apoio, como
existe em países desenvolvidos. A policultura de pequena escala
é extremamente produtiva, mas precisa de assistência técnica, de
apoio de comercialização, de acesso a informações de mercado, de
possibilidade de aluguel de máquinas que sua escala não permite
nem exige adquirir, de sistemas de crédito e semelhantes às chamadas redes de serviços de suporte. A dinamização pode se dar por
núcleos de fomento e apoio integrado em cada município, envolvendo também as experiências de compra local de produtos para
267
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a merenda escolar, a formação de cinturões verdes de hortifrutigranjeiros em torno das cidades, a própria agricultura urbana que
está saindo da zona folclórica para se tornar fonte importante de
trabalho e de produtos de alta qualidade. Enquanto o agronegócio
trabalha com as suas próprias máquinas e oficinas de manutenção,
redes de comercialização, de consultoria técnica, de financiamento,
o pequeno agricultor precisa dos mesmos aportes, mas utilizados
de forma coletiva, sob a forma de cooperativos de serviços ou semelhantes. Os avanços aqui têm sido muito significativos, em particular com o Pronaf que passou de cerca de 2 para 13 bilhões de
reais. No entanto, o financiamento representa uma parte do ciclo,
como o demonstram as experiências do Banco do Nordeste no seu
financiamento rural acoplado a outras atividades de fomento, em
particular aproveitando a rede do banco para informações comerciais que liberam o produtor dos atravessadores12.
O que está saindo de cena, em termos estratégicos, é a visão de
que a policultura familiar representa o passado, e a monocultura mecanizada o futuro. Produzir cana e soja é diferente de produzir tomate e feijão. A Europa, com as suas pequenas propriedades, pouco solo
e grande densidade populacional, hoje tem de dar subsídios para se
produzir menos alimentos, menos leite. O que temos pela frente é um
início de aproximação entre os dois mundos rurais que se foram constituindo. O pequeno produtor pode perfeitamente entrar em simbiose
com o grande, no sentido de aproveitamento de subprodutos, de aproveitamento de potencial de cultivos consorciados e outros.
Em terceiro nível, está a população privada de terras, ou de
terras em escala ou qualidade insuficientes para um processo virtuoso de melhoria de quantidade e de qualidade de produto. A criminalização do MST, no país de maior reserva planetária de terras
paradas, é simplesmente absurda. A função social da terra está claramente estipulada na Constituição, e a busca das pessoas por terra
tem de ser vista não como ameaça, mas como potencial produtivo.
O acesso a terra, neste país tão bem dotado, tem de ser garantido,
12 Sobre as experiências do BNB, ver em particular o estudo de Clarício dos Santos Filho,
http://criseoportunidade.wordpress.com/2010/01/22/fundos-rotativos-solidarios-dilemas-avancos-e-esperancas-de-uma-politica-publica-inclusiva-no-marco-da-economia-solidaria-no-nordeste-do-brasil-claricio-dos-santos/
8. Intermediação financeira: o crédito como fomento
Os bancos comerciais no Brasil constituem um grupo muito pequeno, que trabalha com crédito para poucos, e com taxas de juros
extremamente elevadas. A taxa Selic é a mais comentada na mídia,
mas com 8,75% ao ano já não constitui um fator chave. No centro
está hoje o problema dos juros e tarifas cobrados ao tomador final.
A Anefa que publica mensalmente a sua pesquisa sobre as taxas de
juros praticadas, apresenta a seguinte situação para fevereiro de
2010: para pessoa física 6,92% ao mês, ou seja 123% ao ano. Para
pessoa jurídica, 3,65% ao mês, o que representa 54% ao ano. São
juros absolutamente proibitivos, podendo-se estimar como ordem
de grandeza que se paga aqui ao mês o que se paga na Europa ao
ano. Este cálculo não inclui as tarifas.
Com outra metodologia, mas comparando diretamente com
bancos no exterior, o Ipea constata que “para empréstimos à pessoa física, o diferencial chega a ser de quase 10 vezes mais elevado
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mas no ciclo produtivo rural a terra é apenas um dos insumos.
É importante lembrar que com a conectividade online que as
tecnologias modernas permitem, ser pequeno já não representa as
restrições de antigamente. Pequenos produtores de tilápia de Piraí
estão conectados e vendem diretamente a pele para o Japão, pois
quem está na net está ao lado. Esta tecnificação do pequeno está
avançando com extrema rapidez em todas as partes do mundo, desde a Índia até o Quênia. A eficiência já não é questão de tamanho.
Esta tendência se aplica não só ao pequeno agricultor rural, como
à pecuária, à pesca e outras atividades tradicionalmente divididas
em grandes e pequenos produtores.
No conjunto, a evolução para mais qualidade nos processos
produtivos, maior respeito nas relações de trabalho, incorporação efetiva das dimensões ambientais no conjunto das atividades,
maior equilíbrio de nível técnico entre os diversos tipos de agricultura, articulação de uso circular de produtos e subprodutos no
território, constituem um norte para este que é um eixo absolutamente estratégico para o país.
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para o brasileiro em relação ao crédito equivalente no exterior”13:
Taxa anual real de juros total* sobre empréstimos pessoais em
instituições bancárias em países selecionados na primeira semana de abril de 2009
Instituição
País
Juro real (em %)
HSBC
Reino Unido
6,60
Santander
Espanha
10,81
Citibank
Banco do Brasil
Itaú
Brasil
Brasil
E.U.A
Brasil
Brasil
Brasil
63,42
55,74
7,28
60,84
25,05
63,25
Fonte: Dados fornecidos pelas instituições bancárias para os juros e OCDE e BCB para inflação nos países selecionados e no Brasil
* Juros adicionados aos serviços administrativos, riscos de
inadimplência, margem de lucro e tributação.
Constatamos que, por exemplo, no caso do HSBC, a mesma linha de crédito custará 6,60% ao ano no Reino Unido, e 63,42% no
Brasil, na mesma instituição. Isto tem implicações fortes. Significa
que são instituições que se capitalizam aqui para reforçar os desequilíbrios nas matrizes, ou seja, financiamos em parte os custos da
crise dos desenvolvidos. Significa também que praticam uma taxa
de juros que trava as atividades econômicas no país mais do que
as fomentam. E de maneira mais ampla, significa que os grandes
lucros se deslocaram da produção para a intermediação financeira.
A intermediação comercial, que trabalha com juros nas prestações
13 Ipea – Comunicado da Presidência n. 20, Transformações na indústria bancária brasileira
e o cenário de crise, p. 15, tabela 2, 7 de abril de 2009; a pesquisa da Associação Nacional dos
Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac) está disponível em http://
www.anefac.com.br/pesquisajuros/2010/fevereiro2010.pdf
14 Airton Saboya – Semiárido em Transformação, março de 2010, disponível em http://criseoportunidade.wordpress.com/category/airton-saboya/
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em geral superiores a 100%, também passou a priorizar o lucro financeiro. Em vez de intermediários, trata-se neste caso de atravessadores.
Em termos de competitividade dos produtores brasileiros o prejuízo é evidente. O produtor aqui concorre com produtores no exterior que enfrentam custos financeiros incomparavelmente menores.
E no Brasil os grandes grupos internacionais que têm acesso direto a
dinheiro no exterior também têm vantagens. No plano da pequena empresa, a situação torna-se simplesmente difícil. No caso do Nordeste, a
pesquisa dos fluxos financeiros da região realizada pelo BNB mostra
que as agências dos bancos comerciais da região apresentam um balanço negativo, ou seja, mais retiram da região do que financiam.14 A intermediação financeira tornou-se assim um fator de elevação do chamado “custo Brasil” e um vetor importante da concentração de renda,
e, portanto, de redução da demanda. É significativo constatar que com
a redução do compulsório no momento mais grave da crise financeira,
os recursos não foram utilizados para fomentar a economia, e sim para
aplicações em títulos públicos.
O Brasil tem evidentemente um grande trunfo na mão, que é a
possibilidade de usar os bancos oficiais para reintroduzir concorrência no mercado cartelizado, permitindo ao mesmo tempo dinamizar a
economia ao estimular consumo e investimento. Este mecanismo, ao
que tudo indica, está sendo progressivamente implantado. O sistema
de intermediação financeira dos grandes grupos terá de evoluir para
mecanismos de concorrência. Um segundo grande trunfo é a possibilidade de continuar a reduzir a taxa Selic, o que tem um duplo impacto:
ao reduzir-se os ganhos dos rentistas que aplicam em títulos do governo, essencialmente bancos, os intermediários financeiros se veem
obrigados a buscar alternativas no setor produtivo, medida equivalente a injetar dinheiro na economia real; e ao reduzir os juros
sobre a dívida pública, libera recursos para o investimento público.
Lembremos que com uma dívida pública da ordem de 1,5 trilhão de
reais, e um serviço da dívida da ordem de 180 bilhões de reais por
ano, trata-se de um instrumento poderoso, ainda que de aplicação
necessariamente progressiva.
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Quando o lucro que se desloca de maneira desequilibrada para
grandes grupos de intermediação financeira e comercial, os produtores
passam a arcar com custos mais elevados. E os consumidores terão de
enfrentar estes custos, além de pagarem juros novamente ao adquirir
os produtos no crediário. Os primeiros se veem prejudicados na capacidade de investir e de produzir, os segundos na capacidade de consumir.
Um conjunto de iniciativas surge nos últimos anos, essencialmente através dos bancos estatais. O programa DRS do Banco do Brasil
está se expandindo, os créditos de fomento do Banco do Nordeste já
atingem 18 bilhões, essencialmente para pequenos produtores, muitos
municípios estão criando bancos comunitários de desenvolvimento, já
com apoio do Banco Central a partir de 2010. Estão se multiplicando
também cooperativas de crédito, e inclusive Oscips de intermediação
financeira. São iniciativas necessárias, frente ao comportamento dos
bancos comerciais, mas a racionalização do sistema de intermediação
financeira constitui um vetor importante de racionalização do conjunto
das atividades econômicas do país. Em particular, a inclusão bancária,
com capilaridade, flexibilidade nos produtos e nas garantias, e com juros minimamente compatíveis com as necessidades, está na ordem do
dia, como fator chave da inclusão produtiva.
9. Política tributária
De forma geral, a orientação do uso dos recursos públicos, tanto
nas políticas sociais, como nas medidas anticíclicas, gestão de desequilíbrios macroeconômicos e política de investimentos, melhorou de maneira muito significativa nos últimos anos. Esta orientação foi complementada com políticas de crédito dos bancos públicos, da CEF, do BB,
do BNB, do BNDES, que hoje são responsáveis, como ordem de grandeza, por metade do crédito outorgado, e incluem cada vez mais nos
seus critérios de financiamento visões de fomento econômico, promoção social e sustentabilidade ambiental. O grande desafio, nesta área,
não está na orientação da alocação, mas na qualidade final dos serviços,
em particular na educação e na saúde, qualidade diretamente afetada
pela pobreza geral da parte da população que mais usa estes serviços. A
qualidade aqui evoluirá com o conjunto das condições de vida da base
da pirâmide social. O segundo desafio está no volume de transferências
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
que gera o serviço da dívida pública, que baixou fortemente em termos
de porcentagem do PIB, mas que continua a drenar grande parte dos
recursos públicos para alimentar um rentismo basicamente estéril.
A maior coerência na alocação dos recursos públicos não foi acompanhada, no entanto, de comparável evolução na política tributária. O
travamento político é central neste campo, que provoca reações ideológicas e emocionais, e toca diretamente interesses cristalizados ao longo
dos anos. O resultado prático é o imobilismo generalizado. Neste sentido, qualquer proposta deverá mostrar não só a viabilidade técnica, mas
a sua viabilidade política.
Não se trata, é importante mencioná-lo, do nível geral dos impostos. Com 35% de carga tributária relativamente ao PIB, o Brasil está na
média razoável de país emergente, e bastante abaixo da carga tributária
dos Estados Unidos, situada na faixa de 40% - país de forte tradição
privatista inclusive na saúde e na educação, e até na segurança – ou dos
países europeus onde o Estado administra em torno da metade dos
recursos do país. Nos países nórdicos, este percentual está acima dos
60%. O problema não está no tamanho, mas em onde incide o tributo.
O foco da incidência tributária está na sua principal função de correção da desigualdade. Entram aqui como evidentes o imposto sobre as
grandes fortunas e sobre a herança, a alteração das alíquotas do imposto de renda, um melhor equilíbrio entre impostos diretos e indiretos.
Olhando pelo lado dos resultados que se busca, volta-se ao problema central da sociedade brasileira que é a desigualdade. O imposto tem
de ter a redistribuição como eixo fundamental. Isto implica desonerar a
base da pirâmide, facilitar a vida dos produtores, em particular dos pequenos, e cobrar mais das grandes fortunas e dos altos rendimentos dos
segmentos mais privilegiados, particularmente dos ganhos financeiros
não produtivos. Neste sentido, a diferenciação de alíquotas do imposto
de renda já adotada constitui um avanço, mas é evidente a necessidade
de ter alíquotas mais elevadas para níveis de renda muito elevados. Em
termos comparativos, a alíquota superior brasileira, de 27,5%, é simplesmente baixa. Os impostos diretos, onde a progressividade pode ser
aplicada, devem também ser privilegiados relativamente aos impostos
diretos, que são proporcionais, e terminam sendo regressivos para a
população de baixa renda.
273
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
274
Tem de se levar igualmente em conta que a questão ambiental está
se tornando um vetor importante da alteração das políticas tributárias.
Muitos países, frente à relativa inoperância dos mercados de carbono,
estão taxando diretamente as emissões. Na linha do poluidor-pagador,
é natural que incidam cobranças sobre quem gera custos, ou descapitaliza o país ao se apropriar de recursos não renováveis. Neste sentido
há uma revisão ampla do conceito de externalidades. A poluição de um
rio gera custos muito maiores para a sociedade em geral do que os custos dos filtros numa empresa. A racionalidade do maior custo/benefício
para a sociedade é central neste processo.
Mas a visão básica, é que um país com a desigualdade que tem
não pode continuar com uma carga tributária regressiva. O resgate
da progressividade terá os mesmos impactos que os processos redistributivos adotados estão tendo: dinamização da demanda na base
da sociedade, e uma ampliação dos negócios, com lucro unitário menor, mas sobre uma massa maior de produtos. Isto gera crescimento
da economia, o que por sua vez gera viabilidade política das reformas, na medida em que é mais viável uma distribuição mais igualitária dos ganhos suplementares.
10. Políticas ambientais
O grande deslocamento no eixo das políticas ambientais é que
passam a permear o conjunto das decisões no âmbito do Estado,
das empresas, dos movimentos sociais, do próprio estilo de vida
da população. Com toda a dificuldade de se generalizar uma visão
sistêmica e de longo prazo, quando tanto pessoas como empresas
estão mais preocupadas com problemas imediatos, e os governos
com o curto horizonte de uma gestão, a verdade é que a humanidade está enfrentando desafios inadiáveis.
Não se trata apenas do aquecimento global, que em si constitui um imenso desafio planetário. São rios contaminados, florestas
desmatadas, periferias urbanas onde se vive em condições subumanas, cidades prósperas que convivem com esgotos a céu aberto,
metrópoles paralisadas por excesso de veículos, alimentos contaminados por agrotóxicos, lixões a céu aberto que geram mais contaminação, mais doenças e mais custos. É uma sociedade do desper-
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
dício na água mal canalizada, nos subprodutos desperdiçados, nas
embalagens irresponsáveis, no lixo de mais de um quilo por pessoa
nos centros urbanos. E no nível planetário, é o esgotamento dos
recursos, com a sobrepesca nos mares, liquidação das reservas de
petróleo, perda de metais raros. A água já é tratada como ouro azul,
quando o seu uso racional, bem como de outros recursos, torna-se
cada vez mais viável com as novas tecnologias.
Trata-se aqui de promover a mudança cultural necessária,
pois o comportamento sustentável não pode ser reduzido à visão
de uma entidade burocrática que autoriza ou não um empreendimento. Cada vez mais, esta mudança exige a convergência de um
conjunto de atores sociais, com educação ambiental, adequação dos
currículos universitários, reforço da pesquisa, mudança na visão da
mídia e das mensagens publicitárias, geração de complementaridades interempresariais nos processos produtivos, adequação dos
procedimentos da grande empresa de monocultura, reorientação
da pecuária, generalização de políticas tecnológicas menos agressivas.
O mundo neste plano está mudando. A visão linear que vai
da matéria-prima extraída da natureza para a linha de produção,
depois para o consumo e o lixo, com esgotamento de recursos de
um lado e contaminação do outro, está cedendo o lugar para uma
visão circular em que o que é extraído é reposto no final do ciclo.
O nível de consciência está se deslocando rapidamente. Temos de
aprender a viver dentro dos limites estreitos que este pequeno e
frágil planeta permite.
Neste desafio há imensas oportunidades para os que souberem
ver o futuro que se desenha, e fizerem a tempo as reorientações que
se impõem. O PDP constata um aumento do investimento privado
em P&D de 0,51% do PIB em 2005 para 0,65% em 2010, passando
de 12 para 18 bilhões. São cifras radicalmente insuficientes quando
se considera a importância das mudanças tecnológicas necessárias,
e o papel que o Brasil pode desempenhar na área.
Neste sentido, o desafio ambiental, ao exigir mudanças na matriz energética, na organização urbana, no tratamento de esgotos,
na racionalização do uso das matérias-primas, nas tecnologias or-
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ganizacionais descentralizadas e integradas em cada município,
constitui uma oportunidade de avanços. As soluções não estão em
conter os custos agora mantendo os procedimentos de sempre, mas
fazendo o salto para enfrentar os desafios em condições mais vantajosas mais adiante.
Os condicionamentos ambientais, de geração de empregos
verdes, de uso de tecnologias alternativas e semelhantes devem
passar a fazer parte de todo financiamento, isenção ou subvenção.
O meio ambiente não é um entrave, é uma condição de avanço acelerado para o futuro. Fator de redução de desperdícios, de uso mais
racional dos recursos, gerador de empregos, vetor de adoção de
novas tecnologias mais performantes, promotor de articulações e
processos colaborativos entre empresas, o desafio ambiental deve
ser visto com um dos principais eixos de transformação para a próxima década e as futuras.
11. Ampliação das políticas sociais
Da mesma forma como se pode apresentar impressionantes
avanços nas políticas sociais no país, conforme vimos no início do
documento, com o salário mínimo, o Bolsa-Família e tantos outros
programas, é também preciso constatar os dramas de 30 milhões
de pessoas que vivem em condições críticas, as imensas favelas que
cercam as nossas cidades, a criminalidade amplamente disseminada, a desigualdade no acesso aos serviços mais elementares, os
mais de 40% da população na informalidade. Em outros termos, os
avanços são grandes, mas a dívida acumulada é imensa. Torna-se
vital assegurar que a política adotada por um governo se transforme em política do Estado, mantendo a continuidade e a coerência.
A dimensão econômica da pobreza tem evidentemente um papel central, mas está longe de ser a única. Projeções recentes do
Ipea nos deixam otimista sobre este primeiro papel das políticas
sociais. “Se projetados os melhores desempenhos brasileiros alcançados recentemente em termos de diminuição da pobreza e da
desigualdade (período 2003-2008) para o ano de 2016, o resultado
seria um quadro social muito positivo. O Brasil pode praticamente superar o problema de pobreza extrema, assim como alcançar
15 http://www.ipea.gov.br/default.jsp - Ipea – Pobreza, Desigualdade e Políticas Públicas – 12
de janeiro de 2010, Comunicado da Presidência n. 38 – p. 8
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
uma taxa nacional de pobreza absoluta de apenas 4%, o que significa quase sua erradicação.”15 O nível de renda nos segmentos mais
críticos progride. A desigualdade de renda, no entanto, evolui de
forma muito mais lenta, pelo ponto de partida extremamente baixo
da base da pirâmide social, e torna-se essencial agora expandir e
manter o conjunto de políticas que favorecem o equilíbrio social e
regional. Acumulam-se aqui as desigualdades entre segmentos da
sociedade, entre regiões, desigualdade de gênero, de raça, e entre
zonas rurais e urbanas.
A partir de Amartya Sen, passamos a considerar de maneira
sistemática as dimensões não econômicas da pobreza. Neste sentido, as políticas sociais devem dinamizar o acesso democrático e
de qualidade aos serviços básicos. O grande desafio aqui é reduzir
a polarização que a desigualdade foi cristalizando em todas as áreas, com educação de pobre e de rico distantes, e o equivalente nas
áreas de saúde, de lazer, de cultura e assim por diante. Este vetor
implica um esforço generalizado de universalização, mas também
de qualificação do conjunto dos serviços públicos. As políticas afirmativas não constituem privilégios, corrigem privilégios, e o Estado
tem um papel fundamental a desempenhar neste processo.
Tal como as políticas ambientais, o social tem forte dimensão
de transversalidade. As políticas sociais constituem ao mesmo tempo setores de atividade, como saúde, educação, cultura, esporte,
informação, lazer, segurança – o conjunto dos investimentos diretamente orientados para a valorização das pessoas – e uma dimensão
de todas as outras atividades, como relações de trabalho, qualidade
das infraestruturas, formas de organização da produção agrícola e
assim por diante. Neste sentido, são políticas que envolvem todos
os setores da sociedade. O Estado tem sem dúvida um papel central
a desempenhar, em particular na garantia de acesso aos principais
serviços públicos. O terceiro setor está majoritariamente concentrado nas políticas sociais, e apresenta elevada eficiência, pois se
trata em geral de atividades que exigem articulação direta e concreta com pessoas, bairros, comunidades. E as empresas hoje es-
277
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tão indo muito além da cosmética em termos de responsabilidade
social. Estudo comparado de políticas sociais no Programa Gestão
Pública e Cidadania da FGV-SP mostra que o denominador comum
das políticas sociais que demonstraram grande eficiência nas diversas regiões do país é o fato de serem executadas em parceria, envolvendo tanto o setor público, como empresas e as organizações da
sociedade civil. Tornam-se assim mais sustentáveis e permanentes.
A inclusão social não envolve apenas o acesso à renda e aos
serviços públicos. Envolve também o direito de se apropriar da
construção destas políticas, de ser cidadão. Neste sentido, políticas descentralizadas, administradas no nível do território onde as
pessoas possam participar diretamente, constituem a forma privilegiada de organização. Ao mesmo tempo, as parcerias, consórcios
intermunicipais, cofinanciamento de programas, controle cruzado
de gestão e de resultados, sistemas compartilhados de informação
e outros mecanismos permitem democratizar gradualmente o processo decisório sem fragmentar as políticas.
É importante ressaltar a dimensão das políticas sociais: nos
Estados Unidos, só a saúde representa 17% do PIB, é o maior setor
econômico do país. Vimos acima que a educação envolve no Brasil
mais de um quarto da população, entre alunos, professores e administradores. A segurança está se tornando uma área de grande
peso social. As atividades culturais estão se tornando cada vez mais
amplas. A realidade é que o conjunto que podemos caracterizar
como políticas sociais tende a se tornar o principal eixo de atividades na sociedade moderna. Não é um complemento aos processos
produtivos, é o processo central de transformação da sociedade. E
a presença maior do Estado nos países mais avançados está diretamente ligada à expansão destas políticas, que não geram “inchaço”
da máquina com burocratas, mas asseguram melhor cobertura de
educadores, médicos, enfermeiros, agentes sociais.
Uma consideração particular sobre as políticas de segurança.
A polarização tradicional das visões apresenta propostas repressivas de um lado, e sociais de outro. E com as acusações recíprocas
de truculência ou de leniência. Na realidade, se considerarmos a
cifra vista acima, de 27% de jovens entre 15 e 24 anos de idade nas
Nota final
O que se constatou no conjunto das discussões que levaram
ao presente documento, é antes de tudo um forte otimismo quanto
à dinâmica que o país assumiu nos últimos anos. Visões diferenciadas, mas que tem em comum a busca de convergências e sugestões
de novas oportunidades que podem ser aproveitadas.
Há um acordo geral sobre os rumos e sobre os principais
eixos de mudança que se verificaram nos últimos anos: política
redistributiva, consumo de massa, condução prudente da macroeconomia, diversificação de mercados externos, reforço do
mercado interno, condução exemplar no enfrentamento da crise
financeira, a importância crescente dos desafios ambientais, a
articulação latino-americana.
Uma preocupação claramente convergente é, entre as políticas
aplicadas, vistas como positivas, e o relativo atraso na modernização dos instrumentos de gestão do Estado. Há clareza sobre o papel
indutor, planejador, articulador e executor do Estado, mas também
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
metrópoles brasileiras que não estão nem na escola nem no emprego, a base social para a insegurança torna-se evidente. E o crime
organizado passa a ter uma fonte ilimitada de mão de obra. Neste
sentido, na linha dos trabalhos de Luis Eduardo Soares, entendemos hoje a necessidade de uma política combinada de forte aparato repressivo contra o crime organizado, e de forte progressão das
políticas sociais inclusivas. Enquanto houver uma massa de jovens
sem lugar na sociedade e sem perspectivas, a construção de mais
presídios e a compra de mais viaturas continuarão a representar
apenas o curto prazo.
As políticas sociais, como setores específicos e como eixo
transversal, aparecem na realidade nos diversos pontos da presente agenda, nas propostas de uma política de garantia do emprego, da redução da jornada, do acesso à banda larga, de reforço do
universo da educação, da política de apoio à agricultura familiar e
assim por diante. Em termos gerais, indo além do PIB e da visão estreita do crescimento econômico, trata-se de assegurar a elementar
qualidade de vida para todos.
279
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
280
sobre os desafios em termos de agilidade do processo decisório,
transparência dos procedimentos, redução da carga burocrática.
Apareceu também fortemente a consciência do salto tecnológico que o país tem de assegurar, vetor central das transformações
econômicas e sociais na atualidade. Estamos entrando na economia
da informação, na sociedade do conhecimento, e precisamos nos
equipar melhor neste plano.
O eixo que mais apareceu nas discussões e entrevistas foi a
questão da educação. A priorização é vista como essencial. A cobertura básica foi assegurada, mas claramente a dimensão da qualidade continua sendo o desafio. Fica no esboço a ponte entre a educação que hoje temos, e que precisa ser melhorada, e a sociedade do
conhecimento que navega nas novas tecnologias, que exige reformulações mais amplas.
Nos desafios do mundo do trabalho, há uma convergência para
a visão articulada da elevação continuada do salário mínimo, da
busca da redução da jornada, das políticas de garantia do emprego, da qualidade de vida no trabalho, do reforço dos sistemas de
formação.
As políticas relativas ao desenvolvimento local aparecem de
maneira dispersa, mas há uma clara visão de que ao fim e ao cabo a
vida tem de melhorar onde moramos e trabalhamos, e que a escala
relativamente menor do município permite uma gestão mais direta
e eficiente das políticas.
De forma geral, sente-se que há um rumo na política de infraestruturas, constata-se o resgate de instrumentos de planejamento e uma dinâmica não só quantitativa de investimentos, como de
resgate da coerência sistêmica que deverá assegurar a geração de
externalidades positivas para o conjunto dos produtores. A preocupação maior é com o ritmo e a gestão dos processos.
A agricultura aparece nas diversas visões, e nas suas múltiplas facetas, envolvendo a poderosa dinâmica do agronegócio
mais preocupado com canais de exportação, a agricultura familiar com seu peso central no abastecimento alimentar, o eterno
desafio da reforma agrária. A busca é de se reduzir a dicotomia,
assegurar um melhor equilíbrio financeiro e tecnológico entre
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
os diversos universos. A fartura de terra e água no Brasil pode
assegurar espaço para todos.
A preocupação com a intermediação financeira comercial é
particularmente sentida pelos que têm de enfrentar custos financeiros completamente desconectados da realidade mundial. Isto
afeta os produtores nacionais que enfrentam a concorrência de
produtores externos, que têm custos financeiros incomparavelmente menores e dos grandes grupos multinacionais no Brasil que
têm acesso a créditos no exterior. O sistema dos bancos públicos
faz contrapeso, mas a racionalização da intermediação comercial
se impõe.
A política tributária aparece como fator de descontentamento
entre praticamente todos, mas ao mesmo transparece a dificuldade
de mover um sistema extremamente complexo, e travado por interesses enraizados. O eixo é a manutenção do nível, mas a redistribuição da incidência, de forma a reforçar o caráter redistributivo,
ao mesmo tempo em que aparecem as dimensões ambientais da
dinâmica tributária.
As políticas ambientais aparecem na sua intensa ramificação,
pela transversalidade das políticas que exige. O eixo geral é que não
pode ser mais visto como sistema burocrático de autorização de
obras, e sim como mudança dos critérios de decisão do Estado, dos
órgãos financiadores, das empresas, dos movimentos sociais, e do
próprio estilo de vida da população. Mais que um entrave, deve ser
uma oportunidade para um salto tecnológico na direção onde outros estão avançando rapidamente.
O aprofundamento das políticas sociais aparece também como
eixo transversal e central para o futuro do país. Os avanços têm sido
grandes, mas o caminho por seguir é muito maior. O grande avanço
é que boa parte da sociedade compreendeu, por ver os resultados
positivos, que as políticas sociais não representam um custo, mas
um investimento na pessoa humana; que não “pesam” sobre a economia, mas são uma condição básica da produtividade do conjunto. As políticas sociais são um fator chave da estabilidade de todo
o processo através da dinâmica do consumo. Enfim, a realidade é
que ter uma vida com saúde, educação, cultura, habitação decente,
281
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282
segurança – e não apenas bens materiais, é vital para a nossa qualidade de vida.
No conjunto, aparece no horizonte a construção de um universo mais equilibrado. No plano social, com redução das desigualdades, no plano ambiental com o resgate do bom senso no uso dos
nossos recursos, no plano econômico com busca de soluções inovadoras frente aos novos paradigmas tecnológicos.
As sugestões dispersas nas numerosas discussões e entrevistas mostram antes de tudo bom senso, busca de interesses comuns,
com inúmeras sugestões pontuais que não foi possível recolher
aqui, mas que poderão ser objeto de outra sistematização.
Pablo Monje-Reyes12
… tienen la fuerza, podrán avasallarnos,
pero no se detienen los procesos sociales,
ni con el crimen, ni con la fuerza,
la historia es nuestra y la hacen los pueblos…
Extracto último discurso en el Palacio de La Moneda
Presidente Dr. Salvador Allende
11 septiembre de 1973
1. Presentación
Este ensayo es producto de la conferencia de clausura que el
autor realizó en el V Encuentro Nacional de Pesquisadores de Gestión Social realizado en Florianópolis – Brasil en mayo 2011.
El objetivo del ensayo es discutir y describir el estado del arte
del concepto de Gestión Social3 en Chile contemporáneo. La opción
temporal del análisis que se desarrolla en el ensayo está marcada
por hechos políticos importantes para el país, que han definido su
vida institucional en los últimos 40 años.
El artículo comienza analizando las prácticas de gestión social
en el periodo de la dictadura cívico militar (1973–1990). En este
periodo se producen los grandes cambios estructurales del Estado, por medio de la reformas neoliberales. Se reestructura la matriz estatal, que antes de la dictadura era de carácter de bienestar
1 Pablo Monje-Reyes - licenciado en Ciencias Políticas y Administrativas, Universidad de Los
Lagos, Magister en Gestión y Políticas Públicas, Universidad de Chile. Actualmente se desempeña
como director ejecutivo del Centro de Estudios y Análisis de Políticas Públicas – CEAPP.
2 El autor agradece los comentarios del texto y su perspectiva de análisis a la Prof. Marcela Ferrer-Lues.
3 El concepto de gestión social en este ensayo se entenderá “como processo gerencial dialógico em
que a autoridade decisória é compartilhada entre os participantes da ação (ação que possa ocorrer em
qualquer tipo de sistema social – público, privado ou de organizações não-governamentais). O adjetivo social qualificando o substantivo gestão será entendido como o espaço privilegiado de relações
sociais no qual todos têm o direito à fala, sem nenhum tipo de coação (TENÓRIO, 2008, p. 158).
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
El estado del arte del concepto de gestión social en
el Chile contemporáneo
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| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
284
social, a una matriz de mercado como principal agente ordenador
de la sociedad. Este cambio de matriz estuvo marcado por la ausencia de oposición a las reformas por parte de sectores políticos y
sociales, puesto que la dictadura desarrolló, paralelamente al cambio de matriz, una política sistemática de represión y violación de
los derechos humanos de los sectores opositores. La gestión social
fue implementada por sectores de oposición, como una práctica de
resistencia a la dictadura. También, como una forma de morigerar
solidariamente los efectos de las reformas estructurales en la población, que se empobrecía cada vez más por el retiro impuesto de
las políticas de bienestar social.
El artículo continúa analizando las prácticas de gestión social en el periodo de retorno de la democracia (1990–2010). En
este periodo se constata la continuidad del modelo neoliberal
fundado por la dictadura cívica militar que, paradojalmente, fue
administrado por quienes se habían opuesto a ella. Esto fue posible porque hubo acuerdos entre la dictadura y los partidos de
oposición, para mantener el modelo de desarrollo neoliberal.
Para lo cual la gestión social, que había sido una práctica de resistencia en la dictadura, pasa a ser no deseada por los nuevos
gobernantes. Se desarticula la movilización social. Se debilitan
las instituciones y organismos sociales que habían desarrollado gestión social durante la dictadura. Se termina con los flujos
de financiamiento internacional. Se coopta a sus profesionales y
técnicos, que pasan a integrar el gobierno democrático. Se profundiza el modelo de mercado en las políticas públicas, a través
de los subsidios a la demanda social. Y se desconcentran las políticas públicas a nivel local, en donde incipientemente se trató
de implementar una gestión social de carácter legitimadora, en
la base social de las políticas.
2.Antecedentes
2.1 Las bases del neoliberalismo en Chile
El modelo neoliberal en Chile se instauró por medio de una
dictadura cívico militar. La dictadura militar chilena tuvo como base
2.2 Las violaciones a los derechos humanos y su
objetivo político
Para conseguir las reformas estructurales del Estado, la Dictadura Militar construyó un argumento poco verosímil. El dictador, y todo el aparato comunicacional del Estado, sustentaban
la idea “legitimadora de la dictadura” en que esta se instauraba
para detener el “comunismo internacional”, el “cáncer marxista”,
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política a una elite militar con amplia formación socio política y militar, en la Escuela de las Américas en Panamá. Contó también con
una elite civil, que en lo valórico – político era muy conservadora,
mientras que en lo económico – social exageradamente neoliberal.
Este pacto político permitió, a fines de los setenta, realizar las
grandes reformas estructurales (MONJE, 2005), que dieron paso
al desarrollo del modelo neoliberal, antes que cualquier país en el
mundo. Estas reformas fundamentalmente trajeron consigo el desmantelamiento del Estado de Bienestar forjado por más de 40 años
en Chile a partir de la década de 1930.
La idea central de las reformas, todas independientes entre si,
pero articuladas ideológicamente, tenían como meta retirar al Estado de las relaciones socio económicas entre trabajadores y empresarios. Generar las condiciones para que el mercado se desarrollara
sin contrapeso. Configurar un sistema político que garantizara el
status quo, fundado en la nueva Carta Constitucional de 1980.
Uno de los efectos más importantes, y que perdura hasta el día
de hoy, es el fin de relaciones sociales entre el Estado y los trabajadores. Desde ahí en adelante, el Estado solo cumple con la función
de asignación de subsidios y desarrollo de cartera de “clientes” de
políticas sociales. Esto se realiza mediante la creación de sistema
de asignación de subsidios, que opera determinando la demanda
y financiándola por medio de “vouchers”, con lo cual se organiza el
mercado público de políticas sociales.
Todas estas reformas estructurales solo fueron posibles en el
contexto de una dictadura cívica militar, que sistemáticamente violó los derechos humanos de sus opositores, como parte de la estrategia de instalación del modelo neoliberal.
285
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286
la “destrucción de la familia por medio de la lucha de clases”, entre otras frases de ideas-fuerza.
Con estas ideas-fuerza se intentaba también legitimar la violación sistemática de los derechos humanos de quienes sustentaban
el ideario marxista, de larga tradición en sectores obreros, intelectuales y culturales en Chile desde fines siglo XIX. Esto se tradujo en
la persecución política más despiadada de personas en el Siglo XX
en el Chile republicano.
A los inicios de la dictadura, la persecución política consistió
en el encarcelamiento masivo de personas en centros de detención,
la tortura sistemática de los detenidos/as en los mismos centros,
la ejecución sumaria de personas por medio de juicios de guerra,
la detención y desaparición forzada de personas. La mayoría de estas personas pertenecían a partidos de la izquierda chilena, entre
ellos el Partido Socialista (PS), Partido Comunista (PC), Movimiento
de Izquierda Revolucionaria (MIR), como también dirigentes sindicales y sociales, pertenecientes a la Central Única de Trabajadores
(CUT) y organismos sociales de base.
La dictadura, en su primera etapa, contó con los aparatos
de inteligencia de las fuerzas armadas y de orden, que sirvieron para realizar estas acciones. Famosos son el “Comando Conjunto” (1975–1977) organismo creado entre todas las fuerzas
militares, para la persecución de las cúpulas políticas, en particular la del Partido Comunista. La Dirección Nacional de Inteligencia (DINA) (1973–1977), siendo la principal responsable de
la primera etapa de represión, persecución, tortura, ejecución
y desaparición forzada de personas. De hecho, en la actualidad
la cúpula militar y civil de este organismo purga condenas por
sobre 200 años de cárcel y aún se le siguen sumando condenas.
A posteriori de 1977, la dictadura, debido a la presiones de organismos internacionales, suprimió a la DINA, para ocultar antecedentes y pistas de los actos de este organismo represivo. Inmediatamente creó la Central Nacional de Informaciones (CNI),
la cual es fue continuadora de la política sistemática de persecución de la dictadura hasta 1990 (INFORME RETTIG; INFORME
VALECH). Tanto la DINA como la CNI desarrollaron una política
2.3 Visión de Estado y la Sociedad
Retomando las reformas estructurales del Estado se articularon nuevos énfasis en los agentes económicos y se crearon nuevos
mercados. Por ejemplo, el de la previsión social, que quedó a manos de las Administradoras de Fondos de Pensiones (AFP), organismos privados que administran los recursos de los trabajadores
por medio de un sistema individualista de capitalización previsional, terminando con el principio de solidaridad que desarrollaba
el sistema de reparto social del Estado de Bienestar. De la misma
manera, en el ámbito de los seguros de salud, se crearon las Instituciones de Salud Previsional (ISAPRE), que administran los recursos de los trabajadores para las atenciones de salud, por medio de contratos individuales de prestación de servicios. Se funda
y fortalece la visión de individualismo en el ámbito del sector de
salud y previsional.
En el sector educación, se promovió la privatización de la educación superior, por medio Decreto con Fuerza de Ley Nº 4, que
permite la creación de universidades, institutos profesionales y
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
de persecución, y contaron con recursos financieros, humanos y
logísticos del Estado para cumplirla.
Evidentemente, con un organismo de Estado persiguiendo y
reprimiendo a sectores políticos que se hubiesen opuesto a las reformas estructurales, el modelo neoliberal en Chile no se hubiese
impuesto con la facilidad que se percibe. Por tanto no corresponde,
como algunos intelectuales y académicos plantean en distintos hemiciclos, tratando de naturalizar la instalación del neoliberalismo
como una respuesta socio – política de carácter espontanea a la crisis del modelo desarrollista.
El modelo neoliberal, desde una perspectiva ético – política,
nació sobre la barbarie de una dictadura cívico militar, que no discriminó ningún medio para conseguir sus objetivos institucionales,
ni menos cuestionó la legitimidad de sus acciones. Esto explica porque el modelo se fortaleció y se desarrolló en medio del terror de
una dictadura, tanto desde la perspectiva objetiva (política y económica) como de la subjetiva (cultural y simbólica).
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288
centros de formación técnica privados. Esto se ha traducido en una
baja ostensible de la calidad de la educación superior. También, en
la mercantilización de la formación profesional, sin una mirada de
desarrollo y proyecto país.
En el ámbito de la educación primaria y secundaria, el Estado
descentralizó su gestión y traspasó su administración a los municipios. Los municipios reciben recursos financieros por medio de un
sistema de pagos (voucher) por asistencia de los/as alumnos/as,
con lo cual gestionan los establecimientos educacionales a su cargo. Este modelo es la puesta en marcha del mercado educacional. Se
financia la demanda por educación y no la oferta, como era hasta la
década de los setenta.
En las políticas de fomento productivo, se levantó la idea de la
creación del micro, pequeño y mediano empresario. Se desnaturalizó las funciones del artesanado y obreros especializados, tan importantes en el desarrollo productivo de cualquier país. Esta nueva
conceptualización trajo consigo la idea de la renta de corto plazo y
el individualismo productivo, como forma de éxito y desarrollo de
esta nueva dimensión subjetiva.
En las políticas laborales, el nuevo Código del Trabajo, se escrituró desde el principio de mercado. La relación laboral patrones y obreros se define como una acción entre privados. El trabajador vende su fuerza de trabajo a precios relativos, y el empresario empleador la compra en una negociación bis a bis. El Estado no
interviene, solo regula el factor legal de la relación. Se debilita la
negociación colectiva y la formación de sindicatos. Se entrampa burocráticamente el derecho a huelga, haciéndolo casi impracticable,
porque el empresario tiene derecho reemplazar a los trabajadores
en huelga hasta que dure el conflicto laboral (factor de presión es
igual a cero). En resumen, se privilegia la mirada individualista del
trabajo y de los/as trabajadores/as con respectos a sus derechos
laborales.
En síntesis, la sociedad chilena, fue reestructurada en términos políticos, económicos, sociales y culturales, sobre la egida del
neoliberalismo (MOULIAN, 2002). Su concepción de sociedad es el
individualismo maximizador de beneficios. Funciona metodológi-
3. Gestión Social en Dictadura
Para analizar la gestión social en el periodo de la dictadura
cívico militar se procederá a mirar en dos niveles analíticos. Primero, la dimensión organizacional de carácter político – social.
Segundo, desde su dimensión de gestión en la descripción de acciones practicas de gestión social.
3.1 Gestión Social en Dictadura - Dimensión
Organizacional
•
Organizaciones de base para la lucha contra la dictadura
y vinculación sistema de partidos políticos
La gestión social la podemos vincular fundamentalmente al desarrollo de formas de oposición política, de carácter activo contra la
dictadura militar en Chile. Existiendo políticas de represión política a
los partidos de oposición, sobre todos a lo de origen marxista, estos
siguieron funcionando en clandestinidad. Sus acciones políticas se
orientaron fundamentalmente a crear un gran bloque de oposición
a la dictadura cívico militar. Para lo cual implementaron formas de
gestión social que les permitieran el resguardo de sus organizaciones, como a la vez hacer conciencia política de la necesidad de volver
al sistema democrático, y terminar con la dictadura.
•
El rol de la Iglesia Católica
De la misma manera al rol que jugaron los partidos políticos en clandestinidad, la Iglesia Católica creó la Vicaria de la
Solidaridad. Organismo que tuvo como objetivo central la defensa de los derechos humanos de las personas perseguidas
por la dictadura. A través de las pastorales: obreras, campesi-
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
camente a partir del ser egoísta y hedonista que opera con estos
principios al interior del mercado de bienes y servicios. El Estado
solo juega un rol de regulador pasivo y de subsidiador, en el caso de
que la persona no tenga los suficientes ingresos para demandar en
el mercado bienes y servicios.
289
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
290
na, universitaria y sociales, desarrollaron gestión social. Principalmente, por medio de programas de alimentación, formación de líderes, abrigo, vivienda y comunicaciones. Además la
infraestructura de física de la iglesia sirvió como un espacio de
desarrollo de las organizaciones sociales y de resistencia política, social y cultural en los sectores populares en contra de la
dictadura cívico militar.
•
Organizaciones No Gubernamentales con apoyo y
financiamiento internacional
Las Organizaciones No Gubernamentales (ONG’s) también
jugaron un rol en la resistencia contra la dictadura. En particular, en el desarrollo de acciones de gestión social que permitían
paliar los efectos de los ajuste del modelo neoliberal, en la población más pobre del país. Una parte importante de ellas estuvo ligada a medios de comunicación alternativos, otras a la búsqueda de apertura de espacios culturales de resistencia, otras
a la gestión social en el ámbito de la salud, la educación y la vivienda social.
Parte importante de las ONG’s recibieron apoyo financiero,
para el funcionamiento y desarrollo de sus programas de intervención, por parte de organismos internacionales, de la solidaridad de chilenos/as en el exilio, o de gobiernos socialdemócratas de Europa principalmente.
•
Gestión Social en Dictadura - Dimensión Gestión
La gestión social en la dictadura se dio fundamentalmente en
los sectores populares de la población que fueron quedando marginados de las políticas subsidiarias y de las restricciones presupuestarias del Estado impuestas por los Ministros de Hacienda de
la época. Para poder observar las experiencias de gestión social se
describirán las más relevantes y que han transcendido en la memoria colectiva presente.
•
Ollas Comunes y Comedores Sociales
La experiencia de las ollas comunes se produjo a partir de los
•
Comprando juntos
La experiencia del comprando juntos se produjo por las mismas razones de las ollas comunes. No obstante, su principio fundamental fue organizar a las familias con ingresos para la compra de
mercadería para el sustento de la despensa familiar, en la lógica que
a mayor volumen de compra, mejores precios. Todos unidos podían
demandar precios más bajos, y así lograr optimizar los recursos familiares. Esta experiencia la podemos vincular directamente a las
ideas de cooperativas de consumo.
•
Tomas de terreno y autoconstrucción de viviendas sociales
Una de las experiencias en temas de vivienda fue la toma de
terreno. Si bien era una práctica histórica anterior a la dictadura cívico militar, se reprodujo en este periodo. Por supuesto, las
tomas fueron muy reprimidas. A una parte importante de sus
líderes se les encarceló, torturó, relegó y se les condenó como
subversivos. Sin embargo, como práctica de gestión social, las
tomas de terreno que se lograron consolidar y conseguir apoyo
solidario, pudieron desarrollar la autoconstrucción de viviendas, realizadas por los pobladores de cooperativas, y solidariamente entre ellos. Esto les permitió radicarse en los mismos terrenos, a la espera de una solución definitiva.
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
requerimientos de los pobladores/as cesantes, de dar de comer
a sus familias. La idea de las ollas comunes parte de los principios del cooperativismo social, en donde cada familia aportaba un
producto para la preparación de los alimentos, otros aportaban el
trabajo de elaboración, y otros coordinaban la logística necesaria
para la distribución de los alimentos. En algunos casos, se organizaban en cada barrio y la olla común pasaba ser un espacio organizacional de los vecinos y vecinas.
Los comedores sociales, casi siempre al alero de la Iglesia
Católica, tenían una metodología de gestión muy parecida a la
de la olla común, pero de una u otra forma la organización estaba en manos del control de la parroquia a la cual pertenecía
el comedor.
291
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
292
•
Recuperación y distribución de alimentos en sectores
populares
Otra experiencia fue desarrollada por grupos políticos que organizaban la recuperación de alimentos, por medio de medidas de
fuerza sobre los transportes de distribución de mercadería. Los camiones de distribución eran desviados para distribuir los alimentos en las poblaciones populares. Particularmente, esta experiencia
era resistida por quienes encabezaban la resistencia contra la dictadura en el país. Sin embargo, fue una práctica que tuvo su logística
y desarrollo permanente en los sectores populares, aunque hoy en
día se trate de morigerar y llevar al olvido forzado.
• Educación cívica y de derechos humanos
Una experiencia en el ámbito de la educación cívica y de derechos humanos, fue lo que desarrollo el comité por las elecciones
libres entre los años 1987 -1990. Se desarrollaron cursos de formación en derechos políticos y civiles, que permitieran a la población
enfrentar los procesos plebiscitarios y eleccionarios, que estaban
dentro de la agenda de transición a la democracia. Este comité tuvo
recursos de la solidaridad internacional y se dedicó a realizar cursos en los sectores populares. El objetivo de la formación cívica, política y de derechos humanos, era garantizar la defensa del voto y
el respeto a las normas electorales de los procesos de plebiscito, y
posteriormente de la elección presidencial y parlamentaria, con lo
cual se logró la vuelta a la democracia en Chile.
• Protección de la infancia
Por último, una de las experiencias en protección de la infancia
y salud mental, fue un programa de salud PIDEE, una ONG creada el
año 1979, como una respuesta a las demandas de niños y jóvenes,
hijos o familiares de víctimas de la violación de los derechos humanos, que estaban afectados por trastornos en el área de la salud
física y mental, y tenían serias dificultades en la satisfacción de sus
necesidades básicas de sobrevivencia.
4.1 Organizaciones de base se debilitan por
articulación del Estado. Detención de la
movilización social
Chile post dictadura inició su camino de democratización
con un gran desafío. En 1990 el 49% de la población estaba en
condiciones de pobreza. Por tanto, el primer gobierno de la concertación se focalizo en políticas de combate contra la pobreza.
Se crearon diversos instrumentos de política pública que permitieran acelerar la superación de este flagelo social. Entre los
instrumentos más importantes y efectivos está el FOSIS. Fondo
para financiar distintas líneas de acción con sectores desposeídos, como fueron el mejoramiento de las condiciones de empleabilidad de las personas pobres por medio de la capacitación
laboral, mejoramiento de infraestructura urbana y de vivienda,
entre otros.
Sin embargo, siendo estas acciones en una parte importante exitosas por sus resultados en el corto plazo, esto tuvo una
segunda cara, que fue la desmovilización de los actores sociales
que habían sido claves en la lucha contra la dictadura militar
y la recuperación de la democracia. Por tanto, en los primeros
años de la democracia se perdieron y/o debilitaron redes sociales claves para la gestión social.
4.2 Iglesia Católica – Vicaría de la Solidaridad, son
debilitadas política y técnicamente
Consecuentemente con lo anterior, se debilitó el rol de la Iglesia
Católica en la base social, desde la perspectiva socio política. Una parte importante de sus profesionales y técnicos fueron reclutados por el
gobierno para cumplir funciones ejecutivas y de intermediación con la
base social. Por tanto, voluntariamente o no, entró en la política de desmovilización implementada por la concertación en el gobierno.
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
4. Gestión Social en Democracia - Dimensión
Organizacional
293
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294
4.3 Se reorientan los financiamientos de las ONG´s al
Estado
El apoyo internacional a las ONG’s que participaron de la lucha
contra la dictadura fue mermado. Recuperada la democracia, los recursos de los gobiernos solidarios con la resistencia a la dictadura
chilena, se institucionalizaron y se canalizaron por la vía de la estructura formal de gobierno. A la vez, una parte importante de los profesionales y técnicos, pasaron a cargos de gobierno, lo cual debilitó el
funcionamiento político y técnico de las mismas. Por tanto, sin recursos económicos y sin recursos humanos, también cayeron en la desmovilización social gobierno buscó como objetivo de política.
5. Gestión Social en Democracia - Dimensión
Gestión
5.1Políticas públicas para la autogestión de los
sujetos
La gestión social en los gobiernos democráticos dirigidos por
la Concertación, fue utilizada como medio para la intervención de
las políticas públicas, con el objetivo estratégico de cooperar con
fortalecer a los sujetos sociales como actores de mercado. Potenciando en ellos su rol agente de emprendimiento y generación de
empleo. La tesis que primaba era que, al generar empleo, ya sea,
apatronado e independiente, las personas obtenían recursos con
los cual podían salir de la pobreza. Nunca se buscó modelos alternativos de generación de recursos, ni menos se experimentó con
formas distintas de generación de riqueza para los sectores populares.
5.2Co–gestión de políticas públicas
La gestión social fue implementada como parte central de la
co-gestión de políticas públicas, de carácter social y productivo. Fue
desarrollada conceptualmente como innovación social, no como
una alternativa de profundización democrática y de gestión, en
5.3Gestión social de empresas, lavado de imagen
Por otro lado, la gestión social fue tomada como una oportunidad para la empresa capitalista privada de gran envergadura. En
particular, aquellas de los sectores de servicios y de extracción de
cobre. Estas empresas crearon fundaciones con las cuales daban
muestras de caridad a sectores sociales desposeídos, a cambio de
fotografiarlos y mostrarlos en las memorias de “papel couche” de
sus empresas, para empatizar con sus dueños, socios y clientes.
5.4Gestión social, ciudadanía y gestión municipal
En gran medida, la gestión social en este periodo estuvo ligada, como ya se ha dicho, a la co gestión social de políticas públicas. Se proyectó una gestión social a nivel municipal. En todas las
políticas sociales, el ejecutor privilegiado fue el municipio. El municipio tuvo la responsabilidad de generar y desarrollar las redes
sociales necesarias para la legitimación social y ejecución de las
políticas. Para lo cual innovó en la articulación ciudadanía, gestión del municipio y gestión local de las políticas. Se desarrollo así
la gestión social, captada por el aparato estatal con bajos niveles
de autonomía social.
6. La Gestión Social (1990-2010) en Chile desde de
la perspectiva ciudadanía – gestión local
Durante la primera década de este siglo, se llevó a cabo el Programa Ciudadanía y Gestión Local, que buscaba sistematizar y premiar las prácticas más relevantes de la articulación ciudadanía, gestión municipal y/o gestión local. Estas experiencias analizadas fueron seleccionadas por su alto impacto en el empoderamiento social.
Se analizó los resultados obtenidos por el Programa, publicados en
el libro “Los caminos que buscamos, 30 innovaciones en el fortale-
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mano de los sujetos sociales. La idea que primó fue ver a los actores
sociales como clientes de políticas públicas, que podían coadyudar
a su ejecución, más que participar en su diseño, articulación y evaluación.
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cimiento del espacio público local” elaborado por el Centro de Análisis de Políticas Públicas de la Universidad de Chile y la Fundación
para la Superación de la Pobreza.
El estudio, en su síntesis, reconoce los siguientes facilitadores: personas claves que estimulan la puesta en práctica y desarrollo de la iniciativa; equipos de trabajo consolidados y comprometidos con la iniciativa; disposiciones o intervenciones que
son promovidas desde el nivel central; contacto con instancias o
experiencias similares o el desarrollo de acciones de difusión de
la propia iniciativa; actores de intermediación entre la sociedad
civil y el gobierno local.
De la misma manera reconoce los siguientes obstaculizadores:
prejuicios, reticencias, temores o desconfianza hacia la idea innovadora y su implementación; debilidad en las capacidades de las
personas para convertirse en sujetos de deberes y derechos, en
condiciones de actuar en espacios de discusión y de toma de decisiones; debilidad organizativa de la comunidad; desinterés de la comunidad en participar en actividades cuyas decisiones no son vistas como un elemento que los afecta directamente; inexistencia de
instancia concreta para la toma de decisiones o para acompañar las
distintas fases de los procesos; financiamiento futuro para la continuidad de los procesos
7. El debilitamiento de la Gestión Social. Cuáles son
las razones políticas? Análisis crítico a los 20
años transición democrática
En al año 2010, se terminó el ciclo de los gobiernos de la concertación, que habían gobernado pos dictadura. Asumió la derecha
elegida democráticamente. Esto permite hacer un análisis de los 20
años de gobiernos de la Concertación. Lo que lleva madurar una
cierta decepción política.
¿Cuál es esa decepción? Definitivamente, reconocer que la modernización y la “democratización” de nuestra sociedad eran sólo
una imagen que la Concertación impulsó comunicacionalmente,
con un alto grado de aceptación en buena parte de los sectores sociales y culturales del país. Más aun, a vuelta de página y a 20 años
•
La salida pactada de la dictadura
La salida de la dictadura pactada con la misma derecha, sin
cuestionamiento del orden jurídico constitucional. La transición
quedó reducida sólo a cambios cosméticos, pues todavía nos rige la
Constitución de Pinochet, aunque, de manera eufemística, lleve la
firma del ex – Presidente Ricardo Lagos.
•
El rol de intelectuales de la Concertación en el poder
El rol complaciente de los intelectuales de la Concertación, que
no cuestionaron las formas de organización del poder y la forma en
que la sociedad chilena entraba en una ruta de individualización.
No pusieron en el centro el ethos colectivo y solidario del orden
republicano histórico de los partidos de centro e izquierda, para la
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después de haber terminado con la más cruenta dictadura, la derecha asumió el poder y muchos chilenos y chilenas perciben que no
ha cambiado nada.
¿Por qué no ha cambiado nada? De un momento a otro, reaparecieron sin cuestionamiento algunos los iconos simbólicos de la
dictadura, como el uso del escudo de la nación en tanto forma de
identidad gubernamental, conexión directa con el pseudo patriotismo de la dictadura; más aún, la instalación de un gobierno de ricos, con ministros y subsecretarios en cuyos curriculums destacan
la ausencia de vocación por lo público y la sobrevaloración de la
generación y/o administración de riqueza generada a partir, claro
está, del modelo neoliberal instalado en la dictadura; de la misma
manera, la utilización abierta y deliberada del poder del Estado, en
beneficio de los grandes grupos económicos; por último, el nombramiento, en cargos públicos, de personas que estuvieron comprometidos en violaciones de derechos humanos.
La derecha ha conjugado estos cuatro elementos sin mayores
obstáculos y todo indica que avanzará en esta misma dirección. Pareciera que la Concertación no logró cambiar la matriz socio – política del país creada e instalada en la dictadura. ¿Cuales son las razones de ello?
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transformación real del sistema político y democrático del país. De
la misma manera, la decisión política de no utilizar a las universidades estatales, para levantar un discurso modernizador y socializador de una nueva democracia y modelo económico. Por el contrario, la Concertación legitimó el modelo de asignación de mercado de recursos públicos en el ámbito de la investigación y desarrollo, recursos que se destinaron tanto a las universidades estatales
como a las privadas. Vaya paradoja, en quienes le deben su formación a las universidades públicas de este país.
•
El rol de los medios de comunicación de masas
El uso y abuso de los medios de comunicación para alimentar,
a nivel subjetivo en la ciudadanía, las bondades del modelo y la
fortaleza de nuestras instituciones democráticas. No se puso en el
debate la necesidad de fortalecer la democracia, terminando con
la sobre representación de la derecha en el Parlamento. En otras
palabras, se dejó de lado, en la política comunicacional, la búsqueda de la derrota simbólico – cultural de la derecha política y, por
consiguiente, del modelo neoliberal. La pérdida de pluralidad de
los medios de comunicación es un hecho constatado, como también lo es el fracaso de proyectos que nunca obtuvieron apoyo del
Estado para hacer frente a la competencia de los grandes grupos
periodísticos. Medios emblemáticos de oposición a la dictadura
fueron cerrados en democracia, como ocurrió con La Época, Análisis, Cauce, Fortín Mapocho, Rocinante, La Bicicleta, por nombrar
sólo algunos.
•
La desmovilización de los actores sociales
La Concertación desarticuló la movilización de los actores socio –políticos y privilegió una política de elite. Con esto, abrió las
puertas para que la derecha penetrara en los sectores populares,
donde jamás habían logrado un respaldo político masivo. De hecho,
hoy en día existen distritos de origen popular en donde la derecha
no se beneficia del sistema binominal, si no que es primera o segunda mayoría, lo que significa que, cambiando el sistema electoral, seguirá teniendo representación.
La ausencia de búsqueda de un modelo alternativo de
producción
El no uso del aparato del Estado para la generación de nuevas formas de producción, que hubiese apuntado al fortalecimiento democrático de la sociedad. Por ejemplo, el desarrollo
de los sistemas de producción de cooperativa o sistemas de integración productiva del artesanado y pequeña empresa, por
medio de sistemas crediticios de carácter solidario. Por el contrario, se entregaron incentivos que apuntaron a la individualización productiva, a la creación subjetiva del micro empresario, y a la instalación de conceptos como “emprendedores” y
“emprendedoras”, nada más lejos de nuestra tradición artesanal y de talleres de oficios, presentes desde inicios de la República y que contribuyeron a la profundización de la democracia en nuestra sociedad. También, se manejó políticamente, a
nivel de la subjetividad, la idea que los pequeños productores
pueden ser exitosos exportadores en un Chile abierto y globalizado, cuando se sabe que los directamente beneficiados de
la globalización son las grandes transnacionales y el capital financiero. Por último, se fortaleció simbólicamente que el criterio de éxito es la maximización de la renta individual, omitiendo que las economías pueden ser solidarias e integradoras en
un orden social, más amplio y democrático en lo económico y
productivo.
•
La falta de debate critico sobre los resultados del modelo
neoliberal
La poca voluntad política de instalar, en el debate público, la
critica efectiva sobre los resultados del modelo económico neoliberal, en tres ámbitos centrales, a saber, el incremento de la
desigualdad económica en la distribución de la riqueza, el bajo
compromiso en el fortalecimiento de la actividad sindical, y los
nefastos efectos medio ambientales del sistema de producción
primario exportador, que se profundizó en Chile en estas dos décadas.
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•
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•
La falta de cambios simbólicos y culturales en Chile
democrático
Al parecer, la decepción de muchos es una realidad: Chile después de 20 años no cambió nada en el campo simbólico – cultural e institucional. No faltará quien pueda argüir una serie de estadísticas e indicadores, demostrando que avanzamos como sociedad, según los parámetros estándar del “desarrollo”. Quizás, en una
gran cantidad de congresos políticos y académicos, se dirá que la
Concertación es la coalición más perdurable y de mayor éxito en
la historia chilena. Sin embargo, en el campo de las ideas y de la
construcción de hegemonía, simplemente la coalición poco o nada
puede mostrar. Pareciera que la Concertación, en particular una generación importante de sus líderes, optaron sencillamente por administrar el modelo, movidos por la ética de la responsabilidad y el
acomodo ideológico, donde el modelo del emprendedor individualista también se aplicó a la política como “opción legitima”. Dejaron
de lado totalmente la ética de la convicción, renunciaron a sus ideas
originales de cambio enunciadas a finales de los 80 y principios de
los 90, y se inclinaron a la derecha. Con ello renunciaron a realizar cambios profundos y radicales para derrotar a la derecha en el
campo simbólico – cultural e institucional, que hubiese impedido
que hoy la veamos consolidarse en el gobierno con poder político ejecutivo y legitimados socio-políticamente para gobernar.
8.Síntesis
Las reformas estructurales que llevó a cabo la dictadura cívico militar, despojó al Estado de su capacidad de intervención social
abierta. Las reformas, independientes entre sí pero interconectadas ideológicamente, permitieron la creación de un Estado neoliberal. Sus principales características son ser un actor pasivo en las
relaciones sociales. Sus formas de intervención son por medio del
subsidio a la demanda en términos de políticas sociales y desde la
perspectiva de la gestión social, solo le interesa si racionaliza las
demandas de prestaciones y subsidios del Estado.
La gestión social en el periodo que abarca la dictadura cívico
militar chilena, fue implementada por actores políticos (partidos
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políticos de oposición), sociales (iglesia católica y ONG´s) y comunitarios (organizaciones sociales de base), como práctica de resistencia contra la dictadura y de sensibilización para la población de
la necesidad de retornar a la democracia. La gestión social fue un
pivote clave en la estrategia de derrocamiento de la dictadura cívica
militar chilena.
En el periodo del retorno a la democracia y los gobiernos de
los partidos que fueron oposición a la dictadura, se dio continuidad
y legitimación democrática al modelo neoliberal. Se desmovilizó a
los actores sociales, se desestructuraron, por lo hechos o por voluntad política, los actores institucionales y sociales que desarrollaron
la gestión social como practica de resistencia en los sectores populares durante la dictadura. Los debilitaron por voluntad y cambio de eje político, terminando el financiamiento solidario internacional y la cooptación de los profesionales y técnicos, para cumplir
funciones ejecutivas en el gobierno.
La gestión social en el periodo de los gobiernos democráticos
encabezados por la concertación, fue implementada como un modelo de co gestión social de las políticas públicas diseñadas centralmente. Como una forma de acercar los subsidios del Estado a
los sectores de la población más carenciados. También, como una
forma de dar legitimidad social a las empresas privadas. Por último, como prácticas de ciudadanía, gestión municipal y gestión local, fueron las que más se acercaron a dinamizar el concepto y prácticas de gestión social en este periodo.
Para terminar, la paradoja que muestra este ensayo es que, en
realidad, la Gestión Social puesta en práctica en el periodo de la
dictadura cívica militar fue más profunda y logró cambio socio políticos importantes, siendo un factor determinante en la lucha contra la dictadura y en la democratización del sistema político. Por el
contrario, desde el retorno de la democracia, los que se opusieron a
la dictadura la han mirado con sospecha política. Solo se ha podido
articular como una mediadora de políticas, que buscan fortalecer el
rol del mercado de las políticas sociales, elaboradas en cada uno de
los gobiernos de la concertación.
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9. Bibliografía
INFORME RETTIG. Informe de la Comisión Nacional de Verdad y Reconciliación en http://www.ddhh.gov.cl/ddhh_rettig.html
INFORME VALECH. Informe de la Comisión Asesora para la Calificación de
Detenidos Desaparecidos, Ejecutados Políticos y Víctimas de Prisión Política y Tortura en http://www.comisionvalech.gov.cl/InformeComision.
html
MONJE, P. La globalización y las políticas de reforma y modernización del
Estado en América Latina. En: LEAL, R. (ed.). Globalización, identidad y justicia social. Santiago de Chile: SIT, Universidad de Arte y Ciencias Sociales,
2005.
MOULIAN, T. Chile actual: anatomía de un mito. Colección Escafandra. Santiago de Chile: Editorial Lom, 2002.
SURAWSKI, A.; FERRER, M.; CUBILLOS, J.; BARAURE, M.; (eds.). Los caminos que buscamos. 30 innovaciones en el fortalecimiento del espacio público local. Programa Ciudadania y Gestion Local. Santiago de Chile: Fundacion Nacional para la Superacion de la Pobreza & Centro de Analisis de
Politicas Publicas de la Universidad de Chile, 2000.
TENÓRIO, F. G. Um espectro ronda o terceiro setor: o espectro do mercado.
3ª ed. Ijuí: Editora da Unijuí, 2008.
Dan Baron3
ela me achou largado numa esquina da cidade
manchado, amarfanhado, anestesiado
debaixo de um cartaz sorridente anunciando a escolha global
e cansada, e doída
de puxar a carreta cheia de papelão bem dobrado
de sacolas e caixotes ordenados
tudo tão bem-arrumado como a cozinha dela
e seu jardim de temperos
com os tornozelos inchados
as veias endurecidas de arrastar as solas dos pés
por séculos de terra não-reformada
e direitos indígenas aterrados
ela apoiou sua colheita dos excessos contra a sarjeta
despiu as rédeas
1 Este texto foi originalmente publicado no Programa Catálogo da Pinacoteca, em 2010, para o
Encontro Internacional, Diálogos em Educação, Museu e Arte, baseado no livro de Dan Baron,
Alfabetização Cultural: a Luta Íntima por uma Nova Humanidade, partes 1 e 3, São Paulo, 2004
2 Durante o V Enapegs, Dan Baron e Manoela Sousa conduziram a oficina A teatralidade dos espaços público e íntimo: implicações para a gestão coletiva e criativa, no eixo temático O papel
das metodologias integrativas na ampliação da esfera pública. O texto ora publicado tem relação
com experiências vivenciadas nessa oficina e no eixo temático como um todo, e por isso foi convidado a fazer parte deste livro. Em outra publicação, mais recente, Dan Baron e seus mais de cinquenta coautores presenteiam o campo de conhecimentos e práticas em gestão social com um rico
e belíssimo trabalho coletivo realizado em comunidades rurais no sudeste do Pará: Colheita em
Tempos de Seca: cultivando pedagogias de vida por comunidades sustentáveis. Harvest in times
of drought: cultivating pedagogies of life for sustainable communities, Dan Baron et al. Marabá:
Transformance, 2011, 252 p. A obra coletiva dos integrantes da primeira turma da Licenciatura
em Pedagogia do Campo (2006-2011), Universidade Federal do Pará, Campus Marabá, oferece
poemas, contos e músicas como recursos pedagógicos, a proposta artístico-pedagógica de Transformance, e a proposta aplicada como projeto cultural de formação profissional e transformação
institucional no meio universitário. O livro está disponível para download na biblioteca da Rede de
Pesquisadores em Gestão Social – www.rgs.wiki.br. [Nota das organizadoras].
3 Dan Baron é escritor teatral, diretor de teatro comunitário e arte-educador, residente no Brasil
desde 1998 e, desde 2009, colaborando com a comunidade afrodescendente de Cabelo Seco em
Marabá, Pará, Amazônia, no projeto Rios de Encontro.
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Museu íntimo: diálogos entre cultura, educação e
estética1 2
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e curvando
com seus negros olhos questionadores
me abraçou junto ao seu peito trêmulo
junto às lágrimas salgadas
por danças ancestrais e ritmos rompidos
abrindo e enxaguando meus olhos inchados
ergueu-me até seu depósito periclitante
entre uma cadeira sem pernas e um violão sem cordas
chaves perdidas e descartados dicionários
para acompanhar sua caminhada pela noite
dos restaurantes metropolitanos aos morros da periferia
para o sul, para casa
até ser cuidadosamente lido
e colocado com calma
ao raiar do sol
dentro de uma comunidade de sonhos ainda coletivos
para ser transformado em um outro mundo
Minhas mãos descansam no
teclado. Elas estão bronzeadas e
calejadas por estarem há seis semanas, o dia todo, cortando azulejos sob sol de inverno. Cicatrizes de
cortes inflamados e infeccionados,
onde o cimento penetrou nos dedos
e corroeu nossa pele enquanto o
passávamos nos cacos e os colávamos, gravam o processo de descobrir como se constrói um mosaico.
Minha mão direita arde e agora está
maior do que a minha mão esquerda, inchada e mais forte por pressionar a torquês para aqueles a quem
faltava força para cortar a cerâmica.
Ela se abre e se fecha durante o meu sono, lembrando e se recuperando. Eu tentei, mas não consegui cortar com a minha esquerda.
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Eu consigo ver as mãos de meu pai quando eu tinha dezenove
anos: maiores, firmes, mais fortes de carregar água e cortar gravetos quando criança. Mãos que cobriam com reflexões as margens
dos mesmos livros que eu leria uma geração depois de ele os ter
fechado para sempre. Mãos que construíram bibliotecas a partir da
motivação de crianças descalças e que tinham que lutar contra o ruído do rádio, numa mesa da cozinha à luz de vela, para conquistar o
poder da caneta. Mãos que estavam sempre esboçando retratos de
mãos anteriores: retratos em carvão de mãos que seguravam tesouras para cortar tecido, pegavam em foices, picaretas e até em armas
para defender os territórios dos donos das minas e dos fazendeiros
que os exploravam. Mãos exiladas e desaparecidas, que seguraram
bíblias e esconderam crianças, gesticulando inconscientemente na
sua língua proibida por justiça e paz. A mais suave das mãos de um
educador, cujos retratos caricaturados de auto-sacrifício, esperança
e autoparódia se tornaram a definitiva assinatura, até hoje.
Eu consigo ver também as mãos menores que eu fechei timidamente nos shorts, sobre o meu colo, na manhã em que fui para
a escola pela primeira vez. Por que você gosta de escrever?, uma
professora desacreditada perguntou, quando confessei meu desejo
secreto. Porque eu gosto do movimento do lápis na folha, respondi,
lembrando das minhas mãos rabiscando ondas e mais ondas da ‘escrita adulta’ sobre quaisquer rascunhos, à mesa da cozinha. Algum
tempo depois ela me bateu com a palmatória até minhas mãos ficarem vermelhas, na frente da classe, por eu ter passado as respostas
da prova para um amigo do meu lado. Embora minhas respostas
estivessem corretas, tirei zero e fui exilado para o canto. Será que
ela estava – mesmo que intuitivamente – consciente da sala de aula
como palco? Do aprender e ensinar como uma performance? Do
método como política em ação? Certamente ela estava inconsciente
dos reflexos de resistência com que me havia marcado. Eu fecho
meus punhos. O calor das lágrimas reprimidas e perguntas silenciadas sobe de repente, num ruborescer que mancha meu pescoço.
E agora, quase quarenta anos depois, eu escrevo em outra
mesa, ao ritmo das ondas que quebram defronte à casinha branca,
do outro lado do Atlântico, que eu e Manoela, minha colaboradora
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e companheira, alugamos. Ela está selecionando fotos que contam a
história do mosaico comunitário da escola agroecológica do Movimento Sem Terra, para uma apresentação de slides que vai financiar
o estágio final do projeto. Ela percebe a mancha da minha memória.
Sorrio. No fim do dia vou explicar o que recuperei inesperadamente, enquanto escrevia esse prefácio.
A calma entre as explosões das ondas que se formam em cascata gera a tensão criativa e o estado de alerta apropriados aos processos que vou relembrar. As ondas agitam e peneiram as incontáveis histórias do passado, me convidando uma vez após a outra a
curtir a beleza de suas narrativas brilhantes, enquanto são rascunhadas, brilham e secam na areia. Momentaneamente, elas revelam
e gravam as manchas impensadas de vazamentos e lixos nos arcos
delicados de seus movimentos, antes de serem encobertas e apagadas pela chegada de novas histórias. A violência que ameaça essa
narrativa aparentemente interminável é contada todas as manhãs
pelos corpos contorcidos dos pinguins exaustos e pelos peixes de
olhar fixo, que já enxergaram o futuro. O íntimo genocídio acelera
meus dedos por sobre as teclas.
É por isso que incluo um poema, um conto e imagens aqui,
não apenas para celebrar nossa humanidade, mas para permitir
que você participe mais íntima e analiticamente nesse diálogo,
curtindo suas múltiplas inteligências. Quero mostrar como nossas
linguagens expressivas revelam as contradições e os potenciais de
nossa humanidade, e são capazes de estimular o diálogo interno,
a sensibilização e a identificação reflexiva necessária para a construção de novas relações sociais. Sobretudo, gostaria de demonstrar como a forma é o método – a estética de nossa subjetividade
– em performance.
Histórias e imagens são os gizes e quadros, canetas, livros e
bibliotecas, galerias e espaços das performances dos despossuídos, marginalizados e excluídos. É por isso que essas linguagens
expressivas – e a sagacidade que elas revelam e as identificações
que geram – têm sido mistificadas há séculos como artes, marginalizadas nos cantos dos currículos escolares e presas nas fortalezas
culturais de uma minoria privilegiada. Sua mistificação é a chave
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que tranca a imaginação, criatividade, empatia reflexiva, autoconfiança e a motivação das maiorias do mundo – alienando a força
transformadora de suas mãos-de-obra – no silêncio e isolamento da
auto-alienação, autodúvida e autosubordinação involuntária, para
excluí-las do drama de construir a sua própria humanidade. Libertadas da camisa-de-força das piadas medrosas e inibições viscerais,
as artes podem renovar os poderes perceptivos e empáticos das inteligências de nossos sentidos, possibilitando a (re) sensibilização
e autocompreensão necessárias ao cultivo da nova solidariedade
reflexiva e da comunidade que precisamos para arriscar o novo.
Eu não estou desvalorizando o poder da palavra escrita nem
o processo extraordinário de reflexão coordenada, improvisação
criativa e edição analítica de que o diálogo entre a mente focada,
seus olhos e suas mãos, é capaz. Estou questionando como eles são
usados e valorizados. Nós que somos dedicados à democratização
dessas habilidades precisamos garantir que não estejamos contribuindo – sem querer – com a violência psico-cultural que flui das
formas autoritárias de ‘ler e escrever’, e com a desvalorização das
outras linguagens expressivas que desliga nossa capacidade de raciocinar de nossas inteligências empáticas. Ambas violências ‘convencem’ a grande maioria a reforçar e construir a própria fortaleza
de exclusão racionalista que protege o poder não-democrático e
impossibilita a identificação solidária.
Se quisermos construir um mundo inclusivo e democrático,
precisamos redefinir a alfabetização para incluir todas as nossas
inteligências e as suas linguagens, e aplicar esse novo entendimento através de métodos de libertação. Precisamos situar a palavra
escrita como uma das linguagens dentre outras que compõem um
processo permanente, que podemos chamar de alfabetização cultural. Não estou propondo uma nova maneira de ‘trazer a cultura
para as massas’ ou promover a ‘conscientização das massas’. Estou
propondo a valorização das outras linguagens e inteligências que
usamos intuitivamente o tempo inteiro, transformando-as em ferramentas cientes de sensibilização, autoleitura, identificação reflexiva e libertação, através de uma pedagogia de autodeterminação.
Acredito que não haja outra maneira de aprendermos a nos inter-
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pretar no mundo, empática e dialogicamente – em solidariedade
com os outros em vez de contra eles – e experimentar criativamente
e coletivamente a construção de um futuro justo e humano.
Durante trinte anos de projetos de educação cultural com comunidades excluídas e em risco de guetos na Inglaterra, na Irlanda
do Norte, na África do Sul, na Palestina, no País de Gales e agora no
Brasil, vi séculos de violência e resistência psicossocial e emocional
impedirem o próprio movimento dos olhos e da língua na leitura
da palavra impressa. Os panfletos e livros mais úteis se transformavam em arame farpado. A mão do ativista mais experiente lutava
contra a caneta, em vez de lutar com ela.
No entanto, eu estudei aqueles que acreditam que não sabem
‘ler nem escrever’ – mas leem o vento, a terra, o céu, os olhos, o silêncio, o comportamento – lendo fotos. Testemunhei leituras empáticas e dedicadas. Todo gesto, toda expressão facial, todo tremor de
desejo e conflito foi lido com astúcia e depois analisado por meio de
histórias e diálogos interativos, em reflexões questionadoras, irônicas, provocativas, afirmativas e sentidas. Havia leituras silenciosas,
inibidas, tentadoras, apaixonadas, impulsivas, lúdicas, repentistas
e fluentes. Algumas eram críticas, outras contraditórias e reativas.
Mas todo mundo leu. E escreveu, com gestos e histórias, através de
diversas linguagens simbólicas. Nelas, encontraremos sabedorias e
potenciais pedagógicos para o desenvolvimento de uma subjetividade cooperativa. Mas estão encarceradas dentro das próprias barricadas que as protegem.
Também estudei aqueles que se definem como ‘educados’ e
‘críticos’, lendo as mesmas fotos. Em geral, as imagens foram escaneadas e passadas adiante sem empatia ou curiosidade. Seu conteúdo
foi defensivamente classificado às pressas, social, cultural, ideológica e esteticamente, em leituras ‘analíticas’ que apenas ocultavam a
pessoalidade do eu atrás da verdade inatingível da autoridade objetiva. Eu sei porque fui educado para adquirir essa subjetividade do
‘sujeito oculto’ dessensibilizado, monológico e individualista. Nós
somos educados para acumular e organizar, nos armar e esconder,
competir para garantir nosso lugar dentro das estruturas das fortalezas do mercado. Seria errado dizer que nós não aprendemos
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a questionar ou escutar. Aprendemos, sim, a questionar e escutar,
mas para atacar, enfraquecer e convencer. E nós aprendemos a racionalizar nossos sucessos e fracassos como reflexos culturais para
sobreviver a nossa desumanização.
O fato de nós, que queremos derrubar essas fortalezas e prisões, havermos exilado essas linguagens subjetivas para a margem
dos nossos encontros, congressos e organizações durante séculos
não é uma coincidência. Tampouco é uma coincidência o fato de
muitos dentre nós, que fomos mais marcados e privilegiados por
esses séculos de violência, estarmos entre os mais articulados e habilitados a resistir aos processos culturais de desaprender esses reflexos. Espero que esse diálogo consiga não só iluminar essas contradições, mas também demonstrar que essas resistências contêm
insights preciosos sobre o próprio processo de transformação e que
elas podem prejudicá-lo inconscientemente.
Existe um número crescente de educadores, artistas, ativistas
e comunidades preocupados com o comunicídio, a violência consumista da retail-terapia, a midiatização absoluta e a militarização
íntima que estamos vivendo todo dia. Mas no fundo, poucos acreditam que uma outra humanidade é possível. Participam de congressos afirmativos e inspiradores para renovar sua visão e esperança,
porém retornam à violência íntima e ao autoritarismo de suas organizações, que infectam sua motivação e corroem todas as suas campanhas de resistência e seus projetos transformadores. Raramente
participamos de congressos ou organizações que agendem espaço
ou tempo para experimentar as técnicas e métodos necessários
para ler e intervir nessa cultura ameaçadora e alienadora, ou para
implementar nossa visão.
Escrevo para contribuir com os diálogos nos limiares entre a
cultura, a educação e a política. Mas também escrevo com o objetivo (ou, posso dizer, o subjetivo) humano prático para descobrir e
aprender métodos de como recuperar a criatividade, a humanidade
e a autoconfiança e de como viver coletivamente uma intervenção
cultural permanente.
Acredito que as linguagens artísticas – o teatro, especialmente
– contêm as ferramentas mais úteis para revelar e nos distanciar
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das contradições dentro de nossas subjetividades e suas estruturas
de sentimento para transformá-las, na busca por entender o coletivo. Não estou propondo que o teatro possa solucionar o mundo,
nem a busca de uma nova metodologia! Tampouco proponho que
a alfabetização cultural possa transformar sozinha a estética da repressão – as formas culturais que atualmente escravizam e mutilam
nossa subjetividade, definem como enxergamos e sentimos, e ameaçam o próprio futuro de nosso mundo – numa estética de libertação. A luta política por uma economia solidária e uma democracia
participativa é fundamental. Mas estou propondo que sem a alfabetização cultural, não podemos implementar ou sustentar nenhuma
proposta política, econômica ou social. Sem querer, permanecemos
como atores cúmplices, mas passivos, de dramas autoritários e violentadores, em parte porque não sabemos ‘ler e escrever’, de modo
consciente e sensível, a linguagem da performance, e com isso, intervir nos teatros de opressão e injustiça para transformá-los.
Sabemos que os processos coletivos são complicados pela
história, os dramas do passado. Os séculos de histórias que nós
revivemos e adaptamos à formação e narração do nosso eu inevitavelmente modelam nossa subjetividade, que tende a aparecer
mais no que fazemos e construímos do que naquilo que falamos
e escrevemos. Portanto, o domínio da palavra escrita e discursiva
– em si, parte da cultura racionalista, europeia e colonizadora de
conscientização – nos deixa menos alfabetizados, até ‘analfabetos’,
no que se refere às linguagens e performances de nosso corpo, às
emoções, aos usos do espaço e aos relacionamentos. Por isso, nós
vemos menos de nós mesmos do que dramatizamos para os outros,
ou menos do que podemos explicar e mudar. Essa cegueira – tão
profunda nos homens, que ao longo da história têm determinado
as subjetividades do poder, e têm sido determinados por elas – dificulta a empatia reflexiva, o cuidado e o diálogo, que são os reflexos
subjetivos de uma humanidade solidária. Entretanto, essa cegueira – a falta de uma consciência sobre nosso eu em performance nos
palcos sociais que habitamos – no palco coletivo de alfabetização
cultural pode ser decodificada e sensibilizada, possibilitando a libertação de reflexos dialógicos de identificação e recodificação, e a
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cultivação de novas relações democráticas e cooperativas. Gostaria
de aprofundar isso.
Nós começamos a nos tornar conscientes do outro na receptividade do nosso sorriso, um convite inconsciente ao diálogo. Nossa
consciência de nós mesmos como sendo diferentes de nossa mãe,
no entanto, inicia no momento em que começamos a identificar e
reconhecer os efeitos de nossas ações no espelho de suas reações.
Assim, através dessa identificação reflexiva sobre nossa diferença,
começamos a questionar e experimentar criativamente o relacionamento entre os nossos movimentos e os seus efeitos, observando
e aos poucos começando a interpretar as causas em nosso mundo.
Isso nos permite não só ler e imaginar os efeitos que temos sobre os
outros, mas também ler, interpretar e imaginar um relacionamento
entre as ações e as intenções deles. Com isso, desenvolvemos nosso senso do eu em diálogos conosco mesmos e através dos outros.
Pode ser que no dia-a-dia não pensemos em nós dessa maneira,
mas isso faz de todo espaço que imaginamos e em que entramos um
palco dialógico de performance interativa, observação focada e reflexão crítica. Nesse sentido, o ser humano é inerentemente teatral.
Nós fazemos teatro para nós e para os outros para nos tornarmos
seres sociais.
Para começar, sentimos e imaginamos que o mundo inteiro é o
nosso palco ou que a nossa subjetividade é todo o mundo. Conforme começamos a reconhecer que outros eus existem, descobrimos
que nosso mundo é apenas um dos palcos compartilhados que interage com infinitos outros no mundo. Aprendemos inicialmente que
devemos viver nossos desejos em relação às convenções do drama
do lar. Mas conforme nossa experiência se estende e é interpretada – de dentro da fome e do prazer, atravessando do limiar da pele
para o drama do sexo, da família, da escola, do trabalho, da comunidade, da região, da nacionalidade e (agora, com a globalização) do
continente e do mundo – essa primeira identidade é reinterpretada para garantir que aprendamos a viver nossos desejos de acordo
com as leis da propriedade privada e suas convenções dramáticas,
de competição, conflito e desidentificação. Numa rede de palcos
sociais interligados, estudamos e ensaiamos os papéis e os modos
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de interpretá-los para nos formar como atores com personagens
apropriados para atuar nesse teatro (de alienação) do Estado. Nos
é permitido brincar com esses papéis, até experimentar com papéis
críticos, para atualizá-los nesse teatro estatal, contanto que não o
enfraqueça ou revolucione.
A transição ao nosso primeiro drama dialógico empático (de
estruturas humanizadoras) forma nosso inconsciente político. A
transição ao nosso segundo drama alienador competitivo (de estruturas desumanizadoras) forma a política de nossa criatividade.
Esses dois processos de humanização (perder nosso mundo para
descobrir nosso palco) e desumanização (atravessar o limite do
nosso palco para entrar no teatro do Estado) estruturam a política
de nossa imaginação. A forma como atravessamos e passamos por
esses processos não só moldará profundamente nossa capacidade
para com o mundo, como também de intervir em nossa subjetividade determinada para entrar no palco transformador da autodeterminação.
Como não somos educados para nos entendermos ou entender
o mundo nesses termos performativos, nossa consciência performativa é intuitiva e não analítica, proposital ou solidária, e tem que ser
colonizada e recolonizada, de novo e novamente, para interromper
os reflexos dialógicos e empáticos de identificação que vivem nos
labirintos de nosso inconsciente político. Mas essa solidariedade
dialógica existe como uma base de conhecimento, gravada nos limites de nossa subjetividade, intimamente ligada aos processos
de aprendizagem de humanização e desumanização. Esse conhecimento psicossocial, e o modo como ele se manifesta no dia-a-dia de
nossa expressão sociocultural, precisa tornar-se consciente, para
entrarmos no processo de autodeterminação. Chamo esse processo
da autoconscientização performativa de alfabetização cultural.
Precisamos reconhecer que a ausência dessa alfabetização cultural gera consequências íntimas, com profundas implicações sociais e políticas. Até que ponto preferimos olhar para as injustiças
socioeconômicas ‘externas’ porque é insuportável e aterrorizador
olhar para as suas sequelas da desidentificação em nossas vidas íntimas, muitas das quais não sabemos nomear, interpretar e trans-
Museu de Transformance:
fragmentos do mosaico artístico-pedagógico Terra é Vida
criado através de autopesquisa dialógica e produção coletiva numa escola aberta agroecológica inteira (2000-03,
Santa Catarina)
Necessitamos de um novo paradigma
de educação que nos permita responder ao
maior desafio de nossos tempos: desenvolver a capacidade de transformar nossas casas, nossas ruas, nossos locais de trabalho
e nossas organizações em palcos comunitários e democráticos, e assim encenar uma
nova humanidade cooperativa. Para começar a desenvolver essa capacidade, temos
que entender a relação que existe entre saber ler nossos relacionamentos para cuidar
dos outros e saber nos ler para cuidar de
nós mesmos: saber cuidar de nosso mundo.
Eu não abandonei a possibilidade de
poder cortar azulejos com a minha mão esquerda. Todos os jovens batalharam com
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formar? Quanto tempo nós dedicamos para refletir sobre como as
barricadas e fortalezas de classe, gênero, raça e geração em que
vivemos se fundiram ou se trancaram em conflito, determinando
as maneiras como raciocinamos, atuamos, tomamos decisões ou interagimos? Até que ponto as histórias que herdamos ou gravamos
inconscientemente em nossos corpos são capazes de se tornarem
reflexos culturais, que impedem nossas próprias tentativas de criar
o novo?
Temos que entender todos os espaços em que vivemos como
palcos onde dramatizamos nossa subjetividade, participamos e
moldamos o drama coletivo de interagir com outras subjetividades.
Pode nos permitir não só enxergar a nós mesmos e identificar reflexivamente com outros, mas também aprender como democratizar
todo espaço onde entramos e saímos e usar isso para guiar nossos
processos coletivos. Quais outras ferramentas podem desenvolver
a sensibilidade e o autoconhecimento para construir novas subjetividades e comunidades dialógicas, que são
os nossos recursos humanos mais preciosos de transformação social?
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as torqueses. Apesar do prazer de trabalhar juntos, as dificuldades
no cortar começavam a ser uma ameaça ao processo criativo. Numa
manhã, no entanto, eu me vi fotografando uma das participantes
enquanto ela descobria que, colocando metade da torquês além da
borda do caco de azulejo, a força necessária para segurar e cortar se
reduzia drasticamente. Agora todos nós estamos cortando. Em pequenos grupos. De modos diferentes, mas com cuidado. E com maior
precisão.
____________________________________________
Uma manhã um jovem me procurou, no começo de uma oficina,
um mês após o início do resgate da história negra da cidade. Sua camiseta propositalmente rasgada exibia uma bandeira inglesa tatuada
com cores vivas em seu braço, a qual ondulava com a flexão de seus
músculos ou o estalar de seus dedos. Ele provavelmente usava uma
cueca com o desenho da bandeira inglesa. Chamou-me ao fundo da
sala, olhou para baixo e murmurou:
Quero sair do projeto.
Eu fiquei atônito. Depois de todo o nosso trabalho de base na sua
experiência familiar e comunitária. Esperei. Enfim, era isso. Aí eu perguntei por quê.
Porque sim.
O que você quer dizer com porque sim? Olha, se estamos fazendo
alguma coisa errada, explique. Fale.
Ele olhou para fora e replicou:
Porque sim.
Olhei para ele. Estava com os olhos fixos na janela. Eu me senti
arrasado. Ele andava fugindo da escola havia muitos anos. Não via sentido em frequentar as aulas. Mas após o assassinato do jovem asiático,
ele tinha escolhido participar do projeto. Não por pensar que precisasse de uma terapia, como alívio depois do que testemunhara no pátio.
Ele já tinha visto gente ser esfaqueada antes e, mesmo que não tivesse,
tudo em sua curta vida o havia preparado para esse assassinato. Ele
tinha optado por aquilo que acreditava, seria uma oportunidade de ser
reconhecido, respeitado e ouvido. Até mesmo amado...
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Fiquei imaginando se não seríamos nós o problema. Não éramos
professores ou agentes sociais que trabalham com jovens. Nos orgulhávamos de sermos educadores culturais francos e diretos, que acreditam neles. Mas, mesmo assim, podíamos parecer figuras autoritárias
aos seus olhos. Tentei de novo:
Olha, Francis. Essa pode ser sua única chance de interferir na sua
educação e ser ouvido. Nós estamos trabalhando em grupos de quatro,
de forma que possamos conversar uns com os outros. Ouvir um ao outro
e aprender uns com os outros, como amigos. Está certo, isso toma tempo,
mas como podemos ir adiante se você –
Ele arriscou um olhar por debaixo dos cílios e aí desviou o olhar.
Senti a tensão entre nós aumentando e disse:
Tá bom. A porta está aqui. Eu sei que você deveria ficar, mas você
é livre para ir. Só uma coisa – se você quiser, me conte o que você está
pensando. Eu não vou te interrogar. Ninguém aqui fez isso antes e temos
que aprender com o processo.
Outra olhada rápida. Uma pausa. Um suspiro profundo.
Eu não faço parte.
Esperei.
Eu não entendo –
Você está vendo aquele ali?
Ele indicou com a cabeça um grupo de jovens negros gingando no
canto da sala.
Fixou um olhar dissimulado no jovem caribenho Lawrence.
Quando ele afunda e cai, cai e cai e aterra em alguma coisa chamada África. E ela é quente. E é cheia de pessoas rindo, cantando e nadando no mar. Pessoas tocando música e comendo assados e bebendo até
tarde na noite.
Ele olhou para a chuva na janela.
Quando eu afundo, eu caio e caio e caio e caio e caio e continuo
caindo. Eu nunca aterrizo, Dan.
Ele acariciou sua tatuagem com um olhar distante.
Tudo bem. Apagaram um de seus amigos e vocês inventaram um
projeto. Mas o que é que eu tenho a ver com isto?
Ele me olhou nos olhos.
Ele tinha razão. A história do boxeador afro-irlandês podia cele-
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brar histórias e dar voz à fúria dos jovens dançando no canto da sala.
Mas como isso poderia parecer para quem que não sabia explicar de
onde vinha o sangue em seus nomes? Aqueles que nem mesmo podem
dizer que o nome é deles mesmos? E como situar esse filósofo analfabeto de catorze anos, que se sentia uma merda no vazio de sua cultura?
____________________________________________
Quando me perguntam no Brasil de onde você é?, eu paro por
uma fração de segundo, antes de responder. Essa pergunta está
querendo saber mais do que apenas onde eu moro. Ela inicia um
antigo processo de identificação, ao procurar – por mais que pareça casual – descobrir o que parece que temos ‘em comum’ e se as
nossas diferenças culturais podem ameaçar essa comunidade. Está
interpretando se temos quaisquer histórias vivas ou desejos cujo
encontro ‘por acaso’ pode, sem saber e até sem querer, provocar
um confronto perigoso no espaço onde nos encontramos. Porque
as histórias e os futuros imagináveis, que juntam e dividem nações,
classes, sexos, raças e gerações, são vividas por e através de indivíduos dentro das comunidades reais e imaginárias, em espaços reais
e nos objetos do dia a dia.
Por essa razão, nenhum lugar (e nenhum objeto dentro dele)
nunca consiste somente nas três dimensões objetivas de sua forma
física. Sua forma também contém as duas dimensões subjetivas e
potencialmente perigosas da memória e da imaginação – suas histórias e seus futuros imagináveis – que podem ser ‘vistos’ em seus
espaços, superfícies e profundidades, dependendo de quem estiver
interpretando sua presença. Pode muito bem ser que essas histórias e futuros imaginados foram gravados em objetos físicos, como
os círculos em pedras feitos pelo povo Guarani quando criavam e
afiavam suas ferramentas na mesma costa oceânica onde estou escrevendo. Mas é o meu olhar focado – minha curiosidade, meu desejo de ver, os conhecimentos que eu trago para essa interpretação
e tudo o que moldou minha receptividade – que percebe uma presença indígena na pedra. Esse olhar focado – enxergando, refletindo, interpretando – compõe o nosso poder estético transformativo.
De modo claro, o poder estético é sempre moldado cultural-
Um museu comunitário, nacional, cicatrizador e transformador, o monumento 500 Anos de
Resistência Índigena, construído coletivamente pelo Povo Pataxó (10m x 10m, Monte Pascoal, Bahia, 2001).
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mente, mas ele não é apenas já determinado. É formador. Nós podemos dar uma forma imaginada a algo que é invisível e real ao mesmo tempo. O teatro, mais obviamente, se baseia e depende desse
poder estético que transforma o real no fictício e o fictício no real.
Quanto mais as pessoas concordam em focar seu poder estético
no mesmo espaço, mais poderoso se torna esse espaço estético. O
povo Pataxó ‘colocou’ cordas invisíveis nos cinco arcos de seu monumento de resistência. Aqueles que não estão conscientes desse
simbolismo não podem ler a presença das cordas invisíveis. Mas
aqueles que interpretam o monumento através dos olhos de seus
artistas podem não apenas interpretar a presença das cordas invisíveis como podem, através do seu poder estético, transformar o
círculo físico definido pelos arcos num palco, num espaço estético
que, em retorno, dependendo de como é focado, transforma todos
os que caminham para dentro dele em ‘guerreiros’ que ‘nunca revelam os segredos de sua luta’. Simplesmente, ao imaginar o olhar de
outros, procurando fora e dentro simultaneamente, qualquer um
pode subir nesse palco e ser transformado. E essa transformação
estética tem efeitos subjetivos, psicoemocionais que podem criar
efeitos sociais e políticos reais.
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Diálogo íntimo e público
Na pausa fracional em nosso diálogo público, eu leio os olhos e
comportamento do meu perguntador para interpretar sua subjetividade, sua presença e como ele a usa para ler a minha, para decidir
como eu vou identificar as duas histórias, a que eu herdei com o
meu nome e a história que estou fazendo. Minha intuição (aquela
fusão das minhas inteligências emocional, corporal, perceptiva e
espacial) interpreta tudo dentro desse espaço que nós estamos focando agora através de um diálogo entre a presença um do outro, e
guia o tom e a estratégia da minha voz pública. É no relacionamento
entre nossos diálogos íntimos e públicos que negociamos e sobrevivemos nesse primeiro encontro intersubjetivo e intercultural.
Imagino que as pessoas sempre tiveram que estar alertas ao
se movimentar entre diferentes comunidades, especialmente entre
comunidades com histórias vivas mal resolvidas e perigosas. Mas
hoje, é assim que nos movimentamos por nossas próprias ruas e
casas. É como sobrevivemos à cultura globalizante do consumo devorador que está fragmentando não somente continentes, nações e
classes sociais, mas também nossas comunidades e nossas próprias
famílias, transformando tudo em fortalezas, isolados pelo medo. É
assim que vivemos: através das grades físicas, psicológicas e digitalizadas que separam os que empregam daqueles que trabalham, os
que comem daqueles que servem, os que compram daqueles que
mendigam. Hoje, não importa de onde eu sou; se não sinto e não entendo essa performance intracultural e não estou performanciente
acerca de minha presença, posso muito bem provocar um confronto fatal sem querer. Essa é a estética da sobrevivência nas grandes
cidades.
Eu sorrio e respondo: País de Gales. Canadá. Mas agora eu moro
no Brasil. À pergunta, ofereço um convite que o deixou perplexo:
é uma história. A maioria daqueles que já ouviram falar do País de
Gales responde: Reino Unido? A terra da princesa Diana?Sorrio novamente e pergunto: o Brasil faz parte dos EUA? Assim lhe ofereci,
suavemente, uma possível ponte de solidariedade. Com o sorriso e a
pergunta, convidei-o a dialogar, sinalizando com a possibilidade de
uma intimidade sem perigo.
O palco intercultural do diálogo
A maioria dos brasileiros que eu conheço tem curiosidade em
saber do dia-a-dia no País de Gales. Eles querem usar essa rara
oportunidade para descobrir algo sobre a comida, o clima, o salário
médio, as pessoas, a corrupção e a qualidade de vida na Europa, não
só para conferir ou expandir seu conhecimento, mas para enxergar
a si mesmos e a suas vidas através dos meus olhos. Isso faz parte de
seu diálogo íntimo de identificação interna.
Sendo eu o estranho, esperou-se que me identificasse. Agora que eu já o fiz, posso fazer a minha pergunta. Tão logo minha
pergunta saiu dos meus lábios, um outro conjunto de diálogos íntimos internos foi ativado e, em segundos, enquanto eu agora estou
aprendendo sobre a identidade da pessoa diante de mim e sobre
mim mesmo, nós estamos avaliando o diálogo entre nossas duas
histórias e a possibilidade de criar uma história compartilhada no
futuro. Nós já focamos esse espaço entre nós num palco estético de
reflexão, interpretação e performance. Agora ele está sendo refor-
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Você pode pensar que essa sensibilidade performanciente com
o espaço histórico e imaginado, com nossas vozes públicas e íntimas,
é uma preocupação supercautelosa de um refugiado com um passado
a esconder ou um futuro para proteger, ou a insegurança exagerada
de um estranho conhecendo um novo país. Talvez a minha sensibilidade tenha sido um pouco influenciada por todas essas experiências e pela minha experiência com o teatro. Mas eu diria que estou
só explicitando o que se tornou habitual, até morto ou perdido em
nossos relacionamentos diários de comunicação deslocada ou acelerada. Essa consciência performativa, por mais intuitiva ou profissionalizada, é a que identificamos em todos os ‘atores’ que notamos em
nossas vidas, aqueles que assumem um papel ‘performático’ em um
palco público ou coletivo. Ela é mais comumente experienciada e negativamente compreendida como uma timidez por estar em público,
mas cada vez que abaixamos os olhos em reflexos de autodefesa nós
nos afastamos (até nos excluímos) do palco coletivo do diálogo. Nós
temos que desmistificar esse teatro de comunicação para entender e
democratizar a performance do poder.
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mado e adaptado para incluir duas histórias diferentes e dois tipos
diferentes de performance e expectativa.
Num primeiro diálogo breve, nós transformamos um espaço existente em um palco complexo de ensaio simultâneo, performance interativa, espectador e auto-espectador. Pela maneira
como usamos esse espaço, podemos rapidamente sentir nossa
igualdade ou desigualdade. Como re-conhecemos essa primeira
relação depende de como entendemos o relacionamento intercultural entre nossas histórias. Mas nesse primeiro drama interativo
de identificação, resumimos nossos passados para imaginar uma
série de futuros possíveis e assim criar um lugar de diálogo, de
comunidade, de tomada de decisão e de concordância possíveis
– mesmo que essa concordância fosse a nossa última! Se esse drama de três diálogos interativos ocorre entre duas pessoas apenas,
imagine o potencial dialógico e a atividade num espaço cheio de
gente!
História intracultural no diálogo íntimo
Mas e se nós herdamos histórias perdidas ou destruídas e não temos um passado para nos basear, aplicar e dividir? E se nós herdamos
só as histórias coloniais, fragmentadas, confusas, contraditórias ou
condenantes que criam a autodúvida, o autodesrespeito, o auto-ódio e
a auto-representação apagada? Como podemos construir esse drama
intercultural de identificação e comunidade? Como podemos participar da construção de um palco compartilhado, como pessoas iguais?
Como é complexo construir ou mesmo preparar um palco democrático! Falamos sobre usar nosso multiculturalismo como um recurso
de tolerância e igualdade. Mas será possível qualquer tipo de tolerância
e igualdade sem conhecer e descolonizar as histórias que carregamos
em nossa língua, nossos gestos e nossa memória corporal? Que tipo de
auto-estima individual e coletiva pode ser construído a partir de uma
amnésia mental e um excesso de memória emocional-corporal? É possível que um povo sem memória tenha memória?
Você conhece o gesto físico do movimento rápido da mão, estalando os dedos como se fosse um chicote, expressando o pensa-
mento rápido! rápido!, ou a ameaça de apanhar? Qual história está
presente nesse gesto? A ameaça internalizada e a subjugação interna de séculos de coronelismo? Uma ordem sem palavras para trabalhadores vindos de outros lugares? Quais são os legados subjetivos
da cultura que esse gesto nacional grava? Ou a palavra saudades?
Por que ela é tão significativa na língua brasileira? Ela carrega a
presença de memórias vívidas de separação e perda de comunidade durante séculos de emigração na colonização do Brasil? Quais
são seus efeitos subjetivos? Quais são os efeitos subjetivos da perda
(e em alguns casos, da proibição) da língua materna sobre a capacidade de falar, de escrever e de pensar com autoconfiança? Ou o que
está presente nestes reflexos culturais nacionais: come mais! come
mais! (enquanto o visitante resmunga por ter comido em excesso);
é cedo ainda (quando o visitante está pronto para ir embora); ou
desculpa qualquer coisa (depois de oferecer uma generosidade exagerada e sem falhas)?
Ou o que revelam as expressões nacionais como sofrer uma
avaliação, conquistar terreno (ou uma mulher!), às ordens, e palavras de ordem? Manchas culturais de uma história autoritária,
clerical ou militar? Se elas compõem parte do tecido cultural e
imaginário popular do país, vivendo no íntimo da cultura política
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
Professores, educadores populares, gestores culturais e artistas participam num curso de
formação em ‘transformance’ durante uma ‘interação estética’ entre artista, Ponto de Cultura
e comunidade (Marabá,Pará, 2009).
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e nos reflexos populares de seus povos, até que ponto moldam a
própria noção e prática de transformação? Por que, numa visita a
Pernambuco, um educador popular definiu o processo coletivo de
construção de sua peça teatral política em termos de sofrer uma
mudança? Por que sofrer? Mais uma dobra ideológica na inconsciência política do país? Não sei se a língua define os limites de
nossa consciência ou do que podemos pensar de modo absoluto. Mas com certeza os patrulha. E com certeza dirige sutilmente
nosso raciocínio e experiência coletiva. Quando essas expressões
idiomáticas entraram na língua? Durante as invasões do Brasil?
Com quem? Durante a ditadura? O que as tornou possíveis? Por
que não as estudam na escola?
E o que significa a expressão nacional pois é...? Ou pode ser?
Gestos linguísticos de reconhecimento incerto? Interrupção indireta? Afirmação indefinida? Monumentos culturais inconscientes das
histórias contraditórias do ‘povo brasileiro’? Estratégias sábias do
refugiado ou imigrante, preocupado em não discordar para evitar
um confronto que possa levar a um isolamento ou a uma vulnerabilidade fatal? Ou reflexos sensíveis que evitam choques de opiniões
contrárias e democratizam, mesmo intuitivamente, espaços sociais.
Que reflexo complexo! Pode até esconder a dificuldade de falar não,
não posso, não quero, não concordo, o primeiro direito e princípio
da democracia, a ferramenta mais necessária e difícil de aplicar
para evitar a violação e a exploração.
Que cultura popular fascinante! Distintamente latina? Camponesa? Colonizada e colonizadora? Em contraste com muitos gestos e reflexos de exclusão, dominação e culpa das culturas coloniais,
essa ‘cultura popular brasileira’ continua a ser repleta de reflexos de
empatia expressiva, que refletem as gerações de pobreza, sofrimento compartilhado e humildade da cultura camponesa e que é ainda
atual, uma solidariedade que se manifesta, por exemplo, quando se
compartilha uma geladinha ou um refri coletivo. Não quero idealizar
esses reflexos, impregnados com tanta história intercultural e contraditória. Mas me parece que esta estrutura de sentimento dominante
de solidariedade empática no Brasil, depois de séculos de repressão
e luta, tem agora a possibilidade – se transformada numa solidarie-
É impossível saber a
que ponto esses reflexos
culturais refletem as culturas pré-coloniais africanas e indígenas, dado
sua mistura com os reflexos culturais europeus
no interculturalismo vivo
na identidade e memória
Roda de histórias da vida, contadas a partir corporal de quase todo
de objetos íntimos, para construir um palco co- brasileiro. Mas, alfabeletivo comunitário em busca de transforma- tizados
culturalmente
ção sustentável (Santa Catarina, 2000-03).
e descolonizados, esses
reflexos de empatia e intimidade podem tornar-se recursos valiosos para o cultivo de comunidades democráticas. O fato de que eles não são valorizados como
tal explica, precisamente, sua vulnerabilidade diante da cultura dominante do consumismo.
Porém, temos que interpretar tais reflexos culturais dialeticamente. Também, contêm e dramatizam a presença brasileira, as
experiências históricas do refugiado, do escravo e do fugitivo, com
seus desejos profundos de ser aceito e não suspeito, de evitar ofender e ser ofendido, de não dizer não ou discordar, o que faz com
que enfrentar e resolver as dificuldades com os outros seja quase
impossível. Claro, é possível responder: qual povo ou pessoa não
seria igual? Portanto, é possível que o Brasil tenha que manter sua
conversa leve e sua festa multicultural rolando para não se arriscar
a descobrir uma história íntima que foi deliberadamente escondida
há muito tempo. Acredito que a democratização do Brasil e sua resistência popular à globalização neoliberal dependerão do cultivo
de um palco dialógico no qual seus netos do estupro e do genocídio
possam entrar sem vergonha, seus netos negros e mestiços possam
entrar sem sonhar em ter peles brancas, e seus jovens brancos pos-
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dade reflexiva e dialógica – de transformar as instituições do Estado
e se manifestar através de uma cultura política participativa.
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sam pisar sem ter que rir envergonhados eu não sei à pergunta qual
é a sua história? Somente num palco intracultural e descolonizado será possível cultivar uma autoestima diversa e unificada, como
preparação para entrar num palco intercultural e transformador
para a América Latina – ou até formar esse palco.
Descolonizando o diálogo íntimo
Eu dei a minha resposta em público. Mas em espaços de solidariedade, cuidado e sensibilidade provada eu posso contar minhas
histórias mais íntimas. Eu posso falar das fotos rachadas, rasgadas
e descoloridas dos meus parentes poloneses que se refugiaram nas
vilas de Gales ou apodreceram nos fornos do genocídio industrializado, deixando uma sede por justiça e um grito silencioso pelo
direito de lembrar, presentes nos gestos que herdei daqueles que a
tudo testemunharam indiretamente. Posso falar dos meus parentes
que se refugiaram das perseguições na Rússia pré-revolucionária
ingressando nos movimentos pela justiça e alfabetização no Canadá. E, cavando mais fundo ainda, eu posso contar a história de uma
infância que andou na ponta dos pés ao redor de uma irmã gravemente deficiente, cuja impotência silenciosa sensibilizou e transformou seus irmãos, de modo inconsciente, em ativistas, cientistas,
médicos e artistas das emoções.
Mas nem sempre foi tão simples contar essas histórias íntimas. Eu aprendi a contá-las através da coragem das comunidades
às quais haviam sido proposital e cruelmente recusados os direitos
de lembrar ou de pensar e de falar em sua língua indígena para que
não se (re)conhecessem. Eu conseguia ver nos seus olhos porque
eles escondiam suas histórias íntimas e incontáveis atrás de sua raiva anticolonial, e porque eles se refugiaram de sua violência emocional e sexual nas histórias coerentes de seus murais de rua e das
faixas de protesto anti-imperialista, orgulhosas e articuladas. Eles
não conseguiam aguentar a agonia de serem julgados pelos seus,
pelas cruéis contradições dentro de sua própria subjetividade compulsiva, e não podiam suportar a tortura de seu próprio autojulgamento. Mas aos poucos, ao longo dos anos de nossa colaboração,
suas histórias íntimas inadvertidamente se tornaram metáforas
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para as minhas histórias e, vice-versa, as minhas para as deles. O
palco intercultural possibilitou uma performance intracultural. E
nós descobrimos um fato fascinante nessa performance: ao aprender a contar nossas histórias íntimas em público, simultaneamente
tivemos que ouvir e aprender a contá-las a nós mesmos. Ao quebrar nosso silêncio num espaço íntimo de solidariedade empático-reflexiva, onde podíamos refletir analítica e criativamente – não
defensiva ou ideologicamente – sobre a política de nossa subjetividade, nós conseguimos achar a voz e a coragem para quebrar nosso
silêncio também num espaço de julgamento.
Conforme aprendia a contar minhas histórias íntimas, reconheci como eu havia resistido algumas delas, por tanto tempo. A
perseguição dos judeus e o estigma contra a deficiência mental
haviam sido internalizados nos gestos e reflexos de minha família,
julgamentos renovados na cultura popular da minha própria vida.
Havia condenado a repressão israelense ao povo palestino e reconhecido o poder manipulador e a dependência das vítimas. Mas na
medida em que eu aprendia como as vítimas de um genocídio podiam tornar-se opressores cruéis – e até se justificar através de discursos sobre os direitos humanos e o sofrimento – aprendi que precisava me conscientizar sobre o que havia internalizado em minha
imunização, para evitar que em minha subjetividade se reproduzissem os meus opressores.
Enquanto aprendíamos sobre a arqueologia do corpo-pensante
e as contradições que
definem o limiar entre
a resistência e a libertação, reconheci o poder
formativo da luta entre
meu eu determinado e o
A Polícia Militar da Bahia escavando sua história afro- eu que quis determinar.
-brasileira para reconhecer e descolonizá-la através de Mesmo que eu pudesse
um diálogo de dança narrativa que revisita a paisagem
íntima de sua primeira casa. A formação faz parte do ignorar alguns fatos de
projeto nacional segurança cidadã (Salvador, 2009-10). minha história herdada,
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a sua força emocional e psicológica continuava estruturando meus
sentimentos, meus gestos e até minhas necessidades, e necessariamente tocavam e interagiam com as vidas e com as lutas por autodeterminação de outras pessoas e comunidades. Quando reconheci
isso, não como uma falha mas como um fato subjetivo de minha
humanidade, com seu próprio poder motivador e efeitos interculturais, reconheci minha responsabilidade – enquanto arteducador
comunitário, intervindo nas vidas dos outros – e a necessidade de
me alfabetizar emocional e culturalmente, para me sensibilizar no
mundo.
Voz compulsiva ou dialógica?
Minha história íntima não é o assunto declarado dessa reflexão
pública. Mas ela é, obviamente, uma parte de sua subjetividade. No
entanto, de forma ainda mais profunda, compartilhar essa história
íntima com outros é não só o modo como me reconheço nos vários
palcos coletivos de minha vida. É também o modo como eu me reconheço como uma subjetividade interativa nos palcos coletivos de
outros, em nossa esperança única de aprender as técnicas e práticas de uma nova subjetividade dialógica.
É assim que explico o que motiva e ativa minhas ideias e solidariedade empática com qualquer pessoa ou povo, lutando para
contar sua história e criar uma nova identidade. Mas também explica meu compromisso em iluminar esses efeitos subjetivos de não
saber ou de negar essa história íntima, e entender seu significado
na busca pela democracia e autodeterminação. As doenças emocionais e psicológicas causadas por amnésia, deslocamento cultural e
falta de autoconfiança, autoestima, autoconhecimento e autoaceitação não só obscurecem e mascaram a necessidade de afirmação
que tranca, dialeticamente, a vítima e o violador no ciclo codependente abusivo que caracteriza todos os relacionamentos autoritários. Também negam a possibilidade de interromper esse ciclo e explicam o gestor e ativista compulsivo: sua dificuldade em dizer não;
seu desejo de procurar por (sua própria) justiça no centro do palco
nas vidas dos outros; sua tendência de assumir responsabilidade
excessiva; sua dificuldade em organizar o tempo; seu choro impla-
Democratizando o palco de fazer história
Se a nossa capacidade de narrar e contar histórias surge de
nossa necessidade de organizar e dar o sentido de nossa experiência ao mundo, como nós narramos e contamos nossa história depende de quem nós somos, do lugar a que pertencemos e das histórias que ouvimos ou deixamos de ouvir. Não significa que sabemos
como contar nossa história, ou quando e onde ela começa, nem se
a contamos de uma forma que ela supra nossa necessidade. Talvez
isso explique a fascinação compulsiva em tantas pessoas de ouvir
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cável de (auto) acusação e a consequente inabilidade em ouvir; e
sua dificuldade crônica de perceber como o pessoal está presente
em sua (e toda) interpretação do mundo, o que caracteriza todas as
culturas vítimas. Claro, a inexperiência em gerenciar e coordenar
tempo, responsabilidade e recursos – justamente, o propósito do
colonialismo – exacerba essas dificuldades. Mas esses fatores objetivos tendem a ser definidos como as principais causas da violência
autoritária na cultura vítima, para racionalizar uma gestão surda
e compulsiva. Um reflexo compreensível, mas revelador, de culpar
em vez de reconhecer a possibilidade intolerável da cumplicidade
íntima com qualquer sofrimento contínuo.
Esse é o elo fundamental entre o (saber) contar histórias e a
autodeterminação, para o coordenador e o participante. Esse elo
me guia quando estou incerto sobre como interpretar uma cultura
que não é a minha, ou qualquer indivíduo com quem eu esteja colaborando: será que eu, um ‘estranho’, tenho o direito de participar
nas lutas de outros? A incerteza não é menos presente ou relevante
em minha própria cultura ou comunidade. Nós somos todos ‘estranhos’ para os outros, portanto, é somente através do diálogo com o
outro, na frente de uma plateia (real ou imaginária), que podemos
nos conhecer. Mesmo direta e indiretamente, as lutas dos outros
e a nossa luta se implicam, de forma inevitável. Mas a pergunta é
fundamental! Ela transforma o desejo autoritário de ‘conscientizar’
os outros em autodúvida necessária que gera a curiosidade para
ouvir e questionar permanentemente. E garante um aprendizado
dialógico contínuo.
327
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328
outras histórias. Seja qual for a forma como contamos nossa história – se temos que emprestar maneiras ou técnicas de outros contadores de história para contá-la ou se temos que levá-la para outro
tempo e lugar para contá-la, se temos que contá-la nas margens ou
silêncios das histórias de outras pessoas, se temos que escondê-la
na narrativa de outras pessoas ou mesmo entre os dentes em seus
sorrisos, se temos que mentir e enganar para contá-la ou distorcê-la quase além do reconhecível para combiná-la com o mundo –, o
fato é que temos que contá-la, ao menos para nós mesmos. Porque é
contando histórias que tentamos nos conhecer e reconhecer.
Poderíamos dizer que é no contar histórias que a história do
Museu íntimo: diálogos num quintal de cultura entre arteducadores populares, bisavôs e uma
geração em risco, resgatando a memória coletiva musical para criar uma cultura dialógica e
estética de transformação sustentável (Cabelo Seco, Marabá, Pará, 2010).
mundo é revelada em nossas ações, ou que são nossas histórias íntimas que nos permitem esclarecer nossa parte e responsabilidade
nas histórias compartilhadas que fazemos. Poderíamos dizer que
contar histórias é o ato de fechar uma história para permitir que
outra comece, ou o ato de manter uma história aberta e incompleta
para estendê-la para o futuro. Independente de como escolhemos
defini-lo, o ato de contar histórias é muito mais do que o mero contar de histórias. É uma intervenção numa história viva compartilhada – de inúmeras intervenções anteriores e simultâneas – que
contribui para a definição do presente e o fazer do futuro, e explica
porque o contar de histórias e o controle do poder de contar histórias – seu modo de afetar e definir– são tão fortemente contestados
e controlados. Se o contar histórias é um ato de ‘dar sentido’, atra-
Todo mundo pra fora! Pra fora!
Deixamos nossas sacolas nas mesas e saímos da sala.
Agora façam fila e entrem ordenadamente.
Nós entramos, aterrorizados por esse jovem professor, que
não tinha apelido. Como podíamos saber o que esperar ou como
nos defender?
Esse é o poder que eu tenho. Eu nunca quero usá-lo. Meu nome é
Turnbull. Mas gostaria que vocês me chamassem de Ian. Combinado?
Nós concordamos com a cabeça.
Agora vamos formar um círculo com essas mesas. Eu ajudo.
O som de mesas arrastando no chão de madeira. Ian abriu as
janelas e fechou as cortinas. Nós sentamos em círculo.
Agora peguem qualquer coisa onde escrever e qualquer coisa
com o que escrever.
Ian colocou o lixo no meio da sala e encheu-o de jornais que
ele amassou com as mãos. Ele colocou uma jarra grande de água do
lado do lixo. Nossa surpresa e curiosidade aumentaram.
Eu quero que vocês olhem, cheirem, ouçam e sintam. Quando eu
falar, vocês podem pegar suas canetas. OK?
Concordamos. Ele pôs fogo no jornal e se afastou. Em segundos,
chamas saíam do lixo e iluminavam um círculo de rostos de trinta
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
vés do fazer de uma história pela primeira vez ou fazendo diferente
da última vez, por que não é reconhecida como o fazer de histórias?
É para nos convencer de que somos apenas contadores ou ouvidores? Que deveríamos nos submeter e investir nos reconhecidos fazedores de histórias?
Por esse motivo, entender o poder dialógico de historiar e o
modo como o praticamos tem que se tornar uma parte essencial
de nossa sensibilidade humana à compreensão da performance
da democracia. Nós podemos julgar a nós mesmos, a qualquer
movimento, governo ou país, pela amplitude com que o poder e as
técnicas de historiar são entendidos, compartilhados e democratizados, na prática. Podemos assim, dialogar no palco coletivo da
autodeterminação.
____________________________________________
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330
crianças. Conforme a fumaça ia ficando preta, ele botava água no
fogo. Ele correu para abrir as cortinas, e disse: agora escrevam! Tudo
que vocês lembrarem. Tudo!
Por cinco minutos, nós escrevemos. Ninguém levantou a cabeça.
Parem onde estão e passem o que vocês escreveram para a
esquerda.
Nós ouvimos trinta poemas incompletos. Cada um era diferente.
Cada um acendeu nossa imaginação e aqueceu nossa autoconfiança. Olhamos em choque para amigos que nunca haviam falado uma
palavra. Ouvimos nossas próprias palavras nas bocas e aplausos de
outros. Nós éramos poetas!
No dia seguinte Ian recebeu um aviso. Ele não modificou a sua
maneira de trabalhar e nós o amamos por sua coragem. No final do
semestre, marchamos em volta do pátio da escola, de shorts, com faixas Ian deve ficar! – iguais como aquelas que havíamos visto nas manifestações pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, na TV.
Ele foi despedido.
Bibliografia selecionada
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
BAKHTIN, Mikhail. The dialogic imagination. Texas: Texas University
Press, 1983.
BARON, Dan. Alfabetização cultural: a luta íntima por uma nova humanidade. São Paulo: Alfarrabio, 2004.
BHARUCHA, Rustom. Theatre and the World: performance and the politics
of culture.
Londres: Routledge, 1993.
BOAL, Augusto. Arco-Íris do desejo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1996.
BOFF, Leonardo. Saber cuidar. Rio de Janeiro: Editora, 2001.
FANON, Franz. Os condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Grall, 1979.
FROMM, Erich. O medo à liberdade. Rio de Janeiro: Guanabara, 1983.
FREIRE, Paulo; SHOR, Ira. Medo e ousadia. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1986.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Rio de Janeiro: Record, 2000.
THIONG’O, Ngugi Wa. Decolonising the mind. London: Currey/ Heinemann,
1984.
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
FROMM, Erich. A arte de amar. São Paulo: Martins Fontes: 2000.
331
Neide Köhler Schulte1
Luciana Dornbusch Lopes2
Lucas da Rosa3
Janaina Ramos Marcos4
Ilma Godoy5
1. Introdução
Reciclar, reutilizar, reaproveitar e customizar são conceitos cada
vez mais presentes no cotidiano dos profissionais envolvidos com o
mundo da moda, e que, de certa forma, estão presentes também em
toda a sociedade. Além disso, os consumidores de diversas esferas sociais no Brasil estão se preocupando com o que utilizam, levando em
consideração em sua decisão de compra, questões socioambientais.
A humanidade está vivenciando momentos de grandes mudanças
climáticas, que geram incontáveis prejuízos, além da degradação do
planeta em função do grande acúmulo de resíduos e poluentes. Todos
esses fatores vêm dificultando a vida no planeta Terra.
O designer destes novos tempos, além de possuir a tarefa de criar
coleções “vendáveis” e imagens do que poderá ser usado nas próximas
estações, gradativamente precisa conscientizar seus clientes e consumidores acerca da gravidade dos impactos ambientais causados pelo
consumismo na atualidade. Segundo Papanek (1997, p.14), o
(...) designer tem sido sempre (...) um professor, estando
em posição de informar e influenciar o cliente. Com a atual confusão ambiental é ainda mais importante que ajudemos a orientar a intervenção do design, de modo que
1 Neide Köhler Schulte é professora do Curso de Moda no Centro de Artes da Universidade do
Estado de Santa Catarina – Ceart-Udesc.
2 Luciana Dornbusch Lopes é professora do Curso de Moda no Centro de Artes da Universidade
do Estado de Santa Catarina – Ceart-Udesc.
3 Lucas da Rosa é professor do Curso de Moda no Centro de Artes da Universidade do Estado de
Santa Catarina – Ceart-Udesc.
4 Janaina Ramos Marcos é mestranda em Design no Centro de Artes da Universidade do Estado
de Santa Catarina – Ceart-Udesc.
5 Ilma Godoy é professora do SENAC Florianópolis.
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EcoModa: Coleção Primavera Silenciosa
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seja natural e humana. Temos de alargar nossas próprias
áreas de conhecimento e, simultaneamente, reorientar os
nossos modos de trabalhar.
O programa Ecomoda UDESC surgiu em 2004, a partir do convite
feito por Marly Winckler, presidente da SVB – Sociedade Vegetariana
Brasileira – organizadora do 36° Congresso Mundial de Vegetarianismo. Para participar do evento com um desfile, foi desenvolvido o projeto de extensão “Coleção de Moda para o 1° Veg Fashion”, coordenado
pelos professores Lucas da Rosa e Neide Schulte. O evento foi realizado
em Florianópolis, no Hotel Resort Costão do Santinho, no período de 08
a 12 de novembro de 2004.
Desde então o Programa Ecomoda vem se destacando através de
seus projetos, como um grande difusor dos conceitos de produção ecológica e sustentável, além do consumo consciente.
O presente artigo pretende relatar uma das experiências de trabalho do Programa de Extensão EcoModa Udes, a Coleção Primavera Silenciosa, apresentada em novembro de 2010, na Università degli Studi
di Firenze, Itália e em maio de 2011, no V Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social – Enapegs, em Florianópolis. É uma amostra
do que se desenvolve no Programa EcoModa a partir dos conceitos que
norteiam as atividades: produção e consumo conscientes para um desenvolvimento socioambiental sustentável.
2. Ecodesign e sustentabilidade ambiental
2.1. Ecodesign
Segundo Traversim (2005, p. 1), o termo ecodesign: é uma junção entre a palavra grega “eco”, que significa “casa”, e a palavra inglesa
“design”, que quer dizer “planejar, desenhar”. Resumindo, o ecodesign
propõe um casamento entre a natureza e a tecnologia, tendo a ecologia
como base. Os materiais devem ser escolhidos levando em consideração sua toxicidade, abundância na natureza e possibilidade de regeneração ou reciclagem.
Como a moda é uma das indústrias de maior alcance nas camadas
sociais e também a que tem um dos maiores índices de poluição em
2.2. Sustentabilidade ambiental
O conceito de sustentabilidade ambiental foi criado no início da década de 1970, na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, para sugerir que era possível conseguir o crescimento econômico e
a industrialização sem destruir o meio ambiente. O modelo proposto
para o desenvolvimento sustentável foi uma tentativa para harmonizar
o desenvolvimento humano com os limites da natureza.
Na visão de Vezzoli (2005, p.27), as ações humanas para serem
consideradas sustentáveis devem atender aos seguintes requisitos:
a) basear-se fundamentalmente em recursos renováveis e, ao mesmo
tempo, otimizar o emprego dos recursos não renováveis (compreendidos como ar, água e o território); b) não acumular lixo que o ecossistema não seja capaz de reutilizar (isto é, fazer retornar as substâncias
minerais orgânicas, e, não menos importante, as suas concentrações
originais); c) agir de modo com que cada indivíduo e cada comunidade
das sociedades “ricas” permaneça nos limites de seu espaço ambiental,
bem como que cada indivíduo e cada comunidade das sociedades “pobres” possa efetivamente gozar do espaço ambiental ao qual potencialmente tem direito.
O grande interesse pela questão ambiental em encontros, trabalhos acadêmicos e reuniões envolvendo nações de todo o mundo demonstra uma crescente preocupação na utilização dos recursos da Terra, no entanto, apesar de todo o reconhecimento da importância de um
desenvolvimento compatível com os ciclos naturais, caminha-se para
um futuro que desafia qualquer noção de desenvolvimento sustentável,
e de respeito à natureza.
A humanidade ainda não está ficando sem recursos naturais “in
natura” no sentido literal da palavra. Mas está reduzindo as opções de
extrair, conservar e utilizar, o que se tem disponível, de uma maneira
menos agressiva e menos poluente para o meio ambiente, visto que a
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
toda sua cadeia produtiva, os designers de moda precisam considerar
os impactos ambientais em suas criações em todo processo produtivo,
utilizando tecidos ecológicos, abolindo os sintéticos e as peles. Os consumidores estão buscando cada vez mais por inovações e por produtos
menos poluentes.
335
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336
natureza já demonstra a incapacidade em absorver os impactos contínuos no acúmulo de resíduos no planeta.
3. Coleção Primavera Silenciosa por EcoModa
3.1. Tema da Coleção
Partindo dos conceitos de ecodesign e sustentabilidade ambiental,
a coleção “Primavera Silenciosa” homenageia a bióloga Rachel Carson,
considerada pelo jornal britânico The Guardian, em 2006, como a pessoa que mais contribuiu para a defesa do meio ambiente natural em
todos os tempos. Com sua obra “Primavera Silenciosa”, publicada em
1962, Carson inicia uma verdadeira revolução em defesa do meio ambiente natural, desencadeando investigações sobre os danos dos inseticidas e outros produtos químicos à saúde humana e para as demais
formas de vida. Contudo, a indústria química multimilionária gastou
milhares de dólares para difamar sua pesquisa e seu caráter. Por ser
cientista, sem doutorado, mulher, amante de pássaros e coelhos, ter gatos, ser solteira aos 54 anos, foi considerada uma histérica cuja visão
alarmista do futuro podia ser ignorada ou, caso necessário, silenciada.
Figura 1 – Rachel Carson – Fonte: http://clinton2.nara.gov/
WH/EOP/OVP/24hours/carson.html
Rachel, ao mesmo tempo, lutava contra
um inimigo mais poderoso do que a indignação das corporações: um câncer no seio
que evoluiu rapidamente para uma metástase. Ela deixou o alerta de que “a humanidade parece estar se envolvendo cada vez
mais em experiências de destruição de si
própria e de seu mundo”.
3.2. Processo criativo e produtivo
Com a colaboração de alunos da Udesc, alguns já graduados pela
instituição, outros graduandos, além de professores e a parcerias com
fornecedores, a coleção “Primavera Silenciosa” foi desenvolvida como
Figura 2 – Looks da Coleção Primavera Silenciosa – Fonte: arquivo pessoal
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
uma proposta para se repensar o sistema da moda diante da emergência por um modo de vida ambientalmente mais sustentável.
Foram pesquisados materiais com menor impacto ambiental,
como os tecidos orgânicos, reciclados e reaproveitados. Também foram
utilizados produtos da cultura local como as rendas de bilro e os acessórios feitos por artesãos. Além disso, buscou-se trabalhar com uma estética menos efêmera, mais atemporal, para que as roupas sejam usadas
por mais tempo, não sujeitas à moda passageira.
O Ipê, uma árvore da mata atlântica brasileira, que floresce durante os meses de agosto e setembro, geralmente com a planta totalmente
despida da folhagem, cujos frutos amadurecem a partir de setembro a
meados de outubro, é o tema escolhido para criação da coleção “Primavera Silenciosa”.
Os estágios de transformação do Ipê durante o ano: no inverno,
folhas e galhos secos, parecendo estar sem vida, então renasce na primavera com suas flores brancas, amarelas, rosas e roxas, e no verão, o
verde exuberante das folhas e o marrom do troco harmonizam o calor entre o céu e a terra, inspiraram a estrutura da coleção “Primavera
Silenciosa” que apresenta peças com formas básicas, baseadas na alfaiataria. Uma roupa feita para sair da passarela e ser usada por uma
mulher consciente com o mundo que a cerca, que se veste bem e prima
pela qualidade.
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3.3. Apresentação da coleção em Firenze e no Enapegs, em Florianópolis
Em Firenze, no Palazzo Medici, no dia 12 de novembro, foi
apresentado pela coordenadora Neide Schulte o Programa de
Extensão EcoModa Udesc. Durante a apresentação, mostrou-se
todo processo de criação e execução da coleção “Primavera Silenciosa”, desde a escolha do tema - uma homenagem à bióloga
Rachel Carson; as referências - o Ipê com suas fases: seco, floração e verde; a escolha dos materiais – o algodão reciclado da
Eco Simple, o algodão orgânico da Justa Trama, as rendas de
bilro de Zéllia dos Santos; até o uso de sementes nas bijuterias
desenvolvidas por Andréa Alves, os chapéus artesanais de Yone
Vecchi, as carteiras de retalhos de Isabel Possidônio e os sapatos
forrados com algodão reciclado pela empresa Raphaella Booz.
Figura 7 – Apresentação em Firenze –
Fonte: arquivo pessoal
O projeto também contou com a participação das
professoras Luciana D. Lopes, Aparecida Mª Battisti e
Carolina Carioni, das alunas
Janaína Figueiredo, Janaina
Ramos, Leah Varella, Salete Boschi, Ismael Farinon
e, demais professores e alunos do curso de Moda e Design que
contribuíram para a realização desse trabalho.
A coleção Primavera Silenciosa também foi apresentada
em forma de palestra, exposição e desfile técnico, em maio de
2011, no V Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social – Enapegs, em Florianópolis. Durante a apresentação do
trabalho, houve interação com os participantes do evento, que
expuseram comentários sobre o Programa Ecomoda e citaram
exemplos de trabalhos realizados em outras regiões do Brasil.
3.4 Comunicação e divulgação
Para divulgar o conhecimento e as atividades do Programa Ecomoda, optou-se por utilizar a internet e as redes sociais, por atingir uma
quantidade maior de pessoas e ser, de certa forma, “ecológico” e eficaz. Para isso, foi criado um
site, com administração em formato Blog, onde
periodicamente são inseridos artigos, dicas, divulgação de eventos e produção de conteúdos ligados à sustentabilidade e à moda ecológica.
Além do site Ecomoda, foram criados perfis nas principais redes sociais (Facebook, Youtube, Flickr, twitter), criados assim vários
canais e interfaces de comunicação, divulgando as ações e atividades
em tempo real.
4. Conclusão
A partir da apresentação da coleção Primavera Silenciosa na Itália
e no V Enapegs, pode-se verificar o crescente interesse do público, tanto europeu, quanto brasileiro, no sentido de se criar e consumir uma
moda ecologicamente e socialmente responsável.
No Brasil, o produto ecológico ainda é mais caro em relação ao
produto “comum”, o que torna sua inserção no mercado acessível apenas para determinados segmentos
de mercado, deixando grande parte da população, principalmente
a socialmente desfavorecida, consumindo grandes quantidades de
produtos poluentes, aumentando
ainda mais o problema do descarte
de resíduos.
É neste contexto que o Programa
Ecomoda
surgiu, como uma alFigura 9 – Tela inicial Site Ecomoda
ternativa e contraponto a esta indúsFonte: ecomoda.ceart.udesc.br
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Figura 8: Desfile Ecomoda no V Enapegs
Fotografia: Eduardo Trauer | etrauer.com
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tria poluidora, incentivando e criando uma moda inovadora, moderna e
acima de tudo, que respeita o meio ambiente.
O programa está estabelecendo parcerias com organizações públicas e privadas para formalização do Instituto Ecomoda de criação,
difusão e disseminação de moda ecológica. Uma organização que pretende oferecer cursos de capacitação em moda para mulheres oriundas
de comunidades da grande Florianópolis, divulgar e apoiar produtos
de designers locais que trabalham com moda sustentável, promover
encontros e palestras, e acima de tudo, oferecer produtos criativos para
consumidores exigentes e conscientes de que o futuro se constrói no
presente, e que é necessário agir neste presente, para termos algum futuro neste planeta.
Referências
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moda/produto. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2005.
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em: 17 fev. 2011.
LIMONADA MODA CUSTOMIZADA. Disponível em: < www.limonadamoda.
com.br/> Acesso em: 11 fev. 2011.
MARCOS, J. R. Sobre Sustentabilidade, Ecodesign e o Planeta – Apresentação
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http://clinton2.nara.gov/WH/EOP/
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SCHULTE, N. K..; LOPES, L. D. Sustentabilidade ambiental: um desafio para a
moda. Actas de Deseño n° 9, ano 5, Univesidad de Palermo, Julio 2010, Buenos
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TRAVERSIM, L. IETEC - Instituto de Educação Tecnológica, 2005. Apresenta textos sobre ecodesign. Disponível em: <http://www.ietec.com.br/ietec/
cursos/area_meio_ambiente/2005/08/05/2005_08_05_0001.2xt/materia_
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VEZZOLI, C.; MANZINI, É. O desenvolvimento de produtos sustentáveis: os requisitos ambientais dos produtos industriais. São Paulo: EDUSP, 2005.
Parte III
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
Revivendo o
Enapegs
341
Alessandra Debone de Sousa1
Eduardo Trauer2
Ives Romero Tavares do Nascimento3
Falar sobre o Encontro Nacional de
Pesquisadores em Gestão Social - Enapegs, que se renova e atrai pesquisadores,
estudantes e demais envolvidos com a
gestão social todos os anos, desde 2007,
é tarefa difícil. Difícil porque envolve
expectativas, ora realizadas, ora frustradas, sonhos sonhados em conjunto e
uma larga integração entre aqueles que
desejam construir, com a comunidade
brasileira, caminhos alternativos para
uma sociedade mais justa e igualitária.
Se lembrarmos das edições já realizadas até aqui (em Juazeiro do Norte/CE, Palmas/TO, Petrolina/PE e Juazeiro/BA,
Lavras/MG e Florianópolis/SC), podemos trazer à memória momentos em que se buscou propiciar aos interessados pela gestão
social um espaço de socialização. Não apenas de apresentação
de suas produções científicas, também um ambiente - ainda que
itinerante - no qual as pessoas pudessem encontrar-se e compartilhar experiências, saberes e conhecimentos.
Essa construção é pensada por cada anfitrião de maneira
1 Alessandra Debone de Sousa é graduanda em Administração Pública pela Universidade do
Estado de Santa Catarina (UDESC), bolsista de iniciação científica junto ao grupo Politeia e
presidente do Centro Acadêmico V de Julho. Foi bolsista de extensão no V Enapegs.
2 Eduardo Trauer é professor da Universidade do Estado de Santa Catarina
(UDESC) e autor das fotos deste texto. Mestre em Marketing Interativo e Realidade
Virtual pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
3 Ives Romero Tavares do Nascimento é mestrando em Administração pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Graduado em Direito pela Universidade Regional do Cariri e em Administração pela Universidade Federal do Ceará (UFC) – Campus Cariri.
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
O V Enapegs: entre fatos e fotos
343
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
344
única, ao mesmo tempo integrada a uma linha evolutiva, guiada pela Rede de Pesquisadores em Gestão Social (RGS).
A quinta edição do Enapegs foi coordenada pela professora
Paula Chies Schommer, em conjunto com diversos integrantes da
Rede, com acadêmicos e professores da Universidade do Estado
de Santa Catarina, que sediou o evento, e instituições de todas as
partes do país. Sua construção envolveu um longo e prazeroso
processo que começou em 2010, quando um grupo de colegas da
RGS definiu princípios que norteariam o trabalho:
a) Circularidade - que o próprio evento constitua espaço de
experiência e experimentação metodológica na forma como
é construído e nas reflexões que promove;
b) Diversidade - de formatos, de áreas do conhecimento científico e não científico, de organizações, de regiões e de pessoas participantes;
c) Diálogo e dialógica – abertura de possibilidades de interação com linguagens diferenciadas, como arte, teatro, “contação” de histórias;
d) Interdependência – estabelecendo conexões em rede e
atentando para o movimento que nos une;
e) Incerteza – movimento de refletir, ao nos relacionarmos
com o conhecimento, com o pensamento, com o outro,
considerando as nossas pressuposições como uma dentre
tantas outras possibilidades existentes – conhecidas e a conhecer. Suspensão dos estados de “certezas”. Ampliação do
processo de aprendizagem;
f ) “Inclusividade” – capacidade de sustentar a tensão ao lidar com a diversidade, nos temas, posturas, conhecimentos que pareçam contraditórios, divergentes, incluindo-os.
Enriquecendo o diálogo,
as perspectivas de gerar
novas percepções, novos
olhares.
Imaginou-se um Enapegs diferente: um evento
menor e mais integrativo.
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
Menor porque não assumiria a função de discussão de toda a gama
de produção científica
em gestão social (apenas
alguns eixos temáticos
abriram chamadas de
trabalhos). Integrativo,
visto que seu formato foi
imaginado para dar espaço às pessoas para conversarem e colocarem em pauta suas
necessidades, seus projetos e suas intenções para o futuro da
gestão social.
Esse formato idealmente reduzido do Enapegs não o fez
menor que as edições anteriores. Pessoas de mais de 97 cidades brasileiras e de todas as regiões do país, juntamente com
a comissão científica que ora atuava em Florianópolis, ora em
Salvador, fizeram com que a quinta edição contabilizasse 190
submissões de trabalhos (artigos, artigos de iniciação científica
e relatos de prática), 94 deles selecionados para apresentação e
publicação.
Além da característica científica do Enapegs, estamos falando de um evento que proporciona aos seus participantes um
contato com as diversas paisagens brasileiras. Em Juazeiro do
Norte, por exemplo, foi revelada parte da riqueza cultural do Cariri cearense. Palmas mostrou um pouco da abundância do Norte
brasileiro, ao passo em que Petrolina e Juazeiro exemplificaram
como o sertão produz frutas para exportação e muitos outros
produtos. Na cidade de Lavras, o frio do sul mineiro mostrou
como o Sudeste pode ter clima ameno e caloroso quando recebe
visitantes. Em Florianópolis, foi possível notar todo o seu potencial de cidade turística com praias e dunas, além do clima serrano que o Morro da Lagoa da Conceição proporciona.
Nesta derradeira edição, tivemos momentos divididos entre salas e jardins do Recanto Champagnat, um antigo mosteiro
em meio à natureza que proporcionou aos participantes um ar
345
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
346
de isolamento em relação às atribulações cotidianas, ao mesmo
tempo em que propiciou conexão com a natureza e os pares. Os
participantes puderam mergulhar nas discussões que nortearam
o V Enapegs e também caminhar até um dos mirantes e apreciar
a bela vista de parte da Ilha da Magia, que presenteou a todos
com três belos dias de sol de outono.
Os momentos de integração foram muitos. Além das oficinas, os intervalos para café, que, apesar de comuns em todos os
eventos, tiveram um ar diferenciado por serem em meio à exuberância da natureza no local. A atividade de abertura do evento, conduzida por Vivina Machado, e o lançamento de livros com
música ao vivo e vinho fomentaram espaços de troca e confraternização. No decorrer da programação, outro diferencial foi o
desfile técnico do Projeto Ecomoda, do Centro de Artes da Udesc,
usando roupas produzidas a partir de material reciclado. Além
das apresentações teatrais da cultura local, oficinas diversas e
atividades que permitiram experimentar metodologias integrativas de gestão social. Foi
igualmente marcante a presença da fotografia, captando e revelando em imagens
o espírito do evento, algumas delas apresentadas
aqui.
A participação de pessoas de diferentes regiões
brasileiras foi importante para o compartilhar de
ideias e culturas. Nos corredores do antigo mosteiro, podia-se
ouvir todas as regionalidades brasileiras em seus sotaques e expressões, além da presença do pesquisador chileno Pablo Monje
Reyes, que participou de várias atividades e trouxe enriquecedora contribuição para a construção da Gestão Social enquanto
campo e, assim, para o relacionamento do Brasil com os países
vizinhos. Em meio à diversidade, todos estavam atentos à temática da Gestão Social como Caminho para a Redefinição da Esfera
| Gestão social como caminho para a redefinição da esfera pública
Pública e, com suas singularidades, contribuíram para um
debate construtivo em torno
desse tema central.
Finalizando este texto
conjunto sobre o Enapegs, expressamos o ponto de vista
singular de dois dos coautores, como pesquisadores iniciantes no campo da gestão
social que se engajaram integralmente na construção do Enapegs - Ives e Alessandra.
Ives: Em meio a tudo o que o V Enapegs ofereceu e representou para os participantes, é justo colocar aqui nossa experiência pessoal na construção deste evento. Em primeiro lugar, o
sentimento que transborda é o de pertencimento. Pertencimento a um grupo de pesquisadores que são, acima de tudo, amigos.
E esses amigos instigam uns aos outros a estudar, a pesquisar
e a trabalhar em prol da construção de uma Gestão Social mais
sólida. É aí que o Enapegs aparece. Fazendo uma análise temporal, cremos que a primeira edição, em Juazeiro do Norte, foi a
energia de ativação para o estabelecimento da Rede de Pesquisadores em Gestão Social, que nos aproximou no sentido de levar
o Enapegs adiante. Já na sua quinta edição, o evento contou com
momentos marcantes durante toda a sua organização.
Sentir um evento é muito mais que fazê-lo acontecer. Organizar um Enapegs é, antes de tudo, uma doação pessoal. Significa que você vai dedicar-se exaustivamente na articulação de
recursos e pessoas para que o que foi pensado aconteça, mas,
para nós, traduz também uma realização pessoal no sentido de
ver acontecer um projeto de vida. E esse projeto, a cada ano, ganha maiores proporções e nos faz saber que o papel dos gestores
sociais também se materializa ao se promover esses espaços de
discussão.
Podemos ainda falar sob o prisma das perspectivas. Mas
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quais? Colocando-nos no posto de cidadãos, antes de tudo, ficamos felizes em contribuir com uma prática que abre espaço para
a discussão, o diálogo e a reflexão sobre os assuntos em pauta no
cenário nacional, como a edição de 2011. Foi prazeroso auxiliar
um evento que permitiu a intensa discussão, por três dias, da
gestão social e a redefinição da esfera pública. Em termos acadêmicos, a nós foi dada a chance de trabalhar com pesquisadores
e estudantes das mais diversas instituições do país, fazendo-nos
ter contato direto com o sistema de submissão e avaliação dos
trabalhos apresentados no V Enapegs (artigos e relatos de experiência). Esta experiência contribuiu para nosso crescimento profissional e certamente nos tornou aptos a transferir essa
mesma experiência para aqueles que futuramente se integrarão
à equipe.
Finda a preparação, chega a hora de ver o Enapegs acontecer, de vivê-lo. Não somente as palestras, as apresentações de
trabalho e as discussões de cada Eixo, mas sim conhecer pessoalmente aqueles que por muito tempo não passavam de letras
frias dispostas em um corpo de e-mail. Foi muito gratificante,
para nós, poder ouvir: “prazer em finalmente conhecer você!”,
ou “que bom poder conhecer você pessoalmente!”, e ainda “não
esperava ficar tão feliz em conhecê-lo!”. Isso gerou uma carga
Alessandra: O V Enapegs foi uma experiência profissional,
pessoal e acadêmica incrível. Acadêmica, pelo nível de conhecimento adquirido acerca do tema gestão social. Profissional, pela
experiência na organização de um evento que abriu diversas
portas para trabalhos futuros. E, principalmente, pessoal, pois
os princípios do V Enapegs estiveram tão presentes na organização do evento que acabaram por refletir-se nas atitudes de
cada membro. Em cada e-mail respondido, em cada contato com
membros da comissão, sempre se buscou a inclusividade.
A incerteza foi outro princípio bem presente. Organizar um
evento, por mais que se tenha experiência na área, é sempre repleto de particularidades. Acredito que podemos até falar em cultura.
A forma como a comissão organiza todo o evento em contato com
o contexto histórico, com o público e o local faz com que ele seja
único. Assim, a incerteza de como será o Enapegs é um sentimento
desconcertante e instigante ao mesmo tempo, pelo fato de se ter a
oportunidade de fazer parte da construção da “cultura Enapegs”.
Outro fator que talvez comprove a importância dessa cultura foi a participação dos voluntários no dia do evento. Todos
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emotiva muito forte quando nos recordamos de como foi importante para ambas as partes (organização e participantes) experimentar esses momentos de conhecimento e socialização entre
as pessoas.
E como temos dado um pouco de nós mesmos em cada edição do Enapegs e, em especial, em 2011, finalizamos este breve
relato pessoal afirmando que o Enapegs nos faz novas pessoas,
melhores, mais preocupadas com o próximo. Nesse sentido, o
Enapegs acaba adquirindo um pouco do que nós somos e dá a ele
essa característica tão personalística e próxima que lhe é própria. Se temos, por fim, algo que sempre será uma dívida, é fazer os agradecimentos a todas as pessoas que contribuíram para
que o V Enapegs fosse um sucesso. Mas nominar essas pessoas
aqui seria uma tarefa difícil, uma vez que fazê-lo exigiria uma
edição inteira desta coleção para que fossem feitos os devidos
agradecimentos.
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captaram rapidamente o espírito do evento, o que facilitou o alinhamento da equipe.
Por fim, não poderia deixar de citar que a presença da professora Paula Chies Schommer, desde o início, na construção da
Rede de Pesquisadores em Gestão Social e em todas as edições
do evento, trouxe, ainda que com suas particularidades, toda
essa cultura que foi e está sendo construída em torno do Enapegs. A presença de diversas pessoas da Rede na organização
também é fundamental para que o espírito de inclusão e de construção em rede e todos os demais princípios sejam mantidos de
uma edição para outra.
O que levo de mais importante do Enapegs e que me faz ter
orgulho em ter participado da organização do Encontro é perceber o caráter inclusivo que a construção em rede traz, e entender que a visão de cada participante deve ser considerada, de
forma a agregar tanto na preparação como no evento em si. Assim, os participantes sentem-se parte do processo, mesmo sem
envolver-se diretamente na organização, assumindo o verdadeiro caráter de encontro, para o qual todos contribuem de alguma
maneira, presentes no V Encontro Nacional dos Pesquisadores
em Gestão Social.