Levi-Strauss O bricoleiro
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Levi-Strauss O bricoleiro
O bricoleiro1 Claude Lévi-Strauss Uma forma de atividade subsiste entre nos que, no plano técnico, permite conceber o que, no plano da especulação, pode ter sido uma ciência que preferimos chamar de “primeira’” em vez de primitiva: aquela comumente designada pelo termo bricolage. No seu sentido antigo, o verbo bricoler aplica-se ao jogo de péla e de bilhar, à caça e à equitação, mas sempre para evocar um movimento incidente: o da bola que repica, do cão que divaga, do cavalo que desvia da linha reta para evitar um obstáculo. E, hoje em dia, o bricoleiro continua sendo aquele que trabalha com suas mãos, utilizando meios desviados em comparação com os do profissional. Ora, o próprio do pensamento mítico é de se expressar por meio de um repertório cuja composição é heteróclita e que, embora amplo, permanece limitado; no entanto, ele precisa usá-lo, qualquer que seja a tarefa que ele se coloca, pois não tem nenhuma outra coisa à mão. O pensamento mítico aparece assim como um tipo de bricolage intelectual, o que explica a relação que se observa entre ambos. Como o bricolage no plano técnico, a reflexão mítica pode alcançar, no plano intelectual, resultados brilhantes e imprevistos. Reciprocamente, notou-se frequentemente o caráter mitopoético do bricolage: que seja no plano da arte dita “bruta” ou “naïf”; na arquitetura fantástica da casa do carteiro Cheval, daquela dos cenários de Georges Méliès, ou ainda daquela, imortalizada por As grandes esperanças de Dickens, mas sem dúvida inspiradas primeiro pela observação, do “castelo” suburbano de M. Wemmick, com sua ponte levadiça miniatura, seu canhão saudando as nove horas e seu canteiro de alfaces e pepinos graças ao qual os ocupantes poderiam sustentar um cerco se preciso... A comparação merece ser aprofundada, pois ela permite melhor acesso às relações reais entre os dois tipos de conhecimentos científicos que distinguimos. O bricoleiro está apto a executar um grande número de tarefas diversificadas; mas, diferentemente do engenheiro, ele não subordina cada uma dela à obtenção de matérias primas e de ferramentas concebidas e providas na medida de seu Parte do capítulo 1 (páginas 30-36) de La pensée sauvage, Paris: Plon, 1962. Tradução: Christian Pierre Kasper. 1 2 projeto: seu universo instrumental é fechado, e a regra de seu jogo é sempre arranjar-se com “o que tem à mão”, isto é um conjunto a cada instante finito de ferramentas e de materiais, heteróclitos, além do mais, porque a composição do conjunto não está relacionada com o projeto do momento, nem, aliás, com nenhum projeto particular, mas é o resultado contingente de todas as ocasiões que se apresentaram para renovar ou enriquecer o estoque, ou para mantê-lo com os resíduos de construções e destruições anteriores. O conjunto dos meios do bricoleiro não é, portanto, definível por um projeto (o que suporia, aliás, como para o engenheiro, a existência de tantos conjuntos instrumentais quantos os gêneros de projetos, pelo menos em teoria); define-se apenas por sua instrumentalidade, ou, em outros termos e para usar a própria linguagem do bricoleiro, porque os elementos são recolhidos ou conservados em virtude do princípio que “pode servir um dia”. Tais elementos são, portanto, semi particularizados: o suficiente para o bricoleiro não precisar do equipamento e do saber de todos os ofícios; mas não o suficiente para sujeitar cada elemento a um emprego preciso e determinado. Cada elemento representa um conjunto de relações, ao mesmo tempo concretas e virtuais; são operadores, porém utilizáveis em vista de operações quaisquer dentro de um tipo. É da mesma maneira que os elementos da reflexão mítica se situam sempre a meio caminho entre perceptos e conceitos. Seria impossível extrair os primeiros da situação concreta em que apareceram, enquanto o recurso aos segundos exigiria que o pensamento pudesse, pelo menos provisoriamente, colocar seus projetos entre parênteses. Ora, um intermediário existe entre a imagem e o conceito: é o signo, já que pode sempre ser definido, da maneira inaugurada por Saussure a respeito dessa categoria particular que formam os signos linguísticos, como uma relação entre uma imagem e um conceito, que, na união assim realizada, desempenham respectivamente os papeis de significante e de significado. Como a imagem, o signo é um ser concreto, mas assemelha-se ao conceito pelo seu poder referencial: um e outro não remetem exclusivamente a si mesmo, podem substituir uma outra coisa. Todavia, o conceito possui, neste respeito, uma capacidade ilimitada, enquanto a do signo é limitada. A diferença e a semelhança sobressaem claramente no exemplo do bricoleiro. Olhemo-lo trabalhando: animado por seu projeto, sua primeira iniciativa prática é, entretanto, retrospectiva: ele deve se voltar para um conjunto já constituído, 3 composto por ferramentas e materiais; fazer, ou refazer, seu inventário; enfim e sobretudo, engajar com ele uma forma de diálogo, para listar, antes de escolher entre elas, as respostas possíveis que o conjunto pode oferecer ao problema que ele lhe coloca. Ele interroga todos os objetos heteróclitos que constituem seu tesouro2, para entender o que cada um deles poderia “significar”, contribuindo assim para definir um conjunto a ser realizado, mas que finalmente não diferirá do conjunto instrumental senão pela disposição interna das partes. Este cubo de carvalho pode ser calço para remediar à insuficiência de uma tábua de pinheiro, ou pedestal, o que permitiria valorizar o grão e o aspecto polido da velha madeira. Num caso será extensão, no outro, matéria. Mas essas possibilidades são sempre limitadas pela história particular de cada peça, e por aquilo que nela subsiste de predeterminado, devido ao uso original pelo qual foi concebida ou pelas adaptações que sofreu com vista a outros empregos. Como as unidades constitutivas do mito, cujas combinações possíveis são limitadas pelo fato de serem emprestadas da língua, na qual já possuem um sentido que restringe a liberdade de manobra, os elementos que o bricoleiro coleciona e utiliza são “préajustados”3. Por outro lado, a decisão depende da possibilidade de permutar um outro elemento na função vaga, de modo que cada escolha levará a uma reorganização completa da estrutura, que nunca será tal como aquela vagamente sonhada, nem como tal outra, que lhe poderia ter sido preferida. Sem dúvida, o engenheiro também interroga, já que a existência de um “interlocutor” resulta, para ele, de que seus meios, seu poder e seus conhecimentos nunca são ilimitados, e que, sob essa forma negativa, ele esbarra numa resistência com a qual ele há de transigir. Poderíamos ser tentados em dizer que ele interroga o universo, ao passo que o bricoleiro se dirige a uma coleção de resíduos de obras humanas, isto é, a um subconjunto da cultura. A teoria da informação, aliás, mostra como é possível reduzir os procedimentos do físico a um tipo de diálogo com a natureza, o que atenuaria a distinção que estamos tentando estabelecer. No entanto, uma diferença sempre subsistirá, mesmo levando em conta o fato do cientista nunca dialogar com a pura natureza, mas com um certo estado da relação entre a natureza e a cultura, definível pelo período histórico no qual vive, sua civilização, os recursos materiais do quais “Tesouro de ideias”, dizem admiravelmente da magia Hubert e Mauss. C. Lévi-Strauss “La structure et la forme, réflexions sur un ouvrage de Vladimir Propp“. Cahiers de l’Institut de Science économique appliquée, 7, no 99, Paris, 1960, p. 35. 2 3 4 dispõe. Não mais do que o bricoleiro, colocado diante de uma determinada tarefa, ele pode fazer qualquer coisa; ele também precisará começar por listar um conjunto predeterminado de conhecimentos teóricos e práticos, de recursos técnicos, que restringem as soluções possíveis. A diferença não é, portanto, tão absoluta quanto se pode imaginar; permanece real, entretanto, na medida em que, com relação a essas limitações resumindo um estado de civilização, o engenheiro procura sempre abrir uma passagem e situar-se além, enquanto o bricoleiro, de bom ou mau-grado, permanece aquém, outra maneira de dizer que o primeiro opera por meio de conceitos, o segundo por meio de signos. Segundo o eixo da oposição entre natureza e cultura, os conjuntos que eles usam são sensivelmente diferentes. De fato, uma das maneiras, no mínimo, pela qual o signo se opõe ao conceito é que o segundo queira ser integralmente transparente à realidade, enquanto o primeiro aceita, e até exige, que uma certa espessura de humanidade seja incorporada a essa realidade. Segundo a expressão vigorosa e dificilmente traduzível de Peirce: It adresses somebody. Poderíamos dizer, portanto, que o cientista e o bricoleiro estão ambos à espreita de mensagens, mas que, para o bricoleiro, trata-se de mensagens de certa maneira pré-transmitidos que ele coleciona: como aqueles códigos comerciais que, condensando a experiência passada da profissão, permitem enfrentar, com economia, todas as situações novas (com a condição, todavia, que elas pertencem à mesma classe que as antigas); enquanto o cientista, seja ele engenheiro ou físico, espera sempre a outra mensagem que poderia ser arrancada de um interlocutor, apesar de sua reticência em se pronunciar sobre questões cujas respostas não foram ensaiadas de antemão. O conceito aparece assim como o operador da abertura do conjunto com o qual se trabalha, o significado como o operador de sua reorganização: não a estende nem a renova, limita-se a obter o grupo de suas transformações. A imagem não pode ser ideia, mas pode desempenhar o papel de signo, ou, mais exatamente, coabitar com a ideia num signo; e, se a ideia não está ali ainda, respeitar seu futuro lugar e fazer aparecer negativamente seus contornos. A imagem é fixada, ligada de modo unívoco ao ato de consciência que a acompanha; mas o signo e a imagem que se tornou significante, se ainda não possuem compreensão, isto é, lhe faltam relações simultâneas e teoricamente ilimitadas com outros seres do mesmo tipo – privilégio do conceito -, já são 5 permutáveis, isto é, suscetíveis de manter relações sucessivas com outros seres, mesmo que em número limitado, e, como vimos, na condição de formar sempre um sistema em que uma modificação afetando um elemento interessará automaticamente a todos os demais: neste plano, a extensão e a compreensão dos lógicos existem, não como dois aspectos distintos e complementares, mas como realidade solidária. Entende-se assim que o pensamento mítico, apesar de estar preso às imagens, possa ser generalizador, e, portanto, cientifico: trabalha também com analogia e aproximações, mesmo se, como no caso do bricolage, suas criações se reduzem sempre a um novo arranjo de elementos cuja natureza não é modificada conforme aparecem no conjunto instrumental ou no arranjo final (que, salvo pela disposição interna, formam sempre o mesmo objeto): “parece que os universos mitológicos são destinados a ser desmantelados assim que são formados, para que novos universos nascem de seus fragmentos”4. Esse comentário profundo desconsidera, entretanto, que nesta incessante reconstrução utilizando os mesmos materiais, são sempre antigos fins que são chamados a desempenhar o papel de meios: os significados se transformam em significantes e inversamente. Essa fórmula, que poderia servir de definição do bricolage, explica que, para a reflexão mítica, a totalidade dos meios disponíveis deve também ser implicitamente inventariada ou concebida, para que se possa definir um resultado que será sempre um meio-termo entre a estrutura do conjunto instrumental e a do projeto. Uma vez realizado, este estará, portanto, inevitavelmente defasado com relação à intenção inicial (aliás um simples esquema), efeito que os surrealistas nomearam felizmente “acaso objetivo”. Mas tem mais: a poesia do bricolage lhe vem, também e sobretudo, do fato de que não se limita em realizar ou executar; ele “fala”, não somente com as coisas, como mostramos, mas também por meio das coisas: contando, pelas escolhas que opera entre possíveis limitados, a personalidade e a vida de seu autor. Sem nunca completar seu projeto, o bricoleiro sempre coloca nele algo de si. Deste ponto de vista também, a reflexão mítica aparece como uma forma intelectual de bricolage. A ciência toda se edificou sobre a distinção entre o contingente e o necessário, que é também aquela entre o acontecimento e a estrutura. As qualidades que, quando nasceu, reivindicou como suas, eram F. Boas, Introduction to: James Teit “Traditions of the Thompson River Indians of British Columbia”. Memoirs of the American Folklore Society, vol. 6, 1898. 4 6 precisamente aquelas que, não fazendo parte da experiência vivida, permaneciam exteriores e como alheias aos acontecimentos: este é o sentido da noção de qualidades primárias. Ora, o próprio do pensamento mítico, assim como do bricolage no plano prático, é elaborar conjuntos estruturados, não diretamente com outros conjuntos estruturados5, mas utilizando-se de resíduos e de destroços de acontecimentos: odds and ends, diria o inglês, ou, em francês, des bribes et des morceaux, testemunhas fósseis da história de um indivíduo ou de uma sociedade. Em um sentido, a relação entre diacronia e sincronia é invertida: o pensamento mítico, este bricoleiro, elabora estruturas ordenando acontecimentos, ou, melhor, resíduos de acontecimentos6, enquanto que a ciência, “em andamento” pelo mero fato de sua instauração, cria, na forma de acontecimentos, seus meios e seus resultados, graças às estruturas que fabrica sem trégua, isto é, suas hipóteses e suas teorias. Mas não nos enganamos: não se trata de dois estágios, ou de duas fases, da evolução do saber, pois as duas abordagens são igualmente válidas. Já, a física e a química aspiram a voltar a ser qualitativas, isto é, a dar conta também das qualidades secundárias que, quando serão explicadas, voltarão a ser meios de explicação; e talvez a biologia marca passo ao esperar esta realização, para poder, por sua vez, explicar a vida. De seu lado, o pensamento mítico não é apenas prisioneiro de acontecimentos e de experiências que ordena e reordena incansavelmente para lhes descobrir um sentido; é também libertador, pelo protesto que levanta contra o não-senso, com o qual a ciência se resignou, primeiro, a transigir. * * * O pensamento mítico edifica conjuntos estruturados por meio de um conjunto estruturado, a linguagem; porém, não é ao nível da estrutura que se apossa dela: constrói seus palácios ideológicos com os escombros de um antigo discurso social. 6 O bricolage também opera com qualidades “secundárias”; c.f. o inglês second hand, de segunda mão, de ocasião. 5