O Trágico na Poesia Moderna de Augusto dos Anjos Gemidos de arte
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O Trágico na Poesia Moderna de Augusto dos Anjos Gemidos de arte
O Trágico na Poesia Moderna de Augusto dos Anjos Fábio Martinelli Casemiro Gemidos de arte III Pelo acidentadíssimo caminho Faísca o sol. Nédios, batendo a cauda, Urram os bois. O céu lembra uma lauda Do mais incorruptível pergaminho. Uma atmosfera má de incômoda hulha Abafa o ambiente. O aziago ar morto a morte Fede. O ardente calor da areia forte Racha-me os pés como se fosse agulha. Não sei que subterrânea e atra voz rouca, Por saibros e por cem côncavos vales, Como pela avenida das Mappales, Me arrasta à casa do finado Tôca! Todas as tardes a esta casa venho. Aqui, outrora, sem conchego nobre, Viveu, sentiu e amou este homem pobre Que carregava canas para o engenho! Nos outros tempos e nas outras eras, Quantas flores! Agora, em vez de flores, Os musgos, como exóticos pintores, Pintam caretas verdes nas taperas. Na bruta dispersão de vítreos cacos, À dura luz do sol resplandecente, Trôpega e antiga, uma parede doente Mostra a cara medonha dos buracos. O cupim negro broca o âmago fino Do teto. E traça trombas de elefantes Com as circunvoluções extravagantes Do seu complicadíssimo intestino. O lodo, obscuro trepa-se nas portas. Amontoadas em grossos feixes rijos, As lagartixas dos esconderijos Estão olhando aquelas coisas mortas! Fico a pensar no Espírito disperso Que, unindo a pedra ao gneiss e a árvore à criança, Como um anel enorme de aliança, Une todas as coisas do Universo! E assim pensando, com a cabeça em brasas Ante a fatalidade que me oprime, julgo ver este Espírito sublime, Chamando-me do sol com as suas asas! 10ª Gosto do sol ignívomo e iracundo Como o reptil gosta quando se molha E na atra escuridão dos ares, olha Melancolicamente para o mundo! Essa alegria imaterializada, Que por vezes me absorve, é o óbolo obscuro, É o pedaço já podre de pão duro Que o miserável recebeu na estrada! Não são os cinco mil milhões de francos Que a Alemanha pediu a Jules Favre... É o dinheiro coberto de azinhavre Que o escravo ganha, trabalhando aos brancos! Seja este sol meu último consolo; E o espírito infeliz que em mim se encarna Se alegre ao sol, como quem raspa a sarna, Só, com a misericórdia de um tijolo! ... Tudo enfim a mesma órbita percorre E as bocas vão beber o mesmo leite... A lamparina quando falta o azeite Morre, da mesma forma que o homem morre. Súbito, arrebentando a horrenda calma, Grito, e se grito é para que meu grito Seja a revelação deste Infinito Que eu trago encarcerado na minh'alma! Sol brasileiro! Queima-me os destroços! Quero assistir, aqui, sem pai que me ame, De pé, à luz da consciência infame, À carbonização dos próprios ossos! Pau d’ Arco, 3 de maio de 1907 14ª. Aspiração No espaço, em cada ser, que um centro atraia e prenda, Há sempre o despontar de uma asa, que o suspenda. Ascender! Ascender! — dizem todas as cousas, As estrelas nos céus, os vermes sobre as lousas. É o hino, que tudo, em sôfregos suspiros, Canta: — férvida a fonte, em sinuosos giros, Sobre pedras quebrando o trépido carinho, A ave, inquieta e meiga, em volta do seu ninho, O ninho sob o ramo, o ramo sob as flores, As flores no perfume, — e a gruta nos vapores Que em frouxas espirais às amplidões alteia. A vida não se esgota, e vai perpetuamente Do esboço às perfeições, harmônica, ascendente. O imóvel não existe. A floresta pompeia O luxo exuberante, a gala festival, A verdura febril, do mundo vegetal. Fixo? Não. Ei-lo em flor; — e em êxtases secretos Dispersa-se em aroma, e voa nos insetos. Enfim, por toda parte há íntimos palpites, Ímpetos de romper barreiras e limites. Fatal gravitação tolha-me embora os pés. Hei de também subir dos mundos através, Hei de também transpor os tempos e os espaços, Na esperança de além colher-te nos meus braços, A ti, que és para mim a força ascensional, Oh Glória! — A aspiração! O porvir! O ideal! Teófilo Dias – Fanfarras - 1882