A priori,é necessário citar que os problemas

Transcrição

A priori,é necessário citar que os problemas
1
(CAPA)
2
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO E SEUS REFLEXOS NA
PROPRIEDADE IMOBILIÁRIA
Luiz Mesquita de Almeida Neto
A POLÍTICA CARCERÁRIA E A REINTEGRAÇÃO SOCIAL DO PRESO
Hildebrando Diniz Araújo Júnior
Rebeca Barros de Almeida Brandão
A PSEUDOLIBERDADE DE PENSAMENTO NO INCISO IV, ART. 5º CF/88
Vinícius Leão de Castro
A RESPONSABILIDADE CIVIL NOS CRIMES CONTRA A HONRA: calúnia,
injúria e difamação
Marcelo Santos Sousa
Rafael Vieira de Azevedo
Aldecir Batista Dias Filho
ASPECTOS CONTROVERTIDOS DO TECEIRO PROGRAMA NACIONAL DE
DIREITOS HUMANOS (PNDH – 3)
Camilo de Lélis Diniz de Farias
AMPLIAÇÃO DO ROL DOS CASOS DE INELEGIBILIDADE:
O princípio constitucional da moralidade como condutor de uma
verdadeira democracia
Ayanny Justino Costa
Gustavo Farias Alves
Rodrigo Barros da Silva Ribeiro
Wollney Niermeson Ribeiro Felix
ANÁLISE DA FIGURA JURÍDICA DO CONTRIBUINTE, NO CASO DE
RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA POR SUBSTITUIÇÃO, COM A
EXCLUSÃO DA SUA RESPONSABILIDADE.
Orientador (a): Massillania Medeiros Ferreira
Saulo Medeiros da Costa Silva
CONCURSO DE CRIMES NO NOVO TIPO PENAL DO ESTUPRO
Beethoven Bezerra Fonseca
Sarah Naiara de Oliveira Gomes
CRIME ORGANIZADO: Perspectivas e Problemáticas Legislativas Atuais
Diego Gayoso Meira Suassuna de Medeiros
Igor Rafael Maul Meira de Vasconcelos
3
CRIMINOSO PSICOPATA E A MELHOR FORMA DE PUNÍ-LOS
Mara Caroline Corrêa Kelmer
Meryelen Estrela da Silva
Suellen Carolline Alves Macedo
Ana Alice Ramos Tejo Salgado
CRITÉRIOS DE ESCOLHA DOS LICITANTES NA MODALIDADE CONVITE À
LUZ DA LEI Nº. 8.666/93
Helvetty Matias Oliver Cruz
Lorena Fátima Duarte Fernandes
Wanderlan Waldez de Sousa Figueredo
Maricelle Ramos Oliveira
CRÍTICA À CLASSIFICAÇÃO DAS CONSTITUIÇÕES
Igor Carvalho Barbosa
Lincoln Ferdinand Oliveira Silva
DESCASO DO ESTADO E A INIMPUTABILIDADE DOS JOVENS
Rodrigo Kieveer B. Santos
DIREITO ALTERNATIVO E PLURALISMO JURÍDICO, EM BUSCA DA
ISONOMIA MATERIAL
Ana Luísa do Couto Andrade
Mariana Dantas Ribeiro
DIREITOS E GARANTIAS INERENTES AS PRESIDIÁRIAS DURANTE O
PERÍODO DE GESTAÇÃO, PÓS-PARTO E ALEITAMENTO MATERNO
Esp. Francisco Iasley L. de Almeida
Joelma da Silva Pereira Bezerra
Maria de Fátima B. do Nascimento
Thamisa Raiane Leite de Sousa
EDUCAÇÃO AMBIENTAL:
UM DIREITO CONSTITUCIONALMENTE RESGUARDADO
Maricelle Ramos de Oliveira
EFEITOS DA REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL NO BRASIL:
Constitucionalidade, Oportunidade e Conveniência.
Aldecir B. Dias Filho
Vaglas Vasconcelos Júnior
ESTUPRO E DÉBITO CONJUGAL
Níobe Neves Henriques
Francisco Iasley Lopes de Almeida
4
FINALIDADE DA PENA – Uma Discussão Acerca das Teorias
Penalizadoras
Ramon Aranha da Cruz
Félix Araújo Neto
INQUÉRITO POLICIAL: TRANSFORMAÇÕES SISTEMÁTICAS PARA A
ACELERAÇÃO DA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL
Ildefonso Rufino de Melo Filho
Jully Anne Bezerra Pessoa
Larissa Mateus de Sales
Mathews Augusto Cavalcante Aureliano
Valfredo de Andrade Aguiar Filho
MOVIMENTOS SOCIAIS E PROPRIEDADE:
Aspectos da história recente da busca pela terra
Guthemberg Cardoso Agra de Castro
MUNICÍPIO: PIONEIRISMO NA AUTONOMIA FEDERATIVA PELA CRFB DE
1988 E IMPORTÂNCIA NA FORMA DE INSTRUMENTALIZAÇÃO
DEMOCRÁTICA NO DESENVOLVIMENTO DE POLÍTICAS PÚBLICAS
Mayara Tavares de Freitas
O CONTRADITÓRIO NO INQUÉRITO POLICIAL
Uma exigência lógica e constitucional
Genésio Nunes Queiroga Neto
O CONFLITO ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS: as noticias policiais e o
pré-julgamento dos acusados em contraposição ao princípio da
presunção de inocência
Thiago Bento Quirino Herculano
José Egberto Alves de Sousa
O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA
Jardon Souza Maia
O USO DA FORÇA NA PROTEÇÃO DA PESSOA HUMANA: O papel do
costume internacional no processo onusiano de institucionalização de
uma norma de intervenção humanitária
Mikelli M. Lucas A. Ribeiro
OS ROYALTIES DO PETRÓLEO DA CAMADA PRÉ-SAL E SUA DIVISÃO
FEDERATIVA: UMA ABORDAGEM À LUZ DO DIREITO CONSTITUCIONAL
AO MEIO AMBIENTE EQUILIBRADO
Jaime de Souza Coelho
Lincoln Ferdinand Oliveira Silva
Rafaella Mayana Alves Almeida Cardins
5
O PRINCÍCIO DA INSIGNIFICÂNCIA NOS CRIMES AMBIENTAIS.
Diego Conserva Arruda
Kelly Marlyn Colaço Dantas
O TOMBAMENTO DA CAATINGA COMO ATO HUMANITÁRIO-PROTETIVO
À CULTURA NORDESTINA
Edmilson Ewerton Ramos de Almeida
PODER CONSTITUINTE ORIGINÁRIO E PODER CONSTITUINTE
DERIVADO: RELAÇÃO E CARACTERÍTICAS.
Paulo José de Assis Cunha
PROCESSO DE ADESÃO DA VENEZUELA AO MERCOSUL: a ótica
jurídica.
Tiago Barbosa da Silva
PROTESTO POR NOVO JÚRI
Análise de seu cabimento após o advento da Lei 11.689/2008
Júlia de Arruda Rodrigues
Lina Marie Cabral
Marina Dantas Pereira
TEORIA DA CO-CULPABILIDADE NO
ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Andréa Guimarães de Faria
Camilla Alves de Farias
TRANSAÇÃO PENAL: Breves considerações acerca de seus pontos
controvertidos
Kalina Lígia Pereira Clementino
Rochanna Mayara Lúcio Alves Tito
Thaise Sales Urtiga de Farias
UMA ANÁLISE ACERCA DA INCLUSÃO DA FORMA REPUBLICANA DE
GOVERNO COMO CLÁUSULA PÉTREA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Carolynne Maria Granja Ferraz
UMA ANÁLISE DA LEGÍTIMA DEFESA PUTATIVA COMO REFLEXO DO
ATUAL CONTEXTO SOCIAL
Andressa Caroliny Gois Gonzaga
Luiz Mesquita de Almeida Neto
Mayza de Araújo Batista
6
UM RETRATO DA JUSTIÇA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA SOBRE A
ADOÇÃO POR CASAIS HOMOAFETIVOS
Fábia Nyelli Trajano
Helena Virgínia Roque Cananéa
Joama Cristina Almeida Dantas
7
APRESENTAÇÃO
Com os sentimentos de alegria, e de confiança na cultura jurídica
campinense, realizamos o 1º Simpósio Internacional de Direito Público da
CESREI, abordando os grandes debates contemporâneos deste ramo jurídico.
O evento faz uma justa e merecida homenagem ao advogado e tribuno Antônio
Vital do Rêgo.
O evento teve a coragem quando assumiu o desafio da realização de um
simpósio internacional, e mais que isso, quando abriu aos seus congressistas a
possibilidade da submissão e apresentação de artigos científicos. E o resultado
venho acompanhado da palavra sucesso, pois foram submetidos à apreciação
da comissão científica quase 70 artigos, este teve uma tarefa agradável, já que
teve acesso ao que é hoje produzido nas acadêmias de ciências jurídicas, e
também, árdua, pois tivemos que analisar detalhadamente cada artigo num
espaço reduzido de tempo. De tal análise foram selecionados os artigos aqui
publicados, perfazendo mais de 500 páginas de escrita jurídica, e dentre estes
16 trabalhos foram escolhidos para uma exposição oral durante o evento.
Os artigos abordaram os mais diversos temas jurídicos contemporâneos,
desde temas de Direito Internacional Público, passando pelo Direito
Administrativo, Direito Ambiental, Direito Eleitoral, Direito Constitucional, até
aos temas sobre publicização do Direito Privado.
Pois bem, todo trabalho árduo e sempre recompensado com a devida
satisfação, e neste espírito eis aqui a todos os Anais do 1º Congresso
Internacional de Direito Público da CESREI, para estudos, debates, e
aprofundamento da ciência jurídica campinense.
Campina Grande
ABRIL/2010
8
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO E SEUS REFLEXOS NA
PROPRIEDADE IMOBILIÁRIA
Luiz Mesquita de Almeida Neto1
RESUMO
Este trabalho fala sobre os eventos contemporâneos que levam a constituição a uma influente
e central posição do sistema jurídico, e a subsequente consequência deste evento, que
expande a aplicação da constituição para todas as outras leis deste mesmo sistema jurídico.
Após estas considerações, estuda este fenômeno, exemplificando com a sua relação com o
instituto da propriedade.
Palavras chave: Constituição; influência; sistema jurídico; instituto da propriedade.
ABSTRACT
This paper talks about the contemporary events that take the constitution to a position of central
and influent juridical system, and the following consequence of this event, that expands the
constitution application to all the other laws of this same juridical system. After these
considerations, studies this phenomenon, exemplifying with it‘s relationship with the propriety
institute.
Key- Words: Constitution; influence; juridical system; propriety institute.
1
Estudante do 11° período do curso de Direito da Universidade Estadual da Paraíba.
9
1. INTRODUÇÃO
A constituição brasileira, inserida como está no contexto mundial atual,
com tantos fatores que fizeram mudar sua natureza meramente política de
outrora, e encarar uma nova realidade de aplicação jurídica imediata e direta,
fazendo com que, inclusive, se repensasse toda a maneira de se conceber e se
aplicar a norma como um todo.
Para que se tenha noção desta mudança, o próprio conceito de norma
se modificou, passando a abrigar, em sua classificação, tanto as regras quanto
os princípios. Além do mais, toda a forma de encarar alguns tipos de normas,
como as programáticas, foi alterada, gerando problemas e discussões
acadêmicas acaloradas.
A seguir, o que se pretende, com este trabalho, é, em um primeiro
momento, demonstrar este novo contexto, com seu fenômeno mais palpável e
evidente da constitucionalização, para, ato contínuo, exemplificar sua aplicação
prática no instituto civilista da propriedade. É importante ressaltar, contudo, que
não serão objeto deste estudo todas as peculiaridades e minúcias das
questões que envolvem este tema, por demandarem muito mais que um artigo
para tanto.
2. A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO
Como uma tentativa de facilitar a compreensão do tema e sistematizar o
conteúdo, alguns autores têm tentado, sem que se tenha logrado um
retumbante sucesso, definir alguns requisitos que satisfaçam à conceituação
do que seria a constitucionalização do direito. Sabendo-se que não há, até o
momento, um rol de requisitos bem definido, entretanto, faz-se necessário
apenas salientar, para embasar com o possível de organização, alguns traços,
mínimos, é bem verdade, que se fazem presentes quando da constatação do
fenômeno da constitucionalização de um ordenamento jurídico.
O
primeiro
traço
característico,
e
básico,
seria
o
da
rigidez
constitucional. Em uma distinção bem elementar tem-se que, se uma
10
constituição pode ser alterada por um processo legislativo idêntico ao de uma
norma infraconstitucional, é esta constituição flexível, ao passo que a
constituição que exige processo mais dificultoso para sua reformulação é tida
como rígida, havendo um meio termo consistente na mescla das duas
modalidades em uma única constituição, selecionando-se uma parte da carta,
por critérios materiais, como sendo rígida, e permitindo ao restante do
documento o tratamento ordinário que recebem as constituições flexíveis,
sendo estas denominadas de semi rígidas, ou semi flexíveis.
O mais importante, contudo, é notar que esta rigidez, presente em
algumas constituições, desemboca em outro atributo, o da supremacia, que faz
com que as constituições rígidas, por exigirem processo mais complexo
quando da sua alteração, sejam tidas como de hierarquia diferenciada em
relação ao restante do ordenamento. Assim, tem-se que:
As constituições rígidas, sendo Constituições em sentido formal
demandam um processo especial de revisão. Este processo lhes
confere estabilidade ou rigidez bem superior àquela que as leis
ordinárias desfrutam. Daqui procede, pois a supremacia
incontrastável da lei constitucional sobre as demais regras de direito
vigente num determinado ordenamento.2
Seguindo o mesmo raciocínio lógico do estabelecimento de um
ordenamento jurídico pautado por este tipo de constituição rígida, o segundo
requisito fundamental para a configuração do fenômeno da constitucionalização
do direito, tem-se que, notadamente, a existência de uma jurisdição tipicamente
orientada pela legislação constitucional não pode deixar de ser designada
como este segundo ponto, sendo igual decorrência do primeiro requisito,
conforme ensina Paulo Bonavides, quando, tratando da rigidez constitucional,
infere que:
As dificuldades principiam porém quando se trata de alcançar os
meios com que expungir do sistema normativo as leis
inconstitucionais. O ponto mais grave da questão reside em
determinar que órgão deve exercer o chamado controle de
constitucionalidade. Sem esse controle, a supremacia da norma
constitucional seria vã,...3
Assim, a maior dificuldade neste momento da operacionalização do
Estado é verificar, quanto ao aspecto de guarda da constituição rígida e
2
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 8. ed. São Paulo: Malheiros,
1999. (p. 267).
3 Paulo Bonavides, op. cit., p. 268.
11
suprema, quem ficará responsável por extirpar as normas produzidas em
detrimento ao documento constitucional. As experiências são notadamente no
sentido de se tratar tal função por um órgão político ou por um órgão
jurisdicional, termos em que se percebe que o Brasil, por exemplo, adotou um
órgão judicial para tal função, nos termos dos artigos 101 e 102, da
Constituição federal de 1988.
A realização desta jurisdição constitucional, por um órgão destacado e
especificamente com tal atribuição é um dos requisitos que vêm a carrear o
fenômeno da constitucionalização do direito. Por exemplo, Luís Roberto
Barroso, ao analisar o caso italiano, afirma que:
Somente com a instalação da Corte Constitucional – e, aliás, desde
a sua primeira decisão – as normas constitucionais de direitos
fundamentais passaram a ser diretamente aplicáveis, sem
intermediação do legislador. A Corte desenvolveu um conjunto de
técnicas de decisão, tendo enfrentado, durante os primeiros anos de
sua atuação, a arraigada resistência das instâncias ordinárias4
Demonstra-se, evidentemente, que outra nota característica, quando da
existência de uma jurisdição tipicamente constitucional, vem a ser o da
aplicação direta do texto constitucional.
Este vem a ser, inclusive, o terceiro requisito, pois que, apesar de ser
um fenômeno tão bem visualizado nos termos atuais, a força vinculante, a
atribuição de uma força normativa aos textos constitucionais, ou de sua
plenitude, capaz de vincular e regular diretamente o cotidiano e a vida da
sociedade, é uma conquista bem recente para um ordenamento jurídico. Neste
sentido, afirma-se que:
Uma das grandes mudanças de paradigma ocorridas ao longo do
século XX foi a atribuição à norma constitucional do status de norma
jurídica. Superou-se, assim, o modelo que vigorou na Europa até
meados do século passado, no qual a Constituição era vista como um
documento essencialmente político, um convite à atuação dos
Poderes Públicos. A concretização de suas propostas ficava
invariavelmente condicionada à liberdade de conformação do
legislador ou à discricionariedade do administrador. Ao Judiciário não
4
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (O triunfo
tardio do direito constitucional no Brasil). In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de;
SARMENTO, Daniel (coord.). A Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e
aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.. (p. 222).
12
se reconhecia qualquer papel relevante na realização do conteúdo da
Constituição.5
Sendo assim, conforme o exposto, tem-se que o texto constitucional
brasileiro, na realidade atual, é plenamente e diretamente aplicável, até por
força de suas próprias disposições, possuindo o Judiciário brasileiro, sobretudo
no que concerne ao Supremo Tribunal Federal, enquanto guardião da
constituição, papel sobremaneira relevante na aplicação da norma ápice.
Desta maneira, a existência de uma jurisdição destinada a assegurar a
integridade do documento constitucional, juntamente com a possibilidade de
aplicação imediata deste texto aos casos concretos, bem como a cumulação
destes fatores com o caráter de hierarquia superior que advém da rigidez
constitucional, perfazem um epicentro, colocando o sistema jurídico oriundo da
constituição em posição central e superior com relação ao ordenamento
jurídico como um todo.
Entretanto, a grande dificuldade que se percebeu quando desta
modificação no modo de pensar e aplicar as constituições foi talvez o maior
questionamento que os pensadores do mundo do direito enfrentaram
hodiernamente, e que inclusive enfrentam até o presente momento, consistente
em discernir, de maneira nítida, depois de convencionar o devido lugar da
constituição e a efetivação de suas normas, a maneira como estas normas
deveriam incidir nos casos concretos.
Desta forma, anteriormente, em um paradigma filosófico denominado
positivismo, concebia-se o direito como um sistema integrado de normas, onde
o aplicador destas normas – leiam-se regras – ao caso concreto deveria, em
um processo silogístico, verificando a premissa maior, constante do dispositivo
legal e abstrato, adequá-la à premissa menor, presente nos casos concretos
apresentados, e, portanto, analisando se ocorreu uma subsunção do fato à
norma, definindo se esta seria aplicável ou não. É evidente que este modelo,
conhecido por positivista, continua aplicável a muitas das situações,
principalmente pelo brilhantismo da sua simplicidade, que serve de guia para a
aplicação da lei em casos expressamente previstos.
5
Luís Roberto Barroso, op. cit., p. 209.
13
Hans Kelsen, teórico primeiro e mais importante desta corrente
filosófica, por exemplo, defende que o conflito aparente de normas se
resolveria, de acordo com a unidade lógica da ordem jurídica, no sentido de
que ―Não é, portanto, inteiramente descabido dizer-se que duas normas
jurídicas ―contradizem‖ uma à outra. E, por isso mesmo, somente uma delas
pode ser tida como objetivamente válida.‖6, concluindo, enfim, pela aplicação
da lei válida em detrimento da lei com que aparentemente conflitaria,
descobrindo-se, ao final, a invalidade desta.
Dito isto, sabe-se que esta perspectiva dominou o cenário jurídico do
último século, quase incólume, até que esta nova realidade de aplicação das
constituições, com todos os seus requisitos acima expostos, modificou um
pouco seu entendimento, exigindo, por fim, uma nova abordagem do método
utilizado pelos juristas, um novo paradigma filosófico.
A questão é que as normas constitucionais, notadamente as de direitos
fundamentais, por preverem um rol extenso e valioso de prescrições, acabam
por, nos casos concretos, incidirem, muitas vezes até contrapondo-se entre
eles mesmos ou a normas de outra natureza, na mesma situação jurídica,
quando aplicados diretamente ao fato apreciado. Nestas hipóteses serão
vislumbradas duas disposições normativas – aqui podendo ser representadas
tanto por regras quanto por normas –, algumas vezes orientando o aplicador do
direito em duas direções antagônicas, sem que uma delas possa dizer-se
válida sobre a outra, ou muito menos que se possa determinar um critério
objetivo e hermético para a apreciação deste conflito, porque tal determinação
implicaria, em verdade, na supressão peremptória e geral de um direito tido
como fundamental no ordenamento jurídico.
Desamparados, pois, no tocante a esta realidade, os doutrinadores,
diante da nova demanda de aplicação das normas, tiveram que modificar muito
a filosofia jurídica adotada, sem, no entanto, abandonar definitivamente o
positivismo. É importante salientar, contudo, que aqui estão apenas as linhas
6
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. São
Paulo: Martins Fontes, 1999. (p. 229). Neste mesmo ponto de sua obra, defende o aludido
autor os critérios da hierarquia, da temporalidade, expressa no verbete ―Lex posterior derogat
priori‖, e da especialidade, como parâmetros para o aferimento da norma válida, única a ser
aplicada ao caso concreto pelo método da subsunção.
14
gerais desta discussão, sabendo-se que ela é muito mais profunda, não
podendo ser, de maneira alguma, por outro lado, contemplada em todos os
seus aspectos por este presente estudo.
O que importa para este trabalho, portanto, é apenas aduzir que, se
ainda longe de uma conclusão e de uma unificação de pensamento, ―A quadra
atual é assinalada pela superação – ou, talvez, sublimação – dos modelos
puros (jusnaturalismo e positivismo) – por um conjunto difuso e abrangente de
idéias, agrupadas sob o rótulo genérico de pós-positivismo.‖7.
Esta escola, como se vê denominada pós-positivista, pretende
compreender esta nova realidade, para, enfim, atribuir uma resposta aos
anseios práticos da aplicação da norma, tendo, até o momento, logrado êxito
em muitos sentidos, dentre os quais destaca, por exemplo, o autor Marcel
Mota, em síntese muito perspicaz, que:
a perspectiva do pós-positivismo reconhece a validade jurídica de
padrões que possuem características diversas: são razões para
decidir não definitivas, cuja força concreta de aplicação varia
bastante conforme as circunstâncias fáticas específicas do caso
considerado, bem como tendo em vista suas relações normativas
entre si, já que prescrevem diversos caminhos conflitantes para
solucionar o problema jurídico a que são pertinentes. Considerando
um sentido amplo, esses padrões podem ser reunidos sob a
denominação de princípios, cujo conteúdo está em relação com a
moralidade política.8
Desta maneira, em estudo muito destacado de Robert Alexy passou-se
a admitir, dentre muitas outras novas concepções acerca da realidade jurídica,
o entendimento de que, ao invés da lógica imanente de silogismos, o direito,
sobretudo com o valor que os princípios e a moral adquirem neste novo
contexto, estaria melhor albergado sob a égide de uma filosofia mais voltada
para a razão prática, onde ao invés de premissas apuradas pela observação
científica seriam admitidas verdades e opiniões gerais, prevalecendo,
sobretudo, a atividade argumentativa do jurista, ao que se denominou, enfim,
sua teoria de ―Teoria da argumentação jurídica‖.
Observando-se a relação desta nova posição doutrinária em relação à
aplicação das regras e dos princípios, nota-se que ―Tendo em conta as
7
Luís Roberto Barroso, op. cit., p. 207.
8
MOTA, Marcel Moraes. Pós-positivismo e restrições de direitos fundamentais.
Fortaleza: Omni, 2006. (p. 22).
15
possibilidades de uma teoria dos princípios, pode-se chegar, ao máximo, a uma
ordem branda de princípios, sustentada por relações de preferências prima
facie e por uma rede de precedentes judiciais, que nada mais são do que
cargas de argumentação a favor de certos princípios, que, por isso mesmo,
podem ser afastadas por razões mais fortes.‖.9
Apesar de tantos outros aspectos que estes novos posicionamentos têm
produzido no campo do direito constitucional, notadamente no que tange aos
direitos fundamentais, repercutindo, consequentemente, nos outros ramos do
direito, como se verá mais adiante, o que mais importa, no presente momento,
é evidenciar que esta nova compreensão da aplicabilidade das normas acabou
por se tornar, dentro da atual perspectiva, um marco filosófico, que constitui o
quarto, e último, requisito apontado por este estudo como a base para o
fenômeno da constitucionalização do direito.
Este fenômeno, por sua vez, pode ser entendido como a transposição,
por parte dos institutos, preceitos e, sobretudo, como se viu há pouco, dos
princípios oriundos do sistema constitucional, das barreiras que em momentos
passados, por força de vários outros preceitos contrários vinculados a outros
ramos do direito, estiveram postos adiante da aplicação das normas
constitucionais aos casos concretos, escorrendo, então, estas para todo o
ordenamento jurídico, baseadas em todos os requisitos acima expostos (rigidez
e supremacia da constituição, jurisdição constitucional, aplicabilidade imediata
das normas constitucionais e pós-positivismo) e ainda em outros que a doutrina
mais abalizada entende ser igualmente imprescindíveis. No melhor dizer de
Luís Roberto Barroso, tem-se que:
Verificou-se, entre nós, o mesmo movimento translativo ocorrido
inicialmente na Alemanha e em seguida na Itália: a passagem da
Constituição para o centro do sistema jurídico. A partir de 1988, e
mais notadamente nos últimos cinco ou dez anos, a Constituição
passou a desfrutar já não apenas da supremacia formal que sempre
teve, mas também de uma supremacia material, axiológica,
potencializada pela abertura do sistema jurídico e pela normatividade
de seus princípios. Com grande ímpeto, exibindo força normativa
sem precedente, a Constituição ingressou na paisagem jurídica do
país e no discurso dos operadores jurídicos.10
9 Id. Ibid., p. 55.
10 Luís Roberto Barroso, op. cit., p. 226.
16
3. A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO E A CONSTITUIÇÃO
DIRIGENTE
Com efeito, juntamente com os estudos sobre o atual fenômeno da
constitucionalização do direito, é necessário cercar o tema de precauções
relativas a uma posterior análise do instituto da propriedade, referentes a
conceitos instrumentais, que servirão de base para a melhor abordagem do
assunto.
Primeiramente, cumpre ressaltar um aspecto da constituição brasileira,
presente igualmente em outras constituições nacionais de outros países, que
consiste em classificá-la, juntamente com estas cartas estrangeiras, como
sendo uma constituição dirigente. Esta diferenciação, proposta por vários
autores, mas tendo especial destaque com Canotilho, consiste em separar
constituições, como igualmente faz Manoel Gonçalves Ferreira Filho11, em três
categorias, a saber: constituição-garantia, constituição-balanço e constituiçãodirigente.
A primeira espécie, tida como garantia, corresponde a um tipo de
constituição que, a despeito de não se projetar no futuro, busca a garantia de
liberdades, limitando o poder estatal. Já a segunda modalidade, classificada
como constituição-balanço, seria aquela em que a constituição do Estado
registraria um estágio evolutivo nas relações de poder, demonstrando em que
situação estaria a sociedade regida pela própria constituição, verificando-se se
esta situação estaria de acordo com o pretendido, tendo como parâmetro um
determinado fim almejado nesta mesma evolução social. Em momento histórico
pretérito representou esta última categoria de constituição um modelo
fortemente
vinculado
ao
Estado
socialista,
consequentemente
mais
intervencionista, enquanto aquela primeira representava seu contraponto,
nitidamente mais ligada ao Estado liberal. Segundo a lição do próprio Manoel
Gonçalves Ferreira Filho:
... é freqüente designar a Constituição de tipo clássico de
Constituição-garantia, pois esta visa a garantir a liberdade, limitando
o poder. Tal referência se desenvolveu pela necessidade de
contrapô-la à Constituição-balanço. Esta, conforme a doutrina
11 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 32. ed. São
Paulo: Saraiva, 2006.
17
soviética que se inspira em Lassalle, é a Constituição que descreve
e registra a organização política estabelecida. Na verdade, segundo
essa doutrina, a Constituição registraria um estágio das relações de
poder.12
Por fim, a constituição classificada como dirigente, que mais interessa a
este estudo, seria aquela que se prestaria a traçar um projeto de Estado para o
futuro, ou, no dizer de Gilberto Bercovici: ―O núcleo da idéia de constituição
dirigente é a proposta de legitimação material da constituição pelos fins e
tarefas previstos no texto constitucional.‖13, ao que complementa o próprio
autor, citando o entendimento do autor José Joaquim Gomes Canotilho, que
―No fundo, a concepção de constituição dirigente para Canotilho está ligada à
defesa da mudança da realidade pelo direito. O sentido, o objetivo da
constituição dirigente é o de dar força e substrato jurídico para a mudança
social.‖14
Por todo o exposto, percebe-se que a constituição brasileira, classificada
como dirigente, tende a atribuir um sentido, composto por diversas metas, para
o ordenamento jurídico. Estas metas, por sua vez, quando cumpridas,
representariam uma modificação na própria realidade social em que a
Constituição atuaria, efetivando-as, de acordo com o que já anteriormente
estaria estabelecido, pelo poder constituinte originário, no texto constitucional.
Estes objetivos, por sua vez emanados da Constituição e orientadores
de atividades do Estado, estão contidos, no mais das vezes, em normas
classificadas como programáticas.
Dentre as muitas classificações, variáveis ao longo de tempo, que se
encontram na doutrina acerca das normas constitucionais, distinguindo-as,
empiricamente, desde os primórdios do direito constitucional, tem-se,
atualmente, no Brasil, para a grande maioria dos autores, a classificação tanto
quanto à aplicabilidade como quanto à eficácia que tais normas possuem, onde
se percebe que, apenas para ilustrar com uma destas classificações, Maria
12 Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Curso de direito constitucional. op. cit., p. 14.
13 BERCOVICI, Gilberto. A Constituição Dirigente e a Constitucionalização de Tudo (ou do
Nada). In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel (coord). A
constitucionalização do direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de
Janeiro: Lumen Júris, 2007. (p. 168-169).
14 Id. Ibid. p. 169.
18
Helena Diniz15 dá conta de que as normas constitucionais podem ser de
eficácia absoluta, plena, relativa restringível e relativa complementável ou
pendente de complementação.
Neste caso, seriam as primeiras, de eficácia absoluta, aquelas
intangíveis, contra as quais o poder constituinte derivado reformador sequer
poderia se lançar, sendo, contudo, problemática a aceitação desta classe como
uma modalidade específica de norma constitucional pela doutrina, restando ela
ausente das classificações dos demais autores, sendo elencada aqui apenas
para não se passar despercebida.
Quanto às demais, seriam de eficácia plena ―aquelas de aplicabilidade
imediata, direta, integral, independendo de legislação posterior para a sua
inteira operatividade.‖16, enquanto que, com relação às de eficácia relativa
restringível, tem-se que ―Correspondem essas normas às de eficácia contida
de José Afonso da Silva,...‖17, sendo, em uma como em outra nomenclatura,
aquelas normas que já possuiriam eficácia imediata, produzindo, de imediato, a
plenitude de seus efeitos, contendo, entretanto, o próprio dispositivo legal que
lhes desse origem, a ressalva de restrição a esta plenitude de efeitos.
Por fim, com relação às normas de eficácia complementável, ou
pendente de complementação, são estas também chamadas, por outros
autores, de normas de eficácia contida, sendo, na verdade ―preceitos
constitucionais que têm aplicação mediata, por dependerem de norma
posterior, ou seja, de lei complementar ou ordinária, que lhes desenvolva a
eficácia, permitindo o exercício do direito ou do benefício consagrado.‖18,
entendendo-se que possuem estas normas, desde a sua edição, a produção de
efeitos limitados, como, por exemplo, o de fazer cessar a aplicação de normas
anteriores que as contrariem.
Para além destes efeitos mínimos, contém também estas normas de
eficácia contida, ou complementável, de acordo com os dispositivos legais que
15
DINIZ, Maria Helena. Norma constitucional e seus efeitos. 5. ed. São Paulo:
Saraiva, 2001. (p. 109).
16
TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 20. ed. São Paulo: Malheiros,
2005. (p. 24).
17 Maria Helena Diniz, op. cit., p. 113.
18 Id. Ibid. p. 114.
19
as estatuem, a ressalva de que terão elas, em um momento futuro, de acordo
com a atividade do legislador, um aumento superveniente na sua aplicação e,
principalmente, na produção de seus efeitos.
Ainda com relação a estas normas, tem-se, de acordo com Michel
Temer, com base na obra de José Afonso da Silva, que:
São divididas, pelo aludido monografista, em normas de princípio
institutivo e normas de princípio programático. (...) As primeiras são
as que dependem de lei para dar corpo a instituições, pessoas,
órgãos, previstos na norma constitucional. (...) As últimas
(programáticas) são as que estabelecem um programa constitucional
a ser desenvolvido mediante legislação integrativa da vontade
constituinte. 19
Assim, de acordo com estas lições, percebe-se claramente que, em face
destas normas de eficácia programática, que estabelecem no legislador, por
força da vontade do constituinte originário, a necessidade de uma
regulamentação de preceitos já pré determinados, é que se diz que a
constituição brasileira é dirigente. Por outro lado, ao mesmo tempo em que se
prestam a estabelecer o dirigismo da constituição, têm também estas normas
programáticas, em seu bojo, outra vinculação interessante.
É o que se pode notar, por exemplo, da leitura de Paulo Bonavides20,
onde se preceitua que:
Não se deve por outro lado esquecer que a programaticidade das
normas constitucionais nasceu abraçada à tese dos direitos
fundamentais. Os direitos sociais, revolucionando o sentido dos
direitos fundamentais, conferiu-lhes nova dimensão, tendo sido
inicialmente postulados em bases programáticas.
A
consagração
de
direitos
fundamentais,
impossíveis
de
ser
implementados quando da promulgação de uma constituição, mas consistentes
e representantes de anseios populares, acabaram, historicamente, por constar
de normas que possuíam grande respaldo do ordenamento jurídico, e que,
porém, frente à realidade social vigente, seriam impossíveis de estar expressos
em normas de aplicação imediata, porque inaplicáveis, consistindo, então, em
verdadeiro ideal, a ser perseguidos pelo Estado, em seu futuro.
19 Michel Temer, op. cit., p. 25.
20
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 8. ed. São Paulo: Malheiros,
1999. (p. 219).
20
O fato é que, durante anos a fio, e até mesmo nos dias atuais, tanto a
noção de normas programáticas, quanto o subsequente conceito de
constituição dirigente, têm sofrido duras críticas por parte de considerável
número de doutrinadores. Uma destas críticas, entretanto, frente a este novo
fenômeno da constitucionalização do direito acima tratado, é de interessante
relevo. Segundo a lição de Bercovici21, tem-se que:
criou-se uma Teoria da Constituição tão poderosa, que a
constituição, por si só, resolve todos os problemas. O
instrumentalismo constitucional é, desta forma, favorecido: acreditase que é possível mudar a sociedade, transformar a realidade
apenas com os dispositivos constitucionais. Conseqüentemente, o
Estado e a política são ignorados, deixados de lado. A Teoria da
Constituição Dirigente é uma Teoria da Constituição sem Teoria do
Estado e sem política.
Assim, de acordo com o excerto, percebe-se que, além dos cuidados já
acurados quando da aplicação de normas constitucionais de cunho irradiante,
os cuidados devem ser ainda maiores quando da apreciação de normas
programáticas, devendo-se evitar que estas quedem latentes e eternamente
infrutíferas, porém igualmente afastando a incidência impositiva, e, em sendo
assim, autoritária, da Constituição, sobre os poderes constituídos.
4. A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO PRIVADO: UMA ANÁLISE
DOS
CONTORNOS
CONSTITUCIONAIS
DO
DIREITO
À
PROPRIEDADE IMÓVEL
Por todo o exposto até aqui, já se deve ter muito clara a noção do
alcance que a constituição e seus mecanismos encetam no ordenamento
jurídico,
constitucionalizando-o.
Este
fenômeno
possui
inúmeros
desdobramentos, nas mais variadas áreas do direito, de acordo com a
especificidade que cada campo jurídico possua e o enfoque que a constituição
lhe confere. Diante desta nova realidade, passou-se a não mais averiguar cada
ramo do direito isoladamente, mas partindo da análise que o direito
21 Gilberto Bercovici, ―A Constituição Dirigente e a Constitucionalização de Tudo (ou do
Nada)‖, op. cit., p. 172.
21
constitucional lhe confere, fazendo este diálogo constante. De acordo com Luís
Roberto Barroso22, tem-se que:
Nesse ambiente, a Constituição passa a ser não apenas um sistema
em si – com a sua ordem, unidade e harmonia – mas também um
modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do Direito. Este
fenômeno, identificado por alguns autores como filtragem
constitucional, consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida e
apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os
valores nela consagrados.
Neste ambiente, é de bom alvitre ressaltar que não se está falando de
que o fato de existirem dispositivos constitucionais regulando institutos
tipicamente constitucionais é o causador deste efeito estudado neste trabalho.
Na verdade, aqui se afirma, para se ter uma exata noção do estágio evolutivo
do direito constitucional frente a esta realidade que, na verdade, os institutos
presentes em todos os ramos do direito, regulados ou não no texto
constitucional, passarão pela análise, em um primeiro momento de sua
constitucionalidade, e, em um segundo momento, ainda quando abstratamente
constitucionais, devendo ser aplicadas pelo seu sentido que melhor alcance à
realização dos objetivos expostos na Constituição.
De acordo com este método o ordenamento jurídico tem sido revisto, no
sentido de atribuir a ele esta filtragem, ou adequação, ao texto constitucional,
como meio de realizar-se, assim, a efetividade das norma ápice. Neste
contexto, a interpretação que mais explicita esta nova interpretação é a do
direito civil, ramo do direito privado que, frente a tantas inovações em seu
entendimento,
produzidas,
principalmente,
pela
incidência
de
direitos
fundamentais do indivíduo – advindos da ordem social, concessões de um
ramo de direito público – presente na relação particular. Por este motivo,
escolhe-se, neste trabalho, fazer a análise breve deste fenômeno da
constitucionalização na seara do direito civil.
4.1
A constitucionalização do direito civil
Com espeque em tudo quanto já foi explicitado até então, tem-se, com
relação ao campo do direito civilista, que ―Neste contexto, dito pós-positivista, o
22 Luís Roberto Barroso, ―Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O Triunfo
Tardio do Direito Constitucional do Brasil)‖, p. 227.
22
respeito das normas inferiores à Constituição não é examinado apenas sob o
ponto de vista formal, a partir do procedimento de sua criação, mas com base
em sua correspondência substancial aos valores que, incorporados ao texto
constitucional, passam a conformar todo o sistema jurídico.‖23, no que acabouse, quando da aplicação da norma ao caso concreto de se verificar a
materialidade jurídica em conjunto, com os aspectos de direito civil
confrontados ou conformados com os de direito constitucional, de acordo com
o método da argumentação jurídica.
Cotejando dois dos valores mais perenes neste ramo de direito privado,
como os da autonomia privada e da livre iniciativa, com os princípios oriundos
da matéria constitucional aplicável, percebeu-se, enfim, que
a consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento
da República no art. 1º, III, da CF, dispositivo inicialmente observado
com ceticismo, hoje é reconhecidamente uma conquista
determinante e transformação subversiva de toda a ordem jurídica
privada. (...) determinou o predomínio necessário das situações
jurídicas existenciais sobre as relações patrimoniais.24
Neste contexto, o princípio da dignidade da pessoa humana, envolvido
em todo o novo sentido de realização jurídica de princípios ganhou uma força
muito grande, gerando a mudança, de acordo com a nova interpretação
pautada na filtragem constitucional já abordada, na visualização que se possui
para
o
direito
civil,
ao
passo
que
―o
princípio
promove
uma
despatrimonialização e uma repersonalização do direito civil, com ênfase em
valores existenciais e do espírito, bem como no reconhecimento e
desenvolvimento dos direitos da personalidade, em sua dimensão física quanto
psíquica.‖25.
Portanto, de acordo com esta visão, nas mais variadas relações
privadas, o sentido de garantia de autonomia da vontade do indivíduo será
comparado aos direitos fundamentais e da personalidade que este mesmo
indivíduo possui, fazendo com que este conjunto de prerrogativas pessoais,
23 MORAES, Maria Celina Bodin de. A Constitucionalização do Direito Civil e seus Efeitos
sobre a Responsabilidade Civil. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel
(coord). A constitucionalização do direito: fundamentos teóricos e aplicações
específicas. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2007. (p. 435).
24 Maria Celina Bodin de Moraes, op. cit., p. 436.
25 Luís Roberto Barroso, op. cit., p. 233.
23
constitucionalmente concedidas, se some, ou se contrarie, a depender do caso,
à autonomia privada que nas relações inter pessoais estiverem expostas. As
garantias patrimonialistas e civilistas cederão, muitas vezes, enfim, quando
confrontadas com estes princípios e direitos fundamentais, quando do método
da argumentação, por terem, estes últimos, a seu favor, o pesado argumento
de satisfazerem ao sobre princípio da dignidade da pessoa humana.
Bem verdade também que este procedimento acarreta a aplicação direta
dos direitos fundamentais à relação entre particulares, em uma eficácia
denominada pelos doutrinadores como horizontal, notando-se evidentemente,
neste aspecto, a evolução que a força normativa da constituição angariou em
seu processo histórico. Em sua origem, carta política destinada ao apreço
mediador do legislador, que ratificaria sua aplicação em sede de normas,
atualmente, documento jurídico, invocável não apenas em face do Estado,
como também aos demais indivíduos, em relações particulares.
Este é o entendimento prevalente atualmente, inclusive, no Supremo
Tribunal Federal, já tendo se pronunciado o referido órgão de cúpula, por mais
de uma vez, a favor desta aplicação imediata, ou direta, dos direitos
fundamentais nas relações entre particulares, como se percebe, por exemplo
do julgamento do Recurso Extraordinário 201.81926, que representa clara
aplicação desta doutrina.
Por óbvio, e para completar este tópico com uma relevante ressalva, não
se defende a abordagem deste procedimento em todas as relações privadas,
sendo necessária, muitas vezes, a presença de alguns requisitos para que a
aplicação dos direitos fundamentais seja exigível, pelo aplicador do direito,
como forma de alcançar, no caso concreto, o princípio da dignidade da pessoa
humana. Na dicção de Luís Roberto Barroso27, vê-se que:
O ponto de vista da aplicabilidade direta e imediata afigura-se mais
adequado para a realidade brasileira e tem prevalecido na doutrina.
Na ponderação a ser empreendida, como na ponderação em geral,
deverão ser levados em conta os elementos do caso concreto. Para
esta específica ponderação entre autonomia da vontade versus outro
direito fundamental em questão, merecem relevo os seguintes
26 No julgamento do RE 201.819, decidiram os ministros do STF pela incrível necessidade de
adoção do princípio da ampla defesa, inclusive com os instrumentos do contraditório, para a
exclusão de membro de sociedade.
27 Luís Roberto Barroso, op. cit., p. 234.
24
fatores: a) a igualdade ou desigualdade material entre as partes (e.
g. se uma multinacional renuncia contratualmente a um direito, tal
situação é diversa daquela em que um trabalhador humilde faça o
mesmo); b) a manifesta injustiça ou falta de razoabilidade de critério
(e. g., escola que não admite filhos de pais divorciados); c)
preferência para valores existenciais sobre os patrimoniais; d) risco
para a dignidade da pessoa humana (...).
4.2
O direito à propriedade imóvel e sua dimensão constitucional
Ao final, de acordo com todo conteúdo apresentado, considera-se
oportuno trazer ao presente trabalho o bom exemplo da situação jurídica da
propriedade imobiliária no ordenamento jurídico, como um modo de evidenciar
os efeitos que o fenômeno da constitucionalização do direito tem produzido.
Primeiramente, para melhor delinear o assunto, cumpre trazer o conceito
tradicional de propriedade, em seus aspectos básicos, onde ―Considerando-se
apenas os seus elementos essenciais, enunciados no art. 1.228 (...), pode-se
definir o direito de propriedade como o poder jurídico atribuído a uma pessoa
de usar, gozar e dispor de um bem, corpóreo ou incorpóreo, em sua plenitude e
dentro dos limites estabelecidos na lei, bem como de reivindicá-lo de quem
injustamente o detenha.‖28, sendo este o tratamento da legislação de direito
civil oferecido para o tema.
Constitucionalmente, entretanto, poderíamos quase atribuir a este
direito, ao invés da designação de um poder jurídico, acima ilustrada, a
atribuição de verdadeiro poder-dever de usar um bem. A propriedade vem a
ser, evidentemente e historicamente, o patrimonialismo do direito privado em
evidência, no que sua personalização, de acordo com esta realidade de
efetivação de direitos fundamentais, passou a considerar uma função social
para este direito, a exigência de aproveitamento pessoal para a realização da
dignidade da pessoa humana. A constitucionalização deste direito se deu, para
muito além do que ocorreu com os demais ramos do direito privado, com o
regramento expresso, em normas constitucionais, dos aspectos gerais do
instituto.
Sobretudo
a
propriedade
imobiliária,
enquanto
portadora
de
potencialidades para a realização do direito social de moradia, elencado no rol
28
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. v. 5: direito das coisas. 3.ed.
São Paulo: Saraiva, 2008. (p. 208-209).
25
do art. 6º como direito social, passou a ganhar regulamento especial por parte
do constituinte.
Assim, por exemplo, em seu art. 182, § 4º, II, da Constituição Federal, a
norma ápice instituiu uma espécie de sanção para a pessoa que, detentora de
bem imóvel, opta por não utilizá-lo, ou, na melhor lição de Hugo de Brito
Machado, tem-se que ―A vigente Constituição Federal, (...), autoriza a
instituição de um tributo que tem nítida natureza penal. É o imposto sobre a
propriedade predial e territorial urbana, progressivo no tempo, com a finalidade
de obrigar o proprietário de solo urbano não edificado, subutilizado ou não
utilizado a promover o seu adequado aproveitamento.‖29.
Da mesma maneira, consoante este ideal de aproveitamento da
propriedade imobiliária como instrumento de realização do direito social à
moradia em detrimento da garantia individual de segurança particular de
aquisição patrimonial, disporá igualmente a Constituição, acerca de uma
possibilidade de aquisição da propriedade imóvel, através de uma usucapião
especial, diferenciada e mais simples de ser realizada, para aquele que, no
lugar do proprietário inerte, realiza os fins de moradia ou trabalho na
propriedade imóvel anteriormente imprestável. Neste sentido é que está a
redação do art. 183, da carta magna.
Desta maneira, para que se visualize melhor esta questão, o proprietário
de um bem imóvel que não o aproveite poderá, a princípio, sofrer aumento
progressivo na alíquota do IPTU, como forma de sanção, por não dar uso ao
bem, nos termos do art. 182, §4º, II, da CF, bem como poderá perder o seu
imóvel se, pelo espaço de cinco anos, outrem habitar lá com ânimo de dono,
conforme o art. 183, do mesmo diploma legal.
São apenas alguns dos casos que evidenciam a perda do caráter
absoluto da propriedade, e mais, evidenciam outro conceito para este instituto,
mais condizente com sua disposição constitucional, conforme aduz Manoel
Gonçalves Ferreira Filho30:
29
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 27. ed. São Paulo: Malheiros,
2006. (p. 80).
30 Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Curso de direito constitucional. op. cit., p. 305.
26
A propriedade não é sagrada, como afirmava a Declaração de 1789.
É um direito fundamental que não está nem acima nem abaixo dos
demais. Deve, como os demais, sujeitar-se às limitações exigidas
pelo bem comum. Pode ser pedida em favor do Estado quando o
interesse público o reclamar, como a vida tem de ser sacrificada
quando a salvação da pátria o impõe. Pode ser recusada quanto a
certos bens cujo uso deva ser deixado a todos, quando a exploração
deles não convém que se faça conforme a vontade de um ou de
alguns cidadãos. Tem de ser respeitada, porém, até que se prove
existir liberdade sem ela como um instrumento, segurança sem ela
como garantia.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao final, o que se nota, sobretudo com relação às normas programáticas
instituidoras de direitos, é que, nos termos do importante art. 170, da
Constituição Federal (norma programática, por excelência) o dirigismo
constitucional, presente neste dispositivo com mais evidência, tende a desejar,
do legislador ordinário, a instituição de uma ordem econômica, notadamente
fundada no valor social que o trabalho e a livre iniciativa possuem para o ser
humano, entretanto não se olvidando da finalidade desta ordem, que é a
mesma finalidade da própria constituição: a de garantir uma existência digna a
todos.
É neste sentido, e buscando ceifar, do ordenamento jurídico, os casos
em que o exercício da livre iniciativa acaba por gerar distorções e abusos, que
antes de realizar desviam a realidade da finalidade do sistema constitucional,
que o constituinte originário, ao enumerar a propriedade privada e sua
correspondente função social neste verdadeiro programa de ordem econômica
comprometida com a dignidade da pessoa humana, o fez com o objetivo de
regrá-la, trazendo-a para outro patamar, atribuindo-lhe uma função de
realização social, sobrepondo este objetivo à função originária de satisfação
individual e privada.
Neste específico ponto é que se julga de muita valia a atual
interpretação constitucional, sobretudo quanto a normas programáticas como
esta, pois que, por um lado, aplica mesmo os princípios, ainda que longe de se
concretizarem em regras, já sendo normas, como é o caso do art. 170, da CF,
ao que, por outro, evade o entendimento jurisprudencial de uma realidade mais
positivista que, sob o pretexto de garantir uma segurança jurídica elevada,
27
acaba, não raro, por tolher o direito do salutar convívio com a sociologia, a
filosofia, e outras tantas ciências afins necessárias à busca por um
ordenamento jurídico como posto em nossa constituição.
O que se quer aqui elencar, contudo, ao contrário do que uma análise
mais precipitada poderia sugerir, não são os casos e fatores que poderiam
oferecer uma nova opção quando da subsunção de uma destas normas, mas
sim exemplos de dispositivos, bem como os substratos teóricos, tendentes a
proporcionar argumentos para que o aplicador do direito veja na propriedade
uma possibilidade de, para além do que disposto no Código Civil, ou na esfera
de direito privado, realizar, extrapolando a pessoa do proprietário, uma função
social, como se vê, notadamente almejada pelo elevado princípio da dignidade
da pessoa humana, sobretudo no tocante à propriedade imobiliária, com todo o
seu potencial de realização de direitos sociais, como o da moradia, ou do
exercício profissional, por exemplo. De outro modo, igualmente compreende-se
que a própria aplicação de dispositivos infra constitucionais ao caso que
envolva o instituto da propriedade deve seguir tal interpretação, por ser esta a
que mais se adéqua com a norma constitucional.
Por todos estes apontamentos é que se chega à conclusão de que o
fenômeno da constitucionalização, ainda quando sobremaneira exagerado na
aplicação de normas programáticas, é antes salutar que prejudicial, pois que
atribui um sentido, um objetivo, para o aplicador do direito, no que se tenciona,
com o presente estudo, demonstrar esta realidade, apenas para exemplificar,
em um caso específico, como com o que ocorre com o instituto da propriedade.
6. REFERÊNCIAS
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 8. ed. São Paulo:
Malheiros, 1999.
DINIZ, Maria Helena. Norma constitucional e seus efeitos. 5. ed. São Paulo:
Saraiva, 2001.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 32.
ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
28
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. v. 5: direito das coisas.
3.ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado.
São Paulo: Martins Fontes, 1999.
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 27. ed. São Paulo:
Malheiros, 2006.
MOTA,
Marcel
Moraes.
Pós-positivismo
e
restrições
de
direitos
fundamentais. Fortaleza: Omni, 2006.
SOUZA
NETO,
Cláudio Pereira
de; SARMENTO,
Daniel (coord).
A
constitucionalização do direito: fundamentos teóricos e aplicações
específicas. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2007.
TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 20. ed. São Paulo:
Malheiros, 2005.
29
A POLÍTICA CARCERÁRIA E A REINTEGRAÇÃO SOCIAL DO
PRESO
Hildebrando Diniz Araújo Júnior31
Rebeca Barros de Almeida Brandão32
RESUMO
A situação degradante do preso, dentro dos estabelecimentos prisionais, é um dos problemas
mais graves que a sociedade enfrenta. O sistema penitenciário que tem por finalidade
reeducar, acaba por diminuir as chances de recuperação, pois apresenta condições precárias
aos detentos, e com isso o sofrimento e a revolta se multiplicam. Surge então uma questão
bastante controversa, se os presos seriam realmente capazes de ressocializar-se, em uma
instituição que não apresenta as menores condições de um ser humano sobreviver ou se esses
presídios servem apenas como ―depósito‖ de infratores. Desse modo se faz necessário que se
busque alternativas para que os infratores possam ser recolhidos em instituições capacitadas,
e por meio de medidas educativas, levem os internos a refletirem seus atos, diminuindo assim
os indícios de reincidência, podendo dessa forma reincorporar o indivíduo à sociedade. No
entanto também será imprescindível que o preconceito social também seja combatido, para
isso, o Estado tem um papel irrelevante, pois deverá proporcionar, a partir de investimentos,
condições favoráveis para que se possibilite o retorno do ex-detento à vida social.
PALAVRAS-CHAVE: sistema carcerário brasileiro. condições do preso. ressocialização.
ABSTRACT
The degrading situation of the prisoner, in the prisons, is one of the more graves problems that
the society faces. The penitenciary system which has the purpose of re-educate, tends to
reduce the chances of recuperation, because it offers precarious conditions to the convicts, and
because of it the suffering and the revolt multiply. So it emerges a point plenty of controversial,
if the prisoners would really be able of resocialize, in an institution that doesn`t present good
conditions for the human survival or if these prisons just serve as a ―deposit‖ of transgressors.
Thereby, it`s necessary to look for alternatives to the transgressors being collected in capable
institutions, and by educational measures that take the convicts to think about their acts, then
reducing the vestiges of recidivation, so it can reincorporate the individual to the society.
However, it`s also indispensable that the social prejudices being eradicated. For this, the State
has am important paper, because it must provide, from investments, suitable conditions to
enable the return of the ex-convict to the social life.
KEY-WORDS: brasiian prision sistem. prisoner condition. resocialize.
31 Acadêmico de Direito pela Universidade Estadual da Paraíba.
32 Acadêmico de Direito pela Universidade Estadual da Paraíba.
30
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
"A única dignidade realmente autêntica é
a que não diminui ante a indiferença dos
outros."
(Dag Hammarkskjod)
Há muito tempo se objetiva uma forma eficaz pela qual se dê a
reintegração do preso, tendo esta como finalidade a recuperação dos
indivíduos apenados, fazendo destes indivíduos possuidores de capacidade de
um convívio social harmônico. No entanto esta perspectiva parece estar cada
vez mais distante da realidade vigente no Brasil, as penitenciárias aqui
presentes encontram-se num estado preocupante, carentes muitas vezes de
condições mínimas necessárias para a recuperação dos indivíduos, sofrem
com as superlotações e com o descaso por parte da administração pública.
Neste artigo serão colocados em pauta questões pertinentes ao tema
em discussão com intuito de debater sobre a problemática, apontando
deficiências e soluções no referente ao tratamento penitenciário, com foco
principalmente nas questões brasileiras, utilizando-se para tanto de pesquisas
bibliográficas e do método dedutivo objetivando produção de conhecimento.
A nossa Carta Magna (1988) apresenta-se como fonte balizadora para a
escolha do tema, tendo em vista seu papel de tutela à dignidade da pessoa
humana seja qual for o estágio de vida em questão. A análise do tema nos
aponta assim questões que vão de encontro a este princípio protegido pelo
fulcro do nosso ordenamento.
Levar a informação e estimular a criticidade são objetivos do artigo, para
o desenvolvimento do tema faremos um estudo comparativo sobre nosso
ordenamento e sua aplicação no cotidiano, serão feitas assim, menções à LEP
no concernente ao assunto abordado no decorrer deste trabalho.
31
2.
REINTEGRAÇÃO
DO
PRESO
E
O
ORDENAMENTO
JURÍDICO
BRASILEIRO
Um dos pontos mais discutidos no meio jurídico é a questão do preso no
sistema penitenciário vigente. Sobre quais medidas devem ser tomadas
àqueles que comentem atos ilícitos, e que transgridem normas impostas pelo
Estado.
A visão de que a aplicação de uma pena eficaz e justa, vai além da
tentativa de reinserção do infrator ao meio social, está agindo também como
uma forma de prevenção a novos delitos, adquirindo cada vez mais adeptos.
Tal fato nos aponta a crença em que, com um ordenamento jurídico regido por
normas elaboradas com o intuito de combater esse problema social e
executadas de forma compromissada, tornaria possível a obtenção de
resultados satisfatórios.
No Brasil, o problema da violência urbana é cada vez mais comum,
como agravante para tanto se tem a situação carcerária no país e o
crescimento acelerado das cidades. Os conflitos gerados pelo aumento da
população acabam influenciando nas relações humanas e nas atitudes dos
membros da sociedade. Entretanto as políticas criminais não acompanharam o
ritmo dessas mudanças, e tornam-se ineficazes para deter tal violência e
criminalidade. E por conseqüência o sistema penitenciário enfrenta forte crise.
Juntamente com a nossa Letra maior (Constituição de 1988), a Lei de
Execuções Penais n 7.210/84 (LEP), buscou assegurar ao condenado as
condições para sua integração social, preocupando-se em reeducar o mesmo,
preservando, assim, sua dignidade e direitos.
A Lei de Execuções Penais não é aplicada devidamente e muitos presos
ficam mais tempo do que deveriam na cadeia. Apesar de apresentar uma
legislação sobre os direitos sociais do apenado, essas leis nunca foram
integralmente cumpridas e a política carcerária não chegou a ser efetivada.
Essa não-aplicabilidade da Lei decorre de um fato bem simples: a ausência de
advogados para os presos. Interferindo desse modo em outro aspecto
32
essencial para a devida execução penal, que é o da ausência de uma
defensoria pública ativa.
Tem-se no artigo primeiro da Lei 7.210/84 (Lei de Execuções Penais):
Art 1º- Execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de
sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a
harmônica integração social do condenado e do internado.
Conforme podemos observar no artigo supramencionado há uma dupla
finalidade no referente à execução penal, sendo estas: dar sentido à efetivação
da decisão criminal e também proporcionar ao apenado condições de
aderência ao seio social, não voltando este a cometer novos delitos. Ou seja, a
sanção penal não tem por objetivos somente aplicar uma punição ao infrator,
mas também promover a sua readaptação social, e com isso impedir que o
autor do delito volte à prática de um novo ilícito.
A idéia almejada pela reinserção social é a de humanização do detento,
tendo a passagem deste na instituição carcerária como meio de orientação,
colocando a figura do sujeito que delinqüiu como centro da reflexão cientifica.
Sobre o tema:
Presos e direitos humanos. Tanto quanto possível, incumbe ao
Estado adotar medidas preparatórias ao retorno do condenado ao
convívio social. Os valores humanos fulminam os enfoques
segregacionistas. A ordem jurídica em vigor consagra o direito do
preso ser transferido para local em que possua raízes, visando a
indispensável assistência pelos familiares. (NERY e JÚNIOR 2006,
p.164)
Observa-se a necessidade de uma nova concepção no referente a
finalidade da prisão, esta deve estar menos focada ao castigo e mais
compromissada com a reintegração, reduzindo os níveis de reincidência,
através da adoção de medidas educacionais que auxiliem realmente o
indivíduo apenado, dando a este reais condições de reintegração social. O juiz
deverá ainda analisar os pressupostos judiciais de aplicação da pena expostos
no artigo 59 do CP, onde, dentre outros aspectos, os antecedentes criminais do
33
preso e sua conduta perante a sociedade deverão ser ponderados em
primazia.
3. ENCARGOS DA REINTEGRAÇÃO
Para realizar uma efetiva reintegração dos presos é necessário que os
mesmos sejam tratados de uma forma diferente da adotada atualmente.
Ou seja, como pessoas detentoras de direitos e deveres, o que não
ocorre nos presídios brasileiros, onde são obrigados a viver de forma
desumana.
A ressocialização do apenado poderá proporcionar grandes benefícios
sociais, através da utilização de medidas sócio educativas que viabilizem tal
resultado. A nova conduta apresentada pelo apenado trará um conforto social,
tendo em vista que ao invés de um problema, se obterá uma solução com o
retorno deste indivíduo devidamente recuperado, e neste sentido o mercado de
trabalho será decisivo, pois só se concretizará a reinserção dando uma nova
oportunidade a este indivíduo de reconstruir sua vida.
É notório que o papel desenvolvido pelo Estado neste sentido tem sido
ineficaz, pois o preconceito com o ex-detento e a pouca confiança, com
motivos,
no
trabalho
desenvolvido
nos
presídios
brasileiros,
influem
decisivamente na não integração do apenado ao mercado de trabalho. Muito se
investe em construções de presídios de segurança máxima, comprometendo o
orçamento que poderia ser destinado a investimentos no sentido de incentivar
a integração do preso ao mercado de trabalho, qualificando sua mão de obra e
dificultando a chances de reincidência.
Sobre o exposto:
A reintegração do presidiário à sociedade esbarra em vários
obstáculos, os quais inviabilizam qualquer esforço institucional de
recuperação do indivíduo infrator. Nessa luta é preciso contar não
apenas com uma estrutura carcerária eficiente, capaz de proporcionar
ao preso uma capacitação mínima de subsistência ao ser liberto, mas
também, com o apoio da sociedade, possibilitando a volta do preso à
vida produtiva, aceitando-o em todos os setores da sociedade, sem
preconceito em relação à conduta pregressa. (Santos , 2001)
34
Um obstáculo a ser ultrapassado para a obtenção de um Estado de
segurança é o modo de a sociedade encarar o infrator preso, o rótulo que lhe é
aplicado dificulta o retorno a uma vida normal.
Além do preconceito social, as condições dos presídios e das casas de
detenção também influenciam nessa busca pela reintegração social. Faz-se
necessário que o presídio seja um local de recuperação, sendo uma instituição
idônea, que apresente uma certa qualidade aos apenados, tendo funcionários
capacitados, e em número suficiente para atender a demanda, também é
indispensável que o número de detentos de uma unidade prisional seja
equivalente com sua capacidade física. Outro fator irrelevante é que, as penas
privativas de liberdade sejam tidas apenas como última opção para a punição,
sendo, desta forma priorizadas as penas alternativas.
O que ocorre em nosso sistema está em pleno desacordo com o
pretendido pela Lei de Execuções Penais (LEP), que dispõe sobre elementos
essenciais para uma vivência digna dos presos no estabelecimento prisional. A
referida lei dispõe acerca da assistência jurídica, médica, material, educacional,
social, religiosa, que o recluso tem direito e estabelece os critérios a serem
desenvolvidos para sua realização.
Afirma a Declaração Universal dos Direitos do Homem em seu artigo 1º:
Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São
dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos
outros com espírito de fraternidade.
A citação em questão nos remete a uma reflexão sobre a necessidade
de se tratar com humanidade o apenado. É fato que este infringiu o
ordenamento e deve ser punido por isto, no entanto, não justifica tirar-lhe
direitos, devendo ser tratado de forma digna e respeitosa.
No entanto, não é necessário um esforço muito grande para se verificar
que há um verdadeiro desequilíbrio entre a real condição do preso e a
idealização dessa condição pela legislação vigente. Para tanto basta
compararmos o que está disposto no Artigo 5º, XLIX, da CF: "é assegurado
aos presos o direito á integridade física e moral", com a realidade prisional de
nosso país, onde presos se encontram amontoados em cadeias públicas, e
35
sem o devido auxílio. Após essa comparação só o que concluímos é que há
uma antítese entre a realidade praticada e a utopia legal.
Ao alcançar esses objetivos, toda a sociedade ganha, com a
diminuição da criminalidade, com a economia gerada pelo
investimento educacional e pelo combate a criminalidade, permitindo
ao egresso ressocializado, condições de voltar ao convívio social e
seguir as regras que regem esse convívio de uma forma satisfatória
que o afaste da criminalidade. (Deputado Gilmar Fabris - DEM)
A partir da execução dessas medidas o déficit carcerário diminuiria
expressivamente, reduziria os custos, aceleraria a execução e o controle sobre
essa área, melhorando o sistema de ressocialização.
Os
benefícios
penitenciárias,
seus
da
reintegração
efeitos
diminuem
vão
os
além
do
índices
desencargo
de
das
criminalidade,
possibilitando um convívio social harmônico. Claro que o problema não é de
fácil solução, no entanto não justifica o sentimento de comodismo diante da
situação imposta, se faz necessária a análise de caso e a concretização de
projetos para que ocorra finalmente a ressocialização.
4. SITUAÇÃO PRISIONAL NO BRASIL
4.1 Breve analise do ordenamento pátrio
A sanção penal de restrição da liberdade tem por objetivo a
ressocialização dos criminosos, porém esta vem sendo anulada pelas
desumanas condições de sua custódia.
O grande problema do sistema carcerário é basicamente a superlotação
carcerária, que provoca uma mistura entre os presos primários (provisórios),
com os de média e alta periculosidade, fazendo com que o objetivo principal do
sistema, a ressocialização, não ocorra. Virou um sistema caótico. Um
verdadeiro depósito de pessoas, servindo para estimular a prática de crimes.
Não é novidade que há dificuldades econômicas para a implantação de
um sistema eficaz, este problema toma proporções ainda maiores com as
corrupções de autoridades responsáveis pela elaboração e execução de
36
medidas. A influência na problemática carcerária da falta de políticas internas
eficazes é direta no tocante a situação vigente, pois estas seriam uma das
principais formas capazes de barrar a corrupção latente dos funcionários.
A mão-de-obra que lida com os presos é despreparada, e o salário dos
agentes penitenciário é quase ridículo, facilitando a questão da corrupção e o
aliciamento dos funcionários. Essa corrupção, a inadequação de suas
instalações, aliadas ás dificuldades de gestão, facilita o acesso de drogas,
armas, celulares, etc.
Os deveres do estado - de fiscalização da lei - e os direitos dos presos
são totalmente ignorados, ocasionando um desrespeito aos direitos humanos
básicos. Os estabelecimentos prisionais, criados para recuperar e reeducar os
presos foram transformados em depósito penitenciário, realimentando assim, a
criminalidade.
As condições prisionais no Brasil divergem do que rege nosso
ordenamento, tirando do apenado sua dignidade e conseqüentemente
desestimulando o mesmo a reintegração, criando neste um sentimento de
revolta. Por mais contraditório e utópico que seja, a prisão deveria representar
para o apenado um novo lar capaz de dar-lhe a base educacional a qual lhe
faltou no meio familiar.
Todo esse quadro da realidade brasileira justifica a luta para tornar o
sistema punitivo mais eficaz, e menos degradante, tornando-o mais humano.
Lutando para que os excluídos socialmente não sejam novamente segregados
pela sociedade, combatendo a esteriotipização do ex-condenado quando volta
à sociedade que o vê com preconceito, e muitas vezes finge ser alheia a ele,
negando-lhe o direito de trabalhar, e que às vezes, acaba contribuindo para a
sua volta à criminalidade.
Para a advogada Karyna Sposato, secretária-executiva do Ilanud
(Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e
Tratamento do Delinqüente):
A situação no Brasil é considerada grave, já que nós temos um alto
índice de encarceramento, uma alta taxa de prisões. Embora sendo
um país populoso, isso denota uma política centrada na
prisionização, o que é grave.
37
Os problemas encontrados no meio penitenciário ganham maiores
proporções com o decorrer do tempo devido ao seu efeito acumulativo e como
agravante tem-se o descaso e a morosidade da justiça brasileira. Apesar dos
problemas aqui apontados o Brasil começa a engatinhar em busca da
reintegração do preso, esse processo mesmo que custoso e demorado tende a
obter resultados satisfatórios.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS:
O trabalho apresentado fez uma explanação sobre a problemática que
envolve o sistema penitenciário, apontando como solução a reintegração
social, a abordagem mostra que é uma tarefa complexa, porém possível de ser
realizada, de forma planejada e compromissada.
Observa-se, portanto, que as medidas punitivas e o meio no qual o
apenado é submetido não dispõe dos mínimos requisitos necessários para que
se obtenha a eficácia objetivada por nosso ordenamento, com a aplicação da
pena, causando uma insegurança social no referente a recuperação do
indivíduo delinqüente. E neste contexto, é notória que essa insegurança social
não possibilitará a reintegração do apenado, já que devido ao preconceito,
ocorrerá a exclusão social do mesmo.
Mesmo com todos os problemas, percebe-se que há uma ―luz no fim do
túnel‖, pois o Brasil começa a dá seus primeiros passos de uma longa e árdua
caminhada em busca da reintegração do apenado, quando, em alguns
presídios o apenado passa por medidas educativas, onde o seu trabalho é
valorizado em empresas parceiras do governo, e quando ocorre uma melhoria
nas condições das cadeias públicas, dentre outras medidas. Mas para tanto
deverá superar alguns problemas de longas datas como a corrupção, já que
esta se torna ainda mais maléfica e prejudicial quando no meio penal.
Combater a morosidade judicial também favorecerá a implantação do novo
sistema.
38
Este artigo científico teve o intuito de esclarecer idéias e levantar
questões polêmicas inerentes ao tema em questão, já que o assunto abordado
é de constante evidência, portanto atual e de grande relevância para todas as
classes sociais.
Valorizando o preso como pessoa humana, dignificando-o mesmo dentro
da prisão, é o caminho para que ele se recupere de suas condutas delituosas.
Apenas dessa forma a sociedade poderá ver seus presos recuperados e as
taxas de reincidência reduzidas, realidade há tanto sonhada por todos.
6. REFERÊNCIAS
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ressocializador
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39
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Comentada e Legislação Constitucional. São Paulo, 2006. p. 164
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SANTOS, Jocevaldo Gomes dos. Reintegração social do preso – UTOPIA E
REALIDADE. 2001. Disponível em
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cessado em 15/11/2009.
VADE MECUM. Código penal; Código de Processo Penal; Constituição
Federal. Lei nº 7.210/84 (Lei de Execuções Penais). Obra coletiva de autoria
da Editora Saraiva com a colaboração de Antonio Luiz deToledo Pinto, Márcia
Cristina Vaz dos Santos Windt e Lívia Céspedes. – São Paulo: Saraiva, 2008.
40
A PSEUDOLIBERDADE DE PENSAMENTO NO INCISO IV, ART.
5º CF/88
Vinícius Leão de Castro33
RESUMO
O questionamento acerca do inciso IV do artigo 5º da Constituição Federal da República
Federativa do Brasil, por intermédio da construção de um conceito de liberdade, com a ajuda
da compreensão de que este foi um direito transmitido culturalmente ao longo do tempo e dos
estudos desenvolvidos por Hume, Kant e Sartre estabelece, por conseguinte, um paradigma
para a liberdade de pensamento como autoconhecimento relacionando-o com o Estado
Democrático de Direito e sua Lei Fundamental, a Carta Magna, e os limites que se opõem à
efetivação desta idéia revelam, portanto, um conflito que desemboca na questão de uma
pseudoliberdade de pensamento.
Palavras-Chave:
Liberdade
de
Pensamento,
Liberdade,
Estado,
Constituição,
Pseudoliberdade de Pensamento.
ABSTRACT
The deliberation concerning the article 5, incised IV, from the Federal Constitution of the
Federative Republic of Brazil, through the formulation of a concept of freedom, with the support
of the comprehension that it was a right transmitted over time by means of culture and through
the works developed by Hume, Kant and Sartre establish, consequently, a paradigm for
freedom of thought as self-knowledge being related to the Rechtsstaat and its Fundamental
Law, the Magna Carta, and the limits that are opposed to the actualization of this idea reveal
thus a conflict that guides to a question of pseudo-freedom of thought.
Key words: Freedom of thought, Freedom, State, Constitution, Pseudo-freedom of thought.
33
Graduando em Direito
[email protected]
pela
Universidade
Estadual
da
Paraíba.
E-mail:
41
1. INTRODUÇÃO
Atualmente não é possível dissociar o estudo da Constituição de suas
causas e funções sociológicas, por causa disso buscou-se investigar a
efetividade da norma pesquisada na realidade social na qual ela se encontra
com o auxílio da criação de um conceito de pseudoliberdade de pensamento
dentro deste arcabouço, para isso foi utilizada literatura de cunho filosófico,
jurídico, histórico e, em menor número, psicanalítico, bem como acervos
bibliográficos disponíveis na internet.
Esmiuçar a origem da idéia de liberdade é pressuposto indispensável
para o elogio ao pensar e, em seguida, para construção do conceito
supracitado; concatenar Estado de Direito, Constituição e a norma em questão
fornece substrato para a apresentação desta última como antidemocrática e
contrária ao dispositivo constitucional em sua praxe.
2. LIBERDADE, CULTURA E OUTRAS INVESTIGAÇÕES
A aceitação do direito à liberdade como uma transmissão cultural é o
tema inicial desta pesquisa, o qual interligado com os estudos de Hume, Kant e
Sartre, filósofos que participaram de acontecimentos históricos por meio de
suas teorias, ou como observadores participantes e que influenciaram-se,
concretiza o seu intróito.
2.1 A TRANSMISSÃO CULTURAL DA LIBERDADE
Exclui-se a questão da onipotência divina como limitadora da liberdade e
ressalta-se, por conseqüência, a aceitação deste conceito como um direito
fundamental do homem mediante a transmissão cultural.
A sociedade grega gentílica era firmada em uma economia agropastoril,
por essa razão os aspectos decorrentes dessa atividade estavam presentes em
todas as esferas da vida social, Ártemis, deusa grega da caça, vida selvagem
pertence a esse processo. Ultimamente, ela é associada à liberdade,
42
principalmente por vigiar os limites impostos ao homem e, metaforicamente,
por sua satisfação em viver ao ar livre.
A semiótica revela a formação das novas regras de representação a
partir da tradução da informação em signos, com o auxílio da experiência e,
finalmente, o seu depósito na memória do sistema, ou seja, a transmissão
cultural que materializa-se exclusivamente na sua formalização nestes signos
(LOPES, 1989). A divindade, nesse caso, é um signo não-lingüístico e a
liberdade a noção abstrata por ele representada.
Pressupõe-se pela afirmação de Iuri Lótman citado por Machado (2009)
que a cultura é um grande texto e os textos se reproduzem por contaminações,
por isso os novos conteúdos são formados ao longo da história, com maior ou
menor grau de presença daquela imago mundi original.
Na Idade Média, a liberdade confundia-se com o livre-arbítrio cristão, na
modernidade devido ao racionalismo e cientificismo dominantes ela guia o povo
rumo ao rompimento com a tirania, com o dogmatismo e a revisitação das
concepções dos antigos34. Desse modo, explica-se a semelhança entre a
escultura da deusa Ártemis e a pintura de Delacroix35 e, conclui-se, que as
diferentes linguagens expressaram sob modalidades diversas de substâncias
significantes, o mesmo significado básico (LOPES,1989), pois, esses signos
foram os responsáveis por construir esse novo conteúdo, a liberdade.
2.2 HUME, KANT E SARTRE: UMA INVESTIGAÇÃO ACERCA DA
LIBERDADE
David Hume influenciou diretamente a Constituição dos Estados Unidos
da América (EUA) no concernente a definição de liberdade como um bem
indissociável do ser humano36, por meio de seus livros (1739-48): ―Ensaios:
morais, políticos e literários‖, ―Tratado da natureza humana‖ e ―Investigação
sobre o entendimento humano‖.
34 Para eles, este conceito centrava-se primeiramente no “pertencer a si próprio”, como liberdade de
ação e liberdade de escolha, as quais “rivalizam” com a onipotência e onisciência divinas.
35 “La Liberté guidant le peuple” de 1830.
36 Preâmbulo e Emenda XIV.
43
Liberdade, nesse ínterim, é a determinação dos atos pela vontade, que
estão conectados com os motivos, inclinações e circunstâncias que permitiram
a sua existência, dessa maneira, assevera Hume (2009) que reconhece-se
universalmente que esta liberdade incondicional encontra-se em todo homem.
Mas, vale destacar que este parâmetro classifica o indivíduo como agente,
porque enquanto espectador que observa e reflete sobre suas ações e as de
outrem considera que ―todos os ‗acontecimentos‘, podem ser traçados em
termos de uma cadeia de necessidade a ‗acontecimentos‘ anteriores‖ (GILES,
1979, p.154).
Immanuel
Kant
em
sua
fase
otimista
(quando
escreveu
―Fundamentação da Metafísica dos Costumes‖ em 1785) no tocante a
liberdade acreditava que a Revolução Francesa instauraria o domínio da razão
e da liberdade, por esse motivo encontra-se em seu pensamento a união
desses dois aspectos: a possibilidade real da liberdade não é demonstrada,
todavia atribui-se a todo ser dotado de razão e vontade esta propriedade de se
determinar a agir sob a idéia da sua liberdade (KANT, 1964).
O filósofo moderno, aprimorou o ponto de vista de Hume, por intermédio
da análise do mundo fenomenal e noumenal37, no primeiro tudo relaciona-se
com o espaço e tempo, no segundo o objeto aparece tal como é, então o
homem como fenômeno (espectador) é causalmente determinado e como
noumena (agente) é livre. Mas, diferentemente daquele Kant (1964) classifica o
ser racional como legislador num reino dos fins possível pela liberdade da
vontade, cujo princípio é agir somente segundo uma máxima tal que possa ser
erigida em lei universal.
Jean-Paul Sartre foi contemporâneo da Segunda Guerra Mundial, logo o
seu projeto de liberdade foi deveras modificado pelos acontecimentos daquela
época. Para o escritor, há um vínculo entre liberdade e responsabilidade, pois
―o homem não é apenas aquele que escolheu ser, mas também um legislador
que escolhe simultaneamente a si mesmo e a humanidade inteira‖ (SARTRE,
2009, p.4), corroborando e ampliando a imagem de liberdade elaborada por
Kant, dessa forma, organiza a sua representação de liberdade em torno da
37 O vocábulo provém do grego nooúmenon que significa pensar, pensamento, foi utilizado
primeiramente por Kant, como coisa-em-si (ding as sich), o objeto como ele é (ZALTA, 2003).
44
angústia de ser livre, pelo fato de não existir alternativa à escolha38,
igualmente, não há determinismo, porque a existência precede a essência, não
há uma natureza humana dada e definitiva, assim, justifica-se a autonomia de
escolha.
Hoje a problemática da liberdade se confunde com a escolha alienada
proposta por Sartre, em que elementos externos formam o pensamento que
leva à ação, contudo na afirmação de que a ―existência precede a essência‖
clarifica-se a possibilidade de uma autonegação da liberdade, porquanto cada
pessoa é uma escolha absoluta de si. Este será o eixo condutor do
questionamento da liberdade de pensamento na atualidade.
3. ELOGIO AO “PENSAR”
O ―pensar‖ é uma atividade libertadora, ao passo que nos transforma em
questionadores de nós mesmos, constante, independente de palavras, com
focos diferenciados, inata ao homem, sem genuína autenticidade, visto que
bem como os mosaicos são distintas as facetas que o constitui.
Atualmente, o ser humano vive um processo de despersonalização, a
autonegação da liberdade, pois nesta sociedade não há razão para o ―pensar‖,
tudo está pronto, se faz necessário apenas absorver elementos que formarão
uma massa coisificada, da qual a maioria faz parte, de modo que solidifica-se
uma ―despossessão do ser‖, uma perda de si sem retorno, em uma realidade
definitivamente estrangeira, como resultado de uma deturpação da natureza
humana decorrente de sua interação com o meio social (POLI, 2009).
O ciclo do ―pensar‖ é composto por três etapas, aquela que o nomeia, a
consciência e o agir. O estágio da consciência é o correspondente ao juízo de
valor, ele absorve, processa e guarda a informação, isto é, ―eu quero‖, ―por que
e como eu quero‖ e ―eu faço‖, ele representa a efetiva liberdade de
pensamento, pois há a possibilidade de uma escolha alienada, como previa
Sartre, sem a crítica, porém a verdadeira liberdade não existe sem que
perpasse pela razão.
38 “Somos livres para dar qualquer sentido a qualquer coisa, mas somos obrigados a dar sentido a
alguma coisa” (GILES, 1979, p.155).
45
Constrói-se, destarte, o altar ao autoconhecimento e a liberdade da
razão como alicerces da liberdade de pensamento, do mesmo modo, a
exortação presente no Oráculo de Delfos ―conhece-te a ti mesmo que
conhecerás os deuses e o universo‖.
Ademais, acentua-se a importância de se assegurar, outrossim, a
liberdade de expressão tendo em vista que expressar-se é concretizar o
―pensar‖ mediante a ação.
4. O NASCIMENTO DA PSEUDOLIBERDADE DE PENSAMENTO
O Estado Democrático de Direito deveria conciliar a ordem social, a
iniciativa individual e a liberdade a fim de submeter governantes e governados,
entretanto, na realidade, possui ―caráter oligárquico e de controle por parte da
elite
que perpetua a
estrutura de
atraso
educacional, corrupção e
desigualdades sócio-econômicas‖ (CASTRO, 2009, p. 1), sobretudo no que se
refere ao Brasil.
Existe uma relação intrínseca entre o Estado, a Constituição, e a norma
em questão que apresenta-se como garantia fundamental, cláusula pétrea, já
que pertence ao mesmo fundamento do Estado e que por isso é reconhecida
como tal na Constituição (ALEXY, 1993, tradução nossa)39, no entanto, o
próprio Estado cria os obstáculos para sua concretização na realidade social,
assumindo, dessa forma, caráter antidemocrático e contrário à Constituição
dado que a liberdade de pensamento é pedra angular da democracia40 e de
nossa lei fundamental, na norma em análise, esses obstáculos são os limites
impostos, não só pelo Estado, externamente e internamente ao indivíduo,
abordados posteriormente.
Bonavides (2000, p.53) corrobora essa ossatura assim que aponta a
ligação entre a eficácia desse sistema e a ―ação de grupos de pressão,
lideranças políticas ocultas e ostensivas, organizações partidárias lícitas e
39
Que pertenecen al fundamento mismo del Estado y que, por lo tanto, son reconocidos como
tales en la Constitución.
40 A democracia é um sistema de governo em que as garantias fundamentais são asseguradas aos
indivíduos, seus membros, controlada direta ou indiretamente pelo povo (cidadãos).
46
clandestinas, elites influentes, que produzem ou manipulam uma opinião
pública dócil e suspeita em sua autenticidade.‖
Dentro dessa conjuntura, nasce a pseudoliberdade de pensamento
como autonegação tácita ou não desta faculdade, a qual impossibilitará a
efetivação deste direito, essencialmente, por contrariar a lógica das instituições
democráticas com as quais convivemos, frente a isso percebe-se um paradoxo
na razão que explica a presença desta garantia no rol das normas
constitucionais, ela é puramente a incorporação do estado espiritual do tempo
relativo à sua elaboração, o que assegurou a Constituição Cidadã o apoio e a
defesa da consciência geral (HESSE apud VIEIRA, 1998).
4.1 LIMITAÇÕES À EFETIVAÇÃO DA LIBERDADE DE PENSAMENTO
Admite-se, em primeiro lugar, o pressuposto de que para uma pessoa
livre não existem obstáculos, limitações ou resistências de qualquer tipo,
conforme proposto por ALEXY (1993, tradução nossa) 41.
4.1.1 Externas
Externamente, poder econômico (A), Estado (B), e os meios de
comunicação de massa (C) criam esses limites. Em um conjunto universo (U),
onde estão três círculos que intersectam-se, A, B e C e fora deles N, isso é
demonstrado. A ∩ B, A ∩ C, B ∩ C são áreas de influência, dessa forma,
depreende-se que a hierarquia de influência é A, B e C, além disso, sabe-se
que eles influenciam-se mutuamente (A ∩ B ∩ C). Todos os indivíduos fazem
parte desta estrutura, como controladores ou controlados, e a minoria escapa a
este arcabouço
(estabelecendo o valor de N como ínfimo).
A perda da subjetivação mediante uma mercadorização do homem é o
viés pelo qual atua o poder econômico. Nas palavras de Slavoj Žižek ocorre a
privatização da substância de nosso ser que pertence a todos como herança
41 Quien dice de una persona que es libre presupone que para esta persona no existen impedimentos,
limitaciones o resistencias de algún tipo.
47
coletiva, ou seja, por meio do trabalho o ser humano torna-se coisa, porquanto
ele não transmite conteúdo significativo ao produto do seu trabalho, todavia
este é o responsável por fazê-lo, para isso não pensam, simplesmente
trabalham e morrem com um mínimo de complicações.
Os meios de comunicação de massa, contemporaneamente, corporizam
a idéia de Quarto Poder, mais ainda em tempos de globalização quando a rede
mundial de computadores interliga todas as pessoas simultaneamente, o tempo
perde a sua dimensão histórica, o ―presente sem passado e sem futuro‖.
Somado a isso, existe uma censura econômica posto que grandes famílias
monopolizem o acesso à informação e são legitimadas pelo Estado que não
renova as concessões a fim de garantir que a imprensa seja um verdadeiro
meio para expressar-se livremente. Mas, consoante Huxley (2009) a
comunicação com as massas não é boa nem má; é simplesmente um poder e,
como tal, pode ser bem ou mal empregado. À medida que transforma-se em
um instrumento do Estado para afastar os cidadãos da realidade social e
política por uma distração contínua análoga ao ―pão e circo‖ otaviano em
associação ao poder econômico consubstancia-se em um mal emprego.
O Estado controla as relações entre os indivíduos dentro da sociedade,
delineia os rumos do poder econômico e da imprensa, mesmo que em uma
relação de conveniências, independe da pessoa dos governantes, conforme a
citação de Calvez feita por Bonavides (2000), a não ser quando o poder
econômico faz do povo ícone e base moral do status quo e da sua legitimação
(BONAVIDES, 2001), revelando que outro pilar essencial da democracia, a
vontade popular é manipulado, bem como a liberdade de pensamento que está
em seu cerne.
Portanto, os nossos dias requerem o mínimo espaço para a decisão
individual. Poder econômico, Estado e meios de comunicação de massa
influenciam diretamente a formação do pensamento, e do juízo de valor ulterior,
por conseqüência, limita a liberdade de pensamento, também, internamente.
48
4.1.2 Internas
Internamente, considera-se que somos cerceadores da nossa própria
liberdade, sobretudo, pelas emoções e impulsos instintivos.
No âmbito das emoções, as experiências com reflexos condicionados de
Ivan Pavlov explicam como, hoje, os mecanismos de controle atuam,
externamente, para que nós sejamos tais cerceadores. A experiência com a
salivação dos cachorros e os estímulos indiferentes e incondicionados revelou
os motivos pelos quais estes primeiros levam a respostas condicionadas, pois
de acordo com Huxley (2009, p. 61) ―quando as emoções são elevadas a certo
grau de intensidade, durante um tempo relativamente longo, o cérebro põe-se
‗em greve‘, quando isto sucede, podem instalar-se com bastante êxito novos
padrões de comportamento‖ (as respostas condicionadas), assim, nos levam a
aceitar a desrazão, a falsidade e, conseqüentemente, a negar a nossa própria
liberdade de pensar.
A propaganda não-racional a partir de frases feitas, a falta de tempo
imposta pela luta em favor da sobrevivência em que a multiplicação dos
dividendos traduz-se na ampliação da qualidade vida, mesmo que sem
liberdade de pensamento, como descrita alhures, afastam-nos dos argumentos
lógicos e das escolhas decorrentes destes, aprisionando-nos em um cárcere
invisível para que pensemos como desejarem os representantes do Estado ou
outros interesses privados. Logo, esclarece-se a dificuldade em vislumbrar uma
autêntica independência do eu e, destarte, explicita-se a questão de uma
pseudoliberdade de pensamento na norma constitucional em estudo.
5. UM FIM PARA A PSEUDOLIBERDADE DE PENSAMENTO?
Liberdade
de
pensamento
é
a
liberdade
pela
razão
e
pelo
autoconhecimento, é um direito garantido na lei fundamental da nação, porém
não é uma benesse que existe na prática, porquanto há um conflito entre a
liberdade total (ideal) e uma liberdade restrita que, na verdade, configura uma
pseudoliberdade (realidade) concomitantemente às limitações externas e
49
internas, as quais favorecem a autonegação tácita da liberdade de
pensamento.
O desinteresse da população pelos caminhos políticos de um país é um
indicador de que as pessoas não acreditam que valores, como a liberdade de
pensamento (nesse caso, em suma, pela prisão ser invisível) são inatos ao
homem. O Instituto Akatu (2009) perguntou aos jovens de nove países, entre
eles Japão, EUA e França o seu interesse pelo tema ―Política e Sociedade‖, o
Brasil ficou em último lugar com 10%. Quando Huxley (2009) escreveu seu
livro, ―Admirável Mundo Novo‖, em 1932 ele asseverava que os adolescentes
estadunidenses não viam desvantagens na censura de idéias impopulares,
nem em serem governados de cima por uma oligarquia de técnicos qualificados
desde que a prosperidade fosse mantida.
Este mesmo autor aponta como solução para essa escaramuça
legislações que coibissem a existência e prática legal das limitações à
efetivação da liberdade de pensamento, no entanto, é ilógico pensar em uma
destruição deste sistema pelos que são seus maiores beneficiados, por isso a
liberdade pela razão e o autoconhecimento são os meios, mais aparentes,
geradores
de
uma
efetiva
liberdade de
pensamento
e
do
fim
da
pseudoliberdade que paira sobre a nossa sociedade e metamorfoseia o inciso
IV do art. 5º da Constituição Federal de 1988.
6 CONCLUSÃO
A norma jurídica em questão, referente à liberdade de pensamento, não
se concretiza na realidade atual pela existência da pseudoliberdade, afinal ela
constitui uma autonegação da liberdade de escolha em que o pensamento é o
liame pelo qual a mesma se materializa.
A pseudoliberdade de pensamento está por demais arraigada nos
componentes de nossa sociedade, por causa disso um processo longo, e, para
os pessimistas, impossível, deve ser aguardado até que contemple-se uma
verdadeira liberdade de pensamento, ademais, os meios mais aparentes que
surgem como alternativa antípoda são em si mesmos métodos por demais
50
exaustivos e demorados, mas a crença na possibilidade de uma nova realidade
jamais deve sucumbir.
6. REFERÊNCIAS
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Estudios Constitucionales, 1993.
BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa: por
um Direito Constitucional de luta e resistência, por uma nova hermenêutica, por
uma repolitização da legitimidade. São Paulo: Malheiros, 2001.
____________________. Ciência Política. São Paulo: Malheiros, 2000.
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heróis. Tradução por David Jardim. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.
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do
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Aristotélico.
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Anna Lia Amaral Almeida Prado e Gilda Naécia Maciel de Barros. Disponível
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51
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52
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out. 2009.
53
A RESPONSABILIDADE CIVIL NOS CRIMES CONTRA A
HONRA: calúnia, injúria e difamação
Marcelo Santos Sousa42
Rafael Vieira de Azevedo43
Aldecir Batista Dias Filho44
RESUMO
Este trabalho procura discorrer acerca da responsabilidade civil nos crimes contra a honra,
abordando os crimes de calúnia, injúria e difamação a partir de suas definições pelo Código
Penal. Sendo alvo de nossa discussão os danos materiais e morais que podem ser causados
por esses delitos e a possível responsabilização frente à esfera cível, que é independente da
responsabilidade criminal.
Palavras-chave: Responsabilidade. Civil. Crimes. Honra.
ABSTRACT
This work intends to discourse about civil liability for crimes against honor, addressing crimes of
libel, slander and defamation from their definitions by the brasilian Penal Code. The subject of
our discussion is the material and moral damages that may be caused by these crimes and the
possible accountability front of the civil sphere, that is independent of criminal responsibility.
Key-words: Responsibility. Civil. Crimes. Honor.
42 Acadêmico de Direito pela Universidade Estadual da Paraíba. Estudante. E-mail:
[email protected].
43 Acadêmico de Direito pela Universidade Estadual da Paraíba. Estudante. E-mail:
[email protected]
44 Acadêmico de Direito pela Universidade Estadual da Paraíba. Estudante. E-mail:
[email protected]
54
1. INTRODUÇÃO
É natural do ser humano possuir profundo interesse pela vida daqueles
que os circundam. Esse fato pode ser facilmente comprovado quando se vê
que em todo contexto de um diálogo ou de uma conversa mais casual no
convívio social, o centro primordial reside, em regra, acerca do contexto social
de outros indivíduos, que fazem ou não parte da conversação, mas de algum
modo são inseridos naquele determinado círculo social.
No entanto, a partir do momento em que determinados indivíduos,
valendo de artifícios como esses, os utilizam em desfavor de outros, com o
dolo de ofender-lhes a sua dignidade pessoal, fazendo-os muitas vezes
passarem por constrangimentos desnecessários que podem afetar a moral, a
honra e o respeito que aquele indivíduo tem no circulo social em que está
incluído, teremos ai uma lesão que, em casos bem tipificados pela lei penal (art
138 ao 145 do CP), se configura como crime. São os chamados ―Crimes
Contra a Honra‖ (Calúnia, Difamação e Injúria), para os quais foi dedicado um
capítulo específico do nosso Código Penal.
Esses delitos, quando cometidos, diuturnamente ocasionam danos de
ordem moral e não poucas vezes, com cumulação material. Sendo assim, além
da responsabilidade penal, estaríamos diante da possibilidade, também, de
reparar civilmente?
Todavia, nem tudo que se fala pode ser definido como calúnia, injúria ou
difamação, mas somente aquilo em que couber na tipificação desses delitos.
Sabendo-se, entretanto, que sendo configurada a ofensa ao bem jurídico da
honra do indivíduo, protegido pela Constituição Federal, não apenas poderá
haver conseqüências de natureza penal para o praticante dos delitos em
questão, cabendo-se também, a reparação no âmbito civil.
Tendo em vista essas considerações iniciais, teceremos o seguinte
estudo objetivando a análise dos danos contra a honra, abordando elementos
característicos das espécies desses crimes e sua relação com a respectiva
reparação civil.
55
2. CRIMES CONTRA A HONRA
A honra é um direito da personalidade protegido pela Constituição
Federal, de maneira a ser considerado direito constitucionalmente inviolável
(Art. 5o, inciso X). Segundo Greco (2009, p.415): ―Sabemos que a honra é um
conceito que se constrói durante toda vida e que pode, em virtude de apenas
uma única acusação leviana, ruir imediatamente.‖
A honra é analisada pela doutrina de duas formas: honra objetiva, que
se refere ao conceito que o sujeito goza no meio social em que vive e a honra
subjetiva, que nada mais é do que a opinião que a pessoa tem de si mesma.
Uma prática ofensiva a honra subjetiva do lesado também poderá feri-lo
moralmente perante a sociedade da qual faz parte. Podemos usar como
exemplo, o caso de se chamar alguém de desonesto, pode prejudicar não só
sua honra subjetiva, porém, mais ainda a sua honra objetiva, visto que tal
afirmação pode prejudicá-lo de tal forma em sua dignidade moral e seu meio
social que até mesmo prejudique a possibilidade deste obter um bom emprego
ou até mesmo um cargo de confiança na empresa em que por ventura já
trabalhe.
Os crimes contra a honra podem ser praticados por qualquer pessoa,
não se exigindo qualquer qualificação ou condição especial por parte do sujeito
ativo. Logo, diante da inexigência de qualquer requisito, em especial do infrator,
trata-se, portanto, de crime comum.
Os meios de execução desses crimes são a linguagem falada, escrita,
mímica ou até mesmo por meio de símbolos ou figuras. O sujeito passivo dos
delitos que atingem a honra são apenas as pessoas físicas, regra geral.
Contudo, há que se observar também as situações ou causas em que o sujeito
passivo pode vir a ser uma pessoa jurídica, sendo, aliás, ponto de divergência
entre os doutrinadores, ou a depender da espécie que se está tratando, um
menor, doente mental, morto. Por serem exceções intricadas não farão parte
deste artigo.
São crimes formais, de forma que não se exige a ocorrência do
resultado de efetivamente causar dano à honra de alguém. O Código Penal
56
tipificou três delitos contra a honra: Calúnia, Injúria e Difamação. Os quais
detalharemos a seguir:
2.1 Calúnia
É o mais grave dos crimes contra a honra, previsto pelo Código Penal. É
descrita na lei penal como imputação falsa de um fato definido como crime.
Assim, o mero pronunciamento de expressões ou frases vagas sem qualquer
alusão a um acontecimento ou episódio atribuído a outrem, imputação de
atributos pejorativos à pessoa da vítima que não se finde como fato (injúria), se
tratando de fato atípico ou previsto como contravenção penal somente poderá
configurar em tese outro delito contra a honra, ou seja, difamação ou injúria. É
necessário também que seja falsa a imputação, pois, sendo verdadeira, não se
caracterizará como crime de calúnia.
É classificado como sendo crime comum, formal, doloso, de forma livre,
instantâneo; comissivo (pode também ser omissivo impróprio), monossubjetivo,
unissubsistente ou plurissubsistente, transeunte e de conteúdo variado.
O bem juridicamente protegido pela norma que criminaliza essa conduta
é a honra objetiva, ou seja, o que o indivíduo goza em seu meio social.
A calúnia se consuma quando um terceiro, que não seja o sujeito
passivo, toma conhecimento da imputação falsa, de fato definido como crime.
Dependendo do meio pelo qual é executado o delito, há possibilidade de ser
reconhecida a tentativa. Noronha (1991 apud GRECO, 2009, p.428) preleciona
o seguinte:
Em regra, opinam os autores pela inadimissibilidade da calúnia
meramente oral: ou a imputação é proferida ou não; melhor se diria:
ou é conhecida ou não. No caso de alguém imputar oralmente um
crime a outrem e não ser ouvido é como se não o tivesse feito,
perdendo interesse a questão pela impossibilidade de prova.
Na calúnia por escrito não ocorre o mesmo. Já agora existe um iter não mais se trata de crime de único ato (unico acto perficiuntur) – que
pode ser fracionado ou dividido. Se uma pessoa, v.g., prepara
folhetos caluniosos contra outra e está prestes a distribuí-los, quando
é interrompido por esta, há, por certo, tentativa. Houve início de
realização do tipo. Este não se integralizou, por circunstâncias alheias
à vontade do agente.
57
Neste crime comum, o sujeito passivo poderá ser pessoa jurídica, desde
que em crimes ambientais. Qualquer pessoa física, como já foi dito, pode
figurar no pólo passivo.
O art. 138, § 1o do Código Penal afirma que aquele que sabendo falsa a
imputação, a propala ou divulga, incorre na mesma pena. Nesse caso ao
contrário do caput do art. 138, só se admite o dolo direto.
2.2 Difamação
Segundo o art. 139 do Código Penal, este crime é tipificado como sendo
difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo a sua reputação, ou seja, assim
como a calúnia atinge a honra objetiva, contudo, diverge dela no sentido de
não necessariamente o fato tem que ser falso, nem tipificar uma conduta
criminosa. Contudo, se o fato imputado constituir contravenção penal, poderá
configurar o delito de difamação, tendo em vista que, para que se configure o
delito de calúnia, obrigatoriamente, deve existir uma imputação falsa de fato
definido como crime.
Doutrinariamente é classificada como crime comum, formal, doloso, de
forma livre; comissivo (podendo ser omissivo impróprio), instantâneo,
monossubjetivo, unissubsistente ou plurissubsistente e transeunte (via de
regra).
O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa física e o passivo qualquer
pessoa, física ou jurídica. Se monossubsistentes, não se admite a tentativa,
pois os atos que compõem o iter criminis não podem ser fracionados. Se
plurissubsistentes, é impecavelmente admissível a tentativa.
2.3 Injúria
É o mais brando de todos os tipos penais dos crimes contra a honra
tipificados pelo Código Penal (art. 140), ou seja, o menos gravoso de todos
estes. Contudo, pode se tornar na mais grave infração penal ofensiva a honra
se consistir na utilização de elementos referidos a raça, cor, etnia, religião,
origem ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência, podendo ser
denominada de injúria preconceituosa, sendo a pena para esta equivalente a
58
pena por homicídio culposo, porém, ainda mais severa, pois, se comina uma
pena de reclusão de 1 a 3 anos e multa, consistindo a pena do homicídio
culposo de 1 a 3 anos de detenção. Um tipo intermediário de injúria seria a
injúria real, tipificada pelo § 2o do art. 140 do Código Penal, cuja pena equivale
a da difamação.
A injúria atinge a honra subjetiva do indivíduo, ou seja, o que ele pensa
(considera) de si mesmo, ou seja, o sentimento de dignidade da vítima, ao
contrário dos outros dois tipos apresentados anteriormente que ofendem a
honra objetiva.
De regra não existe imputação de fatos na injúria, mas constitui-se de
atributos pejorativos à pessoa da vítima. Como exemplo, acusar alguém de
infidelidade conjugal é injúria, porém, dizer a terceira pessoa que a vítima
estava em um motel, no dia 20/08/2008 com uma ―garota de programa‖, sendo
a vítima casada, é caracterizado como difamação. Caso a imputação seja falsa
e de fato criminoso se tem a calúnia. Nesse mesmo sentido tem sido o
entendimento do STF (RT 820/490):
Calúnia, difamação e injúria: distinção - STF: Para a caracterização
dos crimes de calúnia e difamação requer-se que a imputação verse
sobre fato determinado. Embora desnecessário maiores detalhes,
essencial é que o fato seja individualizável, tenha existência histórica
e possa, assim, ser identificado no tempo e no espaço. Se for
criminoso, poderá haver calúnia e, em caso contrário, difamação.
Ausente a determinação, configura-se apenas o delito de injúria.
Situação concreta em que o denunciado atribuiu qualidades negativas
ao ofendido, relacionadas a fatos vagos e imprecisos, o que afasta a
possibilidade de enquadramento da conduta como difamação,
restando a viabilidade de qualificar a hipótese como crime de
injúria(...).
É doutrinariamente classificada como crime comum, doloso, formal, de
forma livre, comissivo (admitindo-se a modalidade omissiva, caso o agente
tenha o caráter de garantidor), instantâneo, monossubjetivo, plurissubsistente
ou unissubsistente e transeunte (via de regra).
Tratando-se de crime comum qualquer pessoa pode ser sujeito ativo,
contudo, as pessoas jurídicas não podem ser passivos, pois não possuem
honra subjetiva, contudo as demais pessoas é plenamente aceito que figurem
como sujeitos passivos, mesmo os inimputáveis.
59
Consuma-se a injúria no momento em que a vítima toma conhecimento
das palavras ofensivas à sua dignidade ou decoro, independente da presença
ou não da vítima no momento em que o agente profere a injúria. Dependendo
do
meio
de
execução
da
injúria,
poderá
ser
caracterizado
como
plurissubsistente o crime, sendo, nestes casos, perfeitamente admissível a
configuração de tentativa de injúria, por exemplo, quando feita pelo meio
escrito.
De acordo com o disposto nos incisos I e II do § 1o do art. 140 do Código
Penal, o juiz pode deixar de aplicar a pena caso o ofendido tenha provocado a
injúria de forma direta e reprovável, e no caso de retorsão imediata, que
consista em outra injúria. Trata-se de possibilidades, in casu, de concessão de
perdão judicial nas hipóteses previstas.
3. RESPONSABILIDADE CIVIL
Viver em sociedade exige dos indivíduos a resposta por seus atos,
atitudes e reações, como também uma conduta que não apresente atos
nocivos, danosos ou prejudiciais a outro indivíduo, dos quais ocasione ou
possam resultar prejuízos. Desta forma, cada indivíduo possui a obrigação de
não praticar ato(s) ilícito(s).
Assim, uma pessoa pode ser incumbida de reparar o prejuízo causado a
outra, por fato próprio, de pessoas ou coisas que dela dependam, a esta
obrigação chama-se responsabilidade. O dever de indenizar não tem como
razão apenas o ilícito civil, uma vez que um dano pode ser causado sem que
seja cometido, em sentido estrito, ato ilícito. Em outras palavras, o ato do
agente pode não infringir norma de ordem pública, contudo como houve dano
estará obrigado a repará-lo.
A resposta perante os atos praticados e a obrigação de não praticar atos
ilícitos nos remete à idéia de responsabilidade civil que segundo Stolze e
Pamplona (2004), deriva da agressão a um interesse eminentemente particular,
sujeitando o infrator ao pagamento de uma compensação pecuniária à vítima,
caso não possa repor in natura o status quo ante de coisas.
A
60
responsabilidade civil se organiza em torno do interesse particular da vítima de
perdas e danos, visando à reparação do prejuízo em proveito da pessoa
lesada.
O nosso Código Civil determina, com previsão em seus artigos 186 e
187 que comete ato ilícito aquele por ação ou omissão voluntária, negligência
ou imprudência, viola direito e causa dano a outrem, ainda que exclusivamente
moral; como também o titular de um direito que o exerce extrapolando os
limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons
costumes.
Dependendo da gravidade e das conseqüências do ato ilícito, ele pode
repercutir na esfera cível e na criminal. O ato pode infringir uma norma de
direito público, se caracterizando como crime e acarretar prejuízo à vítima.
Como exemplo, podemos citar os crimes contra a honra, quais sejam calúnia,
injúria e difamação, que se encontram inseridos na gama dos atos ilícitos.
Estes crimes geram, além da responsabilidade penal, a responsabilidade civil
para
aqueles
que
venham
a
praticá-los.
Corroborando
com
esse
posicionamento nos diz o Art. 91, I do CP que são efeitos da condenação
tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime, como
também o Art. 927 do CC-02, afirmando que quem, por ato ilícito, causar dano
a outrem, fica obrigado a repará-lo.
3.1 Dano Moral e Material
Necessário se faz primeiramente definir o que seja dano. Trata-se de um
sinônimo de prejuízo, significando uma lesão a um interesse juridicamente
tutelado, seja ele patrimonial ou não, fruto de uma ação ou omissão do agente
infrator. O dano é o principal elemento daqueles necessários à configuração da
responsabilidade civil.
O dano moral é o prejuízo causado ao patrimônio imaterial de um
indivíduo, ou seja, aquele que resulta em lesões à honra, à paz de espírito, aos
credos, à vida no seu âmbito físico e psicossomático, aquele que macula o
61
íntimo do ser. Em contrapartida, o dano material é a lesão aos bens e direitos
economicamente apreciáveis do seu titular.
Justamente a honra é extremamente atingida nos crimes de calúnia,
injúria e difamação, entendendo-se por honra um bem imaterial, o conjunto de
considerações da pessoa que lhe conferem consideração social e estima
própria. A honra pode ser subjetiva (apreço próprio, juízo de dignidade que
cada um tem de si) ou objetiva (aquilo que as pessoas pensam a respeito do
indivíduo, ou seja, é a reputação, o respeito, a consideração, a fama etc.,
gozados no meio social).
A grandiosidade deste bem imaterial está expressa como garantia
fundamental no Art. 5° da Constituição Federal de 1988, inciso X: ―são
invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas,
assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de
sua violação‖. No mesmo artigo, inciso V, o Texto Magno declara que é
assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização
por dano material, moral ou à imagem.
Os crimes de calúnia, injúria e difamação podem gerar não só danos
morais como também materiais, pois nada impede que ambos os interesses
coexistam como pressupostos de um mesmo direito. O dano poderá lesar
interesses extrapatrimoniais como também patrimoniais. A jurisprudência tem
admitido essa coexistência, como se percebe do enunciado da Súmula 37 do
Superior Tribunal de Justiça: ―são cumuláveis as indenizações por dano
material e dano moral oriundos do mesmo fato‖.
Nos crimes contra a honra (calúnia, injúria e difamação) o dano
patrimonial indireto é uma conseqüência possível, todavia não necessária, do
evento que causa prejuízo extrapatrimonial, constituindo um dano moral que
prejudicará o patrimônio ou economia da vítima. Ilustrativamente podemos citar
o exemplo de um trabalhador empregado que é caluniado por um ex-colega de
furtar dinheiro do caixa de seu antigo empregador ao final do expediente,
gerando assim descrédito perante o seu novo empregador e conseqüente
demissão; não só isso, mas a calúnia dificultou uma nova recolocação no
mercado de trabalho e atingiu sua honra objetiva. Teremos desta situação, no
62
tocante à responsabilidade civil, danos morais e materiais com indenizações
respectivas.
Além da responsabilidade penal, os crimes contra a honra acarretam a
responsabilidade civil, uma vez que geram dano a um bem imaterial tutelado
juridicamente e posto como uma garantia fundamental. Vale ressaltar que a
responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar
mais sobre a existência do fato ou sobre a autoria, quando estas questões se
acharem decididas no juízo criminal.
3.2 Responsabilidade Civil nos Crimes Contra a Honra
Dispõe o art. 953 do Código Civil:
A indenização por injúria, difamação ou calúnia consistirá na
reparação do dano que delas resulte ao ofendido.
Parágrafo único. Se o ofendido não puder provar prejuízo material,
caberá ao juiz fixar, equitativamente, o valor da indenização, de
conformidade com as circunstancias do caso.
Logo no começo do artigo, se diz que no caso de injúria, difamação ou
calúnia, há obrigação de reparar o dano. Este dano a que este dispositivo se
refere é o dano patrimonial. Por exemplo, podemos citar a hipótese de a vítima
perder o emprego em virtude de falsa imputação da prática de crimes
infamantes, como furto, apropriação indébita, fazendo também surgir
conjuntamente, inumeráveis dificuldades para a obtenção de outra colocação
laborativa.
De fato, não é tão simples, em muitos casos, obter a prova do prejuízo
material. Tendo isto em vista, manda o parágrafo único do referido artigo que, à
sua falta, competirá ao juiz definir, equitativamente, o valor da indenização, de
consonância com as conjunturas do caso.
Sobre a matéria preleciona Diniz:
O Código Civil, art. 953 e parágrafo único, prescreve que a
indenização por injúria, difamação ou calúnia consistirá na reparação
do dano que delas resulte ao ofendido. Se este não puder provar o
prejuízo material que sofreu, competirá ao juiz fixar, equitativamente,
63
o valor da indenização, de conformidade com as circunstâncias do
caso, evitando-se, obviamente, locupletamento indevido do lesado.
Assim, o magistrado terá poder discricionário de decidir por equidade,
atendendo, com prudência objetiva, as peculiaridades de cada caso:
degradação infamante, atentado ao bom nome, situação vexatória
etc. (DINIZ, 2009, p.150).
Da mesma maneira preleciona Gonçalves, fazendo uma comparação
entre o atual dispositivo do Código Civil de 2002 e o antigo dispositivo do
Código Civil de 1916:
O parágrafo único do mencionado art. 953 concede ao juiz o poder
discricionário de decidir por equidade e de encontrar a medida
adequada a cada caso, ao arbitrar o dano moral. Tal disciplina
mostra-se bem melhor do que a do parágrafo único do art. 1.547 do
Código Civil de 1916, que prefixava o quantum do dano moral com
base no valor da multa prevista no Código Penal para os crimes de
calúnia, difamação e injúria.(GONÇALVES, 2003, p.40).
4. CONCLUSÃO
Entendemos que os crimes contra a honra, ou seja, a calúnia, a injúria e
a difamação acarretam além da responsabilidade criminal, a responsabilidade
civil, uma vez que causam danos de ordem material e moral. Essas duas
espécies de danos correspondem, como não poderia deixar de ser, a
indenizações diferentes, por constituírem danos distintos.
Os delitos em questão serão tratados tanto na esfera criminal, como na
esfera
cível,
porém
de
forma
diferente,
uma
vez
que
ambas
as
responsabilidades, civil e criminal são independentes. É válido frisar que
quando se acha definido no juízo criminal questões quanto à materialidade do
fato ou sua autoria, tais pontos não poderão mais ser questionados no juízo
cível.
A prática destes delitos pode acarretar sérios danos de ordem moral às
suas vítimas, podendo tais danos ser superiores em conseqüência aos danos
materiais oriundos dos mesmos delitos, de tal forma, que a apuração se faz
necessária nas esferas civil e criminal.
64
5. REFERÊNCIAS
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65
ASPECTOS CONTROVERTIDOS DO TECEIRO
PROGRAMA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS (PNDH – 3)
Camilo de Lélis Diniz de Farias¹
RESUMO
Recentemente instituído pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da
República, o Terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH - 3) representa uma
tentativa de avanço na defesa e luta dos direitos humanos pelo estado brasileiro, tendência que
teve origem após a segunda guerra mundial, com o processo de universalização de tais
direitos, expressa em diversas declarações, tratados e convenções internacionais, revelando o
caráter supranacional dos direitos humanos. Porém, o programa apresenta diversos pontos
controversos, que podem representar retrocessos ao invés de avanços, e suscitam discussões
acerca de sua inclusão em um documento de direitos humanos. O objetivo do presente artigo é
analisar os principais pontos controvertidos do PNDH -3 numa ótica jurídica, situando o
programa dentro da perspectiva histórica de universalização dos direitos humanos.
Palavras-chave: Direitos Humanos. Direitos Fundamentais. PNDH – 3. Liberdade
ABSTRACT
Recently introduced by the Special Secretariat for Human Rights Presidency of the Republic,
the Third National Program for Human Rights (PNDH - 3) represents an attempt to advance the
defense and fight for human rights by the Brazilian state, a trend that originated after World War
II with the process of universalization of these rights, expressed in various international
declarations, treaties and conventions, revealing the feature supranational of human rights.
However, the program has several controversial points, which may represent setbacks instead
of progress, and raise discussion about its inclusion in a document of human rights. The aim of
this article is to analyze the main points at issue of PNDH -3 in a legal perspective, putting the
program into the historical perspective of universal human rights.
Keywords: Human rights. Fundamental rights. PNDH – 3. Freedom
66
1. INTRODUÇÃO
1.1 PNDH – 3: histórico e estrutura
Após a segunda guerra mundial, a necessidade de defesa dos direitos
humanos adquiriu uma maior importância, haja vista a grande barbárie ocorrida
na guerra, o que resultou numa ideologia de solidariedade entre os povos, que
culminou na Declaração universal dos direitos do homem e do cidadão,
assinada por 51 países, em 1948,iniciando a terceira geração dos direitos
fundamentais.
Nesse contexto surge o processo de universalização dos direitos
humanos, o que lhes confere um caráter supranacional, ou seja, os direitos
humanos deixam de ser exclusividade de alguns poucos Estados, como
Estados Unidos da América e França e ganham importância mundial,
adotando-se consensos internacionais acerca das questões mais importantes
em relação aos mesmos, cristalizados nos diversos tratados e convenções
internacionais ocorridas após 1948.
A adoção de sanções internacionais aos países que violem os direitos
humanos é outra amostra de seu caráter universal. Atualmente, porém, criticase a negligência dos organismos internacionais em promover efetivamente tais
sanções, tendo em vista que a China, apesar de promover aberta e
institucionalmente o cerceamento de direitos como liberdade religiosa e de
expressão, além de promover ações como o massacre da Praça da Paz
Celestial, em 1989, não sofre atualmente nenhuma espécie de bloqueio ou
sanção internacional.
A tendência de universalização, defesa e luta pelos direitos humanos se
reflete também na arte e cultura popular. A canção Blowin’In The Wind, de
autoria do cantor e compositor estadunidense Bob Dylan, considerada o hino
dos direitos civis, é um marco no ativismo cultural em defesa dos direitos
humanos.
Seguindo a tendência supracitada, em 1996, foi lançado o Primeiro
Plano Nacional dos Direitos Humanos, após várias denúncias internacionais de
violação aos direitos humanos no Brasil. Revogado pelo decreto nº 4229, o
67
programa deu lugar ao PNDH – 2, de 2002. Posteriormente, em 2009, foi
lançada a terceira versão do programa, o PNDH – 3.
Os Programas Nacionais de Direitos Humanos foram criados pelo
Governo Federal, através do Ministério da Justiça, com a participação de
amplos setores da sociedade civil, e apresentam propostas de caráter
administrativo, legislativo, político, cultural e social, visando à garantia e
proteção aos direitos humanos.
Instituído com o decreto nº 7037, de 21 de dezembro de 2009, o
Terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos encontra-se organizado em
torno de seis eixos diretores, 25 diretrizes, 78 objetivos estratégicos e 521
ações programáticas sobre temas variados como interação democrática entre
Estado e sociedade civil, desenvolvimento e direitos humanos, segurança
pública, acesso à justiça, direitos das mulheres e das minorias, acesso à terra,
educação, saúde, garantia de um meio ambiente saudável, dentre outros
A elaboração do PNDH – 3 envolveu debates entre juristas, setores da
sociedade civil e movimentos sociais, sob a coordenação da Secretaria
Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. A cada proposta
apresentada são indicados órgãos governamentais como responsáveis e
parceiros para a efetivação da referida proposta. Também são feitas
recomendações especiais para tais órgãos, no sentido de promover a aplicação
mais eficiente das medidas indicadas.
A despeito de sua elaboração participativa, o PNDH – 3 traz diversas
proposições polêmicas, que carecem de uma discussão mais ampla, e que
podem representar – ao invés de proteção – uma afronta aos direitos humanos.
A legalização do aborto, o controle à imprensa, a criação da comissão da
verdade, com o intuito de investigar e punir os crimes cometidos pelos militares
durante o período da ditadura militar (1964-1985), a retirada de símbolos
religiosos de estabelecimentos públicos, dentre outros, são alguns pontos que
merecem uma análise mais profunda, a qual faremos mais adiante.
68
2. PRINCIPAIS PONTOS CONTROVERTIDOS DO PNDH – 3
2.1 Legalização do aborto
O objetivo estratégico III, diretriz 9 do eixo orientador III do PNDH – 3,
intitulado
―Garantia dos direitos das mulheres para o estabelecimento das
condições necessárias para sua plena cidadania.‖ traz em sua ação
programática ―g‖ a seguinte proposição:
g) Apoiar a aprovação do projeto de lei que descriminaliza o aborto,
considerando a autonomia das mulheres para decidir sobre seus
corpos.
Responsáveis: Ministério da Saúde; Secretaria Especial de Políticas
para as Mulheres da Presidência da República; Ministério da Justiça
Parceiros: Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência
da República; Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da
República
Recomendação: Recomenda-se ao Poder Legislativo a adequação
do Código Penal para a descriminalização do aborto.
Mais adiante, o programa também propõe a implementação de
mecanismos de monitoramento dos serviços de atendimento ao aborto
legalmente autorizado, como forma de garantir o cumprimento e o acesso a tais
serviços.
O aborto, definido como a interrupção da gravidez, com ou sem retirada
do feto, mas resultando sempre na morte deste, é uma das grandes bandeiras
de vários movimentos sociais, notadamente os feministas. Porém, a exigência
do direito ao aborto por parte desse e de outros movimentos sociais, o que
ensejou sua inclusão no PNDH – 3, revela um típico exemplo de abuso de
direito, exercício irregular de faculdade jurídica, que acarreta em dano a
outrem, e em violação de seus direitos.
A justificativa posta na proposição citada pauta-se na autonomia
reprodutiva da mulher baseada, por sua vez, no direito à integridade física e ao
próprio corpo. Sabemos que estes são direitos inerentes à condição de pessoa,
porém, a nosso ver, o aborto não é situação contemplada por estes direitos.
Autonomia é a faculdade de se governar por si mesmo. A alegação de
autonomia reprodutiva como justificativa para legalização do aborto se mostra
improcedente pela própria definição da palavra. Como sabemos da biologia, a
geração de um embrião é fruto da fecundação do gameta feminino pelo
69
masculino, sendo, portanto necessária a participação do ente masculino na
fecundação, seja ela in vivo ou in vitro.
Logo, seria, no mínimo, contraditório tratar o aborto sob a temática da
autonomia reprodutiva da mulher, tendo em vista que a mulher, por si só,
jamais conseguiria produzir um embrião. Ademais, a autonomia é uma noção
individual, ou seja, só se é autônomo em relação a si mesmo, e o embrião ou
feto, além de constituir vida, tem sua formação condicionada à participação,
masculina e feminina, sendo injusto reduzi-lo à órbita do corpo da genitora.
Também não concordamos que o feto seja parte do corpo da mulher,
como afirmam aqueles que defendem o aborto. No momento da fecundação, a
fusão dos gametas masculino e feminino cria uma nova vida, um novo ser, com
carga genética inteiramente diferenciada de qualquer outro ser humano.
Ives Gandra Martins, citando Jêrome Lejeune, médico e cientista
francês, responsável pela descoberta das causas genéticas da síndrome de
down, afirma que
No momento da concepção, pela fecundação do óvulo pelo
espermatozóide, o embrião surge e passa a ter um código genético
distinto da mãe, o que mostra tratar-se de um ser diferente da mãe e
não mero apêndice do organismo feminino. (...) Não é possível se
pretender dizer que não se está diante de uma vida humana.
(MARTINS, 2005, p. 117 apud MENDES; COELHO; BRANCO, 2009,
p. 397)
Mesmo que o feto fosse parte do corpo da mãe, não se justificaria a sua
retirada, pois o direito ao próprio corpo é limitado, não podendo seu titular
dispor livremente dele, promovendo ablação de suas partes.
Alguns doutrinadores entendem, apesar de considerarem o nascituro e o
embrião como formas de vida, que os mesmos não são dotados de
personalidade não sendo, assim, sujeitos de direito, tendo apenas expectativa
de direitos, tendo em vista que o Código Civil determina que a lei põe a salvo,
desde a concepção, os direitos do nascituro. Tal entendimento foi o que levou,
no ano de 2008, à decisão, por parte do Supremo Tribunal Federal, da
constitucionalidade da lei que permite a pesquisa com células tronco
embrionárias humanas, mesmo que estas viessem a ser destruídas ou
comprometidas nas pesquisas.
70
Porém, a definição de que a personalidade inicia-se quando do
nascimento com vida não é pacífica na doutrina. Maria Helena Diniz (2009, p.
204), civilista de renome mundial assevera que ―Na vida intra-uterina tem o
nascituro e na vida extra uterina tem o embrião, concebido in vitro,
personalidade jurídica formal, no que atina aos direitos da personalidade, visto
ter carga genética diferenciada desde a concepção, seja ela in vivo ou in vitro” .
Tal entendimento é endossado pela previsão legal de que o natimorto,
ou seja, aquele que nasce morto e, teoricamente não teria personalidade
jurídica, tem direito ao nome, à sepultura, à imagem, à integridade do corpo
post mortem, dentre outros direitos personalíssimos.
Ainda, afirma Paulo Gustavo Gonet Branco que
Não se há de condicionar o direito à vida a que se atinja determinada
fase de desenvolvimento orgânico do ser humano. Tampouco cabe
subordinar esse direito fundamental a opções do legislador
infraconstitucional sobre atribuição de personalidade jurídica para
atos da vida civil. (....) Havendo vida humana, não importa em que
etapa de desenvolvimento e não importa o que o legislador
infraconstitucional dispõe sobre personalidade jurídica, há o direito à
vida. (MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p. 396.)
Diversas são as menções ao direito à vida, por parte do nascituro no
ordenamento jurídico nacional, bem como em tratados e convenções
internacionais das quais o Brasil foi signatário.
A própria tipificação penal do aborto como um crime contra a vida,
prevista nos artigos 124 a 126 do Código Penal vigente é uma forma de
estender proteção ao nascituro, reconhecendo-lhe como portador de vida
humana e, portanto, inviolável. Ressalte-se que desde 1830, com a
promulgação do Código Criminal do Império, o aborto é tipificado como um
crime contra a vida.
O já citado Pacto de São José da Costa rica, do qual o Brasil foi
signatário em 1992 estabelece que a defesa pela lei do direito à vida deve
começar desde a concepção, e que ninguém pode ser privado de sua vida de
forma arbitrária.
Já a Constituição Federal de 1988 confere o direito de inviolabilidade à
vida, direito irrenunciável, indisponível e que não pode ser sujeito à
interferência de terceiros. Logo, tal proteção legal estende-se ao nascituro,
71
posto que este já é portador de vida própria, diferenciada da vida da mãe e,
portanto, inviolável.
Logo, sendo o nascituro um ser com carga genética própria, pertencente
à espécie humana, configura como um ser humano, e tem seu direito à vida
garantido, não podendo ser violado ou posto em questão por outrem. Não se
justifica, assim que, em nome do direito ao próprio se sacrifique o direito à vida
de outra pessoa, que sequer tem chances de se defender da ação que lhe
retira a vida.
Acrescentamos ao entendimento acima que, mesmo havendo, por parte
dos legisladores, a reforma ao Código Penal no sentido de descriminalizar o
aborto, este continuaria a ser uma conduta delituosa, tendo em vista que a
Constituição assegura a inviolabilidade da vida desde a concepção, não
podendo a lei infraconstitucional deliberar em sentido contrário, o que expressa
a impossibilidade formal e material da legalização do aborto.
Além disso, o aborto traz graves consequências psicológicas para a mãe
que o pratica. Marie Balmary, psicanalista francesa relata, de sua experiência
em consultório, que a prática do aborto gera uma situação de dor psíquica e
sentimento de perda por parte da mãe, mesmo quando ela tem a intenção de
praticar o ato.
O aborto não é direito. É antes um abuso, e uma prática obstativa de
direito. Portanto, o aborto jamais deve ser reconhecido como um direito da
mulher e, muito menos, deve figurar em um documento de Direitos Humanos,
pois o mesmo cria uma situação desproporcional, pondo o direito ao corpo
acima do direito à vida, do qual todos os outros direitos decorrem, além de
desrespeitar frontalmente os direitos do nascituro, tendo em vista que este já é
portador de direitos de personalidade, dentre os quais, o direito à vida.
2.2 Controle da imprensa
Em outra parte do PNDH – 3, mais especificamente na diretriz 22 do
eixo orientador V, objetivo estratégico I, temos como proposição o respeito aos
direitos humanos por parte dos meios de comunicação. Dentre as ações
programáticas a serem implementadas estão o estabelecimento do respeito
aos direitos humanos nos sistemas de radiodifusão, prevendo penalidades
72
administrativas como advertência, multa, suspensão da programação e até
cassação de concessão a tais sistemas, de acordo com a gravidade das
violações aos direitos humanos que venham a ser cometidas.
Atualmente, as emissoras de rádio e TV, para funcionarem legalmente,
necessitam de concessão pública, cuja competência é do Poder Executivo,
prevista em Constituição, mais especificamente no Art. 223.
Como vimos na proposta acima, a concessão pública testaria
condicionada à veiculação de uma programação politicamente correta, que
respeite os direitos humanos, sob penas diversas, inclusive de revogação da
concessão pública, sem a qual a emissora perderia sua permissão de
funcionamento.
Vale ressaltar que, atualmente, a suspensão ou cassação de concessão
pública para serviços de radiodifusão depende de decisão judicial, e sua não
renovação depende da aprovação de, no mínimo, dois quintos do Congresso
Nacional.
Mais adiante, ainda no mesmo objetivo estratégico, o programa propõe
outras ações, como suspensão de programação e publicidade atentatórias aos
direitos humanos, e suspensão de publicidade e patrocínio oficiais a meios de
comunicação que veiculem tais programações.
Também é proposta a criação de um ranking nacional de veículos de
comunicação comprometidos com os princípios dos direitos humanos, bem
como daqueles que cometem violações, o que denuncia a valoração, por parte
do governo, das programações veiculadas, indicando uma preferência estatal
por uma ou outra programação.
Tais propostas, aparentemente, são formas de incluir o respeito aos
direitos humanos em todas as esferas da sociedade, mormente nos meios de
comunicação. Porém, elas põem em risco um dos princípios fundamentais da
democracia: a liberdade de expressão, aí incluída a liberdade de imprensa.
Historicamente, o Brasil passou por dois períodos ditatoriais, durante os
quais havia forte controle em relação à imprensa, com a instituição de
mecanismos de censura, os quais avaliavam programações, músicas, livros,
73
textos, publicidade, dentre outras formas de comunicação que poderiam ser
veiculadas.
Porém, com a redemocratização ocorrida na década de 1980, O Estado
passa a manifestar seu repúdio à censura, defendendo a liberdade de
expressão, a qual não pode ser restringida por parte do poder público, salvo
em caso de estado de sítio.
Criar mecanismos de controle à imprensa, sob o pretexto de fomentar a
defesa aos direitos humanos é, portanto, uma prática perigosa, que pode
acabar configurando-se como censura, a qual é um verdadeiro retrocesso para
qualquer Estado que venha a se declarar democrático, tendo em vista que a
liberdade de expressão, como prontifica Edilson Farias, é ―o termômetro do
regime democrático‖ (FARIAS, 2001).
Aliás, a pretensão fundamental do direito à liberdade de expressão é
justamente a de impedir a prática de censura por parte do Estado. Lembremonos, também, que não é tarefa deste definir que opiniões, programações ou
ideias devam ser consideradas como válidas, inválidas, corretas ou incorretas.
Ao público é que cabe essa tarefa, de selecionar o que realmente lhe agrada.
Seguindo o mesmo entendimento, o constitucionalista Ives Gandra
Martins afirmou, em recente entrevista, que a imprensa é ―um dos pulmões da
democracia‖. Destarte, instituir censura à imprensa é fragilizar a democracia,
tornando-a mera fantasia. Vale ressaltar que em todos os regimes ditatoriais o
controle à imprensa se faz presente como um dos mais importantes meios de
manutenção do poder autoritário.
A respeito do tema, manifestou-se de forma magistral o insigne Rui
Barbosa:
"A imprensa é a vista da Nação. Por ela é que a Nação acompanha o
que lhe passa ao perto e ao longe, enxerga o que lhe malfazem,
devassa o que lhe ocultam e tramam, colhe o que lhe sonegam, ou
roubam, percebe onde lhe alvejam, ou nodoam, mede o que lhe
cerceiam, ou destroem, vela pelo que lhe interessa, e se acautela do
que a ameaça. Sem vista mal se vive. Vida sem vista é vida no
escuro, vida na soledade, vida no medo, morte em vida: o receio de
tudo; dependência de todos; rumo à mercê do acaso; a cada passo
acidentes, perigos, despenhadeiros. Tal a condição do país, onde a
publicidade se avariou, e, em vez de ser os olhos, por onde se lhe
exerce a visão, ou o cristal, que lha clareia, é a obscuridade, onde
perde, a ruim lente, que lhe turva, ou a droga maligna, que lha
perverte, obstando-lhe a notícia da realidade, ou não lha deixando
74
senão adulterada, invertida, enganosa". (BARBOSA, 1990, p. 37 apud
FARIAS, 2001)
Assim, instituir controle à imprensa, antes de constituir medida de
respeito aos direitos humanos, é uma forma de censura, de cerceamento da
liberdade de expressão e, como tal, deve ser repudiada pelo Estado e pela
sociedade.
2.3 Retirada de símbolos religiosos de estabelecimentos
públicos
Dentre as metas do PNDH – 3 está o estabelecimento de respeito à
liberdade e diversidade religiosa. Dentre as ações elencadas para cumprir tal
objetivo, estão o estabelecimento de mecanismos que possam impedir a
discriminação religiosa, a criação de Conselhos para a diversidade religiosa e a
promoção de campanhas sobre diversidade de religiões.
O Brasil foi resultado de intenso processo de miscigenação, produzindo
um espaço de grande diversidade étnica, cultural e religiosa. Coibir práticas de
discriminação religiosa é garantir a proteção à liberdade de culto e de opinião,
além de preservar a identidade nacional, profundamente marcada por
influências de diversas religiões.
Além das ações supracitadas, o plano propõe a retirada de símbolos
religiosos dos estabelecimentos públicos da União. O programa ainda estende
a orientação aos estabelecimentos estaduais, municipais e distritais.
A maioria dos estabelecimentos públicos, como órgãos administrativos,
Casas legislativas e tribunais portam símbolos religiosos, notadamente
crucifixos. Segundo o PNDH – 3, a retirada destes símbolos seria uma forma
de afirmação do Estado laico, isto é, sem credo ou religião oficial.
Desde a promulgação da Constituição de 1891, estabeleceu-se a
laicidade do Estado brasileiro. Tal medida visa à preservação da liberdade de
culto, fundamental ao exercício da democracia.
Todavia, o Estado laico não se confunde com o Estado ateu. Este nega
a existência de qualquer deus e, por vezes, cria situações de perseguição
religiosa. Foi assim na União Soviética, Albânia, China e em outros países que
seguiram a orientação política marxista, que tem em uma de suas plataformas
ideológicas a abolição da religião, concebida como ―ópio do povo‖
75
Já o Estado laico, como o brasileiro, não despreza, mas sim protege a
religião. Nossa Constituição, por exemplo, garante a assistência religiosa nas
entidades civis e militares de internação coletiva, isenta estabelecimentos
religiosos do pagamento de impostos, faculta o ensino religioso nas escolas
públicas, e confere efeitos civis à união matrimonial religiosa.
Outro exemplo a ser citado é a invocação feita a Deus no preâmbulo da
Constituição. Destarte, concluímos que nosso Estado é laico, não confessional,
porém não é ateu.
A retirada de símbolos religiosos de estabelecimentos públicos não é
afirmação da laicidade do Estado, mas sim uma tentativa de torná-lo ateu. A
defesa da diversidade religiosa não necessita que tais símbolos sejam banidos.
Convém ressaltar que a moral Cristã, representada pelo Crucifixo é uma
das bases de nossa formação cultural. Negar-lhe é negar a cultura do povo
brasileiro. Não se pode esquecer a importância da religião Cristã, em especial
a Igreja Católica para a formação cultural, ética e moral da nação brasileira.
Ademais, a presença de Crucifixos nos tribunais tem a missão
pedagógica de relembrar aos juristas o dever de agirem com prudência,
racionalidade e sensatez no exercício das funções da justiça, haja vista que,
segundo o Evangelho, Jesus foi condenado à morte num julgamento injusto e
marcado pela forte pressão popular. Assim, o Crucifixo mostra a necessidade
de justiça e de equidade para o pleno cumprimento das atividades jurídicas.
O próprio símbolo da justiça, a mulher vendada portando a balança
numa mão e a espada na outra é um símbolo religioso. Trata-se da deusa
Têmis. Porém, imortalizada na obra de Jhering como alegoria da justiça,
transcendeu o viés religioso, e se tornou um símbolo universal.
Retirar símbolos religiosos de estabelecimentos públicos não é afirmar a
laicidade do Estado, mas sim dar-lhe a falsa aparência de Estado ateu. O
Estado é laico para garantir que todos possam manifestar seus cultos, e não
para vedar a exposição de símbolos de quaisquer religiões em locais públicos.
Sabemos dos malefícios que um Estado que não respeita a diversidade
religiosa e a liberdade de culto provoca a seus cidadãos. Prejuízo semelhante
ocorre quando, em nome dessa liberdade, o Estado assume feições atéias,
76
coibindo manifestações religiosas em seus espaços públicos, negando a
identidade cultural de seu povo.
2.4 Comissão da verdade e punição aos crimes cometidos por
militares durante a ditadura militar
Outra meta estabelecida no PNDH – 3 é a criação da Comissão da
verdade, para apurar os crimes de violação aos direitos humanos cometidos
por agentes estatais durante o período fixado pelo Art. 8ª do ADCT da
Constituição, isto é, de 18 de setembro de 1946 até a data da sua
promulgação, 5 de outubro de 1988. O programa, porém, faz especial menção
à ação repressiva dos militares durante a ditadura militar (1964-1985).
Dentre as atribuições da Comissão estão promover meios que
possibilitem a busca dos corpos dos desaparecidos políticos do período,
requisitar documentos públicos e requerer junto ao judiciário acesso a
documentos privados e identificar, tornando públicas as estruturas utilizadas
para a prática de violação dos direitos humanos, bem como suas ramificações
no Estado e na sociedade.
Também se propõe a criação de centros de memória, departamentos de
história, museus, memoriais e centros de pesquisa e documentação sobre a
resistência à ditadura. Além das ações já citadas, também é prevista a
produção de material didático a ser utilizado na educação básica e superior
sobre o período do regime militar e sobre a resistência a tal ditadura.
Porém, o ponto mais controverso do tema é a possibilidade de revisão
da lei de anistia (Lei nº 6693/79), criando a possibilidade de responsabilização
civil e penal aos agentes estatais que tenham cometido tortura, assassinatos
ou outras práticas repressivas àqueles que participavam da resistência ao
regime militar.
A alegação principal é a imprescritibilidade dos crimes de tortura,
prevista
em
tratados
internacionais,
como
a
Convenção
sobre
a
Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes Contra a Humanidade,
de 1968, o que enseja a punição aos militares e agentes estatais que tenham
adotado tais práticas. Também se questiona a extensão da lei aos torturadores,
77
por não ser a tortura crime político ou conexo a este, hipóteses nas quais se
estendeu a anistia.
Todavia, como ressalta Aguiar (2008), crime político é aquele cometido
com o intuito de modificar, alterar o regime dominante no Estado, conceito
estendido às ações dos agentes governamentais no sentido de impedir tal
modificação, o que enquadraria a tortura na categoria de crimes políticos.
Ademais, a prescrição é apenas uma das formas de extinção de
punibilidade. A anistia também possui os mesmos efeitos, logo, mesmo que um
crime seja imprescritível, pode haver fim de punibilidade caso seja concedida
anistia.
Ressalte-se que a Constituição só reconhece como imprescritíveis os
crimes de racismo e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a
ordem constitucional e o Estado de direito. Havendo prescritibilidade, esta se
dá no período máximo de 20 anos, conforme o Art. 109 do Código Penal.
Destarte, quaisquer crimes prescritíveis cometidos há mais de 20 anos são
extintos de punibilidade.
Também
é
impossível
a
aplicação
da
Convenção
sobre
a
Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes Contra a Humanidade,
tendo em vista que o Brasil não foi seu signatário em 1968, e tampouco o é
atualmente, sendo a convenção uma norma alheia em relação ao nosso
ordenamento jurídico.
Ainda, a revisão da lei de anistia no sentido de punir os torturadores é
impossível, uma vez que o reconhecimento, por parte do Brasil, da tortura
como crime só se deu em 1997, com a lei nº 9455, e a previsão de
impossibilidade de anistia a crimes de tortura surgiu em 1988, com a
promulgação da atual Constituição, ambas posteriores à lei da anistia, de 1979,
excluindo-se, assim, a possibilidade de retroatividade da lei, a qual só ocorre
para beneficiar o réu ou o culpado.
Também é vedada a aplicação de analogia in mala partem no Direito
penal, o que afasta a possibilidade de enquadramento legal dos torturadores
em outras normas similares, dada a inexistência do crime de tortura à época
dos fatos ocorridos.
78
Merece destaque, também, que nem só os militares cometeram crimes
durante o período da ditadura militar brasileira. Os grupos de resistência,
notadamente as guerrilhas cometeram assassinatos, sequestros, assaltos e
ações terroristas. Aliás, o crime de terrorismo não foi contemplado pela lei de
anistia, e também consta como imprescritível nas mesmas declarações
internacionais utilizadas pelos defensores da revisão da lei de anistia para
sustentar seus pontos de vista.
Reconhecemos que houve práticas lamentáveis, como tortura, ocultação
de cadáveres, invasão a privacidade, dentre outras, por parte do Estado.
Porém, também houve práticas criminosas pela resistência. Ambos os lados
erraram, e a lei de anistia foi a forma mais sensata de promover a pacificação e
a reconciliação no Brasil.
Assim, além da impossibilidade jurídica, rever a lei de anistia é uma
forma de perturbar a estabilidade política do Brasil, em nome de um
revanchismo parcial e tendencioso.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como vimos, o PNDH – 3 enquadra-se no processo de universalização
dos direitos humanos, e representa uma tentativa, por parte do Governo
brasileiro, de consolidar a defesa e a luta pelos direitos humanos, fundamental
ao pleno exercício do Estado democrático de direito.
Todavia, em muitos pontos o programa falha, criando situações que,
antes de representarem avanços, são, na verdade, retrocessos democráticos e
de desrespeito, ao invés de respeito aos direitos humanos.
Deste modo, sob o pretexto de respeitar e garantir os direitos humanos,
o PNDH – 3 dá vazão a ideais anti democráticos, de ameaça, em vez de
proteção às liberdades dos indivíduos.
A legalização do aborto, o controle à imprensa, a retirada de símbolos
religiosos de estabelecimentos públicos, a revisão da lei de anistia, dentre
outras ações exemplificam o caráter dúbio e temerário do PNDH – 3, e
demonstram a necessidade de uma discussão ampla sobre o que realmente
79
são direitos humanos, e até onde o exercício desses direitos não se torna
abusivo, prejudicando os direitos de outrem.
Ademais, cumpre ressaltar que, mais importante do que prever um
catálogo de direito fundamentais, é, pra o Estado, garantir o pleno cumprimento
de tais direitos, dentro de limites racionais, de modo a evitar desrespeito aos
fundamentos do Estado de direito, sem o qual a efetivação dos direitos
humanos é impossível.
Por fim, acerquemo-nos de prudência em relação aos discursos que, por
sua aparência humanitária, nos impelem a aceitá-los, manifestando aprovação
e concordância com seus postulados. Providencial é, neste contexto, a frase do
filósofo alemão Arthur Schopenhauer: ―Quem espera que o diabo ande pelo
mundo com chifres será sempre sua presa‖.
4. REFERÊNCIAS
AGUIAR, Alexandre Magno Fernandes Moreira. O "movimento da esquerda
punitiva" e a revisão da Lei de Anistia. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n.
1973,.25nov..2008..Disponível.em:<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id
=12005>. Acesso em: 29 mar. 2010.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 17. ed. São Paulo:
Malheiros Editores, 2005.
CAVALCANTI, Carlos André Macêdo; SIMÕES, Daniel; PEIXOTO, Edson;
Costa, Moisés. História Moderna dos Direitos Humanos: Uma noção em
construção. In: TOSI, Giuseppe. (Org.). Direitos Humanos: história, teoria e
prática. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2005.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, volume 1: Teoria
Geral do Direito Civil. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
FARIAS, Edilsom. Democracia, censura e liberdade de expressão e informação
na Constituição Federal de 1988. Jus Navigandi, Teresina, ano 5, n.51, out.
2001..Disponível.em:<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2195>..Acesso em: 27 mar. 2010.
HERKENHOFF, João Baptista. Aborto: o legal e o existencial. Jus Navigandi,
Teresina,ano7,n.66,jun.2003..Disponível.em:<http://jus2.uol.com.br/doutrina/tex
to.asp?id=4185>. Acesso em: 27 mar. 2010.
80
GUIMARÃES, Diocleciano Torrieri. Dicionário Técnico-jurídico. 13. ed, São
Paulo: Rideel, 2010.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo
Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva,
2009.
NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 24. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2004.
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 24. ed. São Paulo: Saraiva,
1988.
81
AMPLIAÇÃO DO ROL DOS CASOS DE INELEGIBILIDADE:
O princípio constitucional da moralidade como condutor de uma verdadeira
democracia
Ayanny Justino Costa45
Gustavo Farias Alves46
Rodrigo Barros da Silva Ribeiro47
Wollney Niermeson Ribeiro Felix48
RESUMO
O artigo busca, através de uma revisão bibliográfica sucinta, a mudança do entendimento
quanto à aplicabilidade de dispositivo constitucional no tocante ao indeferimento do registro de
candidaturas, indo de encontro, inclusive, com o entendimento das mais altas cortes deste
país. Argumentando no sentido do resgatar a legitimidade dos representantes políticos e do
fortalecimento da democracia. O contexto político é apresentado para que se evidencie o
porquê dessas necessárias mudanças (de postura e de legislação) ainda não terem sido
realizadas. Juridicamente, ele parte da ponderação de princípios e da supremacia do interesse
público, para embasar as expectativas de autoaplicabilidade do princípio constitucional da
moralidade. Além de propor mudanças legislativas, com o mesmo aporte teórico, para a
mudança do status quo ante.
Palavras-chave: Direito Eleitoral. ―Fichas-sujas‖. Inelegibilidade. Princípio constitucional da
moralida
ABSTRACT
The article attempts, through a brief literature review, the change of opinion as to the
applicability of the constitutional provision regarding the rejection of registration applications,
meeting even with the understanding of the highest courts of this country. Arguing towards
rescuing the legitimacy of the political representatives and the strengthening of democracy. The
political context is presented that evidence for why these necessary changes (in attitude and
legislation) has not yet been implemented. Legally, he leaves the balance of principles and the
supremacy of public interest, to base expectations of self-administered the constitutional
principle of morality. In addition to proposing changes in law, with the same theoretical basis for
changing the status quo ante.
Key-Words: Electoral law. "Chips-dirty." Ineligibility. Constitutional principle of morality.
45
46
47
48
Bacharelando em Direito pela UEPB ([email protected]).
Bacharelando em Direito pela UEPB ([email protected]).
Bacharelando em Direito pela UEPB ([email protected]).
Bacharelando em Direito pela UEPB ([email protected]).
82
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem o propósito de traçar novas linhas no campo do
Direito Constitucional Eleitoral, a partir de ideias ―marginais‖, porém crescentes,
que induzem a novas práticas transformadoras, indo de encontro, inclusive,
com decisões tomadas pelas mais altas cortes deste país.
Apresentamos o contexto no qual reside o problema dos direitos
políticos e das inelegibilidades no Brasil. Trata-se de condicionantes de ordem
jurídica, mas também política, que dificultam a ampliação do rol dos casos de
inelegibilidade.
Após a contextualização, contra-argumentamos e expomos os nossos
motivos, de direito e de fato, utilizando da ponderação de princípios e da
supremacia do interesse público para que haja uma aplicação juridicamente
consistente do princípio constitucional da moralidade.
Baseados nos mesmos pressupostos sustentadores de uma posição
proativa dos órgãos judicantes, propusemos também as alterações legislativas,
não que elas sejam imprescindíveis, pois como mostraremos, uma simples
mudança de atitude e de aplicação do arcabouço constitucional existente já
seria, por si só, bastante para os fins desejados, mas é que se trata de uma
necessidade, ou pseudonecessidade (como veremos) de ―segurança jurídica‖.
A maior finalidade do presente trabalho é o resgate da legitimidade da
democracia representativa e uma consolidação da democracia participativa no
Brasil, através da ampliação do rol dos casos de inelegibilidades a cargos
públicos eletivos.
2. CONTEXTO POLÍTICO-JURÍDICO E INELEGIBILIDADES
Observa-se atentamente e com preocupações todos os escândalos
políticos nesta Nova República. São desvios de verbas públicas, tráfico de
influência, captação ilícita de sufrágio, corrupção passiva, estelionato, formação
de quadrilha ou bando, lavagem e ocultação de bens e valores, improbidade
administrativa etc.
83
São tantos os atos praticados por ―homens públicos‖ tipificados
penalmente, seja na legislação penal comum ou nas legislações especiais, que
fica difícil encontrar-se a legitimidade dos nossos representantes.
Há que se indagar da razão deste estado de coisas. A pergunta não é
―por que esses homens são eleitos‖, mas ―por que são eles elegíveis‖.
Por que é permitido que alguém com uma ficha corrida ―suja‖ se
candidate a qualquer cargo eletivo? Onde reside o problema?
Devemos sempre lembrar que legislar sobre inelegibilidades é sinônimo
de legislar contra os próprios interesses. Como um parlamentar vai estipular
uma nova causa de inelegibilidade ou ampliar os seus prazos se quando assim
o fizer irá impedir a sua própria candidatura na(s) próxima(s) eleição(ões)?
Temos, pois, dois caminhos a percorrer, para aceitar apenas homens e
mulheres comprometidos com o bem comum, a saber: o primeiro e imediato é
a mudança jurisprudencial da aplicação da legislação eleitoral e da constituição
vigentes, tomando posições contrárias, data vênia, ao Tribunal Superior
Eleitoral e ao Supremo Tribunal Federal. O segundo e mediato é a mudança na
legislação, feita não pelos parlamentares que aí estão, mas pela população,
através de projeto de lei de iniciativa popular, como veremos.
Situemo-nos no imenso ordenamento jurídico brasileiro, antes da análise
um pouco mais detida das proposituras. Por definição, inelegibilidade ―é a
ausência de aptidão para postular mandato eletivo‖49, e ela encontra-se no art.
14, §§ 4º, 6º, 7º e 9º, no art. 15 e no parágrafo único do art. 52 da Constituição
da República. Além do rol infraconstitucional presente na Lei Complementar
64/199050.
Política
e
juridicamente
há
uma
inaceitável
inércia
seja
não
estabelecendo novos casos de inelegibilidade que defendam a probidade
administrativa, seja não interpretando/aplicando de forma teleológica o
arcabouço legal existente. E é neste contexto pouco propício a mudanças que
devemos indicar novas práticas resguardadoras da Constituição da República e
da legitimidade da representação política.
49 PINTO: 2008, p. 164.
50 MORAES: 2008, p. 233 e ss.
84
3. PONDERAÇÃO DE PRINCÍPIOS E PREVALÊNCIA DO INTERESSE
PÚBLICO
A Constituição da República já enuncia no caput do seu art. 37 a
moralidade como princípio norteador da Administração Pública. Por isso,
quando defendemos comportamento ético-moral de detentores de cargos
públicos eletivos não nos atemos à simplista moralização ou hipermoralização
do Direito, mas à defesa intransigente da rigorosa aplicação de norma-princípio
positivada em nossa Carta Magna51.
Evidenciamos duas categorias de normas, quais sejam: normas-regras e
normas-princípios. Com a diferença, nestas, de uma hegemonia axiológiconormativa que permite a sua autoaplicabilidade.
De forma lapidar, e frequentemente citada, temos a definição que nos
ajudará nesta empreitada:
Princípio – já averbamos alhures – é, por definição, mandamento
nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição
fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o
espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e
inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do
sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido
harmônico. (grifo nosso) (MELLO: 2002, pp 807-808).
Após 1994 com a Emenda Constitucional de Revisão nº4 passou-se a
estudar a possibilidade de se indeferir o registro de candidatura aos pretensos
candidatos que não possuíssem exemplar vida pregressa. Veio o TSE e
sumulou entendimento (súmula 13) dizendo que tal dispositivo constitucional,
implantado pela ECR 4, não é autoaplicável, ou seja, necessita de
regulamentação infraconstitucional, através de Lei Complementar.
Este é o conteúdo da referida súmula: ―Não é auto-aplicável o § 9º, Art.
14, da Constituição, com a redação da Emenda Constitucional de Revisão nº 494‖.
Os magistrados lutaram então, seja individualmente (por decisões
monocráticas, que vieram a ser reformadas nas instâncias superiores), ou
através
da
Associação
dos
51 De forma contrária: GOMES: 2008.
Magistrados
Brasileiros
(no
STF)
pela
85
autoaplicabilidade do dispositivo supramencionado, baseados no princípio
constitucional da moralidade.
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 144
não logrou êxito, e o pior, a decisão do STF passou a vincular todos os órgãos
judicantes do país, devido à própria natureza da ação, impedindo que juízes de
primeiro grau ou os colegiados indefiram registros, baseando suas decisões no
§9º do art. 14 ou no caput do art. 37 da CRFB.
Houve uma verdadeira imposição vertical e imoral da própria
imoralidade. Alegando-se, infeliz e inadvertidamente, o princípio da presunção
de inocência.
Vejamos, quando há antinomia aparente entre normas-princípios temos
que resolvê-la através da razoabilidade ou da proporcionalidade. Temos de
estabelecer o âmbito de cada princípio antes de ponderá-los.
A elevação da presunção de inocência (ou presunção de nãoculpabilidade) ante a moralidade no presente caso é descabida. Lembremo-nos
que no caso de um indeferimento de registro de candidatura baseado no
exame de vida pregressa, com a análise da idoneidade moral e da reputação
ilibada, não se estará antecipando o julgamento de quem quer que seja,
mesmo porque esse pretenso candidato vetado na órbita eleitoral permanecerá
com a sua garantia constitucional da não-culpabilidade (art. 5º, LVII, da CRFB)
na órbita processual penal.
A restrição da capacidade eleitoral passiva, isto é, da capacidade de ser
votado, visa tão-só assegurar o bem comum, o erário, mais do que o
patrimônio moral – para aqueles que com ele não se preocupam, pois hoje
muito desvalorizado. Visa a resguardar, sobretudo, o patrimônio material da
sociedade brasileira.
E o mecanismo mais eficaz para tal finalidade é um exame de vida
pregressa dos candidatos, que devem sujeitar-se a ele em nome da
supremacia do interesse público, pois, ―pressuposto lógico do convívio
social‖52. Não há alegação que se faça que torne declinável o interesse
52 MELLO: 2002, p. 80.
86
público, até o interesse do Estado deve subordinar-se a ele, com maior razão
assim deve ser em relação aos interesses individuais.
Não bastasse uma antinomia inexistente e uma supremacia que por si
só dá legítimas condições aos magistrados no indeferimento de registros,
vislumbra-se no horizonte um direito fundamental de quarta geração, o direito
ao governante honesto e, mais que isso ―A moralidade administrativa tornou-se
não apenas um direito, mas direito público subjetivo do cidadão: todo cidadão
tem direito ao governo honesto.‖53.
Essa posição da Excelentíssima Ministra do STF Carmen Lúcia Antunes
Rocha mostra como o nosso entendimento segue boas linhas, pena ainda não
ter sido implantado. Pondo em risco, assim, todo o sistema jurídico nacional,
pois uma afronta à norma-princípio ―representa insurgência contra todo o
sistema, subversão de seus valores fundamentais‖54.
4. ALTERAÇÕES LEGISLATIVAS NECESSÁRIAS
Como visto, apesar das florescentes ideias e do abalizamento jurídico
respeitável, o poder político se sobressai e suprime os germens de legitimidade
do Estado brasileiro.
É o que chamamos de ―síndrome positivista‖ (um positivismo jurídico,
claro está), tudo precisa estar detalhadamente descrito, constitucional ou
legalmente, para poder ser posto em prática, desprezando-se, por conseguinte,
a
ideia
de
norma-princípio
tão
bem
valorizada
nos
novos
tempos
neoconstitucionais.
Por esse desprezo às novas ideias, em paralelo à prática ativista dos
jurisconsultos, necessitamos de reformas legais que trarão ―segurança‖ aos
possuidores da referida ―síndrome‖.
A primeira delas é um Projeto de Lei de Iniciativa Popular (PLIP) – nos
moldes do art. 61, § 2º da CRFB – que prevê os seguintes melhoramentos:
7. Aumento do rol de situações que podem impedir o registro de uma
candidatura;
53 ROCHA apud PINTO: 2008, p. 33.
54 MELLO: 2002, p. 808.
87
8. Estender os prazos para as inelegibilidades, que passam a ter, em
regra, duração de 8 (oito) anos;
9. Tornar
mais
rápido
os
processos
judiciais
que
tratam
das
inelegibilidades.
A retirada da necessidade de ―trânsito em julgado‖ das condenações
para se indeferir um registro, ao lado do aumento de três ou cinco para oito
anos o prazo das causas de inelegibilidades, são os maiores avanços do PLIP,
que visa alterar a Lei Complementar 64/90.
Essa proposta é levada a cabo pelo Movimento de Combate à
Corrupção Eleitoral (MCCE) congregador de várias instituições relevantíssimas
à democracia brasileira, como a CNBB e a OAB, e já conta com mais de 1,6
milhão de assinaturas (de acordo com o sítio do movimento55), ou seja, mais
que o total de 1,3 milhão (1% do eleitorado nacional) que são necessárias,
conforme a Constituição, para que o Projeto de Lei seja aceito e apreciado na
Câmara dos Deputados, em Brasília.
Atualmente o projeto já foi apresentado à Câmara dos Deputados, e
figura como Projeto de Lei Complementar 518/09, subscrito pelo deputado
Antônio Carlos Biscaia e outros 32 deputados, inclusive o paraibano, Luiz
Couto (PT). Com provável votação em plenário no mês de maio deste ano.
Outro projeto, desta feita apresentado pelo Senador Pedro Simon (PL nº
688/2007), visa acrescer ao Código Eleitoral (Lei 4.737/65) o seguinte
dispositivo:
Acrescenta o §3º ao art. 94 da Lei 4.737, de 15 de Julho de 1965
(Código Eleitoral), para exigir idoneidade moral e reputação ilibada dos
candidatos a cargo eletivo.
Art. 1º O art. 94 da Lei nº 4.737, de 15 de Julho de 1965, passa a
vigorar acrescido do seguinte §3º:
―Art. 94......................................................................................................
§3º O registro de candidatura será deferido aos candidatos que
comprovarem idoneidade moral e reputação ilibada
Este condicionamento ao registro de candidaturas justifica-se pelo caput
do art. 37 e pelo § 9º do art. 14 da CRFB e está em conformidade com a
responsabilidade residente em um detentor de cargo público eletivo, assim
55 www.mcce.org.br
88
como para ser Advogado-Geral da União ou Ministro do TCU do STF e do STJ
tais condições precisam ser respeitadas (arts. 73, §1º, II; 101; 104, § único;
131, § 1º da CRFB).
O projeto apresentado pelo idôneo e ilibado Senador da República
Pedro Simon foi aprovado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania
(CCJ) do Senado Federal em caráter terminativo, em 03 de Junho de 2009, e
seguiu para votação na Câmara dos Deputados.
A aprovação combinada dos dois projetos trará um avanço inestimável à
democracia, com legitimidade dos pleitos, melhorando a qualidade dos nossos
representantes, fazendo-os trabalhar ―em proveito do povo‖56. Além de ser
mais uma prova do quão forte é a nação brasileira, consubstanciando a
―democracia participativa‖57 e fazendo valer o fundamento do Estado
brasileiro, quando sua Constituição diz que ―Todos o poder emana do povo‖
(art. 1º, § único, da CRFB).
5. CONCLUSÃO
Diante do exposto não restam dúvidas de que os juízes e tribunais
devem tomar atitudes que visem a resguardar o próprio ordenamento jurídico.
Os embasamentos necessários já foram apresentados e refutam, com eficácia,
os contra-argumentos daqueles que esperam e torcem por uma manutenção
do status quo ante.
Mesmo que as decisões sejam reformadas junto ao Tribunal Superior
Eleitoral ou ao Supremo Tribunal Federal, não há como tomar outro caminho.
Os magistrados possuem autonomia suficiente para decidirem de forma
contrária, desde que atendam ao seu livre convencimento.
Porém, infelizmente, não são todos os magistrados ou juristas, em geral,
que pensam assim. Eles exigem mudanças legislativas que os resguardem em
suas decisões. Apesar de elas já terem respaldo mais quem legal, ou seja,
constitucional.
Dada essa pseudonecessidade dos aplicadores do direito, foi que
colacionamos projetos de lei, com ênfase ao projeto de iniciativa popular, para
56 SILVA: 2000, p. 130.
57 Idem, ibidem, p. 145.
89
que não haja maiores desculpas quanto ao não cumprimento da normaprincípio constitucional da moralidade.
Com a adoção das proposituras aqui apresentadas temos a garantia de
um resgate da legitimidade da nossa representação política, além, é claro, da
demonstração, por parte do povo brasileiro, de que aqui há uma democracia
que, apesar de jovem, é forte e pujante, como visto através da utilização de
instrumentos de participação direta.
6 REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 13. ed. São Paulo:
Rideel, 2007.
GOMES, Luiz Flávio. Candidatos "fichas-sujas": Supremo afasta o risco da
hipermoralização do direito. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1953, 5 nov.
2008. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11931>.
Acesso em: 05 nov. 2008.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 14. ed.
São Paulo: Malheiros, 2002.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 23. ed. 2. reimpr. São Paulo:
Atlas, 2008.
PINTO,
Djalma. Direito
Eleitoral:
improbidade
responsabilidade fiscal. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2008.
administrativa
e
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 32. ed.
São Paulo: Malheiros, 2000.
90
ANÁLISE DA FIGURA JURÍDICA DO CONTRIBUINTE, NO
CASO DE RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA POR
SUBSTITUIÇÃO, COM A EXCLUSÃO DA SUA
RESPONSABILIDADE.
Orientador (a): Massillania Medeiros Ferreira58.
Autor: Saulo Medeiros da Costa Silva59.
RESUMO
A regra matriz de incidência tributária é uma norma jurídica decomposta em hipótese e
conseqüente, naquele se encontram os aspectos materiais, espaciais e temporais, enquanto
que neste estão presentes o critério pessoal e o quantitativo. O aspecto pessoal compreende
as pessoas envolvidas na obrigação tributária que surge com a ocorrência do fato gerador.
Será contribuinte quando pratique o fato gerador ou responsável quando, sem praticar o fato
gerador, seja responsável pelo pagamento do tributo ou da penalidade pecuniária. A
responsabilidade poderá ser por transferência ou substituição. Esta se divide em substituição
com a exclusão da responsabilidade do contribuinte ou com a sua responsabilidade supletiva.
Tratando-se da primeira modalidade defendemos que a própria figura do contribuinte é
excluída da relação jurídica obrigacional e não apenas a sua responsabilidade.
Palavras-chave: Contribuinte. Substituição Tributária.
ABSTRACT
The main rule of tributary incidence is a juridical norm decomposed in hypothesis and
consequent, in that they are the aspects material, space and temporary, while in this they are
present the personal criterion and the quantitative. The personal aspect understands the people
involved in the tributary obligation that appears with the occurrence of the generating fact. It will
be contributory when he/she practices the fact generating or responsible when, without
practicing the generating fact, be responsible for the payment of the tribute or of the financial
penalty. The responsibility can be for transfer or substitution. This he/she becomes separated in
substitution with the exclusion of the taxpayer's responsibility or with your responsibility
supplementary Being treated of the first modality defended that the taxpayer's own illustration is
excluded of the relationship juridical obligation and not just your responsibility.
Key-word: Taxpayer. Tributary Substitution.
58 Mestre em Linguagem e Ensino pela Universidade Federal de Campina Grande - UFCG.
Graduada em Letras pela UFCG. Professora de Linguagem e Argumentação Jurídica e
Metodologia do Trabalho Científico na UNESC. Graduada em Direito pela Universidade
Estadual da Paraíba. Membro do Instituto Paraibano de Estudos Tributário – IPBET.
Especializanda em Direito Público pela rede de ensino LFG. Assessora jurídica no TJPB.
[email protected]
59 Bacharel em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba - UEPB. Graduando em
Ciências Contábeis pela UEPB. Pós-graduado em Direito Tributário pela Instituição de
Educação Superior da Paraíba - IESP. Doutorando em Direito e Ciências Sociais pela
Universidad Museo Social da Argentina. Diretor Administrativo do Instituto Paraibano de
Estudos Tributário - IPBET. Professor de Direito Tributário do Meritus Cursos Jurídicos/CG.
Advogado militante. [email protected]
91
1. INTRODUÇÃO
Toda sociedade exige de seus membros condutas adequadas ao
interesse comum, e o meio de que se serve para consegui-lo são as normas.
Para cada interesse fundamental da sociedade, forma-se uma rede protetora
de normas, através de um sistema que regula a satisfação e proteção desse
interesse. As normas surgem por imposição de nossas necessidades, que são
ilimitadas, e dos bens dispostos pela natureza que são limitados. Sem as
normas o homem viveria em guerra constante com o seu semelhante
objetivando satisfazer suas necessidades sem qualquer limitação.
Dentre os sistemas normativos, no qual se inclui a religião, moral,
política, educação, etiqueta, temos o Direito. Este é o único que possui
coercibilidade, o que significa que a norma jurídica deve ser cumprida
independente da vontade do agente. Carvalho60 (2002, p. 30) leciona que:
Só o Direito coage mediante o emprego da força, com a aplicação,
em último grau, das penas privativas de liberdade ou por meio da
execução forçada. Essa maneira de coagir, de garantir o
cumprimento dos deveres estatuídos em suas regras, é que assinala
o Direito, apartando-o de outros sistemas de normas.
Fato marcante da coercibilidade do Direito é a imposição tributária. O
legislador ordinário, no art. 3 do Código Tributário Nacional, define o tributo
como sendo ―toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor
nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em
lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada‖.
(Declaração inexistente no original)
Diz-se compulsória porque a lei que institui um tributo não faculta as
pessoas, naturais ou jurídicas, o seu cumprimento, pelo contrário, as obrigam a
pagá-lo, sob pena de aplicação de multa e outras sanções tributárias impostas.
Por mais que o Estado, através dos entes federados, tenha o direitodever de tributar a sociedade objetivando arrecadar recursos financeiros para
custear os gastos públicos, deverá fazê-lo observando as limitações
60
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário Linguagem e Método. 2ª ed. São
Paulo: Noeses, 2002.
92
constitucionais ao poder de tributar, previstas no art. 150 e ss da Constituição
Federal de 1988 que institui os princípios e nas imunidades tributárias. Dentre
os princípios constitucionais, no inc. I do art. 150 da CF/88, temos o da
legalidade que calcifica que ―é vedado à União, aos Estados, ao Distrito
Federal e aos Municípios: I - exigir ou aumentar tributo sem lei que o
estabeleça;‖.
Percebe-se pelo dispositivo legal que os entes políticos apenas poderão
exigir tributos devidamente instituídos por lei. E esta deverá discriminar,
pormenorizadamente, todos os aspectos – subjetivo, material, espacial,
temporal, quantitativo, da hipótese de incidência tributária de um fato ou ato
tributário cuja incidência faz nascer a obrigação tributária. Tecnicamente
podemos asseverar que esta norma jurídico-tributária estabelece a regra-matriz
de incidência tributária que é o tributo no plano normativo-abstrato.
O objetivo deste estudo é analisar o aspecto subjetivo, da regra matriz
de incidência tributária, nos casos de responsabilidade por substituição.
2. REGRA MATRIZ DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA
Antes de adentrarmos nos aspectos da regra matriz de incidência
tributária, considerando que se trata de norma jurídica, é de suma importância
analisar a estrutura da norma jurídica, como sustentáculo dos argumentos
abaixo expendidos. Ressalve-se que utilizaremos como sinônimo de regra
matriz de incidência tributária a nomenclatura hipótese de incidência.
2.1 Estrutura da norma jurídica
A estrutura lógica da norma jurídica, com base na teoria da dicotomia,
pode ser decomposta em hipótese e conseqüente. Carvalho61 (2002, p. 88),
com maestria e profundo conhecimento da essência da norma, conceitua a
norma jurídica como sendo ―a proposição deôntica mediante a qual se imputa
61 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário Linguagem e Método. 2ª ed. São Paulo:
Noeses, 2002.
93
uma conseqüência a um antecedente ou suposto‖. Para ele, os critérios para
identificação da relação de um fato acontecido no mundo da realidade física
encontram-se na hipótese, por sua vez, na conseqüência encontram-se os
critérios para identificação da relação jurídica que se instala com o
acontecimento do suposto ou antecedente.
Aprofundando o estudo no campo do direito tributário, Carvalho62 (2002,
p. 88) expõe que:
Tomemos uma endonorma qualquer que institua o chamado tributo.
Veremos que o legislador nada mais faz que prever o acontecimento
de um fato, dando-nos critérios para identificá-lo e associando a esse
evento a instauração de um vínculo jurídico, mediante o qual nasce
para o sujeito ativo, por via de regra o Estado, o direito subjetivo
público de exigir de alguma pessoa o cumprimento do dever jurídico
de pagar determinada importância em dinheiro.
[...]
Tributo, em sua configuração estática, é a endonorma que apresenta
como hipótese um conjunto de critérios para a identificação de fatos
da realidade física, que não acordos de vontade considerados, em si
mesmos, e, como conseqüência, um conjunto de critérios que nos
permite identificar uma relação jurídica que se instaura entre o
Estado (por via de regra), na qualidade de sujeito ativo e alguma
pessoa física ou jurídica, na condição de sujeito passivo, mediante a
qual haverá o primeiro o direito subjetivo público de exigir da
segunda o cumprimento de dever jurídico consubstanciado numa
prestação pecuniária.
Em síntese, para o jurista Paulo de Barros Carvalho, a norma jurídica
tributária divide-se em hipótese e conseqüente, naquele se encontram os
aspectos materiais, espaciais e temporais, enquanto que neste estão presentes
o critério pessoal e o quantitativo.
2.2 Hipótese da norma tributária
2.2.1 Aspecto material
O aspecto material consiste na descrição que a lei faz do núcleo da
hipótese de incidência. É o aspecto mais importante, pois determina o tipo
62
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário Linguagem e Método. 2ª ed. São
Paulo: Noeses, 2002.
94
tributário, sendo comumente representado por um verbo e complemento. Tem
a qualidade de dar especificidade à hipótese de incidência, pois nela estão
inscritas suas características, como: peso, volume, largura, valor, preço, custo,
capacidade, superfície ou qualquer outro atributo de tamanho ou grandeza
mensuráveis da hipótese de incidência. É no aspecto material que se encontra
o critério de classificação dos tributos, ou seja, este aspecto contém o núcleo
do fato gerador, que é a descrição abstrata do ato ou fato, cuja concreção
surge a obrigação tributária. É a imagem abstrata de um fato jurídico concreto,
sendo através dele que se encontra o núcleo da descrição do fato sobre o qual
recai os efeitos da tributação. Trata-se do próprio evento que vai ser alcançado
pela incidência da norma, sendo do ponto de vista funcional e operacional do
conceito de hipótese de incidência, o mais importante porque desvela a sua
própria essência, permitindo sua caracterização e individualização.
2.2.2 Aspecto espacial
O aspecto espacial decorre do principio da territorialidade da lei tributária
e, normalmente, determina qual a lei aplicável ao caso concreto. O aspecto
espacial da hipótese de incidência consigna as circunstâncias de lugar
relevantes para a configuração do fato gerador, ou seja, o lugar onde o fato
qualificado como suficiente para desencadear o nascimento da obrigação
tributária ocorreu.
2.2.3 Aspecto temporal
O aspecto temporal define o momento exato da consumação do fato
gerador do tributo, passando a existir um liame jurídico entre o sujeito ativo
(ente federado) e o sujeito passivo, que denominamos de obrigação tributária.
Ressalve-se que o átimo a ser considerado como instante da ocorrência do fato
gerador é indicado pela legislação. O art. 116 do Código Tributário Nacional
elenca que:
95
Art. 116. Salvo disposição de lei em contrário, considera-se ocorrido
o fato gerador e existentes os seus efeitos:
I - tratando-se de situação de fato, desde o momento em que o se
verifiquem as circunstâncias materiais necessárias a que produza os
efeitos que normalmente lhe são próprios;
II - tratando-se de situação jurídica, desde o momento em que esteja
definitivamente constituída, nos termos de direito aplicável.
A importância da fixação exata do momento da ocorrência do fato
gerador deve-se ao fato de que a lei aplicável a obrigação tributária, que nasce
juntamente como fato gerador, é aquela que estiver em vigor no preciso
instante em que a subsunção do fato a norma.
2.3 Conseqüente da norma tributária
2.3.1 Aspecto Quantitativo
Neste aspecto, destacam-se a base de cálculo e a alíquota. A primeira é
a expressão de grandeza do aspecto material da hipótese de incidência
escolhida pela lei dentre aquelas inerentes ao fato gerador, sobre a qual
incidirá a alíquota. Em síntese é o montante sobre o qual recai o tributo. A
alíquota, por sua vez, é um percentual ou qualquer outra medida que incide
sobre a base de cálculo e determina o quantum debeatur.
Conforme nos lembra o professor Coelho63 (2005, p. 460) o aspecto
material não se limita à base de cálculo e a alíquota haja vista que na aplicação
desta sobre a base de cálculo, muitas vezes, restam adições, deduções e
cálculos para se alcançar o real valor devido.
2.3.2 Aspecto subjetivo ou pessoal
Antes de analisarmos o aspecto pessoal da regra matriz de incidência
tributária mostra-se pertinente introduzirmos, em síntese apertada, a questão
da praticabilidade tributária.
2.3.2.1 Princípio da praticabilidade tributária
a
63 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 8 . ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2005.
96
Hodiernamente, constata-se que o sistema jurídico, ―reflexo da
complexidade sócio-econômica, aliada à descrença da sociedade e à ausência
de regras, características da era pré-moderna, acarreta, ao mesmo tempo, a
necessidade de simplificação‖ (COSTA64, 2007, p. 18,). A simplificação
encontra respaldo constitucional nos princípio da razoabilidade, da eficiência e,
principalmente, da praticabilidade. Pelo princípio da praticabilidade, no direito
tributário, as leis devem ser exeqüíveis, compreensíveis, praticáveis,
transparentes e simples.
A necessidade, no âmbito fiscal, de leis com conteúdo explícito e com
clareza surge pelo fenômeno da transferência de atribuições que antes
pertenciam ao Estado e que, recentemente, pertencem aos contribuintes. A
transferência de atribuições ao sujeito passivo, no denominado lançamento por
homologação, tendo em vista que o art. 150, § 1º do Código Tributário Nacional
dispõe que caberá ao ―sujeito passivo o dever de antecipar o pagamento sem
prévio exame da autoridade administrativa‖. Sendo certo que para antecipar o
pagamento do tributo é necessário que o sujeito passivo pratique diversos atos
de natureza contábil e fiscal, inclusive, atos cuja natureza jurídica e
procedimentos são desconhecidos pela complexidade dos atos normativos que
regulam a matéria. Borges (apud COSTA65, 2007, p. 196,) elenca que:
Hoje as obrigações acessórias assumem um vulto colossal,
delegando-se
aos administrados, por mera comodidade
administrativa, numerosíssimas atribuições no âmbito dessas
obrigações, que seriam a rigor próprias do Estado. Assim, por
exemplo, o dever de retenção do tributo na fonte, para transferência
posterior aos cofres do Estado. Os contribuintes são obrigados a
manter uma estrutura administrativa meramente instrumental com
relação ao pagamento dos tributos, que acaba por gravemente
onerá-los (por exemplo: funcionários contábeis, escrita fiscal
complicada etc.)
Conforme Lapatza (apud COSTA66, 2007 p. 198):
64 COSTA, Regina Helena. Praticidade e Justiça Tributária: Exeqüibilidade de lei tributária e
direitos do contribuinte. São Paulo: Malheiros Editora, 2007.
65 Idem.
66 Ibdem.
97
O fenômeno de imposição de um maior número de deveres ao
contribuinte, com vistas à adequada satisfação de suas obrigações
tributárias, mediante a transferência de encargos que, originalmente,
caberiam ao próprio Estado, tem sido denominado de privatização da
gestão tributária.
Pois bem, percebe-se que a ―privatização da gestão tributária‖ é um
processo irreversível, sendo certo que o legislador deverá diminuir as
formalidades incidentes sobre os contribuintes, bem como simplificar as
modalidades de recolhimentos dos tributos e harmonizar o regime de
penalidades por infrações fiscais, pois, caso contrário, os complexos deveres
fiscais irão inviabilizar a pratica de tais atos pelo sujeito passivo, conduzindo ao
descumprimento de tais leis, seja pelo seu desconhecimento seja pela
inaplicabilidade empírica dar norma.
Dentre os instrumentos de viabilização da praticabilidade temos as
abstrações generalizantes, que se materializam por meio das presunções,
ficções e indícios.
A presunção, conforme nos ensina Becker (apud COSTA67, 2007, p.
162,) ―é o resultado do processo lógico mediante o qual do fato conhecido cuja
existência é certa se infere o fato desconhecido cuja existência é possível‖.
Noutro giro, as ficções mostram-se como ―um artifício técnico criado pelo
legislador para transformar uma impossibilidade material numa possibilidade
jurídica. Deforma a realidade, considerando verdadeiro o que sabidamente é
falso‖ (CARRAZA68, 2002, p. 408).
Partindo destes conceitos, visualiza-se que a diferença primordial entre
a presunção e ficção é que nesta a relação entre o fato conhecido e o
desconhecido é improvável, ou até mesmo inexistente, por outro lado, na
presunção, o fato conhecido e o desconhecido são prováveis.
Por fim, os indícios são elementos que, através de operação mental de
inferência, chega-se, pela via do raciocínio, a uma determinada conclusão.
67 COSTA, Regina Helena. Praticidade e Justiça Tributária: Exeqüibilidade de lei tributária e
direitos do contribuinte. São Paulo: Malheiros Editora, 2007.
a
68 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 17 ed., rev.,
ampl. e atual. até a Emenda Constitucional n 35/2001. Malheiros: São Paulo, 2002.
98
Na hipótese de incidência tributária, tais instrumentos são mais
freqüentes nos critérios materiais, tendo em vista a dificuldade de prescrever as
inúmeras situações que o mundo fático apresenta; critério quantitativo, cujas
bases de cálculos, muitas vezes são presumidas; e critério pessoal, onde
constatamos ―que a praticabilidade transparece, claramente, nas figuras de
substituição tributária” (COSTA69, 2007, p. 155). (Destaque inexistente no
original)
2.3.2.2 Aspecto pessoal propriamente dito
O aspecto pessoal da hipótese de incidência tributária compreende as
pessoas envolvidas na obrigação tributária que surge com a ocorrência do fato
gerador. É pelo aspecto pessoal que, concretamente, identificamos quem é a
pessoa jurídica que detém a capacidade tributária de cobrar e arrecadar os
tributos e quem é a pessoa (física ou jurídica) que tem a obrigação de adimplilos, capacidade tributária passiva.
Diz-se, conforme definição legal, que o sujeito ativo da obrigação é a
pessoa jurídica de direito público, titular da competência para exigir o seu
cumprimento. Por outro lado, o sujeito passivo da obrigação principal, conforme
art. 121 do CTN, é a pessoa obrigada ao pagamento de tributo ou penalidade
pecuniária que poderá ser um contribuinte ou responsável, in verbis:
Art. 121. Sujeito passivo da obrigação principal é a pessoa obrigada
ao pagamento de tributo ou penalidade pecuniária.
Parágrafo único. O sujeito passivo da obrigação principal diz-se:
I - contribuinte, quando tenha relação pessoal e direta com a
situação que constitua o respectivo fato gerador;
II - responsável, quando, sem revestir a condição de contribuinte,
sua obrigação decorra de disposição expressa de lei.
[...]
O inc. II do art. susomencionado, interpretado conjuntamente com o
caput, elenca que o responsável, aquele que sem revestir a condição de
contribuinte, tem sua obrigação de pagar o tributo, ou penalidade pecuniária,
decorrente de disposição legal. O responsável, nos termos do art. 128 do CTN,
69 COSTA, Regina Helena. Praticidade e Justiça Tributária: Exeqüibilidade de lei tributária e
direitos do contribuinte. São Paulo: Malheiros Editora, 2007.
99
poderá substituir totalmente o contribuinte ou, a depender da dicção legal,
poderá permanecer na obrigação tributária com a responsabilidade do crédito
tributário em caráter supletivo, in verbis:
Art. 128. Sem prejuízo do disposto neste capítulo, a lei pode
atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito
tributário a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da
respectiva obrigação, excluindo a responsabilidade do
contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo do
cumprimento total ou parcial da referida obrigação. (Destaque nosso)
Deste dispositivo legal podemos extrair dois tipos de responsabilidade a)
a por transferência que se caracteriza pelo ingresso de terceira pessoa na
obrigação tributária, após a ocorrência do fato gerador, em virtude de fato
posterior; e b) por substituição, quando o dever de contribuir é imputado
diretamente a uma pessoa, que não pratica o fato gerador, mais, por expressa
previsão legal, deverá adimplir o tributo como sendo débito próprio e não de
terceiro, ocorrendo a exclusão da figura abstrata do contribuinte. Neste sentido,
Coelho70 (2005, p. 719) nos lembra que na substituição ―há pagamento de
dívida própria, embora decorrendo de fato gerador de terceiro‖.
A responsabilidade por substituição tributária, nos exatos termos da
parte final do caput do art. 128 do CTN se desdobra em duas: a) substituição
tributária com a exclusão da responsabilidade do contribuinte; b) substituição
tributária com a permanência do contribuinte.
O objeto deste estudo é a hipótese a) na qual ocorre a substituição
tributária com a exclusão da responsabilidade do contribuinte. Entendemos,
data venia, que neste caso não ocorre à exclusão da responsabilidade do
contribuinte, pois, neste ele sequer chegou a existir, por dois motivos, vejamos:
O contribuinte, nos termos do art. 121, é a pessoa, física ou jurídica, que
pratica o fato gerador, previsto na hipótese de incidência, com a perfeita
subsunção do fato a norma, e tem o dever de pagar o tributo ou a
penalidade pecuniária. Quando a lei exclui a ―responsabilidade do
a
70 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 8 . ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2005.
100
contribuinte pelo pagamento do crédito tributário‖ está o isentado,
integralmente, de pagar o tributo. Sendo assim, se a lei está retirando a
possibilidade da pessoa, dito ―contribuinte‖, de efetuar o pagamento está,
na verdade, subtraindo a figura de contribuinte da pessoa, pois, para sê-lo
seria necessário que este pudesse, pelo menos no plano normativoabstrato, pagar o tributo.
O segundo motivo é pelo fato da pessoa que pratica o fato gerador ser
excluída da obrigação tributária antes mesmo de praticar o ato e, uma vez
consumado o fato gerador, não chegará sequer a participar da obrigação
tributária, pois, não existirá nenhum liame jurídico entre ele e o sujeito ativo.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No que tange a responsabilidade por substituição tributária, com a
exclusão da responsabilidade do contribuinte, podemos concluir que:
Por ficção jurídica, criação de uma verdade jurídica em face de uma
impossibilidade real, o legislador, visualizando a capacidade contributiva do
sujeito passivo, bem como a comodidade da fiscalização e arrecadação,
substituiu o ―contribuinte‖ do tributo pelo responsável antes mesmo da
ocorrência do fato gerador, dizendo ser o substituto o sujeito passivo do tributo
e não o substituído.
A ocorrência do fato gerador já faz nascer uma obrigação tributária na
qual o substituto legal é o devedor principal do tributo e este não paga dívida
de outrem, paga tributo do qual ele é o própria devedor. Melo71 (2000, p. 131)
abordando o tema nos ensina que:
Na substituição, num plano "pré-jurídico", o legislador afasta, por
completo, o verdadeiro contribuinte, que realiza o fato imponível,
prevendo a lei, desde logo, o encargo da obrigação a uma outra
pessoa (substituto), que fica compelida a pagar a dívida própria, eis
que a norma não contempla dívida de terceiro (substituto) (grifo
nosso).
71 MELO, José Eduardo Soares de. Contribuições Sociais no Sistema Tributário. 3 edª.
rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Malheiros, 2000.
101
Becker72 (1998, p. 562-563), por sua vez destaca que:
Não existe qualquer relação jurídica entre substituído e o Estado. O
substituído não é sujeito passivo da relação jurídica tributária, nem
mesmo quando sofre a repercussão jurídica do tributo em virtude do
substituto legal tributário exercer o direito de reembolso do tributo ou
de sua retenção na fonte.
Em todos os casos de substituição legal tributária, mesmo naqueles
em que o substituto tem perante o substituído o direito de reembolso
do tributo ou de sua retenção na fonte, o único sujeito passivo da
relação jurídica tributária (o único cuja prestação jurídica reveste-se
de natureza tributária) é o substituto (nunca o substituído).
O substituído não paga "tributo" ao substituto. A prestação jurídica
do substituído que satisfaz o direito (de reembolso ou de retenção na
fonte) do substituto, não é de natureza tributária, mas sim de
natureza privada.
Percebe-se a exclusão do contribuinte, tanto pelo dispositivo legal (art.
128 do CTN), como pelo fato do substituto legal, pagando um tributo indevido,
não poder exercer o direito regressivo sobre o contribuinte já que este não
integra a obrigação tributária em xeque.
Por todo o exposto, podemos afirmar que se tratando de substituição
tributária com a exclusão da responsabilidade do dito contribuinte não ocorre à
exclusão da responsabilidade deste pois ele sequer chegou a existir, tendo em
vista que o contribuinte, nos termos do art. 121, é a pessoa, física ou jurídica,
que pratica o fato gerador, previsto na hipótese de incidência, com a perfeita
subsunção do fato a norma, e tem o dever de pagar o tributo ou a penalidade
pecuniária. E, quando a lei excluiu a ―responsabilidade do contribuinte pelo
pagamento do crédito tributário‖ está o isentado, integralmente, de pagar o
tributo. Sendo assim, se a lei está retirando a possibilidade da pessoa, dito
―contribuinte‖, de efetuar o pagamento está, na verdade, subtraindo a figura de
contribuinte da pessoa, pois, para sê-lo seria necessário que este pudesse,
pelo menos no plano normativo-abstrato, pagar o tributo. Além deste fato
trazemos à tona que a pessoa que pratica o fato gerador será excluída da
obrigação tributária, antes mesmo de praticar o ato e, uma vez consumado o
72 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 3. ed. São Paulo: Lejus,
1998.
102
fato gerador, não chegará sequer a participar da obrigação tributária, pois, não
existirá nenhum liame jurídico entre ele e o sujeito ativo.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. 6a ed. Malheiros: São
Paulo, 2004.
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 3. ed. São
Paulo: Lejus, 1998.
BRASIL. Lei nº. 5.172, de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema
Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis
à União, Estados e Municípios. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 27 de
outubro
de
1966.
Disponível
em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil/Leis/L5172.htm>. Acesso em: 17 set. 2008.
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 17a
ed., rev., ampl. e atual. até a Emenda Constitucional n 35/2001. Malheiros: São
Paulo, 2002.
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário Linguagem e Método. 2ª ed.
São Paulo: Noeses, 2002.
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 8a.
ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
COSTA, Regina Helena. Praticidade e Justiça Tributária: Exeqüibilidade de
lei tributária e direitos do contribuinte. São Paulo: Malheiros Editora, 2007.
MELO, José Eduardo Soares de. Contribuições Sociais no Sistema Tributário.
3 edª. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Malheiros, 2000.
103
CONCURSO DE CRIMES NO NOVO TIPO PENAL DO ESTUPRO
Beethoven Bezerra Fonseca73
Sarah Naiara de Oliveira Gomes74
RESUMO
O presente estudo inicia-se com uma explanação acerca do concurso de crimes, referindo-se
às suas espécies e particularidades. Posteriormente, adentra-se na questão do crime de
estupro, o qual teve sua redação recentemente modificada pela Lei 12.015/09, trazendo a baila
uma grande discussão com relação ao concurso de crimes. Pergunta-se então se haverá
concurso de crimes no caso da prática conjunta de conjunção carnal e outro ato libidinoso,
mediante violência ou grave ameaça e, se houver, qual a espécie a ser aplicada. A presente
revisão bibliográfica tem como objetivo geral analisar o concurso de crimes no crime de estupro
antes e após o advento da lei reformadora e, como objetivos específicos, discorrer sobre o
concurso de crimes, discutir a inovação legislativa e propor uma interpretação coerente do
dispositivo.
PALAVRAS-CHAVE: Concurso de crimes. Estupro. Lei 12.015/09.
ABSTRACT
This study begins with an explanation about the convergence of crimes, referring to their
species and characteristics. Subsequently, enters on the question of the crime of rape, which
had its newsroom recently amended by Law 12.015/09, bringing to fore a great controversy
regarding the convergence of crimes. Then asks if there will be convergence of crimes in the
case of joint practice of sexual intercourse and other lewd acts through violence or serious
threat and which species will be applied. This literature review aims at analyzing the
convergence of crimes in the crime of rape before and after the advent of law reform, and
specific objectives, discuss the convergence of crimes, discuss the legal innovation and
propose a coherent interpretation of the device.
KEY WORDS: Convergence of crimes. Rape. Law 12.015/09.
73 Acadêmico do curso de Direito da Universidade Estadual da Paraíba. E-mail:
[email protected].
74 Acadêmica do curso de Direito da Universidade Estadual da Paraíba. E-mail:
[email protected].
104
1. INTRODUÇÃO
Partindo-se da análise do concurso de crimes, seus tipos e
peculiaridades, adentramos na temática principal do presente estudo, o
concurso de crimes no delito de estupro, o qual foi modificado pela Lei 12.015,
de 7 de agosto de 2009.
A nova lei deu a seguinte redação ao art. 213 do diploma penal:
―Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção
carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso‖; e
revogou o art. 214, referente ao crime de atentado violento ao pudor.
Diante da mudança, surgiram diversos questionamentos quanto ao
concurso de crimes. Com a nova redação, percebe-se que a conduta, antes
prevista no art. 214, agora configura o crime de estupro. Não houve alteração
quanto à cominação da pena, reclusão de seis a dez anos. O problema surge,
contudo, quando o criminoso pratica, além da conjunção, outros atos
libidinosos de maior gravidade, como o sexo anal e o oral. Vale salientar que
na grande parte dos casos ocorre a prática das duas condutas, algumas vezes
para a satisfação da mesma lascívia e outras vezes para satisfações sexuais
distintas.
Considerando tal hipótese de prática delitiva, o presente artigo visa
analisar as várias facetas do concurso de crimes, passando pelos argumentos
dos que defendem tratar-se de crime continuado, concurso material de crimes
e crime único, trazendo julgado recente do STJ sobre a matéria.
Trataremos também da necessidade de ser feita uma interpretação
desse novo tipo penal à luz dos princípios constitucionais da proporcionalidade
e da individualização da pena.
2. CONCURSO DE CRIMES
Ocorrerá o concurso de crimes quando o agente mediante uma ou mais
ação ou omissão cometer dois ou mais crimes. Nas palavras de Damásio de
Jesus (2002, p.597): ―Quando um sujeito, mediante unidade ou pluralidade de
105
ações ou de omissões, pratica dois ou mais delitos, surge o concurso de crimes
ou de penas‖.
Tal matéria está prevista na parte geral do Código Penal brasileiro em
seus art.s 69, 70 e 71, os quais tratam, respectivamente, do concurso material,
do concurso formal e do crime continuado, as espécies de concurso de crimes.
Como bem lembra Bitencourt (2006, p. 717), ―a pena a ser aplicada a
quem pratica mais de um crime não pode ser a mesma pena aplicável a quem
comete um único crime. Por isso, foram previstos critérios especiais de
aplicação de pena às diferentes espécies de concurso de crimes.
Referindo-se a esses critérios especiais de aplicação da pena, a doutrina
fala dos sistemas de aplicação da pena, Bitencourt (2006, p.718) cita quatro
desses sistemas: o do cúmulo material (segundo o qual, as penas de cada
crime devem ser somadas), o do cúmulo jurídico (a pena aplicada deverá ser
maior que a prevista para cada infração, não chegando, todavia, a soma delas),
o da absorção (a pena do delito menos gravoso é absorvida pelo de maior
gravidade) e o da exasperação (a pena do crime mais grave é aplicada,
aumentando-se de certo percentual em virtude dos outros crimes). Damásio
(2002, p.599) cita ainda o sistema da responsabilidade única e da pena
progressiva, criação de Impallomeni: ―os crimes concorrem, mas não se
acumulam, devendo-se aumentar a responsabilidade do agente ao crescer o
número de infrações‖.
No Brasil, são adotados apenas dois dos sistemas vistos acima: o do
cúmulo material e o da exasperação. O primeiro é visto no concurso material,
no concurso formal impróprio e no concurso das penas de multa previsto no art.
72 do diploma penal, ao passo que o último encontra-se presente no crime
continuado e no concurso formal perfeito. Passemos agora ao estudo das
espécies de concurso de crimes.
2.1. Concurso material
Também chamado por alguns doutrinadores de concurso real, pode ser
conceituado como a ―prática de duas ou mais condutas, dolosas ou culposas,
106
omissivas ou comissivas, produzindo dois ou mais resultados, idênticos ou não,
mas todas vinculadas pela identidade do agente, não importando se os fatos
ocorreram na mesma ocasião ou em dias diferentes‖ (CAPEZ, 2005, p.497).
O concurso material é dividido em sede doutrinária em homogêneo e
heterogêneo, como preleciona Bitencourt (2006, p. 718), ―quando os crimes
praticados forem idênticos ocorre o concurso material homogêneo e quando os
crimes praticados forem diferentes caracterizar-se-á o concurso material
heterogêneo‖.
De acordo com o §1º do art. 69 do Código Penal, no concurso material,
quando ao agente tiver sido aplicada pena privativa de liberdade, não
suspensa, por um dos crimes, para os demais será incabível a substituição por
penas restritivas de direitos. E quando forem aplicadas penas dessa última
natureza, segundo o §2º, o condenado cumprirá simultaneamente as que forem
compatíveis entre si e sucessivamente as demais.
2.2. Concurso formal
É citado por alguns doutrinadores como concurso ideal, nas palavras de
Bitencourt (2006, p.719):
(...) ocorre quando o agente, mediante uma só conduta (ação ou
omissão), pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não. Nessa
espécie de concurso há unidade de ação e pluralidade de crimes.
Assim, para que haja concurso formal é necessário que exista uma só
conduta, embora possa desdobrar-se em vários atos, que são os
segmentos em que esta se divide.
A identidade dos crimes cometidos irá dar ensejo à denominação de
concurso formal homogêneo, ao passo que, quando não houver identidade nos
crimes teremos o concurso formal heterogêneo.
O concurso formal pode ser também perfeito ou imperfeito, estando o
primeiro definido na primeira parte do caput do art. 70 do Código Penal e o
segundo na última parte. O concurso formal perfeito é conhecido, ainda, como
próprio, enquanto o imperfeito é denominado ao mesmo tempo de impróprio.
Como afirma Bitencourt:
107
O concurso formal pode ser próprio, quando a unidade de
comportamento corresponder à unidade interna da vontade do
agente, isto é, o agente deve querer realizar apenas um crime, obter
um único resultado danoso. Não devem existir – na expressão do
Código – desígnios autônomos. Mas o concurso formal também pode
ser impróprio. Nesse tipo de concurso, o agente deseja a realização
de mais de um crime, tem consciência e vontade em relação a cada
um deles. Ocorre aqui o que o Código Penal chama de ‗desígnios
autônomos‘, que se caracteriza pela unidade de ação e multiplicidade
de determinação de vontade, com diversas individualizações. Os
vários eventos, nesse caso, não são apenas um, perante a
consciência e a vontade, embora sejam objeto de uma ação.
(BITENCOURT, 2006, p.719)
No concurso formal próprio, aplica-se o sistema da exasperação visto
anteriormente, enquanto no concurso formal impróprio é utilizado o sistema do
cúmulo material. No concurso formal perfeito tem-se a seguinte situação: ―se
for homogêneo, aplica-se a pena de qualquer dos crimes, acrescida de 1/6 até
metade; se for heterogêneo, aplica-se a pena do mais grave, aumentada de 1/6
até metade. O aumento varia de acordo com o número de resultados
produzidos‖ (CAPEZ, 2005, p.501).
A unidade interna da vontade do agente, presente no conceito do
concurso formal próprio é chamada pela doutrina de desígnio. Damásio de
Jesus, citando Manzini traz o seguinte conceito de desígnio:
é um programa ou plano de ações ou de omissões, firme,
determinado e concreto, que não resulta apenas da coordenação de
uma série de idéias substanciais, mas que pressupõe ainda a escolha
dos meios para conseguir um determinado fim e o prévio
conhecimento das condições objetivas e subjetivas nas quais deverá
desenvolver-se a atividade delituosa. (MANZINI apud JESUS, 2002,
p.603)
Em outra parte, o mencionado autor fala o seguinte: ―Ocorre a
autonomia de desígnios quando o sujeito pretende praticar não só um crime,
mas vários, tendo consciência e vontade em relação a cada um deles,
considerado isoladamente‖ (JESUS, 2002, p.604).
Vê-se, portanto, que a unidade ou pluralidade de desígnios restará
demonstrada de acordo com parâmetros objetivos e subjetivos de sua conduta,
os quais deverão ser aferidos na aplicação da pena. ―Enfim, o que caracteriza o
108
crime formal é a unidade de conduta, mas o que justifica o tratamento penal
mais brando é a unidade do elemento subjetivo que impulsiona a ação‖
(BITENCOURT, 2006, p.719).
É importante salientar que a pena no concurso formal próprio não
poderá exceder a que seria cabível no sistema do cúmulo material, tal regra
está prevista no parágrafo único do art. 70 do Código Penal e é conhecida, em
sede doutrinária, como concurso material benéfico. Capez (2005, p.501)
justifica tal dispositivo com o seguinte argumento: ―Quem comete mais de um
crime, com uma única ação, não pode sofrer pena mais grave do que a imposta
ao agente que reiteradamente, com mais de uma ação, comete os mesmos
crimes‖.
2.3. Crime continuado
O crime continuado é uma ficção jurídica, de acordo com a maioria
doutrinária, baseando-se em razões de política criminal, entendendo que os
crimes subsequentes devem ser tidos como continuação do primeiro, dá-se um
tratamento unitário a uma pluralidade de atos criminosos, determinando uma
forma peculiar de puni-los. Diz-se aqui, forma peculiar de puni-los, em virtude
de se aplicar ao crime continuado o sistema da exasperação das penas, como
dito antes. De acordo com a parte final do caput do art. 71 do CP, aplica-se a
pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se forem diferentes,
aumentando-se, em qualquer caso, de 1/6 a 2/3.
O crime continuado ocorre, de acordo com o art. 71, caput do diploma
penal, quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois
ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira
de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como
continuação do primeiro.
Damásio traz duas teorias referentes à conceituação do crime
continuado:
a) teoria objetivo- subjetiva: o crime continuado exige, para sua
identidade, além de determinados elementos de ordem objetiva, outro
109
de índole subjetiva, que é expresso de modos diferentes: unidade de
dolo, unidade de resolução, unidade de desígnio;
b) teoria puramente objetiva: dispensa a unidade de ideação e deduz
o conceito de condutas continuadas dos elementos exteriores da
homogeneidade. (JESUS, 2002, p.605)
Como se pode extrair da leitura do art.71, caput, o diploma penal
acolheu a teoria puramente objetiva, é suficiente que os crimes da mesma
espécie apresentem semelhança em seus elementos objetivos de tempo, lugar,
maneira de execução, entre outros. Deve-se observar, todavia, como adverte
Damásio, ―que dificilmente o juiz, para afastar o concurso material de delitos e
reconhecer o nexo de continuidade entre eles, deixará de apreciar o elemento
subjetivo do agente‖ (JESUS, 2002, p.605). Alegando isso, ele segue a teoria
objetivo- subjetiva.
Como bem lembra Capez (2005, p.505), o qual entende ser correta a
segunda teoria, ―há quem defenda que é inadmissível crime continuado sem a
vontade de praticar os delitos em continuação, pois do contrário se estaria
equiparando
a
continuidade
delitiva
à
habitualidade
no
crime‖.
Na
jurisprudência pátria encontramos decisões do Egrégio Superior Tribunal de
Justiça favoráveis à teoria objetivo-subjetiva, tais como a seguinte:
PROCESSO PENAL. ROUBO. CRIME CONTINUADO. AUSENCIA
DOS ASPECTOS SUBJETIVOS E OBJETIVOS. ANULAÇÃO DO
ACÓRDÃO. Ausentes os requisitos objetivos – modo de execução e
disparidade de comparsas – bem como o requisito subjetivo de
unidade de desígnio, impossível a caracterização da continuidade
delitiva. Não há, no caso em tela, o vínculo entre o primeiro ato
criminoso e os subsequentes, que caracteriza a continuidade delitiva.
Recurso Especial conhecido e provido para que seja restabelecida a
sentença condenatória de primeira instância. (STJ; REsp 1.027; SP;
Rel. Min. Edson Vidigal; Publ. DJ 05/ 02/ 1990).
Quanto à natureza jurídica do crime continuado, prevalece a Teoria da
ficção jurídica, adotada pelo nosso Código Penal, Manzini (MANZINI apud
BITENCOURT, 2006, p.721), sintetiza o cerne dessa teoria: ―O instituto do
crime continuado está fundado, indiscutivelmente, sobre uma ficção jurídica. A
ficção jurídica resulta de uma transação entre a coerência lógica, a utilidade e a
equidade‖.
Passemos agora ao estudo do requisito crimes da mesma espécie.
Existem aqui duas posições, de acordo com a primeira: ―crimes da mesma
110
espécie não são os crimes previstos no mesmo tipo, mas aqueles que
possuem elementos parecidos, ainda que não idênticos‖ (CAPEZ, 2005, p.507).
De acordo com a segunda, crimes da mesma espécie ―são os previstos no
mesmo tipo penal, isto é, aqueles que possuem os mesmos elementos
descritivos, abrangendo as formas simples, privilegiadas e qualificadas,
consumadas e tentadas‖ (CAPEZ, 2005, p.508). Como lembra Capez, a
jurisprudência orienta-se segundo esta última posição.
Regra geral, a jurisprudência admite a continuidade delitiva no intervalo
de tempo de até 30 dias entre os crimes perpetrados. A característica basilar
do crime continuado é a de poder ser ele objetivamente considerado como
continuação dos delitos anteriores, além de reunir todos os pressupostos legais
de conexão temporal, espacial, modo de execução, entre outros.
Referindo-se
a
análise
desses
pressupostos,
Bitencourt
afirma
(BITENCOURT, 2006, p. 724): ―Porém, todas essas circunstâncias objetivas
não devem ser analisadas individualmente, mas no seu conjunto, e a ausência
de qualquer delas, por si só, não desnatura a continuidade delitiva.‖.
3. CONCURSO DE CRIMES ENTRE O ESTUPRO E O ATENTADO
VIOLENTO AO PUDOR ANTES DO ADVENTO DA LEI 12.015/09
Antes do advento da Lei 12.015/09, o Código Penal tipificava os crimes
de estupro e atentado violento ao pudor em artigos distintos, os arts. 213 e 214,
respectivamente. Deste modo, no dizer da lei, ocorria o crime de estupro
através da conduta de constranger mulher à conjunção carnal, mediante
violência ou grave ameaça, e a pena cominada era de 6 a 10 anos de reclusão.
Já o atentado violento ao pudor, por sua vez, configurava-se por meio da
conduta de constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a
praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção
carnal, com a pena idêntica a do estupro.
Do estudo destes crimes, surgiram várias questões polêmicas, a
respeito, por exemplo, dos sujeitos ativo e passivo do crime de estupro, como
111
também do concurso de crimes entre o estupro e o atentado violento ao pudor.
No entanto, ater-nos-emos ao concurso de crimes entre esses delitos.
Antes disso, entretanto, analisaremos o que se entende por conjunção
carnal e ato libidinoso diverso da conjunção carnal, para efeitos de
configuração dos crimes de estupro e atentado violento ao pudor de acordo
com a legislação anterior.
A ação nuclear do tipo do estupro consistia em constranger mulher à
conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça. Tem-se por conjunção
carnal somente a cópula vagínica, ou seja, a introdução do pênis na cavidade
vaginal da mulher. Já o atentado violento ao pudor caracterizava-se pelo
constrangimento direcionado à prática de ato libidinoso diverso da conjunção
carnal. Nesse sentido, compreendem-se outras formas de realização do ato
sexual, consideradas anormais, como a cópula anal e a oral.
Vale frisar que, após o advento da Lei 8.072/90, conhecida como a Lei
dos Crimes Hediondos, que elevou a pena mínima do atentado violento ao
pudor para seis anos de reclusão, a interpretação do que seria ato libidinoso
diverso da conjunção carnal tornou-se mais restrita. Assim, vejamos os
comentários de Bitencourt:
(...), beijo lascivo, os tradicionais ―amassos‖, toques nas regiões
pudendas, ―apalpadelas‖ sempre integraram os chamados ―atos
libidinosos diversos da conjunção carnal‖. No entanto, a partir da Lei
dos Crimes Hediondos, com pena mínima de seis anos de reclusão,
falta-lhes a danosidade proporcional, que até se pode encontrar no
sexo anal ou oral violento. (BITENCOURT, 2004, p. 12)
Dito isto, passaremos a tratar propriamente do concurso de crimes entre
o estupro e o atentado violento ao pudor antes da vigência da Lei 12.015/09.
Em primeiro lugar, cabe tecer algumas observações acerca das
consequências jurídicas oriundas da prática de atos libidinosos anteriores à
conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça.
Nesta circunstância, fazia-se necessário precisar se os atos libidinosos
praticados antes da cópula vagínica se configurariam como atos preparatórios
do estupro ou se já estaríamos diante da conduta consumada do atentado
violento ao pudor.
Capez tratou bem da matéria elencando essas duas situações:
112
(a) se as carícias preliminares estiverem dentro do mesmo
desdobramento causal da subseqüente conjunção carnal, haverá
absorção do atentado violento ao pudor pelo estupro, por força do
princípio da consunção, funcionando os atos anteriores como meio
necessário e atos preparatórios da relação sexual posterior; (b) os
atos libidinosos são bem destacados da conjunção carnal, tratandose de mera renovação de ânimo de um agente já saciado em sua
lascívia inicial. (CAPEZ, 2005, p.13)
E acrescentou ainda que: ―Neste último caso, embora em semelhante
situação de tempo e lugar, pode-se afirmar a existência de dois contextos
distintos.‖ (CAPEZ, 2005, p. 13).
Deste modo, se a prática dos atos libidinosos fosse de ocorrência
necessária, ou, ainda, se correspondiam àqueles de pequena monta,
entendidos como preparatórios, haveria a absorção do crime de atentado
violento ao pudor pelo de estupro. Por outro lado, se os atos fossem praticados
com finalidade autônoma, independente, restaria configurado o concurso de
crimes.
Assim, vejamos os exemplos dados por Greco:
(...), quando o agente, para levar a efeito a penetração relativa à
conjunção carnal, passa as mãos ou o pênis na coxa da vítima, ou,
ainda, quando lhe acaricia os seios, tais atos não podem ser
considerados suficientes para se reconhecer a figura autônoma do
atentado violento ao pudor. No entanto, se o agente, por exemplo,
obriga a vítima a com ele praticar atos de felação ou mesmo o coito
anal antes da conjunção carnal, deverá responder também pelo
atentado violento ao pudor, em concurso de crimes. (GRECO, 2009,
p. 484)
Superada esta questão, passávamos a nos indagar qual a espécie de
concurso a ser aplicada: concurso formal, material ou crime continuado?
Vale lembrar, no entanto, que esta discussão levava em conta a prática
conjunta de conjunção carnal e outro ato libidinoso, não importando se eram
levados a efeito antes ou depois da cópula vagínica.
Tratando-se de mais de uma ação ou omissão, logo de pronto era
afastada a hipótese de concurso formal, que ocorre, como já foi dito, quando o
agente, mediante uma só conduta, pratica dois ou mais crimes. Restava então
saber se se tratava de concurso material ou crime continuado.
113
A maior parte da doutrina defendia o concurso material, sob o argumento
de que não havia a possibilidade de aplicação do benefício do crime
continuado, já que o estupro e o atentado violento ao pudor não eram
considerados crimes da mesma espécie, por se tratarem de tipos penais
distintos.
Passemos agora à análise do concurso de crimes no novo tipo penal do
estupro após o advento da Lei 12.015/09.
4. CONCURSO DE CRIMES NO NOVO TIPO PENAL DO ESTUPRO
A Lei nº. 12.015, de 7 de agosto de 2009, alterou significativamente o
Título VI da Parte Especial do Código Penal, que previa os crimes contra os
costumes, dando-lhe uma nova redação: Dos crimes contra a dignidade sexual.
Com isso, temos que o bem juridicamente protegido pelos tipos penais contidos
neste título não é, mais, nas palavras de Greco (2009), a forma como as
pessoas devem se comportar sexualmente perante a sociedade, mas sim a
tutela da sua dignidade sexual. Assim, o crime de estupro, inserido no Capítulo
I, que cuida dos chamados crimes contra a liberdade sexual, tem como
finalidade a proteção da liberdade sexual da vítima e, num sentido mais amplo,
a sua dignidade sexual.
Vejamos, agora, a nova redação do crime de estupro dada pela Lei
12.015/09:
Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça,
a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se
pratique outro ato libidinoso:
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
o
§ 1 Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a
vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.
o
§ 2 Se da conduta resulta morte:
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.
A justificação do Projeto de Lei do Senado nº. 253, de 2004, que deu
origem à lei em comento, na parte em que se refere ao novo crime de estupro,
assim dispõe:
114
(...) o presente projeto, por inspiração da definição ínsita no Estatuto
do Tribunal Penal Internacional, cria novo tipo penal que não
distingue a violência sexual por serem vítimas pessoas do sexo
masculino ou feminino. Seria a renovada definição de estupro (novo
art. 213 do CP), que implica constranger alguém, mediante violência
ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que
com ele/ela se pratique outro ato libidinoso. A nova redação pretende
também corrigir outra limitação da atual redação, ao não restringir o
crime de estupro à conjunção carnal em violência à mulher, que a
jurisprudência entende como sendo ato sexual vaginal. Ao contrário,
esse crime envolveria a prática de outros atos libidinosos. Isso
significa que os atuais crimes de estupro (art. 213 do CP) e atentado
violento ao pudor (art. 214 do CP) são unidos em um só tipo penal:
―estupro‖.
Houve, portanto, a revogação do art. 214 do CP, com a consequente
reunião das condutas antes descritas nos arts. 213 e 214 do CP em um só tipo
penal, sob a denominação de ―estupro‖. Contudo, nada foi dito sobre as
consequências jurídicas destas alterações no que tange ao concurso de
crimes.
Para nós, o tipo penal passa a ser de ação múltipla ou de conteúdo
variado, e não de ação única, porque há a previsão de mais de um
comportamento típico: a) constranger a ter conjunção carnal; e b) constranger a
praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.
Trata-se, ainda, a nosso ver, de um tipo misto cumulativo, a exemplo dos
crimes previstos nos arts. 208 (ultraje a culto e impedimento ou perturbação de
ato a ele relativo), 242 (parto suposto e supressão ou alteração de direito
inerente ao estado civil de recém-nascido), e 244 (abandono material).
É tipo misto cumulativo aquele que prevê figuras delitivas distintas, sem
fungibilidade entre elas, devendo o agente ser responsabilizado, em concurso
de crimes, caso incorra em mais de uma delas.
Tem-se, portanto, que o art. 213 do CP passou a prever um crime de
ação múltipla, ou de conteúdo variado, na modalidade tipo misto cumulativo,
sob o argumento de que:
a alteração legislativa buscou reforçar a proteção do bem jurídico e
não enfraquecê-lo; caso o legislador pretendesse criar um tipo penal
de ação única ou misto alternativo não distinguiria a "conjunção
carnal" de "outros atos libidinosos", pois é notório que a primeira se
insere no conceito segundo, mais abrangente. Portanto, bastaria que
tivesse redigido o tipo penal da seguinte maneira: "Art. 213.
115
Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar
ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso". Visível, portanto,
que o legislador, ao continuar distinguindo a conjunção carnal dos
"outros atos libidinosos", não pretendeu impor única sanção em caso
de condutas distintas. (NETO, 2009)
A partir do exposto, passaremos a analisar qual a espécie de concurso a
ser aplicada no caso da prática conjunta de conjunção carnal e outros atos
libidinosos, se concurso material, crime continuado, ou até mesmo as duas, e
em que hipóteses se dará cada uma delas.
4.1. Crime continuado
Muitos autores têm sustentado que, a partir de agora, com a unificação
dos crimes de atentado violento ao pudor e estupro em um só tipo penal,
abriram-se as portas para o reconhecimento da continuidade delitiva, já que os
delitos passaram a ser crimes da mesma espécie.
Com razão, a maioria doutrinária e jurisprudencial não considerava o
estupro e o atentado violento ao pudor como crimes da mesma espécie, por
estarem previstos em tipos distintos. Porém, agora, como os delitos passaram
a ter a mesma tipificação penal, não há dúvidas de que serão considerados
crimes da mesma espécie.
Contudo, cremos que isso não basta para o reconhecimento do crime
continuado. Como já foi dito, conforme a teoria objetivo-subjetiva, que
seguimos, é necessário, além do preenchimento dos requisitos objetivos, outro,
de ordem subjetiva, a unidade de desígnio.
Nesse
sentido,
também
já
era
o
entendimento
de
parte
da
jurisprudência.
Foi
o
que
se
verificou
no
julgamento
da
Apelação
Criminal
20051010051848, pelo egrégio Tribunal de Justiça do Distrito Federal, que
entendeu correta a aplicação do concurso material entre os crimes de estupro e
atentado violento ao pudor por não serem considerados crimes da mesma
espécie, ressaltando, contudo, que a Corte, acompanhando o STJ, entendia
que não bastava para a caracterização da continuidade delitiva apenas o
116
preenchimento dos requisitos de ordem objetiva, como as circunstâncias de
tempo, lugar e modo de execução do crime, sendo necessária, também, a
presença do requisito da denominada unidade de desígnios ou do vínculo
subjetivo entre os eventos, de acordo com a teoria mista ou objetivo-subjetiva.
A unidade de desígnio, também denominada, por Greco (2009), de
relação de contexto entre as ações criminosas, pode ser presumida, quando o
agente pratica, num mesmo ato sexual, mais de um comportamento típico
previsto no art. 213 do CP.
Haverá, portanto, a unidade de dolo ou de desígnio do agente, quando o
seu intuito for a satisfação de uma mesma lascívia. Como, por exemplo,
quando, num mesmo contexto fático, o agente obriga a vítima a praticar atos de
felação com ele, e depois a constrange à pratica da conjunção carnal. Neste
caso, restaria configurado o crime continuado.
4.2. Concurso material
Por outro lado, não se justifica a adoção da tese da continuidade delitiva
quando houver a prática conjunta de conjunção carnal e outro ato libidinoso se
o agente atuou com finalidade autônoma, ou independente, ―tratando-se de
mera renovação de ânimo de um agente já saciado em sua lascívia inicial‖.
(CAPEZ, 2005, p. 13)
Nesse caso, percebe-se que há o que o Código Penal chama de
―desígnios autônomos‖, e o agente deverá ser responsabilizado pela prática de
dois estupros, em concurso material.
Essa foi a intenção do legislador, ao diferenciar o concurso formal
próprio do impróprio, quanto ao sistema de aplicação da pena, pela unidade ou
pluralidade de desígnios do agente. Conforme Bitencourt (2006, p. 719),
―enquanto no concurso formal próprio adotou-se o sistema de exasperação da
pena, pela unidade de desígnios, no concurso formal impróprio aplica-se o
sistema do cúmulo material, como se fosse concurso material, diante da
diversidade de intuitos do agente (art. 70, § 2º)‖.
117
Diversos tribunais pátrios já entendiam que, no caso de desígnios
autônomos do agente, haveria concurso material entre os crimes de estupro e
atentado violento ao pudor, antes da Lei 12.015/09. Assim vejamos:
APELAÇÃO CRIMINAL - ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO
PUDOR - CONCURSO MATERIAL - POSSIBILIDADE PRECEDENTES DO STJ E DO STF - APELO IMPROVIDO.
DECISÃO UNÂNIME. A constatação de desígnios autônomos no
cometimento de crimes contra a liberdade sexual implica a
aplicação do concurso material. Não se deve aplicar o princípio da
consunção quando o atentado violento ao pudor não for meio natural
para a realização do estupro. A jurisprudência do STJ e do STF está
sedimentada no sentido de reconhecer a aplicação do concurso
material dos delitos de estupro e atentado violento ao pudor. Apelo
Improvido. Decisão unânime. (TJSE; APR 2007300234; Câmara
Criminal; rel. Des. Manuel Pascoal Nabuco D`Avila; julgamento
14/05/2007). (grifo nosso).
APELACAO CRIMINAL - ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR PROVAS SUFICIENTES - CONCURSO MATERIAL COM CRIME DE
ESTUPRO - POSSIBILIDADE - DESIGNIOS AUTONOMOS RECURSO PROVIDO. (...) Se além da conjunção carnal e praticado
outro ato de libidinagem, que não se ajuste aos prealudia coiti,
caracterizando animo diverso do agente, que não o de estuprar,
ocorre o concurso material de crimes. Recurso provido para condenar
o apelado também pela pratica do delito de atentado violento ao
pudor. (TJES; APR 8009000301; Primeira Câmara Criminal; rel.
Antônio José Miguel Feu Rosa; publ. 06/06/2001).
O Supremo Tribunal Federal também já se manifestou favoravelmente à
aplicação do concurso material, em caso de pluralidade de desígnios:
HABEAS CORPUS. PENAL. CRIMES DE ESTUPRO E ATENTADO
VIOLENTO AO PUDOR. DELITOS AUTÔNOMOS. CONCURSO
MATERIAL. ORDEM DENEGADA. I - Para que se verifique a
ocorrência da continuidade delitiva ou do concurso material quando
se trata dos crimes de estupro e de atentado violento ao pudor,
praticados contra a mesma vítima, cumpre examinar a intenção do
agente. II - No caso em espécie, o propósito do réu foi duplo, a saber,
o de constranger a vítima a submeter-se, primeiro, ao coito anal e,
depois à conjunção carnal. III - A partir dos fatos narrados na
sentença a condenatória, é possível concluir que o desígnio do
agente foi o de cometer dois crimes autônomos, não deixando
dúvidas quanto ao acerto da aplicação da pena correspondente ao
concurso material. IV - Ordem denegada. (STF; HC 96959; SP;
Primeira Turma; Rel. Min. Ricardo Lewandowski; julgamento
10/03/2009)
Por tudo isso, defendemos a tese de que, no caso da prática conjunta de
conjunção carnal e outro ato libidinoso que não aqueles que se ajustam ao
118
conceito de prealudia coiti, haverá concurso de crimes; na modalidade crime
continuado, pela unidade de desígnio do agente, ou concurso material, em
caso de desígnios autônomos.
5. A REFORMA TERIA TRAZIDO A HIPÓTESE DE CRIME ÚNICO?
Muitos articulistas e doutrinadores com o advento da lei 12.015/2009,
afirmam, categoricamente, que diante da prática das duas condutas ter-se-á
crime único, ou, no máximo, crime continuado quando preenchidos os
requisitos do art.71 do CP. ―Sob o prisma da nova lei, praticar penetração
vaginal e penetração oral ou anal, desde que realizadas num espaço de tempo
reduzido, é considerada a prática de uma única conduta criminosa, restando
assim a aplicação de uma pena única‖ (LEMOS, 2009).
O Egrégio Superior Tribunal de Justiça em decisão recente do dia 09 de
fevereiro do corrente ano no julgamento do Habeas Corpus 144.870-DF,
entendeu que a prática de conjunção carnal e ato libidinoso diverso no mesmo
contexto e contra a mesma a vítima configuraria crime único tendo em vista a
mudança legislativa. Vejamos:
ESTUPRO. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. LEI N.
12.015/2009. Trata-se de habeas corpus no qual se pleiteia, em
suma, o reconhecimento de crime continuado entre as condutas de
estupro e atentado violento ao pudor, com o consequente
redimensionamento das penas. Registrou-se, inicialmente, que,
antes das inovações trazidas pela Lei n. 12.015/2009, havia fértil
discussão acerca da possibilidade de reconhecer a existência de
crime continuado entre os delitos de estupro e atentado violento ao
pudor, quando o ato libidinoso constituísse preparação à prática do
delito de estupro (...), ou de determinar se tal situação configuraria
concurso material sob o fundamento de que seriam crimes do
mesmo gênero, mas não da mesma espécie. A Turma concedeu a
ordem ao fundamento de que, com a inovação do Código Penal
introduzida pela Lei n. 12.015/2009 no título referente aos hoje
denominados ―crimes contra a dignidade sexual‖, especificamente
em relação à redação conferida ao art. 213 do referido diploma legal,
tal discussão perdeu o sentido. Assim, diante dessa constatação, a
Turma assentou que, caso o agente pratique estupro e atentado
violento ao pudor no mesmo contexto e contra a mesma vítima, esse
fato constitui um crime único, em virtude de que a figura do atentado
119
violento ao pudor não mais constitui um tipo penal autônomo, ao
revés, a prática de outro ato libidinoso diverso da conjunção carnal
também constitui estupro. (...) Ressaltou-se ainda que, não obstante
o fato de a Lei n. 12.015/2009 ter propiciado, em alguns pontos, o
recrudescimento de penas e criação de novos tipos penais, o fato é
que, com relação a ponto específico relativo ao art. 213 do CP, estáse diante de norma penal mais benéfica (novatio legis in mellius).
Assim, sua aplicação, em consonância com o princípio constitucional
da retroatividade da lei penal mais favorável, há de alcançar os
delitos cometidos antes da Lei n. 12.015/2009, e, via de
consequência, o apenamento referente ao atentado violento ao
pudor não há de subsistir. Todavia, registrou-se também que a
prática de outro ato libidinoso não restará impune, mesmo que
praticado nas mesmas circunstâncias e contra a mesma pessoa,
uma vez que caberá ao julgador distinguir, quando da análise das
circunstâncias judiciais previstas no art. 59 do CP para fixação da
pena-base, uma situação da outra, punindo mais severamente
aquele que pratique mais de uma ação integrante do tipo, pois
haverá maior reprovabilidade da conduta (juízo da culpabilidade)
quando o agente constranger a vítima à conjugação carnal e,
também, ao coito anal ou qualquer outro ato reputado libidinoso. Por
fim, determinou-se que a nova dosimetria da pena há de ser feita
pelo juiz da execução penal, visto que houve o trânsito em julgado
da condenação, a teor do que dispõe o art. 66 da Lei n. 7.210/1984.
(STJ; HC 144.870; DF, Sexta Turma, Rel. Min. Og Fernandes,
julgamento 9/2/2010).
Todavia, não concordamos com esse posicionamento, posto que, na
atual configuração do ordenamento jurídico nacional e mundial, deve-se deixar
de lado o legalismo extremado e perceber o Direito como um fato social e não
como um conjunto de leis que precisam ser decoradas e aplicadas
independentemente de suas conseqüências.
Um intervalo de seis a dez anos é muito pequeno para serem
consideradas as circunstâncias da aplicação da pena do art. 68 do CP como
fator diferenciador do agente que pratica uma só conduta para aquele que
pratica mais de uma. Tal situação é, no mínimo, injusta e desproporcional,
contrariando, a nosso ver, o princípio da individualização da pena, previsto no
art. 5º, XLVI, da CRFB/1988, tendo em vista que o intervalo para enquadrar
quem pratica apenas uma ou duas condutas permaneceu o mesmo, já previsto
antes da reforma, para quem praticava apenas uma das condutas.
Falar em crime único seria justificável se tivesse ocorrido um aumento
da pena cominada, pois diante de algumas circunstâncias como a criação do
120
estupro de vulnerável (art. 217-A) vê-se que o legislador com a reforma quis
proteger o bem jurídico e não enfraquecê-lo.
Ademais, com base em outros crimes que se referem a essas condutas,
percebe-se que o legislador quando quer se referir mais amplamente fala em
―ato de libidinagem‖, como na antiga redação do art. 218, e não separado como
no art. 213 e outros artigos do título dos crimes contra a dignidade sexual.
Gênova (2009), apesar de defender ao longo de seu artigo o crime
único, conclui nele o seguinte: ―A nova legislação evoluiu tecnicamente em
alguns aspectos, mas retrocedeu ao revogar o art.214 do Código Penal o que
torna a lei, em alguns aspectos, mais benéfica‖. Note-se que ele também
concorda ter sido cometida uma injustiça por essa parte da lei.
Defendemos, portanto, que o crime único se configura nas mesmas
circunstâncias em que já o era antes da reforma, ou seja, as circunstâncias
preparatórias, as quais devem ser absorvidas pelo ato principal. Circunstâncias
preparatórias essas referentes a toques, beijos lascivos, entre outras condutas
elencadas pela doutrina antes mesmo da reforma.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do que foi exposto neste artigo pode-se perceber que a solução
proposta como mais viável no esclarecimento da problemática do concurso de
crimes no novo tipo penal do estupro seria a aplicação do concurso material de
crimes quando houver a pluralidade de desígnios, presumida quando o crime
for cometido para satisfação de lascívias distintas, e do crime continuado no
caso de satisfação da mesma lascívia, tendo em vista que seguimos aqui a
teoria objetivo-subjetiva.
Permanece o entendimento quanto ao crime único que se dá quando da
prática de atos considerados meramente preparatórios para o cometimento da
conjunção carnal, do sexo anal e do oral, juntamente com um desses atos.
A nosso ver, a única inovação da reforma refere-se ao fato de permitir-se
a continuidade delitiva tendo em vista que os crimes são da mesma espécie,
evidentemente, quando houver a unidade de desígnios.
121
É de suma importância que se defenda a permanência da aplicação do
concurso de crimes quando ocorrer a prática, conjunta ou separada, das
condutas previstas no caput do art. 213 do Código Penal, por tratar-se de um
crime de ação múltipla ou de conteúdo variado na modalidade misto
cumulativo. Caso contrário, estar-se-á diante de grave violação ao princípio de
individualização da pena.
Em que pese a decisão recente do STJ no sentido de considerar crime
único a prática de conjunção carnal e ato libidinoso diverso no mesmo contexto
e contra a mesma a vítima, não podemos compartilhar desse entendimento
porque o mesmo viola o princípio constitucional da individualização da pena e
deixa mais vulnerável a proteção da dignidade sexual que fica, evidentemente,
abalada já que o indivíduo que comete as duas condutas do art. 213 do CP
será punido com uma diferença ínfima em relação ao que pratica apenas uma
conduta.
Ora, a liberdade sexual das vítimas desses crimes tão bárbaros e que
lhes acarretam tantos prejuízos deve ser protegida e foi essa a intenção do
legislador com a reforma penal, não fazendo sentido, agora, beneficiar o
indivíduo que pratica essas condutas.
7. REFERÊNCIAS
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2009.
124
CRIME ORGANIZADO:
Perspectivas e Problemáticas Legislativas Atuais
Diego Gayoso Meira Suassuna de Medeiros75
Igor Rafael Maul Meira de Vasconcelos76
RESUMO
Apresentando-se como consequência da ausência do Estado em prestar as ações sociais
devidas, a criminalidade organizada se apresenta atualmente como um dos maiores problemas
a ser enfrentado pela sociedade mundial. Silenciosa e meticulosa, a estrutura movida pelos
grupos criminosos organizados ostenta um poder que invade e corrompe os mais altos setores
da atividade pública. Tendo em vista sua capacidade de se camuflar em meio à sociedade,
difícil se torna para o legislador estabelecer medidas precisas que restrinjam cada vez mais as
brechas de atuação sob a sombra da impunidade desses grupos. Dentro desse contexto, o
presente artigo procura apresentar e atualizar os principais aspectos do crime organizado;
discorrendo sobre os fatores responsáveis por seu surgimento, multiplicação e evolução;
analisando seus elementos e estrutura; bem como fazendo uma breve explanação da
legislação de combate vigente e das alternativas legais em pauta, apresentando seus
mecanismos de investigação, traçando um estudo paralelo em relação à constitucionalidade e
omissões de tais mecanismos e sugerindo mudanças, sem a pretensão de produzir verdades
absolutas. Quanto aos meios, a pesquisa foi bibliográfica, sendo realizado um estudo crítico.
Palavras-chave: Crime Organizado. Aspectos Gerais. Mecanismos Legais.
Limites
Constitucionais.
ABSTRACT
As a result of the State‘s absence in providing social acting, the organized crime is one of the
biggest problems being faced by the world society today. Silent and meticulous, the structure
moved by the organized criminal groups displays a power that invades and corrupts the highest
levels of public setors. Because of its ability in camouflage between society, it becomes difficult
to establish precise measures that can restrict the holes of actuation in the shadows of impunity.
Inside this context, this articles looks out to present and update the main aspects of the
organized crime; bringing up the factors responsible for its emerging, multiplication and
development; analysing its elements and structure; as well as doing a brief explanation of the
repression law in vigor and of the current legal alternatives, presenting their investigation‘s
mechanisms, drawing a parallel study of the constitutionality and omissions of such
mechanisms and suggesting changes, without the pretension of making up absolute thuths. As
for the ways, the research was bibliographic, being accomplished a critical study.
Keywords: Organized Crime. General aspects. Legal mechanisms. Constitucional limits.
75 Acadêmico do Curso de Direito da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Endereço para
correspondência: [email protected].
76 Acadêmico do Curso de Direito da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Endereço para
correspondência: [email protected].
125
1 INTRODUÇÃO
O mundo moderno trouxe, com os processos de abertura econômica e a
globalização, muitos fatores positivos para a sociedade, porém, foi também
nesse meio, que os criminosos encontraram espaço abundante para
aperfeiçoar suas condutas ilícitas, trazendo a tona este fenômeno crescente
que é o da criminalidade organizada.
Situado na área do Direito Penal, o presente trabalho apresenta um
estudo atual sobre as organizações criminosas em geral, abordando os
aspectos principais deste fenômeno que se encontra em um patamar mais
elevado que o da criminalidade comum.
A problemática da presente obra encontra embasamento na discussão
sobre a eficácia, constitucionalidade e omissões da legislação criada para
combater a criminalidade organizada, bem como das alternativas legais que se
colocam em pauta nos dias de hoje.
A metodologia que utilizamos foi a pesquisa bibliográfica qualitativa,
realizamos um estudo crítico e apresentamos nossos entendimentos
fundamentados em livros, artigos jurídicos, leis, projetos e convenções.
Em
um
primeiro momento,
discorreremos sobre
os elementos
formadores e distintivos, a estrutura e o funcionamento desse mal de
conseqüências tão vorazes para a sociedade
Em seguida, apresentaremos uma sistematização dos principais
mecanismos previstos na legislação brasileira a respeito das organizações
criminosas, como delação premiada, ação controlada e agente infiltrados,
coleta de dados por meios de comunicação e quebra de sigilos.
Por último, analisaremos a constitucionalidade e eficácia de alguns
mecanismos legislativos, apresentando sugestões para a melhor utilização dos
mesmos.
Entendemos que a abordagem de todos esses pressupostos se
apresenta como a melhor forma para analisar e atualizar os principais aspectos
126
da criminalidade organizada, contudo, não temos a pretensão de esgotar a
polêmica discussão acerca do assunto.
2. ASPECTOS GERAIS
São inúmeras as organizações criminosas presentes na atualidade.
Cada uma apresenta características próprias e peculiares de acordo com as
necessidades e facilidades que encontram no âmbito territorial em que atuam.
Não bastasse a enorme quantidade, há uma dificuldade na acumulação de
dados e informações que viabilizem um quadro completo do fenômeno,
acentuada pela impossibilidade de individualizar as vítimas, já que as
atividades dessa espécie de criminalidade atingem bens gerais e coletivos ou
um número indeterminado de sujeitos.
Mesmo assim, destacamos algumas características tidas como básicas
e que permitem fazer uma diferenciação entre o que pode ser ou não crime
organizado.
A primeira característica comum das organizações criminosas é a prática
de atividades ilícitas. Uma organização do tipo em estudo pode desenvolver
vários tipos de ações criminosas, ações estas que se destinam a oferecer
produtos ou serviços ilícitos à sociedade, ou ainda que lícitos, que sejam
obtidos de forma ilícita, cuja dificuldade na obtenção é exatamente o que os
torna preciosos. Ou seja, apesar da possibilidade de mescla com a licitude, a
ilicitude sempre se faz presente na criminalidade organizada
Outro ponto importante é a obtenção de lucros, principal objetivo dos
grupos organizados, já que a riqueza acumulada com meios ilícitos se traduz
em poder econômico e, portanto, político. A partir desse caractere podem-se
dividir os crimes exercidos por essas organizações em crimes principais aqueles que se destinam à obtenção dos proveitos em larga escala - e crimes
secundários, estes destinados ao exercício das atividades criminosas
principais, os que auxiliam o sucesso dos ilícitos praticados, ao mesmo tempo
em que favorecem a perpetuação da organização.
127
Uma peculiaridade dos grupos organizados em questão é seu alto poder
de intimidação. No âmbito do crime organizado prevalece a lei do silêncio
imposta a seus membros ou até mesmo a pessoas que não integram o grupo
criminoso. Os erros, sobretudo aqueles cometidos por elementos que estão na
base da pirâmide hierárquica existente nas organizações, resultam em
execuções sumárias, como forma de punição e exemplo àqueles que vierem a
trair a sociedade criminosa ou a falhar nas tarefas que lhe forem designadas.
Outra característica de uma organização criminosa, bastante evidente no
Brasil, é o elevado grau de corrupção que seus integrantes podem exercer.
Este fenômeno criminológico atinge órgãos do poder público a ponto de poder
gerar-lhes uma paralisia completa. A maioria absoluta mantém certo grau de
envolvimento com as autoridades e órgãos do setor público como meio de
viabilizar a execução das atividades criminosas. Por vezes, o poder das
organizações dominantes é capaz de influir na justiça não só mediante a
atividade de defensores altamente especializados, mas também através das
mencionadas ações de corrupção, que se tornam mais graves, já que
envolvem órgãos que tem o dever de combater e reprimir ditas organizações,
como a Polícia, o Ministério Público e o Poder Judiciário.
O crime organizado também se caracteriza pela supressão da prova,
pela camuflagem de suas ações. O poderio que as organizações criminosas
dispõem é invisível, pois estas apagam indícios de suas atividades ilícitas,
intimidam testemunhas e impõem a lei do silêncio a todos os integrantes da
organização.
2.1. Estrutura e funcionamento
As
organizações
criminosas
apresentam
um
modus
operandi
diferenciado da criminalidade ordinária. Apesar de haver semelhanças entre a
maioria das organizações, o desenvolvimento da atividade principal é que
ditará o seu modo de funcionamento e como ela será estruturada.
Em comum, temos que todas as organizações criminosas seguem um
planejamento empresarial, possuem estrutura e funcionamento complexos,
128
semelhantes aos de uma empresa, o que torna muito difícil a investigação,
julgamento e punição dos crimes por elas praticados, já que o Estado não
dispõe, na maioria das vezes, de instrumentos eficazes para tais fins.
A divisão de tarefas nesses grupos segue a estrutura empresarial, sua
organização apresenta no mínimo três níveis. Na posição suprema da
organização estão o ―chefe‖ ou os ―chefes‖, sempre em número reduzidíssimo
de pessoas, que dirigem toda organização e tomam as principais decisões.
Estes sujeitos quase nunca aparecem, pois comandam através de ―testas de
ferro‖ ou ―laranjas‖.
A figura dos ―gerentes‖ aparece logo em seguida a dos chefes. São
pessoas de confiança destes, com capacidade de comando, a quem é
delegado algum poder. Os gerentes servem, na maioria das organizações,
como ―testas de ferro‖ ou ―laranjas‖, pois para todos os efeitos e aparências,
são eles que emitem as ordens, protegendo fielmente a figura de seus
superiores, bloqueando o acesso ao centro de comando.
Por último, temos os ―aviões‖, pessoas com algumas qualificações para
as funções de execução a serem desempenhadas, sendo responsáveis pelas
mais variadas atividades. Cada ação deverá ser desempenhada pelo
respectivo executor com habilidade própria para tal e conforme as ordens
passadas pela gerência, devendo ter destino por ela preestabelecido.
Ainda existem aqueles denominados de ―associados‖, que sem
pertencerem à organização, prestam serviços para esta.
Uma quadrilha não se confunde com organização criminosa porquanto
não revela estrutura organizacional. Mendroni dá o seguinte exemplo:
Uma quadrilha que reúna quatro ou cinco componentes estabelece que
terá como móvel principal a prática de assalto a bancos. Combinam a
agência vítima, armam-se, preparam precariamente o plano e
executam. Já uma verdadeira organização criminosa com a mesma
finalidade teria o cuidado de estudar o esquema de vigilância da
agência bancária, perceber os dias de maior movimentação financeira,
tentar arrebanhar algum funcionário para atuar como co-autor – que
trará dados mais concretos de locais, segredos de cofres etc. - planejar
a exata atividade de cada integrante, procurar forma de evitar o sinal
de alamar etc. (MENDRONI, 2009, p. 49)
Assim, o crime organizado se diferencia dos demais na medida em que
requer que haja um nível de sofisticação adequado, um aparelhamento
129
complexo, uma estruturação forte e um liame associativo diverso das
quadrilhas comuns de que trata o art. 288 do nosso CP. Entendemos que para
as ditas ―organizações criminosas‖ que não atingirem um nível organizacional
empresarial, cumpre ao Estado puni-las na forma da lei substantiva, que para
tais casos prevê a sanção descrita no artigo acima citado.
4. MECANISMOS LEGAIS
A legislação brasileira atualmente impõe uma série de medidas que
viabilizam a atuação investigativa por meio do Estado e a posterior penalização
dos responsáveis, como é o caso da delação premiada, a ação controla com
agentes infiltrados, a captação de informações por meio dos meios de
comunicação e a quebra de sigilos bancário e fiscal.
Alguns instrumentos provocam sérias críticas pela sua aplicação, outros
arrancam elogios e recebem constantes sugestões para maior abarcamento de
órgãos interessados e conseqüente aprimoramento dos institutos.
Os mecanismos legais de combate ao crime organizado sempre devem
ser decorrentes de uma criação legislativa específica derivada de firme vontade
política para que a defesa social não reste prejudicada e a sociedade não se
encontre nas mãos das sujeições criminosas.
4.1. Delação Premiada
A delação premiada encontra sua origem no acordo de vontades entre
as partes, onde a situação de revelação dos dados se dá entre o acusado, que
pode estar representado por advogado; o Promotor de Justiça e, após prévia
concordância deste, o Juiz de Direito.
A partir desta consensualidade agora existente entre as partes, o agente
que concordou com a imputação atribuída à sua pessoa passará a colaborar da
maneira mais eficaz possível com a administração da justiça, delatando fatos
que supostamente nunca seriam descobertos por meio das investigações
130
tradicionais, ou, caso o fossem, emanariam muito tempo e dinheiro para os
cofres do Estado.
Por se tratar de uma autorização concedida por lei aos agentes públicos
para que estes celebrem ―acordos‖ com os criminosos, muitos doutrinadores
sustentam a opinião de que a delação premiada se reveste de prática antiética.
Porém, há os que sustentem opinião contrária, como é o caso de Mendroni
(2009, p.82), autor da tese de que com a delação premiada ―permite-se um
afrouxamento de punição pela facilitação da ação da justiça em face do
objetivo de coibir a continuidade ou majoração da prática criminosa de maior
vulto e/ou intensidade. Bem aplicada, torna a investigação mais rápida e mais
eficiente‖.
Outra opinião contrária àqueles que repudiam a delação premiada
consiste no argumento de que não se configura em uma ofensa ao princípio da
proporcionalidade ou da igualdade aplicar penas diferenciadas contra, por
exemplo, dois criminosos que praticaram o mesmo crime. Desta forma, a pena
deve ser aplicada de acordo com as particularidades de cada caso, conforme
apontam as circunstâncias elencadas pelo art. 59 do Código Penal.
As falsas delações consistem num verdadeiro problema para o Estado
quando este decide atuar na investigação criminosa valendo-se da delação
premiada. Por meio de falsas revelações, membros acuados que compõem
uma organização criminosa buscam prejudicar comparsas, valendo-se de
crimes como a Denunciação Caluniosa (art. 339, CP) ou mesmo a própria
Calúnia (art. 138, CP), contribuindo apenas para o afastamento de todos os
benefícios que lhe seriam dignos se contribuíssem de maneira eficaz com a
Administração da Justiça, bem como para o próprio agravamento da pena
devido a maior reprovabilidade da conduta.
Apesar de existirem os defensores da aplicação deste instituto, parte
destes encontra um grave defeito na legislação que abarca o tema: a
exagerada concessão de benefícios ao arrependido delator que eficazmente
colabore com a Justiça. Como exemplos, temos a elevada diminuição das
penas, a aplicação do perdão judicial e a substituição de penas privativas de
liberdade.
131
Talvez, de todas as leis que trazem a delação premiada e tratam de
crime organizado, a que confere mais discricionariedade ao Juiz de Direito é a
Lei de Combate ao Crime Organizado (LCCO - Lei n° 9.034/95).
Fica estabelecida, em seu art. 6°, a redução da pena de um a 2/3 a
quem o Juiz considere haver colaborado, espontaneamente, ao esclarecimento
de infrações penais e suas autorias. Conclui-se, portanto, que não bastará para
o agente apontar somente os fatos criminosos; cumpre a ele também apontar
as respectivas autorias. Assim, o Juiz determinará em sua sentença a redução
da pena de maneira proporcional a sua colaboração.
Apesar dessa sua maior rigidez, a Lei n° 9.034/95 ficou tacitamente
revogada após o advento da Lei 9.807/99, o que restringe a sua aplicação tão
somente às situações de outros processos, àqueles que se referem a
organizações criminosas.
Por fim, cumpre acrescentar outra lei que aderiu à delação premiada
como forma de combater o crime organizado. Trata-se da lei de crimes contra a
ordem tributária, econômica e relações de consumo, a Lei n° 8.137/90.
Esclarece o art. 16 da lei citada no parágrafo anterior que quaisquer
crimes praticados contra a ordem tributária, econômica ou relações de
consumo por integrante de organização criminosa, poderão se beneficiar da
diminuição de pena, desde que aponte à autoridade policial todo o esquema
criminoso.
Desta forma, o benefício da delação premiada estabelecido na Lei
8.137/90 cumpre com o principal fim da delação: ―negociar‖ a diminuição da
pena em troca de menor desgaste investigativo e processual por parte da
Administração da Justiça.
4.2. Ação Controlada/ Agente infiltrado
A ação controlada consiste no retardamento e na espera do melhor
momento para a atuação policial repressiva contra os criminosos integrantes da
organização criminosa. A Lei n° 9.034/9 (LCCO) traz sua definição no art. 2º,
inciso II.
132
A Ação pode ser praticada na forma de flagrante esperado – forma que
vem sendo admitida pela jurisprudência – na medida em que a Polícia não só
recebe a notícia da prática de um crime para então aguardá-lo, porém, mantém
o estado de vigilância permanente, sempre se valendo dos mais diversos
meios de monitoramento, como é o caso da escuta telefônica, dentre outros.
Para que tenha início, apesar de não expresso em lei, a Ação
Controlada necessita de uma autorização judicial. Sem a devida autorização
por parte do Judiciário, a ação deverá ser declarada ilegal. Além disso, corre-se
o sério risco de, por exemplo, um policial passar a dar cobertura a determinado
grupo criminoso organizado alegando está em ação controlada.
Mesmo com a edição da Lei 10.217/01, que definiu novas regras para a
aplicação dos mecanismos legais de combate ao crime organizado, o legislador
deixou escapar a oportunidade de definir os critérios da ação controlada. Pela
redação que se encontra na Lei n° 9.034/95, fica confuso para o intérprete
entender se o controle cumpre ao Ministério Público ou ao Juiz de Direito.
Concomitante à Ação Controlada tem-se o trabalho dos agentes
infiltrados. Por meio dessa estratégia que se desenvolve dentro do trabalho da
Ação Controlada, agentes policiais ou agentes do serviço de inteligência
passam a integrar a organização como se fossem um membro efetivo desta.
Por meio da infiltração de agentes fatos criminosos não esclarecidos
podem ser desvelados, tais como o nome dos ―chefões‖ da organização, nome
dos chamados ―laranjas‖ ou ―testas-de-ferro‖, os bens que possui, plano de
execução de crimes, agentes públicos envolvidos, principais mecanismos para
efetuar a lavagem de dinheiro, bem como os sujeitos e empresas que cumprem
tal papel etc.
A infiltração de agentes deve ter autorização judicial para início dos
trabalhos. E, após autorização concedida, cabe ao agente buscar o máximo de
informações possíveis, sempre no âmbito e no limite de suas atividades na
coleta das provas, que consiste na apreensão de documentos de todo o tipo,
desde papéis a arquivos magnéticos. Posteriormente, após a apreensão das
provas, o agente deverá reportar as condições de tempo, lugar e condições em
que foram apreendidas, não só para viabilizar o exercício da ampla defesa e do
133
contraditório, mas também para apreciação judicial das condições de sua
legalidade.
Como o agente se encontra dentro da organização, é muito provável que
ele possa ser submetido à prática de condutas típicas. O que tem sido
recomendado para situações como esta é que o agente haja com muita
habilidade, de forma a escapar daquela situação, para logo em seguida obter o
auxílio dos seus companheiros policiais, sendo este momento propício para a
realização de uma prisão em flagrante.
Às Ações Controladas realizadas com infiltração de agentes, é garantido
o sigilo das operações pela Lei n° 10.217/01 em seu art. 2°, parágrafo único.
A
proteção
de
identidade
também
é
garantida
aos
agentes,
considerando que a atividade desempenhada por estes prescinde de um
máximo em cautela para que possam trabalhar com segurança e tranqüilidade.
Vale salientar que é possível um agente infiltrado ser utilizado posteriormente
como testemunha, sempre se preservando sua identidade e sendo concedido
tratamento especial à sua família. Trata-se de um caso o qual a lei silenciou.
4.3. Coleta de dados em meios de comunicação
Dentre todos os mecanismos legais disponíveis para combate da
criminalidade organizada, a coleta de dados em meios de comunicação é sem
dúvida a mais empregada, eficiente e interessante.
A matéria encontra-se definida em Lei própria (9.296/96) e encontra
respaldo constitucional, conforme se elenca no art. 5°, X e XII. Desta forma, a
Constituição dispensa tratamento especial à proteção da intimidade, à vida
privada e à imagem das pessoas, que ―podem‖ ser vulneradas a qualquer
momento por meio de instrumentos de comunicação e gravação.
A interceptação de comunicações é autorizada para a produção de
prova em investigação criminal e em instrução penal, devendo ser produzida
em segredo de justiça exatamente em decorrência da necessidade de proteção
dos dados em relação às pessoas fora do processo.
134
A sua execução encontra-se disciplinada no art. 6° da referida lei,
cabendo à autoridade policial ou ao Ministério Público - caso possua condições
físicas e estruturais para tanto – dar prosseguimento às investigações por meio
de outras medidas investigatórias.
No tocante a gravação clandestina, ou seja, aquela onde um dos
interlocutores realiza a gravação, portanto, participa da conversa, e depois
divide essa intimidade com a outra pessoa com quem conversava, não comete
violação alguma por simplesmente não possuir autorização judicial para tanto.
Do mesmo jeito a interceptação e gravação ambiental, gravação esta
que se faz por meio da instalação de microfones dotados de potentes
amplificadores em locais previamente investigados e estrategicamente
selecionados. A gravação clandestina ambiental, desde que o agente participe
da conversa e que os demais presentes tenham conhecimento de que a
conversa está sendo gravada, não dá ensejo à ilicitude por não possuir
autorização judicial.
A situação é mais delicada quando se trata de interceptação e gravação
de imagens. Ocorrendo o fato em qualquer área pública ou de acesso ao
público, a gravação é evidentemente permissível; se, por outro lado, a situação
acontecer em local privado em que o agente captador das imagens não tiver
autorização a participar ou ingressar e cuja presença for de desconhecimento
dos personagens, deverá revestir-se da competente autorização do Poder
Judiciário, conforme determina a Lei n°10.217/2001.
Outro apaixonante debate doutrinário tem-se desenvolvido em torno da
questão dos extratos telefônicos: seria violação à intimidade da pessoa a
análise de seu extrato telefônico? Para Mendroni:
os extratos telefônicos devem ser considerados protegidos de sigilo
relativo, não do sigilo constitucionalmente protegido – que exige
autorização judicial, mas de sigilo passível de ser desvelado por
requisição do Ministério Público a nível de investigação ou processo
criminal, ou mesmo a nível de inquérito civil ou ação civil pública. Não
podem ser entregues a qualquer pessoa que os solicite, mas sim ao
Ministério Público, sempre necessários ao âmbito da investigação
(MENDRONI, 2009, p.128)
Por fim, cumpre ressaltar que uma vez autorizada e realizada a ―quebra‖
das comunicações, depois de produzida a prova pela gravação em meio
135
magnético e a conseqüente degravação, nada impede que seja o material
remetido em forma de prova emprestada a outro juízo, criminal ou cível, ou à
autoridade administrativa, ao critério do Juiz Criminal que autorizou ou o
competente, ouvido sempre o Ministério Público oficiante.
Acrescente-se que se a prova houver sido corretamente produzida no
âmbito de uma das esferas de jurisdição, Federal ou Estadual, por Juízo
Criminal competente no momento da ordem, nada impede que, em eventual
alteração da competência, possa ser aproveitada no juízo destinatário.
4.4. Quebra de sigilos: bancário e fiscal
Os mecanismos legais denominados ―quebra de sigilo bancário e quebra
de sigilo fiscal‖ cumprem com seu importante papel de fornecer informações
poderosas no decurso da investigação criminosa e também durante os
processos relacionados aos crimes cometidos por organizações criminosas, em
especial ao crime de lavagem de dinheiro, pois, como já foi dito anteriormente,
não existe organização criminosa que não necessite ―lavar‖ dinheiro para
garantir o capital de giro e o sucesso de seus negócios.
A
fundamentação
legislativa
para
utilização
destas ferramentas
encontra-se na Lei Especial n° 105/2001, além da Lei n° 4.595/64 que em
virtude de sua ―idade‖ não é utilizada em sua totalidade, buscando-se apenas
alguns ―recortes‖ para auxiliar o agente investigador.
Um importante comentário pode ser utilizado para início deste tópico no
que concerne aos conceitos de intimidade e vida privada, afinal, sabe-se que a
Constituição Federal estabelece em seu artigo 5°, X a inviolabilidade das
mesmas.
Uma diferenciação encontra-se fornecida por Mendroni (2009, p. 140)
em sua obra já citada anteriormente. Para o renomado autor, intimidade seria
―tudo o que corresponda à ―vida íntima‖ de uma pessoa, incluindo as suas
conversas reservadas, hábitos, vida sexual etc.‖, ao passo que vida privada
corresponderia ―aquilo que faça ou deixe de fazer, só ou acompanhada, sob o
136
teto de sua casa (asilo inviolável), principalmente, mas também dentro ou no
contexto de um imóvel‖.
Para alguns estudiosos, existem dúvidas se o legislador constitucional
pretendeu incluir na redação do inciso X, nos conceitos de ―intimidade‖ e ―vida
privada‖, os dados de movimentação bancária de um indivíduo. Mendroni
(2009, p.140) expressa seu posicionamento com as seguintes palavras:
―Parece-me terem sido exageradamente ampliados [os conceitos de intimidade
e vida privada], quiçá, pela onda de hipergarantismo que invadiu a comunidade
jurídica brasileira após o fim da época da ditadura militar e do advento da
Constituição de 1988‖
A Lei Complementar n° 105/01 que ―dispõe sobre o sigilo das operações
de instituições financeiras e dá outras providências‖, elenca em seu § 4° um rol
de nove crimes que, se efetivados, dão ensejo à autorização para quebra de
sigilo bancário.
Porém, o cuidado por parte do investigador deve ser redobrado quando
do momento em que decide romper a barreira do sigilo de determinada pessoa,
uma vez que os casos abarcados pelo parágrafo acima são casos abrangentes
e, não ocorrerão em todos os crimes contra a Administração Pública, por
exemplo.
Em seu artigo 9º, a Lei Complementar criou a chamada ―quebra de sigilo
às avessas‖, situação onde o Banco Central do Brasil e/ou a Comissão de
Valores Mobiliários, quando estiverem no exercício de suas atribuições, devem
informar ao Ministério Público qualquer indício de crime através da juntada de
documentos que irão contribuir para o incremento (ou não) da futura denúncia.
Desta forma, encurta-se o caminho para concessão da referida quebra de sigilo
bancário, uma vez que o Ministério Público já terá em mãos todos os dados
suspeitos.
Importante citar que, se as informações não forem repassadas à tempo,
haverá a responsabilização daqueles que se omitiram, aplicando-se as penas
determinadas pela própria Lei Complementar.
Uma questão relevante surge sobre o fato da quebra do sigilo poder ser
realizada pelo próprio Ministério Público, sem necessidade de autorização
137
judicial; principalmente no caso específico da Pessoa Jurídica. Para muitos, a
intimidade da pessoa jurídica deve ser protegida e, portanto, inserida no
conceito de ―intimidade‖ definido pelo inciso X do art. 5° da Constituição
Federal, e nessa intimidade estaria incluída o próprio sigilo das operações
bancárias.
Porém, há os que defendam que a referida intimidade não alcança a
pessoa jurídica, atingindo tão somente as pessoas físicas, sustentando-se no
fato de tal intimidade está incluída no art. 5º da Constituição, dispositivo que
apresenta direitos e garantias individuais, todos aplicáveis apenas às pessoas
físicas.
Há quem sustente ainda o direito do Ministério Público requisitar quebra
do sigilo bancário de Pessoas Físicas, sem a eventual autorização judicial. O
fundamento encontra-se no fato de o Ministério Público ter recebido poderes
para receber diretamente os dados relativos aos extratos bancários por parte
do Banco Central; tendo poderes investigatórios determinados pelas Leis
Orgânicas Nacionais do Ministério Público, bem como pela própria Constituição
Federal (art. 129, VI) que ainda autorizou o Parquet a receber dados
provenientes das CPIs de maneira direta. Para os defensores dessa tese, não
existem dúvidas de que o Ministério Público pode quebrar o sigilo bancário de
qualquer Pessoa Física sem que para isso necessite ter em mãos uma
autorização judicial.
No tocante ao sigilo fiscal e a sua respectiva quebra, sabe-se que
qualquer pessoa ou empresa não pode ostentar um patrimônio superior ao que
ganha ou lucra licitamente. Portanto, a quebra do sigilo fiscal constitui uma
ferramenta não menos importante e eficiente de combate ao crime organizado
tal como o é a quebra de sigilo bancário.
Seu principal meio de prova é a Declaração de Imposto de Renda. Este
importante material investigatório reúne todos os bens de propriedade das
pessoas físicas e jurídicas, confrontando diretamente os bens adquiridos com o
patrimônio existente, por meio de um único documento.
Por fim, reconhece-se que um problema atual para os casos de quebra
de sigilo fiscal, e a posterior confirmação de que os bens pertencem ao
138
principal investigado, são os chamados ―testas-de-ferro‖. O trabalho passa a
ser maior, pois, além da constatação patrimonial, será necessário levantar
confirmações sobre eventuais relacionamentos pessoais existentes entre o
investigado principal e os seus ―laranjas‖.
5. PROBLEMAS LEGISLATIVOS
Diante da realidade preocupante das organizações criminosas, e pela
ineficiência do sistema tradicional de investigação, o legislador brasileiro, ainda
que tardiamente, editou a Lei 9.034 de 03 de maio de 1995, alterada pela Lei
10.217/01, destinada ao tratamento específico do crime organizado, dando
amparo legal a modernos métodos de investigação.
Alguns desses métodos de investigação, como a infiltração de agentes e
a ação controlada, se colocam na contramão do que propõe nossa
Constituição, ofendendo garantias fundamentais. Diante disto, concluímos que
há muito que se melhorar na legislação brasileira no tocante ao combate das
organizações criminosas e encontramos no princípio da proporcionalidade o
ponto de equilíbrio que deve ser buscado no confronto entre os interesses
estatais e os direitos individuais, pois, se a criminalidade organizada representa
um perigo aos valores e às instituições democráticas; a democracia é
incompatível com um Estado dotado de poderes ilimitados.
Além disso, enfatizamos que as organizações criminosas podem alternar
velozmente as suas ações ilícitas, buscando aquela atividade que se torne
mais lucrativa, adaptando-se às fragilidades do Estado para delas retirar
vantagens, valendo-se das brechas legais para tentar escapar da persecução
criminal e para acompanhar a evolução mundial e tecnológica. Logo, além do
aperfeiçoamento da legislação, é necessária uma contínua atualização
legislativa, procurando sempre adaptar as leis às necessidades recorrentes ao
efetivo combate.
139
5.1. Infiltração de agentes.
A lei 9.034/95, com redação dada pela lei 10.217/01, prevê no art. 2º,
inciso V, a infiltração de agentes de polícia ou de inteligência em organizações
criminosas:
Art. 2º. V – infiltração por agentes de polícia ou de inteligência, em
tarefas de investigação, constituída pelos órgãos especializados
pertinentes, mediante circunstanciada autorização judicial.
Tal meio de investigação traz inúmeros questionamentos de ordem
penal e processual penal, são várias as críticas à previsão legal do ‗agente
infiltrado‘, principalmente quanto à questão ética, ao se permitir que agentes do
estado pratiquem atos em conluio com criminosos.
Destaca-se o enunciado de Franco:
Agora,
faz-se
irresponsavelmente
silêncio
total
sobra
a
responsabilidade penal do agente policial, em relação às ações por ele
empreendidas no exercício de suas atividades. Na doutrina discute-se
a posição jurídica do agente infiltrado, afirmando alguns a licitude de
seu procedimento por ter atuado no estrito cumprimento de seu dever
ou no exercício regular de direito legal ou a carência de culpabilidade
por obediência hierárquica a ordem não manifestamente ilegal. Já
outros asseguram existir escusa absolutória, o que implica o
reconhecimento do fato criminoso, sem imposição de pena em virtude
de uma postura político-criminal. (FRANCO apud TOURINHO, 2009)
O diploma legal não disciplinou a questão da responsabilidade penal do
agente infiltrado, tendo como justificativa o fato de que as conseqüências de
uma infiltração podem ser imprevisíveis. Assim, existem dúvidas sobre qual
excludente de ilicitude o agente está amparado. A hipótese da excludente do
estrito cumprimento do dever legal, dentro dos limites impostos pela
autorização judicial, parece ser a mais indicada para acobertar a ação do
agente.
Pode-se imaginar ainda a situação em que o agente infiltrado terá que
co-participar com alguns delitos, praticando inclusive atos de execução, para
não ter a sua identidade descoberta pelos criminosos, ou, para não ter contra
ele suspeitas levantadas que frustrem o procedimento e até sujeite-o a risco de
vida. Como deve o agente agir diante de uma situação com esta em que tenha
que vir a praticar algum delito?
Mendroni (2009, p. 112) defende que em tais casos deva-se agir
segundo o princípio da proporcionalidade ―numa situação de real conflito entre
dois princípios constitucionais, deve-se decidir por aquele de maior peso. [...]
140
nada poderia justificar o sacrifício de uma vida em favor da infiltração do agente
e este deverá utilizar de todas as suas habilidades para impedi-lo.‖
Parece-nos que para um policial infiltrado, impossibilitado de impedir o
pior, em caso extremo, como, por exemplo, com uma arma apontada para sua
cabeça e a ordem do criminoso para que atire em outra pessoa, a solução
estará nos princípios do direito penal, no caso a excludente de culpabilidade
pela coação moral irresistível.
Entendemos que o agente infiltrado poderá até praticar condutas típicas,
desde que não atentem contra um direito constitucional sobrevalente.
Ressaltamos, entretanto, a falta de previsibilidade legal para essa questão, o
que faz com que não possa ser autorizada judicialmente uma agressão aos
bens assegurados pelo direito penal, ainda que amparada em interesses do
Estado.
Há necessidade de uma melhor legalização do dispositivo, maiores
esclarecimentos. A nosso ver, este deve ser utilizado com rigoroso critério,
prévia autorização judicial e acompanhamento pelo Ministério Público, sendo
sempre aplicado o ―princípio da proporcionalidade‖. E, nos caso em que houver
dúvida a respeito da validade da prova processual e da necessidade de
atuação do agente, interpretamos que, havendo tempo hábil para análise, a
decisão deverá ficar a cargo do Promotor de Justiça, para que posteriormente,
já em fase de eventual processo penal, seja validada ou não pelo Juiz de
Direito.
5.2. Ação Controlada
O art. 2º, inciso II, da Lei 9.034/95, com a alteração dada pela Lei
10.217/01, prevê que:
Art. 2º. II - a ação controlada, que consiste em retardar a interdição
policial do que se supõe ação praticada por organizações criminosas
ou a ela vinculado, desde que mantida sob observação e
acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento
mais eficaz do ponto de vista da formação de provas e fornecimento de
informações;
141
Já o art. 301 do nosso Código de Processo Penal, que estabelece a
regra geral da prisão em flagrante, dispõe:
art. 301. qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus
agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante
delito
Logo, a ação controlada é uma exceção ao expresso no art. 301, acima
citado, e consiste no acompanhamento por parte da polícia de uma situação de
flagrante, para que a intervenção policial ocorra no momento mais eficaz para a
formação de provas e fornecimento de informações. É um instrumento
importante que leva em consideração o caráter permanente das atividades das
organizações criminosas, sendo dada permissão a autoridade policial para que
a mesma venha a agir quando haja uma situação mais favorável para a
obtenção de provas, sendo tal situação considerada segundo interpretação da
própria polícia.
Também conhecida por ―flagrante prorrogado‖, o objetivo principal da
ação controlada é uma maior eficácia probatória e repressiva que possibilite a
identificação de maior número de integrantes da organização criminosa.
Ocorre que a Lei de Combate ao Crime Organizado (lei 9.034/95) não
prevê controle algum da atividade policial na ação controlada, o melhor
momento de agir fica sob o julgamento da autoridade policial, e é aí que se
encontra o perigo do mecanismo, pois não é previsto controle por parte do
magistrado ou do ministério público, o que dá ensejo à prática de prevaricação.
Diferentemente do que ocorre com a infiltração policial, não é previsto sequer a
autorização judicial, restando a possibilidade de uma atuação demasiadamente
discricionária por parte da polícia em prejuízo do bom desempenho das suas
funções e todos os riscos a ela inerentes. Já em 1999, Damásio de Jesus
(1999, p. 28) expressou que: ―ação controlada será certamente fonte de
corrupção. O policial acusado de corrupção ou prevaricação, argumentará que
sua omissão deveu-se à espera de momento oportuno para agir (retardamento
permitido).‖
A nosso ver, devem ser estabelecidos expressamente os critérios da
ação controlada. Ao menos, dever ser prevista uma devida fundamentação
para que se postergue o flagrante. Melhor seria que a ação controlada tivesse
142
sua operacionalização e escolha do momento da ação a cargo do Delegado de
Polícia responsável pela equipe só após saber do Promotor de Justiça a
necessidade probatória qualitativa e quantitativamente adequada para a
propositura da ação penal, sendo imprescindível a autorização judicial.
5.3. Projeto de Lei 150/06
O projeto de lei nº 150/06, se aprovado, será um substitutivo da atual Lei
de Combate ao Crime Organizado (LCCO), pois, por disposição expressa do
seu art. 29, revoga as disposições da Lei 9.034/95, tida como ineficaz e, em
algumas partes, inconstitucional. No seu texto são abordados temas previstos
na LCCO, tais como quebra de sigilo, ação controlada e delação premiada.
Apesar de também apresentar alguns pontos obscuros e trazer novas
questões que merecem a devida análise de sua constitucionalidade, merece
aplausos a tipificação de crimes praticados durante o curso da investigação
criminal e nos procedimentos de obtenção de provas, dentre os quais
destacamos o crime de falsa imputação, a quebra de sigilo de informações
pessoais da vítima, testemunha ou colaboradores, e a quebra de sigilo das
operações que envolvam ação controlada. Além de imputar àqueles que
procuram anular os meios persecutórios previstos, essa iniciativa visa garantir
os mecanismos necessários e adequados para favorece a investigação.
Porém, infelizmente, nada é previsto em relação às condutas típicas praticadas
por agentes infiltrados.
Outro ponto positivo é o fato da seção II do capítulo II do referido projeto
trazer maiores esclarecimentos sobre a ação controlada, inclusive dispondo no
parágrafo 2º do art. 6º que:
Art. 6º. §1º O retardamento da intervenção policial será imediatamente
comunicado ao juiz que se for o caso estabelecerá seus limites, após a
manifestação do Ministério Público.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pelo que foi exposto no presente trabalho, verifica-se que a
criminalidade organizada tem encontrado campo fértil para ampliar a sua
143
atuação com o advento da globalização e o avanço tecnológico, bem como
com o despreparo e falta de estruturação dos Estados.
Ao analisar os elementos e peculiaridades das organizações criminosas
dispusemos sobre a prática de atividades ilícitas; a obtenção de lucros; seu alto
poder de intimidação e de corrupção e sua ―invisibilidade‖. Discorremos ainda
sobre a estrutura empresarial e o funcionamento complexo das organizações
criminosas.
Posteriormente, passamos a análise dos mecanismos legislativos de
combate às organizações criminosas. Apesar da quantidade e da rigidez dos
mecanismos legais estabelecidos pela legislação brasileira, deficientes são os
resultados que alguns institutos têm demonstrado como é o caso da delação
premiada, que ao invés de buscar punir legitimamente aquele que se envolveu
com o crime organizado, ―passa a mão na cabeça‖ do delatador por
inocentemente entender que este se encontra redimido de seus pecados o
nunca mais os cometerá.
Outros poucos mecanismos, ao contrário da delação, tem comprovado
que realmente são viáveis e eficientes na atuação contra o crime organizado,
desde que sempre respeitem os limites constitucionais estabelecidos, de
maneira que não se desvirtuem do real objetivo para que foram criados.
Ao verificar os problemas legislativos existentes, concluímos que o
sistema tradicional de investigação e produção de provas mostrou-se
ineficiente para o enfretamento das organizações criminosas. Portanto, o
grande desafio do nosso país na luta contra a criminalidade organizada é criar
meios legais de repressão que não ofendam a dignidade do ser humano e
levem ao suprimindo das garantias processuais de defesa do acusado. Devese buscar um ponto de equilíbrio a ser norteado pelo princípio da
proporcionalidade. Há que se partir de um pressuposto maior, a efetivação de
um Estado democrático de direito que só encontramos nas letras da
Constituição.
É fato que resultados satisfatórios contra a criminalidade organizada
somente serão alcançados se além das ações repressivas, também forem
tomadas medidas preventivas, como medidas de inclusão social.
144
Por fim, a partir do que foi dito, temos que seguramente surgirão novas
formas de criminalidade organizada, sempre buscando evitar a atuação da
justiça, se aprimorando e encontrando lacunas legais, tirando proveito das
situações. O maior desafio da justiça será sempre buscar soluções legais, sem
abrir mão da observância aos direitos e garantias fundamentais. Ao legislador
cabe até mesmo projetar em antecipação as necessárias adequações
legislativas a partir das análises sob a transformação da criminalidade
organizada, buscando sempre a atualização legislativa.
7 REFERÊNCIAS
BRASIL. Código Penal: Decreto-Lei nº. 2.848, de 7 de Dezembro de 1940.
Organização do texto: Anne Joyce Angher. Vade Mecum Acadêmico de Direito.
6ª Ed. São Paulo: Rideel, 2008.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado
Federal, 1988.
BRASIL. Lei nº 9.034, de 03 de maio de 1995. Dispõe sobre a utilização de
meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por
organizações criminosas.
In: <http://www.planalto.gov.br/ccivl_03/Leis/L9034.htm>.
BRASIL. Lei nº 10.217, de 11 de abril de 2001. Dispões Altera os arts. 1º e 2º
da Lei nº 9.034, de 3 de maio de 1995, que dispõe sobre a utilização de meios
operacionais para a prevenção e repressão das ações praticadas por
organizações criminosas. Diário oficial da nião. Brasília, 12. Abr. 2001.
JESUS, Damásio E. de. Novíssimas questões criminais. 3ª ed. São Paulo:
Saraiva, 1999.
MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime Organizado: aspectos gerais e
mecanismos legais. 3º.ed. – São Paulo: Atlas, 2009.
SENADO FEDERAL. Projeto de Lei do Senado nº 00150, de 23 de maio de
2006. Dispõe sobre a repressão ao crime organizado e dá outras providências.
SENADO
FEDERAL.
Disponível
em:
<http://www.senado.gov.br/sf/ATIVIDADE/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=7
7859>. Acesso em: 26 set. 2009
TOURINHO, José Lafaiete Barbosa. A infiltração de agentes em quadrilhas ou
bandos, organizações ou associações criminosas. Disponível em:
<http://mp.pr.gov.br/eventos/lafaieti.do> Acesso em: 04 out. 2009.
145
CRIMINOSO PSICOPATA E A MELHOR FORMA DE PUNÍ-LOS
Mara Caroline Corrêa Kelmer77
Meryelen Estrela da Silva78
Suellen Carolline Alves Macedo79
Ana Alice Ramos Tejo Salgado80
Resumo
O presente trabalho tem por escopo abordar desde aspectos históricos, características, método
de classificação e tipos de psicopatia e as medidas punitivas previstas no Código Penal
Brasileiro, para que seja melhor entendido o que ocorre com os mesmos e deste modo
configurar a inadequação da punição que é dada no Brasil, a qual consiste em pena privativa
de liberdade em presídio comum, ou em internação em centros psiquiátricos, por meio de
medida de segurança. Avaliando se as pessoas com este transtorno são imputáveis,
inimputáveis, ou semi-imputáveis, conforme o grau de psicopatia e periculosidade, para que
assim possa encontrar o melhor método para tratá-los.
Palavras-chave: psicopatia, características do psicopata, ordenamento jurídico, punição.
Abstract
This work is by scope address since historical aspects, features, rating method and types of
being a psychopath and punitive measures provided for in the Brazilian Penal Code, to be
better understood what happens with the same and thus set the inadequacy of the punishment
which is given in Brazil, which consists of deprivation of liberty in Presidio, or hospitalization in
psychiatric centres through security measure. Evaluating if people with this disorder are
attributable, inimputáveis, or semi-attributable, as the degree of being a psychopath and terrain,
so you can find the best method to treat them.
Key-Words: psicopatia, characteristics of the psychopath, legal system, punishment.
77 Acadêmica de Direito pela Universidade Estadual da Paraíba.
78
Acadêmica de Direito pela Universidade Estadual da Paraíba.
79
Acadêmica de Direito pela Universidade Estadual da Paraíba.
80 Orientadora: Mestra em Ordem Constitucional pela UFC, professora de Direito Penal da
UEPB e FACISA.
146
1. INTRODUÇÃO
No século XIX, frente às situações do cotidiano, os estudiosos
começaram a observar, com maior atenção, determinadas características do
comportamento humano dando início à análise detalhada dos transtornos de
personalidade. Frieza, dissimulação, ausência de empatia são alguns traços
que se inserem no perfil do psicopata, o qual é um dos tipos de transtorno.
Com este trabalho, pretende-se inicialmente dissipar a confusão
existente entre psicopatia e doença mental, as quais costumam ser tratadas de
modo igualitário. Bem como, indicar suas características, método de Hare,
tipos, os avanços no estudo psiquiátrico sobre o tema e o tratamento conferido
pelo ordenamento jurídico brasileiro, citando para tanto, casos concretos
existentes ao longo da história.
Os estudos vêm sendo utilizados, hodiernamente, por psiquiatras na
busca de um modo de resolver os problemas que podem ser causados por
essas pessoas, conforme o grau de manifestação do distúrbio, inclusive para
uma melhor forma de punição para os psicopatas que cometem crimes.
Por conseguinte, indaga-se, será que as medidas punitivas adotadas
pelo sistema jurídico brasileiro são realmente eficazes para os criminosos
psicopatas? Será que devem ser tratados como imputáveis ou semiimputáveis? Tendo em vista que nem todo psicopata comete crimes e que os
que o faz possuem alto grau de reincidência por não conseguir aprender com
os erros.
Sendo assim, diante dessas dúvidas, ao longo deste artigo, pretende-se
avaliar se as leis utilizadas no Brasil estão realmente de acordo com o perfil do
criminoso psicopata.
2. HISTÓRICO
Para analisar a psicopatia é interessante observar que este tipo de
transtorno de personalidade existe desde tempos remotos, tendo recebido
nomes diversos para destacar certas características, que nos dias atuais são
147
utilizadas para definir maior ou menor tendência a produzir crimes. Com isto,
faz-se necessário uma breve abordagem histórica.
―Mania sem delírio‖ foi a primeira definição clínica sugerida pelo francês
Pinel para descrever um comportamento instintivo, impulsivo, com conduta
desordenada, em 1809. Esquirol, discípulo de Pinel definiu-o
como
―monomania‖, defendendo a ideia de que esta poderia resultar em atos
criminosos, sendo passível de tratamento e não de punição. Valentim Magnan
(1835-1916) introduziu a ideia de ―desequilíbrio mental‖, abordando este quanto
à sensibilidade, à vontade, as quais são associadas aos sintomas da psicopatia
(SHINE,2000, p.13).
A denominação ―personalidade psicopática‖, foi utilizada pelo integrante
da escola alemã de psiquiatria, esta responsável pelo termo psicopatia, Emil
Kraepelin, em 1904, para classificar os casos de inibição do desenvolvimento
da personalidade tanto afetiva como volitiva. Partridge define esta como
―sociopatia‖, em 1930, analisando o efeito causado na sociedade.
3. CONCEITO
Hodiernamente, muitas pessoas possuem imbuído em suas convicções
um conceito errôneo a cerca do que seria um psicopata. É bastante comum
elas associarem o indivíduo que sofre de psicopatia à figura do louco. Embora
a palavra psicopatia, cuja origem é grega (psyche=mente; e pathos=doença),
signifique doença da mente, os psicopatas não sofrem de alucinações, não
apresentam sofrimento mental intenso como os depressivos e nem possuem
desorientação, por esses motivos, para a psiquiatria, os psicopatas não são
considerados doentes mentais. Para afastar essa ideia errada, impende
registrar que é de suma importância destacar o real conceito da psicopatia,
também conhecida como sendo um transtorno de personalidade antissocial.
Tal conceituação foi evoluindo ao longo do tempo, hoje, após vários
estudos realizados, tem-se por psicopatia como sendo um complexo de
comportamentos e traços de personalidades, os indivíduos que sofrem desse
transtorno crônico são aparentemente normais, no entanto possuem sérias
dificuldades de se enquadrar as regras sociais.
148
Com base no Manual Estatístico de Diagnóstico de Doenças Mentais da
Associação Americana de Psiquiatria (1989 apud Araújo , 2007, p.29), em sua
monografia, essa Reação Antissocial é descrita da seguinte maneira:
Este termo se refere a indivíduo cronicamente antisocial, os que
estão em dificuldade, não tirando proveito nem da experiência e nem
das punições sofridas e não mantendo lealdade real a qualquer
pessoa, grupo ou código. São frequentemente empedernidos e
hedonistas, mostrando acentuada imaturidade emocional com falta de
senso de responsabilidade, falta de tirocínio e habilidade de
raciocinar sua conduta de modo que pareça justificável e razoável.
(ARAÚJO, 2007, p.29)
Os psicopatas são pessoas que causam boa impressão à primeira vista
e que sabem manipular pessoas e situações. São movidos pela razão por isso
cada passo, cada ato seu é planejado, eis o traço que os afasta definitivamente
da loucura. Tendo em vista que louco, com base na definição do dicionário, é
aquele que perdeu a razão, que é alienado.
Sendo assim, podemos constatar que o psicopata e a loucura são bem
diferentes, já que o primeiro tem razão demais e em contrapartida pode-se
dizer que o segundo tem razão de menos. De acordo com Barbosa (2008,
p.37), ao apresentar a distinção entre o psicopata e o louco, e a facilidade que
o primeiro tem de cometer friamente atos delituosos, diz: ―[...] seus atos
criminosos não provêm de mentes adoecidas, mas sim de um raciocínio frio e
calculista combinado com uma total incapacidade de tratar as outras pessoas
como seres humanos pensantes e com sentimentos.‖
4. CARACTERÍSTICAS
As características psicopáticas consideradas, nos dias atuais, são: a
eloquência e charme superficial, costumam ser extrovertidos; egocentrismo e
grande conhecimento da própria valia, falta de empatia, mentiras e
manipulações, impulsividade, emoções superficiais, pois apresentam um
sistema nervoso relativamente insensível e baixo nível de estimulação;
deficiência no controle de comportamento, necessidade de excitação
continuada, falta de responsabilidade, problemas precoce de comportamento,
comportamento antissocial adulto, o qual costuma se repetir por pelo menos
149
dois anos, quando não vem sendo apresentado desde a infância, lesando a
outrem. Com isso, tendem a se envolver em atividades de alto risco, como
crime.
Essas características são mais perceptíveis a partir da adolescência, de
modo que na infância pode-se ter indícios de um comportamento problemático,
mas não se deve afirmar que crianças problemáticas serão psicopatas, pois
nesta fase as personalidades ainda não estão formadas, denominando-se
transtorno de conduta. Dessa forma, os psicopatas têm dificuldade em manter
relacionamentos, não costumando sentir culpa ou remorso ao lesarem os
outros. Apesar disso, não são todos os psicopatas que cometem crimes
graves, como homicídios. Estudos revelam que 3% da população masculina e
1% da feminina são afetados pela forma mais crônica do transtorno enquanto,
estima-se que há um número bem maior dos psicopatas comunitários ( revista
Época, n. 314). De modo que, em entrevista a revista época o neurologista
carioca Ricardo de Oliveira Souza diz que 'O psicopata assassino é frio e
calculista, mas o comunitário é afável, agradável, sedutor, carinhoso. A gente
consegue reconhecê-lo quando algo dá errado e ele fica agressivo'.
Além disso, conforme revista Super Interessante (2009, p. 13,15)
estudos realizados por Michael H. Stone revelam que 86,5% dos assassinos
em série apresentam as características de Robert Hare para a psicopatia,
estando 75% deles nos Estados Unidos. Os psicopatas criminosos costumam
usar de sua inteligência para sair impunes dos crimes, chegando a sentir
prazer ao enganar o Estado para tanto, matando muitas vezes prostitutas e
andarilhos. No entanto, 50% dos psicopatas que cometem crimes reduzem
suas atividades nesta área após os quarenta anos.
Destarte, é importante ressaltar que tais características são traços gerais
e apresentam-se de forma expressiva ou atenuada dependendo do tipo de
psicopatia, tema abordado no tópico a seguir.
150
5. TIPOS DE PSICOPATAS
Segundo J. Alves Garcia, apud Wagner, em sua obra intitulada
Psicopatologia Forense, 1958, apresenta os diversos tipos de psicopatas bem
como:
- Psicopatas Amorais: No qual é caracterizado como indivíduos antissociais,
sem nenhuma sensibilidade, ou seja, perversos, haja vista que são destituídos
de conceitos éticos e compaixão pelo próximo, sendo que estes não nutrem
nenhuma simpatia pelas pessoas. Diante de tamanha insensibilidade, e às
vezes imbuídos pela vaidade praticam todos os tipos de crimes. Diante da falta
de consciência moral e pudor, para este tipo de individuo é completamente
inútil a sua regeneração quando cometem algum delito devido ao fato de
inexistir uma personalidade ética.
- Psicopatas Astênicos: São assustadiços, sensitivos, sendo dotados de
sentimento de inferioridade e incapacidade, muitas vezes fogem de qualquer
incidente, tendo em vista que estes possuem uma deficiência orgânica
subjetiva, bem como acometidos de uma extrema labilidade emocional e sem
nenhuma capacidade de inibição. Haja vista que este não causa nenhum mal a
sociedade.
- Psicopatas Explosivos: Dizem respeito aos coléricos, os irritáveis, que
reagem pelo mínimo estímulo externo de forma violenta e injusta, podendo
desta maneira cometer crimes como homicídios, lesões corporais, estragos
materiais, maltratam animais entre outros, sendo que estes são acometidos de
amnésia lacunar, ou seja, não guardam lembrança do fato, devido à turvação
da consciência no momento da contenda.
- Psicopatas Fanáticos: São indivíduos que tem como característica a
extrema importância que concedem a uma ideia seja de cunho religioso,
filosófico, político, esportivo. Desta forma às vezes estes de aproximam com o
paranoico, pelo fato de defender uma ideologia de maneira extremada, com
parcialidade
e
de
forma
violenta
e
dramática
diante
de
qualquer
posicionamento contrário da ideia por ele defendida.
-Psicopatas Hipertínicos: Esses indivíduos se caracterizam pelo humor
alegre, bem como os que são mais irritáveis considerados rabugentos, os
151
inquietos, os egocêntricos, como também os considerados discutidores e os
mais ou menos equilibrados, sendo que alguns têm disposição para o ciúme.
Podendo estes conviver amigavelmente com as pessoas mais no menor
estímulo podem subitamente mudar o humor e se tornar agressivos.
-Psicopatas Ostentativos: Seriam os mentirosos e falsos, mórbidos, e
extremamente vaidosos, sempre querendo aparentar mais do que possuem.
Sendo que estes gozam de um humor alegre, simpatia, amável e solícito
sempre sorridentes com grande facilidade de fazer amizade, e de enorme
conhecimento intelectual, estes usam desses artifícios para convencerem suas
vitimas nas práticas de seus delitos.
-Psicopatas Sexuais: São tidos como aberrações e perversões sexuais
primitivas, tendo como característica a intensidade do instinto e o desvio.
Tendo em vista que hodiernamente tem-se adotado a Classificação
Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde,
conhecida pela sigla CID, que os classifica em esquizoides, paranoides,
dissociais,
impulsivos,
histriônicos,
obsessivos-compulsivos,
ansiosos,
dependentes e não-especificados. Portanto conclui-se que tal explanação
busca demonstrar que nem todo psicopata cometem crimes, devendo esses
serem tratados, pelo ordenamento jurídico, conforme o grau de psicopatia.
6. DOENÇA MENTAL (TRANSTORNO DE PERSONALIDADE)
A legislação vigente não trata o psicopata como deveria porque ou não
o identifica ou o trata como doente mental. Sendo assim, procura-se, neste
tópico clarear a ideia de qual mau acomete o criminoso psicopata.
O que costuma ser entendido como um problema mental é um
transtorno de personalidade, o qual embora esteja contido na classificação de
transtorno mental e de comportamento, não são doenças, mas sim anomalias
psíquicas, sendo consideradas transtornos de saúde mental, pelos psiquiatras
forenses. Esses transtornos são caracterizados por desarmonia afetiva e
excitação com déficit na integração dos impulsos, atitudes e condutas,
manifestando-se no relacionamento interpessoal, sendo vistos por leigos como
152
pessoas problemáticas. Costumam ter um comportamento turbulento, com
atitudes incoerentes, buscando
satisfação
imediata, muitas vezes se
envolvendo em problemas judiciais, principalmente quando apresentam
característica antissocial.
O transtorno de personalidade apresenta uma incidência de 10% a
15% na população em geral, a qual é equivalente a taxa de prevalência, pois
são condições permanentes. Quando apresentam um alto índice de
insensibilidade aos sentimentos alheios, pode ocorrer um comportamento
criminal recorrente, caracterizando-se como psicopatia.
7. ESTUDOS DO CÉREBRO
A explicação para a facilidade que o psicopata tem de cometer crimes
e de ser reincidente encontra-se na estrutura do seu cérebro que é bem
diferente dos cérebros das pessoas normais. De acordo com pesquisas feitas
recentemente no centro de imagens de neurociência do King‘s College, em
Londres81, com nove psicopatas, mostraram que existem conexões nos
cérebros deles que não são tão ativas quantos as conexões das pessoas
normais.
Os estudos revelaram que os psicopatas possuem estruturas mal
formadas em ao menos duas partes do cérebro que seriam o corpo amidaloide
no lobo temporal, responsável por processar as emoções e o córtex
orbitofrontal, cuja função consiste em controlar os impulsos. De acordo com as
palavras do Dr. Michael Craig, um dos responsáveis pela realização desse
estudo, ao se fazer uma analogia entre o cérebro do psicopata e uma estrada
―é como se o cérebro dessas pessoas fosse cheio de buracos ao contrário das
pessoas normais‖.
Para o Dr. Craig a pesquisa possui um universo pequeno, por ter sido
feita apenas com nove pessoas. No entanto, é o início para o melhor
conhecimento do trato cerebral das pessoas acometidas pela psicopatia e para
que se possa desenvolver tratamentos para os psicopatas, inclusive os com
81 Fonte: Vídeo da Universidade King's College London
153
grau mais grave, ou seja, os que cometem crimes. Sendo assim, faz-se mister
a continuidades de tais pesquisas.
8. MÉTODO HARE
Método desenvolvido pelo psicólogo canadense Robert Hare, que
utiliza uma escala para medir o grau de psicopatia. Também serve para avaliar
a personalidade da pessoa, de modo que quanto maior o grau, mais
problemática pode ser, representando maior risco a sociedade.
A aplicação desse é feita com base nos seguintes sintomas:
desembaraço/charme superficial; sentimentos insuflados de importância
pessoal; busca por estimulação/sensibilidade à monotonia; mentira patológica;
manipulação e chantagem; ausência de remorso ou culpa; emoções
superficiais; ausência de empatia com os outros; estilo de vida parasita;
controles comportamentais precários; promiscuidade sexual; problemas graves
de comportamento na infância; ausência de objetivos de longo prazo;
impulsividade; irresponsabilidade; incapacidade de se responsabilizar por suas
ações; casamentos/relacionamentos de curta duração; delinquência juvenil;
violação de condicional; versatilidade criminal.
Essa avaliação não é feita através apenas da observação dessas
características, pois devido ao alto grau de dissimulação e manipulação que
algumas dessas pessoas apresentam, são demonstrados problemas morais,
que
provocam destacável reação cerebral, de modo que esta é monitorada e,
assim determinado em que grau da escala o indivíduo se encontra. No entanto,
os sintomas apresentados não são suficientes para determinar se uma pessoa
é psicopata ou não, caso sejam avaliados isoladamente.
Análises comprovam que o referido método é capaz de distinguir quem
apresenta traços prototípicos de psicopatia, de quem possui traços de
transtorno parcial de personalidade, menos grave, e daqueles que não
apresentam desvio de conduta. Serve para indicar quais indivíduos tem maior
probabilidade a reincidência criminal, além de ser importante para que o
154
condenado que se adequa a esse diagnóstico, não prejudique a reabilitação
dos criminosos comuns.
Apesar de utilizado em alguns presídios nos Estados Unidos, Canadá,
México e até mesmo no Brasil, no estado de Minas Gerais, da escala Hare
PCL-R, não há um consenso sobre o que ser feito para lidar com quem possui
alto grau na escala, ou seja, se enquadra como psicopata, pois estes não
podem ser tratados como condenados comuns tendo em vista que não
aprendem com os erros, não podendo ser ressocializados. Em termos médicos
há pesquisadores tentando desenvolver um meio de estimular as áreas do
cérebro do psicopata que são pouco ativadas diante dos problemas morais.
Hare, está desenvolvendo um novo modelo de tratamento no qual os pacientes
são levados a compreender que podem fazer o que desejem, sem prejudicar a
outrem, objetivando diminuir os danos.
9. CASOS CONCRETOS
Diante do que foi exposto faz-se necessário para uma melhor
compreensão do tema algumas exemplificações de casos concretos como:
-George Gordon Byron, alcunha Lorde Byron, cresceu mentindo
frequentemente, desprezando as pessoas e cometendo atos cruéis como
colocar tachinhas na mãe enquanto esta rezava. Quando adulto teve uma vida
regada a álcool, sexo e drogas, abandonando a Universidade para sair pelo
mundo. Foi descrito por uma de suas amantes como um ―louco, mau e
perigoso‖.
- Francisco da Costa Rocha, denominado de ―Chico Picadinho‖, que
em 1966, assassinou e esquartejou uma mulher, sendo condenado a uma pena
privativa de liberdade de trinta anos, de modo que após o cumprimento de um
terço da pena, foi posto em liberdade. Todavia logo após em 1976, este
cometeu outro delito assassinando e esquartejando outra mulher. E assim foi
novamente condenado e preso, tendo sua pena cumprida em 1998, este foi
encaminhado para a Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté- SP.
155
- Francisco de Assis Pereira o conhecido ―Maníaco do Parque‖ foi
preso em 1998 pelo crime de pelo menos onze mulheres. Sendo este réu
confesso, ele atraia suas vitimas para um parque diante da proposta de realizar
uma sessão de fotográficas em um parque do na zona sul do Estado de São
Paulo, onde estuprava e as matava. Logo este permaneceu na Casa de
Tratamento e Custódia de Taubaté- SP, e após condenado por júri popular por
nove mortes no qual recebeu uma pena de 271 (duzentos e setenta e um) anos
de prisão, do qual esta sendo cumprida em um presídio comum.
- Luiz Fernando da Costa, vulgo ―Fernandinho Beira-Mar‖, é um dos
maiores traficantes de armas e drogas da América Latina, montou um
gigantesco esquema de lavagem de dinheiro. Em 2002 organizou uma rebelião
com a finalidade de matar Ernaldo Pinto Medeiros, o Uê. Encontra-se preso, no
Mato Grosso do Sul, mudando constantemente de presídio.
-Roberto Aparecido Alves Cardoso, ―Champinha‖, apontado como o
líder da quadrilha que matou o casal de estudantes Felipe Café e Liana
Friedenbach, também acusado de tê-la violentado e matado, em novembro
2003. Apesar de menor ao tempo do crime, permanece preso por ser
considerado um perigo a sociedade. Seus advogados estão tentando liberta-lo.
10. CULPABILIDADE
Mister se faz diante da responsabilidade penal do indivíduo que trás
consigo o transtorno de personalidade, analisar os conceitos penais, dentre
eles:
Para Greco (2007, p. 381) a culpabilidade é o juízo de reprovação
pessoal que se realiza sobre a conduta típica e ilícita praticada pelo agente.
Segundo Sanzo Brodt apud Greco a culpabilidade deve ser concebida como
reprovação, mais precisamente, como juízo de reprovação pessoal que recai
sobre o autor, por ter agido de forma contrária ao Direito, quando podia ter
atuado em conformidade com a vontade da ordem jurídica.
Tendo em vista que o Código Penal Brasileiro adotou a teoria finalista, a
culpabilidade é composta pelos seguintes elementos normativos como:
156
imputabilidade, potencial consciência sobre a ilicitude do fato, exigibilidade de
conduta diversa. Torna-se necessário ressaltar a classificação da capacidade
de culpa:
10.1 Imputabilidade
Diz respeito à possibilidade de atribuir a alguém a responsabilidade, ou
seja, imputar a prática de um fato típico e ilícito ao agente. De acordo com
Capez (2003, p.276), são pessoas que possuem a capacidade de entender a
ilicitude do fato e de posicionar-se de acordo com tal entendimento.
Conforme Greco (2007, P.396) a imputabilidade é constituída por dois
elementos um intelectual (capacidade de entender o caráter ilícito do fato),
outro volitivo (capacidade de determinar-se de acordo com esse entendimento).
7.1. Inimputabilidade
Quando o agente era inteiramente incapaz de entender, no momento da
ação ou omissão, a sua conduta, não podendo atribuir a este um fato típico e
ilícito. A inimputabilidade pode ocorrer por doença mental ou desenvolvimento
mental incompleto ou retardado, art. 26 do Código Penal; sendo adotado o
critério biopsicológico, o qual analisa causa,o problema mental;e o efeito, se
era ao tempo da ação ou omissão. Outra ocorrência é por imaturidade natural,
o qual é uma presunção legal, previsto no art. 228 da Constituição Federal e no
art. 27 do CP, sendo considerado para tanto o menor de dezoito anos, através
do critério biológico. No art. 28 §1º do CP, tem-se o caso da embriaguez
completa por caso fortuito ou força maior, a qual é inimputável por ser
involuntária e porque quando completa a embriaguez há confusão mental e
falta de coordenação motora. Inclui-se também os surdo-mudos e os silvícolas
quando não conseguem se adaptar.
7.2. Semi-imputável
São aqueles que não possuem parte da capacidade de querer e de
entender, capacidade reduzida, como os acometidos por pertubação mental,
157
desenvolvimento mental incompleto ou retardado, os quais precisam de um
tratamento curativo especial quando realizarem a prática do fato típico e ilícito.
Deste grupo fazem parte os criminosos psicopatas, aos quais, por
essa classificação, é imposta uma sanção com redução na pena, ou medida de
segurança, tendo em vista que estes precisam de um tratamento curativo
especial quando realizam a prática do fato típico e ilícito.
11. DECRETO
No Brasil, a única lei que fala diretamente sobre o psicopata é o
Decreto 24.559 de 1934, o qual dispõe sobre a assistência e proteção à pessoa
e aos bens dos psicopatas, referindo-se ao tratamento para estes no seu artigo
3º, § 1º, artigo 10, que dispõem:
Art. 3º. A proteção legal e a prevenção a que se refere o art.
1º deste Decreto, obedecerão aos modernos preceitos da psiquiatria
e da medicina legal.
§ 1º. Os psicopatas deverão ser mantidos em
estabelecimentos psiquiátricos públicos ou particulares, ou
assistência heterofamiliar do Estado ou em domicílio, da própria
família ou de outra, sempre que neste lhes puderem ser ministrados
os necessários cuidados.
Art. 10. O psicopata ou indivíduo suspeito que atentar contra
a própria vida ou de outrem, perturbar a ordem ou ofender a moral
pública, deverá ser recolhido a estabelecimento psiquiátrico para
observação ou tratamento.
Entre outras medidas, o Decreto determina que o psicopata pode ficar
em estabelecimento psiquiátrico fechado, misto, ou aberto, artigo 7º. Um
exemplo quanto a utilização do referido decreto nos dias atuais, é o caso de
―Chico Picadinho‖, o qual encontra-se em sela individual no presídio de
Taubaté, em virtude deste, pois embora já tenha transcorrido mais de quarenta
anos desde sua condenação, o laudo médico indicou que este ainda
representa um grande perigo a sociedade. Esta aplicação do Decreto, tem
causado controvérsias quanto a sua constitucionalidade.
158
12. SANÇÕES APLICÁVEIS
12.1 Privativa de Liberdade
A pena privativa de liberdade visa limitar a liberdade do indivíduo,
condenado pela prática do ato típico, ilícito e culpável. De modo que o Código
Penal Brasileiro prevê duas espécies de pena privativa de liberdade, reclusão e
detenção.
Tendo o Brasil adotado o critério trifásico, logo o juiz fixará a pena
base, sempre obedecendo aos critérios do artigo 59 do CP, bem como será
considerado as circunstâncias atenuantes e agravantes, e também as causas
de diminuição e de aumento.
Logo a pena privativa de liberdade poderá ser cumprida em regime
fechado, semiaberto ou aberto.
12.2 Medida de Segurança
Sabemos que a pena surge a partir da prática de um fato típico, ilícito e
culpável, isto é quando um agente comete uma infração penal, sendo a
finalidade dessa sanção penal, como assevera Capez (2003, p.382),
exclusivamente preventiva, com o escopo de evitar que o autor de um ato
delituoso que demonstre um certo grau de periculosidade retorne a delinquir.
Logo a medida de segurança difere de outras sanções, pois esta se
fundamenta na periculosidade do agente, como se verifica nos artigos 97 e 98
do Código penal Brasileiro.
Nas precisas palavras de Basileu Garcia apud Greco, as medidas de
segurança têm uma finalidade diversa da pena, pois se destinam à cura ou,
pelo menos, ao tratamento daquele que praticou um fato típico e ilícito. Haja
vista que esta não perde o caráter de uma sanção penal.
Segundo o Código Penal Brasileiro que alude em seu artigo 96
determina: ―As medidas de segurança são: I- internações em hospital de
custódia e tratamento psiquiátrico ou, à falta em outro estabelecimento
adequado; II- sujeição a tratamento ambulatorial.
159
Portanto a medida de segurança tem duas modalidades ou pode ser
detentivas (internação), ou restritivas (tratamento ambulatorial). Logo a primeira
é aplicável aos agentes que tiver cometido fato punível com pena de reclusão e
o tratamento ambulatorial ao autor de um fato punível com pena de detenção.
Contudo a legislação brasileira determina que o prazo da ―internação e
tratamento ambulatorial, será por tempo indeterminado, perdurando enquanto
não for averiguada, mediante perícia médica, a cessação de periculosidade‖.
Posto que o prazo mínimo deverá ser de um a três anos. Logo a perícia médica
realiza-se ao termo do prazo mínimo e deverá ser repetida de ano em ano, ou
a qualquer tempo, se o determinar o juiz da execução, bem como a
desinternação, ou a liberação, será sempre condicional devendo ser
restabelecida a situação anterior se o agente, antes do decurso de um ano,
pratica fato indicativo de persistência de sua periculosidade, visto que em
qualquer fase do tratamento ambulatorial, poderá o juiz determinar a internação
do agente, se essa providencia for necessária para fins curativos, como
assevera o §1º, 2º, 3º e 4º do artigo 97 do Código Penal.
13. PUNIÇÃO
Diante de uma personalidade tão difícil de identificar de imediato,
devido à tamanha dissimulação, tem-se discutido bastante qual a melhor forma
de punir um psicopata, considerando que eles não sentem que estão errados e
nem aprendem com seus erros. Pergunta-se qual a finalidade da sanção penal,
senão retribuir, punindo o delinquente, ressocializando-o e prevenindo sua
reincidência?
Como
aplicar
uma
pena
para
quem
não
aprende
e
consequentemente torna a cometer o mesmo crime repetidas vezes, sem sentir
a menor culpa?
Antes de chegar a uma conclusão aborda-se primeiramente os tipos de
pena que interessam nesse estudo, as supracitadas privativas de liberdade e
medidas de segurança. As primeiras aplicam-se aos chamados imputáveis; e
aos semi-imputáveis. Já as medidas de segurança aplicam-se aos inimputáveis
e aos semi-imputáveis.
160
Feitas as respectivas ponderações a cerca das sanções penais que
interessam, analisar-se-á qual seria a melhor forma de punir um psicopata.
Acredita-se que a pena privativa de liberdade da maneira que é
empregada atualmente, de forma reduzida, não seja a melhor punição para
esse tipo de criminoso, já que, apesar de saberem que o que fizeram é errado
não conseguem se determinar de acordo, não conseguem sentir que estão
errados, além de não se ressocializarem e exercerem má influencia aos outro
presos.
Há quem pense que punir um criminoso psicopata é um problema sem
solução em razão de todas as suas características cruéis e o melhor
tratamento conferido a eles seria bani-los da sociedade, privando-os do
convívio com pessoas normais por tempo indeterminado ou talvez para
sempre.
De acordo com as estatísticas 20% da população carcerária é psicopata.
Em nosso país não há um sistema carcerário adequado e por esse motivo
misturam-se
presos comuns com
psicopatas que
simulam
um
bom
comportamento quando na verdade influenciam outros presos, fazem
chantagem, enfim, sempre manipulam pra conseguirem o que querem e ainda
conseguem uma boa imagem perante as autoridades e consequentemente têm
a pena reduzida. Saindo da prisão, mesmo após anos sem a liberdade, não se
re-educam e na maioria das vezes, mais precisamente 70%, acabam
cometendo os mesmos crimes e pra não dizer que não aprendem realmente
nada, tornam-se mais cauteloso pra não serem presos novamente, conforme
reportagem da revista Super Interessante (2009, p. 12 -13).
Pode-se constatar, que realmente é um sério problema. Os psicopatas
não podem ser colocados em penitenciárias comuns porque serão má
influência e não serão ressocializados e nem poderão ser mandados para
hospitais porque não são loucos. Sendo assim, o que fazer então? Mas talvez
esse problema tenha solução, ao contrário do que muitas pessoas pensam. De
acordo com uma matéria da revista Super Interessante os especialistas acham
que eles deveriam ser julgados como semi-imputáveis (entendimento este que
já é adotado pelo Direito Penal Brasileiro) e colocados em prisão especial,
161
recebendo o devido acompanhamento por profissionais capacitados. O difícil
mesmo é saber quando eles estão realmente abeis para retornar à sociedade,
já que mentem com tanta naturalidade e enganam tão facilmente. Saber
quando os psicopatas estão prontos para voltar ao convívio social é realmente
um trabalho muito difícil, porém não impossível.
14. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Observando-se os estudos realizados por especialistas, os quais
expõem o funcionamento cerebral distinto das pessoas acometidas por
distúrbio de personalidade antissocial conhecido como psicopatia, haja vista
que tal órgão não funciona da mesma forma que o das pessoas tidas como
―normais‖ diante de situações de cunho moral. Ressalta-se que o tratamento
conferido a ambas não pode ser, por tais motivos, o mesmo.
Conclui-se assim, que a melhor alternativa de punição para os
criminosos psicopatas a ser conferida pelo Estado brasileiro atualmente, é a
indicada pelos especialistas, como já foi abordado, isto é, tratá-los como semiimputáveis, o que já vem sendo feito pela legislação vigente, no entanto devem
receber uma medida de segurança, já que esta não tem tempo determinado
para findar, e o ideal é que tais criminosos fiquem separados dos presos com
outros tipos de transtornos para que estes não se tornem vítimas da influência
do psicopata, em locais com estrutura especializada (prisão especial),
associado com acompanhamentos de profissionais qualificados para lidar com
o criminoso que sofre de psicopatia, tendo em vista que estes precisam ser
avaliados constantemente, devido a grande ameaça que representam a
sociedade, em detrimento da ausência da sua capacidade de ressocialização.
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_______. Júri condena Elias Maluco a 28 anos de prisão pela morte de Tim
Lopes.
Folha
online,
27
set.
2009.
Disponível
em
<
http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u109379.shtml>
.Acessado
em 15 set. 2009.
165
CRITÉRIOS DE ESCOLHA DOS LICITANTES NA MODALIDADE
CONVITE À LUZ DA LEI Nº. 8.666/93
Helvetty Matias Oliver Cruz82
Lorena Fátima Duarte Fernandes83
Wanderlan Waldez de Sousa Figueredo84
Maricelle Ramos Oliveira85
RESUMO
Este trabalho tem por objetivo suscitar a discussão acerca do enfoque dos critérios de escolha
dos interessados em participar das licitações na modalidade convite, observando o respeito
aos princípios constitucionais que tutelam o certame licitatório em comento. Para tanto,
lançamo-nos em uma pesquisa eminentemente bibliográfica, observando as lacunas existentes
entre a legislação vigente e a aplicação pragmática. Como resultado deste levantamento,
averiguamos que a Lei é cumprida, no entanto, princípios supremos não são de fato encarados
com a seriedade pertinente. Diante disso, visualizamos a fragilidade da legislação regente que
disciplina a matéria em face da abertura que se viabiliza para a ocorrência de irregularidades
que comprometem a lisura dos Atos Administrativos. Em homenagem à Proc. Anna Loureiro é
que realizamos este trabalho.
Palavras -Chave: Licitação. Convite. Princípio. Lacuna.
RESUMEN
Este trabajo tiene como objetivo despertar la discusión sobre el enfoque de los criterios para la
elección de los interesados en participar en la licitación, ya comentados, observando los
principios constitucionales que menoscaban el respeto de la licitatório de salón en el
componente. Con este fin, nos movemos en una búsqueda bibliográfica eminentemente,
tomando nota de las diferencias entre la legislación existente y pragmático. Como resultado de
esta encuesta, averiguamos que se aplique la ley, sin embargo, principios Supremo no son
realmente vistas con seriedad. Dicho esto, nos visualizar la fragilidad de la legislación regente
esa disciplina ante la apertura que sustenta las irregularidades que ponen en peligro la lisura
de los actos administrativos. En homenaje a la Proc. Anna Loureiro es que hacemos este
trabajo.
Palavras claves: Licitación. Invitación. Principio. Laguna.
82 Doutorando em Ciências Sociais e Jurídicas. pela Universidad Del Museo Social Argentino.
([email protected])
83 Graduanda em Direito, pela Universidade Estadual da Paraíba, e em Ciências Econômicas
pela Universidade Federal de Campina Grande. ([email protected])
84 Graduando em Direito, pela Universidade Estadual da Paraíba, e em Letras pela
Universidade Federal da Paraíba. ([email protected])
85 Graduanda
em
Direito,
pela
Universidade
Estadual
da
Paraíba.
([email protected])
166
1. INTRODUÇÃO
Instrumento de que dispõe à Administração Pública para selecionar
previamente as propostas mais vantajosas para o Erário e dessa forma celebra
as contratações mais econômicas para o Poder Público, a licitação desperta
comumente o interesse dos estudiosos das ciências jurídicas, bem como
chama a atenção dos cidadãos comuns que fiscalização a sociedade.
O convite, objeto particular de apreciação deste ensaio dado a sua
singeleza enquanto modalidade de licitação que é, apesar de ocupado na
doutrina espaço limitado, tem sempre se apresentado na seara das discussões
atinente a matéria, posto que a Lei regente a pesar de inúmeras vezes, ainda
não conseguiu atender em sua plenitude as exigências trazidas no bojo dos
princípios norteadores da Administração Pública, no sentindo de conferir ao tiro
procedimental a imparcialidade que o torneio licitatório demanda.
Caminhando por esse norte, vislumbrando conhecimento mais apurado
das disposições assinaladas na Lei nº. 8.666/93, em especial, seu artigo 22, §
3º, trouxemos, pois, este estudo, convencidos de que as ponderações nele
contidas ensejarão enriquecedores debates que certamente contribuirão junto
ao preenchimento das lacunas presentes no estatuto federal das licitações e
contratos com o Poder Público, no que se reporta aos critérios para o
chamamento de interessados em participar de convites.
2. LICITAÇÃO E SEUS ASPECTOS
A licitação é o procedimento administrativo formal em que a
Administração Pública convoca, mediante condições estabelecidas em ato
próprio (edital ou convite), empresas interessadas na apresentação de
propostas para o oferecimento de bens e serviços.
Segundo Dirley da Cunha Júnior (2008), entende-se por Licitação:
167
Um procedimento administrativo por meio do qual a Administração
Pública seleciona a proposta mais vantajosa para o contrato que
melhor atenda ao interesse público86.
A licitação objetiva garantir a observância do princípio constitucional da
isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração, de
maneira a assegurar oportunidade igual a todos os interessados e possibilitar o
comparecimento ao certame ao maior número possível de concorrentes.
A Lei nº 8.666 de 1993, ao regulamentar o artigo 37, inciso XXI, da
Constituição Federal, estabeleceu normas gerais sobre licitações e contratos
administrativos pertinentes a obras, serviços, inclusive de publicidade,
compras, alienações e locações no âmbito dos Poderes da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios, bem como a concessão e permissão de
serviços públicos, em seu art. 175.
De acordo com essa Lei, a celebração de contratos com terceiros na
Administração Pública deve ser necessariamente precedida de licitação,
ressalvadas as hipóteses de dispensa e de inexigibilidade de licitação. Nesse
passo a Constituição obriga a todos os órgãos da Administração direta e a
entidades a realizar tal procedimento.
Como corrobora Maria Sylvia Zanella di Pietro (2005), no tocante
entendimento do processo licitatório abrir a possibilidade de formularem
propostas dentre as quais a Administração selecionará a mais conveniente
para a celebração de contrato, a autora analisa:
No direito Administrativo, a licitação equivale a uma oferta dirigida a
toda coletividade de pessoas que preencham os requisitos legais e
regulamentares constantes do edital; dentre estas, algumas
apresentarão suas propostas, que equivalerão a uma aceitação da
oferta de condições por parte da Administração; a esta cabe escolher
a que seja mais conveniente para resguardar o interesse público,
dentro dos requisitos fixados no ato convocatório.87
Para entendermos de maneira sucinta o que seja licitação, averiguamos
que a mesma se processa no tocante à execução de obras, a prestação de
serviços e o fornecimento de bens para atendimento de necessidades públicas,
86 JÚNIOR, Dirley da Cunha. Curso de Direito Administrativo. 7ª ed. rev. amp. atual. Salvador:
JusPodivm, 2008, p. 431.
87 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 18ª ed. São Paulo: Atlas, 2005,
p. 309-310.
168
nas alienações e locações devem ser contratadas mediante este procedimento,
exceto nos casos previstos na Lei nº 8.666, de 1993, e alterações posteriores.
Todavia, devemos ficar alerta em observar o motivo pelo qual a
administração pública utiliza o procedimento licitatório. Tal fundamento
encontra-se na Constituição Federal, art. 37, inciso XXI, o qual prevê para a
Administração Pública a obrigatoriedade de licitar. O procedimento de licitação
objetiva permitir que a Administração contrate aqueles que reúnam as
condições necessárias para o atendimento do interesse público, levando em
consideração aspectos relacionados à capacidade técnica e econômicofinanceira do licitante, à qualidade do produto e ao valor do objeto. Nesse
sentido, revelando o verdadeiro escopo do instrumento da licitação, qual seja,
levar a efeito o princípio da economicidade promovendo as contratações mais
vantajosas para o poder público e que atendam as reais necessidades da
coletividade.
Estão sujeitos à regra de licitar, prevista na Lei nº 8.666, de 1993, além
dos órgãos integrantes da administração direta, os fundos especiais, as
autarquias, as fundações públicas, as empresas públicas, as sociedades da
economia mista e demais entidades controladas direta e indiretamente pela
União, Estados, Distrito Federal e Municípios.
Uma vez definido o objeto que se quer contratar, é necessário estimar o
valor total da obra, do serviço ou do bem a ser licitado, mediante realização de
pesquisa de mercado. É necessário, ainda, verificar se há previsão de recursos
orçamentários para o pagamento da despesa e se esta se encontrará em
conformidade com a Lei de Responsabilidade Fiscal.
Após apuração da estimativa, deve ser adotada a modalidade de
licitação adequada, com prioridade especial para o pregão, quando o objeto
pretendido referir-se a bens e serviços comuns listados no Decreto nº 3.555, de
8 de agosto de 2002, que regulamenta esta modalidade.
Consideram-se responsáveis pela licitação, os agentes públicos
designados pela autoridade de competência, mediante ato administrativo
próprio (portaria, por exemplo), para integrar comissão de licitação, ser
pregoeiro ou para realizar licitação na modalidade convite.
169
A comissão de licitação é criada pela Administração com a função de
receber, examinar e julgar todos os documentos e procedimentos relativos ao
cadastramento de licitantes e às licitações nas modalidades de concorrência,
tomadas de preços e convite.
Pode
ser
permanente
e
especial. Será
permanente
quando
a
designação abranger a realização de licitações por período determinado de no
máximo doze meses.
3. PRINCÍPIOS CORRESPONDENTES
Norteadores das condutas administrativas e verdadeiros alicerces sobre
os quais se estabelece a razão de existir do Poder Público, os princípios que
conferem à dinâmica da Gestão da Sociedade, a devida observância à Ordem
constitucional e acabam por consubstanciar-se em sustentáculo da atividade
pública, são de expoente importância na seara jurídica, fartamente apreciados
pelos estudiosos do direito administrativo brasileiro e trazido à luz da legislação
de forma expressa, na carta Magna de 1988, em seu artigo 37 ―caput‖, que
preceitua que, a Administração Pública direta e indireta de qualquer dos
poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
obedecerá
aos
princípios
de
legalidade,
impessoalidade,
moralidade,
publicidade e eficiência.
3.1 - Da Administração Pública
Os princípios da Administração Pública são abrangidos por:
Legalidade
O que impõe ao Agente Público atuar somente na forma da lei,
investindo seus atos da merecida juridicidade e consequentemente atendendo
às disposições positivadas que regulamentam as condutas administrativas.
Reflete a proposição lançada por Gasparini88, suporta a lei que fizeste, posto
88 GASPARINE, Diógenes. Direito Administrativo. 4ª ed. rev. ampl. São Paulo: Saraiva,
1995, p. 06.
170
que, se estende às demais atividades do Estado, eivando de antijuridicidade e
dessa forma, procedendo à nulidade, as ações estatais desprovidas do
necessário aporte legal, bem como aquelas que excedam o âmbito fixado em
lei.
O princípio da legalidade contrapõe-se, portanto, e visceralmente, a
quaisquer tendências de exacerbação personalista dos governantes.
Opõe-se a todas as formas de poder autoritário, desde o absolutista,
contra o qual irrompeu, até as manifestações caudilhescas ou
messiânicas típicas dos países subdesenvolvidos. O princípio da
legalidade é o antídoto natural do poder monocrático ou oligárquico,
pois tem como raiz a idéia de soberania popular, de exaltação da
cidadania. 89
Impessoalidade
Corresponde à necessidade de conferir a todos os administrados, o
mesmo tratamento, evitando discriminação de qualquer natureza. À luz desse
princípio, nem perseguições, nem animosidades pessoais são toleráveis, nem
tampouco privilégios ou favoritismo em qualquer grau é admitido.
Moralidade
Constitui-se nos dias atuais em pressuposto para validade dos atos da
Administração Pública. O princípio da Moralidade aponta para a necessidade
de pautar as ações lançadas pelo Agente Público da ética e decoro que as
mesmas ensejam, vez que, é ele dotado do discernimento de optar pelas
decisões mais convenientes para o Poder Público, respeitando sempre, o bem
estar da coletividade.
De acordo com ele, a Administração e seus agentes têm de atuar na
conformidade de princípios éticos. Violá-los implicará violação ao
próprio Direito, configurando ilicitude que assujeita a conduta viciada
a invalidação, porquanto tal princípio assumiu foros de pauta jurídica,
na conformidade do artigo 37 da Constituição Federal.90
Publicidade
89 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 24ª. ver. atual. São
Paulo: Malheiros, 2007. p. 97.
90 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 24ª. rev. atual. São
Paulo: Malheiros, 2007. p. 115.
171
É o princípio que respalda a eficácia dos atos administrativos praticados,
impondo a devida publicidade dos mesmos, no afã de fazer chegar ao
conhecimento da coletividade, as iniciativas levadas a efeito pelos atores
públicos, permitindo à vigilante sociedade, acompanhar os desdobramentos
que se estabelecem com a coisa pública, dessa maneira, procedendo com a
devida fiscalização do Erário.
A publicação que produz efeitos jurídicos é a de Órgão Oficial da
Administração, e não a divulgação promovida pela imprensa particular, ainda
que seja ela de grande audiência, se adequando perfeitamente a essas
disposições, os diários oficiais das entidades públicas.
Eficiência
Um dos mais modernos princípios da função administrativas, anexado
aos princípios expressos no artigo 37 ―caput‖ da Constituição Federal, com a
promulgação da Emenda Constitucional nº. 19/98 e reflete uma aspiração tão
esperada, não apenas por aqueles que integram a Administração mas, por toda
a sociedade, que exige a prestação de serviços de qualidade, que atendam,
efetivamente e ao tempo hábil, os anseios e necessidades coletivas.
De igual sorte, a Administração Pública não é somente regida pelos
princípios expressos na Lei Maior que rege o nosso Ordenamento Jurídico
Pátrio,
invocando às suas pretensões, com
equiparada consagração
constitucional, princípios outros que ancoram a sistemática administrativa, bem
como traduzem implicações do próprio Estado de Direito que nos é tão
particular.
Nesse sentido despontam o princípio da supremacia do interesse público
sobre o privado, o da finalidade, da razoabilidade, da proporcionalidade, da
motivação, do devido processo legal e da ampla defesa, do controle judicial dos
atos administrativos, da responsabilidade do Estado por atos administrativos e
da segurança jurídica.
172
3.2 - Da licitação
O estatuto federal das licitações e contratos com o Poder Público, a lei
nº. 8.666 de 21.6.1993, inúmeras vezes alterada, em seu artigo 3º, ao
evidenciar o escopo do instrumento jurídico da licitação, qual seja, garantir a
observância do princípio constitucional da isonomia e selecionar a proposta
mais vantajosa para a Administração, também manda que os procedimentos
licitatórios sejam processados e julgados em estrita conformidade com os
princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da
igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao
instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos.
Nesse sentido o art. 41 do mesmo diploma legal acha-se revestido do
princípio da vinculação ao instrumento convocatório, vez que afirma que a
Administração não pode descumprir as normas e condições editalícias, ao qual
se acha estritamente vinculada. O art. 45 por seu turno evidencia a intenção do
legislador de estabelecer um julgamento objetivo das propostas ofertadas,
afastando qualquer caráter subjetivo que possa envolver os procedimentos
licitatórios de impressões ou pretensões pessoais.
4. ASPECTOS GERAIS DO CONVITE
Dentre as modalidades de licitação são os convites que se destacam
pela simplicidade de processamento e por isso, destinam-se aos certames em
que envolvem baixos valores.
Pelo pouco rigor a ele exigido, os convites se tornaram o
procedimento mais célere dentre as demais e é regido também pela Lei das
Licitações (Lei nº. 8.666/93).
Ferreira91 cita como exemplo a desnecessidade do edital e da
Comissão Julgadora de Licitação nas pequenas unidades administrativas, o
menor prazo quando comparado as demais modalidades (cinco dias), a
inexigibilidade da participação de assessoria jurídica, a dispensa de contrato
91 FERREIRA, João Sanches. Licitação na modalidade convite. 1ª ed. (Ano 2001), 6ª tir.
Curitiba: Juruá, 2008, p.33.
173
administrativo dentre outras peculiaridades que afetam exclusivamente os
convites, particularizando-os.
Assim sendo, estão definidos no art. 22, § 3º da Lei como:
a modalidade de licitação entre interessados do ramo pertinente ao
seu objeto, cadastrados ou não, escolhidos e convidados em número
mínimo de 3 (três) pela unidade administrativa, a qual afixará, em
local apropriado, cópia do instrumento convocatório e o estenderá
aos demais cadastrados na correspondente especialidade que
manifestarem seu interesse com antecedência de até 24 (vinte e
quatro) horas da apresentação das propostas.92
Gasparini93 entende que as características próprias e por ele
exigidos são:
a) destinar-se a contratos de pequeno valor; b) exigir no mínimo, três
interessados escolhidos pela Administração Pública licitante; c)
facultar a participação de cadastros que manifestarem interesse com
antecedência de até 24 horas da apresentação das propostas; d)
presumir a habilitação dos interessados escolhidos; e) inexige
publicidade no jornal oficial.
Sendo característica o ―pequeno vulto‖, o autor assevera que a lei
considera como aquele previsto no art. 23, I e II, ou seja, R$ 15.000,00 a
150.000,00 quando o valor estimado da contratação referir-se a obras e
serviços de engenharia; e de até R$ 80.000,00 quando se tratar de compras e
serviços não incluídos no inciso I (serviços de engenharia).
O convite pode ser julgado por uma comissão própria ou por servidor
da entidade designado formalmente para esse fim específico, concordes art.
51, § 1º da Lei da Licitação94.
Seja por comissão ou servidor designados, estes devem emitir no
mínimo, três cartas-convite para diferentes empresas, prováveis interessadas,
92
BRASIL, Lei 8.666, 21 de Junho 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da
Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá
outras providências. Brasília, publicado no D.O.U. de 22.6.1993 e republicado no D.O.U de
6.7.1994.
Disponível
em
<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8666cons.htm> Acesso 05 de Abr. 2010.
93 GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 8. ed. ver. e atual. – São Paulo: Saraiva,
2003.
94
Art. 51.
o
§ 1 No caso de convite, a Comissão de licitação, excepcionalmente, nas pequenas
unidades administrativas e em face da exigüidade de pessoal disponível, poderá ser
substituída por servidor formalmente designado pela autoridade competente. (Lei 8.666, 21 de
Junho 1993).
174
que seja do ramo equivalente ao objeto do torneio licitatório respeitado o prazo
de cinco dias úteis (art. 21, § 2º, V)95.
Além dos licitantes convidados, podem outros interessados participar
do certame desde que sejam cadastrados e manifestem seu interesse com a
antecedência de até 24 horas da apresentação das propostas.96
Di Pietro97 assevera que a medida em que permite a participação de
outros interessados no convite se faz necessário, pois:
Contribui para aumentar o rol de licitantes, mas torna mais complexo
um procedimento que se caracteriza e se justifica exatamente por sua
maior simplicidade, decorrente do fato de que essa modalidade de
licitação é cabível para os contratos de pequeno valor.
Essa participação é uma permissão legal prevista no art. 22 §3º da
lei 8.666/93.
Quanto à habilitação, a modalidade convite não obriga àqueles que
são convidados, somente as empresas que se apresentarem sem terem
apresentado a carta-convite.
A faculdade da habilitação de licitantes convidados é controversa por
ferir princípios licitatórios constitucionais, embora estejam dispostos no art. 32,
§ 1º da lei de licitações98.
Contudo, Di Pietro99 entende que:
A entidade licitante presume como boas a habilitação jurídica, a
qualificação técnica, a qualificação econômico-financeira e a
regularidade fiscal do convidados. Não é necessário qualquer medida
visando averiguar esses aspectos da pessoa do licitante [...]
Passada a fase de habilitação, julga-se as propostas e se adjudica o
objeto do convite ao vencedor, ―formalizando-se o ajuste por simples ordem de
95 BRASIL, Lei 8.666, 21 de Junho 1993.
96 DI PIETRO, Maria Sylvia Zonella. Direito Administrativo. 14. ed. – São Paulo: Atlas, 2002.
p. 325
97 Idem, p. 326
98 GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 8. ed. ver. e atual. – São Paulo: Saraiva,
2003.
99 DI PIETRO, Maria Sylvia Zonella. Direito Administrativo. 14. ed. – São Paulo: Atlas, 2002.
p. 326
175
execução de serviço, nota de empenho da despesa, autorização de compra ou
carta-contrato‖.100
Além de que, a modalidade convite diferente das demais, não exige
publicização por meio da imprensa oficial ou particular. O edital desta
modalidade é substituído pela carta-convite que será apenas enviada às
empresas licitantes e afixadas em local apropriado de fácil acesso para que
possa está disponível aos interessados.
Embora mais ágil devido à inexigibilidade de procedimentos complexos,
esta modalidade de torneio licitatório, torna-se duvidosa em infelizes momentos
por afrontar princípios básicos constitucionais utilizados pela Administração
Pública.
5.
REQUISITOS
PARA
CHAMAMENTO
(CARTA-CONVITE)
DOS
LICITANTES
A lei 8.666, de 21 de Junho de 1993, disciplina as licitações, como
também os contratos administrativos, constituindo normas gerais aplicáveis aos
Poderes da União, Estados, Distrito Federal e Municípios.
A criação da lei supracitada surgiu tão somente com o objetivo de
moralizar os procedimentos relativos à contratação pública de fornecedores de
produtos e prestadores de serviços à Administração Pública.
Este diploma legal é constituído por 126 artigos, dos quais, pouco mais
de 25 dispositivos mencionam conceito, procedimento específico, característica
ou peculiaridades da modalidade de licitação convite. Por expressa disposição,
tal modalidade encontra-se definida no art. 22, §3º. Como toda modalidade de
licitação, reúne determinados elementos, características que lhes são
peculiares, tornando-se desta forma, uma modalidade com procedimentos
próprios e há um porte de objeto a ser licitado diferenciado das demais
modalidades.
100
MEIRELES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 21ª edição. São Paulo:
Malheiro, 1990, p. 291
176
Conforme explicado em linhas anteriores e pelo que se extrai da
norma regente, a modalidade convite, diferentemente das demais, é aquela
que se apresenta de maneira mais simplificada. E são inúmeros pontos que
comprovam a simplicidade no processamento, basta apenas analisar nas
outras seus requisitos, exigências e etapas procedimentais.
Destina-se a convidar licitantes interessados do ramo relacionado ao
da licitação, cadastrados ou não, que serão escolhidos por agentes da
Administração Pública, em um número mínimo de 03 (três), e sempre que
possível (a depender do objeto a ser licitado e a limitação de possíveis
interessados no mercado), deverá conter mais de 01 (um) interessado. Dessa
maneira, a habilitação dar-se-á presumidamente ou por meio de cadastramento
prévio.
Quando a Lei determina que a modalidade direcionará seu
chamamento aos interessados cadastrados ou não, implica afirmar legalmente
que, a habilitação dos convidados e escolhidos pela Administração Pública é
presumida. Os cadastrados expressam seu interesse em participar de
licitações, a partir do momento que por livre iniciativa dirige-se a Administração
Pública, com toda documentação inerente a efetivação do cadastro. Os não
cadastrados serão partícipes em um torneio licitatório caso, a Administração o
convide formalmente para participar. No momento que o convidado se
interesse, deverá manifestar evidências com a apresentação da proposta, com
antecedência de 24 (vinte quatro) horas, conforme dispõe o art. 22, §3º.
Ainda no art. 22, encontram-se dois comandos normativos importantes
com relação ao chamamento de interessados, são eles os §§6º e 7º. O primeiro
estabelece que:
§ 6° Na hipótese do § 3° deste artigo, existindo na praça mais de três
possíveis interessados, a cada novo convite, realizado para objeto
idêntico ou assemelhado, é obrigatório o convite a, no mínimo, mais
um interessado, enquanto existirem cadastrados não convidados nas
últimas licitações.101
101
BRASIL, Lei 8.883, de 8 de junho de 1994. Altera dispositivos da Lei nº 8.666, de 21
de junho de 1993, que regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui
normas para licitações e dá outras providências. Brasília, DF, 21 de junho de 1993. Disponível
em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8883.htm> Acesso 05 de Abr. 2010.
177
Essa modificação foi inserida pela Lei nº. 8.883 de 08 de Junho de
1994, com a finalidade de não permitir que as licitações fossem realizadas com
os mesmos fornecedores convidados anteriormente.
O §6º deixa claro que nos casos de convite realizado para objeto
idêntico ou assemelhado, à Administração Pública está obrigada a convidar
mais um interessado, estando ele cadastrado ou não, que não tenha sido ainda
convidado na licitação pretérita. Em cada convite necessitariam ser chamados
interessados novatos, seguindo a obrigatoriedade e a letra legal. Percebesse
que em uma licitação na modalidade convite, de objeto idêntico ou semelhante,
na sua quarta realização, os licitantes deveriam ser totalmente distintos dos
que participaram das licitações anteriores.
Em seguida, o §7º designa que:
§ 7° Quando, por limitações do mercado ou manifesto desinteresse
dos convidados, for impossível a obtenção do número mínimo de
licitantes exigidos no § 3° deste artigo, essas circunstâncias deverão
ser devidamente justificadas no processo, sob pena de repetição do
convite.102
O legislador ciente que em algumas regras sempre devem ser
previstas exceções, elaborou o dispositivo acima prevendo o que de fato ocorre
não raramente nos convites. Ao que parece, pode prever a possibilidade de
alguns convidados não se interessar em participar dos torneios licitatórios, ou
que em determinados sítios, na maioria das vezes municípios, tivessem o
mercado com número de fornecedores de determinados materiais ou serviços
muito restringidos.
Portanto, o legislador instituiu que havendo limitação de mercado ou
desinteresse dos convidados, devidamente evidenciados, o órgão licitante
deverá justificar tais circunstâncias nos autos, sob pena de repetir o convite.
Objetivamente, o texto legal permite fazer uma exegese da seguinte
forma: caso o órgão licitante (Comissão de Licitação) convide três empresas
para um determinado certame licitatório e, em comparecendo apenas uma
delas, deverá justificar as circunstâncias no processo, seja devido à limitação
de mercado ou a desinteresse dos convidados, e assim sendo, estando
102
BRASIL, Lei 8.883, de 8 de junho de 1994.
178
devidamente evidenciada a situação no processo por justificativa, poderá a
Administração Pública contratar diretamente com a única que manifestou
interesse, uma vez que os preços da proponente não estejam superiores ao
dos praticados no mercado. Caso os preços ofertados pela licitante estejam
além dos praticados no mercado, o órgão deverá anular o convite e repeti-lo
em momento oportuno.
Vale ressaltar que a lei determina que o desinteresse dos convidados
deva ser MANIFESTO, ou seja, não entende que o convidado, caso seja
chamado e não compareça, esteja expressamente manifestando que renunciou
do direito de participar da licitação, assim é o que o Tribunal de Contas da
União entende (TCU - TC 024.572/90. DOU de 09/08/91, pág. 13.339, reiterada
em 02/12/91, pág. 27.478). Essa exigência traz algumas dificuldades para os
que atuam nos órgãos que conduzem as licitações na Administração Pública,
pois raramente, algum convidado tem o cuidado de responder ou de justificar o
porquê do desinteresse em participar de determinada licitação.
Poderia a Administração fazer uso da expressão “tácita” tratada no
Código Civil, como bem preceitua em seu art. 111103? Será que o convidado
chamado a participar de um convite e em não comparecendo, o órgão licitante
poderia interpretar como sendo uma desistência tácita?
O disposto nesta Lei de licitações e contratos administrativos é por
demasiado vago quanto aos requisitos que norteiem a Administração Pública
no ato do chamamento de licitantes interessados. Pelo que fora vastamente
explanado neste estudo em epígrafe, constata-se que em nenhum momento a
Lei 8.666/93, determina uma postura a ser seguida pelo Ente Administrativo
para convidar interessados a participar de convite. Sabe-se que dessa forma,
abre precedentes para que ocorram atos de improbidade administrativa, nas
suas mais variadas formas.
A determinação do § 3º a Administração Pública é que o convite deve
ser destinado a um número mínimo de três possíveis interessados,
103
Art. 111. O silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o
autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa. (BRASIL, Lei nº 10.406,
de 10 de Janeiro de 2002 - DOU de 11/01/2002 – Institui o Código Civil. Disponível em <
http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em 05 de Abr. 2010.)
179
cadastrados ou não. O § 6º obrigada o Ente Público a convidar mais um
interessado a cada novo convite, cadastrado ou não, que não tenha sido ainda
convidado, quando tratar de licitação que fora realizada em momento pretérito
com objeto idêntico ou semelhante. Esses mandamentos legais poderiam ser
entendidos como requisitos suficientes, para que os chamamentos nos convites
fossem mais prudentes e rigorosos nas escolhas? A reposta é objetiva e,
infelizmente, negativa.
Mesmo com as atualizações propostas pelo Projeto de Lei nº.
7.709/07104, o legislador não teve a sensibilidade em tratar do assunto
criteriosamente, para lamento da sociedade como um todo, não auxiliando no
desafogamento das Ações instauradas no Tribunal de Contas da União, que a
todo instante averiguam atos de improbidades ocultos advindos de tantos
convites realizados em toda extensão do território brasileiro.
O convite por representar um procedimento licitatório simples, não
quer dizer que o legislador permita que uma lacuna existente na Lei, refere-se
a requisitos detalhados para chamamentos de licitantes interessados em
participar do certame e tragam consigo prejuízos incomensuráveis aos cofres
públicos e possibilite que agentes públicos e terceiros de má fé atuem
livremente, como parasitas a cada processo realizado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A
estrita
observação
dos
princípios
constitucionais,
pilares
do
ordenamento jurídico pátrio, revela-se de fundamental importância para a
concretização dos pressupostos do instrumento jurídico da Licitação.
A atenção aqui dedicada à modalidade convite nos permite inferir as
necessidades de aprimoramento da legislação regulamentadora do assunto,
maximizando com isso a segurança jurídica dos atos administrativos
praticados, assim como, prever as possibilidades subliminares que porventura
104
Este Projeto de Lei alterou os dispositivos contidos na Lei no 8.666, de 21 de junho de
1993, que regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição, e institui normas para licitações e
contratos da Administração Pública, dentre outras providências.
180
possam eclodir durante a realização dos procedimentos licitatórios, dessa
forma, conferindo a devida lisura que é própria dos certames, considerando a
relevância da matéria frente à consecução do interesse público.
REFERÊNCIAS
BRASIL, Lei 8.666, 21 de Junho 1993. Regulamenta o art. 37, inciso
XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e
contratos da Administração Pública e dá outras providências.
Brasília,
DF,
231
de
junho
de
1993.
Disponível
em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8666cons.htm> Acesso 05
de Abr. 2010.
_________, Lei 8.883, de 8 de junho de 1994. Altera dispositivos da
Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, que regulamenta o art. 37,
inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e
dá outras providências. Brasília, DF, 08 de junho de 1994. Disponível
em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8883.htm>. Acesso 05
de Abr. 2010.
__________, Lei nº 10.406, de 10 de Janeiro de 2002 - DOU de
11/01/2002
–
Institui
o
Código
Civil.
Disponível
em
<
http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em 05
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181
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São Paulo: Malheiros, 1994.
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Malheiros, 2007.
SUNDFELD, Carlos Ary. Licitação e Contratos Administrativos. São
Paulo: Malheiros Editores, 1994.
182
CRÍTICA À CLASSIFICAÇÃO DAS CONSTITUIÇÕES
Igor Carvalho Barbosa105
Lincoln Ferdinand Oliveira Silva106
RESUMO
O presente trabalho visa abordar a temática das classificações constitucionais a partir
da enunciação dos critérios classificatórios, da análise de cada espécie de constituição, do uso
de exemplos históricos e da problematização do conteúdo. Selecionar as questões
verdadeiramente relevantes e romper com os velhos paradigmas são os nítidos objetivos
pretendidos pelos autores. Para tanto, foi necessário recorrer aos manuais nacionais e
internacionais de Direito Constitucional, a partir de uma pesquisa conjunta com os colegas
Bruno Holanda de Farias e Samuel Freitas Pereira. Evidencia-se que o tema, apesar de
bastante cobrado em concursos públicos, ganha importância acadêmica somente se encarado
criticamente.
Palavras chave: classificação. constituição. critério. crítica.
ABSTRACT
This paper intends to aboard constitution‘s classifications thematic throughout the
classificatory critters enunciation, each constitution kind analyses, historical examples use and
theme question. Select the most relevant questions and apart with the traditional concepts are
the authors‘ clear goals. It was necessary read the national and international Constitutional Law
books throughout a research with the participation of Bruno Holanda de Farias and Samuel
Freitas Pereira. Despite of the public exams, it‘s evident that the theme gets academic
importance only in a criticizing view.
Key words: classification. constitutions, critter. criticism.
105
Graduando em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba. Monitor da
disciplina de Linguagem e Argumentação Jurídica.
106
Graduando em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba.
183
1. INTRODUÇÃO
A partir da leitura de diversos manuais produzidos pelos mais aclamados
constitucionalistas da língua portuguesa, percebemos que cada autor dá
enfoque diferenciado à classificação das constituições. Enquanto a maioria
tece curta referência ao tema, alguns elaboram esquematizações úteis à
preparação para concursos públicos, restando raros dispostos a problematizar
a questão - e se assim procedem, o fazem com lamentável superficialidade.
Dessarte, atentos às súplicas acadêmicas, desenvolvemos um trabalho
que a partir de diferenciações e exemplificações, força o jurista a rever uma
antiga matéria dos bancos de universidade com um enfoque atualizado, crítico
e dinâmico.
2. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Antes de iniciar efetivamente a explanação acerca da classificação, fazse necessário expor as acepções de conceito de constituição elaboradas pelos
mais respeitados estudiosos da Ciência Jurídica, a fim de delimitarmos o objeto
de nossas análises.
Não nos interessa, como previne Alexandre de Moraes e Paulo
Bonavides, a constituição lato sensu, mas apenas a constituição política, ou
seja, a constituição de Estado.
Para Virgílio de Jesus Miranda Carvalho, constituição é o estatuto
jurídico fundamental da comunidade. Lassale, por sua vez, entende por
constituição a somatória dos fatores reais do poder. Hans Kelsen concebe-a
como a norma positivada suprema, enquanto Carl Schmitt faz referência às
decisões políticas fundamentais.
Em face deste leque de conceitos, numerosas também se apresentam
as classificações. Escolhemos, portanto, os critérios merecedores de maior
atenção da doutrina.
184
Devemos advertir, antes de mais nada, que nenhum critério é mais
importante que outro, todavia, em dada circunstância, os aqui abordados
possam parecer mais adequados a finalidade do trabalho.
3. QUANTO À ORIGEM
Se adotarmos o critério da origem, contemplaremos quatro tipos
diferentes de constituições. A Lei Maior de cada país poderá ser outorgada,
promulgada, cesarista ou pactuada, de acordo com as características de seu
processo constituinte originário.
As constituições outorgadas são aquelas elaboradas sem a participação
do povo e impostas unilateralmente por um governante que não tem
legitimidade para atuar em nome da sociedade.
Ótimos exemplos de constituições outorgadas no Brasil foram a
Constituição Imperial de 1824 (fruto da arbitrariedade do imperador Pedro I), a
Constituição de 1937 (sob a égide da tendência fascista representada pelo
autoritarismo da Era Vargas) e a Constituição de 1967 (cujo preâmbulo
exaltava os ministros da marinha de guerra, do exército e da aeronáutica militar
como constituintes).
Dentre as constituições outorgadas espalhadas pelo mundo, destacamse a Carta de Luis XVIII durante a restauração do absolutismo francês, o
Estatuto Albertino de 1848 na Itália, a Constituição Japonesa de 1889, as
constituições etíopes de 1931 e 1955 e Constituição Saudita de 1950.
É sabido que o conteúdo material da constituição explora como temas a
limitação dos poderes e as garantias e direitos fundamentais do povo. Uma das
grandes problemáticas decorrentes da outorga de uma constituição surge do
seguinte questionamento: ―Como um líder pode elaborar o documento que
protege a sociedade do seu próprio alvedrio?‖. Bastante pertinente torna-se
uma analogia popular que satiriza o fato da raposa cuidar do galinheiro:
certamente, esse soberano, inebriado pelo poder, molda o texto constitucional
à sua vontade, e, se assim não fizer, invalida-o perante o primeiro contratempo.
185
Outra espécie de constituição é a cesarina, que segundo José Afonso da
Silva é ―formada por plebiscito popular sobre um projeto elaborado por um
imperador (plebiscitos napoleônicos) ou por um ditador (plebiscito de Pinochet,
no Chile)‖. O eminente constitucionalista considera-a uma outorga disfarçada,
pois a vontade do governante é ratificada por um plebiscito de legitimidade
duvidosa.
As constituições pactuadas, por sua vez, são resultantes de um poder
constituinte com mais de um titular, contrastando com a doutrina de Uadi
Lanmêgo Bulos que preconiza a unidade do poder constituinte. O grande Paulo
Bonavides entende por este tipo de constituição ―aquela que exprime um
compromisso instável entre duas forças políticas rivais‖.
A História tradicional européia mostra-nos alguns exemplos de
constituições pactuadas. Em 1215, os barões ingleses impuseram a Magna
Carta a João Sem Terra; a Constituição Francesa de 1781, estabelecida sobre
o tenso equilíbrio entre aristocratas e representantes da nação; Bill of Right de
1689, documento parlamentar imposto a Guilherme de Orange quando se
estabilizava no trono inglês; Act of Settlement de 1701 na Inglaterra; as
constituições espanholas de 1845 e 1876; Constituição Grega de 1844; e
Constituição Búlgara 1879.
Analisando mais atentamente o contexto político em que se inserem as
constituições pactuadas, percebemos uma verdadeira imposição de grupos em
ascensão às monarquias decadentes, a fim de limitar o poder do rei e
assegurar prerrogativas políticas a novas figuras influentes. Na realidade
prática, tem-se uma outorga.
Em síntese, tanto as constituições cesarinas quanto as pactuadas
implicam outorgas. Esta possibilidade de imposição recebe a denominação de
―Carta Constitucional‖ pela doutrina dominante.
A doutrina moderna consente que a titularidade do povo é um
pressuposto do poder constituinte. Partindo deste entendimento, não há
possibilidade de admitir-se uma constituição outorgada. Resta, desta forma,
apenas o modelo democrático de constituição, e faz-se desnecessária a
classificação quanto à origem.
186
Também
chamada
de
democrática
ou
popular,
a
constituição
promulgada é a expressão da vontade coletiva. Originária dos trabalhos
efetuados pela Assembléia Nacional Constituinte composta de representantes
do povo eleitos de forma legítima, a constituição promulgada é condição
necessária para a instauração de um Estado de Direito em que as liberdades e
garantias fundamentais e a limitação dos poderes sejam os condicionantes da
vida em sociedade.
Dentre os exemplos de constituições promulgadas destacam-se a
Primeira Constituição da República Brasileira de 1891, a Constituição de
Weimar de 1934 na socialdemocracia alemã (base do constitucionalismo
ocidental contemporâneo) e a Constituição Brasileira de 1988, o grande pilar
Nova República.
A Constituição Americana e as constituições francesas de 1848 e 1875,
assim como tantas outras que entraram em vigência no período entre guerras,
foram elaboradas por Convenção.
4. QUANTO À FORMA
O critério de classificação constitucional quanto à forma, segundo a
opinião de Gilmar Ferreira Mendes, tem a única utilidade de ―contemplar a
singularidade inglesa‖. Animados por esta polêmica, iniciamos nossos
comentários analisando as constituições escritas, surgidas no séc. XIX a partir
da tendência liberal de limitar os poderes do soberano, e posteriormente as
costumeiras, predominantes até fins do séc. XVIII, coincidindo com os regimes
absolutistas.
A constituição escrita, também chamada de instrumental, encontra-se
consolidada num texto formal e solene, e, de acordo com Pedro Lenza,
configura-se como ―conjunto de regras sistematizadas e organizadas em um
único documento, estabelecendo as normas fundamentais de Estado‖.
A primeira constituição escrita, se considerado o sentido nacional e
limitativo defendido por Esmein, foi o instrument of governament da República
Inglesa de Oliver Cromwell de 1633 (base da Constituição dos Estados Unidos
187
da América). Os exemplos modernos são a Constituição Brasileira de 1988, a
Constituição Espanhola e a Constituição Portuguesa.
Fruto do pacto social doutrinário de Rousseau e de lutas políticas
inglesas, as constituições escritas, acredita Tocqueville, são as únicas
consagradas pela linguagem jurídica e política. Esmein e Garcia Pelayo
advogam a preferência pela constituição escrita, ressaltando a superioridade
da lei escrita e o fato da escrita renovar simbolicamente o contrato social,
considerando-a melhor instrumento de educação política.
Burdeau afirma que há clareza, certeza e precisão de conteúdo nas
constituições escritas de forma que todos os indivíduos integrantes do Estado,
inclusive o governante, não fujam à pauta. É racional, objetiva, segura, estável
e protege da arbitrariedade. Canotilho enaltece sua calculabilidade e
publicidade, salientando:
A garantia da força normativa da constituição não é tarefa fácil,
mas se o direito constitucional é direito positivo, se a constituição
vale como lei, então as regras e princípios constitucionais devem
obter normatividade regulando jurídica e efetivamente as
relações da vida, dirigindo as condutas e dando segurança a
expectativas de comportamento.107
A constituição costumeira, consuetudinária ou não-escrita possui dois
conceitos. Pedro Lenza acredita que ela é ―formada por textos esparsos,
reconhecidos pela sociedade como fundamentais e baseia-se nos usos,
costumes, jurisprudência e convenções‖. Outros autores entendem por
constituições costumeiras aquelas que não apresentam textos escritos,
considerando a definição de Lenza mais cabível às constituições parcialmente
escritas.
Mesmo os ingleses, cerne de toda a discussão, possuem textos
constitucionais escritos, sendo considerada a sua constituição parcialmente
costumeira. Segundo Jorge Miranda:
Diz-se muitas vezes que a Constituição Inglesa é uma
Constituição não escrita (unwritten Constitution). Só em certo
107
Canotilho, 2008.
188
sentido esse acerte se afigura verdadeiro: no sentido de que
uma grande parte das regras sobre organização do poder
político é consuetudinária; e, sobretudo, no sentido de que a
unidade fundamental da Constituição não repousa em nenhum
texto ou documento, mas em princípios não escritos assentes na
organização social e política dos britânicos.108
Em
defesa
da
constituição
costumeira,
sobressai-se
Bascuñan,
alegando que ela acompanha a sociedade e permanece fiel à norma
fundamental. De Bonald é enfático ao condenar as constituições escritas: ―não
se pode escrever a Constituição, pois a Constituição é a existência e a
natureza, e não se pode escrever a existência nem a natureza‖, ou ainda: ―não
se faz uma constituição como um relojoeiro faz um relógio‖.
A diferenciação mais concisa advém de Mário González: ―Pode se dizer
que as constituições escritas são aquelas que foram promulgadas pelo órgão
competente; constituições não escritas ou consuetudinárias aquelas que a
pratica ou o costume sancionaram ou impuseram‖.
A visão conciliadora garante que os costumes completam todas as
constituições quando elas são lacunosas ou obscuras, auxiliando-as,
oferecendo subsídios jurídicos. Os Estados Unidos, por exemplo, possuem a
doutrina da revisão judicial, em que se julga a constitucionalidade de atos de
outros poderes. Não há, portanto, inteira precisão da constituição escrita,
fazendo-se necessário o apoio jurisprudencial (que implica numa verdadeira
Constituição extra-textual).
5. QUANTO AO MODO DE ELABORAÇÃO
Segundo o critério do modo de elaboração, as constituições são
engendradas de duas maneiras distintas, recebendo a classificação de
constituições dogmáticas ou constituições históricas.
As constituições dogmáticas, também chamadas de ortodoxas, são
intencionalmente criadas à luz de certos princípios. Assegura Meirelles de
Teixera que a constituição dogmática, desde o momento anterior ao início de
108
Bonavides, 2000
189
sua feitura ―parte de teorias preconcebidas, de planos e sistemas prévios, de
ideologias bem declaradas, de dogmas políticos...‖. É fruto, de acordo com o
entendimento acadêmico, de um poder constituinte homogêneo, cujos
representantes são adeptos da teoria política e do direito dominante. Aparece
essencialmente sob a forma escrita.
O mais famoso exemplo de dogmatismo constitucional consiste na
Constituição Soviética 1977, elaborada sob a hegemonia do pensamento
marxista-leninista que fomentou a Revolução Russa de 1917 e a conseqüente
implantação do socialismo real.
Por sua vez, a constituição história ou eclética é produto de um longo e
contínuo processo histórico, sendo formada por seleção de idéias (muitas
vezes antagônicas) sintetizadoras da História e da tradição de determinado
povo. O caso inglês mostra-se o principal exemplo, corroborando com a opinião
de vários doutrinadores que consideram esta espécie de constituição
aproximada da costumeira.
Peter Härberle, acerca desta critério, nos brinda com sua elegante lição:
A constituição não é apenas um conjunto de textos jurídicos ou
um mero compêndio de regras normativas, mas também a
expressão de um certo grau de desenvolvimento cultural, um
veículo de auto-representação própria de todo o povo, espelho
de seu legado cultural e fundamento de suas esperanças e
desejos.109
A classificação das constituições quanto ao modo de elaboração ilude o
estudioso menos atento que despreza a sua complexidade. A própria doutrina
é dissonante quando interpelada sobre qual das classificações caberia melhor
à Constituição Federativa do Brasil de 1988. Uns asseveram que a nossa
gênese constitucional foi pautada apenas na ideologia capitalista. Outros,
porém, recorrendo ao inciso IV do art. 1º, salientam que os valores da livre
iniciativa e do trabalho correspondem respectivamente ao capitalismo e ao
socialismo.
Ainda há alguns que vêm nesta mesma passagem da Carta Magna os
fundamentos de uma social democracia. Surge, então, uma questão teórica
109
Lenza, 2006
190
própria da ciência política: seria a social democracia uma ideologia
independente ou a frágil combinação de ideais capitalistas e socialistas?
6. QUANTO À EXTENSÃO
As constituições também podem ser classificadas quanto à sua
extensão, já que a lei suprema pode apresentar um texto breve ou extenso. A
classificação das constituições quanto à extensão abarca constituição a
analítica, ou prolixa, ou dirigente, e a sintética, ou sucinta, ou negativa, ou de
garantia.
Essa classificação pode ser considerada antiquada aos olhos do Direito
Constitucional, mas tem sofrido adaptações às novas compreensões do Direito,
como uma maneira de atualizar os antigos paradigmas e permitir uma
comunicação entre o antigo e o novo.
As Constituições analíticas são aquelas que analisam e regulamentam
todos os assuntos que sejam importantes à formação, destinação e
funcionamento de um Estado, como, por exemplo, a Constituição Mexicana de
1917, a Constituição Indiana de 1950 e a Constituição Espanhola de Cádiz.
As Constituições analíticas podem ser consideradas textualmente
longas, por apresentarem uma extensa lista de normas que estabelecem
programas para a atuação futura de órgãos estatais. Estendendo-se a temas
que muitas vezes não apresentam características constitucionais, muitos
destes
dispositivos
poderiam
ser
tratados
por
uma
legislação
infraconstitucional. Além disso, os temas materialmente constitucionais também
podem se estender, alargando ainda mais a Constituição, como os direitos dos
grupos intermediários.
A Constituição Brasileira de 1988 tem em torno de 245 artigos
permanentes e 70 artigos dos Atos de Disposições Constitucionais Transitórias,
sendo também considerada como uma Constituição analítica.
Pode-se dizer que as definições anteriores estão diretamente ligadas a
um modelo constitucional em que existe uma grande afeição ao texto.
191
Constituições analíticas seriam, portanto, constituições com texto minucioso,
com diversos artigos, parágrafos, incisos e alíneas.
Contudo, contemporaneamente falando, pode-se afirmar que uma
constituição não é apenas um texto, mas sim uma compreensão de um texto, a
qual está apta a sofrer mudanças em decorrência dos valores de uma
sociedade que também mudam. Com isso, observar-se que quanto maior o
texto, mais cheio regras, e maior o seu detalhamento, menor o espaço para
interpretação e, portanto menor a constituição será.
As constituições sintéticas, por sua vez, somente antevêem os princípios
e as normas gerais de administração de um Estado, organizando-o e limitando
seu poder, por meio da estipulação de direitos e garantias fundamentais,
muitas vezes pondo mais ênfase nas normas de bloqueio do que nas normas
de prestação positiva.
A título de exemplo destacaríamos a Constituição Norte-americana, a
Constituição Francesa de 1946, as constituições chilenas de 1833 e 1925,
Constituição Dominicana de 1947.
São consideradas como constituições concisas e sumárias. O seu
conteúdo é composto apenas de material excepcionalmente constitucional. São
mais duradouras, a partir da adequação e da reinterpretação dos tribunais
constitucionais e adaptam-se melhor às mudanças sociais.
Contemporaneamente falando, pode-se também dizer que quanto menor
o texto constitucional maior a possibilidade de mudanças na sua interpretação
e, portanto, maior o espaço de mudança não formal da constituição e,
conseqüentemente, maior a Constituição.
Dentro desse contexto, alguns doutrinários constitucionalistas cometem
um equívoco quando afirmam que a Constituição dos Estados Unidos é uma
constituição pequena, por ser sintética e com texto curto. A norma
constitucional não é o texto em si, mas uma construção interpretativa, que
diante do caso concreto constrói a solução justa partindo do sistema lógico
integral do ordenamento jurídico positivo que contém regras e princípios. Desta
forma, quanto mais sintético o texto, maior o espaço para mudanças
interpretativas.
192
Todavia, tanto em um caso (constituições sintéticas) como no outro
(constituições analíticas), as mudanças interpretativas decorrentes das
transformações do mundo e da vida sempre e necessariamente existirão.
7. QUANTO AO CONTEÚDO
O critério mais detalhadamente analisado pelos manuais leva em
consideração o conteúdo das constituições, haja vista o reconhecimento por
parte dos constitucionalistas da importância do tema. Há dois tipos de
constituição nesta perspectiva: a constituição material e a constituição formal.
Alguns autores preferem abordar a distinção entre material e formal não
sob a ótica de classificação, e sim de conceito de constituição, devido à
elevada significação teórica da matéria.
O conceito de constituição em sentido material é assunto de profundas
discussões ideológicas e políticas, desta forma torna-se necessária rigorosa
apreciação doutrinária para resolver o impasse. Adverte o escritor Paulo
Bonavides:
Constituição (material) é o conjunto de regras pertinentes à
organização do poder, à distribuição da competência, ao
exercício da autoridade, à forma de governo, aos direitos da
pessoa humana, tanto individuais como sociais. Tudo quanto for,
enfim, conteúdo básico referente à composição e ao
funcionamento da ordem pública...110
As palavras de Bonavides, acima dispostas, levam a crer que toda
sociedade, erguida ou não sob a forma de um Estado, tem um modelo
constitucional próprio, resguardando à época moderna a inovação do
documento escrito.
Vale ressaltar, também, a evidência de que matéria constitucional
encontra-se fora da Constituição. A Lei de Introdução ao Código Civil, por
exemplo, regulamenta a aplicação de todo o ordenamento jurídico nacional
(não apenas do Código Civil), o que indiscutivelmente é competência
110
Bonavides, 2000
193
constitucional. A partir desta constatação é possível se conjecturar a idéia de
bloco de constitucionalidade.
Afonso Arinos de Melo Franco salienta uma reflexão sobre o parágrafo
2º do art. 242 da Constituição Federal: ―O Colégio Pedro II, localizado na
cidade do Rio de Janeiro, será mantido na órbita federal.‖. Certamente este
dispositivo não possui conteúdo materialmente constitucional e estaria mais
bem encaixado numa lei ordinária.
A Constituição Imperial do Brasil de 1824, no seu art. 178, preconizava
que apenas as temáticas referentes aos poderes políticos e aos direitos
políticos e individuais são protegidos por rigidez constitucional, por encaixaremse no conceito de constituição em sentido material, enquanto os demais
assuntos são enxergados como legislatura comum.
O conceito de constituição em sentido formal, segundo Pedro Lenza,
―considera o processo de formação, e não o conteúdo da norma‖. Além das
temáticas materialmente constitucionais, tudo o que for introduzido na
Constituição, gozando assim de garantia e valor supremo, é considerado
constitucional. Para Hans Kelsen ―fala-se em constituição em sentido formal
quando se faz a distinção entre as leis ordinárias e aquelas outras que exigem
certos requisitos especiais para a sua criação e reforma‖.
Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gonet
Branco, numa crítica disfarçada a este critério de classificação afirmam que:
Adverte Jorge Miranda que a Constituição formal e, desde logo,
a Constituição material, porque lógica e historicamente serve de
manifestação da Constituição material subjacente e, também,
porque nenhuma forma vale por si, mas apenas enquanto
referida a certa substancia.111
A introdução do parágrafo 3º ao art. 5º da Constituição Federal de 1988
(os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem
aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três
quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas
constitucionais) pela Emenda Constitucional no 45/2004 promove o advento do
111
Mendes [et. al.], 2008
194
conceito misto de constituição: temáticas de conteúdo materialmente
constitucional integram-se ao texto da Constituição satisfazendo requisitos
formais necessário para tanto.
8. QUANTO À ESTABILIDADE
Outro critério de classificação constitucional merecedor de destaque pela
doutrina diz respeito à estabilidade (ou à mutabilidade, à alterabilidade, ou
ainda à consistência). Classificam-se, segundo este critério, as constituições
imutáveis, rígidas, flexíveis ou semi-rígidas.
As constituições imutáveis, se não utópicas, são verdadeiras relíquias
históricas. Na concepção de Pontes de Miranda, a única maneira de emendá-la
ou reforma-la é o método revolucionário. Salienta Pedro Lenza que ―hoje em
dia já se toma por absurdo que um texto constitucional se pretenda perpétuo,
quando se sabe que é destinado a regular a vida de uma sociedade em
contínua mutação‖. As constituições, dotadas de titularidade popular ou não,
não podem ser imutáveis, visto que nenhum homem e muito menos a
sociedade é estática.
A tendência moderna ocidental consagra as constituições rígidas.
Qualquer intenção de emendar ou reformar a constituição implica num
processo
legislativo
mais
árduo,
solene
e
dificultoso
que
o
das
infraconstitucionais. Essas exigências formais são encontradas em todas as
constituições brasileiras, inclusive na Constituição Federal de 1988, que possui
o art. 60 como regulador da rigidez constitucional.
Comenta o célebre constitucionalista português José Joaquim Gomes
Canotilho:
A opção por um texto rígido, no sentido assinalado, é hoje
justificado pela necessidade de se garantir a identidade da
constituição sem impedir o desenvolvimento constitucional.
Rigidez é sinónimo de garantia contra mudanças constantes,
presentes e imprevistas ao sabor das maiorias legislativas
transitórias. A rigidez não é um entrave ao desenvolvimento
constitucional, pois a constituição deve poder ser revista sempre
195
que sua capacidade reflexiva para
constitucional se mostre insuficiente.112
captar
a
realidade
As constituições flexíveis, diferentemente das rígidas, alteram-se com o
mesmo processo de uma lei infraconstitucional, não havendo a necessidade de
resposta a requisitos mais complicados. A Inglaterra é o único país que dispõe
desta espécie.
É comentário uníssono no meio jurídico não haver compatibilidade entre
o princípio da supremacia constitucional e a constituição flexível, pois sem os
mecanismos especiais de rigidez uma lei constitucional se igualaria a uma
ordinária, sendo possível a revogação daquela por esta.
O último modelo de constituição visa harmonizar rigidez e flexibilidade.
Identificam-se por constituições relativamente rígidas, ou relativamente flexíveis
(ou, como alguns autores preferem, semi-rígidas ou semi-flexíveis). Sobre
relativamente rígida, Pedro Lenza afirma ser ―aquela constituição que é tanto
rígida quanto flexível, ou seja, algumas matérias exigem um processo de
alteração mais dificultoso, enquanto outros não requerem tal formalidade‖. Aqui
mesmo, no Brasil, temos um nítido exemplo de semi-flexibilidade: a
Constituição Imperial de 1824, cujo art. 178 dispões sobre as matérias
protegidas ou não pelo mecanismo de rigidez constitucional.
Costuma-se inferir que a constituição costumeira é rígida e a escrita é
flexível. Certamente, alguns exemplos deflagram este engano, como a
Constituição Francesa do ancien régime, rígida e costumeira. Contudo, a parte
escrita da constituição inglesa, assim como a costumeira, é doutrinariamente
considerada flexível.
9. CONCLUSÃO
Esforço de pesquisa duradouro e senso crítico agudo são as condições
imprescindíveis para abordar as temáticas clássicas da Jurisprudência,
especialmente do Direito Constitucional, de forma que possamos contribuir
112
Canotilho, 2000
196
para o engrandecimento das ciências sociais e jurídicas, e consequentemente
para o próprio desenvolvimento intelectual humano.
A desconstrução de antigos modelos das doutrinas dominantes e a
rediscussão do tema sob uma nova perspectiva indica que devemos considerar
classificações como uma terminologia equivocada e adotarmos o vocábulo
características para melhor analisarmos as constituições engendradas pelos
diferentes povos nos mais diversos períodos da História. Percebemos a
tendência de vários autores de buscar enquadrar as constituições, em especial
a Constituição Federal do Brasil de 1988, nas classificações segundo cada
critério, distribuindo-as discricionariamente sem refletir sobre as suas
particularidades e muito menos sobre os conceitos teóricos envolvidos perante
a evolução da teoria constitucional contemporânea.
Por fim, asseveramos que cada povo faz uma constituição com a sua
cara.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Malheiros, 2004;
BRANCO, Paulo G. Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar
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BULOS, Uadi Lanmêgo. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo:
Saraiva, 2008;
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Constituição. 5. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1997;
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São Paulo: Saraiva, 1968;
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Saraiva, 2008;
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2008;
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 20 ed. São
Paulo: Malheiros, 2001.
197
DESCASO DO ESTADO E A INIMPUTABILIDADE DOS JOVENS
Rodrigo Kieveer B. Santos113
RESUMO
A impunidade e o desprezo das autoridades responsáveis pelo combate ao crime no Brasil vêm
alastrando o nível criminal no país.Com o aumento de crimes cometidos por jovens menores de
18 anos de idade, a sociedade clama por justiça, que o Legislativo reveja o sistema penal, na
qual não pune da forma que se devem os menores infratores. Não se pode aceitar que
adolescentes que sabem bem os crimes que cometem recebam penas leves, ou mesmo,
continuem soltos aterrorizando a população, que acuada, com essa sensação de impunidade,
não sabe mais a quem pedir por socorro. Os jovens infratores, em decorrência de tanta
proteção, eles não se intimidam com a repressão que possa sentir, pois se tratar de uma
punição tão branda ou na maioria dos casos, ineficaz.
Palavras-chave: Impunidade. Crime. Estado. Jovens.
ABSTRACT
The impunity and contempt of the authorities responsible for combating crime in Brazil have
been spreading the crime level in the country. With the increase of crimes committed by young
people under 18, society cries out for justice, the Legislature revise must the penal system,
which does not punish severally the juvenile offenders. We can not accept that teenagers who
know very well who commit crimes, receive light sentences, or even remain free terrorizing the
population, who cornered, with this sense of impunity, no longer knows who to ask for
help. Young offenders, due to much protection, they are not intimidated by the prosecution that
she can feel, because it is a mild punishment or and most cases, ineffective.
Keywords: Impunity. Crime. State. Young.
113
Acadêmico do 3º ano do curso de Direito pela Universidade Estadual da Paraíba
Email: [email protected]
198
1. INTRODUÇÃO
O Desprezo do Estado frente às famílias brasileiras tem tido uma
parcela considerável de culpa para o aumento da criminalidade infanto-juvenil,
jovens que não encontra apoio familiar e tem nas ruas contribuições sociais de
cunho duvidoso e instigados pela impunidade entra na vida do crime buscando
de forma desonesta tudo aquilo que possa conseguir de forma fácil. Esses
jovens saem pelas ruas cometendo as diversas práticas criminosas e podemos
dizer que ainda sairá impune, pois ao completar 18 anos será solto e muitas
das veses voltarão a praticar crimes porque o sistema é falho e não
ressocializa-os.
Por todas as práticas delituosas cometidas por jovens e sabendo que
os jovens de hoje são os mesmo de outrora, comenta-se muito sobre a
diminuição da maioridade penal de jovens infratores para 16 anos de idade,
onde estes, de acordo com as leis vigentes só serão realmente responsáveis
penalmente quando completarem 18 anos de idade. Hoje se constata a
evolução crescente de jovens e adolescentes cometendo as mais diversas
praticas criminosa.
A imprensa noticia com freqüência o envolvimento de menores em
crimes hediondos, como homicídio, tráfico de drogas, seqüestro, latrocínio,
entre outros. Apenas a idade do autor do fato, é levada em consideração não
se verifica o desenvolvimento mental do menor, e por mais absurdo que possa
parecer, não está sujeito sanção penal, ainda que plenamente capaz de
entender o caráter ilícito do fato. Acredita certamente que a menoridade penal
se presta como escudo para proteger os adolescentes que cometem essas
praticas criminosas, mas também se deve olhar para questão educacional e
estrutural familiar.
199
2. A RESPONSABILIDADE DO ESTADO
Segundo Jorge (2002), ―É inolvidável, o jovem deste novo milênio não é
aquele ingênuo de meados do Século XX. Nos últimos cinqüenta anos,
assistiu-se a evolução jamais vista em outro período da humanidade. As
transformações foram de ordem política, tecno-científica, social e econômica‖.
O estado não está preocupado com as famílias que não pagam
impostos, pois não têm bens para pagarem, o estado só vai ver a situação
dessas famílias quando estiver perto do período eleitoral, pois os políticos
precisam de todos os votos possíveis para ganhar as eleições, quando acaba
esse período,essas pessoas voltam a ficar a margem da sociedade. O estado
não garante uma boa educação, uma boa qualidade de vida, subsídios
suficientes para que essas famílias possam se desenvolver cada vez mais de
modo satisfatório.
Com esse abandono material, muitos jovens vêm-se isolados do resto
da sociedade, não tendo condições para sobreviver alguns acabam entrando
na vida do crime. Entre os fatores preponderantes estão a super-estimulação
pelo uso de drogas e influencia dos amigos e a super-privação de caráter
afetivo demonstrada pela desestruturação familiar de que fazem parte e alem
da privação de caráter econômico-social, o que comprova a responsabilidade
do estado pelos atos dos atos infracionais praticados por menores.
Oliveira (2002) elucida que ―Além das dificuldades especificas na
adaptação social do menor na comunidade, como decorrência da organização
sistematizada do grupo familiar, a criança ainda recebe ensinamentos
distorcidos e todos os tipos de orientações danosas a sua formação moral‖.
Assevera Ferreira (2004) que:
Quanto à formação do caráter, as instituições sociais na qual foi
criado e na qual vive, (educação, escola/creche); tem suma
importância, tendo em vista que na grande maioria dos casos
mostrados pela mídia são jovens que provem de periferias e favelas,
apresentam a ausência de um dos genitores ou de ambos, e quando
esses jovens têm família são geralmente desestruturadas, quanto ao
nível de escolaridade não ultrapassa a 4ª série do 1º ciclo do Ensino
Fundamental sendo que a frequência escolar é mais devido à
200
merenda escolar e ao carinho da professora, são geralmente
influenciados a cometer delitos pelos amigos ou pelo envolvimento de
uso de drogas.
E no que diz respeito à ressocialização do preso, o estado não esta
mostrando eficiência nessa questão, sabe-se que seria melhor cuidar da base,
investir mais na construção de ensino de qualidade do que em presídios que
todos sabem que tem mais função de isolar o preso do que sociabilizá-lo.
2.1 Critérios para definir a maioridade
O critério adotado na legislação Brasileira foi o critério etário (biológico),
que definiu a idade dos 18 anos como parâmetro divisório entre a real
capacidade de discernimento da conduta, podendo, portanto ser
responsabilizado por ela, e a faixa etária inimputável, em razão da reduzida
capacidade de compreensão de sua conduta.
De acordo com Jorge (2002), ―o sistema jurídico vigente a maioridade
penal se dar aos 18 anos, norma esta que se encontra em três diplomas legais:
1) Art. 228 da constituição federal; 2) Art.27 do código penal; 3) Art. artigo 104
caput do Estatuto da Criança e do Adolescente‖.
Por sua vez, o artigo 228 da Constituição Federal114 estabelece a
idade limite da imputabilidade, nos seguintes termos: ―São penalmente
inimputáveis os menores de 18 anos sujeitos às normas da legislação especial‖.
Não obstante, a evolução sofrida pela humanidade nas últimas décadas
leva uma parcela da doutrina a comungar o mesmo entendimento de Luiz Flávio
Borges D'urso (2007), que diz:
Poderão haver pessoas com a mesma idade cronológica contudo,
com
capacidade
de
entendimento
diversas,
a
ensejar
responsabilização também diferenciada. Trata-se do critério bio-etário
ou bio-psicológico. Inegável que nosso país com dimensões
continentais não poderá ter uma idade fixada cronologicamente para
114
BRASIL. Constituição da república federativa do Brasil. ed. 35. São Paulo: editora saraiva,
2005.
201
todos seus rincões, uma vez que não se compara o jovem de 15 anos
de um grande centro, sujeito a todos os apelos tecnológicos, com um
jovem de 15 anos nascido e criado nos bastidores do país, que não
tem acesso a qualquer meio de informação, por exemplo, cortando
cana de sol-a-sol, inegável que ambos trazem gigantesca diferença
de compreensão, somente sanável por um exame apurado, jamais
pela maioridade cronológica, que os iguala injustamente.115
Em vista disso, a Constituição estabelece como relevante apenas a
menoridade do infrator para eximir a sua conduta dos parâmetros coercitivos
penais. Ressaltam diversos doutrinadores e magistrados que compartilham a
opinião da não redução da maior idade por dizer que a adoção desse critério
não significa impunidade, uma vez que, a responsabilização dos menores de 18
anos compreende além das medidas sócio-educativas a possibilidade de
internação conforme estipulado no artigo 112 da Lei nº 8.069/90 (Estatuto da
Criança e do Adolescente). Daí ser necessária a distinção entre
inimputabilidade (causa de exclusão da responsabilidade penal) de impunidade
(absoluta irresponsabilidade pessoal ou social), porém mesmo que o crime
cometido por esse jovem fosse hediondo a pena seria leve.
Acima de tudo isso consiste a internação ao menos teoricamente, na
prisão do menor infrator em instituição própria e adequada, onde se encontrarão
outros adolescentes, mediante a monitoração de especialistas, almejando
sempre puni-los e ressocializá-los. A internação poderá ser determinada pelo
juiz no ato da sentença, porém, o prazo deste internamento será fixado com
base em avaliações periódicas que levará em consideração o seu
comportamento e a gravidade do ato infracional, compreendendo período
máximo de 3 anos, (art. 121, §3º, ECA.).
Fica evidenciado, portanto, a impunidade para tais jovens que cometem
crimes, muitas vezes bárbaros. Não é admissível em um país que esta
querendo evoluir, continuar com normas retrograda e que pregam o total
descaso da justiça com aqueles que na hora de cumprir sua pena, são tratados
como crianças.
115
D'URSO, Luiz Flávio Borges. A questão da maioridade penal e a FEBEM. Jus Navigandi,
Teresina, ano 3, n. 35, out. 1999. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1653>.
Acesso em:
28 abr. 2007.
202
É importante salientar ainda, que anterior à sentença, a internação
provisória poderá ser determinada em situações excepcionais por um período
não superior a 45 dias, uma vez demonstrado a necessidade imperiosa da
medida (art. 108 caput, ECA.). Neste sentido, João Batista Costa Saraiva,
assinala que:
A propósito dessa medida privativa de liberdade - internação na
linguagem da lei -, o que a distingue fundamentalmente da pena
imposta ao maior de l8 anos é que, enquanto esta é cumprida no
sistema penitenciário que todos sabem o que é, nada mais fazendo
além do encarcerar - onde se misturam criminosos de toda espécie e
graus de comprometimento - aquela há que ser cumprida em um
estabelecimento próprio para adolescentes infratores, que se propõe a
oferecer educação escolar, profissionalização, dentro de uma proposta
de atendimento pedagógico e psicoterápico, adequados a sua
condição de pessoas em desenvolvimento. Daí não se cogitar de
pena, mas sim, medida sócio-educativa, que não pode se constituir em
um simples recurso eufêmico da legislação. (SARAIVA, 2007)116 .
Diante do exposto, observa-se que o critério adotado pelo constituinte é
limitado e possuem falhas, além de não estar em acordo com o atual padrão de
desenvolvimento da sociedade. Pregando uma pena máxima de 3 anos
independente do crime praticado e um período de 45 dias em situações
excepcionais.
2.2 A Impunidade como forma de estimular o crime
A decisão de qualquer pessoa de trilhar o crime, leva em consideração
à relação custo/benefício, a probabilidade de ser punido e o que vai conseguir
amealhar roubando, matando, extorquindo. É claro que com as leis
extremamente benevolentes como as de hoje, uma parcela cada vez maior de
116
SARAIVA, João Batista Costa. A idade e as razões: não ao rebaixamento da imputabilidade
penal. Jus Navigandi, Teresina, ano 2, n. 24, abr. 1998. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1650>. Acesso em:
28 abr. 2007
203
pessoas chegam à conclusão de que "O Crime Compensa". É claro que esse
processo de decisão não é assim tão racional, mas é empírico, quando o futuro
meliante observa quantos outros à sua volta estão, até certo ponto, "se dando
bem", e apenas ele ainda não entrou na onda criminosa. É difícil convencê-lo de
que a lei poderá ser dura com ele, e que terá que pagar por seus crimes, uma
vez que ele já terá visto muitos outros ao seu redor que não respondem por
suas ações, mesmo que sejam presos, pois logo a seguir serão soltos.
É claro que somente a diminuição da maioridade penal não resolve o
problema da criminalidade, assim como a manutenção dela em 18 anos
também não resolve,tampouco resolveria uma delirante decisão de aumentá-la
para 21 anos.
2.3 Favoráveis a diminuição da maioridade
Sobre Imputabilidade penal, o art. 27 do Código Penal afirma que ―Os
menores de 18 anos são penalmente inimputáveis, ficando às normas
estabelecidas na legislação especial‖. (DELMANTO, 1998).
Quando se fala em maturidade para efeitos penais, não se busca
inteligência destacada, capacidade de tomar decisões complexas, mas tãosomente à formação mínima de valores humanos que uma pessoa deve ser
dotada, podendo discernir entre o bem e o mal, entre o certo e o errado. Ora,
será que o menor de dezoito e maior de dezesseis anos não sabe o que é
matar alguém, subtrair coisa alheia móvel, seqüestrar pessoa com o fim de
obter qualquer vantagem, como condição ou preço do resgate? Será que não é
capaz de determinar-se de acordo com esse entendimento? A realidade
moderna diz que sim.
Para julgar a imputabilidade de uma pessoa o Código Penal traz um
critério puramente biológico, de idade do autor do fato, dispondo a lei que os
menores de 18 são penalmente inimputáveis.
204
Conforme Mirabete (2005) não se leva em conta o desenvolvimento
mental do menor que, embora possa ser plenamente capaz de entender o
caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com seu entendimento, não
poderá ser responsabilizado penalmente por suas ações.
O autor mostra nesse assunto, como um caso e presunção absoluta de
inimputabilidade, e, embora não se possa negar que um jovem de menor idade
apresenta hoje um vasto conhecimento de condições de discernimento sobre a
ilicitude de seus atos, é inadmissível admitir a prova de que era ele, ao tempo
da ação ou omissão, capaz de entendimento e determinação.
Na fase que vai dos 14 até os 21 anos, acontece à reorganização dos
neurônios que se manifesta justamente nas áreas ligadas ás emoções, ao
discernimento e autocontrole (Jornal do Comercio, 2003, p.5, apud PARAÍBA,
2007).
Ora, se até os 21 anos ocorrem esses fenômenos, tem-se que
considerar sua mais profunda incidência antes dos 18 anos. Aliás, o Código
Penal pune a pessoa com 18 até os 21anos com pena atenuada. É nessa
situação de impunidade que a sociedade se revolta com a lei penal brasileira,
um jovem infrator com menos de 18 anos sabe que mesmo cometendo crimes
vai sempre existir uma norma pra lhe defender tornando ―lícitas‖ suas atitudes
criminosas. Querer obter a redução de crimes e melhorar o sistema
penitenciário Brasileiro e não mudar o ordenamento jurídico atinente ao tema é
em verdade uma insanidade, fazer as mesmas coisas e obter resultados
diferentes é impossível.
Um trecho de um artigo escrito pelo desembargador Flavio César de
Toledo Pinheiro (2001) do Tribunal de Justiça de São Paulo explicita os
principais argumentos dos reducionistas:
Pela CF o voto direto e secreto tem igual valor para todos (art.14).
Mas como o voto ser igual para todos se o maior, capaz e
responsável não é igual ao menor incapaz e inimputável? Se esse
voto igualitário reflete o valor da isonomia consagrado no artigo 5° da
CF ―todos são iguais‖, como pode um voto de um cidadão brasileiro,
maior e capaz igualar-se ao voto de um inimputável?Ambos seriam
iguais?Raciocinando logicamente: se os maiores de 16 anos e
menores de 18 anos, segundo o artigo 14,§1°, ‖c‖, da CF, podem se
alistar e votar, por que constitucionalmente são iguais aos brasileiros
205
maiores de 18 anos, não poderiam esses menores de 18 nos ser
considerados imputáveis. Se houve inovação, por iniciativa do
senador Afonso Arinos no que tange ao voto facultativo dos
adolescentes, por que tanta resistência no que diz respeito à
imputabilidade penal do menor infrator?[...] Por que delinqüir se corro
o risco de ficar preso por mais de 20 anos? O certo é que, pelas leis
atuais, o menor pensa assim: Vou roubar e matar quantas vezes
quiser,por que quando completar 21 anos vou pra rua.
Tudo isso inscrito do Artigo 121. §5° do estatuto da criança e do
adolescente, que diz que esse infrator deve ser solto ao completar 21 anos de
idade, induz o jovem criminoso o qual vai crescer incentivar outro jovem a
também cometer delitos e assim por diante promovendo uma verdadeira
―cascata de crimes‖.
A desenfreada delinqüência praticada pelos indivíduos, que atualmente
assola o mundo moderno, é o resultado da delinqüência que o menor praticou
(OLIVEIRA, 2002, p.99).
A população brasileira não tolera mais tanta impunidade, clama por
uma sociedade mais justa, onde as pessoas possam viver em paz sem
tamanha proliferação criminal.
Considerar que um jovem abaixo da faixa etária de 18 anos não é
responsável pelos seus atos por não ter a capacidade de discernir,
completamente formada é afrontar todos os demais diplomas legais existentes
atualmente. Afinal, arbitrária era a idade de 21 anos para a determinação da
capacidade civil absoluta; notou-se que era inadequada aos novos tempos e se
a mudou. Arbitrária também era a idade de 18 anos para poder votar em
alguém no Brasil, alguns perceberam a evolução dos jovens e optaram por
uma idade inferior para tal finalidade: 16 anos alguns. Isso significa que há o
reconhecimento de que os jovens de hoje podem mais cedo fechar contratos
civis, sem a assistência de seus pais, podem decidir sobre inúmeras coisas que
antes lhes eram vedadas, podem também votar nos homens que fazem as leis
penais, só não podem mesmo é responder por elas, então por que não se
podemos rediscutir essa norma ultrapassada.
Se a as leis evoluem com a evolução da sociedade, percebe-se um
engessamento das nossas normas quando se considera que o jovem dos dias
atuais não é o mesmo ingênuo jovem de décadas passadas.
206
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Deve-se verificar a violência cometida por jovens considerados
―menores‖ em sua essência, observando seu cunho social e problemas
familiares, buscando o entendimento e uma solução para essa.
Pelo sentimento de abandono a sociedade clama por medidas urgentes
para que, se não solucione, mas que se faça algo contra tamanha impunidade
e medo. A partir disso é que a proposta de diminuição da maioridade penal
aparece com tanta freqüência.
Notar-se que a política adotada por muitos, de punir severamente de
maneira igual inclusive os mais jovens, não depende exclusivamente de leis
mais rígidas, mas também de programas sociais que busquem um melhor bemestar para toda a população, pois é assim que se busca uma sociedade
civilizada.
4. REFERÊNCIAS
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Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1650>. Acesso em:
28 abr. 2007
208
DIREITO ALTERNATIVO E PLURALISMO JURÍDICO, EM
BUSCA DA ISONOMIA MATERIAL
Ana Luísa do Couto Andrade117
Mariana Dantas Ribeiro118
RESUMO
O sistema ético e o sistema jurídico não são sistemas autônomos, mesmo que distintos. O
Direito recebe grande influência dos valores consagrados no âmbito ético e moral, devendo
sempre procurar alcançar dentre as várias possibilidades normativas a que melhor atenda aos
reclamos sociais e ideais de justiça. Em decorrência da insatisfação gerada pela insuficiência
do Monismo estatal, surge o Pluralismo Jurídico, também manifestado através do uso do
Direito Alternativo. Dentro de um monismo estatal com prevalência positivista, a importância
dessa fonte inovadora cresce como instrumento de emancipação e inserção social. Porém,
ocorre que os conceitos e as armas desse movimento ainda estão em transformação. Entendese que a legislação estatal positiva não é a única nem a principal fonte jurídica do ordenamento
e o movimento alerta o caráter instrumental do direito positivo.
Palavras-chave: Direito Alternativo. Pluralismo Jurídico. Monismo.
ABSTRACT
The Ethical and juridical systems are not autonomous systems. Even though, ethical and moral
values have a high influence over the laws, since they always try to reach the requests of
individuals and their ideals of justice. The juridical pluralism occurs due to the lack of
satisfaction with state monism, and this is shown by the use of Alternative Rights. In a state
monism with prevalence of positivist, the importance of this new source grows up as an
instrument of emancipation and concepts in change. This is clear, since the state positive
legislation is nor the only one, neither the principal juridical source of ordination and this calls
attention to the instrumental character of positive laws.
Keywords: Alternative Rights. Juridical Pluralism. Monis.
117
118
Acadêmica do Curso de Direito pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB)
Acadêmica do Curso de Direito pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB)
209
1. INTRODUÇÃO
Através da cultura é que a história revela as formas e/ou valores
encontrados como fonte para penetrar no que existe de mais essencial no
espírito humano. Da cultura extraem-se os juízos de valor capazes de
classificar fins sociais dignos, normas justas ou capazes de apontar normas
injustas e, assim, interromper o objetivo da segurança e validez, que deve
ocorrer com as normas jurídicas.
A segurança social e jurídica não faz parte de uma certeza imóvel e
definitiva. Assim como há mudança e instabilidade na sociedade e nas relações
sociais, há nas relações jurídicas e conseqüentemente na segurança jurídica.
O direito deve estar sempre procurando alcançar dentre as várias
possibilidades normativas a que melhor venha atender aos múltiplos reclamos
dos indivíduos, para que o sistema jurídico seja válido e eficaz.
Admitir o Direito pela fundamentação positivista de Hans Kelsen torna o
sistema jurídico distante da sociedade. A produção das leis deve ser feita em
vínculo bilateral indissociável com os destinatários da mesma, para sair apenas
da eficácia formal e normatizar uma realidade tácita. Exige-se, para eficácia
social, uma relação de reciprocidade entre fato e norma.
No positivismo jurídico-legalista a lei é a premissa maior e o fato, a
menor, e tais premissas apresentam-se dogmaticamente como verdades
absolutas, inquestionáveis, expressando uma falsa idéia de neutralidade. Isto
conferiu ao direito, desde sua gênese, uma característica de instrumento de
manutenção do “status quo”.
Como prova da ineficácia das normas que deriva, dentre outros fatores,
da crise de qualquer sistema jurídico, temos o esgotamento do Monismo
estatal, mostrando que a força não atinge a eficácia e a vontade da lei –
garantida pela sanção. A validade social da norma deve estar relacionada à
razão superior de um sistema de valores. A coerção pode fundar uma
necessidade, mas nunca um dever e uma validez (pois não se trata de uma
coação puramente material, mas de uma coação socialmente aceita). O
julgador deve alcançar a lei conservando os valores sociais vigentes, fazendo-a
210
presente, adequando-a ao caso concreto para dar eficácia e tornar justa a
aplicação do direito.
Em virtude da crise do mundo jurídico e da insuficiência do sistema,
surge na Itália, no final da década de 60, o movimento ―uso alternativo do
direito‖ como mais uma forma plural da prática jurídica.
O movimento do Direito Alternativo se inscreve no âmbito de uma
crítica do direito que, no plano teórico, identifica o esgotamento do
paradigma positivo-normativista da ciência jurídica, buscando um
outro referencial teórico e prático para o direito, mais flexível e
pluralista, comprometido com a transformação – e não com a mera
conservação – da realidade social, especialmente quando esta última
apresenta níveis insustentáveis de exclusão e injustiça, como é o
caso dos países da América Latina e de todo o mundo não
desenvolvido. (MACHADO, 2009).
Como todas as formas de questionamento da ordem vigente, o
movimento do Direito Alternativo (embora com crescimento significativo) ainda
é muito criticado por outras correntes antagônicas. Uns afirmam que nega a
norma, gera instabilidade, que se trata de uma prática ilícita, etc. As
características do movimento alternativo ainda não são pacíficas nem dentro do
próprio movimento, a exemplo do pluralismo stricto sensu.
A obrigação da evolução normativa concomitante à evolução social torna
necessário o debate sobre as possíveis evoluções do direito e suas diferentes
manifestações para derrubar mitos e garantir a prevalência da eqüidade.
Assim, nesta produção, abordar-se-á, a partir dessas e outras argüições,
que, por ventura venham a surgir, a importância da coexistência de mais de
uma fonte para o ordenamento jurídico, em uma mesma sociedade, como meio
de suprir o esgotamento do monismo estatal e alcançar os ideais de justiça.
2. VALOR E DIREITO
Sob o ponto de vista sociológico, o valor exprime uma relação entre as
necessidades do indivíduo (respirar, comer, viver, posse, reproduzir, prazer,
domínio, relacionar, comparar) e a capacidade das coisas e de seus derivados,
objetos ou serviços, em satisfazê-las. É na apreciação desta relação que se
explica
a
existência
de
uma
hierarquia
de
valores,
segundo
a
211
urgência/prioridade das necessidades e a capacidade dos mesmos objetos
para as satisfazerem, diferenciadas no espaço e no tempo.
Verificamos que entre valor e realidade não existe um precipício;
pois, encontramos um vínculo de polaridade e de implicação, que não
teria a história nenhum sentido, sem o valor, pois, o valor não se
reduz ao real nem pode equiparar-se totalmente com ele; do contrário
o mesmo perderia a sua importância, que é suplantar a realidade, em
função da qual nada se exaure. (PADOAN, 2001, p. 01)
O valor tembém é identificado, fundamentalmente, com a noção do bem.
A palavra ―bem‖ gera grande dissídio, que teve início desde a Grécia Antiga,
entre os estóicos e os seguidores do epicurismo. Para o estoicismo o bem
consistia no desprendimento, na resignação, em saber suportar serenamente o
sofrimento. Já o epicurismo relacionou a idéia de bem com o prazer, não um
prazer desordenado, mas concebido dentro de uma escala de importância.
Modernamente, o conceito de bem ainda se divide, com variações, de acordo
com o velho antagonismo grego.
Assim, do mesmo modo que a definição de bem não é fechada e
imutável, nem as nessecidades e capacidades humanas, os valores, que estão
arraigados a esses elementos, sofrem mudanças.
A partir da idéia de valor e bem, organizam-se os sistemas éticos, são
deduzidos princípios e chegam-se às normas morais, que permeiam a
consciência humana e determinam suas atitudes como homem que vive em
permanente relação com outros e a partir dessas relações subordinam-se e
formulam valores e imperativos de conduta.
O homem é responsável pela sua existência e a cada instante de sua
vida cabe a ele próprio construí-la. O homem tem por natureza o livre
arbítrio e assim sendo, uma sucessão de livres decisões. Diante dos
problemas que a circunstância lhe apresenta, o homem está livre
para decidir, consciente de que pode subordinar-se ao dever ser
moral, mas também pode fugir ao seu imperativo. Assim como não
pode haver valores sem sujeito, é inconcebível sujeito sem valores. A
vida humana só terá sentido e será justificada enquanto houver
liberdade orientada para a realização dos valores. (PADOAN, 2001,
p. 01)
Baseando-se nesta posição, é feita uma análise comparativa entre a
ordem moral e a ordem jurídica. Direito e moral não são sistemas
absolutamente autônomos, sem qualquer comunicação. Embora distintos, o
212
direito é grandemente influenciado por esta, da qual recebe valioso
fundamento.
Dessa forma, o Direito procura avaliar no âmbito das múltiplas opções
normativas,
aquelas
que
sejam
mais
adequadas
às
necessidades
apresentadas pelos indivíduos, procurando assistí-las com eficácia absoluta.
De igual modo, busca-se também aquelas que atendam à justiça, abarcando,
assim, os valores consagrados no meio social.
3. ESGOTAMENTO DO MONISMO ESTATAL: FATOS E VALORES EM
TRANSFORMAÇÃO
A transição de um período histórico para outro sempre foi marcada por
conflitos de interesses: na Antiguidade, o Império Romano atuando com o
Direito Romano em conflito ao Direito dos povos conquistados; na Idade Média
a concorrência entre absolutismo real e regimentos da Igreja Católica, direito
dos Senhores Feudais em contraposição ao direito dos comerciantes e da
burguesia emergente; etc. Esses conflitos são determinantes no surgimento e
intensificação
de
novos
valores,
revolucionando
a
cultura
social
ininterruptamente.
Assim, os valores na Idade Antiga estavam vinculados aos interesses
existentes na polis, na Idade média os valores vinculavam-se à proteção e
serviço do clero e da nobreza, e assim sucessivamente, em todos os períodos
históricos. A tentativa de cristalizar valores e formá-los como normas universais
é ineficaz, posto que as relações entre indivíduos sempre estiveram e estão em
permanente mutação devido a transformação dos valores arraigados ao
homem em cada coletividade, em cada período específico. Reale (2000, p. 14)
diz que ―existe, indiscutivelmente, ao longo do tempo, um fenômeno jurídico
que vem se desenrolando, através de mil vicissitudes e conflitos, apresentando
aspectos diferentes de ano para ano, de século para século.‖
As novas necessidades e a insuficiência do Monismo Estatal na
sociedade Contemporânea abriram espaço às novas formas de regular e
oferecer resoluções (antagônicas ou paralelas) que nascem fora do Estado,
213
entendendo que a legislação estatal positivada não é a única nem a principal
fonte jurídica do ordenamento. No entanto, o direito alternativo não descarta
nem inutiliza as normas emanadas pelo Estado, apenas entende que há outras
regulamentações jurídicas paralelas ao Direito Estatal.
O Monismo é um modelo técnico, formal, preocupado com a legalidade e
o reducionismo normativista para garantir a hegemonia do Estado ―juiz‖ e frear
as manifestações concomitantes com a imposição estatal. Surge com o
esgotamento do feudalismo e emergência burguesa, sendo um instrumento de
desenvolvimento socioeconômico no qual o capital é o instrumento principal, e
posteriormente vai servir de arma para a manutenção do poder burguês que
ascende e deseja a supremacia de seus valores.
Corresponde à sistematização dogmática do monismo jurídico,
tornando-se perceptível a gradativa postulação do Direito Estatal ao
Direito positivo; consagra-se a exegese de que todo o direito não só é
Direito enquanto produção do estado, mas, sobretudo, de que
somente o Direito positivo é verdadeiramente direito. (SILVA, 2006,
p.5)
Centrado no interesse individual, através de um estado soberano, o
monismo entrou em crise com o não acompanhamento das necessidades
coletivas,
transformações
econômicas,
políticas
e
sociais
e
com
a
intensificação do capitalismo globalizado.
Para negá-lo, e como conseqüência do esgotamento dele, surgem
manifestações do pluralismo jurídico, que convive e co-existe com o Direito do
Estado.
Nos marcos da crise dos valores e do desajuste institucional das
sociedades periféricas de massa, da estruturação das novas formas
racionais de legitimação da produção capitalista globalizada e de
saturamento do modelo liberal de representação política e do
esgotamento do instrumental jurídico estatal, nada mais correto do
que empreender o esforço para alcançar outro paradigma de
fundamentação para a cultura política e jurídica. (WOLKMER, 2001,
p. 169).
O pluralismo jurídico surge sob várias formas, intra estado positivo e
extra estado positivo; aquele através de juristas, legisladores que interpretam
extensivamente
e
criam
normas
para
independência
de
classes
marginalizadas, surgimento do movimento do direito alternativo, entre outras
214
manifestações; este através de movimentos sociais, associações profissionais,
grupos populares, etc.
4. PLURALISMO JURÍDICO E GÊNESE DO USO ALTERNATIVO DO
DIREITO
Tinha-se, como mencionado anteriormente, na Antiguidade,o Império
Romano atuando com o Direito Romano em conflito ao Direito dos povos
conquistados, na Idade Média, a concorrência entre absolutismo real e
regimentos da Igreja Católica e o direito dos Senhores Feudais em
contraposição ao direito dos comerciantes com a burguesia emergente.
Nota-se que sempre esteve presente, em todas as sociedades, a
concorrência de interesses e procedimentos de regulamentação social. A
insuficiência do Monismo Estatal na sociedade Contemporânea abriu espaço
às novas formas de regular e oferecer resoluções (antagônicas ou paralelas)
que nascem fora do Estado, entendendo que a legislação estatal positivada
não é a única nem a principal fonte jurídica do ordenamento.
Para negar o monismo, o pluralismo é revestido de autonomia,
descentralização, participação, localismo, diversidade e tolerância e dá origem
ao uso do direito alternativo (latu sensu), que convive e co-existe com o Direito
do Estado, revestindo-se de legalidade.
O primeiro momento será reconhecer a desigualdade dos desiguais,
e a partir daí possibilitar o reconhecimento pleno já não do desigual
senão do distinto portador da justiça enquanto outro. Ora, o espaço
do pluralismo jurídico é onde nasce a juridicidade alternativa. O
Estado não é o lugar único do poder político, tampouco a fonte
exclusiva da produção do Direito. O pluralismo jurídico expressa um
choque de normatividades, cabendo aos pobres, como novos sujeitos
históricos, lutar para ―fazer prevalecer seu Direito. (WOLKMER, 2001,
p.203)
O movimento do Direito Alternativo surgiu, no Brasil, nas décadas de 60
e 70, sistematizando-se a partir de 1990. Emergiu como uma crítica ao
saturado sistema vigente, para colocar o jurista ao lado dos oprimidos, dos que
não detém o poder. De forma explícita, sem neutralidade, ele está em busca de
215
criações que beneficiem as classes dominadas e uma interpretação
progressista da lei.
O estopim dado ao movimento do Direito Alternativo e à afirmação dos
Direitos Humanos no Brasil não foi impulsionado na década de 70 por acaso. O
regime ditatorial juntamente com as atrocidades vividas pelo mundo com
Segunda Guerra Mundial aumentou a popularidade dos estudos sobre os
Direitos Humanos, através de uma política libertadora das classes populares e
oprimidas pelas fases históricas em contraposição ao regime militar. A ditadura
militar inspirou a proposta de uma luta educativa participativa e transformadora.
Paz (2006, p.115) afirma que ―o entendimento do direito a partir de uma
perspectiva culturalista prioriza os conflitos e as forças sociais. Essa influência
se faz presente tanto pela pressão de determinadas coletividades – de terem
reconhecidos suas necessidades e seus espaços no cenário social – quanto
pela atuação do Estado.‖
O marco do movimento no país foi no dia 25 de outubro de 1990 quando
o Jornal da Tarde de São Paulo publicou uma manchete ―JUÍZES GAÚCHOS
COLOCAM DIREITO ACIMA DA LEI‖ para desmoralizar juristas e agregar –
falsamente - ao movimento um caráter ilegal. A repercussão do artigo
publicado deu início ao I Encontro Internacional de Direito Alternativo em
Florianópolis, Santa Catarina.
No que concerne à denominação dessa corrente, põe-se desde logo
um problema terminológico que tem causado certa polêmica,
sobretudo entre aqueles que têm uma quase insuperável dificuldade
de admitir qualquer alternativa ao direito liberal burguês. A locução
―direito alternativo‖ parece designar adequadamente o movimento
porque, além de abranger a prática do ―uso alternativo do direito
posto‖ e da ―positividade de combate‖, abrange as manifestações do
―pluralismo jurídico‖, verdadeiro ordenamento jurídico alternativo,
surgido no seio de grupos marginalizados, portanto, à margem da
ordem instituída. Além disso, designa a luta por uma outra (alter)
forma de sociedade, a sociedade não burguesa, cuja construção está
condicionada a uma espécie de ética da alteridade, com a necessária
inclusão dos sujeitos marginalizados, ou seja, do alter ou dos ―outros
sujeitos‖. (MACHADO, 2009).
Diferente do que falam os críticos que divergem da corrente alternativa,
o uso do direito alternativo não vem negar o direito estatal, e sim relatar a
insuficiência do Estado em tutelar de forma justa o direito da maioria
marginalizada diante das diversas convulsões sociais. Dentre os vários
216
reclamos sociais, o direito alternativo abrangerá normas justas de emancipação
e reduzirá a aplicação/interpretação das normas que contenham ideologias
classistas em suas entrelinhas. O movimento é utilizado na tentativa de
diminuir a convulsão social diante do esgotamento do direito puramente
monista e positivo, aproximando as relações sociais do ideal de equidade.
Em outras palavras, os alternativos não combatem o fato de existirem
leis aprovadas pelo parlamento e uma estrutura judicial para
interpretá-las e aplicá-las. Estas formas são importantes para regular
uma sociedade. Entretanto, ao concordarem com a forma, ou
método, não estarão automaticamente ou em desdobramento, de
acordo com a ideologia e a teoria embutida neste sistema – como
ocorre com os juristas tradicionais. De fato, o pensamento jurídico
conservados quer fazer crer inexistirem ideologias e valores no
Direito, tudo se cingindo à própria estrutura jurídica, em estado puro,
desvinculada de quaisquer interesses de poder. E, com isto, não
concordam, em absoluto, os alternativos. (ANDRADE, 2008, p. 9-10)
5. FINALIDADES E ESTRATÉGIAS DO MOVIMENTO ALTERNATIVO DO
DIREITO
Produto do temor da diferença entre os homens, desencadeado pelo
nazismo, a primeira fase de proteção dos Direitos Humanos se formou com
base na igualdade, numa proteção geral à diferença, formalizada pela
Declaração Universal de 1948. Igualar os indivíduos formalmente foi
insuficiente. Concomitante a uma proteção genérica, estava a necessidade de
particularizar determinados grupos e minorias para que, utilizando da diferença
não fosse permitida lesão à direitos essenciais.
A sociedade contemporânea, notadamente nos seus momentos de
crise e grave instabilidade social, reflete a crise deste modelo de
monismo jurídico. É que justamente esta concepção de Direito não
consegue mais regular ou oferecer parâmetros de resolução dos
conflitos nesta nova realidade atual. Estas instabilidades ou crises
sociais provocam também crises no Direito ou, nos termos de
Wolkmer (1997; 62), "o esgotamento do modelo jurídico tradicional".
É preciso perceber que o Estado, notadamente o seu modelo atual
centralizador e burocrático, não consegue mais produzir
normatividades capazes de corresponder à nova organização social
(OLIVEIRA, 2003, p. 6)
Temos que, a promoção de minorias desprivilegiadas parte de uma
tentativa de chegar à igualdade. Essa promoção pode ser vista através do uso
217
do movimento alternativo do direito, das aplicações jurisprudenciais, das ações
afirmativas, etc.
Proibir a exclusão social não implicaria manter a inclusão, daí a
importância das ações afirmativas para reduzir a desigualdade, enfatizando as
diferenças. Ou seja, aplicar uma justiça baseada apenas na isonomia formal,
distributiva, legaliza os abismos entre os grupos e legitima a desigualdade.
A isonomia material consiste na famosa proposição anunciada pelo
filósofo Aristóteles, segundo a qual a igualdade consiste em tratar igualmente
os iguais e desigualmente os desiguais. Para efetivar o princípio, é necessário
considerar as peculiaridades e desigualdades individuais em sua medida. O
movimento do Direito Alternativo assume, assim, sua não-neutralidade e seu
comprometimento com os pobres, buscando ser um instrumento para
emancipação da classe trabalhadora.
O jurista assume o dever de proximidade aos conflitos sociais, dando
novas soluções, tendo o fato como premissa maior do caso concreto. Deve
utilizar as lacunas e incoerência da lei em benefício dos que não têm poder, de
modo a garantir a dignidade da vida humana e a qualidade exemplar de vida
para todos.
A atuação interpretativo-alternativa ultrapassa os limites da
reprodução de práticas consagradas, tornando-se: (a) mais próxima
do real conflito humano; (b) permissiva de discussão axiológica
desmascadora da idéia de neutralidade; (c) politicamente
participativa; (d) questionadora da ordem estabelecida e das leis que
a mantêm; (e) inserida no contexto sócio-econômico; (f)
possibilitadora de novas soluções aos conflitos. (CARVALHO, 2005,
p. 35-36)
Basicamente, o movimento do direito alternativo atua através de três
estratégias, em um modo mais brando de atuação - o ―positivismo de combate‖
- o direito alternativo busca leis que beneficiam a classe popular, evitando que
estas tenham caráter apenas ―encantatório‖ no texto formal. Tem a finalidade
de fazer com que o Estado atue como um real Estado Democrático de Direito e
não se baseie em normas puramente dogmáticas que fantasiam uma realidade
de igualdade e procura dar efetividade às normas que contemplem interesse
genuinamente popular.
218
Como segundo instrumento há o uso alternativo do direito: diferente do
positivismo de combate (que busca leis dentro do ordenamento), o uso
alternativo do direito tem como instrumento de justiça social a atividade
hermenêutica. Está comprometido com a inclusão social, interpretando
extensivamente leis que privilegiam as classes subordinadas e restritivamente
o interesse da minoria. Trata-se da exploração do caráter polissêmico do texto
legal comprometido com a equidade e obtenção da forma mais democrática do
direito positivo.
Por fim, o Pluralismo Jurídico, o ponto mais polêmico (há divergências
dentro do próprio movimento). Como uma das manifestações desse pluralismo,
o Direito Alternativo (stricto sensu), direito oriundo das ruas, emergente da
população, admite como direito as normas não-estatais e reconhece como
legítimas relações jurídicas criadas por grupos marginalizados em movimentos
e lutas sociais no combate às leis injustas.
6. O DIREITO ALTERNATIVO COMO AÇÃO AFIRMATIVA
Como dito anteriormente, a primeira fase de proteção dos Direitos
Humanos se formou com base na igualdade, numa proteção geral à diferença,
formalizada pela Declaração Universal de 1948.
Atualmente, rezam as constituições que todos são iguais perante a lei.
Entende-se que o alcance do principio não se restringe a nivelar os cidadãos
diante da norma legal posta, mas que a própria lei também não pode ser
editada em desconformidade com esta isonomia.
Desse modo, o preceito magno da igualdade, como já tem sido
assinalado, é norma voltada quer para o aplicador da lei quer para o próprio
legislador. No entanto, não só perante a norma posta se nivelam os indivíduos,
mas, a própria edição dela se sujeita ao dever de dispensar tratamento
equânime às pessoas.
Assim não poderá subsistir qualquer dúvida quanto ao destinatário da
cláusula constitucional da igualdade perante a lei. O seu destinatário
é, precisamente, o legislador e, em conseqüência, a legislação, por
mais discricionários que possam ser os critérios da política legislativa,
encontra no princípio da igualdade a primeira e mais fundamental se
duas limitações. (CAMPOS, 1956, p. 30)
219
A lei não deve ser fonte de privilégios ou perseguições, mas instrumento
regulador da vida social que necessita tratar equitativamente todos os
cidadãos. Este é o conteúdo político, ideológico absorvido pelo principio da
isonomia e ‗juridicizado‖ pelos textos constitucionais em geral, ou de todo modo
assimilado pelos sistemas normativos vigentes.
Ao se cumprir uma lei todos os abrangidos por ela hão de receber
tratamento paritário, sendo certo, ainda, que ao próprio ditame legal é interdito
deferir disciplinas diversas para situações equivalentes.
Atendo-se ao pensamento de Aristóteles para se alcançar a concretude
do princípio da isonomia, entende-se que a diferença não mais seria utilizada
para a aniquilação de direitos, mas, ao revés, para sua promoção.
Por essas razões a Convenção sobre a Eliminação de todas as
Formas de Discriminação Racial prevê, no artigo 1º, parágrafo 4º, a
possibilidade de ―discriminação positiva‖ (a chamada ―ação
afirmativa‖) mediante a adoção de medidas especiais de proteção ou
incentivo a grupos ou indivíduos, visando a promover sua ascensão
na sociedade até um nível de equiparação com os demais.
(PIOVESAN, 2005, p. 49).
O Direito alternativo é um dos modos de ação afirmativa, instrumento
que acelera a igualdade material e afasta a falsa idéia de neutralidade e justiça
serem equivalentes, entendendo que o ―neutro‖ é instrumento de manutenção,
aumento da injustiça e exclusão social.
A democracia pode ser palpável através de medidas compensatórias de
parcialidade, tais medidas cessarão quando alcançado o escopo da igualdade
concreta das minorias, quando atingidos seus objetivos. A partir deste
momento poder-se-á aplicar uma justiça apenas distributiva, nos mesmos
níveis, sem ferir direitos humanos e a essência da própria justiça.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Direito repousa nas bases da natureza, na vida humana, nas relações
sociais e nos valores cristalizados pela interação social, na tentativa de
satisfazer interesses comuns da coletividade. É necessário que a ciência não
desconsidere os sentimentos de justiça e injustiça, pois estes exercem fortes
220
sinais da existência dos valores e, assim como os demais, não são abstraídos
do existir histórico. De tal modo, devem-se ultrapassar as realidades que
envolvem o ser humano para compreender o direito e alcançar a
intencionalidade que marca suas ações em cada estágio-histórico, com fim de
atuar em compromisso com a equidade e a justiça social.
Com base nisso, surgiu com grande respaldo doutrinário e científico a
nova visão do uso alternativo do direito e do pluralismo jurídico, sob forma
progressista e democrática, eleita por muitos como a via de acesso a um novo
paradigma de teorização jurídica, na medida em que mune a sociedade
politicamente organizada de mecanismos mais eficazes e descentralizados
para a solução de seus conflitos tão distintos e atuando como corolário de
igualdade e justiça.
Ou seja, o Direito Alternativo nasce como manifestação legítima da
realidade histórico-cultural devido à insuficiência do sistema jurídico positivista.
Tendo a legitimidade como forma de autenticidade, comprometimento com o
direito e a razão e não confundido-a com legalidade – conjunto de formalidades
prescritas por lei - a aplicação plural do direito no seu uso alternativo sempre
atuou acreditando que o direito positivo tutelado pelo Estado é de fundamental
importância e deve reger as relações sociais até o seu esgotamento.
A maior preocupação com a equidade e o fato dá ao uso alternativo do
direito eficácia social e poder de freio à hegemonia. O estudo deste movimento
é indispensável e revela críticas às ideologias obscuras das classes
dominantes e do positivismo que, levam o Poder Judiciário a atuar em
manutenção do estático sistema, institucionalizando a repressão, o privilégio de
classes e a limitação humana.
Sociedade e Estado ganham com a efetivação dos pluralismos e das
ações afirmativas. A primeira desenvolve processos emancipatórios e o
segundo verifica os novos direitos que devem ser tutelados devido às
oscilações das relações sociais, minimizando a crise do direito estatal.
221
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ensino, pesquisa e extensão. Maria de Nazaré T. Zenaide, Lúcia Lemos Dias,
Giuseppe Tosi e Paulo V. de Moraus (Orgs.). – João Pessoa: Editora
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PIOVESAN, Flávia. Ações afirmativas da perspectiva dos direitos
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222
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 25ª ed. São Paulo: Saraiva,
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WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico. Fundamentos de uma
nova cultura no Direito. 3 ed. São Paulo. Alfa-omega, 2001.
223
DIREITOS E GARANTIAS INERENTES AS PRESIDIÁRIAS
DURANTE O PERÍODO DE GESTAÇÃO, PÓS-PARTO E
ALEITAMENTO MATERNO
Esp. Francisco Iasley L. de Almeida119
Joelma da Silva Pereira Bezerra120
Maria de Fátima B. do Nascimento121
Thamisa Raiane Leite de Sousa122
RESUMO
O presente artigo tem por objetivo compreender os direitos e garantias inerentes às presidiárias
durante o período de gestação, pós-parto e do aleitamento materno, consagrados na Carta
Magna e em leis ordinárias. O artigo 5º da Constituição Federal, inciso L, dispõe que ―às
presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos
durante o período de amamentação‖. A lei de nº. 7210 de 11 de julho de 1984, que instituiu a
Lei de Execução Penal, em seu artigo 14, § 3º, estabelece que ―será assegurado
acompanhamento médico à mulher, principalmente no pré-natal e no pós-parto, extensivo ao
recém-nascido‖; e também o art. 9º do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) ―o poder
público, as instituições e os empregados propiciarão condições adequadas ao aleitamento
materno, inclusive aos filhos de mães submetidas a medida privativa de liberdade.‖ Partindo
dos artigos acima mencionados verifica-se que em especial no Estado da Paraíba, muitos
desses direitos não são exercidos, evidenciando assim, um total descumprimento a ordem
jurídica, bem como provocam uma violação da dignidade da pessoa da presidiária, que por
muitas vezes por falta de estrutura nos estabelecimentos prisionais não conseguem oferecer
um acompanhamento adequado, fazendo com que as mães se distanciem de seus filhos logo
após o parto.
Palavra
chave:
Direito
fundamental.
Gestante.
Dignidade
da
pessoa
humana.
Descumprimento.
Prof. Esp. – Francisco Iasley Lopes de Almeida. Delegado da
Polícia Civil do Estado da Paraíba. Diretor da Associação de Defesa das Prerrogativas dos
Delegados de Polícia da Paraíba (ADEPDEL-PB). Especialista em Ciências Criminais.
Mestrando em Educação pela Universidade Lusófona de Tecnologia e Humanidades de
Portugal. Professor da CESREI. [email protected]
120
Acadêmica - Joelma da Silva Pereira Bezerra. Estudante de Direito do 3º período da
Faculdade [email protected]
121 Acadêmica - Maria de Fátima Barreto do Nascimento.Estudante de Direito do 3º
período da Faculdade CESREI. [email protected]
122 Acadêmica – Thamisa Raiane Leite de Sousa.Estudante de Direito do 3º período da
Faculdade [email protected]
119
224
ABSTRACT
This article aims to understand the rights and guarantees inherent in the prisoners during the
period of pregnancy, postpartum and breastfeeding, as enshrined in the Constitution and
statutes. Article 5 of the Constitution, section L, provides that "the convicts are allowed to stay
with their children during the nursing period." The Law no. 7210 to July 11, 1984, establishing
the Law of Penal Execution in its article 14, § 3, provides that "will be provided medical care to
women, mostly in prenatal and postpartum, extending to the newborn; "and also the art. 9 of the
ECA (Statute of Children and Adolescents) "the government, institutions and employees will
provide appropriate conditions for breastfeeding, including the children of mothers subjected to
custodial measure." Taking the articles mentioned above it appears that especially in the state
of Paraiba, many of these rights are not exercised, that reveal a total break of the law and
causing a violation of the dignity of the prisoner, who often lack of structure in prisons can not
offer proper monitoring, so that keep mothers distance themselves from their children
immediately after childbirth.
Key Word: Fundamental Right. Pregnant. Human dignity. Noncompliance.
225
1. INTRODUÇÃO:
O presente trabalho visa estudar os direitos das presidiárias durante o
período de gestação e de amamentação, cujos direitos são consagrados nos
artigos 14, parágrafos 2° e 3°, 83 parágrafo 2° e 89 em seu caput e parágrafo
único da Lei de Execução Penal nº 7.210/84, e garantidos pela Lei Suprema, a
nossa Constituição Federal de 1988, em seu artigos 1º e 5º, inciso L.
Todavia, o que se percebe é um total desrespeito por parte dos poderes
constituídos que não cumprem e implementam as diretrizes legais, estes que
deveriam ser responsáveis pela realização de tais direitos, são quem mais
desrespeitam as leis, ferindo o que encontra-se estabelecido nas leis de nosso
país, e a dignidade das mulheres que se encontram encarceradas, bem como
de seus filhos que sobrevivem em condições degradantes.
Assim, a partir de dados levantados através de reportagens e
entrevistas, abordaremos os problemas enfrentados pelas encarceradas
gestantes e pelas direções dos presídios, que ficam impossibilitadas de cumprir
o que determina a Lei, por não encontrar respaldo do poder executivo no
tocante a administração penitenciária.
Apesar
de
atualmente
ser
abordado
que
o
país
cresceu
consideravelmente em sua economia, deparamos que os problemas sociais e
econômicos internos não apresentam soluções imediatas, continuando a classe
pobre sem expectativas futuras, pois não existe uma correta e justa distribuição
de renda à população mais carente, torna-a cada vez mais vulnerável a praticar
atos ilícitos.
2. DIREITOS E GARANTIAS INERENTES AS PRESIDIÁRIAS DURANTE O
PERÍODO DE GESTAÇÃO, PÓS-PARTO E ALEITAMENTO MATERNO
Certamente conhecemos em nosso meio social alguém que já
mencionou a seguinte frase ―só quem tem direitos são os presos (a)‖, partindo
dessa premissa e fazendo contraponto com o artigo 5º da Constituição
226
Federal/88 em seu inciso L, o presente artigo pretende fazer um estudo de
caso sobre algumas reportagens que foram veiculadas em meios de
comunicação como o Jornal da Paraíba, e nos sites Patosonline.com e PB1
que trazia a reportagem: ―Situação precária no Presídio Feminino de Patos:
Promotoria da Comarca de Patos dá prazo de 60 dias para que o Governo do
Estado solucione os problemas‖. A qual mostra a situação deplorável em que
as detentas sobrevivem sem o mínimo de higiene e saneamento básico que é
direito de todo cidadão brasileiro:
Foi instaurado procedimento administrativo com objetivo de apurar
as condições de infra-estrutura do Presídio Feminino José Américo,
na cidade de Patos. A Promotoria de Execução Penal da Comarca
de Patos estabeleceu um prazo de 60 dias para que o governador
José Maranhão tome providencias com relação aos problemas
encontrados na casa de detenção.
A promotora Mirian Pereira Vasconcelos disse que foi constatado no
presídio uma situação precária.
- Todas as vidraças do presídio estão quebradas, existe imensa
quantidade de infiltrações nas paredes de praticamente todo o
prédio, há gotejamento no telhado, vazamento nas bacias sanitárias,
torneiras, chuveiros e registros d'água. Não bastasse, o esgoto
encontra-se entupido, causando proliferação de insetos e alguns
presos já foram mordidos por ratos. Além disso, a instalação elétrica
data de 1955. O quadro é desumano - disse a promotora.
O secretário da Cidadania e Administração Penitenciária da Paraíba,
Carlos Mangueira, recebeu fotos do presídio para apreciação dos
fatos. Uma cópia da documentação com fotografias também foi
enviada ao governador.
No último dia 12, o secretário Carlos Mangueira compareceu ao
estabelecimento prisional juntamente com a promotora Miriam
Pereira para verificar o estado do presídio e autorizou a realização
de alguns serviços emergenciais, como conserto dos frigoríficos,
desentupimento do esgoto e restauração da fiação elétrica.
- Ainda há muito a se realizar, de tal maneira que, escoado o prazo
de 60 dias, se a requisição ministerial não for atendida a contento,
não haverá outra alternativa ao Ministério Público da Paraíba, senão,
o ajuizamento de ação civil pública, inclusive, para interdição do
presídio feminino - concluiu a promotora. (Postado por Christian
Oliveira em Noticia, dia 25/03/2010 às 0h9:07min).
Em reportagem publicada no dia 04/03/2010, no site Patosonline.com,
sobre uma entrevista dada pela presidente do conselho da mulher em Patos,
Francisca Vasconcelos, observa-se o total descaso com as apenadas,
227
principalmente as gestantes e total descumprimento de nossas leis.
―Vasconcelos classificou como um ―caos‖ a situação vivida pelas detentas de
Patos. Ela narrou o fato de mulher que está grávida, e dormi no chão (piso) da
cadeia. Ela disse que o presídio masculino apresenta uma condição bem
melhor de conforto para os presos, enquanto que o feminino, não tem as
mínimas condições de abrigar seres humanos.‖
Os direitos aqui citados e previstos pela Carta Magna, a Lei de
Execução Penal e também pelo ECA, são direitos fundamentais e inalteráveis
pelo legislador reformador, mas como pode ser claramente observado nas
reportagens citadas tais direitos não são cumpridos, pelo contrário, o que se vê
é o pouco-caso feito por parte dos governantes, que deveriam garanti-los e
fazê-los valer. Partindo desse pressuposto, este artigo tem duplo objetivo: o de
mostrar que as gestantes que estão cumprindo pena têm muitos direitos
assegurados na ordem jurídica, e que na realidade as detentas, em sua grande
maioria,
desconhecem esses benefícios e que governantes efetivam a
concretização das normas constitucionais, em total descaso e ao arrepio da lei.
Em segundo lugar, se tem por objetivo dá uma parcela de contribuição para
reflexão dos problemas que estão ocorrendo no sistema carcerário brasileiro,
principalmente no Estado da Paraíba.
Todos os cidadãos são iguais perante a lei, é o que reza o art. 5º da
CF/88, e para que essa garantia à dignidade fosse assegurada a quem vive a
margem da sociedade, especialmente as mulheres que por motivos sociais são
levadas a praticar atos ilícitos, e conseqüentemente são condenadas e
encarceradas, se faz necessário a implementação de políticas públicas de
administração penitenciária que possibilitem a essas mulheres e mães
manterem a relação afetiva e umbilical com seus filhos recém-nascidos.
Como se não fosse o pior, muitas por inconseqüência e desinformação
mantém uma vida sexual ativa, não se preocupando com as conseqüências
futuras que possam vir a gerar. Não seria o caso de um intervenção estatal
para promoção de campanha para reeducação dessas mulheres que se
encontram nesta situação? Não só o remédio clínico para o corpo, mais o
remédio psicológico para o desenvolvimento de uma mente sã. Deve-se antes
228
de tudo ter uma política social aplicada nas comunidades mais carentes, para
que não chegue ao desfecho de vermos inúmeros recém-nascidos com suas
mães atrás das grades. O que esperar do futuro desses pequenos seres?
Embora sejam asseguradas à permanência das presidiárias com seus
filhos durante o período de amamentação pela Constituição Federal, nos
seguintes termos ―às presidiárias são asseguradas condições para que possam
permanecer com seus filhos durante o período de amamentação‖ (art. 5º, L da
CF/88), ficando a critério de cada estado brasileiro, de acordo com lei própria o
tempo dessa permanência, podemos constatar diante de fatos narrados pela
impressa o total descaso para com estas pessoas, pois inexistem instalações
adequadas para que as presidiárias amamentem seus filhos, tendo que
permanecer com estes nas próprias celas, além de conviver com a
superlotação carcerária, em um ambiente que não preserva o mínimo de
condições para que se tenha assegurado o direito a dignidade da pessoa
humana.
A Lei 7.210/84 estabelece que os apenados terão todos os direitos
assegurados (art. 3°), que direitos? Superlotação, falta de saneamento básico,
higienização, entre tantas necessidades inerentes ao ser humano.
A maternidade é sublime para a mulher. Somos ensinados e doutrinados
que tal estágio é uma graça divina, pensando nisso, os legisladores instituíram
normas que asseguram direitos as presidiárias de manterem uma relação
direta com seus filhos nos primeiros dias de vida.
Neste ínterim, o art. 14, §§2º e 3º, da Lei 7.210/84, consagra que serão
assegurados as presas acompanhamento médico, incluindo o pré-natal e o
pós-parto, extensivo também ao recém nascido. E o art. 89 da mesma lei,
garante que ―a penitenciária de mulheres será dotada de seção para gestante e
parturiente e de creche para abrigar crianças maiores de 6 (seis) meses e
menores de 7 (sete) anos, com a finalidade de assistir a criança desamparada
cuja responsável estiver presa.‖
Preceitua o artigo 83, em seu § 2º que ―os estabelecimentos penais
destinados a mulheres serão dotados de berçário, onde as condenadas
229
possam cuidar de seus filhos, amamentá-los, no mínimo até 6 (seis) meses de
idade.‖
Esses direitos realmente são cumpridos? Conviver em situações
precárias é saudável para parturiente e recém nascido?
A dignidade da pessoa humana é um dos direitos fundamentais do ser
humano (art. 1º da CF/88), entretanto, esse direito não é respeitado pelo
Estado, por motivos de uma gestão governamental inadequada e a falta de
interesse de investir nos menos favorecidos, ferindo a lei suprema, em não
adequar aos problemas sociais que são encontrados por este vasto país que é
o Brasil, impingindo desde cedo a essas criaturas, mães e filhos, o desrespeito,
o abandono, a compaixão.
Desde os primórdios que a humanidade é conhecedora da importância
do convívio após o nascimento do rebento com sua genitora, e é constado
através do tempo e de pesquisas que quanto mais tempo o bebê se alimenta
de leite materno, menor será o risco de desenvolver alergias alimentares,
asma, rinite ou eczema de pele, etc., pois, este favorece a boa formação do
sistema nervoso e estimula a inteligência da criança, sendo considerado o
alimento mais completo e equilibrado que existe para o início de vida do ser
humano, são inúmeros benefícios que esse alimento natural traz.
Os recém nascidos necessitam do aleitamento materno até no mínimo
seis meses para crescer saudável, pois, o leite da mãe tem nutrientes que
protegem as crianças da maioria das doenças presentes na primeira infância. E
o aleitamento materno é um direito inalienável tanto da criança quanto da mãe.
Segundo Ferreira: ―o desmame precoce não é saudável para a mãe, e muito
menos para o bebê, pois ambos têm na amamentação o conforto para suprir o
baque de terem sido separados abruptamente por ocasião do parto. Do ponto
de vista físico, a amamentação ajuda a volta do útero, no pós-parto, às suas
condições anteriores à gravidez, sem desprezar os aspectos psicológicos [2].
(Direito da Criança e do Adolescente, Ed. Renovar, p. 369).‖
Contudo uma atitude tão simplória é tão edificante para a constituição e
formação da vida futura das pessoas, esse ato de amamentar cria um vínculo
fortíssimo entre mãe e filho, que favorece o desenvolvimento de crianças mais
230
tranqüilas, com maior auto-estima e mais ajustadas socialmente; trazendo
benesses também a mamãe. Amamentar ajuda no desprendimento da
placenta, contribuindo para a volta do útero ao tamanho normal. Com isso,
também evita o sangramento excessivo e, conseqüentemente, evita que a mãe
sofra de anemia e protege-as contra o câncer mamário e uterino. A
amamentação dá às mães as sensações de bem-estar, de realização.
Destarte, por todos os motivos expostos, é que o Estado procura através
de criação das leis assegurar os direitos aos cidadãos não importando o delito
que este foi julgado, mas tal garantia a maioria das vezes não passa de um
papel registrado, de uma lei outorgada, todavia a sua aplicabilidade por nossos
governantes demonstra total descaso com a sociedade e com essas pessoas
as quais se encontram nessas situações específicas, bem como, com a nossa
Carta Magna de 88 e as Leis específicas elaboradas, que foram voltadas para
sanar ou reduzir um problema sócio-econômico que nos está imputado desde
o descobrimento do nosso país e por suas várias evoluções políticas.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que podemos destacar é que o Estado em sua soberania elabora as
leis para garantir ao cidadão o mínimo de dignidade possível, entretanto, esse
mesmo Estado falha na sua aplicabilidade; tudo não passa do papel.
Sabemos que o convívio familiar é a base que estrutura a sociedade, só
que a harmonia que deveria existir começa a desvincular-se desde cedo com o
rompimento da ligação entre mães e filhos, não só com o corte do cordão
umbilical, mas também pela ausência de uma infra-estrutura adequada nos
estabelecimentos prisionais que ofereçam as condições necessárias para que
a parturiente continue com uma relação direta com seus filhos, amamentandoos, amando-os, lhes propiciando o contato mundo exterior com a proteção
materna..
231
Atualmente, em plena era global verificamos que houve um retrocesso
nos valores sociais, tanta evolução cientifica com descobertas futurísticas e
não somos capazes de sanar o sofrimento daquelas mulheres que, por
injustiças sociais, se encontram presas em celas inadequadas, imputando ao
seu filho um futuro que já começa obscuro.
A dignidade humana é um direito supremo, todavia, para que tal direito
seja assegurado na sua magnitude é imprescindível que nossos governantes
debrucem seus olhares para o cumprimento dos direitos consagrados em
nossa Constituição Federal.
Destarte, que o futuro desses seres humanos: mães e filhos, não
fossem rompidos pela má política social e cultural que aflige o Brasil, onde o
descaso com a vida humana é notoriamente comprovada através de
reportagens jornalísticas escritas e televisionadas.
4. REFERÊNCIAS
ANGHER, Anne Joyce, organização. Vade Mecum acadêmico de Direito. –
10.ed. – São Paulo: Ridel, 2010. – (Coleções de leis Ridel).
DRIGO, Sonia Regina Arrojo e. Manual do Direito das presas: Direito à
amamentação.
Disponível
em
http://www.ittc.org.br/web/manual_das_presas.asp?paTopico=5&topyqeury=/pu
blicacoes.asp. Acesso em 07.abril.2010.
OLIVEIRA, Christian. Situação precária no Presídio Feminino de Patos:
Promotoria da Comarca de Patos dá prazo de 60 dias para que o Governo
do
Estado
solucione
os
problemas.
Disponível
http://pb1.com.br/notica/cidades/situacao-precaria-no-presidio-feminino-depatos/. Acesso em 06.abril.2010.
em
232
RAMOS, Luciana de Souza. Direito à amamentação e convivência familiar:
possibilidade de afeto e resignificação do cárcere. Disponível em
http://www.cfemea.org.br/pdf/artigo_creches_presidios_femininos.pdf.
Acesso
em 07.abril.2010.
SANTOS, Heitor José. Aleitamento materno nos presídios femininos:
Aleitamento materno, direito fundamental da criança e da mãe presidiária
– direito que deve ser assegurado. Atribuição do Ministério Público.
Disponível
em
http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/915/Aleitamento-
materno-nos-presidios-femininos. Acesso em 07.abril.2010.
233
EDUCAÇÃO AMBIENTAL:
UM DIREITO CONSTITUCIONALMENTE RESGUARDADO
Maricelle Ramos de Oliveira123
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo de levantar a discussão acerca da importância jurídica e
resguardar a Educação Ambiental, mostrando em linhas gerais sua evolução e apontando os
principais dispositivos protentivos deste mecanismo. Não se pode, atualmente, pensar em
progresso econômico sem se preocupar com o meio ambiente, nem tão pouco pensar em
proteção ambiental aliada ao progresso sem interligá-los a idéia de desenvolvimento
sustentável. A sustentabilidade ambiental é a maior inquietação da humanidade dos tempos
modernos. E hoje, a meio mais eficiente para a cessação dessa inquietude chama-se
Educação Ambiental.
Palavras-Chave: Educação Ambiental, Direito, Sustentabilidade.
RESUMEN
Este trabajo pretende elevar el debate jurídico acerca de la importancia y hebilla de educación
ambiental, mostrando su evolución y apuntando a la protentivos de los principales dispositivos
este mecanismo describe. Actualmente no pensar en el progreso económico sin tener que
preocuparse sobre el medio ambiente, ni considerando la protección del medio ambiente sin
progreso aliado interconexión de ellos la idea del desarrollo sostenible. Sostenibilidad del
medio ambiente es la mayor preocupación de la humanidad de los tiempos modernos. Y hoy en
día, la más eficiente para la terminación de tal preocupación se llama educación ambiental.
Palabras claves: educación ambiental, derecho, sostenibilidad.
123
Acadêmica do Curso de Direito - UEPB e Técnico em Recursos Natuarias –
CEFET/PB (E-mail: [email protected])
234
1 INTRODUÇÃO
A educação ambiental hoje é considerada um dos mecanismos mais
eficazes para a solução de problemas graves ambientais. Ela tem sido
considerada a melhor forma de alcançar o desenvolvimento sustentável pleno.
Contudo, a educação ambiental é muito recente na história legislativa
brasileira e mesmo após a promulgação da constituição federal de 1988, ela
ainda se manteve inerte, mesmo com as diversas manifestações relacionadas
às questões ambientais.
Só em 1999 com a Lei da Educação Ambiental, este mecanismo passa a
dar seqüência e eficácia ao dispositivo constitucional (art. 225). Define-se,
fomenta, traçam-se objetivos e princípios. A educação Ambiental passa a ter,
mais que nunca, relevância jurídica.
A Educação Ambiental é conceituada por diversos dispositivos, contudo
todos levam a importância da consciência individual e coletivo de valores
sociais para se alcançar a sustentabilidade planetária.
A Educação Ambiental é, sem dúvidas, o meio mais eficaz da
consolidação da sustentabilidade. Esse é um ―desafio posto a cada cidadão
investido a vontade de reverter o processo de gradual e reiterada destruição do
planeta‖ (MILERÉ, 2008, p. 165, apud NALINI, XXXI – Apresentação). A
proteção jurídica, induz o cumprimento e a implementação do mecanismo,
modernamente, considerado como dos melhores para o cumprimento do
mandamento constitucional previsto no art. 225.
2. EDUCAÇÃO AMBIENTAL E SUA EVOLUÇÃO
Nos últimos anos, vê-se de forma mais acentuada a degradação dos
recursos naturais provocada por um intenso processo, principalmente, de
industrialização ocorrente em todo mundo. Depois que o homem descobriu que
poderia modificar a natureza, ele começou, rapidamente, a transformá-la e a
explorá-la, o que provocou um grande desequilíbrio nos ecossistemas terrestre,
sem levar em consideração que estes recursos são finitos e conseqüentemente
as espécies vivas ficam expostas a perigos que podem ser irreversíveis.
235
No entanto, nas últimas décadas, alguns, ainda poucos, tendo
consciência da ameaça à Terra que essas explorações podem acarretar,
passaram a divulgar a importância de preservar o meio ambiente, a discutir
questões ambientais e as relações estabelecidas globalmente, tais como: a
fome e a desnutrição; a deterioração dos ecossistemas e das paisagens; as
disparidades entre as populações humanas relacionadas à má distribuição de
renda; à desertificação; crescente escassez dos recursos e os desperdícios; os
problemas acelerados, tudo isso, porque notarão que todos esses problemas
estão de alguma maneira, interligados e expressam impactos negativos para o
planeta. Surge, então, um movimento. Uma revolução ecológica.
A idéia de educação ambiental foi, ao longo dos tempos, sendo aceita e
incorporada às pessoas. Hoje, naturalmente e até de forma preocupada se fala
sobre meio ambiente. Mas nem sempre foi assim.
Embora, no início da década de 60, os problemas ambientais já mostrar
a ineficiência do modelo econômico adotado, não se falava ainda em Educação
Ambiental. A expressão Educação Ambiental surgiu pela primeira vez em
março de 1965, na Conferência de Educação da Universidade de Keele, na
Inglaterra, com a idéia de tornar-se parte integrante e essencial da educação
de todos os cidadãos. Mas, somente nos anos 1970 é que aparece mais
fortemente no mundo um conjunto de manifestações sócio-ambientais que
resultaram na realização da Conferência de Estocolmo em 1972. A partir deste
momento, a Educação Ambiental passou a ser considerada como campo da
ação pedagógica, adquirindo relevância e vigência internacionais.
Desde então, inúmeros eventos surgiram em busca de respostas, de
discussões e soluções para as questões ambientais. GAYFORD & DOKION
(1994), destacam alguns dos mais relevantes eventos ―Limites para o
crescimento‖ (1972), o ―Relatório Brandt‖ (1980), ―Estratégia Mundial de
Conservação‖ (1980), o ―Relatório do Brundtland‖ (1987) e a mais recente
―Agenda 21‖ (1992), realizada no Brasil. Mas a Educação Ambiental, assim
como a própria educação caminha a passos lentos no processo de efetivar
mudanças nas atitudes e comportamentos no tocante ao Meio Ambiente, (apud
Sato 1995).
236
Destaca dentre todas citada a Conferência de Estocolmo (1972) e a de
Tbilisi (1977) que originaram as primeiras manifestações dentro da Educação
Ambiental e que foram responsáveis pelo início do desenvolvimento de uma
consciência ambiental num âmbito internacional. A partir delas, enfatizam a
necessidade de redefinir a educação ambiental provocando uma interação com
outras áreas existentes, promovendo, assim, uma interdisciplinaridade.
Com a International Union for the Conservation of Nature (IUCN, 1971),
enceta uma das definições internacionais de Educação Ambiental prioriza e
ressalta a importância da conservação. Porém, a Educação Ambiental estava
pautada, apenas, na manutenção da biodiversidade e dos sistemas de vida.
Somente com a Conferência de Estocolmo (1972) é que essa definição se
amplia a outras esferas do conhecimento e finalmente, a Conferência
Intergovernamental de Tbilisi (1977), internacionalmente mais aceita deliberar
que:
A Educação Ambiental é um processo de reconhecimento de valores
e classificação de conceitos, objetivando o desenvolvimento das
habilidades e modificando as atitudes em relação ao meio, para
entender e apreciar as inter-relações entre os seres humanos, suas
culturas e seus meios biofísicos. A Educação Ambiental também está
relacionada com a prática das tomadas de decisões e a ética que
conduzem para a melhoria da qualidade de vida124.
Após um longo período da tentativa de consolidar a Educação Ambiental
na nossa sociedade, ela conseguiu alcançar um status bastante relevante.
10. A EDUCAÇÃO AMBIENTAL RESGUARDADA POR PRECEITOS
JURÍDICOS
Hodiernamente, compõe o texto da Constituição Federal e seu art. 225,
§1º, VI, em que prevê a obrigatoriedade do Poder Público de ―promover a
educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública
para a preservação do meio ambiente‖. Por sua vez, a Política Ambiental do
Meio Ambiente dispõe em seu art. 2º, que terá ―por objetivo a preservação,
124
SATO, Michelle. Educação Ambiental. 2 ed. São Carlos: PPG-ERN/EFS, 1995, 52p.:il
237
melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando
assegurar, no País, condições ao desenvolvimento socioeconômico, aos
interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana‖,
através de princípios, como o inserido no inciso X, ―educação ambiental a todos
os níveis do ensino, inclusive a educação da comunidade, objetivando
capacitá-la para participação ativa na defesa do meio ambiente‖125.
A Constituição Estadual da Paraíba, no capítulo IV, artigo 227, mostra
que o estado também tem responsabilidade quanto à proteção do meio
ambiente. Destarte, a Constituição traz a obrigação estadual de preservar o
meio ambiente e o entendimento de que é fundamental a incorporação da
educação ambiental em todos os patamares, para que essa atinja o maior
número de pessoas. ―É dever do Estado, defendê-lo e protegê-lo (o meio
ambiente) para as presentes e futuras gerações‖, assegurando que tudo isso
só é possível se ―promover a Educação Ambiental, em todos os níveis de
ensino; e a conscientização pública para preservação do Meio Ambiente‖.
(Inciso IV). Só então, se conseguirá formar cidadãos conscientes e
preocupados com o lugar onde vivem: o Planeta Terra.126
Com essa preocupação, em meio a uma nova formação da consciência
ecológica, em 1999, foi sancionada a Lei nº. 9.795 – Lei da Educação
Ambiental. Essa Lei tornou-se importante, pois além de conceitos, princípios e
objetivos, define a estrutura, a regulamentação e executores desta Política.
Entendem-se por educação ambiental os processos por meio dos
quais o indivíduo e a coletividade constroem valores sociais,
conhecimentos, habilidades, atitudes e competências voltadas para a
conservação do meio ambiente, bem de uso comum do povo,
essencial à sadia qualidade de vida e sua sustentabilidade (Art. 1º,
da Lei 9.795/99)127
125
BRASIL, Constituição Federal de 5 de outubro de 1988, com as alterações adotadas
pelas Emendas Constitucionais n° 1/92 a 28/2000 e Emendas Constitucionais Revisadas
n° 1 a 6/94. – Ed. Atual. em 2000. – Brasília: Senado Federal, Subscreventaria de Edições
Técnicas, 2000.
126
Brasil, Constituição do Estado da Paraíba, de 5 de outubro de 1989.
127 BRASIL, Lei N° 9.795, de 27 de abril de 1999. Dispõe sobre a educação ambiental,
institui a Política Nacional de Educação Ambiental e dá outras providências, Brasília, DF,
27 de abr. 1999. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6938.htm> Acesso
em 28 de Jun. 2009.
238
Além de uma definição de Educação Ambiental, o art. 1º, apresenta um
dos seus principais objetivos, seja, o alcance de uma sustentabilidade capaz de
equilibrar desenvolvimento econômico à preservação ambiental, melhorando,
deste modo, a qualidade de vida, protegendo os recursos naturais, impedindo
os fortes impactos ambientais geradores de desequilíbrio ecológico e extinção
de espécies. Tudo isso, impossibilita mais e mais as condições de vida
saudável no Planeta.
Não se trata de ser contra o progresso, mas de promover e
compatibilizar o desenvolvimento econômico-social com requisitos
ambientais mínimos, utilizando e conservando de modo racional os
recursos naturais, e solidarizando-se sincronicamente (nos tempos
presentes) e diacronicamente (através dos sucessivos tempos) com a
humanidade. O destino das gerações futuras encontra-se, assim, nas
mãos das presentes gerações. 128
A Educação Ambiental, desta maneira, é fundamental para a formação
de indivíduos conhecedores das limitações da natureza; conscientes da
proeminência de se respeitar à natureza e de se tentar recuperá-la quando os
limites forem excedidos.
A sustentabilidade do Planeta está, sem dúvida alguma, nas mãos do
homem, o único ser capaz de, com suas ações, romper o equilíbrio
dinâmico produzido espontaneamente pela independência das forças
da natureza e modificar os mecanismos reguladores que, em
condições normais, mantêm ou renovam os recursos naturais e vida
na Terra. 129
A Política Nacional de Educação Ambiental prevê em seu art. 4º, os
princípios basilares da Educação Ambiental, são eles:
I - o enfoque humanista, holístico, democrático e participativo;
II - a concepção do meio ambiente em sua totalidade, considerando a
interdependência entre o meio natural, o sócio-econômico e o cultural,
sob o enfoque da sustentabilidade;
III - o pluralismo de idéias e concepções pedagógicas, na perspectiva
da inter, multi e transdisciplinaridade;
IV - a vinculação entre a ética, a educação, o trabalho e as práticas
sociais;
MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente: A Gestão Ambiental em Foco. 5ª Ed. – São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.
129
Idem, 2007.
128
239
V - a garantia de continuidade e permanência do processo educativo;
VI - a permanente avaliação crítica do processo educativo;
VII - a abordagem articulada das questões ambientais locais,
regionais, nacionais e globais;
VIII - o reconhecimento e o respeito à pluralidade e à diversidade
individual e cultural.130
Fica claro, destarte, a importância a sociedade no processo de
afirmação da Educação Ambiental. Conforme assevera Milaré (2007, p. 505)
que mesmo parecendo ―óbvio, mas é preciso ressaltar que, sendo o meio
ambiente patrimônio universal de toda humanidade, a educação para respeitálo e bem administra-lo deve realizar-se com a participação democrática da
população‖.
Os objetivos principais, também foram elencados nos incisos do art. 5º.
que em primeira ordem visa integrar a sociedade e seus avanços.
A EA fomenta sensibilidades afetivas e capacidades cognitivas para
uma leitura do mundo do ponto de vista ambiental. Dessa forma,
estabelece-se como mediação para múltiplas compreensões da
experiência do indivíduo e dos coletivos sociais em suas relações
com o ambiente. Esse processo de aprendizagem, por via dessa
perspectiva de leitura, dá-se particularmente pela ação do educador
como intérprete dos nexos entre sociedade e ambiente e da EA como
mediadora na construção social de novas sensibilidades e posturas
éticas diante do mundo131.
A Lei ainda dispõe em seu art. 2º de preceitos fundamentais para a
educação ambiental. ―A educação ambiental é um componente essencial e
permanente da educação nacional, devendo estar presente, de forma
articulada, em todos os níveis e modalidades do processo educativo, em
caráter formal e não-formal‖, caracterizando, o desenvolvimento de uma
educação não só formal, aquela do ensino regular das escolas, em todos os
graus de ensino, como também e principalmente, a não-formal, ou seja aquela
incrementada fora da escola, a chamada por Milaré (2007) de educação
permanente.
130
BRASIL, Lei N° 9.795, de 27 de abril de 1999. Dispõe sobre a educação ambiental,
institui a Política Nacional de Educação Ambiental e dá outras providências, Brasília,
DF, 27 de abr. 1999. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6938.htm>
Acesso em 28 de Jun. 2009.
131
CARVALHO, I. C. M. Educação ambiental: a formação do sujeito ecológico. 4. ed.
São Paulo(SP): Cortez Editora, 2008.
240
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Educação Ambiental ainda, embora as revoluções ambientais,
encontros e discussões acerca do meio ambiente sejam razoavelmente
antigos, é bastante recente na história brasileira. Esta forma de educação ainda
encontra-se em processo de formação e consolidação.
Todavia, vem ganhando espaço, seja porque a Lei de Diretrizes de Base
a inseriu transdisciplinarmente nos componentes curriculares nas escolas
normais, seja porque pela intensificação da destruição ambiental, os grupos
informalmente vêm repassando-a, ou porque as normas jurídicas e sua
estrutura judiciária têm se preocupado muito e de forma constante, o que se
sabe e se percebe é um desenvolvimento, uma abertura consolidada da
Educação Ambiental em todos os grupos.
A Educação Ambiental, deste modo, está se tornando uma realidade
possível em prol da concretude do preceito constitucional previsto no art. 225.
―Todos têm direitos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso
comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder
público e à coletividade o dever de defendê-lo e preserva-lo para que as
presentes e futuras gerações‖.
5. REFERÊNCIAS
BERNA, Nilmar. Como fazer Educação Ambiental. São Paulo: Paulus, 2001.
BRASIL, Constituição Federal de 5 de outubro de 1988, com as alterações
adotadas pelas Emendas Constitucionais n° 1/92 a 28/2000 e Emendas
Constitucionais Revisadas n° 1 a 6/94. – Ed. Atual. em 2000. – Brasília:
Senado Federal, Subscreventaria de Edições Técnicas, 2000.
________. Constituição do Estado da Paraíba, de 5 de outubro de 1989.
________, Lei N° 9.795, de 27 de abril de 1999. Dispõe sobre a educação
ambiental, institui a Política Nacional de Educação Ambiental e dá outras
241
providências,
Brasília,
DF,
27
de
abr.
1999.
Disponível
em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6938.htm> Acesso em 28 de Jun.
2009.
CARVALHO, I. C. M. Educação ambiental: a formação do sujeito ecológico.
4. ed. São Paulo(SP): Cortez Editora, 2008.
DIAS, Genebaldo Freire. Educação Ambiental: Princípios e Práticas. 5º Ed.
– São Paulo: Global, 1998.
MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente: A Gestão Ambiental em Foco. 5ª Ed. –
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.
SATO, Michelle. Educação Ambiental. 2 ed. São Carlos: PPG-ERN/EFS,
1995, 52p.:il
242
EFEITOS DA REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL NO BRASIL:
Constitucionalidade, Oportunidade e Conveniência.
Aldecir B. Dias Filho132
Vaglas Vasconcelos Júnior133
RESUMO
Os mais bárbaros crimes e a enorme violência praticada pelos jovens e adolescentes,
hodiernamente, vem causando à população um enorme sentimento de insegurança, do qual a
mídia com matérias sensacionalistas e políticos com discursos imediatistas aproveitam-se para
instaurar a idéia de que a Redução da Maioridade Penal seria a solução para todos os
problemas. Este é um assunto polêmico, que sempre levanta muitas discussões, e que,
portanto, deve ser analisado com muita calma, afinal, muitas serão as conseqüências advindas
da alteração de nosso texto Constitucional. Faz-se necessário que se analisem todas suas
implicações, assim como, sua possibilidade, oportunidade e conveniência. E por fim, resta-nos
indagar: Seria esta a verdadeira solução para os problemas enfrentados com a menoridade no
Brasil?
Palavras-chave: Maioridade Penal. Redução. Conveniência. Oportunidade.
132
Acadêmico de Direito pela Universidade Estadual da Paraíba – UEPB,
[email protected]
133
Acadêmico de Direito pela Universidade Estadual da Paraíba – UEPB,
[email protected]
243
1. INTRODUÇÃO
O Instituo da Maioridade Penal, é um dos assuntos polêmicos e mais
questionados dos últimos tempos, onde observamos a formação progressiva
de um clamor social que pugna por uma mudança imediata e por uma solução
frente ao crescente número de delitos e barbaridades realizadas por uma
juventude marginalizada.
Diante de crimes nefastos, cometidos por menores, a população atônita
começa a clamar por medidas urgentes, enquanto que a mídia e um
contingente de políticos, aproveitam-se para formular discursos midiáticos, e
sensacionalistas, dos quais surgem discursos impregnados de medidas
imediatistas, as quais buscam acalentar os ânimos alterados da população,
mas que não estão observando com a devida atenção as reais necessidades
sociais.
Frente a esta conturbada situação, cabe-nos indagar: Qual o real
problema a ser solucionado? O nosso ordenamento jurídico permite esta
revoltante impunidade? Seria mesmo a Redução da Maioridade Penal requisito
indispensável à punição do menor, no Brasil? Seriam estas medidas
constitucionais?
Vários são os apontamentos a serem estudados, várias são as questões
a serem discutidas e surge uma necessidade latente de se observar qual a real
necessidade de nosso país e se estas carências podem ser solucionadas com
simples alterações legislativas.
O presente artigo científico objetiva trazer à tona uma discussão que há
tempos é polemizada, realizando a partir desta, uma verdadeira análise
criteriosa acerca do Instituto da Maioridade Penal e as conseqüências da
redução de seu Termo Inicial. Ao decorrer deste trabalho, discorreremos
acerca dos critérios nacionalmente utilizados para o estabelecimento do
Instituto em questão, perquirindo sobre a constitucionalidade de possíveis
reformas e apresentando pensamentos e visões distintas acerca dos mesmos
fatos, com um diagnóstico crítico, para que possamos chegar a uma conclusão
embasada e livre de qualquer visão tendenciosa.
244
2. DESENVOLVIMENTO
2.1 Critério para estabelecimento da Maioridade Penal
Antes
de
adentrarmos
diretamente
na
discussão
acerca
da
possibilidade, constitucionalidade e conveniência da redução do termo inicial
da Maioridade Penal, precisamos compreender, o porque, e qual o motivo e
critério utilizados para o estabelecimento do presente termo inicial, o qual seja,
de 18 (dezoito) anos de idade.
O Critério adotado pelo legislador constituinte, foi o critério biológico,
também conhecido por critério etário, o qual definiu a idade de 18 (dezoito)
anos, como marco divisório entre a real capacidade de discernimento da
conduta e sua conseqüente responsabilização e faixa etária inimputável, em
razão da reduzida capacidade de compreensão de sua conduta, por entender
que até completar os dezoito anos, o cidadão está em pleno desenvolvimento
e formação psicológica.
Com a utilização deste critério, o critério biológico, basta o cidadão
possuir idade inferior a 18 (dezoito) anos, para ser considerado inimputável,
não levando em consideração o real desenvolvimento mental e capacidade de
compreensão do jovem.
Importante é destacar, que com a rápida evolução e desenvolvimento da
sociedade, uma considerável parcela de doutrinadores passaram a entender
que a utilização de um outro critério, o critério biopsicológico, seria mais viável,
tendo em vista que o mesmo, procurar precisar com exatidão qual a real
capacidade de intelecção do indivíduo, como a real possibilidade de
compreensão dos atos até então praticados, não utilizando apenas a idade
como parâmetro absoluto.
Conforme argumenta Luiz Flávio Borges D‘urso, “poderão haver pessoas
com a mesma idade cronológica contudo, com capacidade de entendimento
diversas, a ensejar responsabilização também diferenciada. Trata-se de critério
biopsicológico ou bio-etário”134.
134
D'URSO, Luíz Flávio Borges. A questão da maioridade penal e a FEBEM. Jus Navigandi,
Teresina, ano 3, n. 35, out. 1999. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1653>.
Acesso em: 09 de novembro de 2009.
245
Interessante é ressaltar que já temos a presença deste critério
biopsicológico em meio ao nosso ordenamento jurídico, é o que podemos
observar no artigo 50 do Nosso Código Penal Militar, in verbis: ―O menor de
dezoito anos é inimputável, salvo se, já tendo completado dezesseis anos,
revela suficiente desenvolvimento psíquico para entender o caráter ilícito do
fato e determinar-se de acordo com este entendimento. Neste caso a pena
aplicável é diminuída de um terço até a metade.‖135
No ano de 1999, foram produzidas duas propostas de Emenda
Constitucional, que traziam, justamente, essa novidade, alterando o critério de
estipulação do Termo Inicial da Maioridade Penal e inserido nele, a
necessidade de observação da real capacidade de discernimento e do
amadurecimento intelectual e emocional do indivíduo. São as PEC‘s nº 18/1999
e 20/1999:
PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO Nº 18, DE 1999
(Do Senador Romero Jucá)
Altera a redação do art. 228 da Constituição
Federal. As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos
termos do art. 60 da Constituição Federal, promulgam a seguinte Emenda ao
texto constitucional. Art. 1º O art. 228 da Constituição Federal passa a vigorar
acrescido do seguinte parágrafo: "Art. 228.... Parágrafo único. Nos casos de
crimes contra a vida ou o patrimônio, cometidos com violência, ou grave
ameaça à pessoa, são penalmente inimputáveis apenas os menores de
dezesseis anos, sujeitos às normas da legislação especial." Art. 2º Esta
Emenda entra em vigor na data de sua publicação.
PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO Nº 20, DE 1999
(Do Senador José Roberto Arruda) Altera o art. 228 da Constituição Federal,
reduzindo para dezesseis anos a idade para imputabilidade penal. As Mesas da
Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do § 3º do art. 60 da
Constituição Federal, promulgam a seguinte emenda constitucional. Art. 1º O
art. 228 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:
"Art. 228. São penalmente inimputáveis os menores de dezesseis anos,
135
Código Penal Militar
246
sujeitos às normas da legislação especial. Parágrafo único. Os menores de
dezoito anos e maiores de dezesseis anos são penalmente imputáveis quando
constatado seu amadurecimento intelectual e emocional, na forma da lei
(NR)." Art. 2º Esta Emenda à Constituição entra em vigor na data de sua
publicação. 136
A priori, este parece ser o critério mais viável a ser utilizado, entretanto,
o mesmo traz consigo uma grande preocupação, visto que, com a utilização de
um critério biopsicológico, estaríamos abrindo margem para um grande
subjetivismo.
A partir deste pensamento que Sônia Maria Teixeira da Silva nos alerta
para o fato de que, talvez, a realidade de nosso país não tenha condições de
se adaptar a um critério tão subjetivo:
―Será que os nossos profissionais estão preparados para realizar esses
exames com a seriedade que lhes é exigida? Diante da divulgação de tantos
laudos falseados por intitulados "profissionais", tememos que a constatação do
"amadurecimento intelectual e emocional" do infrator, seja mais um meio de se
promover injustiças no país.‖ 137
Acreditamos que foi pensando
desta forma,
que
o
legislador
constitucional preferiu por estabelecer como relevante, apenas o critério etário,
estando atento apenas a menoridade do infrator para eximi-lo dos parâmetros
coercitivos do Código Penal.
Não estamos afirmando, aqui, de forma leviana, que o critério
atualmente utilizado está livre de possíveis falhas ou equívocos, uma vez que
não é difícil perceber que o critério etário também se mostra limitado e
suscetível ao cometimento de faltas e até injustiças, contudo, temos que
admitir, que para a atual situação em que nos encontramos, este tem se
mostrado o mais prático e eficiente.
136
Apud, SILVA, Sônia Maria Teixeira da. Imputabilidade penal e a redução da idade de 18 para
16 anos . Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 38, jan. 2000. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1651>. Acesso em: 09 de novembro de 2009.
137
SILVA, Sônia Maria Teixeira da. Imputabilidade penal e a redução da idade de 18 para 16 anos.
Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 38, jan. 2000. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1651>. Acesso em: 09 de Novembro de 2009.
247
2.2 Inimputabilidade x Impunidade
Ao tratarmos da inimputabilidade do menor de 18 (dezoito) anos,
estamos diante de um delicado assunto, o qual sempre que discutido, causa
uma grande polêmica. Principalmente pela sensação de impunidade que
parece sempre estar presente. Entretanto, alguns apontamentos necessitam
ser feitos para que possamos compreender que a Inimputabilidade disposta no
artigo 228 da Constituição da República e no artigo 27 de nosso Código Penal,
não exime os jovens menores de 18 anos de qualquer responsabilização pelo
cometimento de crimes.
É bem verdade que nossa Constituição fixou o marco etário de 18
(dezoito) anos de idade para declarar o menor inimputável, estabelecendo
como relevante apenas a menoridade do infrator para eximir sua conduta dos
parâmetros coercitivos penais. Entretanto, é valido ressaltar que a adoção
desse critério não significa impunidade, uma vez que a responsabilização dos
menores de 18 (dezoito) anos, são regidas pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente – ECA, o qual traz em seu texto as punições efetuáveis, como
também, a possibilidade da utilização de medidas socioeducativas e até
mesmo a internação em estabelecimento educacional, conforme inteligência do
artigo 112 do ECA.
Em outras palavras, podemos dizer que nosso ordenamento jurídico, ao
determinar a inimputabilidade do menor, eximi-o de responder por sua conduta
delituosa nos moldes do Código Penal, entretanto, não o deixa impune,
realizando a sua responsabilização e conseqüente punição nos moldes do
Estatuto da Criança e do Adolescente. Medida esta que se mostra bastante
razoável e equilibrada, evitando assim, que o menor, que não tem condição
plena de compreender e ser totalmente responsabilizado pelos seus atos, seja
punido como se fosse um maior.
Para que possamos abordar o tema de forma mais completa, será
necessário
o
estabelecimento
e
compreensão
de
alguns
conceitos
intrinsecamente relacionados a este, sendo indispensável um breve estudo
acerca da culpabilidade, instituto penal no qual a imputabilidade está inserida.
248
A Culpabilidade pode ser descrita como o juízo de censura ou
reprovabilidade que recai sobre a conduta do agente, referindo-se ao fato de
ser possível, ou não, a aplicação de uma pena ao autor de um fato típico e
antijurídico.
O renomado doutrinador Fernando Capez, define Culpabilidade como:
―... a possibilidade de se considerar alguém culpado pela prática de uma
infração penal. Por essa razão, costuma ser definida como juízo de
censurabilidade e reprovação exercido sobre alguém que praticou um fato
típico e ilícito.‖ 138
A culpabilidade consiste justamente na reprovabilidade de uma conduta
típica e antijurídica realizada por quem tem a capacidade não só de
compreender como também de querer realizá-la, sendo ainda possível o
reconhecimento
de
sua
ilicitude,
comportamento
diferenciado,
em
desde
que
conformidade
lhe
fosse
com
o
exigido
um
direito,
nas
circunstâncias em que o fato ocorreu.
Deste modo, podemos identificar três requisitos básicos, sem os quais,
tem se a impossibilidade de aplicar a sanção penal, quais são: Imputabilidade,
possibilidade de conhecimento da antijuridicidade e exigibilidade de conduta
conforme o direito.
A Imputabilidade é a capacidade de culpa ou aptidão que uma pessoa
tem
para
ser
considerada
culpável
por
determinada
conduta
ou
comportamento, ou seja, é a capacidade de entender o caráter ilícito do fato e
determinar-se de acordo com esse entendimento. Dentre as causas de
exclusão
da
Imputabilidade
(doença
mental;
desenvolvimento
mental
incompleto; desenvolvimento mental retardado e embriaguez completa,
proveniente de caso fortuito, ou força maior), podemos destacar, para o estudo
em questão, o Desenvolvimento Mental Incompleto, no qual temos a
Menoridade.
Segundo Fernando Capez, o Desenvolvimento Mental Incompleto, é: ―O
desenvolvimento que ainda não se concluiu, devido à recente idade
cronológica do agente, ou a sua falta de convivência em sociedade,
138
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte geral. 12ª Ed. SãoPaulo: Saraiva, 2008.
249
ocasionando imaturidade mental e emocional. No entanto, com a evolução da
idade ou incremento das relações sociais, a tendência é de ser atingida a plena
potencialidade.‖ 139
Conforme já explanado, por serem os menores de 18 (dezoito) anos de
idade, Inimputáveis, a responsabilização dos mesmos não será regida pelos
parâmetros do Código Penal, não sofrendo estes sanção penal, pela prática de
ilícito penal, em decorrência da ausência de um dos requisitos da
Culpabilidade. Devendo estes, estarem sujeitos ao procedimento e às medidas
socioeducativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei
8.069/90).
Diante do exposto, nos é possível concluir, que, ao contrário do que vem
sendo erroneamente afirmado por alguns poucos desinformados e do que a
mídia dá a entender, o fato de nossa Constituição declarar os menores de 18
(dezoito) anos de idade, penalmente inimputáveis, não os declara impunes e
livres de qualquer responsabilização pelas conseqüências dos atos por estes
praticados.
2.3 Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90)
O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, apoiado nos direitos e
garantias trazidos pela Constituição de 1988, veio ampliar a proteção integral
dos direitos das crianças e adolescentes de forma indiscriminada.
A partir da entrada em vigor da Lei 8.069/90, as crianças e adolescentes
passaram a receber um tratamento jurídico especial, indiscriminado e
individualizado, tendo os seus direitos e garantias, recebido uma maior
atenção, devido a especial condição das crianças e adolescentes as quais, por
sua peculiar condição de pessoas em desenvolvimento, passaram a receber
proteção e prioridade absolutas.
De acordo com o disposto pelo ECA, são protegidos por ele, todos os
menores que se encontrem na faixa etária estabelecida entre 0 (zero) e 18
(dezoito) anos incompletos, visto que, na data em que o individuo completa 18
(dezoito) anos, este atinge a maioridade, deixando a sua condição especial.
Segundo o ECA, são consideradas crianças todos os menores de 12 (doze)
139
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte geral. 12ª Ed. SãoPaulo: Saraiva, 2008.
250
anos e adolescentes, todos os maiores de 12 (doze) e menores de 18 (dezoito)
anos de idade.
Importante salientar, que os menores, considerados incapazes e que
estão enquadrados no ECA, não cometem crime, mas sim Infração, visto que,
de acordo com o Código Penal, os menores de 18 (dezoito) anos são
considerados inimputáveis, afinal, como já explicado no tópico anterior, um dos
requisitos para a culpabilidade é a Imputabilidade.
Em resposta e como punição aos Atos Infracionais cometidos por
crianças e adolescentes, o ECA estabelece vários tipos de medidas visando o
restabelecimento, reeducação e resociabilização do menor, que vão desde
uma simples advertência, até mesmo a internação em estabelecimento
educacional, conforme inteligência do artigo 112 do ECA, ipsis verbis:
Art. 112. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente
poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas:
I - advertência; II - obrigação de reparar o dano; III - prestação de serviços à
comunidade; IV - liberdade assistida; V - inserção em regime de semiliberdade; VI - internação em estabelecimento educacional; VII - qualquer uma
das previstas no art. 101, I a VI. § 1º A medida aplicada ao adolescente levará
em conta a sua capacidade de cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade da
infração. § 2º Em hipótese alguma e sob pretexto algum, será admitida a
prestação de trabalho forçado. § 3º Os adolescentes portadores de doença ou
deficiência mental receberão tratamento individual e especializado, em local
adequado às suas condições.140
Conforme podemos observar, não faltam medidas socioeducativas para
promover a reeducação dos menores que cometem atos infracionais, o que
derruba por inteiro, a tese de que o ordenamento jurídico brasileiro não possui
instrumentos nem opções legislativas eficientes para impedir que os jovens,
menores, prossigam cometendo infrações e permanecendo impunes.
2.4 Constitucionalidade da Redução da Maioridade Penal
Neste ponto do presente trabalho científico, nos importaremos em
abordar o tema ―Redução da Maioridade Penal‖, visando discutir apenas sobre
140
Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA
251
seus
fatores
técnico-legais,
ou
seja,
discorreremos
acerca
da
Constitucionalidade ou não da alteração da idade pré-fixada em nosso
ordenamento jurídico, para delimitar o Instituto da Maioridade Penal, sem
adentrarmos, pelo menos neste ponto, na discussão acerca de sua
conveniência e oportunidade.
Isto porque, tentaremos realizar uma análise jurídica imparcial, sem nos
deixarmos levar por opiniões favoráveis ou desfavoráveis, e seus possíveis
motivos; com foco exclusivo na possibilidade jurídica da citada alteração
normativa em nosso ordenamento jurídico.
Temos que, o Instituto da Maioridade Penal, está de pronto estabelecido
em nossa Carta Magna, a Constituição da República Federativa do Brasil de
1988, em seu artigo 228, que dispõe: ―São penalmente inimputáveis os
menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.‖141
Disposição
semelhante
pode
ser
encontrada
em
legislação
infraconstitucional, como nos é possível observar no artigo 27 de nosso Código
Penal, que também determina que ―são penalmente inimputáveis os menores
de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.”
Há quem afirme que uma possível Emenda Constitucional que viesse a
alterar o artigo 228 de nossa Constituição, reduzindo a maioridade penal ali
prevista, qual seja, a de 18 (dezoito) anos de idade, seria inconstitucional, pois,
o referido artigo trata-se de uma garantia individual, o que o torna,
incontestavelmente, uma cláusula pétrea. Partindo-se do pressuposto de que,
como já é de entendimento pacífico, os direitos e garantias individuais não
estão afixados exaustivamente no rol estipulado no artigo 5º de nossa
Constituição.
Isto nos leva a entender que o Instituto da Maioridade Penal é cláusula
constitucional não formalmente falando, ou seja, não apenas por estar inserida
em nosso texto constitucional, mas sim, por apresentar uma essência
constitucional, vez que representa uma garantia individual, tratando-se de
cláusula materialmente constitucional.
141
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Ed. 35. São Paulo: Saraiva, 2007.
252
Entretanto, temos que estar atentos a um pequeno detalhe, o qual será
de fundamental importância para a formação de um posicionamento acerca da
constitucionalidade ou não da alteração desta cláusula constitucional. É de
fundamental importância compreendermos a relevante distinção que pode ser
observada entre o Termo Inicial da Maioridade Penal e o próprio Instituto da
Maioridade Penal.
Temos que nas últimas décadas, a sociedade vem passando por rápidas
mudanças e evoluções consideráveis, de modo que, necessitamos de um
ordenamento jurídico dinâmico para que possamos pelo menos tentar
acompanhar, normativamente, o desenvolvimento social. De modo que, o
estabelecimento de parâmetros fixos em nossa Carta Magna, a qual tem por
função encabeçar toda a produção normativa infraconstitucional, acabaria por
causar um engessamento e, portanto, um atraso em nosso ordenamento, o
qual restaria impossibilitando de acompanhar as mudanças e necessidades
sociais.
Com atual cenário social, podemos perceber que menores de 18
(dezoito) anos praticam toda sorte de infrações penais, demonstrando total
capacidade de discernimento e compreensão dos ilícitos por eles cometidos.
Sendo assim, seria tarefa do legislador infraconstitucional, adaptar o Termo
Inicial da Maioridade Penal aos dias atuais, sem necessidade de uma alteração
Constitucional, o que poderia ocorrer caso a nossa Constituição não tivesse
disposto expressamente uma idade limite para tal.
Diante do exposto, fica evidente que o Termo Inicial para a maioridade
penal, qual seja, 18 (dezoito) anos de idade, não pode engessar o sistema de
responsabilização penal no País, visto que este tem por papel acompanhar o
dinamismo social, o que nos levar a concluir que apesar de o Instituto da
Maioridade Penal ser indiscutivelmente uma cláusula pétrea, o mesmo não
pode ser dito de seu Termo Inicial.
253
2.5 Instituto da Maioridade Penal x Termo Inicial da
Maioridade Penal
A partir da construção do pensamento supracitado, nos foi possível
perceber a necessidade de atentar-se para a grande distinção existente entre o
Instituto da Maioridade Penal e o seu Termo Inicial.
A priori, estes conceitos parecem um pouco confusos, visto que, no
artigo 228 do texto Constitucional, nos é possível encontrar ambos os
aspectos. Entretanto, conforme o pensamento construído até aqui, já nos é
possível concluir que é indiscutível que o Instituo da Maioridade Penal é sim
uma garantia constitucional, dada em abstrato a todo e qualquer cidadão. O
que é bem diferente de emprestar a intitulação de cláusula pétrea ao seu
Termo Inicial, sob pena de estarmos engessando o nosso ordenamento jurídico
frente a nossa própria evolução social.
Conforme destacou o Ministro Gilmar Mendes na ADPF 33-MC (DJ de
06/08/2004), as cláusulas pétreas traduzem a idéia de perpetuidade, sendo
portanto, garantias de eternidade, a qual deve ser estendida ao Instituto da
Maioridade Penal, mas, não ao seu Termo Inicial, visto que aquela distingue-se
da última, uma vez que necessita atender à evolução da sociedade e do
próprio Direito.
Conforme também destacou o Ministro Sepúlveda Pertence, na ADInMC 2024/DF, “as limitações materiais ao poder constituinte de reforma, que o
artigo 60 §4º, da Lei Fundamental enumera, não significam a intangibilidade
literal da respectiva disciplina na Constituição Originária, mas apenas a
proteção do núcleo essencial dos princípios e institutos cuja preservação nelas
se protege”.142
No estudo em questão, temos que a essência constitucional, ou seja, o
núcleo essencial trata da mínima e razoável capacidade para o cidadão ser
responsabilizado penalmente, o que pode ser definido pelo Instituto da
Maioridade Penal, o qual traz consigo, como elemento secundário, o Termo
Inicial, o qual poderá e deverá ser alterado sempre que a evolução social o
exigir.
142
ADIn MC 2024/DF
254
De modo que, podemos concluir, que a redução do termo inicial da
Maioridade Penal, é sim, constitucional, sendo possível a modificação, não só
da legislação infraconstitucional, como da própria Constituição da República.
2.6 Oportunidade e Conveniência
Diante de todos os esclarecimentos e informações já prestados neste
artigo, percorrendo um caminho necessário para a total compreensão dos
institutos que compõe o tema em questão, nos foi possível ter uma idéia geral
acerca dos critérios utilizados para a determinação do Instituto da Maioridade
Penal, como também das disposições constitucionais e infraconstitucionais
acerca do assunto, discorrendo também, sobre a possibilidade de alteração do
termo inicial desta instituição do Direito Brasileiro.
Uma vez estudados os pontos supracitados, e aferida a possibilidade
constitucional de mundana em nosso ordenamento jurídico, chega o momento
em que nos devemos perguntar qual a real necessidade, conveniência e
oportunidade da realização de modificações no termo inicial da Maioridade
Penal.
2.6.1 Argumentos Favoráveis à Redução da Maioridade Penal
Muitos são aqueles que simpatizam com a idéia de Redução do Termo
Inicial da Maioridade Penal, e de forma geral, podemos sempre perceber a
forte influência trazida à população pela mídia com suas matérias
sensacionalistas, assim como o aproveitamento de políticos utilizando-se de
temas extremamente polêmicos para se promover à custa de discursos
demagógicos.
Temos que grande parte da população e de desinformados, acabam por
apoiar a idéia de Redução da Maioridade Penal, pelo pensamento de que, o
menor, inimputável, possui a excepcional regalia de impunidade perante a lei.
Pensamento este que recebe amplas contribuições da mídia, como também do
próprio Estado e seus representantes, que por falta de interesse com o bem
estar comum da população e por uma total displicência com a administração do
Estado, acabam por contribuir com a insegurança jurídica, criando assim um
sentimento comum de impunidade dos menores infratores.
255
Não podemos, também, olvidar as inúmeras manifestações realizadas
por famílias e grupos sociais injustiçados, os quais por terem sofrido grandes
prejuízos e até mesmo perdido membros de suas famílias; pelas infrações e
condutas antijurídicas cometidas por menores utilizados por bandos e
quadrilhas na prática de crimes, acabam, movidos pelo calor do momento e
pelo resultante ódio, mágoa e ressentimento, reivindicando a Redução da
Maioridade Penal, não por enquadrarem seu raciocínio na busca do bem
comum social, mas pela intensa vontade de realizar justiça a qualquer preço e
ter suas mentes e corações momentaneamente tranqüilizados, mediante a
sobeja de vingança; de ver destruída a vida desse menor, nas mesmas ou em
piores proporções do que sua vítima.
Contudo, devemos estar atentos, que a tomada de uma determinada
medida legislativa, deve ser tomada com base em um longo estudo e avaliação
de suas possíveis conseqüências, para que, o legislador possa ter a certeza de
que tomou a decisão mais acertada, contribuindo com o melhoramento da
sociedade como um todo, de modo que, é necessário que este esteja livre de
concepções preestabelecidas e viciadas por um momento de intranqüilidade e
clamor social popular, agravado pelo estardalhaço causado pela mídia, o que
poderia acarretar a formação de critérios extremamente punitivos e destrutivos,
deixando no esquecimento, o caráter ressociabilizador da pena.
Entretanto, não são apenas estes os interessados na modificação dos
dispositivos acerca da Maioridade Penal. Afinal, alguns estudiosos afirmam a
adequação da Redução da Maioridade Penal com base no fato dos jovens,
menores de dezoito anos de idade, já estarem aptos à casar, votar e tomar
outras relevantes decisões, além do fato de que na evoluída sociedade em que
vivemos, já é de notória e simples compreensão que jovens de cerca de
dezesseis anos já possuem plena capacidade de entendimento
e
compreensão dos atos por estes praticados, devendo assim serem penalmente
responsabilizados.
Além destes, uma considerável corrente de estudiosos, afirma que ao
nos determos mais diretamente ao Estatuto da Criança e do Adolescente,
legislação responsável pelo enquadramento das condutas delituosas realizadas
256
por menores, estamos diante de um Estatuto ultrapassado, que não
acompanhou o progresso e desenvolvimento social do presente século,
concluindo, assim, pelo apontamento de que esta legislação encontra-se
bastante defasada e insuficiente, demonstrando-se obsoleta, arcaica e
contrária à própria dinâmica do direito.
2.6.2 Argumentos Desfavoráveis à Redução da Maioridade Penal
Na contramão daqueles que defendem a Redução do Termo Inicial da
Maioridade Penal, temos um grande contingente de juristas e estudiosos, os
quais acreditam que a simples alteração do Termo Inicial, não proporcionará
um melhoramento social, visto que a necessidade evidente é de se tratar a
causa da formação de menores delinqüentes e não de se tentar punir os
trágicos resultados provenientes de uma sociedade cheia de falhas.
Conforme já exposto, é bem sabido que uma grande parcela da
sociedade que pugna pela redução do Termo Inicial da Maioridade Penal, o faz
não com o intuito de trazer um melhoramento social, tentamdp resolver e
também reduzir a criminalidade juvenil em nosso país, mas, com o objetivo de
obter uma satisfação pessoal, tentando alimentar um desejo de vingança, o
qual é movido por uma mágoa e insatisfação de grande vulto, agravada pelo
grande clamor social, consubstanciado no estardalhaço causado pela mídia.
Entretanto, conforme explana a corrente contrária à modificação do
Instituto da Maioridade Penal, tornar o menor imputável seria desarrazoado,
contraproducente e inoficioso, tendo em vista que atacar os efeitos de uma
sociedade problemática, má constituída e cheia de injustiças sociais, não
resolverá seus problemas, mas apenas contribuirá para o aumento da violência
e injustiça social, movidos por um sentimento repressivo de vingança.
A melhor e mais sábia decisão, a nosso ver, aparenta ser a preocupação
com as causas da formação de uma juventude, problemática, violenta e
criminosa, de modo que, a preocupação inicial, deve estar voltada para os
motivos e razões que levaram a formação de menores infratores, para então,
realizar-se um trabalho voltado à recuperação dos mesmos, tendo em vista
que, para estes indivíduos em plena formação mental, é de vital importância
que o caráter ressociabilizador se sobreponha ao caráter punitivo das penas.
257
Devemos ainda estar atentos ao fato de que, reduzido o Termo Inicial da
Maioridade Penal, e sendo o jovem, menor, abduzido pelo cárcere, ficando lá
trancafiado juntamente a outros milhares de delinqüentes e infratores, estará
de vez inserido no mundo do crime, o que, pelo degradante sistema carcerário
de nosso país, que conta com possibilidades mínimas de reeducação e
ressociabilização, acaba por se tornar uma verdadeira faculdade do crime, de
modo que a adequação do menor infrator ao Código Penal, acabará por trazer
danos irreversíveis na formação psicológica e moral
dos jovens e
adolescentes, que nutridos por uma ideologia vingativa e de ódio contra a
sociedade, o Estado e suas instituições, acabará por refletir para o meio social
toda a desgraça, ódio e violência instaurados em sua vida.
Para que se ataque o cerne da questão e se obtenha medidas realmente
capazes de lograr um melhoramento social e uma juventude promissora, é
indispensável que sejam realizados investimentos voltados à educação e
recuperação social, e não em políticas repressoras, como a redução da idade
limite para responsabilidade penal, que tanto discutimos. Devemos estar
sempre atentos e focados na tentativa de que os jovens e as futuras gerações
não sejam corrompidos pela falta de oportunidade e condições, causados por
uma repressão inconseqüente e infundada. O que nos leva a concluir que o
atual problema enfrentado por nossa sociedade é de cunho estritamente
cultural, social e educacional e não de cunho legislativo.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de tudo que foi exposto neste trabalho científico, nos é possível
perceber que a Redução do Termo Inicial da Maioridade Penal, é um assunto
de grande polêmica, o qual sempre enseja grandes discussões, devido à sua
notável importância dentro do sistema de responsabilização penal brasileiro,
afinal, a partir da definição deste termo estaremos decidindo o critério
fundamental para responsabilização penal de milhares de cidadãos, os quais
estão separados pela tênue linha da imputabilidade.
O que fica evidente é que, um assunto de tal importância, não pode ser
discutido com superficialidade, ou no calor do momento, tendo em vista que
258
uma possível alteração em nossa Constituição ensejaria diversas modificações
no sistema de responsabilização penal brasileiro, motivo pelo qual, temos que
analisar todas as circunstâncias sobre uma égide de imparcialidade, focados
em sopesar os prós e contras e a partir desta análise encontrar qual a solução
cabível, tida como viável para o bem comum em busca da paz social.
Conforme explanado, verificamos que o critério para estabelecimento do
Termo Inicial da Maioridade Penal no Brasil é o critério Etário, também
chamado Biológico, que se baseia apenas na idade do agente para determinar
ou não sua imputabilidade; é certo que este critério não se mostra perfeito e
livre de falhas, entretanto, para a realidade atual de nosso país, vem se
mostrando o mais prático, visto que o estabelecimento de um critério
puramente objetivo contribui por livrar o Instituto da Maioridade Penal de
qualquer influência externa, devido a tamanha subjetividade de critérios como o
biopsicológico, que poderiam se transformar em instrumentos hábeis a
promoção de grandes injustiças.
Confirmamos que a redução do Termo Inicial da Maioridade Penal é
Constitucional, sendo possível a alteração da idade mínima que define este
liame acerca da imputabilidade. Entretanto, não se pode olvidar que a garantia
da Maioridade Penal não pode, sobre qualquer circunstância, ser suprimida da
constituição, pois, a garantia em si, é uma cláusula pétrea. Parte deste ponto, a
necessidade de sabermos diferenciar o Instituto da Maioridade Penal, do
Termo Inicial da Maioridade, o qual deve ser modificado sempre que
necessário, acompanhando as mudanças e evolução social, para evitar o
engessamento de nosso direito.
No entanto, devemos estar atentos ao verdadeiro cerne da questão, qual
seja, a necessidade, conveniência e oportunidade acerca da modificação e
conseqüente redução do Termo Inicial da Maioridade Penal. Seria esta, mesmo
necessária? Seria ela suficiente para resolver ou pelo menos apaziguar a
tamanha violência e impunidade infantil presente em nosso país?
Acreditamos que a solução para tal dilema encontra-se na base de
nossa estruturação social e educacional. Não podemos apenas reduzir a idade
em que o menor será considerado imputável e esperar que isto solucione todos
259
os problemas de nossa juventude. O que a sociedade necessita é de uma nova
reestruturação, voltada à educação dos jovens e crianças, criando uma
verdadeira consciência, a qual não poderá ser formada por simples alterações
legislativas.
Oportuno é citar, que em um dos ensinamentos deixados por Jesus, o
qual pode ser encontrado no livro de Marcos 2.21 da Bíblia Sagrada, foi dito:
―Ninguém deita remendo de pano novo em vestido velho: doutra sorte, o
mesmo remendo novo, rompe o velho e a rotura fica maior.‖143
De fato, não podemos esperar que uma simples alteração legislativa,
venha a solucionar os problemas dos jovens e adolescentes em nosso país,
sob pena que este se torne um problema maior e incontrolável. Com a atual
consciência da sociedade brasileira, a redução do Termo Inicial da Maioridade
Penal, não nos traria uma melhora significativa, mas contribuiria para a total
corrupção dos jovens que viessem a ser presos e colocados em meio a
bandidos e meliantes, numa verdadeira faculdade do crime, o que contribuiria
para a total depreciação do caráter de um jovem.
Conforme nos foi possível observar, no atual ordenamento jurídico, não
faltam punições e medidas ressocializadoras direcionadas aos menores
infratores. O verdadeiro problema é a sensação de impunidade que se
deflagrou em nosso país. Por este fato, as alterações e melhorias que são
realmente
necessárias,
não
estão em nosso
ordenamento,
mas na
necessidade de termos um país resguardado por uma Segurança Jurídica, ou
seja, com a certeza de que os atos infracionais serão de fato punidos,
garantindo-se o fim da impunidade hoje presente.
Concluímos que a verdadeira solução não está em alterações
legislativas, mas em melhorias sociais. O país precisa urgentemente de
investimentos em educação, em projetos sociais e culturais, contribuindo para
a formação de uma nova consciência, para a formação de um país mais
centrado e ajustado, com uma juventude forte e responsável, na qual medidas
legislativas seriam realmente eficientes. Afinal, remendo novo em roupagem
velha, causará uma ruptura ainda maior, portanto, busquemos a formação de
143
BÍBLIA, Português. Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Brasília: Sociedade
Bíblica do Brasil, 1969.
260
uma nova roupagem, ao invés de tentarmos remendar os velhos buracos de
uma sociedade desajustada.
4. REFERÊNCIAS
BÍBLIA, Português. Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida.
Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Ed. 35. São Paulo:
Editora Saraiva, 2007.
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 12ª Ed. SãoPaulo:
Saraiva, 2008.
D'URSO, Luíz Flávio Borges. A questão da maioridade penal e a
FEBEM. Jus Navigandi, Teresina, ano 3, n. 35, out. 1999. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1653>. Acesso em: 09 de
novembro de 2009.
DELMANTO, Celso; DELMANTO, Roberto e DELMANTO JÚNIOR, Roberto.
Código Penal Comentado. 7ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 7ª Ed. Rio de Janeiro:
Impetus, 2006.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 10ª Ed. São Paulo:
Método, 2007.
MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 20ª Ed. São Paulo: Atlas, 2006.
SILVA, Sônia Maria Teixeira da. Imputabilidade penal e a redução da idade
de 18 para 16 anos. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 38, jan. 2000.
261
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1651>. Acesso
em: 09 de Novembro de 2009.
262
ESTUPRO E DÉBITO CONJUGAL
Níobe Neves Henriques144
Francisco Iasley Lopes de Almeida145
RESUMO
Este artigo tem por objetivo analisar o crime de estupro descrito no art. 213 do Código
Penal em consonância com o débito conjugal, que constitui um dos deveres do
casamento previsto no artigo 1566, II do Código Civil. A partir de uma abordagem
relacional e estrutural, iremos percorrer a origem e a evolução desses institutos como
também seu tratamento em ordenamento jurídico brasileiro, apresentando que o dever
de coabitação abriria precedência para o estupro conjugal, mas tal argumento não
poderia ser aceito para a exclusão do delito de estupro conjugal.
Palavras-chave: Estupro, débito conjugal, dever de coabitação.
144
145
Graduanda em Direito, faculdade CESREI. [email protected]
Orientador. Prof. de direito penal, faculdade CESREI. [email protected]
263
1. INTRODUÇÃO
Para entendermos melhor como funciona a relação entre estupro e o débito
conjugal, e os muitos significados do fenômeno da coerção sexual conjugal na qual o
direito de coabitação geraria o direito-dever dos cônjuges cederem reciprocamente os
seus corpos à mútua satisfação sexual, lançaremos mão inicialmente do conceito de
débito conjugal e suas várias nuances para chegarmos finalmente ao estudo do estupro
conjugal, demonstrando que aquele não permite a descaracterização típica deste delito
sexual. Nesse diapasão, recorremos a (re)visitar o passado, num intuito de compreender
a referida figura no decorrer dos séculos, posto ser impossível ter o exato conhecimento
de um instituto jurídico sem se proceder a seu exame histórico.
2. A Origem do Débito Conjugal
O débito conjugal e o dever de coabitação já eram encontrados entre os
romanos, tendo em vista que nessa sociedade havia a possibilidade de repúdio e do
divórcio bona gratia por questões relativas ao inadimplemento deste dever e, em
especial, voltado às relações sexuais.
No entanto, podemos afirmar que a criação do débito conjugal passou a ter força
a partir do Direito Canônico, cujo objetivo em relação a esse débito era disciplinar as
relações sexuais havidas entre os cônjuges.
Era uma forma da igreja legalizar e
disciplinar um dos deveres matrimoniais, qual seja, o dever de coabitação. O casamento
passou a ser disciplinado por três elementos básicos: seu caráter sacramental, a cópula e
a indissolubilidade. Assim sendo, o casamento canônico era aquele em que se dava “a
união legal de um homem e de uma mulher, elevada por Cristo a Sacramento, para a
comunhão de vida recíproca e perpétua, não só espiritual, mas, também, corporal”.
Na Idade Média, em relação ao débito, os cônjuges não podiam recusar a
prestação, no entanto os mesmos poderiam entre si, convergir num pacto de continência,
consistente num acordo entre eles de permanecerem por um certo período desobrigrados
do débito sexual. Esse tipo de pacto era comum à época, e poderia durar alguns meses,
ou mesmo alguns anos, a depender da vontade do casal.
264
Na consolidação da noção contratual do casamento, na qual entende a união
carnal como uma das cláusulas desse contrato, poder-se-ia em casos de inadimplemento
permitir a rescisão do mesmo, com o desenlace matrimonial. Deste modo com a
permanência majoritária em nossa ordem jurídica desta noção contratual do casamento
ensejou a transposição equivocada para o nosso tempo deste instituto subsidiário: o
débito conjugal.
3. O Débito Conjugal no Direito Brasileiro
Para maior clareza com relação ao débito conjugal no Brasil é necessário
percorremos a história da sua evolução no nosso ordenamento jurídico.
Como ficou claro, existe uma vinculação do nosso Direito com o Direito
Canônico, nossas raízes jurídicas encontram-se na primeira metade do século XIX,
porém recepcionando um instrumental legal do século XVII (as Ordenações Filipinas,
que passaram a ter vigência no Brasil com uma lei Imperial de 20 de outubro de 1823).
Sendo para estas ordenações de suma importância a conjunção carnal para a
concretização dos casamentos da época, constituindo um dever matrimonial cujo
descumprimento redundaria extinção da relação conjugal.
4. O Débito Conjugal como Dever do Casamento
O débito conjugal é apresentado como uma das facetas do dever de coabitação
entre os nubentes. Coabitar seria deste modo, a vida em comum dos cônjuges, o habitar
por estes no domicilio conjugal em comum.
Este instituto teria base no Código Civil de 1916, no seu art. 231, inciso II, sendo
recepcionado agora pelo art. 1.566 do Código Civil de 2002, nos seguintes termos:
“São deveres de ambos os cônjuges:
I - fidelidade recíproca;
II - vida em comum, no domicílio conjugal;
III - mútua assistência;
IV – sustento, guarda e educação dos filhos;
v - respeito e consideração mútuos.”
265
Deter-nos-emos aqui a análise do inciso II deste artigo.
A vida em comum, no domicílio conjugal seria como uma das obrigações a que
os cônjuges se submetem para comporem, perante o Estado, a dita família casamentária.
Apresentaremos agora algumas conceituações dadas por renomados doutrinadores
a respeito do direito de um consorte sobre o corpo do outro, bem como o respectivo
dever de prestação carnal.
Fernando Pinto conceitua como sendo:
“Dever que ambos têm de habitar juntos e,
mais do que isso, de viverem tão intimamente que
sejam duos in carne una, o que implicaria não só o
compartilharem o mesmo teto, mas a demanda
conjunta dos mesmos objetivos, de uma vivência
irmanada que dê satisfação aos seus ideais de vida
e aos seus instintos, entre os quais assume maior
relevo o sexual .” (apud CAHALI
Yussef Said).
Venosa afirma que:
“A vida em comum no domicílio conjugal é
decorrência da união de corpo e de espírito. Somente em
situações de plena exceção é de admitir-se quebra ao
preceito. Nessa expressão legal, a dicção diz menos do que
aparenta, emprestada que foi do direito canônico. Nesse
eufemismo, na convivência sob o mesmo teto está a
compreensão do débito conjugal, a satisfação recíproca das
necessidades sexuais. Embora não constitua elemento
fundamental do casamento, sua ausência, não tolerada ou
não aceita pelo outro cônjuge, é motivo de separação O
princípio não é absoluto, e sua falta não implica
necessariamente desfazimento da affectio maritalis. Afora,
porém, as hipóteses de recusa legítima ou justa, o dever de
coabitação é indeclinável. Nesse sentido, é absolutamente
ineficaz qualquer pacto entre os cônjuges a fim de dispensar
o débito conjugal ou a coabitação. Não pode, porém, o
266
cônjuge obrigar o outro a cumprir o dever, sob pena de
violação da liberdade individual.” (VENOSA, 2008)
Fagner Cordeiro Gomes enfatiza que: “A coabitação representa mais que a
simples convivência sob o mesmo teto [...]. Não só convivência, mas união carnal [...].
Importa-se assim a coabitação a permanente satisfação desse débito.” (GOMES, 2003)
Álvaro Villaça Azevedo percebe a coabitação como sendo: “A imposição legal,
de ordem pública, aos cônjuges de seu relacionamento fisiológico, sexual, recíproco,
enquanto durar a convivência no lar conjugal”. (AZEVEDO,1976)
Neste diapasão, débito conjugal consiste na vivência em comunhão, com a
cessão dos corpos do casal um para com o outro, sob uma conotação sexual.
No entanto, por tudo que foi exposto, deve ficar claro que o mantimento da vida
sexual em decorrência de violência, coação ou constrangimento é tido de forma ilícita,
não sendo admitida em nossa ordem jurídica. Desse modo, a relação sexual não
consentida entre os cônjuges constitui crime de estupro, o qual não é desconfigurado
sob a alegação de exercício do direito ao débito conjugal. O simples fato de serem os
casados não dá espaço para que os cônjuges fiquem impunes à prática delituosa sob o
pretexto de ter um “direito” sobre a mulher ou sobre o homem.
Antes de adentramos ao estudo do estupro conjugal, faremos uma análise
histórica e conceitual em relação ao estupro para entendermos a ligação destes dois
institutos.
Conceito de Estupro
O estupro é um crime geralmente clandestino, sub-relatado e pouco conhecido.
Sua real freqüência é desconhecida porque as vítimas hesitam em informar, devido à
humilhação, medo, sentimentos de culpa, desconhecimento sobre as Leis e descrédito
no sistema judicial.
267
O conceito de estupro foi alterado pela Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009,
sendo necessário, tendo em vista esta alteração, a apresentação da antiga redação para
darmos um melhor andamento ao nosso estudo.
A antiga redação conceitua estupro como sendo: “art. 213. Constranger, mulher
à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça: pena – reclusão de seis a dez
anos”.
O novo conceito de estupro está previsto no artigo 213 do Código Penal e dista
que:
“Constranger alguém, mediante violência ou
grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar
ou permitir que com ele se pratique outro ato
libidinoso:
Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
§1° Se da conduta resulta lesão corporal de
natureza grave ou se a vítima é menor de 18
(dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:
Pena – reclusão, de 8 (oito) a 12(doze) anos.
§2° Se da conduta resulta morte:
Pena- reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.
Essa nova conceituação de estupro, dada pela Lei nº 12.015, de 7 de agosto de
2009, é mais abrangente e ampliou a sua aplicação para os casos que, na lei anterior,
eram tratados como atentado violento ao pudor, quando o constrangimento fosse para
prática de ato libidinoso diverso da conjunção carnal.
Pela legislação anterior, estupro era a violência sexual praticada só contra mulher,
e apenas quando houvesse "conjunção carnal".
As outras formas de sexo forçado (como oral ou anal) configurariam atos
libidinosos diversos da cópula vagínica, enquadrando-se no dito crime de atentado
violento ao pudor. Agora, essas práticas passaram a ser consideradas estupro. No
entanto para configurar o crime, há a necessidade de o ato ter sido praticado "mediante
violência ou grave ameaça". Isso não mudou com a lei.
A nova lei prevê também duas circunstâncias qualificadoras, descritos nos
parágrafos do art. 213. O primeiro estabelece “se da conduta (estupro) resulta em lesão
268
corporal de natureza grave, ou se a vítima é menor de 18 anos e maior de 14, a pena de
reclusão passa a ser de 8 a 12 anos de reclusão. O segundo parágrafo prevê que, “se da
conduta resulta morte”, a pena aumenta, indo para os patamares de 12 a 30 anos de
reclusão.
5. Penalidades aplicadas à liberdade sexual no Mundo
Esse tipo de delito teve sempre repercussão e sempre foi repreendido nas várias
civilizações. Apresentaremos agora alguns modos de repressão desse delito em algumas
civilizações.
Para os egípcios, a punição consistia na mutilação. Na Roma Antiga, era
aplicada a pena capital. Na Idade Média, punia-se inicialmente com a morte, mas em
razão de sua severidade foi substituída pela pena de castração e perda dos olhos.
A legislação hebraica previa que em caso de estupro aplicava-se a pena de morte
ao homem que violasse mulher desposada, isto é, prometida em casamento. Se se
tratasse de mulher virgem, porém não desposava, devia ele pagar cinqüenta ciclos de
prata ao pai da vítima e casar com ela.
No período medieval, seguiu-se aplicando a pena capital ao estuprador. Os
praxistas nessa época chamavam de próprio o estupro praticado contra a mulher virgem
de que resultasse defloramento, sendo impróprio, no caso contrário. O direito canônico
proibia e condenava, como condena até hoje, toda relação sexual fora do matrimônio,
aplicando sanções espirituais.
Como podemos perceber o estupro sempre teve punições ao longo das
civilizações, posto ser ato que afronta a dignidade da pessoa humana.
Em relação ao Brasil, eram as ordenações Filipinas que teciam comentários
acerca do delito em análise.
6. Estupro Conjugal
Enfim chegamos ao estudo em questão. Na doutrina criminal existe muitas
discussões a respeito da possibilidade de o cônjuge ser ou não condenado pela prática
de estupro. Na jurisprudência evidenciamos em vários julgados, em sua maioria,
269
favoráveis à possibilidade de cominação de culpa do consorte que mantém relação
sexual sem o consentimento do outro. Concordamos com esse posicionamento, uma vez
que, havendo as condicionantes objetivas, quais sejam, o constrangimento mediante
violência ou grave ameaça, além da condicionante subjetiva, que é o dolo, ter-se-á
configurado o tipo penal e o agente causador deverá ser responsabilizado penalmente.
Não é pelo simples fato de serem casados os consortes que o marido ganha uma carta de
permissão para prática sexual, tornando-se isento de pena.
Em posição diametralmente oposta, existe uma corrente minoritária que entende,
em virtude do chamado débito conjugal, previsto pelo Código Civil (art. 1.566, II), o
marido que obrigasse sua esposa ao ato sexual agiria acobertado pela causa de
justificação relativa ao exercício regular de um direito, defendida por alguns
doutrinadores como Chauveau e Hélie: “Que considerando dever, no estupro, a cópula
ser ilícita, sustentam que a violência empregada pelo marido contra a mulher não
constitui este delito. (Apud DINIZ, Maria Helena, 1998)
Magalhães Noronha possui o mesmo entendimento, condiciona a configuração
do tipo do art. 213 do Código Penal em vigor: "A violência por parte do marido não
constituirá, em princípio, crime de estupro, desde que a razão da esposa para não aceder
à união sexual seja mero capricho ou fútil motivo”. (NORONHA, 1989)
Jesus explana da seguinte forma:
“Entendemos que o marido pode ser sujeito ativo do
crime de estupro contra a própria esposa. Embora
com o casamento surja o direito de manter
relacionamento sexual, tal direito não autoriza o
marido a forçar a mulher ao ato sexual, empregando
contra ela a violência física ou moral que caracteriza
o estupro. Não fica a mulher, com o casamento,
sujeita aos caprichos do marido em matéria sexual,
obrigada a manter relações sexuais quando e onde
este quiser. Não perde o direito de dispor de seu
corpo, ou seja, o direito de se negar ao ato sexual.
Assim, sempre que a mulher não consentir na
conjunção carnal e o marido a obrigar ao ato, com
violência
ou
grave
ameaça,
em
princípio
270
caracterizar-se-á o crime de estupro, desde que ela
tenha justa causa para a negativa.” (JESUS, 2002)
Delmanto, por sua vez, ratifica esse posicionamento, quando indica que:
“Quanto à possibilidade de o marido ser agente de
crime de estupro praticado contra a esposa, a
doutrina tradicional entende que não pode sê-lo,
porquanto seria penalmente lícito constranger a
mulher a conjunção carnal, sendo que esta, por si só,
não é crime autônomo. Assim, embora a relação
sexual
voluntária
seja
lícita
ao
cônjuge,
o
constrangimento ilegal empregado para realizar a
conjunção carnal à força não constitui exercício
regular do direito, mas sim abuso de direito,
porquanto a lei civil não autoriza o uso de violência
física ou coação moral nas relações sexuais entre os
cônjuges”. (Apud GOMES, Luiz Flávio)
Mirabete, complementa esse posicionamento afirmando que:
“Embora a relação carnal voluntária seja lícita ao
cônjuge, é ilícita e criminosa a coação para a prática
do ato por ser incompatível com a dignidade da
mulher e a respeitabilidade do lar. A evolução dos
costumes, que determinou a igualdade de direitos
entre o homem e a mulher, justifica essa posição.
Como
remédio
injustificadamente
ao
caberá
cônjuge
apenas
rejeitado
a
separação
judicial.” (MIRABETE, 2010)
Ferraz, em ímpar comentário, explicita que:
“O estupro da mulher casada, praticado pelo marido,
não se confunde com a exigência do cumprimento
do débito conjugal; este é previsto inclusive no rol
dos deveres matrimoniais, se encontra inserido no
conteúdo da coabitação, e significa a possibilidade
do casal que se encontra sob o mesmo teto praticar
relações sexuais, porém não autoriza o marido ao
uso da força para obter relações sexuais com sua
271
esposa. (...) A violência sexual na vida conjugal
resulta na violação da integridade física e psíquica e
ao direito ao próprio corpo. A possibilidade de
reparação constitui para o cônjuge virago uma
compensação pelo sofrimento que lhe foi causado”.
(FERRAZ, 2001)
Como podemos ver, o dispositivo legal protege a liberdade sexual, aqui sendo
dado mais ênfase a mulher; o seu direito de dispor de seu próprio corpo, a sua liberdade
de escolha na prática de conjunção carnal. O texto do art. 213 do código penal é
taxativo: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção
carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Estas
condicionantes objetivas estando presentes, a despeito de variáveis subjetivas, devem
dar causa a imputação do fato ao autor da conduta, não importando se tratar de cônjuge
da vítima.
Assim sendo, evidenciamos que a maioria dos doutrinadores é do entendimento
da existência do delito de estupro praticado pelos cônjuges. Isso porque, segundo lições
dos mesmos externados linhas acima, o uso da violência não pode ser levado em conta,
uma vez que há constrangimento ilegal. A coação deve ser reprimida em todos os
sentidos. É importante ressaltar, também, que o estupro pode ocorrer na constância da
união estável.
O estupro da mulher casada, praticado pelo marido, não se confunde com a
exigência do cumprimento do débito conjugal; este é previsto inclusive no rol dos
deveres matrimoniais, se encontra inserido no conteúdo da coabitação, e significa a
possibilidade do casal que se encontra sob o mesmo teto praticar relações sexuais,
porém não autoriza o marido ao uso da força para obter relações sexuais com sua
esposa. A violência sexual na vida conjugal resulta na violação da integridade física e
psíquica e ao direito ao próprio corpo, além de violar a dignidade sexual.
É importante salientarmos que 50% dos estupros sofridos por mulheres no
Brasil são praticados por seus maridos, este dado foi fornecido pelo Portal da Violência
contra à mulher, demonstrando assim a concepção totalmente machista e até mesmo
sexista, qual seja, o da possibilidade de se entender lícita a conduta do marido que
atente contra o direito ao próprio corpo e a liberdade sexual de sua esposa.
272
Assim, para que essa situação não fique sem um tratamento específico, o
legislador brasileiro deveria inserir no tipo penal do crime de estupro uma qualificadora
que majorasse a penal quando a conduta delituosa fosse praticada por um dos cônjuges
contra o outro.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma ordem social de tradição patriarcal por muito tempo "consentiu" num certo
padrão de violência contra mulheres, designando ao homem o papel "ativo" na relação
social e sexual entre os sexos, ao mesmo tempo em que restringiu a sexualidade
feminina à passividade e à reprodução. Com o domínio econômico do homem enquanto
provedor, a dependência financeira feminina parecia explicar a aceitação de seus
"deveres conjugais" com o auxílio do dispositivo imposto pelo Código Civil do débito
conjugal, que incluíram o "serviço sexual".
A recusa feminina ao sexo, contrapoder que expressa o desejo de ser sujeito
sexual e comunica protestos contra as desilusões relacionadas aos parceiros, pode
colaborar para a exacerbação dos atos violentos masculinos. Na posição parcial de
"sujeitos do não", as mulheres revelam ainda uma situação de opressão quase nunca por
elas diretamente nomeada como violência: no nojo e repulsa que manifestam contra o
sexo cedido como débito conjugal.
O estupro conjugal não pode ser mais silenciado, não deve existir nenhum
dispositivo jurídico que abra precedência para que o homem viole o direito de sua
companheira em dispor de seu corpo e de seu sexo. O entendimento que todos devem
ter é da proteção a dignidade da pessoa humana, deste modo o marido que abusa
sexualmente de sua esposa, comete sim estupro e deve ser punido na forma da lei.
Deste modo não podemos aceitar que na altura da nossa evolução, concordemos
que a ingerência do Estado paternal determine não apenas qual será o comportamento
público dos seus cidadãos, mas também imprima-lhes determinações na sua esfera
íntima, ao qual percebemos geram conflitos difíceis de serem superados. O novo papel
da família contemporânea, não há de admitir qualquer ingerência do Estado, muito
menos num âmbito tão íntimo quanto o do regime copular intra-matrimonial.
273
Concluímos essas linhas dizendo que, acima de tudo, devem ser considerados os
princípios constitucionais de respeito e consideração mútuos, além dos da dignidade da
pessoa humana e da intimidade.
8. REFERÊNCIAS
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Dever de coabitação: inadimplemento. São Paulo: José
Bushatsky, 1976.
CAHALI, Yussef Said. Divórcio e separação. São Paulo: Revista dos Tribunais, p.
438.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro (Vol. 5 – Direito de Família).
São Paulo: Saraiva, 1998.
FERRAZ, Carolina Valença. A responsabilidade civil por dano moral e patrimonial
na separação judicial. São Paulo: PUC, 2001.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
GAMA, Guilherme Calmon. O companheirismo: uma espécie de família. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2001.
GOMES, Luiz Flávio. Marido pode cometer estupro contra a mulher. Disponível
em<http://www.mundojuridico.adv.br/html/artigos/documentos/texto525.htm>. Acesso
em 07 abr. 2010.
GOMES, Fagner Cordeiro. Débito conjugal: o corpo como dote. Jus Navigandi,
Teresina,
a.
7,
n.
68,
2
set.
2003.
Disponível
<http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=4303>. Acesso em 08 abr. 2010.
em:
274
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial. Rio de Janeiro: Impetus,
2010.
JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2002.
LOPES,
Bárbara
Martins.
Do
estupro
conjugal.
Disponível
em
http://jusvi.com/doutrinas_e_pecas/ver/1897. Acesso em 02 de abril de 2005.
MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. São Paulo: Atlas, 2003.
MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de Direito Penal: Parte Especial. São Paulo: Atlas,
2010.
NORONHA, E. Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. 19ª ed. São Paulo:
Saraiva, 1989.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direito de família. São Paulo : Atlas, 2008.
275
FINALIDADE DA PENA – Uma Discussão Acerca das Teorias
Penalizadoras
Ramon Aranha da Cruz146
Félix Araújo Neto147
RESUMO
O Direito Penal é o ramo do Direito que tem como missão a proteção dos valores fundamentais
da sociedade, e o Estado se utiliza de seu poder coercitivo para impor uma sanção para
aqueles que vierem a transgredir suas normas. E a esta sanção damos o nome de pena. Até
pouco tempo, as discussões sobre a finalidade da pena não haviam sido levadas em
consideração, apesar de já terem sido discutidas. Hoje, diversas são as teorias que preconizam
diferentes finalidades para a sanção, não chegando a haver um consenso entre os
doutrinadores sobre qual deve ser adotada. Muitas são as teorias, mas o crime é um fato
social, e, como tal, é bastante complexo, não podendo haver uma só resposta para um tal
questionamento. O que deve ser levado em conta é que a pena não é vingança ou apenas
castigo, mas também uma forma de ressocializar o indivíduo e os inserir novamente no
convívio social.
Palavras-chave: Direito Penal, Pena, Finalidade da Pena.
RESUMÉ
Le Droit Pénal est la branche du droit qui a pour mission la protection des valeurs
fondamentales de la société, et l'État utilise son pouvoir de coercition pour imposer une pénalité
pour ceux qui transgressent ses normes. Et nous appelons cette pénalité de ―peine‖. Jusqu'à
récemment, le discussions sur la finalité de la peine n'avait pas été pris en compte, bien
qu'ayant déjà été discutés. Aujourd'hui, il existe plusieurs théories qui suggèrent fins différentes
pour la peine, mais Il n‘y a pas un consensus parmi eux sur ce qui devrait être adoptées. Il
existe de nombreuses théories, mais le crime est un fait sociale, et en tant que telle, est assez
complexe et ne peut pas avoir une seule réponse à cette question. Quoi doivent être pris en
compte est que la peine n'est pas la vengeance ou châtiment, mais un moyen de re-socialiser
les individuels et les insérer de nouveau dans la societé.
Mots-clés: Droit Pénal, Peine, Finalité Pénal.
146
Graduando do Curso de Direito na Universidade Estadual da Paraíba – UEPB.
Endereço eletrônico: [email protected]
147
Doutor em Direito Penal e Política Criminal pela Universidade de Granada, Espanha.
Advogado Criminalista e Professor de Direito Penal e Processo Penal da Universidade
Estadual
da
Paraíba
e
da
CESREI
Faculdade.
Endereço
eletrônico:
[email protected]
276
1. INTRODUÇÃO
O Direito Penal é o ramo do Direito que tem como missão a proteção
"dos valores fundamentais para a subsistência do corpo social, tais como a
vida, a saúde, a liberdade, a propriedade, etc." (CAPEZ, 2007, p. 1). Desta
sucinta definição de Fernando Capez podemos compreender o verdadeiro
objetivo do Direito Penal. Mas, como é concretizado esse objetivo? Se o
Estado tem o dever de proteger os valores fundamentais da sociedade, deve o
mesmo mostrar que haverá sanções para aqueles que vierem a transgredir
suas normas. E a esta sanção damos o nome de pena.
Quando a lei é transgredida, o equilíbrio social antes estabelecido é
abalado, e é cobrado ao Estado, detentor do jus puniendi, o restabelecimento
do status quo social, através da punição no infrator. Entretanto, essa
sistemática nem sempre foi a mesma. Os Estados antigos não tinham dentro
de suas atribuições a aplicação da pena aos transgressores das leis, e, por ser
um fator de suma importância para o presente estudo, devemos examinar essa
evolução de maneira detalhada.
Em um primeiro momento, época esta em que não existia a
consolidação de um Estado como concebemos hoje, mas sim de estruturas
sociais organizadas politicamente sobre o comando de um líder, quando algum
indivíduo transgredia as regras locais, aquele que foi lesado tinha o direito de
puní-lo, não sendo esta punição necessariamente proporcional ao dano sofrido.
Era a chamada "vingança privada".
Com o abuso por parte dos ofendidos, surge o talião, regra que limitava
a reação à ofensa recebida, devendo a punição ser proporcional ao mal
recebido, ou seja, se alguém tivesse seu pai assassinado, poderia matar o pai
do criminoso. É a famosa máxima do "olho por olho, dente por dente". Esse
sistema foi adotado por muitos códigos antigos, como a Lei das XII Tábuas
(Roma) e o Código de Hamurábi (Babilônia).
Com a evolução cultural e social, a fase da vingança privada deu lugar à
vingança pública. Agora, com uma sociedade mais organizada e a formação
dos Estados, o homem passa a exigir a presença estatal na persecução penal
277
dos delitos. Por outro lado, os Estados almejavam esta atribuição para proteger
os seus governantes da aplicação de penas cruéis pelos seus subordinados.
Por fim, chegamos à contemporaneidade, onde vivemos sobre o império
das leis e todos somos igualmente subordinados aos ditames legais, tendo o
Estado-Juiz a atribuição de processar e julgar os criminosos, e, ao fim, provada
a sua culpa, de executar a pena a ele imposta.
Até pouco tempo atrás, as discussões sobre a finalidade da pena
aplicada não haviam sido levadas em consideração, apesar de já terem sido
discutidas desde a antiguidade por filósofos como Platão e Sêneca. E, por ser
o tema do presente estudo, devemos nos ater mais a este tópico e analisar a
evolução das teorias sobre a finalidade da pena e a sua aplicação.
2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO PENSAMENTO ACERCA DA FINALIDADE
DA PENA
É certo que a evolução legislativa tende a estabelecer novos parâmetros
para a pena, a forma de sua aplicação, etc. No entanto, estas leis não
contemplam dispositivos em seus textos que afirmam ou indiquem a sua real
finalidade, ficando tal encargo nas mãos da doutrina e da jurisprudência.
Desde os primórdios, a pena tinha apenas o caráter retributivo, ou seja,
visava apenas o castigo daquele que havia cometido uma conduta atentatória
às leis. Contudo, não faltaram pensamentos em contrário. As primeiras
reflexões sobre a pena e a sua finalidade surgiram na Grécia antiga, com
Platão, que sugeria um pensamento bastante avançado de que a pena deveria
intimidar pelo seu rigor, fazendo com que os outros a temessem, e, por isso,
não viriam a delinquir.
A idéia de que a pena não tem simplesmente o intuito de atormentar o
criminoso ganhou força durante o movimento iluminista. Voltaire, Montesquieu
e Rousseau foram grandes defensores dessa transformação, afirmando que a
pena deveria ser proporcional ao crime, levando em consideração as
circunstâncias individuais de cada crime, além de se mostrar eficaz para todas
as outras pessoas.
278
Foi Beccaria, entretanto, que veio a chamar a atenção de todos para
idéia reformadora de uma pena. Para ele, "é melhor prevenir o crime do que
castigar", e, com esse pensamento, escreveu seu livro, Dos Delitos e Das
Penas, que fala explicitamente na função da pena, como nesse trecho: ―A
finalidade das penas não é atormentar e afligir um ser sensível (...) O seu fim
(...) é apenas impedir que o réu cause novos danos aos seus concidadãos e
dissuadir os outros de fazer o mesmo‖ (BECCARIA, 2002).
Além disso, Beccaria sugeria que a idéia de prevenção evocada pela lei
deveria ser obtida pela certeza de punição e por sua eficácia, não pelo terror
evocado por ela.
Logo surgiram as idéias sobre a função ressocializadora da pena, que
buscavam na pena a oportunidade de reinserir o indivíduo na sociedade, e não
simplesmente castigá-lo por seu delito.
Com esse breve histórico, podemos ver que muitas são as correntes
sobre a finalidade da pena, assim, devemos a seguir estudá-las numa
perspectiva teórico-prática, e não apenas histórica.
3. FINALIDADE DA PENA – TEORIAS
Apesar de, como dito, as penas sempre terem sido aplicadas àqueles
que transgrediam as normas estabelecidas na sociedade, pouco se refletia
sobre a sua real finalidade. Tratava-se apenas de uma simples retribuição pela
infração, sendo a sanção uma forma de punir o transgressor. Nesse
pensamento se encaixa a Teoria Retribucionista ou Absoluta, que será melhor
explicada adiante.
3.1 - A Teoria Retribucionista ou Absoluta
A Teoria Retribucionista, ou absoluta, tem como fundamento a
retribuição do dano causado pelo infrator mediante a aplicação de uma pena,
sem a menor preocupação com o delinqüente. Grandes pensadores como Kant
e Hegel eram adeptos dessa teoria. Surgia a idéia de que a pena deveria existir
279
apenas para "fazer justiça", nada mais. Um mal deve ser imposto ao
delinquente mediante o cometimento de um crime.
Segundo Bitencourt (2008), Kant considerava que o réu deveria ser
castigado simplesmente por ter delinquido, sem considerar a utilidade deste
castigo, que figurava como uma sanção moral ao cometimento do delito. Já
Hegel afirmava que a pena era "o restabelecimento da ordem jurídica
quebrada", pois o crime era a quebra do acordo estabelecido pelos cidadãos,
trazendo uma abordagem jurídica às idéias de Kant.
Esta teoria dificilmente é aceita por algum teórico contemporâneo, tendo
em vista que estudos já demonstraram que a imposição de pena apenas para
castigar o criminoso não é viável para a sociedade. E foram esses estudos que
sugeriram a função preventiva da pena, através da criação da Teoria Relativa.
3.2 - A Teoria Relativa ou Preventiva da Pena
A Teoria Relativa ou Preventiva a Pena defende um entendimento
contrário ao tido pela Teoria Retribucionista. Para os utilitaristas, a pena tem
um fim, como o próprio nome já diz, preventivo, ou seja, a existência de uma
sanção para determinado ato transgressivo existe para que as pessoas se
abstenham de cometê-lo (prevenção geral) ou evitar a reincidência (prevenção
específica).
Tendo como grande defensor o italiano Cesare Beccaria, a teoria foi
bastante aplaudida na sua época por seu caráter inovador e humanitário, mas
o fundamento desta teoria nos remete a pensadores mais antigos, como o
filósofo Sêneca, que afirmou: "nenhuma pessoa responsável castiga pelo
pecado cometido, mas sim para que a volte a pecar" (HASSEMER apud
BITENCOURT, 2008, p. 92). Assim, vemos delimitada toda idéia geral da teoria
preventiva, que tem como principal objetivo a prevenção de novos crimes,
através de duas vertentes: a prevenção geral e a prevenção especial.
Analisaremos a seguir as duas formas.
280
3.2.1 - A Prevenção Geral
A prevenção geral é a teoria que preconiza que a cominação da pena,
de per si, deve geral o temor e impedir o surgimento de crimes. Ou seja, uma
vez sendo tipificada, a conduta deve desmotivar o cidadão de cometer o delito,
ou seja, mina a disposição do indivíduo em vir a delinquir.
Para essa teoria, a prevenção geral ocorre através da "ação educativa
que o Direito Punitivo exerce pela definição dos bens jurídicos fundamentais e
a ameaça da pena com que ele procura assegurar a sua inviolabilidade"
(BRUNO, 1990, p.22)
Com a cominação, o Estado se mostra disposto a cumprir a ameaça de
aplicação da pena, e isso, por si só, deveria impedir as pessoas de cometer
crimes, fato este que é definido por Feuerbach como coação psicológica. Para
ele (FEUERBACH apud BRUNO, 1990), a intimidação que resulta da ameaça
da pena concorre para a prevenção geral, compelindo assim o sujeito a
obedecer à norma.
Entretanto, essa teoria aplicada individualmente é alvo de muitas críticas
por não levar em consideração dois principais pontos. O primeiro diz respeito à
confiança do delinquente de que não será pego. Esse fator psicológico se torna
muito importante na medida em que o temor inspirado pela tipificação da
conduta não o atinge, fazendo com que a teoria seja desacreditada. Assim,
como dito por Roxin, "cada delito já é, pelo só fato de existir, uma prova contra
a eficácia da prevenção geral" (ROXIN apud BITENCOURT, 2008). O outro
fator importante é que nem todos têm conhecimento da norma. Apesar da
máxima de que "não se pode alegar o desconhecimento da lei" (artigo 3º da Lei
de
Introdução
ao
Código
Civil),
no
caso
da
prevenção
geral,
o
desconhecimento do dispositivo legal, bem como do rigor imposto por ele à
determinada conduta criminosa, torna esta teoria um pouco frágil, pois só
atingiria
com
eficácia
aos
que
conseqüências legais de seus atos.
tivessem
o
conhecimento
total
das
281
3.2.2 - A Prevenção Específica
A Teoria da Prevenção Específica vem a ser o oposto da Prevenção
Geral. Nela, a pena aplicada tem a finalidade de prevenir novos crimes daquele
que já cometeu, ou seja, visa à reparação do criminoso por meio da aplicação
da pena, utilizando-se de uma didática segregadora ou emendativa. Nessa
fase, se intimida o criminoso a não cometer mais delitos pela fase da execução
da pena, e não apenas da ameaça provocada pela sua cominação.
Funciona da seguinte maneira: com a imposição de uma pena a um
indivíduo, o Estado estaria mostrando a ele a eficácia de seus institutos
penalizadores, e o advertindo a não cometer mais delitos, caso contrário, lhe
será aplicada uma nova sanção. Para seus adeptos, "como o castigo e a
intimidação não têm sentido, o que se pretende, portanto, é corrigir,
ressocializar ou inocuizar" (BITENCOURT, 2005, p. 92)
Essa teoria foi bastante criticada na medida em que exige o
cometimento do crime por parte do cidadão para que novos delitos sejam
prevenidos. Ora, se a teoria é conhecida por ―preventiva‖, não deveria ter o
intuito de prevenir o surgimento de crimes na esfera da sociedade, e não
apenas de delinquentes reincidentes?
Alguns teóricos chegaram a afirmar que a pena não seria necessária
quando se tivesse a certeza moral de que o criminoso não iria ser reincidente
(ROMAGNOSI apud MIRABETE, 2007). Este argumento nos parece bastante
interessante, mas o fato de sua aplicação ser inviável, tendo em vista a
impossibilidade de se ter certeza sobre os atos futuros de alguém, o torna
eminentemente utópico.
Das controvérsias resultantes das vantagens e desvantagens de cada
teoria, surge a chamada Teoria Mista ou Eclética, que fundiam as duas
correntes.
3.3 - Teoria Mista ou Eclética
A Teoria Mista ou Eclética veio para consolidar os argumentos e pontos
282
positivos das teorias anteriormente apresentadas, a da retribuição, da
prevenção geral e da prevenção específica. Ela sugere que a pena deve ter o
caráter triplo, ou seja, deve servir para desmotivar as pessoas ao cometimento
de crimes, também deve intimidar o já criminoso a não mais delinquir, além de
figurar como instrumento de punição pelo mal já praticado. Adepto
desta
teoria, Mir Puig disse que "a retribuição, a prevenção geral e a prevenção
especial são distintos aspectos de um mesmo e complexo fenômeno que é a
pena" (MIR PUIG apud BITENCOURT, 2008), frase esta que a nós parece
bastante explicativa da real finalidade do instituto punitivo da pena.
Esta teoria foi bastante aplaudida, pois, de fato, aliando os conceitos
trazidos pelas teorias em separado, se obteve uma resposta eficaz e um
pensamento bastante progressivo que uniu todas as teorias anteriormente
apresentadas, e, como definido por Quintero Olivares, essas teorias
centralizam a finalidade do Direito Penal na idéia de prevenção, afinal, "a
retribuição
em
suas
bases,
seja
através
da
culpabilidade
ou
da
proporcionalidade desempenha um papel limitador das exigências da
prevenção‖ (OLIVARES apud BITENCOURT, 2008). Até hoje, esta teoria é a
tida pela maioria dos doutrinadores como a eleita pela legislação brasileira para
decidir os rumos da nossa política criminal.
Contudo, o surgimento de novos desafios e idéias deu origem a uma
nova teoria chamada Teoria Ressocializadora, que julga insuficiente uma
política apenas de retribuição e prevenção para as penas.
3.4 - Teoria Ressocializadora
Em estudos mais recentes, a Escola de Defesa Social tenta estabelecer
que a real finalidade da pena é a readaptação social do condenado. Para estes
pesquisadores, a sociedade só é recompensada com a ressocialização do
delinqüente, e o seu conseqüente retorno ao convívio em sociedade.
Bastante aplaudida por psicólogos e juristas, esta teoria vem alertar
acerca da necessidade de observação de meios que ajudem os condenados a
se reinserir na sociedade, não sendo mais bastante a simples colocação do
283
indivíduo na rua. Programas de reeducação e trabalhos de readaptação do
condenado ao convívio social devem ser criados pelo Estado para que este
indivíduo não volte a delinquir por falta de opção, funcionando assim também
como um meio de prevenção. Para enxergarmos melhor a situação,
imaginemos uma criança que contrariou diretamente as ordens de seus pais. A
esta criança será imposto um ―castigo‖ que servirá para que ela não venha a
cometer novamente o mesmo ato, mas, sobretudo, para lhe ensinar noções de
como deve se comportar futuramente.
Por outro lado, uma das facetas dessa teoria é a exclusão definitiva do
caráter retributivo da pena. Ora, se é pregada a ressocialização e a reinserção
do criminoso ao convívio social, a característica de castigo se torna
incompatível com a teoria, o que levou ao desagrado por parte de muitos
estudiosos e vítimas de crimes, afinal, a pena sempre teve um caráter
retribucionista acrescentando um fim preventivo.
Esta frase de Everardo da Cunha Luna sintetiza muito bem o
pensamento daqueles contrários a esta teoria: ―a retribuição, sem a prevenção,
é vingança; a prevenção, sem a retribuição, é desonra‖ (LUNA apud
MIRABETE, 2007).
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O crime é um fato social, e, como tal, é bastante complexo. Sendo um
fato social que atinge a todos com vítimas individualizadas, se torna impossível
abolir das sanções penais o caráter retribucionista e atribuir-lhe apenas um
caráter preventivo, pois nós, como seres humanos, muitas vezes necessitamos
ver essa punição como retribuição pelo mal causado. Afinal, por mais
benevolentes que muitos de nós possamos ser, o castigo pelo mal feito será
sempre aceito pela sociedade, que só assim consegue observar a atuação do
Direito Penal na sociedade.
Não se pode esquecer, entretanto, que a simples punição sem finalidade
educativa é um instituto completamente obsoleto, uma vez que não impede a
proliferação do fenômeno criminológico. As penas devem aliar ao caráter
284
punitivo a reeducação do criminoso, impedindo assim que este venha a
cometer novos delitos.
Por fim, não se pode esquecer que a pena deve ter o seu caráter
preventivo. Afinal, tão importante quanto o combate ao crime é a sua
prevenção, que se efetiva, dentre outras formas, pela eficácia dos institutos
jurídicos do país como pela sua aplicação.
É bem verdade que podemos estar parecendo utópicos à medida que
tentamos aplicar conceitos teóricos a uma sociedade real, repleta de problemas
e dificuldades financeiras para a aplicação desses institutos, entretanto, não
podemos pensar por esse ponto. As idéias surgidas destas teorias devem ser
aproveitadas para a melhoria da sociedade, se pudemos aplicá-las cada vez
mais, o crescimento social e a melhoria do bem estar coletivo serão uma
agradável consequência.
Afinal, ―pena não é vingança. Pena não é apenas castigo. É remédio
social, e como tal deve ser ministrada, a fim de se proporcionar e garantir o
respeito e a retorno do indivíduo infrator ao convívio social e, simultaneamente,
a segurança da coletividade‖ (LIMA, 2005).
5. REFERÊNCIAS
BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e Das Penas. 2ª ed. – São Paulo: Martin
Claret, 2008.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 7. ed. São Paulo:
Saraiva, v.2, 2007.
BRUNO, Aníbal. Das Penas. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1990.
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. 7. ed. São Paulo: Saraiva, v.2,
2007.
LIMA, Antonio Cesar Barros. Os fins da pena diante das novas exigências do
Direito
Criminal.
Disponível
em:
http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/2014/Os-fins-da-pena-diante-dasnovas-exigencias-do-Direito-Criminal. Acesso em: 05 de abril de 2010.
MIRABETE, Julio Fabbrini; FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal,
Volume 1: Parte Geral. 24ª ed. Ver. E atual. – São Paulo: Atlas, 2007.
285
INQUÉRITO POLICIAL: TRANSFORMAÇÕES SISTEMÁTICAS
PARA A ACELERAÇÃO DA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL
Ildefonso Rufino de Melo Filho148
Jully Anne Bezerra Pessoa149
Larissa Mateus de Sales150
Mathews Augusto Cavalcante Aureliano151
Orientador: Valfredo de Andrade Aguiar Filho152
RESUMO
O inquérito policial é um procedimento administrativo, investigatório, de caráter preparatório e
inquisitivo, presidido por uma autoridade policial, que tem por finalidade a apuração de um
delito e sua respectiva autoria, possibilitando o embasamento para a acusação, a propositura
da ação penal e, por último, a decisão do juiz. Em virtude desse sistema adotado nesta peça
informativa, os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV),
verdadeiras garantias da Carta Magna de 1998, são excluídos do contexto da investigação
criminal, prejudicando gravemente a defesa do indiciado. Além disso, a não utilização destes
princípios no inquérito, faz com que o mesmo apresente valor probatório relativo, pois as
provas presentes neste precisam ser confirmadas em juízo, o que claramente acarreta em uma
mora processual, e por conseguinte a lesão expressa ao principio constitucional da celeridade
judicial (art.5º, LXXVIII). Portanto, propomos a mudança do atual sistema inquisitivo para o
sistema acusatório, o que proporcionaria sua conformidade com os citados princípios
consagrados constitucionalmente e com o sistema processual penal vigente, além de alterar o
valor probatório do inquérito que deixaria de ser relativo e passaria a absoluto, acelerando
claramente o processo judicial e promovendo uma resposta jurisdicional mais rápida, imparcial
e eficaz.
Palavras-Chave: Inquérito Policial; Sistema Inquisitivo; Ampla defesa, Contraditório, Sistema
Acusatório.
148
Bacharelando de Direito na Universidade Estadual da Paraíba. E-mail:
[email protected]
149
Bacharelando de Direito na Universidade Estadual da Paraíba. E-mail: [email protected]
150
Bacharelando de Direito na Universidade Estadual da Paraíba. E-mail:
[email protected]
151
Bacharelando de Direito na Universidade Estadual da Paraíba. E-mail:
[email protected]
152
Professor Substituto da Universidade Estadual da Paraíba. Mestrando em Direito Constitucional
pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: [email protected]
286
ABSTRACT
The police investigation is an administrative procedure, with a preparatory and inquisitive
character, presided by a police authority, which aims at the investigation of a crime and its
respective authors, providing the foundation for the prosecution, the bringing of criminal action
and, finally, the judge's decision. Under this system adopted in this informative piece, the
constitutional principles of the contradictory and full defense (art. 5, LV), real guarantees of the
Constitution of 1988, are excluded from the context of criminal investigation, severely
undermining the indicted´s defense. In addition, not using these principles in the investigation
makes the procedure presenting a relative probative value, because the evidences presented
need to be confirmed in court, which clearly leads to a procedural delay, and so, the evident
injury to the constitutional celerity principle (art.5, LXXVIII.). Therefore, we propose changing
the current inquisitorial system for the adversarial system, which would give its compliance with
the said principles enshrined in Constitution and also with the criminal justice system in force,
besides affecting the probative value of the investigation that would no longer be relative, but
absolute, clearly accelerating the judicial process and promoting a more rapid, impartial and
effective judicial response.
Keywords: Police investigation. Inquisitive System. Full Defense. Contradictory. Adversarial
System.
287
1. INTRODUÇÃO
O inquérito policial atualmente pode ser caracterizado como um
procedimento administrativo, não obrigatório e preparatório para a ação penal.
No entanto, a peculiaridade deste está no fato de o mesmo ser composto por
um sistema inquisitivo, no qual o poder fica concentrado na figura do delegado
de polícia e o contraditório e a ampla defesa não existem. Em virtude dessa
peculiaridade, o inquérito adquiriu um valor probatório relativo, já que as provas
contidas no mesmo devem ser confirmadas em juízo, para só assim o juiz
considerá-las efetivamente no processo.
Essa situação acarreta, indubitavelmente, em uma mora processual
enorme, já que as provas serão analisadas duas vezes, indo de encontro,
assim, ao art.5º, inciso LXXVIII, da CF/88, que dispõe: ―A todos no âmbito
judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os
meios que garantam a celeridade de sua tramitação‖.
Vale lembrar, também, que a atual estrutura formal e material do
inquérito vai de encontro a outro dispositivo constitucional, o inciso LV , do
art.5º, que dispõe: ―Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos
acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os
meios e recursos a ela inerentes‖.
Em virtude do exposto, observa-se que o inquérito policial possui vários
pontos de conflito com a Carta magna norteadora de nosso ordenamento
jurídico. Baseado nisto, temos neste artigo o intuito de mostrar transformações
dentro do inquérito que evitariam esses conflitos legais e de pronto atenderiam
às necessidades socais de uma justiça rápida e eficaz.
Por fim, o inquérito, como fase pré-processual, opõe-se ao próprio
processo, pois aquele admite como sistema, o inquisitivo, já este se realiza
através do sistema acusatório. Isto acaba gerando uma oposição no
ordenamento, visto que ambos têm a mesma finalidade, que é punir o acusado
pela infração penal.
288
2. INQUÉRITO POLICIAL
O inquérito policial é um procedimento administrativo, investigatório, de
caráter preparatório e inquisitivo, presidido por uma autoridade policial, que tem
por finalidade a apuração de um delito e sua respectiva autoria, possibilitando
um embasamento para a acusação, a propositura da ação penal e, por último,
a decisão do juiz.
Constitui-se como fase pré-processual da ação penal, sendo regido,
portanto, por regras gerais do ato administrativo.
A legitimidade para praticar tal ato administrativo provém da polícia
judiciária, delegados de polícia estaduais e federais, que deverá preservar a
paz social, averiguando os conflitos mediante atividade investigativa, com o
propósito de apurar as infrações que venham a ocorrer, respeitando a
atribuição de circunscrições, de acordo com o artigo 4° do Código de Processo
Penal, in verbis:
A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no
território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração
das infrações penais e da sua autoria.
Em contrapartida, o Ministério Público atua como titular da ação penal.
Dessa maneira, ao ser concluído, o inquérito é enviado ao juiz e, em seguida,
ao referido titular da ação para que o promotor de justiça ou o procurador da
república possa analisar e tomar a providência que julgar ser cabível:
arquivamento do inquérito, devolução dos autos à polícia para novas
diligências imprescindíveis ao oferecimento da denúncia, requerer a extinção
da punibilidade, oferecer a denúncia, dentre outras.
O inquérito policial é regido por características bem definidas, como a
discricionariedade (não há rigor procedimental, devendo o delegado fazer um
juízo de conveniência e oportunidade quanto à relevância daquilo que lhe foi
solicitado); a formalidade (deve se escrito - artigo 9° do CPP); o sigilo
(procedimento essencialmente sigiloso – artigo 20 do CPP); a oficialidade (o
delegado de polícia de carreira constitui-se em órgão oficial do Estado); a
indisponibilidade (apesar de ser uma atividade não obrigatória, uma vez
iniciado o inquérito, o delegado de polícia não pode dele dispor – artigo 17 do
289
CPP) e a inquisitoriedade (as atividades persecutórias ficam concentradas nas
mãos de autoridade única e o suposto autor da infração não dispõe de
contraditório nem ampla defesa).
3. SISTEMA INQUISITIVO E ACUSATÓRIO
3.1 Sistema Inquisitivo
Tendo origem no Direito Romano, o Sistema Inquisitivo caracteriza-se
pela concentração de poder nas mãos de uma única autoridade, o delegado de
Policia, que tem liberdade para decidir a linha de investigação a ser seguida, a
fim de reunir os elementos necessários a respeito do indiciado e do delito.
Este sistema, no Brasil, é adotado no Inquérito Policial, procedimento
administrativo e anterior à ação penal, tendo a autoridade policial à
possibilidade de instaurá-lo de ofício.
Nota-se também uma evidente supressão das garantias constitucionais
do indiciado, que é considerado objeto de investigação, e não como sujeito de
direito, a partir do momento em que há discricionariedade no fato de a
autoridade aceitar ou não a diligência, como disposto no art. 14 do CPP:
O ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado poderão
requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da
autoridade.
Por ter essa natureza inquisitória, não se admite que haja publicidade,
contraditório e ampla defesa, prevalecendo-se o sigilo em relação às
investigações, salvo para o Ministério Público e para o Magistrado.
Levando em consideração, assim, o sistema adotado no Inquérito, não
existe a possibilidade do indiciado defender-se, acarretando uma mora
processual, uma vez que o magistrado não poderá se utilizar somente do
inquérito para proferir uma sentença condenatória. Além do que, não se admitir
a ampla defensa e o contraditório, é afronta ao art. 5º, LV da Constituição da
República, que dispõe que:
Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo e aos acusados
em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os
meios e recursos a ele inerentes.
O caso dos irmãos Naves, ocorrido em Araguari – MG, no ano de 1937,
proporciona uma boa elucidação do exposto. Em virtude do sistema inquisitivo,
290
adotado no inquérito policial, o qual não permite atualmente a aplicação do
contraditório e da ampla defesa e apregoa a concentração de poder nas mãos
do delegado, os referidos irmãos foram induzidos a assumir o homicídio de
João Benedito Caetano. Porém, cinco anos após a sentença, a ―vítima‖
reapareceu, alegando que tinha fugido para a Bolívia por motivo de brigas
familiares. Com isso, restou comprovado que os irmãos assumiram o crime
mediante tortura do delegado responsável pelo inquérito.
O direito ao exercício da defesa não pode ser retirado do indiciado,
reconhecendo-o decisão do STF153:
A situação de ser indiciado gera interesse de agir, que autoriza se
constitua, entre ele e o Juízo, a relação processual, desde que
espontaneamente intente requerer no processo ainda que em fase de
inquérito policial. A instauração de inquérito policial, com indiciados
nele configurados, faz incidir nestes a garantia constitucional da
ampla defesa, com os recursos a ela inerentes.
O contraditório não é admitido na fase do Inquérito, impossibilitando,
assim, que o indiciado tenha todas as suas garantias asseguradas. Logo, não
há igualdade entre defesa, sofrendo aquela, restrições, que a impossibilitam de
estar em pé de igualdade com a autoridade investigadora.
Infere-se deste sistema que as provas colhidas nesta fase préprocessual deverão ser repetidas em juízo, para só assim o magistrado se
convencer ou não da autoria e materialidade do crime. Só há a possibilidade
disto não ocorrer quando os princípios da ampla defesa e do contraditório
forem aplicados efetivamente aplicados nesse processo, gerando, assim, uma
celeridade processual.
3.2 Sistema Acusatório:
No ordenamento pátrio é adotado o sistema acusatório, já que a
existência da natureza inquisitiva do inquérito policial não descaracteriza o
sistema adotado, haja vista que se trata de uma fase anterior ao processo
penal propriamente dito, servindo como mero embasamento para a formação
da opinio delicti.
153
(RT 522/403)
291
A principal característica deste sistema reside no fato de haver uma
nítida distribuição das funções a órgãos distintos, cabendo ao Ministério
Público a acusação, ao Poder Judiciário o julgamento e ao réu, por meio do
seu advogado, a defesa.
A publicidade, em regra, dos atos processuais; a presença do
contraditório, a igualdade entre as partes decorrente do princípio de equilíbrio
de situações; a imparcialidade do juiz, incumbindo a iniciativa do processo à
parte acusadora; o direito à ampla defesa; a competência do valor probatório
às partes são atributos inerentes ao sistema acusatório.
É inegável, portanto, o caráter democrático deste sistema, visto que
garante os direitos individuais ao acusado, reconhecendo-o como sujeito de
direitos. Em virtude disso, deveria o mesmo ser adotado na fase de
indiciamento, pois será o modo mais justo, imparcial e célere de resolução da
lide penal.
4. DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA
O principio constitucional do devido processo legal, dispõe que:
Art.5º, LIV: ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens
sem o devido processo legal.
Isto é uma garantia dada em nosso Estado Democrático de Direito, a
todas as pessoas para que elas tenham pleno acesso a uma ordem jurídica
justa, através da aplicação do direito de forma proporcional e razoável,
atendendo-se aos anseios da sociedade, e, portanto, à justiça.
Desse princípio constitucional, decorrem muitos outros, dentre os quais
o princípio do contraditório e o princípio da ampla defesa. Dispõe o art. 5º,
inciso LV, da CF/88:
Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados
em geral, são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os
meios e recursos a ele inerentes.
O contraditório corresponde ao direito de as partes terem conhecimento
de todos os fatos que venham a ocorrer no curso do processo, podendo, dessa
forma, se manifestarem sobre tais acontecimentos (o que configura a
contrariedade), e participando de forma efetiva na convicção do juiz. Resume-
292
se, portanto, no binômio: informação + possibilidade de manifestação. De
acordo com o renomado jurista Alexandre Freitas Câmara154:
Qualquer que seja a função exercida pelo Estado, só se terá exercício
legítimo de poder quando houver participação no procedimento de
todos aqueles que podem vir a ser alcançados pelos efeitos do ato
estatal praticado.
A ampla defesa, por conseguinte, assegura à parte, apresentar no
processo, todos os elementos de que dispõe para assegurar sua defesa.
Esses princípios, apesar de muitos operadores do direito e doutrinadores
acreditarem que não devem estar presentes no contexto do inquérito policial por ser este de caráter inquisitivo, e, portanto, destinado apenas ao
fornecimento de informações ao titular da ação penal, devem sim estar
presentes a partir do processo de indiciamento. A razão para isso é que esses
princípios possibilitariam a dialética entre as partes (vítima, investigador e
indiciado), com participação efetiva destes, proporcionando assim uma
produção de provas por parte da autoridade policial com maior valor e eficácia.
A interpretação do supracitado inciso LV, art. 5º da CF, nos permite
afirmar que ao indiciado também estão asseguradas as garantias do
contraditório e da ampla defesa, visto que o dispositivo utiliza a expressão
"acusados em geral". O indiciado é a pessoa a quem foi imputada à prática do
ilícito penal, a qual está direcionada toda a investigação, sendo considerado o
provável autor da infração penal. Esta situação provoca indubitavelmente, no
sujeito, a necessidade de agir para se livrar da condição de provável autor de
um delito, o que só é possível através das referidas garantias constitucionais.
Por essas razões é que não se pode corroborar com o entendimento
conservador de alguns doutrinadores de que no inquérito não existe acusado,
portanto, não há processo, e conseqüentemente, tornando inadmissível o
contraditório. Vejamos a lição de Aury Lopes Júnior155, in verbis:
É inegável que o indiciamento representa uma acusação em sentido
amplo, pois decorre de uma imputação determinada. Por isso o
legislador empregou acusados em geral, para abranger um leque de
154
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. Vol.1. 19. Ed. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
155
JÚNIOR, Aury Lopes. Introdução crítica ao Processo Penal. 3. Ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2005.
293
situações, com um sentido muito mais amplo que uma mera
acusação formal, e com o intuito de proteger ao indiciado.
No processo de investigação atual, são produzidas provas contra o
indiciado, que deve ficar inerte a despeito da situação adversa, só podendo
contestar a legalidade e a veracidade de tais provas em juízo, o que gera um
desconforto e uma insegurança tremenda ao acusado no inquérito policial, que
fica subordinado aos atos da autoridade policial, em situação de absoluta
desigualdade. Exatamente o que ser verificou no caso supracitado dos Irmãos
Naves.
Observemos agora alguns dispositivos do Código de Processo Penal
pátrio, in verbis:
Art. 14: O ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado
poderão requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a
juízo da autoridade.
Art. 107. Não se poderá opor suspeição às autoridades policiais nos
atos do inquérito, mas deverão elas declarar-se suspeitas, quando
ocorrer motivo legal.
Verificamos nos dispositivos legais acima, que levam ao caráter
inquisitório do inquérito, a impossibilidade de se argüir exceção de suspeição
contra delegados de polícia (Art.107), e a prerrogativa discricionária destes de
indeferir pedidos de produção de prova pela defesa ou pela vítima (Art.14).
Segundo o Ministro Celso de Melo, em jurisprudência do Pretório Excelso156:
Situação essa, que submete o indiciado a uma situação de mero
objeto da investigação, e não de sujeito de direito, com garantias
legais e constitucionais que devem respaldar a atuação da autoridade
policial, sob pena deste ser responsabilizado penalmente por seu
abuso de poder, como também podendo gerar a invalidação das
provas ilicitamente obtidas na investigação criminal.
Por essas razões, é mister a garantia mínima aos acusados em inquérito
policial, de um sistema acusatório, que possibilite a dialética em favor do
indiciado, que ficaria em situação de igualdade frente àqueles que buscam a
produção de provas para sua incriminação, tendo em vista que o responsável
156
(STF, HC 73.271-SP, rel. Celso de Mello)
294
pela investigação deve proporcionar ao indiciado meios de prova a seu favor.
Idéia essa defendida por Tourinho Filho157:
A defesa não pode sofrer restrições, mesmo porque o princípio
supõe completa igualdade entre acusação e defesa. Uma e outra
estão situadas no mesmo plano, em igualdade de condições, e,
acima delas, o Órgão Jurisdicional, como órgão "superpartes", para,
afinal, depois de ouvir as alegações das partes, depois de apreciar as
provas, dar a cada um o que é seu.
Interpretando-se sistematicamente nosso Código de Processo Penal,
percebe-se mais um importante ponto legal a favor do contraditório no inquérito
policial. Dessa interpretação, infere-se que as mudanças feitas pelas Leis nº
10.792/03 e nº 11.900 no Título VII, Cap. III, que dispõe sobre o interrogatório,
devem ser levadas em consideração quando do inquérito policial. Vejamos por
que. Observemos com atenção os seguintes artigos do CPP, in verbis:
Art. 185. O acusado que comparecer perante a autoridade judiciária,
no curso do processo penal, será qualificado e interrogado na
presença de seu defensor, constituído ou nomeado. (Redação
dada pela Lei nº 10.792, de 1º. 12.2003)
o
§ 1 O interrogatório do réu preso será realizado, em sala própria, no
estabelecimento em que estiver recolhido, desde que estejam
garantidas a segurança do juiz, do membro do Ministério Público e
dos auxiliares bem como a presença do defensor e a publicidade do
ato. (Redação dada pela Lei nº 11.900, de 2009)
(...)
o
§ 5 Em qualquer modalidade de interrogatório, o juiz garantirá ao
réu o direito de entrevista prévia e reservada com o seu defensor; se
realizado por videoconferência, fica também garantido o acesso a
canais telefônicos reservados para comunicação entre o defensor que
esteja no presídio e o advogado presente na sala de audiência do
Fórum, e entre este e o preso. (Incluído pela Lei nº 11.900, de
2009)
Art. 189. Se o interrogando negar a acusação, no todo ou em parte,
poderá prestar esclarecimentos e indicar provas. (Redação dada
pela Lei nº 10.792, de 1º. 12.2003)
A priori, vê-se que tais artigos se referem exclusivamente ao instituto
processual do interrogatório, porém, vejamos a letra do seguinte artigo do CPP
que trata do inquérito policial:
157
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Prática de Processo Penal. 28. Ed.São
Paulo: Saraiva: 2007.
295
o
Art. 6 Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a
autoridade policial deverá:
(...)
V - ouvir o indiciado, com observância, no que for aplicável, do
disposto no Capítulo III do Título Vll, deste Livro, devendo o
respectivo termo ser assinado por duas testemunhas que Ihe tenham
ouvido a leitura;
Dessa correlação dos supracitados artigos, podemos inferir que os
dispositivos, que dão garantias importantíssimas ao acusado no procedimento
do interrogatório (Capítulo III do Título Vll do diploma processual penal),
quando
da
instauração
do
processo,
deverão
ser
aplicadas,
como
expressamente dispõe o art.6º, V, do CPP, no inquérito policial.
Diante disso, o que se conclui dessa interpretação sistêmica
(considerando-se o artigo 6º, inciso V do CPP, relacionado com os artigos 185
e 189 do mesmo diploma), é que o Delegado de Polícia deverá levar em
consideração o disposto nesses artigos, quando do processo de investigação
do indiciado, havendo o dever da presença do defensor no momento do
indiciamento, como também o direito do indiciado de ter entrevista reservada
com seu advogado, o direito ao conhecimento das provas produzidas, o direito
de contrariá-las e a possibilidade de indicar provas a seu favor.
Isto sim
configura as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa ao
indiciado, assegurando-se, com absoluta certeza, maior legitimidade ás
conclusões da investigação.
Não podemos olvidar como ponto relacionado ao assunto em questão,
da admissão legal (prevista no art. 70 da Lei nº 6.815/80), do contraditório nos
inquéritos policiais competentes pela Polícia Federal, instaurados para
expulsão de estrangeiro do território brasileiro, como também nos inquéritos
administrativos, e ainda o já revogado inquérito judicial falimentar (art. 106 da
antiga Lei de Falências, revogado pela nova Lei nº 11,101/05). Portanto, não se
trata de assunto inédito em nosso ordenamento jurídico.
296
5. PRINCÍPIO DA CELERIDADE PROCESSUAL
Consagrado na Constituição Federal Brasileira de 1988, o princípio da
celeridade processual combate a excessiva morosidade dos processos, que
prejudica tanto as partes quanto a administração pública, sem comprometer,
contudo, as garantias processuais e materiais, promovendo uma prestação
jurisdicional mais rápida.
Art. 5°, LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são
assegurados a razoável duração do processo e os meios que
garantam a celeridade de sua tramitação.
Este princípio foi incluído na Carta Magna através da Emenda n°45, de
30 de dezembro de 2004, com status de direito fundamental. Dentre outras
coisas, tem como finalidade a redução do longo e verdadeiro sofrimento em
que passam os possíveis autores de delitos, durante o processo, conforme
lição de Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar158:
Para a edição da mencionada Emenda, foram considerados os
efeitos deletérios do processo e que o direito à celeridade pertence
tanto à vítima como ao réu. Objetiva-se assim evitar a procrastinação
indeterminada de uma persecução estigmatizadora e cruel, que
simboliza, no mais das vezes, verdadeira antecipação da pena.
Um grande obstáculo ao cumprimento desse princípio, além da falta de
infra-estrutura e de pessoal preparado, bem como em razão o descumprimento
dos prazos por parte dos magistrados e servidores, é o sistema inquisitivo,
característico dos inquéritos policiais. Esse sistema concentra o poder na figura
do delegado de polícia, não admitindo o contraditório e a ampla defesa para as
partes envolvidas na investigação, e as provas recolhidas na fase préprocessual precisam ser confirmadas após a propositura da ação penal. Tudo
isso acarreta uma morosidade muito grande para que se chegue a uma
decisão, posto que a morosidade acarreta a injustiça.
Muitas vezes o suposto autor não cometeu o crime. Porém, muito tempo
é despendido até que o juiz possa oferecer uma sentença. Tempo esse que
158
TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual
Penal. 15 Ed. Salvador: Jus Podivm, 2009.
297
poderia ser enormemente reduzido, caso houvesse a utilização do contraditório
e da ampla defesa na investigação.
Nota-se, assim, que o princípio da celeridade busca uma razoável
duração do processo, caracterizada por uma agilidade no trâmite da ação,
combinada com a devida atenção aos direitos assegurados às partes, que
juntos proporcionarão uma prestação jurisdicional mais justa e efetiva.
6. CONCLUSÃO
Nota-se, depois do exposto, que o sistema inquisitivo, atualmente
adotado no inquérito policial, constitui ato plenamente desconforme à
Constituição Federal, pois atinge princípios fundamentais, dispostos no art.5º,
inciso LV da nossa Carta Magna, não permitindo, portanto, o uso do
contraditório e da ampla defesa no inquérito policial.
Além disso, a não utilização destes princípios no inquérito, faz com que
o mesmo apresente valor probatório relativo, pois as provas presentes neste
precisam ser confirmadas em juízo, o que claramente acarreta em uma mora
processual. Isto acaba gerando o descumprimento do princípio da celeridade
(Art.5º, LXXVIII, CF), prejudicando, assim, tanto o indiciado, que pode ser
inocente em relação à imputação da prática delituosa, quanto à administração
pública, pelo dispêndio desnecessário de tempo e pelo acúmulo processual
exacerbado.
Para finalizar, observa-se também, que o inquérito como fase préprocessual apresenta incompatibilidade sistemática com o próprio processo
penal, pois aquele adota um sistema inquisitivo, enquanto este adota o sistema
acusatório, gerando, assim, uma divergência na persecução penal, que tem
como finalidade a punição do verdadeiro autor do delito.
Em virtude disso, propomos que o sistema inquisitivo do inquérito policial
seja substituído pelo acusatório, pois só assim serão sanadas todas as
problemáticas que giram em torno dessa peça informativa. Como o sistema
acusatório permite a aplicação do contraditório e da ampla defesa, ele acabaria
harmonizando o inquérito com o Art.5º, inciso LV, da nossa Constituição,
298
fazendo presentes, assim, ambos os princípios dentro do procedimento
administrativo em questão.
Neste diapasão, notar-se-ia, também, uma mudança em relação ao valor
probatório do inquérito, que passaria de relativo para absoluto, servindo, assim,
por si só de meio válido para a sentença do juiz, o que claramente causaria
uma agilidade processual e colocaria em prática o princípio constitucional da
celeridade.
Além disso, essa nova sistemática compatibilizaria a fase pré-processual
(formada pela peça informativa), com o próprio processo penal, pois ambos
seriam guiados pelo sistema acusatório, meio este mais justo e imparcial, e em
conseqüência mais célere, para a resolução das lides penais.
Sendo assim, não restam dúvidas de que a mudança sistemática é algo
de extrema importância e total necessidade para o ajustamento do direito a
realidade social, e portanto à justa prestação jurisdicional. Tese, esta, ratificada
pelo ilústre Antônio Gomes Duarte159:
O inquérito policial diante dos princípios e garantias constitucionais
hoje vigentes, não pode sobreviver às fórmulas sigilosas, inquisitórias
e arcaicas ainda empregadas e defendidas pela mais respeitável
doutrina.
Estamos desprezando importantíssimas garantias
conquistadas em lutas obstinadas travadas ao longo da história das
relações sociais do povo brasileiro. Nós que de alguma forma
militamos com o Direito devemos ter sempre em mente que o fim de
toda atividade estatal é o homem, e que o homem e a sociedade não
se escravizam a um direito; o direito é que deve ajustar-se e orientarse no sentido do fato social.
Portanto,
estando ciente da dinâmica social, e tendo como principal
objetivo a evolução e aplicação da lei em relação à sociedade, acreditamos que
tal mudança sistemática, é essencial para a evolução do direito processual
penal no tempo e no espaço, com o intuito de tornar este, mais rápido, justo e
eficaz.
159
DUARTE, Antônio Gomes. Do Inquérito à Denúncia. Belém: Cejup,1996
299
7. REFERÊNCIAS
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. Vol.1.
19. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
DUARTE, Antônio Gomes . Do Inquérito à Denúncia. Belém: Cejup,1996
JORGE, Higor Vinicius Nogueira. A processualização do inquérito policial.
Disponível
em
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.
asp?id=5840. Acesso em: 25 de março, 2010.
JÚNIOR, Aury Lopes. Introdução crítica ao Processo Penal. 3. Ed. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
JÚNIOR, Humberto Theodoro. Curso de Direito Processual Civil. Vol.
1. 50. Ed.Rio de Janeiro: Forense: 2009.
TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito
Processual Penal. 15 Ed. Salvador: Jus Podivm, 2009.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Prática de Processo Penal. 28.
Ed.São Paulo: Saraiva, 2007.
300
MOVIMENTOS SOCIAIS E PROPRIEDADE:
Aspectos da história recente da busca pela terra
Guthemberg Cardoso Agra de Castro160
RESUMO
O presente artigo tem como propósito elucidar os movimentos sociais ligados ao campo
relacionando-os com o instituto da propriedade rural, confrontando o direito do proprietário em
dispor da propriedade como lhe convier com as novas formas de pressão social defendidas
pelos movimentos sociais. Partindo-se da evolução histórica dos movimentos sociais até o
entendimento que a propriedade há de cumprir com sua função social e atingir melhor
desenvolvimento nacional.
Palavras-chave: Movimentos sociais; Movimento dos Sem-terra; Função social da propriedade
rural.
ABSTRACT
This article is to elucidate purposes rather social movements linked to the field relating them to
the institute of rural property, comparing the right-owner to dispose of the property as it sees fit
with the new forms of social pressure defended by social movements. Based on the Historical
Evolution of social movements act hde understanding that the property comply with its Funcion
achieve better social and national development.
Key- words: Social movements; Movimento dos Sem- Terra; Funcion social farm.
160
Mestrando em Direito pela Universidade Federal da Paraíba. Professor Universitário da
CESREI, e-mail: [email protected]
301
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo abordará os Movimentos Sociais ligados a questão do
campo e oriundos dos ensinamentos e discussões dos filósofos pós-século
XIX.
Situando-se a análise num quadro de lutas de classes, como um
processo ativo e dinâmico, permeado por conflitos e contradições que emanam
de pólos com interesses antagônicos. Surge a idéia de relação de forças
sociais, políticas e militares. As condições que figuram o processo de luta não
são apenas econômicas, mas, fundamentalmente, políticas e culturais. A
experiência vivida e percebida pelos agentes, enquanto um modo cultural
determina também os valores e as ações da luta pela terra.
As formas pelas quais se formam os mecanismos de resistência à
opressão, de rebeldia à ordem dominante, de luta pela manutenção dos
costumes e tradições, de construções de protestos fazem-se a partir da
consciência de classe. No século XIX, as lutas populares avançaram no sentido
de constituir núcleos e pólos de identidade, como, por exemplo,o motim, as
uniões e as ligas de trabalhadores. O motim
pré-político, ou seja, havia
primeiramente uma busca dos trabalhadores pelos direitos e esta busca
baseava-se nas tradições e na moral. Já as uniões e as ligas de trabalhadores
eram formas políticas ancoradas em interesses de classe e interesses
econômicos. Nesse momento histórico a propriedade privada dos meios de
produção era contestada.
Não se pode esquecer que num movimento social deve-se buscar a
unidade de lutas, ou seja, outros movimentos sociais integram-se ao
movimento originário com o intuito de fortalecê-lo. A União destes movimentos
com suas experiências de lutas acabam por projetar o movimento social para
uma cultura política com mais visibilidade e concretude nas ações.
Analisa-se a mudança que os teóricos propõem entre os movimentos
sociais tradicionais e os Novos Movimentos Sociais (NMS). A mudança reside
nas novas formas de se fazer política, basicamente a partir da sociedade civil,
e não apenas da política estatal, que visa à ampliação de espaços de poder na
302
estrutura do estado em benefício do próprio movimento. Nesse aspecto, as
questões macroestruturais dão lugar às especificidades da cultura conjuntural
cotidiana (microestrutura) com apoio da sociedade civil local. Desta forma
atenta-se para o binômio espaço-tempo, visando mudar a ordem das coisas,
pois a força desta mudança encontra-se nos próprios atores sociais
(protagonistas das mudanças).
Finalmente, estuda-se o movimento social rural (respaldado pela
sociedade civil) e sua relação com a propriedade rural, seja ela pública ou
privada.
Delimita-se o tema acerca das origens históricas dos movimentos sociais
focando, apenas, os movimentos sociais ligados a questão agrária, as
reivindicações, as pressões sociais, a influência da Igreja Católica e as lutas
empreendidas pela terra. Aborda-se, também, o questionamento sobre a
efetividade do princípio da função social da propriedade rural, como meio de se
obter uma nova política de desenvolvimento rural no país.
2. MOVIMENTOS SOCIAIS RURAIS E A PROPRIEDADE
Alguns movimentos sociais são mais populares, possuem mais
visibilidade e aglutinam um número maior de atores e admiradores. A maioria
desses movimentos lutou por terra, casa, comida, direitos sociais elementares,
é dizer, sobrevivência.
Os movimentos sociais clássicos distinguem-se dos novos movimentos
sociais pela busca constante de uma emancipação financeira destes.
Sindicatos reivindicam por contribuições mensais dos filiados; ONG‘s
pesquisam outros organismos (nacionais ou internacionais) que forneçam
recursos financeiros; organizações multinacionais como Greenpeace e WWF
fazem campanhas constantes de arrecadação financeira para custear o
movimento social.
Alguns sociólogos entendem que há uma dissociação dos estudos dos
movimentos sociais urbanos e movimentos sociais rurais. Mas existe outra
303
corrente que diverge e analisa aspectos de confluências entre estes
movimentos.
Passa-se a análise dos principais movimentos sociais atrelados
diretamente às questões locais da luta pela terra.
A partir da década de 1950, as ligas camponesas e os sindicatos são as
formas mais importantes de organização e luta política dos camponeses.
Somente para citar alguns movimentos sociais nas diversas regiões do
país em Governador Valadares (Minas Gerais); Revolta de Trombas e
Formoso(Goiás);
Porecatu,
Pato
Branco,
Francisco
Beltrão,
e
Capanema(Paraná); Ligas Camponesas (Pernambuco e Paraíba); Movimento
dos Agricultores Sem-Terra (Rio Grande do Sul). O último movimento que tem
sua sigla com iniciais denominada de MASTER.
Elege-se, neste ínterim movimentos que tiveram mais relevo no âmbito
da história e servem de fundamento para os movimentos sociais atuais.
2.1 Ligas Camponesas
Trabalhadores rurais começaram a se organizar em ligas camponesas
frente às dificuldades legais em organizarem-se em sindicatos. A orientação
política dada à época para as ligas, era do Partido Comunista Brasileiro,
durante a década de 1940. Após a colocação do PCB na ilegalidade, as ligas
camponesas ficaram na clandestinidade até seu ressurgimento no ano de
1954.
Em Recife forma-se o movimento chamado Sociedade Agrícola de
Plantadores e Pecuaristas de Pernambuco (SAPP) que tinha como bandeira,
lutar contra as expulsões
de trabalhadores por parte dos proprietários de
engenho.
Fato é que as ligas tomam dimensão nacional após a imprensa da época
apelidar de movimento dos ―galileus‖. As ligas passam a congregar foreiros,
posseiros, cortadores de cana e outros trabalhadores. Santos (1995, p. 107)
versa que:
304
[...] Rapidamente se espalha País afora, organizando-se em treze
Estados. Desenvolveram-se, principalmente na agroindústria
canavieira de Pernambuco e Paraíba. Conseguem encaminhar a
discussão de temas fundamentais, como a posse de terra e o da
destruição do campesinato, pela expulsão do foreiro, destruição do
‗morador‘‘ e extinção do contrato de parceria. Denunciavam um dos
marcos principais do desenvolvimento do capitalismo crescente: a
crescente subordinação da terra ao capital, gerador da expulsão do
homem do campo.
As ligas camponesas trazem à lume a situação de espoliação a
que se submetiam os trabalhadores rurais, contestam as alianças dos setores
dominantes, apontam soluções para o problema da reforma agrária, luta contra
o aumento do foro(espécie de imposto pagos pelos foreiros aos proprietários) e
melhor distribuição de terras.
A opinião de Elide Rugai Bastos apud Pereira (2000 p. 108)
acerca das ligas camponesas e sua precocidade de sua expansão nacional,
temos:
[...] O debate sobre cambão, foro, latifúndio, violência privada contra
os trabalhadores tinha ressonância diferenciada em cada um dos
seguimentos que as compunham. Por trás desses aspectos do
debate, o que estava realmente ocorrendo era a expansão do
capital, da empresa capitalista, ‗da subsunção real e formal do
trabalho ao capital‘.
[...]
organizações partidárias e lideranças dos camponeses, ao longo
dos anos, se fixaram em torno de programas que homogeneizaram
as diversas categorias de trabalhadores rurais em luta.
[...]
À medida que o movimento se expandia em nível nacional suas
palavras de ordem apareciam ‗distantes, estranhas e abstratas para
muitos galileus de diferentes galiléias‘.
2.2 A igreja católica como movimento social
A igreja inicia a partir da década de 1950 um movimento de aproximação
com as camadas populares, com influência da doutrina social da igreja católica
através das Encíclicas sociais do Papa Leão XIII e Pio XI, o pioneiro a tratar do
tema foi o bispo Diocesano Frei Inocêncio Engelke que lança uma Carta
Pastoral, cujo teor tem-se de enaltecer por sua coragem:
305
Conosco, sem nós ou contra nós se fará a Reforma Social [...] Fazse mister uma reforma de estrutura e de base, cuja configuração foi
felizmente delineada nesta semana por fazendeiros, sacerdotes e
professores rurais [...] É sabido que a situação do trabalhador rural é,
em regra, infra-humana entre nós. Merecem o nome de casas os
casebres em que moram? É alimento a comida de que dispõem?
Pode-se chamar de roupas os trapos em que se vestem? Pode-se
chamar de vida a situação em que vegetam, sem saúde, sem
anseios, sem visão e sem ideais?
E os agitadores estão chegando ao campo. Se agirem com
inteligência nem vão ter necessidade de inventar coisa alguma.
Bastará que comentem a realidade, que ponham a nu a situação em
que vivem ou vegetam os trabalhadores rurais. Longe de nós patrões
cristãos fazer justiça movidos pelo medo. Antecipai-vos à revolução.
Fazei por espírito cristão o que vos indicam as diretrizes da igreja.
CAMARGO A.A. 1981 Apud Santos (1995 p. 113)
Na década de 1960 a Igreja se volta para um trabalho organizado e
mobilizador, principalmente, na Arquidiocese de Natal (RN), sob orientação de
Dom Eugenio Sales, começa um trabalho de sindicalização rural, que passou a
treinar lideranças e dar orientação sobre a formação sindical.
Neste ínterim dois movimentos delineiam as ações da igreja católica,
quais sejam, aqueles que queriam uma reforma, mas mantendo um controle do
movimento social através dos sindicatos Cristãos. E em outra vertente um
grupo que propunha uma sociedade com perfil socialista, que mais tarde se
denominou de Ação Popular(AP)
Deste combate interno da Igreja e em conjunto com outras forças que
atuavam no campo (PCB e Ligas Camponesas), em dezembro de 1963 é
criada a CONTAG. Reconhecida em janeiro de 1964, a CONTAG se
comprometeu com a sindicalização e luta pela reforma agrária.
As experiências de Natal rapidamente se estende a outras dioceses do
Nordeste. Em 1961, o Governo Federal cria o Movimento de Educação de
Base (MEB) e a CNBB toma a frente a bandeira desta luta e vinculados à Igreja
Católica se incorporam ao trabalho do MEB, especialmente à Juventude
Universitária Católica, como bem assevera Santos(1995, p. 113): ―Há uma
sensível aproximação de setores da classe média da igreja com as classes
populares.‖
306
Há que se falar também na teologia da libertação, no âmbito da igreja
católica, que deu o norte para os movimentos eclesiais de base, tais como a
Comissão Pastoral da Terra. A CPT falar-se-á mais adiante quando
adentraremos na influencia deste movimento rural para a conquista de
melhores condições de vida e também um braço forte do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem-Terra.
A Teologia da Libertação ―une fé e política, análise da sociedade em
conformidade com as Ciências Sociais, à luz dos ensinamentos bíblicos, essa
teologia marcará o futuro da Igreja junto aos empobrecidos‖. Como sabemos
principalmente nos países latino-americanos que a teologia da libertação toma
corpo como uma ação libertadora, senão vejamos:
No trabalho da Igreja e dos movimentos dos trabalhadores rurais que
nela se apóiam há uma espécie de democracia de base, um
igualitarismo comunitário [...] onde o ‗povo‘ é chamado a participar, a
decidir, a acreditar no seu saber e na capacidade de resolver os
problemas que enfrenta. É Inegável o populismo de tal prática, como
é inegável o resgate político da cultura popular, como base da
resistência e da luta dos trabalhadores, e o apelo ao exercício da
cidadania. Grybowski (1990, P. 67)
2.3 Comissão Pastoral da Terra - CPT
A Comissão Pastoral da Terra define-se como um serviço de apoio e
assessoria aos trabalhadores rurais.
O autor Marcelo Barros de Souza Apud Santos (1995, p. 185) disserta
acerca da CPT:
O trabalho da CPT rapidamente se estendeu por todo o País.
Trabalhando em torno dos problemas da propriedade da terra e da
violência no Campo, parte para uma ação direta junto aos
trabalhadores, contribuindo para a sua conscientização da realidade,
sua organização e sua mobilização na busca de separação de
problemas. Desta prática pastoral se vai elaborando roda a Teologia
da Terra.
Para Grybowski a partir de então a igreja passa a ser um canal de
expressão política dos movimentos sociais no campo. Utiliza-se seu peso
institucional e político em face do Estado, visando influir na definição da
307
políticas para o campo. Ainda, para o autor organismos da igreja atuam
diretamente junto aos movimentos de trabalhadores rurais, dando-lhes
características específicas e influindo no desenvolvimento das lutas.
Contudo a Teologia da Libertação e a Comissão Pastoral da Terra se
utilizam da leitura da realidade social pela qual vive os trabalhadores com apoio
da instrumentalidade das Ciências Sociais e da reflexão bíblico-teológica para
colocar em prática o método catolicista de intervenção ―ver-julgar-agir‖ com o
escopo de atingir politicamente o que se pretende.
No ano de 1980, a Conferência Nacional de Bispos do Brasil, por sua
Assembleia-Geral aprova o documento Igreja e problemas da Terra. Trata-se
de um dos mais importantes documentos do magistério eclesial e que marcará
profundamente a ação pastoral da Igreja no campo.
O documento traz à discussão a falta de paridade da política fundiária,
bem como ataca o aparelho estatal por perseguir os pobres e por privilegiar a
classe dominante.
Dentre os ditames do resultado da conferencia, temos:
A terra é uma dádiva de Deus. Ela é um bem natural que pertence a
todos e não um produto do trabalho.Mas é o trabalho sobretudo que
legitima a posse da terra.
[...]
Procuraremos valorizar, preferencialmente, o ponto de vista, o modo
de pensar e a experiência concreta dos que sofrem por causa do
problema da terra
[...]
Movidos pelo Evangelho e pela Graça de Deus, devemos não somente
ouvir, mas assumir os sofrimentos, as angustias, as lutas, e
esperanças das vítimas da injusta distribuição e posse da terra.
[...]
Terra de exploração é a terra de que o capital se apropria para crescer,
continuamente, para gerar sempre novos e crescentes lucros.
[...]
Terra de trabalho é a terra possuída por quem nela trabalha. Não é
terra para explorar os outros, nem para especular.
Os bispos do Brasil, em consonância com a doutrina social da igreja e
contra uma concepção capitalista do direito de propriedade, dão novo norte a
função social dos bens da Igreja, ou seja, assume o compromisso de denunciar
situações injustas
e violências que se cometem nas áreas das diversas
308
dioceses, reafirma através deste documento apoio as iniciativas e organizações
de trabalhadores rurais que queiram mobilizar-se na luta pela terra.
Desta forma, a Igreja firma posição ao incentivar a CPT e demais
organismos eclesiais para fomentar uma mudança na política fundiária no
Brasil que, trazendo para o mundo jurídico, seria a efetividade do princípio
constitucional da função social da propriedade rural.
2.4 Sindicatos
Ao lado das ligas camponesas multiplicaram-se os Sindicatos de
Trabalhadores Rurais – STR‘s, que albergavam tanto os camponeses como os
diversos assalariados do campo. Os sindicatos rurais tiveram seu ápice na
década de 1960, que culminou com a criação de um órgão maior e centralizado
que seria inicialmente a Federação de Trabalhadores na Agricultura e
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura(CONTAG).
2.5 Movimento dos Agricultores Sem Terra – MASTER
No Rio Grande do Sul, a partir da década de 1960, começam a serem
criados os primeiros núcleos dos MASTER‘s. Este movimento foi o primeiro a
iniciar uma forma de luta que contava com acampamentos enormes na região
em que haviam latifúndios ociosos, que não tinham utilidade alguma.
Entrementes, o movimento social partia para a luta da desapropriação, ainda
com fundamento na Constituição Estadual (que previa a desapropriação de
propriedades improdutivas).
Os fins alcançados foram maiores que os pretendidos, conseguindo
conquistar tanto áreas públicas como privadas.
O êxito do movimento em questão serviu como molde para o Movimento
dos Sem-Terra planejar estratégias de intervenção e grupo de pressão para
alcançar sua bandeira de luta.
Para melhor ilustrar esta situação vejamos a opinião de Medeiros apud
Santos(1995 p. 112):
309
O que chama a atenção é que o acampamento marcou o
aparecimento de uma forma nova de pressão: não se tratava
mais de posseiros resistindo ao despejo ou foreiros negandose pagar maior renda ou a sair de terras onde há muito viviam.
Eram ofensivas de trabalhadores já expropriados ou semiexpropriados demandando terras ainda não cultivadas, através
da pressão direta sobre o Estado.
O MASTER buscava ter conquistada a efetividade da função social da
propriedade rural naquele momento, utilizando-se da Constituição do Estado do
Rio Grande do Sul. Hoje o Movimento dos Sem-Terra por ser um movimento de
caráter nacional se apega a Constituição Federal de 1988 para ter sua forma
de pressão respaldada por um pronunciamento da Lei fundamental do país.
Dentre as lutas empreendidas no campo estendeu-se uma conquista
social antes concedida somente aos trabalhadores urbanos, que foi o Estatuto
do Trabalhador Rural, de 1963.
O Estatuto do Trabalhador Rural apenas formalizou as mudanças sociais
que já vinham ocorrendo no país. Porém o fim a que se destinou tal estatuto
não chegou a bom termo sua utilização. No ano seguinte seguiu-se de uma
brutal perseguição aos Sindicatos e Ligas Camponesas.
Lideranças foram presas, assassinadas ou forçadas a se exilarem, ou
seja, houve um sério ―aniquilamento das instituições do movimento social‖ rural
(santos 1995, p. 145).
Nos idos de 1970 começa o retorno das lutas camponesas pela terra,
pelos direitos trabalhistas dos assalariados, pelos direitos indígenas, em defesa
dos atingidos pelas hidrelétricas, etc.
Porém como elenca J. S. Martins Apud Santos (1995, p. 145) faz duas
acepções do que vem a ser nesta época a luta pela terra e a luta pela Reforma
Agrária:
[...] Reforma Agrária é a linguagem do Estado, das Classes
dominantes e do pacto político dessas classes. É um problema para
as classes dominantes na medida em que a sua não-realização
supostamente dificultaria a reprodução ampliada do capital. Só há,
assim, necessidade de Reforma Agrária se ela é uma questão para o
capital, ‗um empecilho que o capital deva remover para reproduzirse‘. A luta pela terra, por sua vez, cresceu no Brasil na época da
310
ditadura militar e atinge em cheio a concepção mesma do direito de
propriedade, e, em conseqüência (sic), o edifício político da
sociedade brasileira. Daí a extrema dureza com que foi tratada a luta
pela terra por parte da ditadura: prisões, torturas, assassinatos,
conivência com a violência privada.
[...]
essas lutas passam a ser um único eixo que lhes dá sentido e que
estabelece a unidade da sua diversidade: esse eixo é constituído
pela propriedade da terra, pelo direito de propriedade e pela classe
social dos que o exercem, praticamente em condições de monopólio.
Debruça-se no presente trabalho justamente esta idéia das lutas sociais
dos movimentos que versa sobre o direito absoluto da propriedade rural, ou
seja, o direito de usar e abusar de seu exercício como proprietário e o efetivo
uso desta terra perante toda a sociedade.
Como bem elenca a autora Gohn (2008 p. 285) na década de 1980
vários fatores contribuíram para as alterações dos rumos pelos quais os
movimentos sociais estavam enveredando:
No decorrer dos anos 80 os movimentos sociais no Brasil passaram,
no plano da atuação concreta e no plano das análises deles feitas,
da fase do otimismo para a perplexidade e, depois, para a
descrença. Vários fatores contribuíram para essas mudanças, com
destaque para as alterações nas políticas pública e na composição
dos agentes e atores que participam de sua implementação, gestão
e avaliação; consenso, a generalização, e o posterior desgaste das
chamadas práticas participativas em diferentes setores da vida
social; o crescimento enorme do associativismo institucional,
particularmente nas entidades e órgãos públicos, os quais
cresceram muitos em termos numéricos ao longo dos anos 80; a
absorvendo grande parte da parcela do setor produtivo privado; o
surgimento de grandes centrais sindicais; o aparecimento de
entidades aglutinadoras dos movimentos sociais populares,
especialmente no setor de moradia; e, fundamentalmente, o
surgimento e crescimento, ou a expansão, da forma que viria a ser
quase que substituta dos movimentos sociais nos anos 90: as
ONG`s - Organizações Não-Governamentais.
Estas camadas passaram de servir aos anseios populares para seguir o
caminho de dirigente de entidade, buscando, com isso, o caminho da
profissionalização. Desta forma se distanciando das bases dos movimentos
sociais.
311
2.6 Movimentos dos trabalhadores rurais Sem-Terra
Muito embora o movimento dos Sem-Terra fora criado nos idos de 1979,
especificamente, no Estado de Santa Catarina.
No ano de 1981 começa a se organizar o MST, utilizando-se da tática de
acampamento (prática do MASTER). O primeiro grande acampamento, de
repercussão nacional e internacional, foi o de Ronda Alta, no Estado do Rio
Grande do Sul. Santos( 1995, p. 151):
Posseiros expulsos da Reserva Indígena Kaigang, de Nonoai(RS),
acompanhados por outros sem-terra acampam e exigem terra no
Estado. São 600 famílias, em menos de dois meses de
acampamento. A repressão militar, inclusive com a participação
direta de agentes do Conselho Segurança Nacional (sic), tudo fez
para desmobilizar e isolar o acampamento. Depois de meses de
grandes mobilizações, a Igreja adquire quatro fazendas no Estado,
em 1983. Novos acampamentos forma surgindo. O movimento se
alastra para outros Estados e rapidamente se encontra em quase
todo o país, principalmente no Sul e Sudeste, regiões mais
desenvolvidas em termos capitalistas.
A partir de 1984 consolida-se os diversos movimentos sociais rurais no
MST. No ano seguinte, no município de Curitiba, realiza-se o I Congresso
Nacional, com a participação de Delegados de todo o país.
Dentre as reivindicações constantes deste 1º Congresso as principais
reivindicações estavam:
- que a terra seja para quem trabalha;
- que a Reforma Agrária seja feita sob controle dos Trabalhadores;
- que o governo legalize as terras que forem ocupadas;
- que o governo desaproprie os imóveis com mais de 500 ha;
- que o Estado garanta todas as condições de produção e de
assistência nas terras distribuídas;
- que o governo aplique, no mínimo, 5% do orçamento da União para
a Reforma Agrária;
- que os assentamentos ocorram nas regiões de origem dos
trabalhadores;
- que os governos estaduais possam realizar desapropriação para
fins de reforma agrária;
- que os trabalhadores, ao ocuparem as terras, criem as suas
próprias leis e organismos;
- que se crie o fórum de Justiça Agrária no Poder Judiciário, com a
participação dos trabalhadores;
312
- que se revogue o ―Estatuto da Terra‖;
- que sejam criadas novas leis, com a participação dos
trabalhadores, tendo presente sua experiência;
- que sejam apurados os crimes e punidos os autores de violência
contra trabalhadores e seus aliados;
- que o governo faça controle dos cartórios de registros de imóveis,
para evitar a falsificação de registros;
- que a repressão policial seja utilizada contra a criminalidade e não
contra trabalhadores;
- que se ocupem imediatamente todas as terras ociosas e públicas.
(do livro Reforma Agrária: necessidade urgente. São Paulo:
Paulinas, 1987, p. 32-36 – Marcelo W. Paiva
O MST é o principal movimento político para os camponeses, haja vista
que em menos de cinco anos (muito embora seja no ínterim do período de
redemocratização
1985-1990)
os
trabalhadores
do
MST
conseguem
desapropriar mais terras do que os trinta anos de luta do movimento sindical
rural.
Sem dúvidas o MST é o maior movimento social da história recente do
Brasil aglutinando forças internas na luta pela terra atingindo certa
homogeneidade nas ações, situação esta difícil haja vista as especificidades
dos conflitos locais.
O movimento social popular rural cresce na década de 1980, cuja idéia
logo se espalha por todo o Brasil, sua pratica é realizar ocupações de terras;
organizar-se em acampamentos; lutas pela obtenção da posse de terra em
assentamentos (cuja discussão se dará mais adiante) criados pelo governo
federal(ou mesmo reconhecida por ele após a área já se encontrar ocupada,
cria cooperativas de produção e comercialização, funda escolas de formação
de lideranças, elabora cartilhas para escolas de nível fundamental.
Como todo movimento social organizado possui uma diretriz comandada
pelos dirigentes de âmbito nacional, dentre os quais podemos destacar, João
Pedro Stédile. O movimento sofre grandes e graves distorções no tocante a
concretude de suas ações, mas tem-se que ter em mente o país de medições
continentais, bem como especificidades de cada região, pois um comando para
a região norte não pode ter o mesmo condão de um comando da região sul do
Brasil.
Em seu ensaio GOHN (2008 p. 305), aborda que o Movimento dos SemTerra(MST) muda as diretrizes programáticas e altera sua filosofia política:
313
Na origem, nos anos 70, o MST esteve associado à CPT(Comissão
Pastoral da Terra). Nos anos 80 passou a contar com dirigentes
ligados à CUT e ao PT, e a fundamentar seu projeto no socialismo
marxista. Nos anos 90, sem abandonar de vez seus ideais
socialistas, o MST redefine suas estratégias para se inserir numa
economia de mercado, tornar seus assentamentos produtivos,
voltados para o mercado externo e não apenas para o consumo de
subsistência.
Mas os anos 90 trouxeram também o recrudescimento da luta no
campo. Centenas de trabalhadores foram mortos em conflitos pela
posse de terra, a maioria deles assassinados. O cenário ficou tão
gritante que alcançou a mídia internacional. A matança de dezenove
sem-terra no sul do Pará, em abril de 1996, foi manchete nos
principais jornais do mundo. Neste mesmo ano foi recriada a UDR –
União Ruralista Brasileira, entidade dos proprietários de terras,
desativada desde 1992. Os conflitos no Pontal do Paranapanema,
Estado de São Paulo, ganharam nesse período as manchetes dos
principais jornais e noticiários do país. O MST transforma-se no
maior movimento popular do Brasil nos anos 90. Entre 1994 a 1997 a
atuação do MST se ampliou consideravelmente e ele elaborou
projetos para a frente que passou a ser sua maior bandeira de luta: a
reforma agrária. O problema do aumento da violência urbana, gerada
pelo desemprego, levou a sociedade brasileira, de modo geral a
apoiar a luta dos sem-terra pela reforma agrária, na esperança de
fixar o homem no campo, diminuir a pobreza nas cidades, e diminuir
aquela violência. Assim, a reforma agrária foi deixando de ser um
tabu no Brasil, passando-se a construir uma nova representação
sobre essa realidade. A ―causa‖ dos Sem-Terra passou a ser
considerada justa nas pesquisas e enquetes de opinião pública,
embora a grande maioria rejeite as invasões de terras‖ como forma
de pressão.
A exposição da autora resume em poucas palavras a ascensão do
movimento e seu reflexo na sociedade brasileira acerca do Movimento dos
Sem-Terra
no
tocante
às mudanças de
rumo
em
seus conteúdos
programáticos.
Especificamente no final do século passado e inicio do século XXI, os
líderes do MST, pelo fato do movimento social ter altos índices de popularidade
em sua bandeira de luta, conforme diversas pesquisas de opinião não
aproveitaram a situação que lhe era favorável para construir alianças entre os
movimentos sociais rurais e urbanos, observa-se que existe uma espécie de
ingenuidade por parte dos Sem-Terra em julgar-se suficientemente forte para
conseguir atingir seus objetivos.
314
Outro autor que fala especificamente do tema é o autor Eric Hobsbawn
Apud Elvio Quirino Pereira (2000, p. 36) no âmbito da Sociologia na Subárea
de Sociologia Rural:
[...] verifica-se que nos últimos anos diversos movimentos sociais
surgiram no campo, lutando por melhorias no mundo rural. Não
podemos deixar de reconhecer que a reforma agrária ocupa espaço
central nos objetivos dessas lutas sociais e, por conseqüência, atraiu
a grande polemica do debate. Todavia, merecem um destaque
especial as lutas travadas pelo Movimento dos Trabalhadores Sem
Terra/MST. Assim até mesmo contrariando algumas previsões dos
especialistas, verificou-se a emergência, de forma rápida e
ascendente, do Movimento dos Trabalhadores rurais que se
organizou e passou a pleitear um conjunto de reivindicações visando
a melhoria das condições da vida rural.
Nos anos 90 concomitante ao crescimento do Movimento dos SemTerra, observa-se o refluxo organizacional do patronato, que outrora tinha mais
força movida pela UDR, bem como o declínio constante do poder especulativo
por parte do patronato, pelos contextos formados nesta época, tais como:
[...] (1) a abertura comercial da década e, posteriormente, a
ancoragem ‗verde‘ do Plano Real; (2) a perda da capacidade
financeira do Estado, deixando de manter os benefícios dos setores
patronais rurais e, também, (3) a recente estabilização monetária
(incluindo os preços das terras), um golpe mortal para setores
especulativos, que utilizavam histórias inflacionárias crônicas – como
a brasileira – para valorizar seus ativos patrimoniais, mesmo que
sem nenhuma utilização produtiva (Navarro apud Pereira 2000 p. 37)
A figura do coronel que detinha um ‖super poder‖ começou a cair
principalmente no final do século passado, pode-se verificar uma ruptura ou
quebra de paradigma no sentido de inverter a curva acentuada da enorme
concentração de terras principalmente pelos grupos de pressão acima
descritos bem como políticas fundiárias específicas para enfrentamento da falta
de terras no Brasil.
No âmbito da legislação atual a propriedade de terra se confunde com
cidadania, ou seja, ―quem não tem terra, não tem condições de exercer um
315
papel cidadão, ficando na maioria das vezes submetido aos interesses e
desejos dos projetos de vida do proprietário‖ Pereira (2000, p. 38).
Os constituintes, de 1988, corroboraram o que estava descrito no
Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/1964) evidenciando o princípio da função social
da propriedade rural, sem profundas modificações em seu teor, disciplinando,
―concomitantemente, os requisitos da produção (uso racional e adequado), da
ecologia (preservação e conservação dos recursos naturais) e social (respeito
aos direitos trabalhistas)‖ disposto em ALMEIDA (1990, p. 65), havendo,
contudo, diferentes linhas de pensamento, no âmbito conceitual no que
concerne aos elementos dos incisos do artigo 186, da Carta Constitucional de
1988.
Por outro lado, a Constituição de 1988 significou claro atraso em relação
ao Estatuto da Terra, por ser caudatária dos movimentos sociais não define,
por si, uma organização para ser eficácia social do instituto (função social da
propriedade). Pelo contrário é os movimentos da sociedade civil, a academia,
os embates entre interesses e as mudanças de valores que definem a noção
do que deve ser compreendido como norma.
Modernamente, além de se ater aos requisitos ou aos elementos supracitados debruça-se a atenção para um assunto pouco explorado por parte dos
jusagraristas, todavia, massificado por parte dos jusambientalistas que tratam
da perpetuação da espécie humana, preceito também constitucional que está
fraternalmente ligado ao tema do projeto, previsto no caput do artigo 225:
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
bem estar comum do povo e essencial à sadia qualidade de
vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de
defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras
gerações(...) ‖Gfifo Nosso
Seguindo-se o rito deste caput tem-se claro o seu caráter complementar
à função social da propriedade rural.
O implemento da execução da função social da propriedade rural seria a
melhor forma de diminuição dos conflitos rurais e desigualdades sociais
existente no Brasil? A função social da propriedade rural tornou-se letra morta
316
(inócua)?
A
presente
dissertação
tem
por
objeto
elucidar
estes
questionamentos.
Consoante o contexto dos grupos de pressão (movimentos sociais
ligados a terra), sua luta focada na reforma agrária com a distribuição de terras
melhoraria, sem dúvida, a condição de vida de uma parcela da população
brasileira, no que se refere aos direitos humanos fundamentais, porque a
―necessidade de reforma agrária em nosso país é comprovada exatamente
pelo elevado índice de concentração de terras nas mãos de poucos, sem que
elas estejam cumprindo a sua função social‖ ARAUJO JUNIOR (2002 p. 24).
3 REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Paulo Guilherme de. Aspectos jurídicos da reforma agrária no
Brasil. São Paulo: LTr, 1990.
ANGHER, Anne Joyce, VADE MECUM, Acadêmico de Direito, 4ª edição. São
Paulo: Rideel, 2007.
ARAÚJO JUNIOR, Vicente Gonçalves. Direito agrário:
jurisprudência e modelos. Belo Horizonte: Inédita, 2002.
doutrina,
Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB. Igreja e problemas da
terra. São Paulo: Paulinas, 1980, n.91
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Livraria Francisco Alves, Rio de Janeiro,
1997, 38ª edição.
GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais: Paradigmas
clássicos e contemporâneos. São Paulo - Edições Loyola: 2008 - 7ª ed.
GRYBOWSKI, Cândido. Caminhos e descaminhos dos movimentos sociais
no campo. 2 ed. Petrópolis: Vozes/FASE, 1990.
MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil: as lutas
sociais mo campo e seu lugar no processo político. Petrópolis: Vozes,
1990.
MONTEIRO, Douglas Teixeira. Um confronto entre Juazeiro, Canudos e
Contestado. In: História Geral da Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, São
Paulo: DIFEL, 1978, t.3.
317
SANTOS, Fábio Alves dos. Direito Agrário: política fundiária no Brasil. Belo
Horizonte: DEL REY, 1995.
318
MUNICÍPIO:
PIONEIRISMO NA AUTONOMIA FEDERATIVA PELA CRFB DE 1988 E
IMPORTÂNCIA NA FORMA DE INSTRUMENTALIZAÇÃO DEMOCRÁTICA NO
DESENVOLVIMENTO DE POLÍTICAS PÚBLICAS
Mayara Tavares de Freitas161
[No município estão as desgraças e os sucessos
nacionais, as grandezas e as misérias de uma nação, os
problemas e as soluções necessárias, os conflitos de
base e as esperanças de futuro] FRANCO SOBRINHO
RESUMO
A limitação espacial do poder, típica do sistema federalista, representa uma importância ímpar
no que tange as liberdades públicas e um instrumento propício à própria concretização da
democracia, uma vez que quanto mais próximo estiver localizado o poder daqueles a quem são
destinatários maiores serão as possibilidades de efetivação dos direitos e garantias
fundamentais previstos na CF de 1988, além da consecução dos objetivos delineados pela
mesma. O Federalismo tem, pois, uma importância única, uma vez que possibilita aos
destinatários do poder possibilidades de uma participação mais efetiva no que concerne ao
governo que mais próximo se apresenta, a saber os municípios, entidade dotada de autonomia
política, administrativa e financeira, considerada como a célula mater do pacto federativo,
razão pela qual o presente trabalho vem o presente trabalho vem trazer maiores explanações
teóricas a respeito da importância e dada a este ente federativo na nossa Constituição.
PALAVRAS-CHAVE: FEDERALISMO, PARTICIPAÇÃO, DEMOCRACIA, MUNICÍPIO.
ABSTRACT
The space limitation of power, typical of the federal system, represents a unique importance in
terms of civil liberties and an instrument enabling the achievement of democracy, because the
closer you are located in the power of those to whom they are addressed the greater the
chances of realization of the rights and guarantees enshrined in CF 1988, in addition to
achieving the objectives outlined by it. Federalism is therefore an important one, because it
allows the recipients of the power possibilities of a more effective regarding the government to
close it stands, namely municipalities, autonomous entity with political, administrative and
financial regarded as the mother cell of the federative pact, which is why the present work this
study will bring more theoretical explanations about the importance and because of this entity in
our federal Constitution.
KEYWORDS: FEDERALISM, PARTICIPATION, DEMOCRACY, MUNICIPALITY
161
Bacharelanda em Direito pela UEPB
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319
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo primordial uma análise jurídica e
formal à luz da Constituição Federal de 1988, trazendo consigo um conjunto de
ensinamentos de cunho doutrinário para uma melhor consideração a respeito
do Sistema de Repartição de Competências adotada pela mesma Constituição
Federal de 1988 em relação aos Municípios.
É bem verdade que não existe Estado sem municipalidades, pois é
inadmissível a possibilidade de existência de uma nação sem existência de um
Estado e a CRFB veio através do seu texto legal trazer à tona uma série de
reivindicações de municipalistas clássicos, tais como Helly Lopes Meireles e
Lordelo de Melo, assim como de forma indireta de todo o povo brasileiro.
Tal disciplina contida no texto constitucional é, ademais, inovadora, uma
vez que não se dispunha de semelhante dispositivo em constituições
anteriores, tendo uma ligeira passagem na Constituição de 1824, mas não
havendo uma consolidação definitiva de tal autonomia na CF de 1988, sem
mencionar o fato de que isto é uma situação singular do regime constitucional
brasileiro, uma vez que não existe situação semelhante em ordenamentos
constitucionais de outros países do mundo, razão pela qual estudos mais
detalhados devem ser desenvolvidos a respeito de tal situação, pois fazemos
parte de um ordenamento jurídico pioneiro na questão referente à autonomia
política municipal, sendo este trabalho delimitado no que tange as condições
de análise, mas de cunho encorajador a posteriores trabalhos científicos.
Por fim, procurou-se através de um estudo da evolução do federalismo(
que sempre se previu uma união de Estados e não de municípios), uma forma
caracterizar a participação do ente municipal como ente federativo, tendo
assumido a federação brasileira um caráter peculiar, além da utilização de
algumas Jurisprudências Nacionais e Súmulas para uma maior exemplificação
a respeito dessa relação de autonomia ora concedida pela nossa Carta
Constitucional, priorizando-se a autonomia político-administrativo do municípios
como instrumento imprescindível a concretização da democracia brasileira.
320
2- TRAJETÓRIAS HISTÓRICAS DO FEDERALISMO NO BRASIL
Entende-se por federalismo a relação entre as diversas unidades da
Federação tanto entre si, como quanto o Governo Federal, sendo caracterizado
como um sistema político que no qual os municípios, Estados e Distrito Federal
formam um todo que valida um governo central, sendo o Estado Federal
dotado de soberania, pois tem personalidade jurídica de Direito Público
Internacional, e os estados dotados somente de autonomia.
Assim, pode-se mencionar que ―a repartição regional de poderes
autônomos constitui o cerne do conceito de Estado Federal‖ ( SILVA; 2006, p
99)
O modelo de federalismo adotado pelo estado brasileiro é o modelo dos
Estados Unidos da América, muito embora traga consigo situações opostas ao
que ocorreu nos EUA, uma vez que no mesmo, as unidades que formavam os
estados tinham como meta principal a formação de um Estado central, ao
passo que
unidades brasileiras tinham como escopo a autonomia de um
governo Central estabelecido no país, governo este estabelecido no Brasil até
1989 com a proclamação da república, e a consequente adoção do
federalismo. Assim, desde de sua origem vemos o surgimento de uma
federação de caráter peculiar no Estado Brasileiro, uma vez que tivemos
desde de seu surgimento um federalismo de imposição do próprio governo
brasileiro em ser um Federação, situação oposta da Federação NorteAmericana, na qual o próprio povo abrira mão de sua soberania a fim de criar
uma Federação.
Diante desta perspectiva, é latente a transformação de um Estado
Centralizado para um Estado Federal, conforme entendimento também
presente em Uadi Bulos :
A federação brasileira formou-se de dentro para fora, num movimento
centrífugo, pois tínhamos um Estado Unitário que se descentralizou
para formar unidades autônomas de poder. ( BULOS:2007, p 714 )
Assim, conforme pode-se observar a federação brasileira, desde de sua
origem apresenta, pois características próprias e indiferentes a qualquer
modelo de federação existente, até mesmo do modelo de federação que fora
321
utilizado como base para a utilização do sistema federalista, a saber o Estados
Unidos da América como bem alude as afirmativas anteriormente explanadas.
O que fez com que a federação viesse a tornar-se uma figura estatal
dotada de características complexidades e peculiaridades dentro de cada
Estado, transcendendo ao clássico perfil idealizado pelos constituintes de
Filadélfia, que serviu de base para a Constituição America de 1787, também
compartilhando de tal entendimento BULOS ( 2007).
2. O MUNICÍPIO É UM ENTE FEDERATIVO?
Diversas são as discussões doutrinárias traçadas no que tange ao
enquadramento dos municípios como ente federativo ou não, tendo como
principais representante dos que não consideram a participação municipal no
sistema federativo brasileiro JOSÉ AFONSO DA SILVA E JOSÉ NILO DE
CASTRO, que se baseiam da hipótese dos municípios não possuírem poder
judiciário, território e representação no Congresso Nacional, conforme dispõe
JOSÉ AFONSO DA SILVA:
...Foi equívoco do constituinte incluir os Municípios como componente
da Federação. Município é divisão política do Estado-membro. E
agora temos uma federação de municípios e Estados, ou uma
federação de Estados? ( SILVA:2007, p 101)
Respeitando-se
tal
entendimento
doutrinário
dos
eminentes
doutrinadores, a Constituição explicitamente reconheceu autonomia federativa
dos Municípios uma vez que tal que, nas próprias palavras do eminente
doutrinador JOSÉ AFONSO DA SILVA, ― A federação adquire peculiaridade,
configurando-se, nela, realmente três esferas governamentais: a da União (
Governo Federal), a dos Estados ( governos estaduais) e a dos municípios (
governos municipais), além do Distrito Federal, a que a Constituição agora
conferiu autonomia”. ( SILVA: 2007, p 640), apesar do próprio autor não afirmar
a existência do município enquanto ente federativo, pois o mesmo menciona
que a CF não o diz, não comungando com o mesmo, data vênia, no que tange
tal entendimento doutrinário
322
Com bem aluz ALEXANDRE DE MORAIS, ― A Constituição Federal
consagrou o município como entidade federativa indispensável ao nosso
sistema federativo, integrando-o a organização político-administrativo e
garantindo-lhe plena autonomia, como se nota na análise dos arts. 1º,18,29,30
e 34,VII, c todos da Constituição Federal.” ( 2003, p 273).
Compartilhando de tal entendimento doutrinário, BULOS( 2007, p
730,731) classifica o processo de autonomia política do Município em:
11. Capacidade de Autogoverno: revelando a autonomia governamental ou
política, pela qual ocorre a eletividade de prefeitos, vice-prefeitos e
vereadores.
12. Capacidade de Auto-administração: traz consigo a evidência de
autonomia de caráter gerencial ou administrativa, que se desenvolve
mediante a prestação de serviços locais, bem como o controle do
orçamento municipal, para equilibrar as receitas e as despesas, tendo,
assim, a o exercício de competências administrativas e tributárias, tendo
uma autonomia limitada, é claro, já que não possui soberania.162
13. Necessidade de Auto-organização: Advêm do fato de que o município
tem o poder de criar sua própria lei orgânica, devendo-se destacar o fato
de que os estados membros não tem poder de ingerência sobre os
municípios, podendo os municípios agora, organizar-se por si próprio.
14. Capacidade de Autolegislação: refere-se a autonomia legislativa, que
consiste na edição de normas de caráter cogentes, impessoais e
abstratas, pelo desempenho de competência legislativa municipal.163
162
STF Súmula nº 645 - 24/09/2003 - DJ de 9/10/2003, p. 2; DJ de 10/10/2003, p. 2; DJ de
13/10/2003, p. 2.Competência para Fixação do Horário de Funcionamento de Estabelecimento
Comerciais
É competente o Município para fixar o horário de funcionamento de estabelecimento
comercial.
163
Não cabe, ao Estado-membro, sob pena de frontal transgressão à autonomia constitucional do
Município, disciplinar, ainda que no âmbito da própria Carta Política estadual, a ordem de vocação
das autoridades municipais, quando configuradas situações de vacância ou de impedimento cuja
ocorrência justifique a sucessão ou a substituição nos cargos de Prefeito e/ou de Vice-Prefeito do
323
Nesse sentido corrobora MORAES, com as palavras de Paulo
Bonavides, segundo o qual o mesmo não reconhece uma unidade federativa
contemporânea onde o princípio da autonomia municipal tenha alcançado grau
de caracterização política e jurídica tão alto e expressivo quanto aquele que
consta da definição constitucional de novo modelo implantado no País com a
Carta de 1988 ( MORAES, 2003:p 274 apud BONAVIDES op. cit. P.314).
3. COMPETÊNCIA FEDERATIVA DOS MUNICÍPIOS NA CF DE 1988
Deve-se ressaltar que competências federativas nada mais são do que
segmentos de poder decorrentes da Soberania do Estado Federal ao entes
políticos, outorgando-lhes a capacidade de tomar decisões e regulamentar
suas atividades dentro das situações referidas na CF, devendo-se, não
obstante, falarmos de competências no plural.
Nas lições de Hely Lopes Meirelles,
[...]interesse local não é interesse exclusivo do Município, não é
interesse privativo da localidade, não é interesse único dos munícipes
[...]. Não há interesse municipal que não seja reflexamente da União
e do Estado-Membro, como também não há interesse regional ou
nacional que não ressoe nos municípios, como partes integrantes da
federação brasileira. O que define e caracteriza interesse local,
inscrito como dogma constitucional é a preponderância do interesse
do Município sobre o do Estado ou da União.( MEIRELES, 2003: 47)
Outrossim, é oportuno mencionar que a competência legislativa do
município caracteriza-se , pois, pela predominância do interesse local,
entendendo-se como tal, aquela que satisfaça às necessidades básicas e
imediatas do município, tais como a fixação do horário de funcionamento do
comércio e empresas locais( CF, art. 30); além da competência para
Município. A matéria pertinente à sucessão e à substituição do Prefei to e do Vice-Prefeito inclui-se,
por efeito de sua natureza mesma, no domínio normativo da Lei Orgânica promulgada pelo próprio
Município. - Não se reveste de validade jurídico-constitucional, por ofensiva aos postulados da
autonomia do Município (CF, arts. 29 e 30) e da separação de poderes (CF, art. 2º c/c o art. 95,
parágrafo único, I), a norma, que, embora inscrita na Constituição do Estado-membro, atribui,
indevidamente, ao Juiz de Direito da comarca, que é autoridade estadual, a condição de substituto
eventual do Prefeito Municipal.
(ADI 687, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 02/02/1995, DJ 10-022006 PP-00005 EMENT VOL-02220-01 PP-00001 LEXSTF v. 28, n. 326, 2006, p. 24-72)
324
estabelecimento de um plano diretor – aprovado pela câmera municipal,
obrigatório para cidades com mais de 20.000 habitantes, instrumento básico de
política de desenvolvimento e expansão urbana(CF, art. 182) e a competência
suplementar no que couber no que tange a legislação federal e estadual, no
que couber, ― competirá aos municípios legislar supletivamente sobre a
proteção do patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico local;
responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos
de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico local; instituir e
arrecadar tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem
prejuízo de obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos
fixados em lei; criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação
estadual[...] além de manter guardas municipais destinadas à proteção das
instalações e serviços municipais‖ , neste sentido SILVA, (2007: p. 644).
Assim, em relação ao município observa-se a convivência de
competências horizontais e verticais, elencadas no art. 30 da CF e a de caráter
suplementar no inciso II do art. 30, sem mencionar o fato de que a competência
comum se enquadra no art. 23 da CF de 1988.
3.1- INTERFERÊNCIA DA FEDERAÇÃO NAS POLÍTICAS PÚBLICAS
O art. 1º caput da CF, reconhece a República Federativa do Brasil como
ordem estatal justa, mantenedora das liberdades públicas e do regime
democrático, diante do exposto deve-se observar algumas premissas no que
se refere à autonomia e descentralização na consecução de tal princípio do
Estado democrático de Direito.
É bem verdade que a maioria das decisões sobre o funcionamento das
escolas são tomadas no âmbito regional ou local, a saber,
estadual e
municipal, não puramente do ponto de vista federal, assim temos itens como
organização da escola, jornada de trabalho, divisão em série ou ciclos, forma
de escolha de diretores, entre outros no âmbito de atribuições locais ou
regionais. Sendo, pois, um modelo federalista organizado de forma múltipla de
forma que não atende unicamente a interesses de forma única ou centralizada,
325
mas, atendendo as diversas particularidades próprias e locais, devendo-se os
professores estar atentos a regulamentação educacional municipal e estadual.
Outro ponto interessante remete a descentralização e participação
promovida pelo ECA que é um exemplo bem sucedido da aplicação do
princípio participativo presente na Constituição Federal, uma vez que a própria
população, encontra-se envolvida em solucionar seus problemas, reivindicar
seus direitos e deliberar sobre as políticas sociais que os beneficiam.
Outrossim, Os Conselhos Tutelares são órgãos que devem ser criados
por leis municipais e são encarregados pela sociedade de zelar pelo
cumprimento dos Direitos da Criança e do Adolescente, havendo, assim, a
municipalização.
Um outro fator que merece destaque refere-se ao fato da necessidade
de Políticas de assistência social de forma descentralizadas, pois a
descentralização consiste numa partilha de poder entre o governo e
coletividades locais implicando uma auto-gestão local,não apenas repassar
encargos para as prefeituras, é bem verdade.
Ademais, entende-se por Municipalização a passagem de serviços e
encargos que possam ser desenvolvidos mais satisfatoriamente pelos
municípios . É a descentralização das ações político-administrativas com a
adequada distribuição de poderes político e financeiro. É, pois, uma situação
com
características
desburocratizante,
participativa,
não
autoritária,
democrática e desconcentradora do poderio.
Destarte, observa-se que descentralização e a municipalização, como
consolidação democrática, estão sempre ligadas à participação e mostram que
a força da cidadania está no município. É no município que as situações, de
fato, acontecem. É no município que o cidadão nasce, vive e constrói sua
história. É aí que o cidadão fiscaliza e exercita o controle social.
A municipalização constitui ainda uma fórmula de organizar o trabalho
do Estado que é gigantesco. Assim, a descentralização permite também maior
racionalidade, agilidade e eficiência, não podendo-se nunca ser confundida
com prefeiturização, envolvendo, pois o coletivo local e não meramente a
atividade do prefeito e seus assessores.
326
4 CONCLUSÃO
Dessa forma, pode-se aludir que descentralização do poder conferido
por meio do Estado Federal vigente no país promove o fortalecimento
administrativo aliado a participação comunitária, tendo como enfoque
integrador a administração local, o que faz com que as competências
conferidas a entidade federativa municipal atue como forma inexorável de
concretização de políticas públicas e na concretização de princípios instituídos
pela própria CF de 1988, a saber, o Princípio do estado democrático de Direito,
uma vez que
o processo de municipalização é muito mais amplo e
democrático, além dos benesses de existência de recursos em nível local;
participação popular efetiva, não apenas local.
O ente municipal por estar mais perto do cidadão, aproxima, pois o
Estado do ― lócus cotidiano‖ de sua população, oportunizando uma participação
real da sociedade civil.
Sendo, finalmente necessário se enfatizar que a municipalização e a
consolidação do poder local ainda são um desafio. É processo e deverá
caminhar gradualmente implementando estratégias que garantam o seu êxito,
dadas as peculiaridades locais, e as dificuldades e resistências do poder
central (União e Estados), sendo necessárias uma série de peculiaridades para
a real gozo das atribuições legislativas previstos no texto constitucional de
forma a haver um favorecimento da população local no que tange à efetivação
de políticas públicas.
5 REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 13. ed. São Paulo:
Rideel, 2007.
BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada. 7. ed. rev. e atual.
até a Emenda Constitucional n. 53/2006. São Paulo: Saraiva, 2007.
327
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 26 ed. São
Paulo: Malheiros, 2003.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 13. ed.. São Paulo: Atlas,
2003.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 29. ed. São
Paulo: Malheiros, 2006.
328
O CONTRADITÓRIO NO INQUÉRITO POLICIAL
Uma exigência lógica e constitucional
Genésio Nunes Queiroga Neto164
RESUMO
O presente trabalho visa demonstrar a incoerência existente nos argumentos dos defensores
da não aceitação do contraditório na fase de inquérito policial. A partir de uma análise
sistêmica, trazendo elementos principiológicos constitucionais e processuais penais, e
argumentos de ordem lógica, o autor demonstra fundamentos condizentes com a atual
realidade processual vigente na sociedade moderna, e no Brasil, em específico.
Palavras-Chave: Inquérito Policial; Contraditório; Admissão;
ABSTRACT
This paper seeks to demonstrate the inconsistency in the arguments of the advocates of nonacceptance of an contradictory argument during the police investigation. From a systemic
analysis, bringing elements of criminal procedure and constitutional principles, beyond logical
arguments, the author demonstrates in a reasoned way consistent with the current reality of
procedure prevailing in modern society, and Brazil in particular, the need for contradictory
argument.
Keywords: Police investigation; Contradictory argument; Acceptance
164
Bacharelando de Direito
[email protected]
na
Universidade
Estadual
da
Paraíba.
E-mail:
329
1. INTRODUÇÃO
O Processo Penal, em sua atual fase, visa, precipuamente, encontrar
uma forma justa e igualitária de se aplicar, ou não, a legislação penal, através
de processos e procedimentos previamente estabelecidos. Dentre esses
procedimentos (ou processo), temos o Inquérito Policial.
O Inquérito policial, conforme adiante será melhor definido, é a primeira
fase da persecução penal, é definida, doutrinariamente, como um procedimento
inquisitivo administrativo. Em que pese tal definição, e o peso de seus
defensores, entendemos que algumas características do mesmo devem ser
relativizadas.
E nesse sentido, visando evitar o prejuízo as partes e ao nosso senso de
Justiça, que entendemos que deve ser garantido o contraditório, ainda na fase
de Inquérito Policial.
A partir de uma análise sob um prisma lógico, e buscando guarida nas
linhas traçadas por nossa Constituição da República Federativa do Brasil,
buscamos demonstrar a importância e a necessidade de aplicação do
Contraditório.
2. ARGUMENTAÇÃO
2.2 Conceitos do processo penal
2.2.1 A persecução penal
A primeira função do Direito Penal é punir aqueles que cometem um fato
típico, ilícito e culpável, tanto da forma retributiva, ou seja, punindo
propriamente o autor do delito, quanto na preventiva, que visa evitar que novos
delitos da mesma natureza sejam cometidos.
Como nas ciências em geral, quando se deseja alcançar um objetivo
deve-se seguir um método, um procedimento, um processo. E assim também,
para que o Direito Penal possa alcançar sua finalidade, há de se seguir uma
série de formalidades, que são preceituadas pelo ramo da ciência jurídica
Processo Penal.
Assim, persecução penal é a junção das fases seguidas pelo Estado,
quando da sua atividade de buscar a punição de um indivíduo supostamente
330
autor de um crime, ou, quando já condenado, a execução da pena cominada
ao mesmo. É dividida doutrinariamente e legalmente em: Inquérito Policial,
Ação Penal, e Execução Penal.
2.3.1 Inquérito Policial
Inquérito Policial, para Tourinho filho, é:
Inquérito policial é um conjunto de diligências realizadas pela Polícia
Civil ou Judiciária (como a denomina o CPP), visando a elucidar as
infrações penais e sua autoria. (TOURINHO FILHO, 2007, p. 64)
Ainda nos dizeres de Tourinho Filho, o Inquérito tem a finalidade de
buscar a apuração da existência ou não de uma infração penal, e a sua autoria,
visando oferecer os fatos necessários ao ingresso por parte do titular do direito,
de uma Ação Penal.
O legitimado para conduzir o Inquérito é, via de regra, a autoridade
policial da circunscrição onde pretensamente foi realizado um crime. Apesar de
sua importância como elemento norteador do titular do direito da ação penal, o
Inquérito não é elemento indispensável para sua propositura.
Ressalte-se ainda que o traço mais característico do Inquérito, sendo
indispensável seu conhecimento para o desenvolvimento do presente trabalho,
é o fato de ser um procedimento inquisitivo. Isto é, o delegado de polícia tem
em suas mãos o poder absoluto sobre os rumos investigativos a serem
tomados, as linhas de raciocínio, e que tipo de diligências tomar, entre outras
faculdades. Tal entendimento é corroborado pelo art. 14 do Código de
Processo Penal, que afirma: ―O ofendido, ou seu representante legal, e o
indiciado poderão requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a
juízo da autoridade.‖
2.3.2 Indiciamento
Tucci, citado por Mirabete, afirma:
―(O inquérito é) o resultado concreto da convergência de indícios que
apontam determinada pessoa ou determinadas pessoas como
praticantes de fatos ou atos tidos pela legislação penal em vigor como
típico, antijurídicos e culpáveis‖ (MIRABETE, 1995, p. 90)
331
O Indiciamento é um ato tomado pelo delegado, no qual determinado
cidadão, que até então era apenas investigado, assume a posição de indiciado,
sendo o presumido autor da infração penal. O indiciamento é a demonstração,
por parte da autoridade policial, de que aquele é o pretenso autor do crime. Ao
indiciado deve ser entregue a Nota de Culpa, que conterá o motivo da prisão, o
nome do condutor, e o das testemunhas.
Em nosso entendimento, a Nota de Culpa, e consequente classificação
do portador desta como Indiciado, instaura uma acusação formal ainda que na
fase de inquérito, fato que será explanado com mais fundamento no item
referente à contradição da persecução penal brasileira.
2.3.3 Princípio do Contraditório
O Princípio do Contraditório é positivado em nossa Constituição Federal,
sendo classificado por José Afonso da Silva como um princípio jurídicoconstitucional, isto é:
São princípios constitucionais gerais informadores da ordem jurídica
nacional. Decorrem de certas normas constitucionais e, não raro,
constituem desdobramentos dos fundamentais, como o princípio da
supremacia da constituição, e consequentemente [...] o princípio do
contraditório. (AFONSO DA SILVA, 2002, p. 93)
Ainda segundo José Afonso, citando Gomes Canotilho e Vital Moreira
(AFONSO DA SILVA, 2002, p. 94), ―os princípios fundamentais visam
essencialmente definir e caracterizar a colectividade política e o Estado a
enumerar as principais opções político-constitucionais‖.
Ainda nesse sentido, Rogério Greco afirma:
Cada ordenamento possui uma norma fundamental. É essa norma
fundamental que dá unidade a todas as outras normas, isto é, faz das
normas espalhadas e de várias proveniências um conjunto unitário
que pode ser chamado de ordenamento, e é justamente sobre essa
hierarquia de normas, existente no chamado Estado Constitucional de
Direito, que Luigi Ferrajoli vai buscar os fundamentos do seu modelo
garantista (GRECO, 2008, p. 8)
Percebe-se
claramente
o
nível
de
importância
dos
princípios
constitucionais, que devem ser seguidos por todas as normas infraconstitucionais, regulamentos, decretos, e, numa visão mais ampla, até mesmo
332
as relações instituídas entre particulares. Considerando o Inquérito Policial
como parte integrante de nosso ordenamento jurídico, e ele o é, aplicar o
princípio do contraditório já se faria necessário.
2.3.4 Princípio da Paridade de Armas
É um princípio Processual Penal, sendo decorrente do Princípio da
igualdade de partes. Visa conceder tanto à Acusação quando à Defesa os
mesmos direitos e poderes, a fim de que não haja desequilíbrio na relação
entre as partes. De fundamental importância para que a justiça seja
concretizada no caso concreto.
2.2 O desequilíbrio na fase de Inquérito Policial
Com base em argumentos que não estão em sintonia com a nossa
Constituição Federal atual, tenta-se de todas as formas impedir a concessão do
direito ao contraditório quando na fase de Inquérito Policial, o que gera
desequilíbrios passíveis de prejudicar o indiciado.
Um desses desequilíbrios refere-se à produção de provas na fase de
Inquérito, como será explanado a seguir neste mesmo trabalho. Outros
afirmam que não há conflito com a Constituição Federal prevê, e a ausência de
contraditório na fase pré-processual.
Vejamos o que diz a Constituição Federal:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos
acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa,
com os meios e recursos a ela inerentes;
Fica evidente a incongruência ao se afirmar que não se deve conceder o
contraditório na fase de Inquérito, por não existir acusado quando de seu
desenvolvimento.
O primeiro argumento nesse sentido é que o Inquérito Policial não é
processo Judicial, como de fato não é, nem processo administrativo, que de
333
fato não é também. Com base nessa análise parcial do artigo 5º, inciso LV,
afirmam os mais exaltados que já há a vedação.
Entretanto, com base numa interpretação semântica mais detida,
percebe-se que a referência ao processo administrativo e judicial, refere-se tão
somente ao sujeito gramatical LITIGANTES. Logo em seguida o texto insere
outro sujeito gramatical ao qual é assegurado a ampla defesa e o contraditório,
qual seja, os acusados em geral.
Então, vêm os defensores da arcaica negativa à concessão do
Contraditório afirmar que não há acusado no Inquérito Policial. Ora, tal posição
se demonstra totalmente infundada. Já foi falado sobre o instituto da Nota de
Culpa. Ora, alguém que recebe uma Nota de Culpa (ato que a autoridade
policial é obrigada a fazer pelo Código de Processo Penal), não está sendo
acusado de nada? Não está tendo contra si imputado o cometimento de um
crime?
Só resta uma direção a seguir: atender os ditames constitucionais, e
fazer valer o contraditório ainda na fase de Inquérito. Ainda quanto à produção
de provas percebe-se a necessidade de se atender a tal determinação,
vejamos.
2.4 A produção de provas
2.4.1 Fase de Inquérito
Em tal fase temos o momento mais propício à produção das provas, seja
documental,
testemunhal,
corpo
de
delito,
pericial,
reconhecimentos,
acareações e todos os tipos de provas admitidos pelo Código de Processo
Penal.
Determinadas provas, devido à possibilidade de se perderem com o
tempo, devem ser produzidas o quanto antes, desde o cometimento do
pretenso crime, a fim de que se consiga definir a autoria, e buscar a
materialidade.
2.4.2 Fase Judicial
334
Na fase Judicial, deve-se reproduzir todas as provas que foram
produzidas quando do interrogatório. Pode-se perguntar: qual o sentido em
reprisar todas as provas já produzidas na fase de interrogatório, efetuando o
mesmo trabalho duas vezes?
A resposta já se encontrava no item anterior, quando se afirmou que a
fase de Inquérito é importante para produzir provas que podem se perder com
a mora entre o crime e a Instrução Processual, tais como necropsias, perícias
específicas, e depoimentos de testemunhas. Isto nos leva à contradição
encontrada na persecução penal no Brasil.
2.5 A contradição na persecução penal Brasileira
Ora, se o réu de uma Ação Penal pode apenas ter direito ao
contraditório na fase processual, diferente da promotoria, que pode produzir as
provas que quiser, tanto na fase judicial, quanto na de Inquérito, o que se falar
das provas que podem se perder com o tempo? Perícias a ser realizadas,
quesitos a ser formulados, testemunhas a ser inquiridas? Apenas o Ministério
Público deve ter direito a isto?
Veda-se ao agora réu, o direito de contraditar testemunhas? Fica-se ao
arbítrio de um delegado, ou autoridade policial, para ser deferida qualquer
diligência requerida pelo indiciado?
Fica nítida a contradição existente em tal agir. Fica nítido o imperdoável
desrespeito ao princípio processual da paridade de armas. Fica mais que nítido
o evidente desrespeito à norma fundamental, a nossa Constituição Federal de
1988.
3. CONCLUSÃO
Após ficar evidenciada a flagrante contradição presente entre os
defensores da inexistência de contraditório na fase pré-processual, e uma
análise mais detida, tanto constitucional, quanto lógica, resta tecer algumas
considerações à respeito da melhor forma de se implementar a justiça no
âmbito do Inquérito Policial.
335
Já algumas autoridades policiais, tendo em mente o respeito aos
preceitos de Justiça, já concedem abertamente o contraditório em suas
investigações, evitando o cerceamento do direito à defesa que deve ser
protegido por todos os integrantes da nossa sociedade.
A própria legislação já faz concessões, vejamos:
É importante lembrar também que em alguns casos
admite-se o contraditório e a ampla defesa no inquérito
judicial para a apuração de crimes falimentares[12] e no
inquérito instaurado pela Polícia Federal, a pedido do
Ministro da Justiça, visando a expulsão de
estrangeiro[13]. (JORGE, 2010)
Concluímos pois, o presente artigo, reafirmando que só quando nossa
Constituição for devidamente respeitada, e, há de se destacar, cumprida em
sua totalidade, teremos realmente uma sociedade realmente livre de arbítrios, e
devidamente assegurada de seus direitos.
4. REFERÊNCIAS
AFONSO DA SILVA, José. Curso de Direito Constitucional Positivo.
São Paulo: Malheiros Editores, 2002.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Rio de Janeiro: Impetus,
2002.
JORGE, Higor Vinicius Nogueira. A processualização do inquérito policial.
Disponível
em
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.
asp?id=5840. Acesso em: 10 de abril de 2010.
MIRABETE, Julio Fabbrini Mirabete. Processo Penal. São Paulo: Atlas,
1995.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal.
São Paulo: Saraiva, 2007.
336
O CONFLITO ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS: as noticias
policiais e o pré-julgamento dos acusados em contraposição
ao princípio da presunção de inocência
Thiago Bento Quirino Herculano165
José Egberto Alves de Sousa166
Resumo
A livre manifestação da imprensa, sem dependência de censura, é imprescindível à
garantia das instituições democráticas, da conscientização e formação dos cidadãos na defesa
destas, todavia, a liberdade de expressão/informação não é absoluta, encontra limites na
própria Carta Magna. Assim, a liberdade de expressão/informação e os direitos da
personalidade, como a honra, a imagem, a intimidade e a vida privada, são direitos que têm o
mesmo status na Constituição/88. São cláusulas pétreas e garantias fundamentais do cidadão.
Nesse particular, o principio da presunção de inocência não pode ser maculado por publicações
sensacionalistas, garantindo-se ao cidadão o devido processo legal.
Palavras-chave: Princípio da presunção de inocência; principio da liberdade de informação;
colidência entre direitos fundamentais.
Resúmen
La libre expresión de la prensa, con independencia de la censura, es esencial para
garantizar las instituciones democráticas, la conciencia y la formación de los ciudadanos en
defensa de estas, sin embargo, la libertad de expresión e información no es absoluto,
encuentra límites en la propia Constitución. Así, la libertad de expresión e información y los
derechos de la personalidad, tales como el honor, la imagen, la intimidad y la privacidad son
derechos que tienen la misma posición en la Constituición/88. Son cláusulas pétreas y
garantías de los ciudadanos. En particular, el principio de presunción de inocencia no puede
ser contaminada por las publicaciones sensacionalistas, garantizando el proceso de los
ciudadanos el debido proceso legal.
Palabras llave: Principio de presunción de inocencia; principio de libertad de información;
colidência entre los derechos fundamentales.
165
Graduando do Curso de Direito. Estagiário do Escritório Medeiros e Duarte Advogados. UEPB.
[email protected]
166
Graduando dos Cursos de Geografia e Direito. UEPB.
[email protected]
337
1. INTRODUÇÃO
O presente estudo tem o propósito de discutir o conflito entre princípios
constitucionais básicos do indivíduo e sua repercussão no âmbito do processo
penal. Diante da discussão suscitada pelo Ministério Público Federal e o
Ministério Público da Paraíba, que recomendaram a proibição da exibição de
entrevistas e imagens, pela imprensa, de presos, sem o expresso
consentimento destes, fez-se necessário o aprofundamento da matéria por
parte dos estudiosos do direito, o que ora se pretende. A pesquisa se baseou
em uma revisão bibliográfica de cunho analítico-descritivo, de renomados
constitucionalistas e processualistas penais, como também da análise de
artigos científicos publicados na internet, além da análise reflexiva da
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
2. PRICINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E O SISTEMA DAS
GARANTIAS PROCESSUAIS DA LIBERDADE
A liberdade, um direito básico que é, junto com o direito à vida e à
dignidade da pessoa humana, como pressuposto dos demais, deve
merecer muita cautela por parte da sociedade e de sua instituição maior,
qual seja, o Estado.
O ordenamento jurídico-constitucional brasileiro positiva uma série
de garantias observáveis pelo jus persecucionis estatal quando estiver em
conflito a liberdade do indivíduo com outros direitos fundamentais. Nas
palavras de Pedro Lenza ―Os direitos são bens e vantagens prescritos na
norma constitucional. As garantias são os instrumentos através dos quais
se assegura o exercício dos aludidos direitos (preventivamente) ou
prontamente os repara, caso violados‖ (LENZA, 2009, p. 671). Já o
insuperável Rui Barbosa aduzia que ―as garantias se referem às
disposições assecuratórias, que são as que, em defesa dos direitos,
limitam o poder‖ (BARBOSA apud LENZA, 2009, p. 671). Como se vê, a
Constituição impõe limites para que as pessoas, no exercício de seus
338
direitos, não vá mais além, interferindo no pleno gozo do direito alheio
(BRANCO, 2009, p. 302). As garantias fundamentais asseguram ao
indivíduo a possibilidade de exigir dos Poderes Públicos o respeito do
direito que instrumentalizam. Vejam-se, por exemplo, as normas ali
consignadas de direito processual penal.
O princípio em comento exsurge do art. 5º, LVIII, da Carta
Republicana de 1988, o qual expressa que ―ninguém será considerado
culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória‖. Surge
a discussão entre os doutrinadores constitucionalistas e processualistas
se o princípio que emana do preceito seria da presunção de inocência ou
da não-culpabilidade. MENDES (2009, p.676), NUCCI (2007, p. 77),
LENZA (2009, p. 711) utilizam as nomenclaturas de forma alternativa.
Para Bechara e Campos (apud LENZA, 2009, 711) ―melhor denominação
seria princípio da não-culpabilidade. Isso porque a Constituição Federal
não presume a inocência, mas declara que ninguém será considerado
culpado antes de sentença condenatória transitada julgado‖. Eugênio
Pacelli (OLIVEIRA, 2009, p. 42) se refere a ―estado ou situação jurídica de
direito‖. Porém, Nucci (2007, p. 77) afirma que igualmente pode ser
chamado por uma das três terminologias. Complementando, este explica
que o cerne da questão é que isto ―significa que todo acusado é
presumido inocente‖ e ―tem por objetivo garantir, primordialmente, que o
ônus da prova cabe à acusação e não à defesa. As pessoas nascem
inocentes, sendo esse o seu estado natural, razão pela qual, para quebrar
tal regra, torna-se indispensável que o Estado-acusação evidencie, com
provas suficientes, ao Estado-juiz a culpa do réu‖. O princípio da
presunção de inocência integra-se ao principio da prevalência do
interesse do réu, os quais basearam a reforma do art. 386, VI, CPP
operada em 2008 pela Lei nº 11.690/08:
O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte
dispositiva, desde que reconheça:
VI – existirem circunstâncias que excluam o crime ou isentem o
réu de pena (arts. 20, 21, 22, 23, 26 e § 1o do art. 28, todos do
Código Penal), ou mesmo se houver fundada dúvida sobre sua
existência.
339
Logo, vê-se que o ordenamento jurídico acautelou o indivíduo de
qualquer abuso que venha a ferir o direito tão precioso da liberdade física.
É necessário preservar o cidadão, exigindo vigilância máxima por parte da
entidade estatal ao processá-lo. Se antes de o Estado-juiz decidir a cerca
da culpabilidade de alguém as normas constitucionais e legais
regulamentam o procedimento a ser tomado para não ferir ainda mais a
situação melindrosa por qual passa o acusado, o que se dirá quando a
sociedade, em especial, a mídia, os meios de comunicação de massa,
fazem um juízo de valor prévio do indiciado sem tomar as mínimas
precauções, exibindo sua imagem e maculando a dignidade da pessoa
humana.
Todo esse sistema jurídico protecionista é rigoroso em matéria
criminal, por que uma vez não provada a culpabilidade, todas as
investidas que recaíram sobre o mesmo denigrem tão fortemente sua
imagem que dificilmente o Estado terá meios suficientes e hábeis a
garantir o retorno ao status quo ante. O Ministro César Peluso enfatiza tal
entendimento no julgamento da Rcl. 2.391/PR:
Além de infringir princípios básicos de justiça – porque uma
eventual reforma da decisão, em que o réu tenha sido preso,
não encontra nenhuma medida no campo jurídico capaz de
restaurar o estado anterior, pois se trata de privação de
liberdade e se quer a indenização de ordem pecuniária prevista
na Constituição, por erro na prisão compensa a perda da
liberdade que é o bem supremo do cidadão – é absolutamente
incompatível – e aqui invoco o princípio da proporcionalidade –
com o que sucede na área civil, onde uma sentença de caráter
condenatório que sirva de título executivo sem o seu trânsito
em julgado, não acarreta execução definitiva, por resguardo de
consequências de ordem puramente patrimonial que podem
ser revertidas. Noutras palavras: teríamos, num caso em que
está em jogo a liberdade física admitido uma execução
provisória de sentença condenatória quando o sistema não
admite na área civil. (PELUSO, 2003 apud MENDES, 2009, p.
681-682).
O que está em perigo maior aqui não é a sociedade, mas, sim,
direitos fundamentais de um indivíduo. Uma pessoa presumivelmente
inocente não pode servir de ―bode expiatório‖ para os anseios da
população de vingança, de querer imediatamente apontar e punir o
340
―culpado‖.
Sobre a colidência de direitos fundamentais veremos com
mais profundidade na quarta seção.
3. LIBERDADE DE EXPRESSÃO E INFORMAÇÃO
A liberdade de expressão é um dos mais valorosos direitos
fundamentais, produto das mais profundas e antigas reivindicações do
homem. É fruto de uma peculiar característica humana, qual seja, a
racionalidade, assim como é inerente à própria vida em sociedade. Nesse
sentido a lição do insigne Paulo Gustavo Gonet Branco (2008, p. 403): ―O
direito de se comunicar livremente conecta-se com a característica da
sociabilidade, essencial do ser humano‖.
Inesquecível os ensinamentos de Edílson Pereira de Farias (1996)
que assenta a liberdade de expressão entre uma das características mais
marcantes das atuais sociedades democráticas, constituindo um dos
principais termômetros do regime democrático.
Do mesmo modo, a lição de Anabitarte (1994, p. 70): ―la libertad de
pensar y de transmitir a los demais lo que piensa el fundamento essencial
del derecho a liberdade de expression‖.
Nesse ínterim, preleciona José Afonso da Silva que (2008, p. 245):
... a liberdade de informação compreende a liberdade de
informar e a liberdade de ser informado. Nesse sentido o
direito de informação compreende a procura, o acesso, o
recebimento e a difusão de idéias, por qualquer meio e sem
dependência de censura, respondendo cada qual pelos abusos
que cometer. (SILVA, 2008, p. 245).
Aduz ainda José Afonso sobre a liberdade de informação, em
correspondência com a liberdade de expressão:
É nesta que se centra a liberdade de informação que assume
características modernas, superadoras da velha liberdade de
imprensa. Nela se concentra a liberdade de informar e é nela
ou através dela que se realiza o direito coletivo à informação,
isto é, a liberdade de ser informado. (SILVA, 2008, p. 245)
Assim, as liberdades de expressão e de informação encontram
guarida no art. 5º, IV, IX e XIV, bem como no art. 220, § 1º e § 2º da
Constituição da República/88, vejamos:
341
Art. 5º. Omissis.
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o
anonimato;
(...)
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística,
científica e de comunicação, independentemente de censura
ou licença;
(...)
XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e
resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício
profissional;
(...)
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a
expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou
veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto
nesta Constituição.
§ 1º - Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir
embaraço à plena liberdade de informação jornalística em
qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto
no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
§ 2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política,
ideológica e artística.
Portanto, a liberdade de expressão é o direito de manifestar o
pensamento, a informação, a opinião, a crítica, sem que se seja
submetido a juízo de censura. Ao passo que, a liberdade de informação é
a busca, o acesso, a publicação, o direito do cidadão de receber a
informação de forma completa, irrestrita, verídica, sobre todos os fatos em
que haja interesse público.
Nada obstante, as liberdades de expressão e de informação
encontram limites previstos na própria Constituição/88, bem como outros
tantos revelados pela colidência desses direitos com os demais de
mesmo status. Assim, ao passo em que a Constituição/88 no art. 220, §
1º, supracitado, determina que nenhuma lei conterá dispositivo que possa
constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística,
determina que seja observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
Em virtude do objetivo desse trabalho analisaremos mais
detidamente o conflito entre a liberdade de expressão e informação e as
342
garantias constitucionais processuais penais do acusado167, que
passamos a expor.
4. DA COLIDÊNCIA ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS: LIBERDADE
DE EXPRESSÃO
E INFORMAÇÃO
VERSUS PRESUNÇÃO DE
INOCÊNCIA
Com freqüência vemos nos noticiários a divulgação irresponsável e
não autorizada da imagem, do nome, da intimidade de acusados,
emitindo-se, um pré-juízo, um julgamento antecipado, uma sanção
antecipada ao acusado, retirando do indivíduo seu patrimônio jurídico
fundamental, e, do Estado, o pleno exercício da jurisdição criminal.
Os órgãos de comunicação social, na pressa irrefletida de alcançar
um furo jornalístico, uma informação privilegiada, uma entrevista exclusiva
com uma testemunha ou uma foto do acusado, de elucidar o mais rápido
possível o caso, antes da policia, antes do Judiciário, enquanto a notícia
ainda lateja nos ouvidos do público, acabam por devassar a vida do
acusado, manchando seu nome e arruinando sua honra.
Nessa trilha, precisas as palavras de Isângelo Senna da Costa:
Digna de reflexão é a forma como são veiculadas pela mídia
supostas práticas criminosas, geralmente de maneira
imprudente e sensacionalista, em claro afronte à privacidade
daqueles que são submetidos à persecução criminal. Com
certa freqüência, há divulgação nos meios de comunicação,
sobretudo nos programas sensacionalistas, da imagem de
suspeitos acusados de conduta delituosa. Contudo, esquecese que essas pessoas têm uma vida, um convívio social, a
honra, o bom nome e a boa fama, como o sentimento íntimo,
consciência da própria dignidade pessoal. (COSTA, 2008, p.1)
Assim, esclarecedora a lição de Orlando Afonso analisando o tema
no VI Congresso dos Juízes Portugueses:
167
Preferimos usar nesta colocação a expressão acusado em seu sentido latu, ou seja,
todo aquele contra quem esteja sendo, em nível de suspeição, imputado uma conduta
delituosa, seja na fase processual ou pré-processual.
343
Os media não se contentam, hoje, em informar o que se passa
na Justiça, ou em exercer a sua crítica sobre o papel desta.
Eles copiam os métodos de Justiça. Eles substituem-se ao
Ministério Público e aos Juízes de Instrução. Interrogam
testemunhas se possível antes da Justiça, confrontam
testemunhos, procedem a inquéritos formais, perfunctórios,
subjectivos, procuram o testemunho surpresa, o rumor, a
conversa de café, as delações, as hipóteses plausíveis e ainda
o cidadão não está acusado ou pronunciado e já está
sentenciado pela Comunicação Social. (AFONSO, 2002, p. 89
apud FONSECA, 2005, p. 258).
Impende frisar que não se pode permitir que, em nome da
liberdade de expressão e informação, os órgãos de comunicação social
arroguem a jurisdição criminal, retirando do Estado o jus persecutionis e o
jus puniendi, restando apenas ao Estado-Juíz, aquiescer aos órgãos de
comunicação social e a opinião pública, esta influenciada por aqueles,
para homologar a decisão já proferida.
Nesse ínterim, caminha a lição de Guilherme da Fonseca em artigo
sobre a matéria, analisando o tratamento dado pelos órgãos de imprensa
portugueses ao assassinato de seis portugueses em Fortaleza/CE e a
morte trágica de uma criança abandonada e fechada em casa na cidade
suíça de Genebra:
Às autoridades policiais e judiciárias, e aos juízes criminais,
restará apenas a homologação desse juízo e dessa
condenação. Ao público pouco virá a interessar futuramente o
desenlace último dos processos em tribunal e ver-se-á
certamente que os meios de comunicação social não darão,
como afinal não deram, na altura, o mesmo tratamento ao
desenrolar do julgamento e ao teor da sentença criminal. Esta
não será já notícia a tratar, porque não chamará atenção do
público (a mensagem não passa, e, por isso, o produto não se
vende). (FONSECA, 2005, P. 259).
Outro aspecto que merece atenção é o argumento de alguns
jornalistas, assim como de renomados juristas pátrios, no sentido de que
no conflito entre a liberdade de expressão/informação e o princípio do
estado de inocência, deve-se atentar para a sobrepujança do interesse
público sobre o particular.
344
Nesse aspecto, cremos que não lhes assiste razão, por afirmar
equivocadamente que há interesse público maior dos órgãos de imprensa
em expressar os acontecimentos sociais, e da população em manter-se
informada. Entretanto, as garantias e direitos fundamentais do indivíduo
são de inquestionável interesse público, assim, quando o particular sofre
lesão
em
seu
patrimônio
jurídico
fundamental,
levanta-se,
indubitavelmente, o interesse público em ver os direitos fundamentais do
indivíduo respeitados. Aqui, também cabe o velho jargão jurídico ―Quando
respeitamos o direito dos outros, asseguramos o nosso‖.
Faz-se necessário trazer a baila os comentários do já citado
Isângelo Senna da Costa:
Entretanto, quando certos indivíduos são execrados pela
mídia, à revelia do due process of law, tem-se o flagrante
ultraje do princípio da presunção de inocência. Importa dizer
que esse ultraje implica em efeitos negativos, por vezes
catastróficos, não apenas para os indivíduos aviltados, mas
também para todo o tecido social. (COSTA, 2008, p.1).
Ademais, muito questionável o interesse público em notícias que
se divulguem a imagem, o nome, a intimidade de pessoas, que, muita
vez, sequer foram denunciadas. É preciso atentar que os meios de
comunicação, sobretudo a televisão, a internet, o rádio e os jornais e
revistas impressos, alcançam um sem número de pessoas, e os danos
causados por uma publicação irresponsável, que antes da resposta
judicial ao caso, já condenou os acusados à revelia do ―due process of
law‖, são de dificílima reparação.
Nesse diapasão, singular as palavras de Almeida Santos :
Por sobre tudo isto, os ―mass media‖ asseguram eco universal
à opinião pública, e de certo modo a dirigem e controlam.
(...)
De avanço em avanço, a opinião pública invade o pretório, e
recusa aos sacerdotes da justiça o exclusivo da função de
julgar.
(...)
O cidadão da era eletrônica passou a tentar impor também aos
decisores judiciais – indiferente à sua também soberania – o
direito de julgá-los.
(...)
E aceita mal o facto de não ter, em relação aos decisores
judiciais, o mesmo direito. Daí que tente julga-los a propósito
345
de cada caso que o apaixona e o mobiliza. Emitindo pré-juízos
na esperança de que possam ser condicionantes. Absolvendo
culpados. Culpando inocentes. Fazendo em frangalhos o
direito à inocência até a condenação definitiva! Relativa seria a
importância de tudo isto se a tentativa se esgotasse em
manifestações à porta do pretório. Mas é aqui que entram de
novo os ―mass media‖ a capitalizar e potenciar indignações e
protestos. Acusado ou nem isso, quem a Comunicação Social
condene, condenado fica. Quando a absolvição chega, já não
é notícia. Se o for, já não limpará a nódoa. (SANTOS, 2002, p.
89 apud FONSECA, 2005, p. 258).
Assim, inesquecível o caso da escola de base, em São Paulo,
onde em 1994 vários órgãos de imprensa publicaram uma série de
reportagens sobre seis pessoas que estariam envolvidas no abuso sexual
de crianças, alunas da escola. Os acusados eram os donos da escola, os
funcionários e um casal de pais. As denúncias dos pais afirmavam que
um dos acusados, que trabalhava como ―perueiro‖, levava as crianças, no
período de aula, para a casa de outro acusado, onde eram cometidos
abusos sexuais, e tudo era filmado.
Sucedeu que, o inquérito policial foi arquivado por insuficiência de
provas, restando provado que não houve qualquer abuso sexual nas
crianças, no entanto, a vida dos envolvidos já estava completamente
arruinada, veja-se o que relata Ribeiro:
...a escolinha fechou, seu antigo proprietário só dorme com
tranqüilizantes, fuma mais que o habitual e sua esposa passa
horas em casa deprimida, sendo também adepta de
calmantes; o outro casal, acusado de promover orgias com as
crianças, se separou; o varão desenvolveu síndrome do
pânico; a virago, desempregada, passou a viver de ―bicos‖.
(RIBEIRO, 1995, p. 164).
Assim, por todo o exposto e para que não se repita casos de
tamanha injustiça, necessário parcimônia dos órgãos de comunicação
social, se armando de toda segurança e fidelidade das informações, não
usurpando do Judiciário o poder de exercer a jurisdição criminal, assim
como, respeitando os limites da liberdade de expressão/informação para
que se resguarde as garantias e direitos fundamentais apregoados na
Constituição/88, por ser questão de Justiça.
346
Por fim, rendemo-nos à lição de Guilherme da Fonseca, que
parafraseando José Maria Rodrigues da Silva, conclui:
Não quero - não queremos – transformar o jornalista num
colaborador dependente do Poder. Pelo contrário! Quero –
queremos – que continue a desempenhar com independência
e renovado orgulho a sua missão. Mas espero – esperamos –
que a sua actuação se norteie pela consciência de que sem
símbolo, sem ritual, sem processo, a justiça não é possível e
de que, nas condições impostas pela mediatização da vida, se
lhe impõe agir com contenção e responsabilidade, pois o
julgamento mediático tem mais visibilidade e mais força social
que o julgamento autêntico realizado pelo órgão judicial
competente. (FONSECA, 2005, p. 264).
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ante o exposto, imprescindível é o trabalho realizado pelos órgãos de
comunicação social na defesa das instituições democráticas, que garante ao
cidadão o direito à informação apregoado na Carta Republicana de 1988. No
entanto, tal prerrogativa não pode exceder a ponto de usurpar do Poder
Judiciário a Jurisdição Criminal. Não existe condenação ou absolvição justa
sem técnica, sem mediação, sem garantias, ou seja, sem o devido processo
legal. Portanto, é preciso cautela na divulgação de supostos delitos, bem como
na divulgação da imagem, do nome, da intimidade e vida privada do acusado,
por ser questão da mais clara e lídima justiça.
6. REFERÊNCIAS
ANABITARTE,
Galego
Alfredo.
Derechos
fundamentales
y
garantias
institucionales: analisis doctrinal y jurisprudencial (Derecho a la educacion,
autonomia local; opinion pública). Madri: Civitas, 1994. p. 70.
COSTA, Isângelo Senna de. Os segmentos de segurança pública em face da
colidência entre direitos fundamentais versus presunção de inocência. Fórum
Brasileiro de segurança pública. Brasília: Fórum brasileiro de segurança pública, 2008.
Disponível
em:<http://www.forumseguranca.org.br/artigos/liberdade-de-informacaoversus-presuncao-de-inocencia-2>. Acesso em: 02 mar 2010.
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<http://oglobo.globo.com/sp/mat/2006/11/13/286621871.asp>. Acesso em: 09 mar.
2010.
347
FONSECA, Guilherme da. A liberdade de expressão e informação - jurisdição
criminal, para que?. In: Estado de Direito e direitos fundamentais: Homenagem ao
Jurista Márcio Moacyr Porto. ALMEIDA FILHO, Agassiz de; CRUZ, Danielle da Rocha
(orgs.). Rio de Janeiro: Forense, 2005.
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 13 ed. São Paulo: Saraiva,
2009.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo
Gonet. Curso de direito constitucional. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 17 ed. São Paulo: Atlas, 2005.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 4 ed.
São Paulo: RT, 2007.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 12 ed. São Paulo: Lúmen
Juris, 2009.
RIBEIRO, A. O Caso Escola Base - Os Abusos da Imprensa. São Paulo: Editora
Ática, 1995.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 30 ed. São Paulo:
Malheiros Editores, 2008.
348
O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA MORALIDADE
ADMINISTRATIVA
Jardon Souza Maia*
RESUMO
À luz do texto constitucional hodierno, percebe-se que o Princípio da Moralidade Administrativa
fundamenta-se nos bons valores, nas condutas aceitáveis para a gestão da máquina
administrativa do Estado, tendo por fim assegurar a todos existência digna, conforme os
ditames da justiça social. Da mesma forma, a legislação infraconstitucional propõe o respeito
ao referido princípio, prevendo inclusive punições quando do desrespeito ao bem administrar,
seja por via do enriquecimento ilícito, do dano ao erário público ou ainda da violação de
princípios. A atuação dos agentes públicos, de forma direta ou de forma indireta, entre si ou
com a participação de particulares, ao praticarem os denominados atos de improbidade
administrativa, vão de encontro aos interesse de toda a sociedade, sendo que a Constituição
de 1988, em vigor no país, aprofundou o conceito de moralidade e previu claramente a punição
aos praticantes da improbidade administrativa. Seu discurso ideológico original recebeu,
posteriormente, reforço de leis infraconstitucionais. Ao Estado, sobretudo pela figura do Poder
Judiciário, coube a função de monitorar e reprimir os atos violadores da moralidade
administrativa, sobretudo os tratados como improbidade administrativa.
Palavras-chave: PRINCÍPIO – MORALIDADE – IMPROBIDADE
RÉSUMÉ
À la lumière de la Constitution d'aujourd'hui, il est remarqué que le principe de la
administratives morale est fondée sur de bonnes valeurs, un comportement acceptable dans la
gestion de l'appareil administratif de l'Etat, et enfin d'assurer à chacun une vie digne, selon les
préceptes de la justice sociale . De même, la législation infra-constitutionnelle propose respect
de ce principe, notamment en fournissant la peine lorsque l'incapacité à la gérer et, par voie de
l'enrichissement sans cause, le préjudice pour les finances publiques ou de la violation des
principes. La performance des agents publics, directement ou indirectement, entre eux ou avec
la participation des individus à pratiquer des actes dits de faute administrative, sera conforme
aux intérêts de toute la société, et la Constitution de 1988 vigueur dans le pays, d'approfondir le
concept de la moralité et prévoyait clairement la peine pour les praticiens d'une faute
administrative. Votre discours idéologique original reçu par la suite, l'application des lois en
vertu de la Constitution. L'État, en particulier la figure de la magistrature, propres à la fonction
de surveillance et de poursuivre les contrevenants des actes administratifs morale, en
particulier ceux qui sont traités comme une faute administrative.
Mots-clés: PRINCIPE - MORALE - IMPROBITÉ.
* Especialista em Direito Empresarial, professor dos Cursos de Direito da CESREI e da
UEPB, Advogado e professor de diversos cursos preparatórios para concursos públicos. email para contato: [email protected]
349
1. INTRODUÇÃO
O elemento moral é um componente indissociável da coexistência
humana, o que pode ser percebido pelo estudo das sociedades em sua
evolução ao longo do tempo.
No Brasil, a discussão acerca da moralidade ganhou maior relevância
com a Constituição Federal de 1988, a qual coloca a moralidade como um dos
princípios ao qual deve se submeter a administração pública, desmistificando
toda uma tendência, oriunda das originárias distinções entre Direito e Moral,
sendo esta uma área consistente numa obrigação de simples dever, íntima,
dada sem qualquer possibilidade de coerção.
A constituição de 1988, ao estabelecer os princípios básicos regentes da
administração pública (Art. 37, caput), incluiu ali o princípio da moralidade,
valor até então abstrato que passaria a reger de forma positivada as ações
praticadas pelos agentes da administração pública e os administrados que com
ela se relacionarem.
É certo que os princípios possuem maior importância no Direito
Administrativo, haja vista a não codificação das normas abarcadas por este
ramo do direito, pelo que formam um ponto central em torno do qual se
irradiam as regras jurídicas administrativistas. Tradicionalmente, os princípios
vêm sendo estudados pela Teoria Geral do Direito, atuando como verdadeiros
mecanismos de interpretação e integração.
Ademais, a Carta Constitucional de 1988 estabeleceu uma ponte entre a
moralidade administrativa, agora obrigatória por força da vontade dos
constituintes, e a improbidade administrativa, verdadeiro câncer existente em
nossa sociedade hodierna, o qual corrompe as finanças públicas e gera
desassistência a milhões de brasileiros. Tal afirmativa assume caráter
relevante quando se constata a verdadeira crise de corrução que o país
atravessa.
Concebido o princípio da moralidade administrativa como norma, tornase necessário que o administrador público a ele tenha obediência, passando a
350
tomar como norma cogente não apenas a legalidade restrita, mas também o
repeito à moralidade administrativa.
2. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
A Constituição Federal deve ser compreendida como um sistema
normativo composto por princípios, implícitos e explícitos, e normas jurídicas.
Assim, é certo que uma parte dos princípios relativos ao Direito Administrativo
encontra-se presente implícita ou explicitamente no texto da Constituição
Federal. São diretrizes superiores daquele ramo do Direito, vinculando a
atuação dos operadores do Direito na aplicação das normas e tendo também
por objetivo corrigir distorções quanto à sua aplicação e interpretação.
O sistema constitucional do Direito Administrativo funciona como uma
rede de princípios, regras e valores, que exige não apenas o mero respeito à
legalidade estrita, mas vincula a interpretação de todos os atos administrativos
ao respeito destes princípios, entre eles o da moralidade.
Com efeito, temos que os princípios constitucionais que regem o Direito
Administrativo e os demais princípios que o norteiam esse ramo do Direito não
se excluem ou se afrontam quando de sua aplicação, mas antes constituem um
conjunto principiológico mais condensado.
A Constituição de 1988 trouxe, expressamente no caput do art. 37, os
princípios constitucionais regentes da Administração Pública, quais sejam,
legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e, mais recentemente com
o advento da Emenda Constitucional n.º 19/98, o princípio da eficiência.
Tais princípios são de basilar importância na atuação administrativa,
pois, segundo o entendimento de Alex Muniz Barreto:
Como os princípios consubstanciam-se em preceitos fundamentais
sobre os quais se erigem os demais institutos jurídicos, tem-se como
incontroverso o fato de que a violação de um princípio possui maior
gravidade do que a violação de uma lei. (BARRETO, 2008, p. 52)
Mas não há violação apenas quanto aos princípios constitucionais
expressos. Os chamados princípios implícitos também são violados, pois, ainda
nas palavras do professor Alex Muniz Barreto (2008, p. 52), ao se referir aos
351
princípios explícitos ou não na Constituição Federal, afirma que ―há de se notar
que os princípios da Administração Pública brasileira estão intimamente
correlacionados. Por isso, a sua violação, via de regra, ocorre de forma
conjunta, (...)‖.
No tocante ao princípio da legalidade, este vem expresso no art. 5º, II,
da Constituição Federal, onde ―ninguém será obrigado a fazer ou deixar de
fazer alguma coisa senão em virtude de lei‖. Entrementes, para a
Administração pública, a legalidade passa a ter feições peculiares, pois, sua
atuação resta condicionada ao que a lei determina, sendo permitido ao
administrador público realizar somente aquelas condutas legalmente previstas.
O princípio da legalidade é a base matriz de todos os demais princípios
constitucionais que instruem, condicionam, limitam e vinculam as atividades
administrativas.
O professor José dos Santos Carvalho Filho estabelece importante
ligação entre os princípios da moralidade e da legalidade:
Em algumas ocasiões, a imoralidade consistirá na ofensa direta à lei
e aí violará, ipso facto, o princípio da legalidade. Em outras, residirá
no tratamento discriminatório, positivo ou negativo, dispensado ao
administrado; nesse caso, vulnerado estará também o princípio da
impessoalidade, requisito, em última análise, da legalidade da
conduta administrativa. (CARVALHO FILHO, 2007, p. 19)
Ainda acerca da ligação entre os princípios da moralidade e da
legalidade, o professor Marcelo Alexandrino, citando o Código de Ética do
Servidor Público Civil Federal (Decreto nº 1.171/94), lecionam:
Assim, [o servidor] não terá que decidir somente entre o legal e o
ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, o oportuno
e o inoportuno, mas principalmente entre o honesto e o desonesto.
Para atuar em respeito à moral administrativa não basta ao agente
cumprir a lei na frieza de sua letra. É necessário que se atenda à letra
e ao espírito da lei, que ao legal junte-se o ético. (ALEXANDRINO,
2008, p. 196)
Hely Lopes Meirelles (1999, p. 84) vai mais além da mera legalidade ao
afirmar que ―O certo é que a moralidade do ato administrativo juntamente com
a sua legalidade e finalidade constituem pressupostos de validade sem os
quais toda atividade pública será ilegítima‖.
352
O princípio da impessoalidade revela-se na finalidade da atuação
administrativa, não podendo esta agir em benefício de interesses particulares.
A conduta do administrador público deve-se pautar sempre na objetividade e
parcialidade, tendo como único propósito a supremacia do interesse público.
Agride o princípio da impessoalidade tanto a promoção pessoal do
administrador quanto a promoção do interesse secundário do organismo estatal
a que pertence o agente público, quando destoante do interesse público
primário, que é o alcance do interesse social.
O princípio da moralidade, igualmente inserido no caput do art. 37 de
CF/88, terá sua análise realizada em momento posterior.
O princípio da publicidade decorre da ideia de transparência da
Administração Pública, porquanto não se concebe o trato da res publica sem
um mínimo de satisfação para a sociedade, afinal o administrador está lidando
com uma coisa que não lhe pertence.
É próprio da atividade administrativa o dever de publicidade, pautandose pela lei, com vistas ao alcance do fim público (interesse social) e de acordo
com os padrões éticos e morais presentes na sociedade, mas também, com o
máximo de eficiência, sob pena do ato administrativo não importar nenhum
benefício para a sociedade.
Por fim, o princípio da eficiência, que foi elevado a princípio
constitucional pela já referida Emenda Constitucional n.º 19/98. Cumpre
ressaltar que, embora a eficiência tenha sido elevada a princípio constitucional
expresso somente com o advento da supra citada emenda, não se concebe
atividade administrativa sem o dever de eficiência.
Sobre o tema, leciona o professor Alexandre de Moraes, dizendo que:
Assim, princípio da eficiência é aquele que impõe à Administração
Pública direta e indireta e a seus agentes a persecução do bem
comum, por meio do exercício de suas competências de forma
imparcial, neutra, transparente, participativa, eficaz, sem burocracia e
sempre em busca da qualidade, primando pela adoção dos critérios
legais e morais necessários para a melhor utilização possível dos
recursos públicos, de maneira a evitar-se desperdícios e garantir-se
maior rentabilidade social. Note-se que não se trata da consagração
da tecnocracia, muito pelo contrário, o princípio da eficiência dirige-se
para a razão e fim maior do Estado, a prestação dos serviços sociais
essenciais à população, visando a adoção de todos os meios legais e
morais possíveis para satisfação do bem comum. (MORAES, 2007, p.
310)
353
Dessa forma, somente com a observância de todos esses princípios, é
que a Administração Pública alcançará os fins objetivados pela Constituição
Federal, sobretudo quanto à moralidade necessária ao bom convívio social.
3. O PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA
3.1. Histórico
Na antiga Grécia surgiu uma dimensão individual em relação à moral,
embora ainda predominasse o interesse da coletividade, o que se dava apenas
entre os homens livres. Assim, emerge entre os gregos a responsabilidade
individual em face das questões morais.
Foi um período em que não se podia falar ainda em distinção entre
Direito e Moral, pois as normas postas por legisladores deveriam sê-lo em
função dos interesses comuns da polis. A moral se revelava nas diretrizes do
direito, assim como o direito refletia os princípios da sociedade.
Durante a Idade Média, a influência da igreja revelou uma moral de
caráter religioso que ligava as várias comunidades. Embora o relacionamento
entre os feudos fosse quase inexistente, a influência da religião proporcionou a
construção de uma moral comum, envolta no cristianismo.
Durante a Idade Média também não houve distinção entre Direito e
Moral. A lei deveria necessariamente voltar-se para a busca da felicidade da
sociedade, ou seja, o bem comum, refletindo os ideais de moralidade cristãos.
Daí a ausência de distinção entre Moral e Direito também na Idade Média.
3.2. Noção geral da moralidade
A moralidade é a junção de costumes, deveres e modo de proceder para
com os seus semelhantes, um corpo de preceitos e regras para dirigir as ações
humanas segundo a justiça e a equidade naturais.
Logo de início, visualizar uma distinção efetiva entre moralidade e
probidade não se mostra de todo perceptível. Contudo, com a melhor análise
de tais conceitos, percebe-se que a moralidade compreende o conjunto de
valores inerentes à existência humana, ainda que muitas vezes sejam
354
inobservados; já a probidade configura a retidão no agir segundo tais valores
perante uma dada competência.
O princípio da moralidade, portanto, nada mais é do que a busca pelo
atendimento do bem comum, observados os ditames legais, sem violar a
ideologia ética e moral aplicada na época. É a satisfação do interesse social
com legalidade ética.
Contudo, para Celso Ribeiro Bastos:
Não é fácil dizer-se em que consiste este princípio da moralidade. Os
que escreveram a respeito põem-se de acordo em admitir que não se
trata da moral comum ou geral, mas, sim, daquela que se extrai da
própria disciplina interna da Administração Pública. Para atinar-se
com o sentido da moralidade administrativa há que se levar em conta
alguns fatos, de certa forma muito antigos, mas que até hoje
dificultam a aproximação entre moral e direito. Não se há de esquecer
que houve um momento, nos séculos XVII e XVIII e mesmo no início
do século XIX, em que correntes filosóficas dominantes tornavam
inconvenientes as noções de moral e direito. (BASTOS, 1996, p. 35)
O debate acerca do princípio da moralidade administrativa ganhou
relevância com a Constituição Federal de 1988, a qual coloca a moralidade
como um dos princípios cogentes para a administração pública, desmistificando
toda uma tendência, oriunda das originárias distinções entre Direito e Moral.
Acerca da disposição contida na Constituição Federal, Uadi Lammêgo
Bulos leciona:
Em primeiro lugar uma advertência: o princípio da moralidade é uma
pauta jurídica, reconhecida expressamente pela manifestação
constituinte originária de 1988. Por isso, sua observância é
obrigatória, estando sujeita a controle judicial. Violá-lo é lesar a
Constituição.
O controle jurídico do comportamento ético da administração pública
encontra respaldo no ditame da moralidade, que não constitui uma
disposição meramente declaratória. (BULOS, 2007, p. 640)
De acordo com esse princípio constitucional, a Administração pública e
seus agentes devem atuar de conformidade com os princípios éticos, não
transgredindo o senso moral da sociedade.
Embora o princípio da moralidade administrativa tenha origem expressa
no texto constitucional, Maria Sylvia Zanella Di Pietro traz anotação importante
acerca da sua existência:
Nem todos os autores aceitam a existência desse princípio; alguns
entendem que o conceito de moral administrativa é vago e impreciso
ou que acaba por ser absorvido pelo próprio conceito de legalidade.
355
(...) a imoralidade administrativa surgiu e se desenvolveu ligada à
idéia de desvio de poder, pois se entendia que em ambas as
hipóteses a Administração Pública se utiliza de meios lícitos para
atingir finalidades metajurídicas irregulares. A imoralidade estaria na
intenção do agente.
Essa a razão pela qual muitos autores entendem que a imoralidade
se reduz a uma das hipóteses de ilegalidade que pode atingir os atos
administrativos, ou seja, a ilegalidade quanto aos fins (desvio de
poder).
(...) o princípio deve ser observado não apenas pelo administrador,
mas também pelo particular que se relaciona com a administração
pública. São frequentes, em matéria de licitação, os conluios entre
licitantes, a caracterizar ofensa a referido princípio. (DI PIETRO,
2007, p. 68-70)
Assim, o ato de imoralidade ataca a honestidade, a boa-fé, o respeito à
igualdade, as normas de conduta aceitas pelos administrados, o dever de
lealdade, a dignidade humana e ainda outros postulados éticos e morais. A
improbidade administrativa, por outro lado, significa a má qualidade de uma
administração, pela prática de atos que implicam o enriquecimento ilícito do
agente ou em prejuízo ao erário ou, ainda, em violação aos princípios que
orientam a pública administração.
A moralidade, assim, é o alicerce do qual surge a probidade, traduzindo
aquele administrador que não se norteia pelos valores éticos que compõe a
moralidade, tornado-o passível das sanções cabíveis à sua atuação
condenável.
A Moral é noção de natureza universal, constituindo algo mais fácil de
ser sentido do que propriamente definido. Trata-se de conceito eminentemente
variável, sofrendo acréscimos, ajustes e supressões em conformidade com os
critérios de ordem sociológica vigentes no meio em que se desenvolverá.
A partir das percepções no campo da moral, é possível constituir e
apontar a regra de direito. Com a abordagem moral, tornou-se mais que
possível identificar e referenciar os que agem de boa-fé e, em sentido inverso,
castigar os que agem com malícia e praticam a corrupção.
Apontada a existência coincidente de um regramento moral e outro
jurídico no mesmo sentido, a observância deste será tanto mais forte quanto o
daquele. Correspondendo ao ideal moral, a norma será respeitada de forma
voluntária, tendo-se um reduzido número de irresignações. Em sentido
contrário, colidindo a norma com os padrões de moralidade então vigentes,
356
haverá sempre grande resistência na sua observância, o que causará uma
grande instabilidade social.
3.3. Diferenças entre a moralidade e a probidade
Nas questões referentes à improbidade administrativa, é necessário
diferenciar os conceitos de moralidade e probidade.
Para fins do nosso direito positivo, exteriorizado na Constituição de 1988
e na legislação infraconstitucional, administração ímproba é aquela de má
qualidade, não se reportando, obrigatoriamente, ao caráter desonesto da
atividade administrativa.
Com base nisso, é possível diferenciar os conceitos de probidade e
moralidade, sendo esta espécie daquele.
O princípio constitucional da moralidade norteia a conduta do
administrador no sentido de que, embora se paute na legalidade, terá que ser
obrigatoriamente uma conduta de acordo com os ditames éticos e morais
presentes atualmente na sociedade.
A moralidade significa a ética da conduta administrativa; a pauta de
valores morais a que a Administração Pública, segundo o corpo social, deve
submeter-se para a consecução do interesse coletivo, ou seja, a decisão do
agente público deve atender àquilo que a sociedade, em determinado
momento, considera eticamente adequado, moralmente aceito.
Entrementes, não significa o princípio da moralidade a mesma coisa do
que probidade administrativa. Tanto a nossa Lei Maior, quanto a legislação
infraconstitucional pertinente à matéria, leva a essa orientação.
Através de uma interpretação sistemática dos arts. 15, V c/c art. 37,
caput, §4º c/c art. 5º, LXXIII c/c art.85, V, todos da Constituição Federal de
1988 e do art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92), podese concluir a posição ora defendida.
A infração ao princípio da moralidade é apenas uma das modalidades de
ato de improbidade administrativa. Isso é obvio, pois ambas são apenáveis
com as sanções previstas nos arts. 15, V; 37, §4º e 85, V, da CF/88.
357
Entretanto, presente nestes artigos está a expressão improbidade e não
moralidade.
A maior prova de que a moralidade seria espécie de probidade é a Lei nº
8.429/92, onde a violação àquela é uma das modalidades de configuração de
ato de improbidade administrativa (Art. 11 da Lei nº 8.429/92).
Esse é entendimento firmado por Alexandre de Moraes (2010, p. 330) ao
lecionar que ―A conduta do administrador público em desrespeito ao princípio
da moralidade administrativa
enquadra-se
nos denominados atos de
improbidade, previstos pelo art. 37, §4º, da Constituição Federal, (...).‖
Em esteira divergente segue o mestre José Afonso da Silva (2001, p.
653), para quem ―A probidade administrativa é uma forma de moralidade
administrativa que mereceu consideração especial pela Constituição, que pune
o ímprobo com a suspensão de direitos políticos (art. 37, §4º).‖
Não resta dúvida, portanto, para fins do nosso ordenamento jurídico
positivado, que a moralidade e a probidade não se misturam, sendo esta
gênero daquela.
3.4. A concepção da moral no direito privado
Foi no âmbito do Direito Civil que apontou primeiramente a regra moral,
rompendo aqui com os dogmas do princípio da legalidade.
A grande maleabilidade da regra moral permite um acompanhamento
mais rápido dos influxos sociais, tornando-se indispensável à efetivação do
ideal de justiça, o qual, em determinados casos, não é passível de ser
alcançado pelo engessamento normativo. Tal pode ser percebido com a
contínua remissão legislativa à ideia de bons costumes, expressão que carrega
consigo induvidosa carga moral.
O impacto inicial desta nova variante, que orientaria e condicionaria a
aplicação da regra jurídica, foi pouco a pouco diluído, resultando em uma
ampla compreensão de sua importância, o que terminou por fazer que a regra
moral migrasse para outros ramos do Direito, em especial para o Direito
Público.
358
3.5. A concepção da moral no direito administrativo
É atribuído a Maurice Hauriou o pioneirismo na idealização e no estudo
da moralidade administrativa, segundo nos informa Hely Lopes Meirelles (1999,
p. 83).
O conceito hoje plenamente propagado de moralidade administrativa,
em que se ressalta a sua distinção com relação à moral comum, é tratado
como o de uma moral jurídica que é caracterizada como o conjunto de regras
de conduta tiradas da disciplina interior da Administração.
Fernanda Marinela auxilia num melhor entendimento:
O princípio da moralidade administrativa não se confunde com a
moralidade comum. Enquanto a última preocupa-se com a distinção
entre o bem e o mal, a primeira é composta não só por regras de boa
administração, como também pela idéia de função administrativa,
interesse do povo, de bem comum. Moralidade administrativa está
ligada ao conceito de bom administrador. (MARINELA, 2007, p. 41)
Quanto à positivação da moral e sua necessária aplicação à
Administração Pública, Alex Muniz Barreto dispõe:
Deve-se observar que o princípio sob comento traduz uma inédita
positivação da moral, que, até então, era entendida como um
conjunto de princípios intrínsecos ao indivíduo e que, portanto, não
constavam de norma escrita, nem detinham qualquer força coercitiva
externa. Todavia, a positivação da moralidade justifica-se pela
necessária imposição dos deveres relativos à probidade e à boa-fé na
Administração, obrigando o gestor público a agir com retidão e
honestidade. (BARRETO, 2008, p. 45-6)
Não basta que o agente permaneça restrito ao princípio da legalidade,
sendo necessário ainda que obedeça à ética administrativa, estabelecendo
uma relação adequada entre seu labor e a consecução do interesse público.
Com efeito, a moral administrativa, por sua vez, é extraída do próprio
ambiente institucional, o que revela um tipo específico de moral fechada, sendo
fruto dos valores de um círculo restrito ocupado pelos agentes públicos.
3.6. A essência da moralidade administrativa
À semelhança da moral comum, o princípio constitucional da moralidade
administrativa também exige que o administrador observe dados valores, os
quais assumem especificidades em razão da natureza de sua atividade.
359
Ao mesmo tempo que a moral comum possui maior generalidade e
abstração, a moral administrativa toma como parâmetro os valores voltados à
atividade estatal.
Com efeito, no Estado Democrático de Direito, os atos dos agentes
públicos devem ter por fundamento de validade a norma. Os referidos atos
devem sempre buscar a realização do bem comum. Assim, podemos afirmar
que a legalidade e a moralidade se complementam, sendo obrigatória a
observância de ambos pelos agentes públicos.
Ainda que o ato esteja embasado na lei, será ele inválido se resultar de
caprichos pessoais do administrador, afastando-se por completo do dever de
bem administrar e da busca pelo bem comum.
A esse respeito, temos o entendimento sempre respeitado do professor
José Afonso da Silva:
A lei pode ser cumprida moralmente ou imoralmente. Quando sua
execução é feita, por exemplo, com o intuito de prejudicar alguém
deliberadamente, ou com o intuito de favorecer alguém, por certo que
se está produzindo um ato formalmente legal, mas materialmente
comprometido com a moralidade administrativa. (SILVA, 2001, p.
652)
Acerca do tema, cabível ainda é o magistério de Hely Lopes Meirelles:
A moralidade administrativa constitui, hoje em dia, pressuposto de
validade de todo ato da Administração Pública (CF, art. 37, caput).
Não se trata – diz Hauriou, o sistematizador de tal conceito – da
moral comum, mas sim de uma moral jurídica, entendida como o
conjunto de regras de conduta tiradas da disciplina interior da
administração. (...) Por considerações de Direito e Moral, o ato
administrativo não terá que obedecer somente à lei jurídica, mas
também à lei ética da própria instituição, porque nem tudo que é legal
é honesto, conforme já proclamavam os romanos: ―non omne quod
licet honestum est‖. (MEIRELES, 1999, p. 83)
Dessa forma, a moralidade administrativa limita e direciona a atividade
da administração pública, tornando obrigatório que os atos dos agentes
públicos respeitem os direitos fundamentais dos administrados, o que permitirá
uma maior valorização e respeito à dignidade da pessoa humana.
José dos Santos Carvalho Filho adverte que a moralidade deve ser
praticada mesmo no âmbito interno da Administração:
Acrescentamos que tal forma de conduta deve existir não somente
nas relações entre a Administração e os administrados em geral,
como também internamente, ou seja, na relação entre a
360
Administração e os agentes públicos que a integram. (CARVALHO
FILHO, 2007, p. 18)
Ao contrário do que ocorre com o princípio da legalidade, resultado da
produção normativa do Estado, o princípio constitucional da moralidade tem
maior generalidade e abstração, o que exige uma atividade responsável e
coerente para a correta identificação dos padrões de conduta que
individualizam o bom administrador.
A jurisprudência nacional, ao apreciar o princípio da moralidade
administrativa, normalmente o faz em conjunto com outro princípio dotado de
maior especificidade para o caso concreto (ex: moralidade e impessoalidade,
moralidade e publicidade etc.). Assim, sem arranhar a autonomia do princípio
da moralidade, demonstra que os valores extraídos de outros princípios
utilizados concorreram na formação do padrão considerado para o bom
administrador.
O dever de bem administrar somente será atingido quando for buscada a
finalidade prevista em lei, pois o administrador de interesses públicos sempre
se encontra atrelado aos interesses coletivos.
3.7. Previsão expressa em normas legais
Hodiernamente, o princípio em comento está expressamente previsto no
Art. 37, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil, o qual
expressa que ―A administração pública direta e indireta de qualquer dos
Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
obedecerá
aos
princípios
de
legalidade,
impessoalidade,
moralidade,
publicidade e eficiência (...)‖; importa ainda ressaltar que o âmbito de
abrangência da Ação Popular, a teor do que prevê o Art. 5º, LXXIII, da
Constituição da República, foi ampliado para alcançar a possibilidade de
anulação dos atos lesivos à moralidade administrativa.
São igualmente formas de expressão do princípio da moralidade os
preceitos constitucionais que preveem como objetivo fundamental da RFB a
construção de uma sociedade livre, justa e solidária e ainda os que protegem o
decoro parlamentar e o dever de probidade do Presidente da República.
361
Como se vê, os princípios constitucionais da legalidade e da moralidade
mantêm uma relação de harmonia, ocupando a mesma hierarquia na estrutura
principiológica que rege os atos estatais, o que inibe qualquer concepção que
considere o princípio da moralidade elemento secundário ou apenas
complementar.
Assim como o princípio da legalidade, o princípio da moralidade é
legitimador da atuação do agente público e de validade do ato administrativo
praticado; logo, seu descumprimento pode resultar na anulação do ato por via
de ação popular ou ainda de um ação civil pública.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
À luz de toda a reflexão feita sobre o princípio da moralidade e sua
abordagem
pela
Constituição
Brasileira,
sobretudo
pela
repressão
à
improbidade administrativa, é de se concluir que ao Estado, pela via dos seus
poderes constituídos, coube a função de zelar pela moralidade administrativa,
monitorando a conduta de seus agentes para fins de evitar infrações ao
referido princípio e punir os eventuais infratores.
Isto significa que na formatação adotada pelo legislador pátrio, não se
admite a atuação imoral pelos agentes públicos, cabendo aos mesmos zelar
pelo bom funcionamento da máquina administrativa e, ainda, fazer com que
sejam efetivamente alcançados os objetivos do Estado brasileiro.
Os atos de imoralidade afrontam a honestidade, a boa-fé, as normas de
condutas aceitas pelos administrados, o dever de lealdade, a dignidade
humana etc.
A improbidade representa a má gestão de uma administração, pela
prática de diversos atos que resultam o enriquecimento ilícito do agente ou em
prejuízo ao erário ou, ainda, em violação de princípios que norteiam a pública
administração.
Em verdade, são diversos os instrumentos de combate a condutas e
atos ofensivos ao princípio da moralidade administrativa. Contudo, devem os
órgãos competentes e os cidadãos em geral providenciar para que se
362
invalidem esses atos e se apliquem aos responsáveis as punições cabíveis,
isso, é obvio, enquanto o futuro não demonstrar que os administradores
públicos estejam realmente mais ligados aos valores morais e éticos que
devem inspirar uma sociedade justa e equânime.
É certo, todavia, que somente quando os administradores estiverem
realmente imbuídos de espírito público é que o o princípio será efetivamente
observado.
REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO
ALEXANDRINO,
Marcelo;
PAULO,
Vicente.
Direito
Administrativo
Descomplicado. 16.ed. São Paulo: Método, 2008.
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BRASIL. Presidência da República. Constituição da República Federativa do
Brasil. Brasília, DF, 1998.
BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada. 7.ed. São Paulo:
Saraiva, 2007.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo.
17.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20.ed. São Paulo:
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MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. 3.ed. Salvador: JusPodivm,
2007.
363
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 24.ed. São
Paulo: Malheiros, 1999.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 25.ed. São Paulo: Atlas,
2010.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 19.ed. São
Paulo: Malheiros, 2001.
364
O USO DA FORÇA NA PROTEÇÃO DA PESSOA HUMANA: O
papel do costume internacional no processo onusiano de
institucionalização de uma norma de intervenção humanitária
Mikelli M. Lucas A. Ribeiro168
RESUMO
O presente estudo teve por objetivo verificar como está se dando o processo de normativização
das intervenções humanitárias como costume internacional, no âmbito onusiano. Para tanto
buscou fazer uma abordagem interdisciplinar entre Relações Internacionais e Direito (Direito
Internacional Público e Direitos Humanos). A pesquisa utilizou materiais bibliográficos desses
dois ramos do conhecimento, além de relatórios de organismos internacionais e resoluções da
ONU. Verificou-se que mesmo sendo difícil afirmar que já exista uma norma de intervenção
humanitária, há evidências de um forte processo de institucionalização dessa modalidade de
intervenção no seio das Nações Unidas.
Palavras-chave: Intervenções
institucionalização.
humanitárias.
Direito
Costumeiro.
ONU.
Processo
de
ABSTRACT
This study aimed to verify how is going on the normativization process of humanitarian
interventions under customary International Law at the United Nations. So that sought to do an
interdisciplinary approach between International Relations and Law (International law and
Human Rights). The research has used bibliography of theses tow branches of knowledge as
well as reports from international organisms and UN resolutions. Has found that even though
difficult to argue that norm of humanitarian intervention already exist, there is evidence which
indicates a strong institutionalization process of this kind of intervention within United Nations.
keywords: humanitarian interventions. Costumary Law. UN. process of institucionalization
168
Aluno do 5º ano da graduação do curso de Direito da UEPB. Email: [email protected].
365
1 INTRODUÇÃO
Desde o fim da Guerra Fria a Organização das Nações Unidas (ONU)
passou a atuar de forma mais ativa nos conflitos intra-estatais, fazendo uso
algumas vezes da força através de intervenções para amenizar situações
caóticas em certos Estados falidos ou colapsados169. Um dos principais
argumentos para embasar estas ações coercitivas é o de agir na proteção da
pessoa humana contra graves violações de seus direitos fundamentais, o que
passou a ser convencionado como intervenções humanitárias.
Apesar de ter havido algumas intervenções para combater as graves
violações dos Direitos Humanos ao longo do século XX, a afirmação de que já
existe uma norma de intervenção humanitária incorporada no seio da
Sociedade Internacional é ainda difícil, pelo menos do ponto de vista legal.
O costume internacional é uma das formas na qual se pode chegar à
identificação de um provável processo normativo o qual gera a possibilidade de
instituição das intervenções humanitárias no âmbito do Direito Internacional.
Trata-se de uma verificação das práticas dos Estados que permite criar um
senso de obrigatoriedade decorrente de uma provável normativização
costumeira dessa modalidade de intervenção.
Este
processo
de
institucionalização
normativa
vem
se
dando
basicamente no âmbito onusiano, principalmente através de documentos e
resoluções. Sejam eles estabelecidos no seio do Conselho de Segurança,
Assembleia ou mesmo via Secretariado Geral das Nações Unidas.
Tendo em vista estas considerações, o presente estudo visa identificar
como está se dando o processo de institucionalização de uma norma de
intervenção humanitária no âmbito internacional. Para tanto procura fazer uma
abordagem interdisciplinar, na medida do possível, entre Direito Internacional
Público, Direitos Humanos e Relações Internacionais.
Na consecução do trabalho foram utilizadas referências bibliográficas
tanto da área de Direito como de Relações Internacionais, bem como de
169
Os Estados falidos são aqueles os quais existem uma autoridade central, mas que
esta não consegue exercer sua função de estado, pela falência dos seus órgãos. Já os
Estados colapsados, são aqueles os quais é impossível identificar quem é o governo
legítimo do mesmo (MELO, 2006, p. 119).
366
documentos advindos principalmente das Nações Unidas. Visando através
dessa base de dados fazer uma análise para verificação do problema e
possíveis respostas a normativização das intervenções humanitárias, tendo por
base, principalmente, as práticas reiteradas de intervenções humanitárias pela
ONU, estabelecidas nas resoluções por ela deliberadas.
2. COSTUME INTERNACIONAL E A PROTEÇÃO DA PESSOA HUMANA
Direito Costumeiro ou Consuetudinário, trata-se de um Direito que não
passou por um processo de positivação, todavia a prática o torna obrigatório
perante as partes. O Estatuto da Corte Internacional no seu artigo 38º trata do
―costume internacional, como prova de uma prática geral aceita como de
Direito‖.170
Para verificar a existência de um direito estabelecido pelo costume
internacional é necessário que haja uma prática efetiva dos Estados e um
opinio juris. O primeiro trata-se do ―cumprimento repetido de atos denominados
precedentes‖; já o segundo diz que é necessário que exista uma ―convicção
dos sujeitos de direito, que tais atos sejam obrigatórios porque o direito exige:
daí a qualificação de elemento psicológico ou o recurso à fórmula latina do
opinio juris sives necessitatis‖171.
Com relação à necessidade de precedentes deve-se ter em mente que
não é uma necessidade essencial. Quanto a isso Brownlie observa que ―desde
que a uniformidade e a generalidade da prática sejam demonstradas, não é
exigida qualquer duração específica‖ 172. Salienta ou autor que generalidade
não significa universalidade, melhor dizendo, não é essencial o entendimento
de obrigatoriedade perante toda a comunidade internacional, mas deve haver
um pensamento comum a uma boa quantidade de Estados.
170
ONU. Estatuto da Corte Internacional de Justiça, 1945. Disponível em:
http://www.un.org/spanish/aboutun/icjstat.htm
171
DINH, Nguyen; DAILLIER, Patrick; PELLET, Alain. Direito internacional público.
Trad. por Vitor Marques Coelho. 2º ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2003, p. 329.
172
BROWNLIE, Ian. Princípios de direito internacional público. Trad. Maria Manuela
Ferrajota. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997, p. 17.
367
No que tange o opinio juris, ou seja, o fator psicológico, ressaltam Dinh,
Pellet e Daillier que ―a formação espontânea de tais regras efetiva-se após uma
tomada de consciência coletiva da necessidade social‖ 173. Contudo, deve-se
salientar que esse fator psicológico, tendo por base a teoria realista das
Relações Internacionais174, é derivado muitas vezes do jogo de interesses
entre Estados, onde a imposição de vontade dos mais influentes tende a
pressionar os que têm menos poder político internacional na busca da
legitimação
dos
seus
interesses
através
de
um
meio
jurídico
internacionalmente ―idôneo‖.
As provas dos costumes são diversas, entre elas figuram: a
correspondência diplomática; a declaração de política externa; comentários
feitos pelos governos a Comissão de Direito Internacional; resoluções jurídicas
da Assembleia Geral; prática das Organizações Internacionais; dentre
outros175.
2.1 Direito Costumeiro na proteção dos Direitos Humanos
O costume internacional é substancialmente importante para a proteção
da pessoa humana e a efetivação prática dos Direitos Humanos. Para
confirmar esta constatação pode, ser citado o caso que envolveu o Pessoal
Diplomático norte-americano em Teerã. A Corte Internacional de Justiça
decidiu neste caso, de modo expresso, que a Declaração Universal de Direitos
do Homem de 1948 tem status de norma costumeira. Na ocasião a Corte
173
DINH, Nguyen; DAILLIER, Patrick; PELLET, Alain. Direito internacional público.
Trad. por Vitor Marques Coelho. 2º ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2003, p. 330.
174
Teoria Realista Moderna nas relações internacionais nasce após os fracassos da
SDN e a ascendência da 2ª Guerra Mundial. Foi quebrada a lógica idealista que previa a
união dos Estados sobre o seio de uma Organização que pudesse preservar principalmente
a paz mundial. O novo realismo surge principalmente das críticas de Edward Carr e Hans
Morgenthau que destacaram os Estados como sendo os únicos atores relevantes na esfera
internacional, estando estes em pé de igualdade entre si, numa sociedade anárquica.
Observando as Organizações Internacionais com sendo um ambiente onde os Estados
buscam a satisfação de seus interesses pessoais (SARFATI, 2005, p. 87-88). Para entender
melhor presente teoria, ver Morgenthau, Hans J.: Politics Among Nations, 2005.
175
BROWNLIE, Ian. op. cit. p. 17.
368
condenou o Irã176, afirmando que a detenção de reféns norte-americanos
além de incompatível com a Convenção de Viena sobre Relações
Diplomáticas, ia de encontro aos ―princípios fundamentais estabelecidos na
Declaração Universal de Direitos do Homem‖177.
Vale destacar ainda que, muito mais do que uma norma costumeira, a
Declaração é hoje vista como sendo um jus cogens. Este se caracteriza como
sendo um Direito Internacional geral. O art. 53 da Convenção de Viena sobre o
Direito dos Tratados diz que o jus cogens é uma ―norma aceita e reconhecida
pela Comunidade Internacional dos Estados no seu conjunto, como uma norma
da qual nenhum derrogação é permitida e que só pode ser modificada por uma
norma de Direito Internacional geral da mesma natureza‖178.
Portanto, a Declaração está num patamar acima do direito costumeiro,
pois não pode ser negada ou ter seus princípios alterados mesmo que seja por
um direito positivado em um tratado. Tal fato só ocorreria se a modificação
advinda decorresse de uma norma também tida como de Direito Internacional
geral.
Os tratados internacionais que não entraram em vigor podem ser
considerados normas costumeiras179. No tocante a proteção do homem e esta
forma normativa, devem-se destacar os Pactos de 1966. Por questões de
interesses políticos estes documentos só entraram em vigor em 1976, todavia,
mesmo antes disso, já estavam sendo consideradas normas de Direito
Costumeiro.
O costume internacional também está entre um dos principais meios
para a legitimação do uso da força para a proteção dos direitos humanos em
graves emergências. É o caso das intervenções humanitárias, a qual como se
176
Deixando de lado o mérito da questão, observar-se que a Declaração de 1948 foi
usada em favor dos Estados Unidos, para que o país obtivesse a satisfação da pretensão
frente a Corte Internacional. Interessante lembrar que foram os próprios norte-americanos,
no processo de criação da Declaração, que estabeleceram a tese da não-obrigatoriedade
desta, contrapondo a tese defendida pelos britânicos (ACCIOLY; NASCIMENTO E SILVA;
CASELLA, 2009, p. 454). Neste caso é bem nítido o fator realístico.
177
ACCIOLY, Hildebrando; NASCIMENTO E SILVA, G. E. do; CASELLA, Paulo
Borba. Manual de Direito Internacional Público. 17º ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 456.
178
ONU. Convenção sobre o Direito dos Tratados, 1969.
179
ACCIOLY, Hildebrando; NASCIMENTO E SILVA, G. E. do; CASELLA, Paulo
Borba. Manual de Direito Internacional Público. 17º ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 130.
369
verá, tem como um dos seus principais fundamentos o direito consuetudinário
na procura por um embasamento jurídico.
3. INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS
Intervenções humanitárias são basicamente ações militares em
determinado país com o objetivo de proteger nacionais desse Estado os quais
estão sofrendo graves violências180. Segundo Wheeler essa modalidade de
intervenção ―ocorre nos casos onde o governo usa a estrutura do Estado contra
seu próprio povo, ou onde este Estado está colapsado, tornando-se sem
lei‖181182
Esta prática foi praticamente inexistente no período da Guerra Fria, até
porque o uso da força com base no cap. VII foi limitado pelo conflito ideológico.
Perante a ONU, nesta época, o uso da força para proteção dos direitos
humanos não era uma ação tida como sendo legítima. ―Na balança que mede o
peso da necessidade da proteção de indivíduos e grupos oprimidos pelo
próprio Estado e o princípio da soberania, o segundo prevalece sobre o
primeiro durante todo esse período‖183.
A defesa da soberania estava apoiada no princípio da não-intervenção,
presente expressamente na Carta das Nações Unidas. Com base nesse
princípio, a URSS se valia para evitar uma disseminação da presença norteamericana na sua esfera de influência. Além disso, os soviéticos propagavam
sua doutrina de não-intervenção aos países recém descolonizados, tendo uma
ampla aceitação dentre os mesmos:
Os países do Terceiro Mundo, principais alvos de intervenção das
grandes potências, viam a defesa da não-intervenção como fato
essencial para a preservação de sua soberania. A defesa de um
direito de ingerência geralmente não estimula os países periféricos às
180
FINNEMORE, Martha. The purpose of intervention: changing beiliefs about the use
of force. New York: Cornell University Press, 2003, p. 53.
181
Tradução livre.
182
WHEELER, Nicholas J. Saving Strangers: Humanitarian Intervention in International
Society. Oxford: Oxford University Press, 2000, p. 27.
183
RODRIGUES, Simone Martins. Segurança internacional e direitos humanos: a
prática da intervenção humanitária no Pós-Guerra Fria. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p.
107.
370
ações cooperativas na esfera dos direitos humanos, ao contrário,
tende a produzir reações excessivamente defensivas184.
Contudo, medidas repressivas não-militares, que observavam o caráter
humanitário como uma das principais motivações, foram tomadas ainda
durante o conflito bipolar. Foram os casos das sanções impostas aos regimes
de segregacionistas da África do Sul e da Rodésia.
Uma questão interessante no caso da África do Sul foi vista na resolução
418 de 1977 do Conselho de Segurança, a qual atribuiu à situação existente
nesse país como sendo de ameaça a paz185. Esse novo entendimento, de
associação dos direitos humanos com a preservação da paz, será de suma
importância para as posteriores intervenções humanitárias, já que muitos
acreditam que para que estas sejam legítimas, devem ser embasadas no
capítulo VII da Carta, que permite intervenção militar da organização nos casos
de ameaça a paz e a segurança internacional186.
Todavia, mesmo existindo no caso referido uma ligação direta entre a
ameaça a paz e a proteção dos direitos humanos, não houve consenso entre
membros do Conselho de Segurança (CS) para intentar uma ação militar no
país africano187.
Só com o fim da Guerra Fria é que efetivamente passa-se a agir em
nome da proteção da pessoa humana através da força. Com a nova
importância adquirida pelos conflitos intra-estatais na comunidade internacional
bem como uma senquência de novos fatores, dentre os quais, a elevação da
proteção dos direitos humanos a um primeiro escalão na agenda internacional,
buscando-se uma real efetivação nessa tutela, é que o caráter absoluto do
princípio da não-intervenção e da soberania passou a ser questionado:
(...) nestes conflitos, ao invés de duas partes combatentes, a
quantidade se multiplicou como nos casos da Somália, com várias
facções disputando o poder, e da Bósnia, fragmentada em três
184
Idem, p. 102-103.
185
ONU. Resolução 418 do Conselho de Segurança, 1977. Disponível em:
http://www.un.org/documents/scres.htm.
186
ONU. Carta das Nações Unidas,1945.
187
RODRIGUES, Simone Martins. Segurança internacional e direitos humanos: a
prática da intervenção humanitária no Pós-Guerra Fria. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, 108109.
371
grupos principais com propósitos diversos. Isto significa que as
negociações serão mais complicadas e a garantia de que todos os
grupos vão respeitar os termos do acordo é muito menor. Estes
fatores, conjugados, minaram a eficiência das operações de
manutenção da paz, que não obtinham o consentimento unânime
para a sua permanência no país nem conseguiam garantir a chegada
da ajuda humanitária às vítimas civis sem autorização para o uso da
força188.
Portanto, nos conflitos intra-estatais, a negociação com as partes se
tornou bastante difícil. Críticas na atuação da ONU diziam que a organização
estava dando muita credibilidade a líderes locais, deixando, muitas vezes, o
processo de negociação – nos casos das missões de paz – nas mãos de
senhores da guerra e daqueles que estavam por trás de limpezas étnicas.
Destacavam,
portanto,
que
se
as
Nações
Unidas
tivessem
mesmo
preocupadas com a proteção dos direitos humanos, deveria ser dado um
mandato com base na possibilidade do uso da força189.
Por conseguinte, o cap. VII da Carta passou a ser invocado para a
proteção da pessoa humana em graves crises humanitárias presentes em
diversos conflitos intra-estatais ao longo do final do séc. XX. Nomeadamente
destacam-se: a agressão do povo curdo realizada pelo governo iraquiano; a
guerra civil na Somália; a repressão política no Haiti; os conflitos étnicos na exIugoslávia e Ruanda. Em decorrência desses conflitos ampliou-se o
entendimento de segurança internacional e o surgimento das práticas das
intervenções humanitárias no seio da ONU, as quais ocorreram nessas cinco
situações referidas190.
A questão da legitimidade dessas intervenções tornou-se então centro
das discussões sobre o assunto. Se aquele que intervêm tem o dever moral de
fazê-lo ou mesmo se se trata de uma ação legal com base na Carta ou no
direito costumeiro, são questões que passam a circundar os debates
internacionais no tocante à matéria.
188
Idem, p. 113.
189
CHANDLER, David. The people-centred approach to peace operations: The
new UN agenda. International Peacekeeping, London: Frank Cass Routledge Taylor &
Francis, v. 8, n. 1, Spring 2001, p. 6.
190
RODRIGUES, Simone Martins. Segurança internacional e direitos humanos: a
prática da intervenção humanitária no Pós-Guerra Fria. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 114115.
372
De acordo com Wheeler, para que uma intervenção seja considerada
humanitária, portanto que ela seja legítima, deve primeiramente observar
quatro critérios básicos, que são derivados da ideia de Guerra Justa:
primeiramente deve-se existir uma ―emergência humanitária suprema‖; um
segundo requisito é que o uso da força seja em última instância; depois, devese obedecer a uma proporcionalidade na ação; por fim, o uso da força deve
implicar o que ele chama de ―resultados humanitários positivos‖191.
Tratando de cada ponto, o autor diz primeiramente que ―emergência
humanitária suprema ocorre quando a única esperança de salvar vidas
depende de uma força externa‖. Ele lembra que o genocídio é apenas uma
das categorias mais extremadas dessas emergências, e inclui também
massivos assassinatos que não genocídios, expulsões massivas de cocidadãos, bem como colapsos do Estado, exemplificativamente somali,
responsável por massa de famintos e desordens em geral, provocadas pela
falta de atores que pudessem fazer valer a lei. Lembra ainda que os governos
não devem esperar por dezenas de milhares de mortes até que hajam
efetivamente192.
Quanto ao uso da força em última instância, Wheeler diz que devem ser
esgotados todos os meios pacíficos até que uma ação seja tomada de fato.
Porém, destaca que nos casos de emergências humanitárias a duração do
tempo para o esgotamento dos meios pacíficos é bastante delicada, já que
nesse período podem estar ocorrendo os mais variados abusos dos direitos
humanos. Então ele diz que não se deve tomar este pensamento de exaustão
nas negociações pacíficas de forma literal. Consequentemente, para que se aja
é necessário que se tenha a confiança de que foram tomadas todas as
medidas necessárias para cessar as violações e não houve sucesso193.
No tocante a proporcionalidade e os resultados humanitários positivos,
eles estão intimamente ligados, o autor diz que antes de agir há de ser feita
uma dosagem para verificar se intervindo estará evitando mais perdas de vidas
191
WHEELER, Nicholas J. Saving Strangers: Humanitarian Intervention in
International Society. Oxford: Oxford University Press, 2000, p. 34.
192
WHEELER, Nicholas J. Saving Strangers: Humanitarian Intervention in
International Society. Oxford: Oxford University Press, 2000, p. 34.
193
Idem, p. 35.
373
humanas do que não agindo194. Esta questão é bastante delicada, já que é
difícil mensurar quando uma intervenção causará mais danos do que trará
benefícios. Mas difícil também é permanecer inerte nessas situações.
Outra questão delicada é a do interesse em intervir. A teoria realista195
diz que os Estados só agem motivados por seus interesses, logo, segundo
seus teóricos, uma intervenção só se realizaria se realmente fosse relevante
para o(s) Estado(s) que interviesse(m). Então, de acordo com estes, a crítica
as intervenções humanitárias gira em torno dos seguintes fatores: uma
intervenção humanitária se realizaria para satisfazer o interesse do Estado
praticante, portanto uma norma que legalizasse as intervenções humanitárias
levaria, consequentemente, a abusos por parte destes, seria o pretexto para os
Estados fortes intervirem nos fracos; a menos que haja interesse, os Estados
não ariscarão as vidas dos seus soldados e seus recursos financeiros nessas
intervenções; um terceiro fator seria o de que, se houvessem intervenções elas
não seriam gerais, e sim seletivas, de acordo com o interesse; um quarto fator
seria o de que os Estados não arriscariam a vida dos seus co-cidadãos para
salvar estranhos196.
Wheeler, que está ligado ao ―solidarismo‖197, salienta que havendo
interesses outros, que não humanitários, não necessariamente descaracteriza
a intervenção como sendo humanitária. ―Mas se verificado que os motivos por
trás da intervenção (...) são inconsistentes com os resultados humanitários
positivos, então, neste caso é desqualificado como sendo humanitária‖ 198199.
E completa ainda o autor:
(...) it follows that, even if an intervention is motivated nonhumanitarian reasons, it can still count as humanitarian provided that
the motives, and the means employed, do not undermined a positive
humanitarian outcome. In advancing this claim, I´m not arguing that
194
Idem.
195
Teoria Realista das Relações Internacionais, ver SARFATI, Gilberto. Teoria das
Relações Internacionais. São Paulo: Saraiva, 2005.
196
WHEELER, Nicholas J. Saving Strangers: Humanitarian Intervention in
International Society. Oxford: Oxford University Press, 2000, p. 29-31.
197
A corrente solidarista é favorável as Intervenções Humanitárias nas Relações
Internacionais.
198
Tradução livre.
199
WHEELER, Nicholas J. Saving Strangers: Humanitarian Intervention in
International Society. Oxford: Oxford University Press, 2000, p. 38.
374
the society of states should praise those governments that are fortune
in achieving this happy coincidence of non-humanitarian motives,
means, and outcomes. But I am arguing that, because they save lives,
such intervention should be legitimated by sates and not condemned
or sanctioned200201.
Posto isto, percebe-se que o autor não é favorável a intervenções a
qualquer custo, e que no caso daquelas realizadas por motivos outros que não
sejam humanitários, mas que também não desvirtuem o caráter de proteção
humana, ele apenas acha aceitável e não louvável. A situação é bastante
delicada, pois de que forma a comunidade internacional pode julgar uma
intervenção como sendo legitimamente humanitária, mas com interesses nãohumanitários, e outra que é prioritariamente não-humanitária, mas que se vale
de pretextos humanitários? Difícil talvez seja aceitar que um Estado intervirá
única e exclusivamente por interesses humanitários.
Uma outra discussão que está presente nos debates sobre a
legitimidade das intervenções humanitárias reside na sua legalidade. O
principal apoio parece está mesmo na Carta das Nações Unidas. A
interpretação estendida do cap. VII associado à proteção dos direitos humanos,
presente nos artigos 1, 55 e 56 da mesma, dão um maior respaldo legal.
O entendimento forte no tocante ao fator legal é que, para que uma
intervenção humanitária seja legal, ela deve se enquadrar no cap. VII o que
permite o uso da força por parte do Conselho de Segurança, nos casos de
ameaça a paz e a segurança internacional202. Então, é vital para a legalização
dessas ações, que as graves violações dos direitos humanos se traduzam,
necessariamente, em uma ameaça a paz.
Uma associação clara que é feita é a de que tais conflitos geram massas
de refugiados que causam instabilidade nas fronteiras dos países vizinhos.
Além do fato de que muitas vezes forças contrárias se formam no país vizinho
200
Seguindo isto, mesmo que uma intervenção seja motivada por razões não-humanitárias, pode
ainda ser considerada humanitária se as motivações, e os meios empregados, não minarem os
resultados humanitários positivos. Fazendo esta declaração, eu não estou dizendo que a sociedade de
Estados deve louvar aqueles Estados que obtem ganhos pela feliz coincidência das motivações nãohumanitárias, melhor dizendo, dos resultados. Mas estou dizendo que, porque eles estão salvando
vidas, as intervenções devem ser legitimadas pelos Estados, e não condenadas através de sanções.
(tradução livre)
201
Idem. p. 38-39.
202
ONU. Carta das Nações Unidas, 1945.
375
para tentar combater o agressor no seu país de origem; bem como o patrocínio
de forças externas para combatentes internos.
Todavia, o maior argumento hoje está ligado ao dever do Estado de
proteger seus co-cidadãos. Tal pensamento emergiu com maior relevância
durante o período da Guerra Fria com a forte atuação das Nações Unidas
visando um maior reconhecimento internacional dos direitos humanos, e
ganhou ainda mais força no Pós-Guerra Fria.
Decorrente desta nova tendência, de universalização, a soberania
passou a ser questionada e limitada pela proteção dos direitos humanos. Os
princípios básicos da responsabilidade de proteger submetem a soberania do
Estado ao seu dever de proteção dos direitos humanos:
(1) Basic Principles
A. State sovereignty implies responsibility, and the primary
responsibility for the protection of its people lies with the state itself.
B. Where a population is suffering serious harm, as a result of internal
war, insurgency, repression or state failure, and the state in question
is unwilling or unable to halt or avert it, the principle of nonintervention yields to the international responsibility to protect203204.
Logo, de acordo com a responsabilidade de proteger, o Estado tem o
dever de velar pelos seus cidadãos. Caso o Estado em questão não consiga
evitar graves ameaças aos direitos humanos, ou pior, que esteja por trás das
agressões, o princípio da não-intervenção dará lugar ao da responsabilidade de
proteger, permitindo, assim, a ingerência de outra entidade no seu território.
Na verdade este é um assunto bastante delicado, que ainda vem sendo
desenvolvido perante a comunidade internacional, mas que servem de maior
apoio para os diversos argumentos favoráveis as intervenções humanitárias.
Além da Carta, as práticas advindas das intervenções ocorridas no
decorrer da década de 1990 favoreceram o desenvolvimento do entendimento
203
Princípios Básicos: A) Soberania do Estado implica responsabilidade, e a responsabilidade
primaria para a proteção do seu povo centra-se no próprio Estado.
B) Onde a populações estão sofrendo graves danos, como resultado de uma guerra interna,
insurgência, repressão por falha do Estado, e o Estado em questão não quer ou não é capaz de impedir
ou evitar isso, o princípio da não intervenção dar lugar a responsabilidade internacional de proteger.
(tradução livre).
204
ICISS. The responsibility to protect. Canada: International Development
Research Centre, 2001, p. 11.
376
de que estas ações passaram a integrar o costume internacional. Algumas
resoluções servem de base para essa justificativa, tendo em vista uma prática
repetitiva e um fator psicológico os quais apontam em seu norte a
institucionalização de uma norma costumeira de intervenção humanitária.
4. O COSTUME INTERNACIONAL E PROCESSO DE NORMATIVIZAÇÃO
DAS INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS
As intervenções humanitárias ainda não estão positivadas em nenhum
tratado internacional, como é sabido. Tendo em vista essa falta de positivação,
é necessário, então, recorrer ao direito costumeiro para verificar se existe ou
não uma norma de Intervenção Humanitária.
Como foi dito no decorrer do presente estudo, para que haja um
costume internacional dois requisitos são necessários: prática efetiva dos
Estados – devendo haver, neste sentido, uniformidade e generalidade – e o
opinio juris (fator psicológico de aceitação)
Quanto às práticas repetitivas dos Estados, as resoluções do Conselho
de Segurança (CS) são as fontes mais fidedignas para verificar sua existência.
A primeira resolução do CS relevante foi a 688 de 1991. Estabelecida com o
objetivo de proporcionar a ajuda humanitária a pessoas que estavam sofrendo
forte repressão por parte do governo, no Iraque. Trata-se da primeira resolução
com fins humanitários. Conduto, para sua consecução ela não previu o uso da
força explicitamente com base no cap. VII da Carta. Por este motivo, com
relação à importância jurídica da resolução, destaca Pinto que ela:
(...) não é propriamente um precedente jurídico na medida em que
não autorizou a intervenção humanitária subseqüente à sua adoção,
que foi a operação ―Provide Comfort‖. No entanto, ela levantou
importantes questões cujos desdobramentos podem vir a ter
consequências jurídicas ao longo prazo como, por exemplo, o limite
da jurisdição doméstica face a violações específicas e anteriormente
ignoradas do direito internacional. Ao incluir direitos humanos e
humanitário na agenda da segurança coletiva o Conselho de
Segurança conferiu aos mesmos um espaço até então reservado
apenas às violações clássicas como o ataque armado, a invasão de
fronteiras, ou a não-observância de tratados205.
205
PINTO, Simone Rocha Valente. As Nações Unidas e a Intervenção Humanitária
no Pós- Guerra Fria: Aspectos Jurídicos. Rio de Janeiro: PUC-RJ, 2006. Dissertação de
377
Portanto, mesmo tendo um relevante destaque ao fazer a interligação
direta entre segurança e proteção humana, referida resolução não foi a
responsável por ser o primeiro precedente jurídico para identificar um processo
de normativização das intervenções humanitárias.
O marco do citado processo foi a resolução nº 794. Instituída para a
proteção dos direitos fundamentais dos civis somalis206. Foi a primeira vez
que a ONU uso do cap. VII com o objetivo de proteger vítimas contra graves
violações
dos
direitos
fundamentais,
descartando
a
necessidade
de
consentimento do Estado anfitrião207
Com relação à inovação quanto à juridicidade da decisão de
estabelecer a presente resolução, Pinto diz que ela:
(...) criou precedente para o direito de intervir em crises humanitárias
por parte da Organização ou Estados devidamente autorizados a
fazê-lo. Juridicamente pode-se alegar que a ONU apenas aplicou o
Artigo 2(7) e o capítulo VII que, desde sempre, conferem a
Organização a prerrogativa de intervir nos assuntos internos dos
Estados. No entanto, tal posição mascara algumas óbvias inovações
no procedimento das Nações Unidas que se resumem na
incorporação de fato e de direito da ação humanitária, antes
resumida, na prática, ao trabalho descentralizado de alguns órgãos
de paz, limitadas pela condição do consentimento208.
E continua ―A Resolução 794 pode ser considerada como um marco
político e jurídico para a ação humanitária internacional; a primeira resposta
indiscutível das Nações Unidas à violação de direitos humanos e humanitários
no interior de um país‖209.
Portanto
a
resolução
794
foi
o
primeiro
precedente
para
a
institucionalização de uma norma de intervenção humanitária. Após essa
Mestrado – Programa de pós- graduação em Relações Internacionais, Pontifícia
Universidade Católica, Rio de Janeiro, 1996, p. 101.
206
ONU. Resolução 794 do Conselho de Segurança, 1992 Disponível em:
http://www.un.org/documents/scres.htm
207
PINTO, Simone Rocha Valente. As Nações Unidas e a Intervenção Humanitária
no Pós- Guerra Fria: Aspectos Jurídicos. Rio de Janeiro: PUC-RJ, 2006. Dissertação de
Mestrado – Programa de pós- graduação em Relações Internacionais, Pontifícia
Universidade Católica, Rio de Janeiro, 1996, p. 105.
208
Idem, p. 109.
209
Idem.
378
resolução o CS passou cada vez mais a estabelecer uma conexão entre
proteção humana em crises emergências e segurança internacional.
Contudo, mesmo antes da resolução 794 outra já tinha sido estabelecida
alguns meses anteriores com intuito de proteger vidas humanas. Foi a de nº
770. Presente resolução visava liberar ajuda humanitária para a Bosnia, e
determinou a possibilidade do uso do cap. VII210. Todavia a situação foi
marcada por conflitos de interesse e mesmo com a vigência dessa resolução a
operação efetiva só veio ser realizada tempos depois pela OTAN211. Portanto
não dá para ser considerada como marco, entretanto, ela pode ser facilmente
enquadrada no rol de precedentes.
Seguindo a sequência chega-se então resolução 929 do caso Ruanda.
Presente resolução permitiu, de forma tardia, a possibilidade de intervenção
para proteção dos tutsis e hutus moderados que estavam sendo vítimas de
genocídio212. A França foi o Estado que se habilitou para realizar a ação, por
motivos questionáveis, é verdade213.
Motivações a parte, pode-se observar que a resolução 929 foi a terceira
que até então permitiu o uso da força para a proteção dos direitos humanos
gravemente violados. Logo, a partir de então, percebe-se uma certa repetição
coerente de determinações desse tipo. Fator primordial para que haja um
direito costumeiro.
Após
Ruanda,
surgiram
outras
resoluções
que
possibilitaram
intervenções humanitárias. Foram os casos do Haiti e de Kosovo. No primeiro
país, os problemas políticos vivenciados levaram o CS a elaborar a resolução
940, que permitia o uso da força para garantir a proteção de direitos civis dos
210
ONU. Resolução 770 do Conselho de Segurança, 1992. Disponível em:
http://www.un.org/documents/scres.htm
211
RODRIGUES, Simone Martins. Segurança internacional e direitos humanos: a
prática da intervenção humanitária no Pós-Guerra Fria. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 156159.
212
ONU. Resolução 929 do Conselho de Segurança, 1994. Disponível em:
http://www.un.org/documents/scres.htm
213
Para mais informações sobre o assunto ver: DESFORGES, Alison. Leave None
to Tell the Story: Genocide in Rwanda. Human Rights Watch, 1999. Disponível em:
http://www.hrw.org/en/reports/1999/03/01/leave-none-tell-story
379
cidadãos haitianos214. Já com relação à Kosovo, a resolução 1199 permitiu o
uso da força e determinou que os líderes da Iugoslávia e Kosovo tomassem
medidas imediatas para amenizar o sofrimento humano e evitar uma catástrofe
humanitária ainda maior215.
Mas será que essas resoluções já são decorrentes de uma norma de
intervenção humanitária derivada do direito costumeiro? Ou o que vem
acontecendo ainda é uma prática política dos Estados baseada em um
provável ―dever moral‖? Pela complexidade na determinação do ponto exato o
qual certas práticas tornam-se normas decorrente do costume internacional,
fica difícil dar respostas imediatas a essas questões.
Accioly, Nascimento e Silva e Casella ao falar das resoluções da
Assembleia Geral da ONU como fonte de direito internacional – aqui podem ser
incluídas de forma análoga também as resoluções do CS – lembram que estas
não foram expressamente expostas no artigo 38 da CIJ, ―mas de longa data
reconhece que podem ser invocadas como eventual manifestação do
costume‖216. Referidos autores ainda destacam que as resoluções ―exercem
certa pressão política sobre os estados; se estes se conformarem com a
pressão, uma prática pode desenvolver-se e resultar depois de algum tempo na
consciência de que existe obrigação jurídica, que pode dar origem ao
nascimento de um costume‖.217 E continuam: ―(...) a pressão política poderá
criar um opinio juris, surgindo daí costume legal. Mas a repetição só terá essa
conseqüência se esta corresponder ao sentimento da maioria dos membros da
organização‖218.
Portanto, de fato existe a nítida possibilidade de que as resoluções que
permitiram o uso da força para a proteção de direitos humanos estarem
servindo para criar um costume internacional. Contudo, saber se esse costume
214
ONU. Resolução 940 do Conselho de Segurança, 1994. Disponível em:
http://www.un.org/documents/scres.htm.
215
ONU. Resolução 1199 do Conselho de Segurança, 1998. Disponível em:
http://www.un.org/documents/scres.htm
216
ACCIOLY, Hildebrando; NASCIMENTO E SILVA, G. E. do; CASELLA, Paulo
Borba. p. 171.
217
Idem.
218
Idem.
380
já existe, ou ainda está em processo de formação, é uma tarefa árdua, de difícil
solução.
Accioly, Nascimento e Silva e Casella, ao falar da modalidade
intervenção humanitária, destacam que a prática internacional ―juridicamente
tornou esta possível mediante a ampliação da noção de ameaça contra a paz
de interpretação flexível, nos termos da Carta‖ 219.
Mesmo sem ter a capacidade de determinar de forma definitiva se há ou
não uma norma de intervenção humanitária instituída no seio da Comunidade
Internacional, é possível fazer algumas considerações com base nas
características que podem definir certa prática como costume internacional.
Logo, sabendo que são pré-requisitos para a formação de um costume
internacional as práticas uniformes, gerais e repetitivas e o fator psicológico
(opinio juris), tem-se que: Quanto as primeiras, as resoluções estabelecidas
pela CS, principalmente pós-genocídio em Ruanda, podem ser responsáveis
pelo
preenchimento
desse
pré-requisito,
portanto,
pela
formação
de
precedentes; Já no tocante ao opinio juris, é nítido através das diversas
discussões no âmbito da ONU – destacadamente o debate dos delegados
sobre o mérito legal da responsabilidade de proteger na Assembleia Geral220
– que o senso de obrigatoriedade vem intensificando no seio dos Estados,
principalmente após a resolução A63/308221, que implementou definitivamente
o princípio222 da responsabilidade de proteger na esfera onusiana.
O que fica claro aqui é que, mesmo não podendo afirmar com precisão
que existe uma norma de intervenção humanitária definitivamente positivada no
na esfera internacional, do ponto de vista jurídico, pode-se se dizer que, ao
menos um intenso processo de institucionalização de uma norma desse cunho
vem seguindo no âmbito das Nações Unidas. A esse respeito, lembra
219
Idem, p. 312.
220
Sobre
o
referido
debate,
acesse:
http://www.integranet.un.org/News/Press/docs/2009/ga10850.doc.htm
221
ONU. Resolução A63/308 da Assembleia Geral. 2009. Disponível em:
http://www.crin.org/docs/SS_Follow_up2008.pdf.
222
While there is not yet a sufficiently strong basis to claim the emergence of a new
principle of customary international law, growing state and regional organization practice as
well as Security Council precedent suggest an emerging guiding principle – which in the
Commission´s view could properly be termed ―the responsibility to protect‖. (ICISS, 2001, p.
15)
381
Finnemore que o critério contemporâneo do uso da força é decorrente de
princípios compartilhados pelos Estados multilateralmente, estes que são
articulados, sobretudo, no âmbito onusiano223.
Para um melhor posicionamento no que concerne a uma plena
positivação, outros estudos deverão ser seguidos de modo que a produção
acadêmica possa esclarecer cada vez mais de que forma esse mecanismo de
proteção dos direitos humanos está sendo inserido no seio da Comunidade
Internacional.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A institucionalização normativa das intervenções humanitárias ganhou
mais força com as novas idéias as quais limitam a histórica soberania
Westfaliana do Estado, onde agora este agente deve observar não só a sua
supremacia interna como norteadora da suas políticas, mas também outras
questões, dentre elas o novo status da pessoa humana como sujeito de Direito
internacional.
A aceitação de princípios como o da segurança humana224 e o da
responsabilidade de proteger, são provas efetivas desse novo status do
homem. Provavelmente a normativização das intervenções humanitárias não
será advinda pura e simplesmente de uma norma específica, mas como
conseqüência da incorporação no direito costumeiro destes princípios,
sobretudo o último deles, que é muito maior do que apenas esta modalidade de
intervenção225.
O fato é que a burocracia onusiana vem servindo de vetor para a
inserção de uma norma de intervenção humanitária a partir das suas práticas.
Presente trabalho não teve a ousadia de afirmar que já existe tal norma
223
FINNEMORE, Martha. The purpose of intervention: changing beiliefs about the use
of force. New York: Cornell University Press, 2003, p. 81.
224
Para mais informações sobre a ideia de segurança humana ver relatório:
COMISSION ON HUMAN SECURITY. Human Security Now. Nova York: Comission on
Human Security, 2003.
225
A intervenções humanitárias estão inseridas em um dos objetivos específicos da
Responsabilidade de Proteger, o da reação, os quais abrangem também a prevenção de
emergências humanitárias e a reconstrução após a estabilização dessas emergências.
382
positivada no costume internacional, e sim de demonstrar a existência de um
processo de institucionalização na esfera internacional, e como esta vem se
dando no seio das Nações Unidas.
Estudos outros devem ser realizados visando cada vez mais à tentativa
de situar as intervenções humanitárias no campo jurídico, afim de que se possa
entender esse fenômeno não só do ponto de vista da política internacional,
mas também do direito internacional, posto que este é essencial na árdua
tarefa de coordenar de forma menos desigual as relações inter-estatais em
meio à anarquia226 internacional, bem como para a plena proteção da pessoa
humana.
6. REFERÊNCIAS
ACCIOLY, Hildebrando; NASCIMENTO E SILVA, G. E. do; CASELLA, Paulo
Borba. Manual de Direito Internacional Público. 17º ed. São Paulo:
Saraiva, 2009.
BROWNLIE, Ian. Princípios de direito internacional público. Trad. Maria
Manuela Ferrajota. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997.
CHANDLER, David. The people-centred approach to peace operations: The
new UN agenda. International Peacekeeping, London: Frank Cass Routledge
Taylor & Francis, v. 8, n. 1, Spring 2001, p.1-19.
DINH, Nguyen; DAILLIER, Patrick; PELLET, Alain. Direito internacional
público. Trad. por Vitor Marques Coelho. 2º ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2003.
FINNEMORE, Martha. The purpose of intervention: changing beliefs about
the use of force. New York: Cornell University Press, 2003
ICISS. The responsibility to protect. Canada: International Development
Research Centre, 2001.
MELO, Raquel Bezerra Calvacante Leal de. O Processo de
Institucionalização das Operações de Paz Multidimensionais da ONU no
Pós-Guerra Fria: direitos humanos, polícia civil e assistência eleitoral. Rio de
Janeiro: PUC-RJ, 2006. Tese de doutorado – Programa de pós- graduação em
Relações Internacionais, Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro, 2006.
226
Anarquia é um termo usado nas relações internacionais para demonstrar que os
Estados obedecem apenas as suas vontades, pois não existe um governo superior a eles,
melhor dizendo, um governo global. Para mais informações ver: BULL, Hedley. Sociedade
Anárquica. Trad. Sérgio Bath. Brasília: Editora UNB, 2002.
383
ONU. Carta das Nações Unidas, 1945.
______. Convenção sobre o Direito dos Tratados, 1969.
______. Estatuto da Corte Internacional de Justiça, 1945.
______. Resolução A63/308 da Assembleia Geral. 2009. Disponível em:
http://www.crin.org/docs/SS_Follow_up2008.pdf.
______. Resolução 770 do Conselho de Segurança, 1992. Disponível em:
http://www.un.org/documents/scres.htm.
______. Resolução 794 do Conselho de Segurança, 1992 Disponível em:
http://www.un.org/documents/scres.htm.
______. Resolução 929 do Conselho de Segurança, 1994. Disponível em:
http://www.un.org/documents/scres.htm.
______. Resolução 940 do Conselho de Segurança, 1994. Disponível em:
http://www.un.org/documents/scres.htm.
______. Resolução 1199 do Conselho de Segurança, 1998. Disponível em:
http://www.un.org/documents/scres.htm.
PINTO, Simone Rocha Valente. As Nações Unidas e a Intervenção
Humanitária no Pós- Guerra Fria: Aspectos Jurídicos. Rio de Janeiro: PUCRJ, 2006. Dissertação de Mestrado – Programa de pós- graduação em
Relações Internacionais, Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro, 1996.
RODRIGUES, Simone Martins. Segurança internacional e direitos
humanos: a prática da intervenção humanitária no Pós-Guerra Fria. Rio de
Janeiro: Renovar, 2000.
SARFATI, Gilberto. Teoria das Relações Internacionais. São Paulo: Saraiva,
2005.
WHEELER, Nicholas J. Saving Strangers: Humanitarian Intervention in
International Society. Oxford: Oxford University Press, 2000.
384
OS ROYALTIES DO PETRÓLEO DA CAMADA PRÉ-SAL E SUA
DIVISÃO FEDERATIVA: UMA ABORDAGEM À LUZ DO DIREITO
CONSTITUCIONAL AO MEIO AMBIENTE EQUILIBRADO
Jaime de Souza Coelho227
Lincoln Ferdinand Oliveira Silva228
Rafaella Mayana Alves Almeida Cardins229
RESUMO
O presente trabalho tem como finalidade abordar a discussão que envolve a descoberta da
camada pré-sal anunciada pela Petrobras em meados de 2006. Dividido em três partes, ele,
inicialmente, trás uma explicação sobre o que é a camada pré-sal, seu vínculo com os royalties
e seus marcos regulatórios. Em seguida, é trazida à tona a questão da nova proposta de
partilha dos royalties entre os entes federados. Por último, faz-se a analise da
constitucionalidade dessa compensação financeira oferecida aos estados membros da
federação e sua definição doutrinária.
Palavras-chave: Pré-sal; royalties; federalismo; meio ambiente
ABSTRACT
The present paper has as It‘s main aim on the debates involving the discovery of the ―Pré-sal‖
reserve announced by Petrobras around 2006. Divided into three sections, it initially explains
what is the ―pré-sal‖ reserve and it‘s connection with the petrol royalties and respective laws.
Than, the issue about the new sharing proposal between the states is brought up. Lastly, a
constitutional analysis of this financial compensation offered to the states and it‘s doctrinaire
definition is made.
Key-Words: Pré-sal; royalties; federalism; enviroment
227
228
229
Bacharelando em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).
Bacharelando em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).
Bacharelanda em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).
385
1. INTRODUÇÃO
A partir da descoberta da camada pré-sal foram gerados alguns debates
em torno da possibilidade de modificação na atual distribuição dos royalties do
petróleo entre os entes federados.
Resultou desses debates a elaboração de quatro projetos de lei que
dispõe sobre a exploração e produção do petróleo da camada pré-sal. No PL
5.938/09, é proposta a distribuição equitativa dos royalties entre os estados e
municípios brasileiros. O que não agradou aos estados situados entre Espírito
Santo e Santa Catarina que, de acordo com a legislação vigente, por
localizarem-se próximos às bacias sedimentares de Santos, Campos e Espírito
Santo, receberiam todos os royalties referentes ao petróleo extraído nesse
local.
Através da análise das concepções federativas que explicam a formação
e distribuição de competências da federação brasileira. Assim como, por meio
da explanação acerca do direito constitucional ao meio ambiente equilibrado,
faremos o estudo da divisão federativa dos royalties do petróleo da camada
pré-sal existente tanto na atual Lei do Petróleo quanto no marco regulatório
proposto.
2. CAMADA PRÉ-SAL, ROYALTIES E A LEI DO PETRÓLEO
Se estendendo entre os estados de Santa Catarina e Espírito Santo, e
englobando as bacias sedimentares de Santos, Campos e Espírito Santo, a
camada pré-sal recebe esse nome porque forma um intervalo de rochas que se
situa por baixo de uma vasta camada de sal. Ao longo do tempo essas rochas
foram sendo depositadas antes da camada pré-sal e têm uma profundidade
(distância entre a superfície do mar e os reservatórios de petróleo) que pode
chegar a mais de sete mil metros.
O petróleo encontrado nesta área, pelo fato de estar abaixo da camada
de sal, segundo geólogos, possui uma melhor qualidade do que o encontrado
na camada pós-sal, anteriormente mais visada e que reunia todos os esforços
386
concentrados
em
sua
exploração,
por
ser
menos
profunda
e
consequentemente mais barata e acessível. Todavia, o petróleo encontrado em
cima da camada de sal também tem origem no pré-sal, como explica o
professor da Faculdade de Geologia da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro (UERJ), René Rodrigues (apud SATO, 2009) 230: ―O petróleo pode se
formar no pré-sal e ficar preso. Em alguns casos, o sal escorrega e abre
passagem para o óleo, que se acumula nas rochas do pós-sal. É o que
acontece na Bacia de Campos (RJ), por exemplo [...] no pré-sal, como a
profundidade é maior, o óleo fica a uma temperatura acima de 80ºC, o que o
esteriliza e preserva sua qualidade‖.
O professor ainda explica que apesar dos investimentos em cima da
camada pré-sal custarem pelo menos o dobro do preço, o óleo retirado dessa
camada tem um valor maior no mercado.
Na ampla camada, que se estende por uma faixa de 800 km, já foram
descobertos vários campos e poços, entre eles o de Tupi, com reservas
gigantes, chegando a uma estimativa entre 5 e 8 bilhões de barris de petróleo.
Embora não existam números concretos sobre a quantidade de óleo que
realmente existe na região, a ministra Dilma Roussef afirma otimista, que com
a exploração do pré-sal, o Brasil poderá se tornar um exportador de petróleo, e
ainda há quem acredite que se encontrará no futuro entre as maiores reservas
de petróleo do mundo com cerca de 100 bilhões de barris. 231
Outro conceito totalmente ligado ao petróleo e às fontes de energia em
geral, e que não podemos deixar de tratar aqui para o completo entendimento
da explanação, é o de royalties.
Royalty é um valor pecuniário calculado a partir da extração de petróleo,
devido ao estado pelas empresas exploradoras, e que tem o escopo de
compensar os estados e municípios envolvidos na exploração e extração do
230 SATO, Paula. O que é a camada pré-sal?
Disponível
em:
http://revistaescola.abril.com.br/geografia/fundamentos/camada-presal-474623.shtml. Acesso em 21 de mar. 2010.
231
FOLHA ONLINE. Entenda o que é a camada pré-sal. 31/08/2009. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u440468.shtml . Acesso em 21 de
mar. 2010.
387
petróleo. Seu cálculo e distribuição são regulamentados no Decreto Nº 1 de 7
de fevereiro de 1991 bem como nas leis 7.990/89 e 8.001/90.
Temos ainda a Lei ordinária nº 9.478/97, conhecida como a Lei do
Petróleo, que marcou o fim do monopólio estatal do petróleo da União,
revogando a lei nº 2.004/53, que dava total autonomia à Petrobrás, para
qualquer atividade relacionada à extração de petróleo. Ela concedeu às outras
empresas da área petrolífera a possibilidade de realizar todas as atividades
voltadas à cadeia do petróleo.
Consoante os marcos regulatórios vigentes, a união fica com 40% dos
royalties e os estados e municípios envolvidos com a extração e produção de
petróleo, 60%. Porém, a descoberta da camada pré-sal, anunciada pela
Petrobrás em meados de 2006, suscitou vários debates em todo o território
nacional, focados na possível necessidade de mudanças no nosso atual
modelo regulamentar, para preservar, assim a maior parte desta riqueza para o
nosso país.
3. DIVISÃO DOS ROYALTIES E O FEDERALISMO BRASILEIRO
Resultante dos debates acerca da necessidade de um novo marco
regulatório para a exploração do gás e do petróleo da camada pré-sal foi
elaborado o Projeto de Lei 5.938/09 versando sobre a exploração e a produção
de petróleo, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos sob o regime de
partilha de produção; assim como o PL 5.939/09 que autoriza o Poder
Executivo a criar a PETRO-SAL; o PL 5.940/09 que cria o fundo social; e ainda
o PL 5.941/09 que autoriza a União a ceder, onerosamente, à Petrobrás a
execução das atividades de pesquisa e lavra do petróleo e do gás.
Entretanto, voltaremos nossas atenções para o PL 5.938/09, pois este
dispõe sobre a polêmica divisão dos royalties. Diferentemente da atual Lei do
Petróleo, o PL 5.938/09, aprovado na Câmara no dia dez de março de 2010,
propõe a permanência dos 40% concernentes à União, e a distribuição
equitativa de 60% dos royalties entre os Estados, Distrito Federal e Municípios
– produtores e não produtores.
388
A disputa entre Rio de Janeiro, Espírito Santo, São Paulo, Paraná e
Santa Catarina (próximos a camada pré-sal) e os demais estados brasileiros,
que aparentemente se configura como eminentemente política e econômica,
precisa ser trabalhada sob uma perspectiva constitucional, uma vez que está
intimamente ligada às concepções e aos princípios federalistas.
A formação da federação brasileira se deu por meio de um movimento
centrífugo (do centro para fora), ou seja, partiu de um estado unitário e
concentrado que se descentralizou. De acordo com Bonavides (2008), esse
movimento, contrário ao que deu origem a forma federativa dos EUA –
movimento centrípeto, isto é, estados soberanos que cederam parte de sua
soberania para constituir um único estado soberano – explica a pequena
autonomia que os estados federados brasileiros possuem em contraposição à
enorme competência legislativa da União.
A Constituição Federal de 1988 desprezou o conceito do típico interesse
local - conforme versa José Afonso da Silva (2001) - e adotou a predominância
do interesse geral, segundo o qual caberão à União as questões de interesse
predominantemente nacional, enquanto que competirão aos estados às
matérias regionais e aos municípios os assuntos locais.
Entendendo a exploração e produção de petróleo como uma questão de
interesse nacional o constituinte de 1988 atribuiu à União a competência
privativa de legislar sobre jazidas, minas e outros recursos minerais (CF/88,
art.22, XII), uma vez que os recursos naturais da plataforma continental e da
zona econômica exclusiva foram estabelecidos como bens da União (CF/88,
art.20, V). Desta forma, localizados a aproximadamente 162 milhas náuticas da
costa (plataforma continental), os recursos naturais da camada pré-sal se
configuram como bens da União. Porém, a Lei 9.478/97 atribui a Estados e
Municípios produtores confrontantes (definidos pelo Decreto Nº 93.189, de 29
de Agosto de 1986) a quantia de 22,5%, para cada um deles, calculados sobre
a parcela do valor do royalty que exceder a cinco por cento da produção.
A expectativa de o Brasil compor o grupo dos maiores produtores e
exportadores de petróleo do mundo, a partir da exploração da camada pré-sal;
combinada com o aspecto da histórica formação da federação brasileira que
389
concentra na União a maior parte das competências legislativas; acrescida ao
objetivo fundamental da República Federativa do Brasil de reduzir as
desigualdades sociais e regionais (CF/88, art. 3°, III) e ao debate em torno do
direito ao meio ambiente equilibrado (que será trabalhado mais adiante)
impulsionaram a formulação desse novo marco regulatório
4. DIREITO CONSTITUCIONAL AO MEIO AMBIENTE EQUILIBRADO E A
VINCULAÇÃO COM OS ROYALTIES
Ao meio ambiente é dedicado todo um capítulo, que se resume ao Art.
225, na Constituição de 1988, dada a extrema relevância daquele, ganhando
"autonomia em relação a outros bens protegidos pela ordem jurídica [...] sendo
elevado à categoria de bem jurídico per se" (MILARÉ, 2005, p. 180).
Segundo Bonavides (2008), os direitos do meio ambiente não tem seu
foco nem em direitos individuais nem em coletivos, mas somente nos difusos.
São direitos por excelência universais e humanísticos, tendo como destinatário
primeiro o gênero humano.
Já Gilmar Mendes (2008) acredita que o direito ao meio ambiente tem
uma configuração dupla. Este teria um caráter, além de universal, individual.
Isto "reflete a articulação entre ambiente e qualidade de vida, aponta desde
logo para a igualmente dúplice dimensão do ambiente como direito subjetivo e
como tarefa estatal e comunitária [...] constituindo uma unidade subjetivoobjetiva". Assim, "além de ser bem comum do povo [...], o meio ambiente é
reputado bem essencial à sadia qualidade de vida" (MILARÉ, 2005, p. 188).
A disciplina do meio ambiente nas constituições veio somente a partir da
concepção dos diretos fundamentais de terceira geração. Na constituição
portuguesa, inspiradora de nossa constituição na disciplina ambiental, este
tema é tratado como direito social, junto à segurança social, saúde, habitação,
e qualidade de vida, o que nos leva a retomar o caráter dúplice deste direito,
destacado por Gilmar Mendes. Nas palavras de Canotilho (2007, p. 386) "A
primeira [geração] seria a dos direitos de liberdade, os direitos das revoluções
390
francesas e americana; a segunda seria a dos direitos democráticos de
participação política; a terceira seria a dos direitos sociais e dos trabalhadores."
O meio ambiente citado na constituição brasileira é analisado de
maneira multifacetária. Nossa carta maior trata não somente do meio ambiente
natural,
mas
também
do
cultural,
artificial
e
laboral,
sendo
estes
complementares (BULOS, 2009). Assim, José Afonso da Silva (1995, p. 2)
classifica o meio ambiente como "a interação do conjunto de elementos
naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da
vida em todas as suas formas". Portanto esta é uma "concepção mais recente,
que considera o meio ambiente um sistema no qual interagem fatores de
ordem física, biológica e socioeconômica" (MILARÉ, 2005, p. 1087).
Passemos agora para a leitura do Art. 20, § 1º, do Art. 225 e do seu
parágrafo 2º:
Art.
20.
.............................................................................................................
§ 1º - É assegurada, nos termos da lei, aos Estados, ao Distrito
Federal e aos Municípios, bem como a órgãos da administração
direta da União, participação no resultado da exploração de petróleo
ou gás natural, de recursos hídricos para fins de geração de energia
elétrica e de outros recursos minerais no respectivo território,
plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva,
ou compensação financeira por essa exploração.
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o
dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras
gerações.
§ 2º - Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar
o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida
pelo órgão público competente, na forma da lei.
Quanto à eficácia do Art. 225, § 2º, e do Art. 20, § 1º, temos que são
normas de eficácia limitada, posto que o legislador deixa a regulamentação
para lei posterior, ao afirmar que será o direito, por ele tutelado, expresso ― na
forma da lei‖ ou ―nos termos da lei‖. Maria Helena Diniz aplica uma
nomenclatura distinta mas definidora da mesma espécie de norma, ela as
chama de "normas de eficácia relativa complementável". Isto significa que a
sua aplicação não é imediata, posto que necessita de legislação posterior (lei
complementar ou lei ordinária) para que o direito nela contido tenha plena
"eficácia, permitindo o exercício do direito ou do benefício consagrado"(DINIZ,
391
2001, P. 114). Assim, analisando o texto do artigo, identificamos esta norma
como programática, gênero de norma de eficácia limitada, pois traz apenas o
programa para o cumprimento dos interesses nela consagrado. Canotilho
(2007, p. 408) chama os direitos contidos em normas destas características de
―direitos sociais derivados que reconduz ao direito de exigir uma actuação
legislativa concretizadora das ‗normas constitucionais sociais‘‖.
Como
se
fez
necessária
a
regulamentação
destes
preceitos
constitucionais foram promulgadas as leis:
- 7.990/89 - apresenta em sua ementa o objetivo da regulamentação, onde lêse: ―Institui, para os Estados, Distrito Federal e Municípios, compensação
financeira pelo resultado da exploração de petróleo ou gás natural‖
- 8001/90 – cuja ementa declara: ―Define os percentuais da distribuição da
compensação financeira de que trata a Lei nº 7.990‖
- 9.478/97 – Lei do Petróleo, que regulamenta a política nacional das atividades
relativas ao petróleo, instituindo os royalties como participação governamental
sobre a produção de petróleo e gás natural.
Do caput do art. 225 encontramos a função dos royalties, pois o
constituinte "projeta sua proteção para o futuro garantindo um meio ambiente
para as gerações vindouras" (Araujo; Nunes Júnior, 2009, p. 516). E este
espírito de compensação pelo dano causado é exatamente o escopo dos
royalties.
No parágrafo 2º do Art. 225 e no parágrafo 1º do Art. 20 encontramos a
justificativa dos royalties, caracterizando estes como uma contraprestação de
natureza indenizatória dos danos ambientais causados pela extração de
petróleo ou gás natural, para ressarcir prioritariamente os estados e municípios
envolvidos na extração deste recurso.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A abordagem do tema e sua fundamentação teórica foram elaboradas
objetivando justificar a igualdade proporcional na divisão do valor proveniente
dos royalties do petróleo extraídos da camada pré-sal, já que ―não se pode
392
tratar igualmente situações provenientes de fatos desiguais. O raciocínio que
orienta o princípio da isonomia tem sentido objetivo: aquinhoar igualmente os
iguais e desigualmente as situações desiguais‖ (BULOS, 2009, p. 121).
O projeto de lei supracitado gerou desavenças políticas por desenvolver
um novo modelo de partilha do montante arrecadado através do repasse de
porcentagens da exploração do petróleo e gás natural realizado pelas
empresas concessionárias. O conflito se dá, pois os estados produtores
confrontantes, insatisfeitos com a possível perda de recursos, alegam que, em
conformidade com o Art.20, § 1º, CF/88, devem ser detentores de todo
percentual previsto na lei 8.001/90.
Aprovada, essa lei causaria uma bruta redução dos royalties recebidos
pelo estado do Rio de Janeiro, produtor de cerca de 85% do petróleo nacional,
e outros estados produtores confrontantes, o que reduziria os investimentos
nas áreas de saúde, educação, entre outras. Todavia, sendo a camada pré-sal
bem da União, os royalties do petróleo extraídos nessa região deveriam ser
divididos para todos os entes federados.
A solução proposta é fundamentada sob a égide da igualdade
proporcional. Ao mesmo tempo em que a camada pré-sal é bem da união,
dando direito a participação de todos, os estados produtores confrontantes, que
conforme o projeto de lei se equiparariam aos estados não produtores,
deveriam receber uma porcentagem maior por sofrerem as consequências
diretas da extração em seu meio ambiente. Cumprindo, assim, um dos
objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, reduzir as
desigualdades regionais (CF/88, Art. 3º, III). Desta forma, a adoção da
distribuição proporcional dos royalties entre os estados federados estaria em
consonância com um dos objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil, reduzir as desigualdades regionais (CF/88, Art. 3º, III).
6. REFERÊNCIAS
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13. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
393
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Malheiros, 2008.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado
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SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São
Paulo: Malheiros, 2001.
_____, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. 2. ed. São Paulo:
Malheiros, 1998.
394
O PRINCÍCIO DA INSIGNIFICÂNCIA NOS CRIMES AMBIENTAIS.
Diego Conserva Arruda232
Kelly Marlyn Colaço Dantas233
RESUMO
O Direito Penal admite o princípio da insignificância principalmente nos crimes contra o
patrimônio, e está se tornando cada vez mais comum a utilização deste princípio pelos
magistrados ao se depararem com uma ofensa a bem jurídico desproporcional a pena ou
punição aplicada no caso concreto. Tomando por base os precedentes abertos no Direito
Penal, há possibilidade de aplicação deste princípio para os crimes contra o meio ambiente.
Como analisaremos, porém, o Direito Ambiental possui uma perspectiva própria na análise nos
delitos de bagatela, pois a aplicação do princípio da insignificância desprovida de uma análise
técnica poderia se tornar perigosa ao equilíbrio do ecossistema, uma vez que algumas
condutas aparentemente inofensivas podem acarretar danos e desequilíbrio ao meio ambiente.
A atual legislação ambiental dá punição a crimes de pequeno potencial ofensivo, sendo este
um dos maiores motivos pelo qual alguns doutrinadores e algumas jurisprudências negam a
aplicabilidade do princípio da insignificância em tais crimes, como também há de ser analisado
o conjunto de vários crimes potencialmente insignificantes que juntos tem um elevado grau de
dano ao meio ambiente.
Palavras-chave: princípio da insignificância; crime ambiental; aplicabilidade.
ABSTRACT
The criminal law recognizes the principle of insignificance especially in crimes against property,
and is becoming increasingly common the use of this principle by the judges when faced with
an offense against legal and disproportionate punishment or penalty imposed in this case.
Building on the precedents in criminal law, there is the possibility of applying this principle to
crimes against the environment. How to analyze, however, the Environmental Law has a unique
perspective on the analysis in the crimes of trifle, because the principle of insignificance devoid
of technical analysis could become dangerous to the balance of the eco-system, since some
behaviors may seem harmless imbalance and cause damage to the environment.The current
environmental legislation gives punishment for crimes of small offensive potential, which is one
of the biggest reasons why some scholars and some jurisprudences deny the applicability of the
principle of insignificance on such crimes, but also has to be analyzed all the various crimes
potentially insignificant which together have a high degree of environmental damage.
Key-words: principle of insignificance; environmental crime; applicability
232
Graduando do curso de
[email protected]
233
Graduanda do curso de
[email protected]
Direito.
Universidade
Estadual
da
Paraíba.
Direito.
Universidade
Estadual
da
Paraíba.
395
1. INTRODUÇÃO
O Direito Penal admite o princípio da insignificância principalmente nos
crimes contra o patrimônio, e está se tornando cada vez mais comum a
utilização deste princípio pelos magistrados ao se depararem com uma ofensa
a bem jurídico desproporcional a pena ou punição aplicada no caso concreto.
Tomando por base os precedentes abertos no Direito Penal, os magistrados
também trouxeram a aplicação deste princípio para os crimes contra o meio
ambiente. Como analisaremos, porém, o Direito Ambiental possui uma
perspectiva própria na análise nos delitos de bagatela, pois a aplicação do
princípio da insignificância desprovida de uma análise técnica poderia se tornar
perigosa ao equilíbrio do ecossistema, visto que certas condutas são
aparentemente inofensivas quanto analisadas de forma isolada e sobe um
aspecto quantitativo, todavia podendo acarretar em danos e desequilíbrio ao
meio ambiente.
Analisaremos o tema de acordo com a legislação vigente. Tomaremos
por base a doutrina, legislação ambiental e a jurisprudência relacionada à
aplicação do princípio da insignificância em matéria criminal em geral e
ambiental de forma particular. Começando nossa análise da a partir da
proteção
constitucional
da
ao
meio
ambiente
(art.
225
da
CF/88),
consideraremos de forma principal a Lei 9.605/98, que dispõe sobre as
sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao
meio ambiente.
Este trabalho tem como objetivo analisar a aplicabilidade do principio da
insignificância no âmbito do Direito Penal Ambiental, trazendo à tona a
discussão doutrinaria e jurisprudencial que ocorre em nosso ordenamento
como também examinar qual foi o tratamento dispensado pela legislação
ambiental a este principio, respondendo a alguns questionamentos como, por
exemplo: até onde pode ir a interpretação do magistrado para sua aplicação,
saber se essa interpretação pode ir além do que a Lei prevê quanto a
insignificância das condutas criminais ambientais, qual o posicionamento atual
da jurisprudência e da doutrina, e se já se chegou a um consenso.
396
2. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NO DIREITO PENAL
Para se ter um melhor conceito sobre o princípio da insignificância, vale
saber onde é aplicado e de que forma o é. Assim, entendemos que crime é
toda conduta humana, positiva ou negativa, típica e antijurídica, da qual recai
sanção penal. Para Damásio, comportamento humano, sendo este ativo ou
omissivo que provoca um resultado previsto como crime pela lei penal é tido
como tipicidade, sendo a antijuridicidade a relação de contrariedade entre o
fato típico e o ordenamento jurídico.234
Quanto aos chamados crimes de bagatela, tem por preceito a
significância de toda e qualquer bagatela, coisa sem valor, mas não digamos
que o crime não tem valor, o que não tem valor neste caso, são as suas
consequências, seus resultados, a exemplo de um crime de furto, onde o
agente furta uma fruta de outrem, ou um valor monetário ínfimo. Desta forma,
não se faz necessário a intervenção jurídica penal.
Consideram-se crimes de bagatela como atípicos, onde não incide o
Direito Penal, uma vez que a aplicabilidade do princípio da insignificância exclui
a tipicidade material da conduta, não sendo assim, necessária a verificação de
antecedentes do agente ou o animus com o qual praticou tal ato. Recomendase que o Direito Penal ocupe-se apenas dos delitos com relevância, certo grau
de gravidade e ofensa ao bem jurídico tutelado e ao interesse social, que
normalmente em nada é ofendido com crimes bagatelares.
A infração que se torna atípica é a bagatelar própria é a que já nasce
sem nenhuma relevância penal, onde não há periculosidade na conduta, ou
porque não se trata de ataque grave ou significativo ao bem jurídico.
234
Direito Penal : Parte Geral de acordo com a Lei n. 7.209, de 11-7-1984. 27. ed. São
Paulo : Saraiva, 2003 v. 1.
397
O princípio da insignificância, como bem lembra Damásio de Jesus235,
vem recaindo sobre furtos de objetos materiais insignificantes, lesões corporais
e maus-tratos ínfimos, danos e descaminhos de pequena monta, entre outros
delitos de exacerbada pequenez, pois a lei, ao reprimir, deve ser precisa ao
ponto de impedir a condenação de alguém por uma conduta que o legislador
não desejou incriminar.
Exatamente nesse aspecto que se aplica o princípio da insignificância no direito
penal.
Contudo, não se deve aplicar o princípio como regra, além do que, este
não é normatizado, é aplicado por analogia ao afirmar que o Judiciário deve
apenas incidir aos fatos relevantes, deve o magistrado analisar cada caso de
forma particular, levando-se em conta o ínfimo desvalor da culpabilidade,
reconhecimento da culpa, colaboração com a justiça, reparação dos danos, a
exemplo do crime de peculato culposo, onde o agente devolve o que foi
recebido indevidamente.
Desta forma, pode-se afirmar que sendo mínimas as ofensas, não
justifica a incidência do Direito Penal, pois este não dá suporte a fatos de
ínfima importância. O que rege o princípio da insignificância é que a pena é a
mais rígida atitude a ser tomada pelo ordenamento jurídico, adequando este
princípio à eqüidade e correta interpretação do Direito, pois a ação tipificada
deve ser ofensiva ou perigosa para os bens jurídicos tutelados.
3. OS CRIMES AMBIENTAIS SOB A LEI 9.605/98.
Como já visto o conceito de tipificação no Direito Penal, não se faz
necessário retomar este conceito, uma vez que não varia por tratar-se de toda
forma, de crime. Na Lei dos Crimes Ambientais, a norma foi direcionada à
efetiva responsabilidade por danos ao ambiente e para a compensação às
235
Direito Penal : Parte Geral de acordo com a Lei n. 7.209, de 11-7-1984. 27. ed. São
Paulo : Saraiva, 2003 v. 1.
398
vítimas da poluição, como bem lembra Milaré236, além de elencar contra o
ordenamento urbano cultural e crimes administrativos.
A nova lei atendendo a preceitos constitucionais e tratados onde o Brasil
é signatário, atualizou as condutas típicas já previstas em leis anteriores como
tornando algumas contravenções em crimes, criando novas condutas e
descriminalizando outras, mas, talvez pelo uso impróprio da linguística, não se
tem clareza na descrição das condutas tipificadas na lei. Mesmo com o advento
da nova lei, as Leis n. 5.197/67, Lei n. 7.643/87, Lei n. 7.679/88 e Dec. n.
221/67 continuam vigorando quanto a proteção à fauna.
No tocante as penalidades dos crimes, a sanção aplicada as condutas
delituosas que não ultrapassam a um ano de detenção, aplica-se o instituto da
transação penal nos Juizados Criminais, já para os delitos onde as penas
mínimas são de um ano, aplicando-se o sursis processual, mas caso hajam
majorantes, o procedimento varia conforme o crime praticado, previstos na Lei.
Não obstante às condutas delituosas do Direito Penal, o art. 29 da Lei
9.605/98 tipifica matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar ―espécimes de fauna
silvestre, nativos ou em rota migratória‖, como também ―quaisquer outras...‖.
Contrariando a opnião de Edis Milaré, cremos que ―quaisquer outras‖ espécies
referidas no §3º do art. 29 não são apenas as espécies que vivem dentre os
limites nacionais, mas também as chamadas exóticas, tomando por base o
próprio caput no tocante às aves em rota migratória, ainda que sejam tutelados
pelo art. 32 da mesma lei.
Quanto aos crimes contra a fauna, em alguns aspectos igualam-se
todos, quais sejam: a)_ bem jurídico tutelado: é a preservação do patrimônio
natural, especialmente da fauna silvestre e aquática ameaçada ou não de
extinção; b)_ sujeito ativo: qualquer pessoa física ou jurídica; c)_sujeito
passivo: a coletividade e a União Federal, direta ou indiretamente, conforme a
conduta típica; d)_ co-autoria: é admissível; e)_ ação penal: pública e
incondicionada. Não haverá infração se o agente estiver munido de autorização
236
Direito do Ambiente. A gestão Ambiental em foco. 5. ed. rev., atual. e ampl. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
399
do órgão competente ou praticar a conduta sob estado de necessidade, estrito
cumprimento do dever legal ou por legítima defesa.
Contra a flora, foram tipificados quinze artigos contra as unidades de
conservação, abrangendo aí as reservas biológicas, ecológicas, estações
ecológicas, parques e florestas nacionais, estaduais e municipais, reservas
extrativistas, áreas de proteção ambiental, de relevante interesse ecológico e
outras a serem criadas pelo Poder Público. Estes crimes não se diferenciam
muito dos crimes contra a fauna no tocante a suas características tais como:
a)_ bem jurídico tutelado: é a preservação do patrimônio natural, especialmente
das florestas de preservação e outras formas de vegetação; b)_ sujeito ativo:
qualquer pessoa física ou jurídica; c)_sujeito passivo: a coletividade, União
Federal e os proprietários das terras em questão, direta ou indiretamente,
conforme a conduta típica; d)_ co-autoria: é admissível; e)_ ação penal: pública
e incondicionada. Não haverá infração se o agente estiver munido de
autorização do órgão competente ou praticar a conduta sob estado de
necessidade, estrito cumprimento do dever legal ou por legítima defesa.
Para os crimes de poluição estão previstos oito artigos, tipificando atos
que causem poluição ao meio ambiente. O art. 58 da LA arrola as causas de
aumento de pena aplicáveis aos crimes em questão. Quanto ao bem jurídico
tutelado, este é a coletividade, o bem jurídico coletivo, o meio ambiente do art.
225, CF, preservando a limpeza e pureza de águas, ar e solo. No tocante as
demais características, em nada difere dos crimes contra fauna e flora.
O dano ambiental efetivamente causado à coletividade, a um particular
ou à União Federal, Estados e Municípios, seja este dano de pequena ou larga
abrangência, é punido pela Lei 9.605/98, salvo previa autorização ou por
necessidade, cumprimento do dever legal ou legitima defesa, fato este
contestado pela rigidez da norma, não dando espaço para análise do caso
concreto onde deve-se avaliar o real prejuízo causado ao sujeito passivo do
delito, se houve significante dano e se é de interesse desta mesma
coletividade, ainda que de forma educativa, punir o agente por infração
bagatela.
400
4. A PROTEÇÃO E IMPORTÂNCIA DO DIREITO AMBIENTAL NO NOSSO
ORDENAMENTO
Antes de tratarmos especificamente da insignificância em matéria
criminal ambiental faz mister demonstrarmos a importância e a relevância da
matéria e da proteção dispensada pelo nosso ordenamento jurídico, sobre tudo
pela nossa Constituição quanto a matéria ambiental, para só depois de analisar
o objeto jurídico protegido pela lei penal ambiental apontarmos a aplicabilidade
ou não desse principio.
A matéria ambiental tem especial atenção de nosso ordenamento seja
no tocante a nossa Carta Magna ou na legislação esparsa, a nossa
constituição trás em seu art. 225 caput mais do que proteção, traz garantias,
tendo por escopo assegurar não só a essa geração, mas também as futuras,
um meio ambiente saudável, ecologicamente equilibrado como direito de todos,
e para isso determina sanções penais aos que tomem condutas lesivas ao
meio ambiente sejam elas pessoas físicas ou jurídicas, ainda sendo possível
responder administrativamente sem afastar a reparação civil, como está
explicito no art. 225, §3° da CF.
O destaque dado pela Constituição à proteção do meio ambiente
demonstra a importância dada ao tema sem similaridade em nosso
ordenamento, pois não se volta só para o presente, mas se preocupa com o as
gerações futuras, e olhando para as inovações da Lei 9.605/98, podemos
afirmar que o bem jurídico protegido é o meio ambiente ecologicamente
equilibrado.
Assim permeada de disposições que permitem e impõem a
proteção ambiental, não poderia ser diferente, portanto, a interpretação que os
Tribunais vêm dispensando à questão ambiental, seja no âmbito criminal, seja
no âmbito cível, zelando por esse equilíbrio ecológico em detrimento as
pessoas físicas e jurídicas infratoras.
Alem dessa previsão legal alguns outros aspectos têm que ser levados
em consideração para determinar a aplicação do principio da insignificância,
como determinar se uma conduta lesiva é insignificante ou não, se aquele
401
elemento do meio ambiente é insignificante para o equilíbrio do ecossistema
em que está inserido.
Não se pode analisar uma conduta isoladamente, sem ter uma visão do
conjunto de relações e interações formadoras daquele ecossistema, levando
em consideração apenas os aspectos econômicos tratando-o como se
mercadoria fosse sem ter uma devida avaliação técnica da importância do
espécime atingido ou da extensão do dano, devemos levar em consideração
que na natureza tudo depende de tudo nada existe isoladamente, pois o que
pode nos parecer irrelevante muitas vezes tem conseqüências irreparáveis,
não podemos tratar como relevante só o que diz respeito diretamente ao ser
humano, não devemos nos colocar como o centro do problema, pois não
somos parte desse meio ambiente e devemos analisar de forma técnica,
colocando como centro do problema o equilíbrio ecológico que tanto nosso
ordenamento visa proteger.
Não podemos fazer uso desse principio também sem levar em
consideração o que a lei penal ambiental tem por objetivo, a Lei 9.605/98 visa
evitar e prevenir o risco, por meio da imposição de sansões não só para os
ações que causem realmente dano mas também aquelas que sejam
potencialmente ofensivas que colocam em risco a saúde do meio ambiente;
procura também a lei incentivar a reparação do dano, para tanto, é permeada
de dispositivos processuais como o da transação, que é condicionada a previa
composição do dano ambiental ou ainda a suspensão condicional do processo
mediante a reparação deste dano, e ainda traz como circunstancia atenuante a
arrependimento manifestado pela espontânea reparação do dano; a lei tem por
propósito, diria ate um dos mais importantes, a educação ambiental do infrator
que fica registrada nas varias possibilidades de aplicação de penas alternativas
como pode ser visto nos arts. 9° e 23 da Lei 9.605/98.
Inferimos assim que a lei penal ambiental é legislação especial, que não
busca apenas a persecução penal ou o encarceramento do infrator, mas
principalmente que o dano seja reparado, o risco seja prevenido e o infrator
seja educado, utilizando-se para tanto das penas alternativas e do incentivo à
reparação ambiental.
402
5. INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DO PRINCIPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
NO DIREITO CRIMINAL AMBIENTAL
A aplicação de um principio não vem determinada em lei, depende da
análise do julgador, o magistrado deve considerar os valores tidos como
importantes da sociedade e utilizar caso julgue cabível naquela situação o
principio que mais se aproxima destes valores não deixando toda via de levar
em conta também a vontade do legislador, o espírito normativo pra não incorrer
no erro de ir contra o que a lei deseja, pois a interpretação consiste em buscar
o verdadeiro sentido das coisas neste caso, da norma.
Para Reale, "o primeiro cuidado do hermeneuta contemporâneo consiste
em saber qual a finalidade social da lei, no seu todo, pois é o fim que possibilita
penetrar na estrutura de suas significações particulares.‖.237
Segundo Vico Mañas:
o principio da insignificância pode ser definido como instrumento de
interpretação restritiva, fundado na concepção material do tipo penal,
por intermédio do qual é possível alcançar, pela via judicial e sem
macular a segurança jurídica do pensamento sistemático, a
proposição político-criminal de descriminalização de condutas que,
embora formalmente típicas, não atingem de forma socialmente
relevante os bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal. 238
O Direito Ambiental é um ramo do direito que se conecta com vários
outros ramos não só das ciências sociais como também demais áreas do
conhecimento humano por se tratar de matéria complexa, muitas vezes o
magistrado depara-se com casos dos quais depende de laudo técnico sendo
necessário a utilização da pericia adequada para como falamos anteriormente
não cometer erros por tentar interpretar situação da qual não tem domínio ou
conhecimento técnico suficiente para avaliar de forma precisa e baseando-se
somente em seus conhecimentos jurídicos que não bastam para uma
237
238
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 24ª. ed.. São Paulo: Saraiva, 1998.
MAÑAS, Carlos Vico. O princípio da insignificância como excludente da tipicidade no
direito penal. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 76, apud MILARÉ. Édis, Direito do Ambiente. A
gestão Ambiental em foco. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
403
resolução satisfatória da lide, pois o que para ele pode parecer insignificante a
luz da Ciência Ambiental toma contornos irreversíveis.
Ainda para não aplicar de maneira equivocada o principio da
insignificância o magistrado tem que atentar para a diferença entre uma
conduta irrelevante e uma de menor potencial ofensivo, aquela, apesar de
constituir o delito, uma vez que o agente pratica o núcleo do tipo, não deve, no
entanto, ele ser atingido pela pena, pois haveria uma desproporção entre o
bem jurídico ofendido e a pena imposta a pessoa do ofensor.
Devemos atentar nesse momento para a teoria utilizada na utilização
desse principio que seria a da adequação social da ação esclarece Sirvinskas,
― o delito nasceu com todos os seus requisitos mas por motivos de política
criminal a sanção não seria aplicada por tornar-se inócua e despida de
qualquer utilidade social.
A aplicação da sanção nos casos chamados
insignificantes só traria prejuízo desnecessário ao agente no tocante à
reincidência e à permanência do seu nome no rol dos culpados‖.239
Já na conduta de menor potencial ofensivo o agente comete também o
núcleo do tipo, porém a ofensa ao bem jurídico nesse caso não se configura
insignificante, mas não deve este ser punido com toda severidade da lei,
existindo nesses casos a possibilidade da aplicação de pena alternativa,
evitando-se dessa maneira a aplicação de pena privativa de liberdade só
devendo ser utilizada em ultimo caso.
A doutrina e a jurisprudência toda via ainda não chegaram a um
consenso sobre a utilização deste principio em matéria criminal ambiental, os
doutrinadores preferem manter-se cautelosos e apenas atentam para a
complexidade do assunto, recomendando uma analise pormenorizada do caso
concreto pregando a observação do todo no qual aquela situação se encontra
inserida, fugindo da analise pontual e individual do caso, já na jurisprudência é
possível encontrar decisões nos dois sentidos.
―PENAL E PROCESSUAL PENAL. CRIME CONTRA A FAUNA. PRINCÍPIO
DA INSIGNIFICÂNCIA. I- As normas previstas na Lei 5.196/76 e 9.605/98
239
SIRVINSKAS. Luiz Paulo, Tutela penal do neio ambiente: breves comentários
atinentes à Lei 9.605 de fevereiro de 1998. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva,
2002.
404
visam tutelar a fauna silvestre e o equilíbrio ecológico, incriminando as
condutas lesivas a tais bens. O abate dos três animais descritos na peça
acusatória são insuficientes para abalar o equilíbrio ecológico, de modo que a
conduta do apelante não afetou potencialmente o meio ambiente nem colocou
em risco a função ecológica da fauna, impondo-se a aplicação do princípio da
insignificância. II- Recurso provido‖240
―PENAL. PROCESSO PENAL. CRIME AMBIENTAL. ART. 40, DA LEI
9.605/98. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. RECURSO
CRIMINAL PROVIDO. 1. Não se apresenta juridicamente possível a aplicação
do princípio da insignificância nas hipóteses de crimes ambientais, tendo em
vista que o escopo da Lei 9.605/98 é impedir a atitude lesiva ao meio ambiente,
evitando, ainda, que a impunibilidade leve à proliferação de condutas a ele
danosas. 2. Recurso criminal provido.‖ 241
Como exemplo de posicionamento doutrinário podemos trazer aqui o
que nos diz Édis Milaré, ―No campo do Direito Penal Ambiental, obviamente, tal
principio deve ser aplicado com parcimônia, uma vez que não basta a análise
isolada do comportamento do agente, como medida para se avaliar a extensão
da lesão produzida;‖
A utilização do principio da insignificância nas decisões judiciais relativas
a crimes ambientais teve maior incidência antes do advento da Lei 9.605/98,
pois a legislação anterior tratava sobre tudo dos crimes contra a fauna de forma
muito rigorosa, tratando-os como crimes inafiançáveis e ate de caráter
hediondo, desta forma os magistrados se viam ―forçados‖ a utilizar tal principio
para corrigir a distorção da lei nos casos de ofensa irrelevante ao meio
ambiente, observando que na grande maioria dos crimes contra a fauna os
240
(BRASIL. Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Apelação Criminal nº 98.03.099575-
8/SP, da 2ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Apelantes: Alfio Bueno de
Oliveira e outros. Apelado: Justiça Pública. Relator: Juiz Ferreira da Rocha. São Paulo, SP, 08
de maio de 2001. Diário da Justiça de 28.06.2001).
241
(BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Recurso Criminal
2003.34.00.007650-0, da 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Recorrente:
Justiça Pública. Recorrido: Evelton Lopes Ferreira. Relator: Des. Federal Ítalo Fioravanti Sabo
Mendes. Brasília, DF, 10 de agosto de 2004.)
405
agressores eram pessoas que caçavam para alimentar sua família e que não
poderiam ter o discernimento, ou a percepção do provável dano que estariam
causando aplicavam o principio da insignificância nesses casos.
Com a evolução do ordenamento jurídico e o surgimento da Lei 9.605/98
a utilização desse principio se viu não diria ameaçada, mas dificultada pela
intenção da lei de atingir ate os casos menores como forma de educar e evitar
que tais fatos por menos ofensivos que sejam ao meio ambiente não votem a
se repetir, justamente com a visão de que um fato isolado pode não ser
importante porem a junção de varias agressões por agentes distintos naquela
mesma área somadas possam desequilibrar aquele ecossistema, como diz
Milaré,―é preciso levar em consideração os efeitos dos poluentes que são
lançados artificialmente sobre os recursos naturais e suas propriedades
cumulativas e sinérgicas.‖.242
A Lei 9.605/98 prevê penas brandas para alguns tipos e evita a
utilização de penas privativas de liberdade procurando sempre substituir-las por
penas alternativas como pode ser observado no art. 7° da Lei, analisando
unicamente pelo prisma criminal pode parecer num primeiro contato que existe
uma certa contradição na Lei, porem esta contradição não existe, o legislador
procurar com isso fazer com que a lei seja realmente cumprida que não caia
em desuso ou que aconteça o que acontecia com a legislação anterior com a
qual os magistrados se viram obrigados a buscar alternativas para corrigir as
disparidades e incoerências da mesma, busca o legislador aqui evitar que o
criminoso ambiental se torne o criminoso comum evitando que ele seja preso
colocado junto com demais infratores utilizando para tanto as penas
alternativas como já foi mencionado, e como já foi dito no tópico anterior desse
trabalho o que a nova legislação procura é incentivar a reparação do dano,
evitar este dano e mais do que isso educar o infrator.
Não se pode, no entanto achar que a Lei a conivente pelo contrario, a
Lei procura abarcar todas as condutas até as insignificantes trazendo para o
242
Direito do Ambiente. A gestão Ambiental em foco. 5. ed. rev., atual. e ampl. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
406
tipo-base de cada crime pena branda, e deixando para um segundo momento a
majoração da pena como causa de aumento desta nos casos em que haja uma
infração grave, uma potencial ofensa ao equilíbrio ecológico, abarcando desta
forma todas as ofensas ao meio ambiente deixando a aplicação do principio da
insignificância só para os casos nos quais realmente não se tiver outra saída
jurídica e que a pena mesmo branda ou alternativa configure uma
desproporcionalidade com o bem jurídico ofendido não tendo qualquer utilidade
sócio-educativa como pretende a Lei.
6. CONCLUSÃO
Podemos então concluir que o princípio da insignificância pode sim ser
aplicado no âmbito do Direito Ambiental, mas não de forma livre e
desordenada, há de ser feito um estudo de cada caso em particular, analisar o
grau ofensivo da conduta lesiva do agente, se houve dano ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado referido no art. 225 da Constituição Federal ou se o
dano causado é de extrema insignificância que a pena imposta pelo tipo penal
seja exacerbada proporcionalmente ao dano causado. Em caso de o dano,
ainda que pequeno, seja de toda forma relevante ao bem jurídico tutelado,
deve-se aplicar a pena, sendo esta proporcional ao tamanho do dano do
agente do núcleo tipo.
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atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2002.
408
O TOMBAMENTO DA CAATINGA COMO ATO HUMANITÁRIO-PROTETIVO
À CULTURA NORDESTINA
Edmilson Ewerton Ramos de Almeida243
RESUMO
A caatinga vem sendo vítima de uma forte investida destrutiva do homem: no intuito principal
de produzir energia, esta vegetação, especialmente nos últimos anos, vem sendo devastada,
com índices mais preocupantes que os da floresta amazônica, causando um desequilíbrio
ecológico em toda a região do semiárido, com reflexos na economia nacional. Entretanto, o
principal malefício desta prática é a descaracterização da identidade cultural do homem
nordestino interiorano, quando lhe é retirada uma parcela significativa do seu contexto onde foi
criado e educado, qual seja, a macambira, o xique-xique, o mandacaru, que tanto inspiraram
produções humanas, assim no cinema, como na literatura, na música, no artesanato. Destarte,
para que se possa garantir uma efetiva proteção desta geografia, é proposta uma nova
interpretação pós-positivista dos institutos constitucionais e infraconstitucionais, a fim de que a
ferramenta do tombamento, seja de maneira administrativa, seja judicial ou legislativa, possa
incluir a ―mata branca‖ nos seus laços protetivos, transformando em patrimônio cultural
brasileiro este componente essencial da cultura nordestina, para o bem do ator sertanejo e da
cultura brasileira, assegurando o direito fundamental do homem à sua produção cultural.
Palavras-Chave: caatinga; cultura; tombamento
ABSTRACT
The ―caatinga‖ has been the victim of a strong destructive onslaught of man: the primary
purpose of producing energy, this vegetation, especially in recent years, has been devastated,
with rates of more concern than the Amazon rainforest, causing an ecological imbalance in the
whole region the semiarid, with reflections on the national economy. However, the main evil of
this practice is a distortion of the cultural identity of the man northeastern backwoods, when it
has withdrawn a significant portion of context where he was raised and educated, that is, the
macambira, xique-xique, mandacaru, which so inspired human productions, both in film and in
literature, music, crafts. Thus, so as to ensure an effective protection of this geography, we
propose a new post-positivist interpretation of constitutional institutions and infra, so that the
tool from tipping either way of administration, whether judicial or legislative, may include "white
forest "in their protective bond, making a Brazilian cultural heritage this essential component of
northeastern culture for the good of the actor and country music of Brazilian culture, ensuring
the fundamental human right to its cultural production.
Key-Words: caatinga; culture; tipping.
243
Aluno
graduando
[email protected]
em
Direito
pela
Universidade
Estadual
da
Paraíba.
409
1. CONTEXTUALIZAÇÃO E NOÇÕES INTRODUTÓRIAS
Entre 2004 e 2005, o Ministério da Integração Nacional promoveu
estudos e discussões acerca da atual delimitação do que se denomina
―semiárido‖, intencionando analisar as potencialidades e necessidades desta
região do território nacional, para, ao fim, poder traçar planos de ação
específicos. Assim, com essa atualização, desde 10 de março de 2005, fora
considerada uma nova geografia, para esta região: a área classificada
oficialmente como semiárido brasileiro aumentou de 892.309,4 km para
969.589,4 km, um acréscimo de 8,66%244
Em reforço aos atos da administração pública para a promoção e
proteção deste território, foi ampliado o projeto de monitoramento por satélite,
que antes era limitado apenas à região amazônica e agora cuidará de todos os
biomas do território brasileiro. Ademais, registra-se um Projeto de Emenda
Constitucional (nº115/95) que objetiva transformar a caatinga e o cerrado em
patrimônio nacional, com apoio de diversas camadas da população.
Na contramão destes impulsos e conquanto não tenha a mesma
divulgação que o vertiginoso ―assassinato‖ da flora e fauna amazônica, que não
deixa de ser preocupante, a caatinga está sendo brutalmente devastada: esta
região vem perdendo por ano uma área de sua vegetação nativa equivalente a
duas vezes a cidade de São Paulo; segundo o Ministério do Meio Ambiente, o
desmatamento da caatinga entre 2002 e 2008 foi de 16.576 milhões de
quilômetros quadrados, restando, hoje, pouco mais da metade da cobertura
vegetal original típica do semiárido nordestino, enquanto que a Amazônia
perdeu 20% da sua vegetação em 40 anos.245
Esta ―grande região seca‖ tem biomas exclusivos do Brasil – país que
tem 92% do espaço total dominado por climas que favorecem as chuvas –
sendo uma das três regiões semiáridas da América do Sul – a mais
244
MINISTÉRIO DA INTEGRAÇÃO NACIONAL. Cartilha Nova Delimitação do Semi-árido
Brasileiro.
Disponível
em:
<
http://www.integracao.gov.br/desenvolvimentoregional/publicacoes/delimitacao.asp>.
Acesso
em: 15 de março de 2010.
245
SALOMON, Marta. Com 54% do bioma, Caatinga perde duas cidades de SP por
ano. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/ambiente/ult10007u701579.shtml>.
Acessado em: 03 de março de 2010.
410
homogênea fisiológica, ecológica e socialmente de todas elas.246 Não apenas
por estes dados, mas pelas especificidades e excentricidades da ―mata branca‖
que acompanhou a formação do homem brasileiro, sua fixação no litoral e
posterior avanço interiorano, que ainda participa da formação da cultura
nordestina e, particularmente, cabocla, que fornece tantos fundamentos
socioeconômicos e culturais, enfim, por todos os benefícios que ela traz ao
homem, sendo fundamental à identificação deste com a sua terra, a caatinga
merece ser alvo de uma proteção incisiva.
Por sua vez, o Patrimônio Cultural brasileiro, alvo de proteção mais
especial do que outros bens nacionais, é composto, segundo o art. 216 da
Constituição Federal, pelos bens de natureza material e imaterial, tomados
individualmente ou em seu conjunto, portadores de referência à identidade, à
ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira,
incluindo-se os bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico,
paisagístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
Assim, por todo o exposto, para evitar a perpetuação da sua matança e
da descaracterização do ambiente natural, social, econômico e cultural ao seu
redor, a caatinga deve ser incluída nesse rol seleto. Para fundamentar esta
defesa mais incisiva e por entender que esta geografia encanta e influencia
várias áreas do saber, buscou-se realizar uma pesquisa bibliográfica
interdisciplinar entre cartilhas, reportagens, artigos, livros, informativos, no
âmbito do direito, geografia, história, literatura, administração.
Como resultado, este trabalho se propõe, de início, a romper com a
cultura elitista de preservação, na qual é valorizado o patrimônio ―de cimento e
cal‖ ou, quando não, focado apenas na proteção da biodiversidade amazônica
e atlântica, esquecendo-se dos outros espaços brasileiros. Segue-se com uma
exposição clara e analítica sobre os conceitos, princípios e objetivos
constitucionais
acerca
do
direito
humanitário-cultural,
sua
guarda
e
manutenção, dissecando a possibilidade de tombamento da caatinga,
AB‘SÁBER, Aziz. Os domínios de natureza no Brasil: potencialidades
paisagísticas. 4 ed. Ateliê: São Paulo, 2007.
246
411
classificando-a como patrimônio cultural, a fim de ajudar na preservação desta
significativa caracterização nordestina.
2. PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL AO PATRIMÔNIO CULTURAL
Progressivamente à evolução conceitual dos termos ―cultura‖ e
―patrimônio cultural‖ e ao enraizamento ou rejeição dos usos e costumes, varia
a importância social e, por consequência, a concepção legal de cuidado com a
produção e identidade cultural. Inobstante, a formação da identidade brasileira
seja um patrimônio diversificado e construído ininterruptamente a partir de
heranças que se somam a novas concepções, nas primeiras constituições,
enquanto o país ainda se firmava como nação independente, com bases
políticas, administrativas e econômicas próprias, não houve preocupação com
o resguardo desta formação cultural.
Somente na Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de
1934,
percebe-se
uma
preocupação,
apesar
de
ainda
incipiente,
preconceituosa e elitista, com o fomento da cultura e a proteção dos objetos de
interesse histórico e patrimônio artístico do país, pois, nesta época reinava um
maior favorecimento aos objetos culturais materiais imobiliários e obras
artísticas como pintura e escultura. Tal relevância seguiu-se por todos os
demais textos, sendo instituído desde 1946 que o amparo à cultura era dever
do Estado, deslanchando numa proteção bem mais robusta, completa e
cuidadosa, quando na promulgação da Constituição Cidadã de 1998.
Para
que
chegássemos
nesta
progressão
histórico-legislativa,
necessitávamos de uma transformação conceitual e ideológica anterior: a
cultura evoluiu de meras manifestações artísticas e passatempos, para
envolver toda a produção humana, segundo a capacidade de criar e
inventariar; adaptando o mundo natural, segundo a valoração que lhe é
atribuída.
Portanto, para o entendimento hodierno, a cultura é multifacetada, pois
se manifesta em diversas modalidades: nas obras de arte e ciência, vestuário,
gastronomia, arquitetura, sistema de valores, costumes, tradições, crenças,
412
educação, linguagem, natureza familiar e das relações sociais, concepção de
tempo e lugar; a soma e interrelação destas variáveis especifica e diferencia as
civilizações, podendo ser consideradas tanto por sociedades numa perspectiva
micro – família, repartição de trabalho, sala de aula, círculo de amizades –
quanto por um universo maior de indivíduos que compartilham desta
semelhança – uma região global, uma descendência, um país:
Cultura abrange a língua e as diferentes formas de linguagem e de
comunicação, os usos e costumes quotidianos, a religião, os
símbolos comunitários, as formas de apreensão e de transmissão de
conhecimentos, as formas de cultivo da terra e do mar e as formas de
transformação dos produtos daí extraídos, as formas de organização
política, o meio ambiente enquanto alvo de acção humanizadora.
Cultura significa humanidade, assim como cada homem ou mulher é,
antes do mais, conformado pela cultura em que nasce e se
desenvolve.
Para além do que é universal, cada comunidade, por força de
circunstâncias geográficas e históricas, possui a sua própria cultura,
distinta, embora sempre em contacto com as demais e sofrendo as
suas influências. Mas, nos nossos dias de hoje, a circulação sem
precedentes de bens culturais e de pessoas conduz, algo
contraditoriamente,
a
tendências
uniformizadoras
e
de
multiculturalismo. (MIRANDA, 2006, p.2)
Pelo exposto, conclui-se que a cultura compõe e denuncia a própria
identidade do homem, sendo totalmente temporal e histórica, pois reproduz
valores e costumes próprios da época em que está imersa, resultando em
herança para as gerações posteriores.
A caatinga, por sua vez, é tanto
matéria-prima para outras produções, quanto modelo inspirador, para a
criatividade
inventiva,
além
de
compor
a
identidade
do
sertanejo,
caracterizando seu lar; doce e árido, mas ainda lar. Trazendo esses conceitos
para um crivo constitucional, Carlos Frederico Marés de Souza Filho assevera:
413
Pela leitura da lei e da Constituição de 1988, bem cultural é aquele
bem jurídico que, além de ser objeto de direito, está protegido por ser
representativo, evocativo ou identificador de uma expressão cultural
relevante. Ao bem cultural assim reconhecido é agregada uma
qualidade
jurídica
modificadora,
embora
a
dominialidade
ou
propriedade não se lhe altere. Todos os bens culturais são gravados
de um especial interesse público – seja ele de propriedade particular
ou não -, que pode ser chamado de socioambiental, (SOUZA FILHO,
2006, p. 36 apud GALDINO)
Assim, percebendo a necessidade de guardar a identidade, ação e
memória dos grupos sociais, nas suas mais diversas formas de manifestação,
foram lançadas as diretrizes fundamentais sobre o tratamento com a cultura no
Estado brasileiro contemporâneo: arts. 215 e 216 do Título VIII – ―Da ordem
Social‖ – na Constituição da República de 1988.
Nestes dispositivos já estão fixadas as obrigações do Estado, quais
sejam, garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais, o acesso às
fontes da cultura nacional, incentivar a valorização e difusão das manifestações
culturais e proteger as manifestações culturais dos grupos participantes do
processo civilizatório nacional (art. 215, caput, §1º). Assim como também prevê
a edição de leis que disponham sobre a fixação de datas comemorativas, que
estabeleçam o Plano Nacional de Cultura (art. 215, §2º e §3º) e que estabeleça
incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais (art.
216, §3º).
Ainda, traz a definição do conceito de patrimônio cultural como os bens
de natureza material ou imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,
portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira e um rol exemplificativo de suas formas
expressivas (art. 216, caput, e incisos I ao V). Por fim, além de já promover o
tombamento
legal de
todos os documentos e
sítios detentores de
reminiscências históricas dos antigos quilombos (art. 216, §5º) e fazer
414
implicações recomendações administrativas (art. 216, §2º e §6º), afirma que a
promoção e proteção do patrimônio cultural brasileiro é de responsabilidade do
poder público, com a colaboração da comunidade, por meio de um rol
exemplificativo: inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação
(art. 216, §1º).
Ainda, conquanto os períodos comentados tenham importância ímpar,
outros tantos espaços constitucionais e infra-constitucionais são destinados a
esta matéria: art. 5, VI e LXXIII; art. 19, I; art. 23, III; art. 24, VII; art. 30, IX; art.
129, III; art. 210, todos da CF/88; Lei 3.924/61; Lei 8.159/91; Lei 8.313/91; Lei
10.221/01; Lei 4.717/65; Lei 7347/85.
2.1. Instituto de proteção do patrimônio cultural: tombamento como
efetivação constitucional e eficácia na proteção à caatinga
O Estado, agindo legal e legitimamente, tem o dever de convocar para si
a responsabilidade de manter a ordem pública, em virtude de sua própria
função e natureza soberana. Tal aspecto influencia as diversas áreas do direito
privado, onde, utopicamente, em um sonho de Estado (neo)liberal, os agentes
teriam completa liberdade de ação.
Portanto, sob a égide de um Estado Social, o direito de propriedade, a
fim de que esta seja gozada e fruída sob os limites constitucionais, pode sofrer
intervenções, através dos institutos previstos: desapropriação, ocupação
temporária ou provisória, requisição, limitação administrativa, servidão
administrativa ou pública e tombamento.
.
A superação do Estado liberal e a adoção do modelo de Estado social
e democrático impõem à propriedade privada limitações de outra
ordem, como o dever de cumprir sua função social. Isso não importa
na criação de dois regimes jurídicos para a propriedade privada, um
definido pelo Direito Privado e outro de natureza pública. O regime
jurídico do Direito de propriedade é um só: definido pelo Direito
Privado
com as
derrogações
(FURTADO, 2007, p.742)
impostas
pelo Direito Público.
415
Como supra-demonstrado, com fulcro principal no art. 216, §1º, da
Constituição Federal e regulamentação específica no Decreto-Lei nº25/37, o
tombamento é apenas mais uma das diversas formas de intervenção do Estado
na propriedade, com a aplicação específica para proteção de aspectos
histórico-culturais significativos, utilidade esta que também não lhe é exclusiva.
Assim, Nos termos do art.1º da referida legislação infraconstitucional:
―Constitue o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens
móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interêsse
público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer
por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou
artístico.‖.
A partir deste conceito, extraímos que o instituto do tombamento seria
aplicável restritivamente ao patrimônio histórico e artístico nacional e, portanto,
para a proteção do patrimônio cultural brasileiro que não se encaixe nessa
categoria, restariam as outras ferramentas constitucionais.
Tal interpretação é partilhada por Hely Lopes Meirelles e José dos
Santos Carvalho Filho: ambos condenam o tombamento de florestas, reservas
naturais e parques ecológicos. O primeiro, especialmente, afirma que o referido
instrumento não é o meio mais adequado para a preservação da flora e da
fauna, porque as florestas são bens de interesse comum e estão sujeitas ao
regime legal especial estabelecido pelo Código Florestal, Lei n. 4.771/65, que
indica o modo de preservação de determinadas áreas florestais; o mesmo
ocorrendo com a fauna, que é regida pelo Código de Caça, Lei n. 5.197/67, e
pelo Código de Pesca, Decreto-Lei n. 221/67.247
Inobstante esta exata aplicação da subsunção e um perfeito raciocínio
de encaixe das peças legais, resta um problema ortoprático: as normas
específicas não tem a eficácia esperada. A caatinga, um dos principais
símbolos da cultura nordestina e de presença maciça na identidade do
sertanejo, vem sofrendo um desmatamento vertiginoso ao longo das últimas
décadas e, especialmente, nos últimos anos; carregando com ela um
247 TJ/SP. autos N. 748/95.
416
desequilíbrio ecológico sem precedentes naquela região. Esta vegetação vem
sendo transformada em lenha e carvão destinados a abastecer siderúrgicas em
Minas Gerais e Espírito Santo ou a mover indústrias de gesso e cerâmica
instaladas no próprio semiárido.
Ademais, este problema não afeta apenas uma lacuna cultural regional,
mas também, a ecologia e economia mundiais, pois o abate da caatinga foi
responsável pelo lançamento de 25 milhões de toneladas de carbono por ano
na atmosfera - o dobro do corte das emissões de carbono planejado pelo
governo com medidas de eficiência energética em 2020. Ainda, a região do
semiárido já foi identificada como uma das áreas mais vulneráveis no Brasil às
mudanças climáticas, se essa brutalidade continuar, um terço da economia
pode ser afetado com o aumento da temperatura.
Encarado com esta realidade, o atual Ministro do Meio Ambiente, Carlos
Minc, deu a seguinte declaração: ―Sem estimularmos alternativas de geração
de energia, como gás natural ou energia eólica [dos ventos], não vamos conter
o desmatamento na caatinga.‖ 248
Por todo o exposto, em vista deste contracenso entre a perfeita
compensação normativa e uma falha em sua aplicabilidade, novo rumo deve
ser seguido. Utilizando-se de fundamentos legais e sem perder a eficácia
social, para alcançar a justiça, a utilização da jus filosofia pós-positivista
mostra-se conveniente.
O pós-positivismo busca ir além da legalidade estrita, mas não
despreza o direito posto; procura empreender uma leitura moral do
Direito, mas sem recorrer a categorias metafísicas. A interpretação e
aplicação do ordenamento jurídico hão de ser inspiradas por uma
teoria de justiça, mas não podem comportar voluntarismos ou
personalismos, sobretudo os judiciais. (BARROSO, 2005)
248
SALOMON, Marta. Com 54% do bioma, Caatinga perde duas cidades de SP por
ano. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/ambiente/ult10007u701579.shtml>.
Acessado em: 03 de março de 2010.
417
Esta lógica interpretativa tem aspectos próprios: (i) força normativa da
constituição; (ii) expansão da jurisdição constitucional; (iii) nova interpretação
constitucional, no tocante aos desafios de hermenêutica normativa que as
formas tradicionais – gramatical, histórico, sistemático, teleológico – não
solucionam, utilizando-se, principalmente, de uma tática constitucionalista
irradiante e de um espírito intervencionista do poder público e mais participativo
da sociedade.249
Por fim, apesar de dissensões doutrinárias, a solução mais eficaz, sob
uma égide constitucional firme – fulcrado nas imposições legais, sem perder o
fim último, qual seja, alcance da justiça – é lançar mão do instituto do
tombamento, seja na via administrativa, judicial ou mesmo legal, para garantir o
direito humanitário-cultural do homem vivente do semiárido a um dos símbolos
maiores de suas raízes: a presença da ―mata branca‖.
Tal privilégio ao tombamento não significa que este instituto vá
desbravar sozinho as especificidades de uma proteção ambiental, pelo
contrário, defende-se a utilização das regras e privilégios de um tombamento
unindo-os às características peculiares do regramento normativo da fauna e
flora.
Destarte, garante-se a eficácia da proteção à caatinga pelas obrigações
positivas e negativas impostas aos proprietários e vizinhos deste espaço
cultural guardado pela Constituição Federal e o Decreto-Lei nº25/37,
inexistentes no Código Florestal e no Código de Caça, como por exemplo: (i)
dever de fazer obras de conservação; (ii) assegurar ao poder público o direito
de preferência; (iii) dar conhecimento ao órgão competente no caso de extravio
ou furto do bem; (iv) não pode destruir, demolir ou mutilar o bem e somente
poderá restaurá-lo, após a obtenção de autorização especial; (v) estão
obrigados a suportar a fiscalização dos órgãos competentes; (vi) os vizinhos
não podem, sem prévia autorização, fazer construções que impeçam ou
reduzam a visibilidade do bem tombado, nem colocar cartazes e anúncios.
249
BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do
Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Disponível em: <
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7547>. Acessado em: 25 de fevereiro de 2010.
418
3. DIREITO FUNDAMENTAL À CULTURA
Por todo o exposto, percebe-se que o zelo com o patrimônio cultural
brasileiro perpassa todo o texto constitucional e infraconstitucional, através da
proteção preventiva ou interventiva no uso dos instrumentos legais e legítimos
– ação popular, ação civil pública, políticas públicas de incentivo e garantia,
tombamento, inventário, desapropriação, dentre outros. Tais garantias são
necessárias, pois, o acerco histórico e cultural de uma comunidade é um bem
jurídico de alto valor, sendo a própria representação dos significados daquela
civilização.
Estes conceitos já pairavam na ideia de direitos humanos desde a sua
segunda geração, que objetivou a afirmação dos direitos sociais, culturais e
econômicos, pertencentes à coletividade, suplantando a ideologia liberal do
século XIX. Assim, com a crescente importância dada ao ―bem comum‖,
evoluiu-se até a terceira geração, com direitos imbuídos de valores humanistas,
universais e fraternos, consolidando o direito à cultura como a verdadeira
afirmação de um povo e, portanto, merecedor de ser considerado fundamental,
pois, sem memória, não há identidade.
Neste mesmo pensamento, defende prof. Milton Ângelo (1998, apud
LIMA) que a manutenção, incentivo e preservação das manifestações
históricas, artísticas e culturais é uma das facetas dos direitos fundamentais, já
que os direitos humanos ―são aqueles referentes à satisfação daquelas
necessidades reais fundamentais, para sobrevivência da espécie humana,
como entidade biológica, espiritual e cultural‖.
Portanto, conclui-se que a definição da caatinga como patrimônio
cultural e sua guarda através do tombamento não é descartável e simplório
processamento administrativo, judicial ou legislativo, mas é algo aprofundado:
caracterizado o especial interesse público, passa a tratar-se de um ato
protetivo-humanitário, quando consistente na afirmação do direito fundamental
à cultura, cujo corolário legal é o art.27 da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, in verbis:
419
Todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida
cultural da comunidade, de fruir das artes e de participar do progresso
científico e de seus benefícios. Todo ser humano tem direito à
proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer
produção científica, literária ou artística da qual seja autor.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Historicamente propaga-se o ditado ―água é vida‖. De fato, este líquido
preciso é requisito para que a biologia se desenvolva e a sua falta, por
consequência, traz morte. Por outro lado, através deste ensinamento popular,
disseminou-se a ideia errônea de que, em virtude do volume mais baixo e
periodicidade incomum de chuvas do semiárido, lá não haveria vida; seria uma
terra sem graça, nem atrativos.
Este mito tem raízes mais antigas. Na verdade, o semiárido,
compreendido prioritariamente pelo interior da região nordeste, tem sua história
econômica, social, política e natural diretamente associada a seu caráter de
território auxiliar, onde, desprovido de recursos naturais propícios aos
interesses dos europeus e de posição estratégica para exploração que possuía
a região litorânea, restou-lhe a utilidade de atividade-meio: a pecuária. Dessa
forma, cresceu desprestigiada, longe do sistema implantado no Brasil colônia, o
que possibilitou a construção histórica de uma cultura e de uma sociedade com
características identitárias peculiares em interação com esse ambiente
particular. 250
Assim, o interior do Nordeste, já castigado pelo seu desprestígio, acabou
de afundar junto com sua região, quando, do início do séc XX, o Brasil deixou
paulatinamente de ser uma economia centrada na agroexportação, voltando os
AGUIAR, José Otávio; BURITI, Catarina de Oliveira. ―Revisitando o Semiárido:
Cenários de Vidas e de Sol‖. Revista Território e Fronteiras. nº 2, julho/dezembro 2009.
p.171-201.
250
420
seus olhos para o Sudeste, uma nascente economia industrial, urbanização e
modernização.
Com o passar das décadas, intensificou-se a realidade econômica
decadente e desprestigiada do Nordeste, unido a políticas pública vazias, de
falso incentivo, que engordavam os bolsos e o status dos coronéis e seus
currais de poder, quer sejam estes de natureza eleitoreira, financeira ou
religiosa.
Não obstante, o interior do Nordeste ainda possuía (e possui) seus
sobreviventes. Gente que, para amenizar um pouco a dureza de sua realidade,
sobrevivia(vive) de fazer comédia, como a personagem João Grilo, do romance
―O auto da Compadecida‖ de Ariano Suassuna, ou mesmo na criatividade e
nos sonhos de Fabiano, personagem de ―Vidas Secas‖ de Graciliano Ramos.
Gente que não sai da sua terra pela falta de água; o clima semiárido e a
vegetação ―sem cor‖ nunca foram obstáculos intransponíveis, pois a
criatividade e o desenvolvimento tecnológico conseguem suplantar essas
adversidades; mas o descaso do poder público, a falta de perspectiva e de
dignidade levam a uma diáspora em massa.
Por todo o exposto, compreende-se que elevar a vegetação semiárida
ao nível de patrimônio cultural não vai solucionar todos os problemas
socioeconômicos e políticos daquela região, mas o tombamento da caatinga
merece tamanha relevância porque este bioma faz parte da vida e da
identidade de um povo que ama sua terra, de uma sociedade que nasceu e se
formou ao redor da macambira, do xique-xique e mandacaru. Ter esta memória
preservada é questão de patrimônio cultural brasileiro e, mais ainda, é questão
de direitos humanos.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AB‘SÁBER, Aziz. Os domínios de natureza no Brasil: potencialidades
paisagísticas. 4 ed. Ateliê: São Paulo, 2007.
AGUIAR, José Otávio; BURITI, Catarina de Oliveira. ―Revisitando o Semiárido:
Cenários de Vidas e de Sol‖. Revista Território e Fronteiras. nº 2,
julho/dezembro 2009. p.171-201.
421
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Horizonte, 2007.
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e
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Disponível em: < www.jfrn.gov.br/docs/doutrina149.doc>. Acessado em: 10 de
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Semi-árido
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Disponível
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SALOMON, Marta. Com 54% do bioma, Caatinga perde duas cidades de SP
por
ano.
Disponível
<http://www1.folha.uol.com.br/folha/ambiente/ult10007u701579.shtml>.
Acessado em: 03 de março de 2010.
em:
422
PODER CONSTITUINTE ORIGINÁRIO E PODER CONSTITUINTE
DERIVADO: RELAÇÃO E CARACTERÍTICAS.
Paulo José de Assis Cunha251
Resumo
O referido estudo visa demonstrar os mais variados pontos de acesso entre a relação Poder
Constituinte Originário e Poder Constituinte Derivado. Externando elementos, características e
fatores que envolvem o seu surgimento dentro da figura do Estado. Demonstrando inclusive, o
intenso papel que ambos os fenômenos possuem na criação da Carta Constitucional e no
respectivo processo de câmbio de tais atos normativos constitucionais, provenientes dos
anseios presentes na sociedade, valorizando a relação de complemento que um instituto
exerce sobre o outro.
Palavras-chave: Poder Constituinte Originário. Poder Constituinte Derivado. Sociedade.
In Absctract
The study aims to demonstrate the most varied points of access between Constituent Power
interface originates and Derived Constituent Power. Externalizing factors, characteristics and
factors involving its emergence within the figure of the state. Showing even the intense role that
both phenomena have in establishing the Constitutional Charter and in the respective currency
exchange of such normative acts constitutional, from the anxieties in society, enhancing the
relationship of a complement Institute over the other.
Keywords: Constituent Power Originating. Constituent Power Derivative. Society.
251 Acadêmico do Curso de Bacharelado de Direito na Universidade Estadual da
Paraíba-UEPB. e-mail: [email protected]
423
1. INTRODUÇÃO
O Direito Constitucional constitui um dos principais ramos do Direito
Público, tal instituto se caracteriza pela sua natureza, função e elementos que
necessariamente são responsáveis pelo objetivo fim, proposto por tal seara do
Direito: o estudo da Carta Constitucional.
O Poder Constituinte corresponde em, mais um, de tais elementos
relevantes na formação da Carta Magna de um Estado. Entretanto, resta
evidente, sua natureza especial, devendo ser destacado, pela função peculiar
que exerce.
Caberá ao Poder Constituinte Originário conceber a Constituição.
Externar de modo organizado os desejos e valores presentes na sociedade, daí
seu particular papel no cenário da formação do Estado, e porventura da
Constituição. Assim dentro da estrutura do Estado, será o poder constituinte, o
órgão competente para escutar a sociedade, e proclamar seus desejos, e
prioridades a serem seguidas, de modo que a Carta Constitucional possa ser
refém dos ditames presentes na sociedade.
Entretanto, o Poder Constituinte, não será restrito a tal função já
comentada. Terá este, na manifestação de força derivada, o dever de reformar
escolhas e eleger novas concepções, inclusive ao ponto, de se for este o
desejo da sociedade, romper com as estruturas antigas, originando uma nova
forma de regulamentação social. O entendimento entre a figura do Poder
Constituinte Original e o Poder Constituinte Derivado, se mostra como
fundamental no estudo e no conhecimento da Constituição, principalmente sob
a ótica de vê-la como espelho da sociedade.
Assim demonstraremos ao longo do texto, os mais variados cenários,
em que figura o Poder Constituinte Originário e Poder Constituinte Derivado
dentro da sociedade. Sua formação e desenvolvimento ao longo dos tempos, e
ainda seu papel relevante no surgimento da figura do Estado. Restando por
fim, uma análise pormenorizada, frente às características particulares de um, e
do outro, dando ênfase à interligação de ambos os fenômenos, a fim de
424
elaborar e reformar a Constituição, ao passo que esta cumpra efetivamente,
com sua função de regular e envolver coerentemente a sociedade.
2. O ESTADO E A CONSTITUIÇÃO
Desde o surgimento da figura do Estado como membro vetor da
sociedade se verifica o desejo dos homens em viver de modo racional e
harmônico. Esses indivíduos escolheram ordenar suas vontades e anseios, a
fim de que suas ações não tolham direitos e nem se perfaçam de maneira
atentória à tolerância. Suas liberdades e autonomia foram afastadas em face
da boa convivência social que por ora se mostra fundamental para o sucesso e
desenvolvimento de qualquer grupo.
Como afirma Jellinek: “toda asociación permanente requiere un principio
de ordenación con arreglo al cual se constituye y desenvuelve su voluntad.
Este principio ordenador limita la situación de los miembros dentro de esa
asocición y en relación con ella: a eso esto se le denomina Constitución‖252
Na tentativa de se desenvolver um conceito de Constituição que possa cumprir
com o papel de esclarecimento e facilidade no estudo do Poder Constituinte,
outro horizonte não poderia ser mais eficaz do que sua ligação com o ―Estado‖,
haja vista a nítida relação existente entre ambos e o papel que um exerce
sobre o outro. Tal afirmação pode ser vista nos estudos de Hesse que dizia:
―La Constitución fija los princípios rectores con arreglo a los cuales se debe
formar la unidad política y se deben asumir las tareas del Estado‖253.
Outros autores firmaram seus estudos de modo consonante à ligação da
formação da Constituição a figura do Estado, a exemplo de R. Smend: ―La
Constitución como orden jurídico del processo de integración estatal‖254.
Nesse sentido ainda W. Kagi: ―de la Constitucón como ordem jurídico del
252
JELLINEK, G. Reforma y Mutacion de la Constitucion. Estudio Preliminar: Pablo
Lucas Verdu; Traducción: Christian Förster; Revisada por: Pablo Lucas Verdu: Centro de
Estudos Constitucionales, Madrid, 1991.
253
HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Tradução Pedro Cruz Villalon:
Centro de Estudos Constitucionales, 2º Edição. Madrid, 1992.
254
HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Tradução Pedro Cruz Villalon:
Centro de Estudos Constitucionales, 2º Edição. Madrid, 1992.
425
Estado‖255. Assim na tentativa de se conceituar a Constituição deve-se ter em
mente a importância do Estado, e ainda do seu relevante papel dentro do
processo da elaboração de tais parâmetros formadores.
Realizando uma rápida passagem pela antiguidade, percebemos a total
inexistência do Estado da forma que contemporaneamente se apresenta. Claro
que não devemos considerar aquela forma de organização política primitiva da
sociedade, como ―Estado‖, entretanto é mister, entender que aquela
conjugação de vontades, como meio de defesa, de força e sobrevivência, pode
ser concebido como conceito prematuro da idéia de Estado, isto é, uma
estrutura que se assemelha a uma organização pré-estatal. Nas palavras de
Aristóteles, uma espécie de Associação Política256. Haja vista, que do
contrário estaríamos negando um intervalo de tempo consideravelmente
importante como forma de aperfeiçoamento e surgimento daquilo que hoje
presenciamos na historia moderna como Estado.
Nesse diapasão, destaca-se o medievo como forma pré-estatal um
pouco mais desenvolvida, porém ainda distante daquela idéia presente de
Estado Moderno:
―O governo dependia basicamente do consentimento, ainda que tácito,
dos membros da sociedade. Com esse consentimento culminariam as relações
contratuais entre rex e regnum para a constituição do governo‖257.
A fim de sepultar as intensas instabilidades políticas, sociais e
econômicas além da incongruente insegurança e a desorganização política do
regime pré-estatal, origina-se a concepção de Estado, desta vez pautado em
regras claras e determinadas que pudessem por ventura valorizar e melhorar
as condições de vida do cidadão. O Estado Moderno se fundou sobre três
premissas básicas: povo, território e poder soberano, características tais,
fundamentais na busca pela tão almejada organização política, social e
econômica.
Aqui a centralização do poder era considerada a principal
255
HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Tradução Pedro Cruz Villalon:
Centro de Estudos Constitucionales, 2º Edição. Madrid, 1992.
256
MARTINS, Afonso D‘Oliveira. O Poder Constituinte na Gênese do
Constitucionalismo Moderno. Lisboa, N°. 5-6, p. 77-95, 1990.
257
MARTINS, Afonso D‘Oliveira. O Poder Constituinte na Gênese do
Constitucionalismo Moderno. Lisboa, N°. 5-6, p. 77-95, 1990.
426
circunstância em que se vinculava tal regime, centralização essa, representada
pela figura do rei, como bem esboça a celebre frase de Luís XVI: ―O Estado
sou eu‖.
Posteriormente com as intempéries provocadas pelo comportamento
autoritário e ilimitado dos reis, novas idéias, desta vez mais liberais foram
tomando espaço na sociedade, já castigada pelo arbítrio máximo da época. As
vontades e desígnios provenientes dos sujeitos do Estado Liberal eram por
demais restritas e em número ínfimo, correspondendo essencialmente aos
anseios básicos de liberdade, fruto de uma sociedade que recém se libertava
do domínio autoritário dos monarcas absolutistas.
Em tal contexto afirma Hesse, que era evidente as diferenças entre
Estado e Sociedade já que aquele, só atuava de modo a interferir na vida
deste,
em
momentos
extremamente
necessários
como
no
caso
de
perturbações. Existindo um vácuo entre, Estado e o povo, vazio esse fundado
eminentemente, nas premissas do Estado liberal que se mostrava presente a
época.
Aqui, fazendo alusão ao texto de autoria de Antônio Carlos Wolkmer:
Em seus primórdios, o Liberalismo se constitui na bandeira
revolucionária que a burguesia capitalista (apoiada pelos
camponeses e pelas camadas sociais exploradas) utilizada contra o
Antigo Regime Absolutista. Acontece que, no início, o Liberalismo
assumiu uma forma revolucionaria marcada pela liberdade, igualdade
e fraternidade, em que favorecia tanto os interesses individuais da
burguesia enriquecida quanto aos de seus aliados economicamente
menos favorecidos. Mais tarde, contudo, quando o capitalismo
começa a passar à fase industrial, a burguesia (a elite burguesa),
assumindo o poder político e consolidando seu controle econômico,
começa a aplicar na prática somente os aspectos da teoria liberal que
mais lhe interessam, denegando a distribuição social da riqueza e
excluindo o povo do acesso ao governo.258
Com as crises que abalaram o século XX, enraizou-se a idéia de que o
Estado deveria agir de modo mais presente na vida dos cidadãos, fazendo
surgir à era social dos direitos, se alargando cada vez mais sua atuação frente
às necessidades dos mesmos. O Estado democrático social era responsável
258
WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, estado e direito. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 1989. 175 pg. 92 e 93.
427
por cada vez mais tarefas, demonstrando assim um papel de direção e
estratégia nas distintas áreas da sociedade. Com destaque ao seu
comportamento frente à seguridade e assistência social, até então separadas
do domínio estatal e alheia à própria sorte do cidadão.
Continuando a análise de Hesse, a distinção existente no liberalismo
entre Estado e Sociedade pereceria, já que o Estado assumiria a função de
regular de modo mais direto os seus cidadãos, possuindo presença marcante
nos aspectos econômicos e sociais, assim o Estado se mostrava de modo
uniforme e presente, firmando seu comportamento na busca da compreensão
social e da unidade estatal:
―El desarrollo científico, técnico e industrial, el coetáneo aumento de población,
la especialización y división del trabajo, así como la consiguiente y creciente
densificación y mutación de las relaciones vitales han ocasionado el
crescimiento y la modificación de las tareas del Estado, su pluralización y su
democratización‖259.
Outra acepção característica do Estado democrático é aquela que lhe
impõe a necessária subordinação as suas próprias leis. O Estado Democrático
de Direito vincula, que o conjunto de atos normativos por ele imposto, aos
cidadãos, deve semelhantemente, surtir efeitos a si próprio, nas mais diversas
relações jurídicas na qual figura como sujeito, constituindo um exemplo
concreto de valorização de mecanismos que visam afastar qualquer tipo de
arbitrariedade260.
Seguindo a teoria de Hesse, o Estado surge a partir de uma estrutura
própria e mecanismos portados em uma determinada ordem jurídica. A
Constituição é essa ordem jurídica; seus valores e escolhas são firmados em
premissas que objetivam o convívio humano, ao ponto de regulá-lo e impor
limites, a fim de um objetivo maior, o bem coletivo:
―Porque estado y poder estatal no pueden ser dados por supuesto, como
algo preexistente. Ellos sólo adquirien realidad en la medida en que se
259
HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Tradução Pedro Cruz
Villalon: Centro de Estudos Constitucionales, 2º Edição. Madrid, 1992.
260
José Joaquin Gomez. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5 ed.,
Coimbra: Livraria Almeidina, 1967
428
consigue reducir a una unidad de actuación la multiplicidad de intereses,
aspiraciones y formas de conducta existentes en la realidad de la vida humana,
en la medida que se consigue producir unidad política‖261.
É nesse diapasão, que a Constituição do Estado se insurge na busca
pela produção da unidade política, a restrição de diferenças e desigualdades
que caracterizam a sociedade, deve ser vista como um processo constante de
amadurecimento e amoldamento do comprometimento tácito e legítimo das
decisões representativas do Estado frente aos conflitos presentes na
sociedade. Aqui tais divergências se caracterizam por seu papel relevante de
desenvolvimento e adequação da figura do Estado às naturais mudanças que
ocorrem no contexto social:
―El Estado sólo puede ser comprendido en la medida en que se le
entiende bajo estas dos dimensiones: como una unidad que debe ser
constantemente creada, preservada y consolidada y como actividad y
actuación de los poderes sobre esta base constituidos‖ 262.
Então tal unidade política só poderá ser conseguida, a partir da
conjugação de uma série de fatores, que quando unidos resultem, na vontade
da sociedade de organizar-se como Estado, restringindo diferenças e limitando
o individual em face do coletivo. Assim após a comunhão de tais desígnios, é
que se poderá entender a figura do Estado como órgão representativo e
centralizador da sociedade, responsável por impor limites a fim da busca
permanente da unidade política, característica essa, essencial para a formação
de um cenário eficaz e adequado, para que o Estado possa realizar suas
tarefas, isto é, atividades que objetivam a valorização da coletividade.
Assim, descreve Hesse, o papel da Constituição, em tal cenário:
La Constitución es el orden jurídico fundamental de la Comunidad. La
Constitución fija los principios rectores con arreglo a los cuales se
deben formar la unidad política y se deben asumir las tareas del
Estado. Contiene los procedimientos para resolver los conflitos en el
interior de la Comunidad. Regula la organización y el procedimiento
de formación de la unidad política y la actuação estatal. Crea las
bases y determina los principios del orden jurídico en su conjunto. En
261
HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Tradução Pedro Cruz Villalon:
Centro de Estudos Constitucionales, 2º Edição. Madrid, 1992.
262
429
todo ello es la Constitución el plan estructural básico, orientado a
determinados principios de sentido para la conformación jurídica de
una Comunidad263
.
Por tudo isso afirma Lassale ·: ―Os fatores reais do poder que regem
cada sociedade são essa força ativa e eficaz que informa todas as leis e
instituições políticas da sociedade em questão, fazendo com que não possam
ser em substância, mais do que tal e como são‖ 264.
Assim, tal ordem jurídica edificada pela Constituição deve se fazer
presente e coerente com a sua sociedade, seus valores devem ser
compartilhados e semelhantes ao ponto de se confundirem.
Isto posto, a
Constituição não seria nada a mais do que um conjunto de fatores unitários que
quando integralizados refletem a realidade nua e crua daquele determinado
Estado, sendo tal definição, totalmente vinculada ao fatos formadores da
sociedade. Daí a idéia que carecerá de sucesso e ―saúde‖ qualquer
Constituição que negar sua realidade e o meio em que se vive.
Não se pode olvidar a relação íntima e direta do Estado com a
Constituição, restando necessário analisar tal interligação, na busca do estudo
do Poder Constituinte.
3 O FENÔMENO DO PODER CONSTITUINTE: GÊNESE
Após termos iniciado o estudo da Carta Constitucional e sua relação
com o Estado, podemos perceber que, com tais implicações e resultados, resta
por necessário adentrar de modo mais direto e específico na análise do Poder
Constituinte e seus elementos direcionadores e formadores, tal estudo, objeto
principal do trabalho, se verifica de início como regra base para entender como
surge a Constituição e porventura sua relação com os valores presentes na
sociedade, destacando ainda como se dá a reação do referido documento, as
constantes mudanças de pensamento que ocorrem no meio social.
O fenômeno por qual se pauta o Poder Constituinte se caracteriza por
ser de origem moderna. A sua estrutura, relevância, e papel que hoje são
263
HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Tradução Pedro Cruz Villalon:
Centro de Estudos Constitucionales, 2º Edição. Madrid, 1992.
264
LASSALE, Ferdinand. O Que é Uma Constituição; Tradução Hiltomar Martins
Oliveira, Belo Horizonte: Cultura Jurídica Ed. Líder, 2001.
430
temas corriqueiros em sua análise se originaram, principalmente na forma que
conhecemos hoje, nas vias do século XVI. Dissecando ainda mais o intervalo
temporal, na Revolução Francesa
atuando
como um dos principais
instrumentos conceituais na criação de limites ao Estado, frente a repulsa ás
práticas arbitrárias do Estado Maior.
Entretanto, tal entendimento embora consolidado não goza de força
dogmática, isto é, existem autores renomados que baseiam seus estudos
frente ao desenvolvimento do Poder Constituinte, a partir da idéia de
manifestação de poder supremo, nas sociedades antigas. Afastando, ao menos
didaticamente, o entendimento predominante que liga tal força à sociedade
moderna. Em tal paisagem seria relevante a análise de seus fundamentos e
características, que levam a crer a idéia primitiva de poder Constituinte.
Através das palavras de Afonso D‘Oliveira Martins, percebe esse cenário
essencialmente didático:
Toda a sociedade política organizada, dispondo em certo sentido de
uma Constituição definidora de sua estrutura essencial, conta sempre
com a presença de um poder constituinte, daquele poder que se
encontra na gênese da Constituição. Temos então que em todas as
fases de evolução das sociedades políticas e do pensamento político
é possível surpreender, mais ou menos explicitamente, um conceito
de poder constituinte. Neste sentido, este conceito não representa,
radicalmente, uma invenção dos homens das revoluções francesa e
americana do final do século do XVIII, tendo raízes históricas
longínquas e dificilmente determináveis265.
Afirma ainda Lassale:
―Todos os países sempre tiveram uma Constituição real e efetiva, e não a nada
mais equivocado e nem que leve a deduções descaminhadas do que essa
idéia tão extensa de que as Constituições são uma característica peculiar dos
tempos modernos‖266.
Não se deve entender que tal afirmação visa anular ou afastar aquela
idéia inicial de Poder Constituinte como fruto da modernidade, haja vista que tal
posicionamento peculiar, acerca da origem do Poder Constituinte, decorre
265
MARTINS, Afonso D‘Oliveira. O Poder Constituinte na Gênese do
Constitucionalismo Moderno. Lisboa, N°. 5-6, p. 77-95, 1990.
266
LASSALE, Ferdinand. O Que é Uma Constituição; Tradução Hiltomar Martins
Oliveira, Belo Horizonte: Cultura Jurídica Ed. Líder, 2001.
431
como meio de realizar uma análise ao longo da evolução do conceito de
Constituição. De modo que foi a partir da origem da Carta de Direitos que o
desenvolvimento do estudo do poder Constituinte, tomou corpo.
Então aqui, se objetiva vincular um liame entre a figura do Poder
Constituinte, e a mais primitiva idéia de organização social, como forma de
analisar a formação histórica e conceitual do Poder Constituinte ―atual‖, além
do seu aperfeiçoamento e amoldamento as concepções modernas de Estado e
sociedade,
não
renegando
em
momento
algum
essa
idéia
de
contemporaneidade do fenômeno constituinte, da forma que é vista hoje, mas
procurando manter a mente aberta as demais manifestações acerca do estudo
do fenômeno constituinte, na busca do seu entendimento de modo mais
completo.
Continua, Afonso d‘ Oliveira Martins, a analisar o fenômeno constituinte,
frente aos mais variados cenários da antiguidade, acerca da sua estrutura e do
seu aparecimento. A primeira manifestação do referido instituto se dá no
período helênico, Aristóteles já concebia a Constituição como tendo por objeto
―a organização das magistraturas, a distribuição dos poderes, as atribuições da
soberania, numa palavra, a determinação do fim social de cada associação
pública‖ (Aristóteles - Política):
―Aristóteles, referindo-se particularmente às associações políticas em
que os cidadãos participavam livre e conscientemente, concebeu a
Constituição (politeia) como ordenação dos poderes e magistraturas que nelas
se afirmam‖267. E mais:
―Em termos práticos, a noção de Constituição concretizou-se na famosa
Lex regia que servia de fonte de todo o poder dos imperadores romanos e que
consistia na fórmula de uma delegação sem reservas de soberania, uma
espécie de procuração geral, conferindo ao príncipe o imperium e a potestas
sem restrições e limites‖268.
267
MARTINS, Afonso D‘Oliveira. O Poder Constituinte na Gênese do
Constitucionalismo Moderno. Lisboa, N°. 5-6, p. 77-95, 1990.
268
MARTINS, Afonso D‘Oliveira. O Poder Constituinte na Gênese do
Constitucionalismo Moderno. Lisboa, N°. 5-6, p. 77-95, 1990.
432
Já em plena Idade Média, enraizou-se o movimento de conceber o
Poder como sendo uma força que se originava de Deus e que se manifestava
por meio dos cidadãos através de um pacto. Tal pactum era estabelecido entre
rex e regnum, o chamado pacto subjectionis era responsável por vislumbrar
ainda que de modo tácito a aceitação dos cidadãos com a figura daquele
responsável por representá-los (Marcílio de Pádua e Mariana):
―A idéia fundamental na doutrina pactista medieval era a de que o
governo vinha de Deus por intermédio do povo. Através de um pacto -o pactum
subjectionis- regulam-se as condições de exercício de poder. O governo
dependia basicamente do consentimento, ainda que tácito, dos membros‖269.
Por fim, já nas vias do século XVI e principalmente com destaque na eclosão
dos séculos XVII e XVIII, a figura do Poder Estatal se baseou essencialmente
no contrato social, pelo qual o homem passava de um estágio de primitivo a
desenvolvido e ordenado, tudo isso baseado na concepção de limitar o
particular em beneficio da coletividade (Rousseau, Montesquieu, Hobbes, Lock,
Vattel, Grócio):
Não obstante, o pacto social, de cuja concretização nascerá o
Estado, não é efetuado entre o soberano e a coletividade. Pelo o
contrário, tal pacto advém do acordo da própria coletividade em ceder
o poder soberano a um homem, ou uma assembléia de homens, cuja
função seja a de pôr um termo ao estado de guerra, possuindo para
este fim, os meios físicos de coação e atuando instrumentalmente
para a conservação humana270.
Deve-se destacar que tal momento histórico foi de fundamental
importância para se firmarem as características e circunstâncias que formam a
conceituação de Poder Constituinte. A idéia de se conceber os fatores políticos
na conceituação e formação da Constituição, introduzida por Vattel. A
concepção símbolo da obrigatoriedade de formulação de mecanismos de
limitação de poder, na ordem constitucional de um Estado, a fim de resguardar
e valorizar a liberdade, descrita por Montesquieu e Locke. E ainda, a afirmação
269
MARTINS, Afonso D‘Oliveira. O Poder Constituinte na Gênese do
Constitucionalismo Moderno. Lisboa, N°. 5-6, p. 77-95, 1990.
270
GUSMÃO, Hugo César Araújo de. Uma reflexão Sobre o Exercício do Poder de
Reforma da Constituição de 1988 à Luz da Análise do Fenômeno da Mutação
Constitucional, Revista Jurídica Verba Volante, Scripta Manent. Patos, p. 104-124, v.4, n.1,
dez. 2008.
433
buscada por Rousseau de que o Poder Constituinte era qualidade intrínseca ao
povo, este único titular de tal força, e que por isso necessariamente deveria ser
a mesma força, formada da mobilidade e dinamicidade presente no
pensamento da sociedade. Restaram como elementos fundamentais na
formação do Poder Constituinte.
Modernamente já se fala em uma nova concepção de Poder
Constituinte, representada em alguns doutrinadores, o chamado Poder
Constituinte Integrado (ou Poder Constituinte Comunitário) seria fruto de um
intenso desgaste, provocado pelos mais diversos projetos de integração
econômica e militares, que acaba por motivar como consequência direta a
intensa descentralização política dos Estados membros de tal programa, em
face de um órgão centralizador e direcionador com natureza supra-estatal que
acaba por regular as mais diversas escolhas e caminhos a ser tomados por
seus Estados membros:
A concorrência dos fenômenos de crescente descentralização política
e de acentuada integração política a nível internacional, a que
assistimos hoje, favorece uma alteração, porventura radical, dos
conceitos jurídico-políticos mais marcantes. Um dos conceitos que,
pela sua especial incidência macro-política, se apresenta
particularmente permeável à mudança e que assim importa repensar
é o de poder constituinte271.
E ainda nas palavras de Hugo César de Araújo Gusmão:
Um outro fenômeno que afeta diretamente e de forma mais
contundente a estabilidade do paradigma aqui exposto é o da
intensificação da interpenetração entre estados soberanos. Não se
trata necessariamente de uma novidade. (...) A novidade, no entanto,
se trata do grau de institucionalização alcançado por tal fenômeno,
dada sua intensificação após a Primeira Guerra Mundial, e,
sobretudo, após a Segunda Grande Guerra 272.
Segundo dados, do Centro Universitário de Brasília, existem atualmente
cerca de 200 processos de formação econômica em todo o mundo. Exemplos
271
MARTINS, Afonso D‘Oliveira. O Poder Constituinte na Gênese do
Constitucionalismo Moderno. Lisboa, N°. 5-6, p. 77-95, 1990.
272
GUSMÃO, Hugo César Araújo de. Poder Constituinte: Uma Categoria ainda válida
nos nossos dias? Constituent Power: stilla valid category in ours day?. São Paulo, N-6, P 95 –
115, Julho-Dezembro de 2005.
434
como MERCOSUL, ALCA e principalmente a União Européia modificam a
atuação e a estrutura do Poder Constituinte, alargando e diversificando os
chamados titulares da soberania estatal.
A verdade é que tal tema se amolda ainda as concepções atuais, à
globalização e à modernização das relações econômicas entre os países, são
constantes ferramentas de fundamentação para tal projeto expansionista dos
Estados. É certo que tal processo está a todo vapor, e que o seu movimento
acaba por provocar possíveis ramificações na forma pela qual conceituamos e
entendemos os mais diversos institutos do Direito Constitucional, com especial
destaque o Poder Constituinte:
Diante da intensificação dos processos antes mencionados, e do
advento de novas instituições que fomentam a coordenação entre os
Estados, resta saber como deve se comportar a Constituição nacional
(...) A tendência de que tais fenômenos, sobretudo o de integração
comunitária, conduzam o Poder Constituinte a uma reestruturação,
com isso afetando todo o Direito Constitucional, já não parece um
panorama muito distante, a não ser que imaginemos possível que, ao
invés de serem modificadas pela realidade, as idéias exerçam força
vinculante sobre elas273.
Assim a análise do tema mostra-se bastante recente, e fugidio a
qualquer tipo de conceituação dogmática, devendo, portanto acalmar-se os
ânimos e esperar qual o caminho que tal processo porventura irá percorrer.
3.1 A Conceituação do Poder Constituinte
A idéia inicial que deve vincular o surgimento do Poder Constituinte no
cenário dos fatos jurídicos é a antecedência temporal a Constituição, isto é, o
fenômeno constituinte se origina de forma precedente ao documento
constitucional, suas forças são responsáveis por impor validade a Constituição
de um Estado:
La Constitución - como se pone de manifiesto echando un simples
vistazo a la historia constitucional –surge más bien dentro de un
proceso histórico político determinado, se vê sostenida y configurada
por determinadas fuerzas, y en su caso puede ser tambiém invalidada
273
GUSMÃO, Hugo César Araújo de. Poder Constituinte: Uma Categoria ainda válida
nos nossos dias? Constituent Power: stilla valid category in ours day?. São Paulo, N-6, P 95 –
115, Julho-Dezembro de 2005.
435
por ellas. Tanto su pretensión de validez como su cualidad jurídica
especial no derivam de mero factum de su nacimiento, sino de una
magnitud que la precede y que parece como un poder o autoridad
especial274.
A conjugação de fatores que abarcava tal fenômeno não poderia se
restringir a denominação de força que precede a Constituição e que acaba por
fundamentar e legitimar seus atos. Aqui, tal análise deveria se pautar em
questionamento muito mais profundo, que porventura pudesse comportar a
fundamentação de validade, legitimação e magnitude política, características
essenciais ao Poder Constituinte.
Nas palavras do referido autor:
El poder constituyente- como concepto de la teoria y la dogmática
constitucionales- no puede así ser definido como una norma
fundamental hipotética, ni tampoco únicamente como una norma
fundamental hipotética, ni tampoco como una norma fundamental de
Derecho natural. Tiende que entenderse tambíem como una
magnitud política real que fundamenta la validez normativa de la
Constitución275.
Assim, a fim de externar-mos um conceito estruturante e coerente,
devemos nos render ao conceito de Poder Constituinte formulado por
Böckenförde,
haja
vista
tamanha
propriedade
e
relevância
pormenorizadamente descrito na análise frente as vertentes que formam tal
fenômeno constitucional. Então vejamos:
El poder constituyente es aquella fuerza y autoridad (política) capaz
de crear, de sustentar y de cancelar la Constitución en su pretensión
normativa de validez. No es idêntico al poder establecido del Estado,
sino que lo precede. Pero, cuando se manifiesta, influye sobre él y
opera también dentro de él según la forma que le corresponda para
actuar276.
Ainda na tratativa de desenvolvermos um estudo completo, acerca do
fenômeno constituinte, devemos trazer à baila algumas idéias da ótica
274
BÖCKENFÖRDE, Ernst Wolfgang. Estudios sobre el Estado de Derecho y la
Democracia, Madrid: Editorial Trota, 2000.
275
BÖCKENFÖRDE, Ernst Wolfgang. Estudios sobre el Estado de Derecho y la
Democracia, Madrid: Editorial Trota, 2000.
276
BÖCKENFÖRDE, Ernst Wolfgang. Estudios sobre el Estado de Derecho y la
Democracia, Madrid: Editorial Trota, 2000.
436
moderna, enfocando a análise realizada por Sieyes quanto ao contexto que
envolve a época, em pleno vigor da Revolução Francesa.
Nas palavras de Afonso D‘Oliveira Martins:
Sieyès pode ser considerado, apesar de se discutir a originalidade
das suas posições, o primeiro expositor de uma concepção de poder
constituinte valorizadora dos princípios da soberania da Nação, da
igualdade, da liberdade individual, da separação dos poderes e da
representação política. E mais: ―A sua preocupação foi – como notou
Marcel Prélot – a de, consultando não os fatos a maneira dos físicos,
mas antes a razão, constituir logicamente, cientificamente, uma
maquinaria cuja perfeição assegurasse a eficácia e garantisse a
duração277.
Além de tomar como base as idéias revolucionárias do contexto histórico
da época, o Abade francês, pautou-se nos ensinamentos de Vattel, além da
influência de Rousseau (Contrato Social) e Montesquieu e Locke (Separação
dos Poderes do Estado).
Buscando as suas raízes no pensamento de Vattel e sofrendo uma
influência, mais ou menos marcante, consoante os seus biógrafos, da
teoria do contrato social de Rousseau e da teoria da separação dos
poderes de Locke e Monstequieu, Sieyès desenvolveu a sua
concepção do poder constituinte em duas fases: uma inicial de
sentido revolucionário e uma fase tardia de sentido moderado,
conservador 278.
No primeiro momento conceituava Poder Constituinte como força inicial,
imprescritível, inalienável e autônoma, vontade esta pelo qual se originava
todos os poderes provenientes do Estado, e ainda caberia a tal força organizálos de modo consonante e limitativo, atuando todos de modo determinado e
envolvidos a tal fenômeno original:
O poder constituinte neste sentido, coincide com a vontade comum
real anterior a toda Constituição, ou seja, com a vontade própria da
Nação considerada em situação idêntica àquela em que se
encontravam os indivíduos fora do vínculo social, ou, em estado de
natureza. Existindo a nação antes de tudo e encontrando-se ela na
277
MARTINS, Afonso D‘Oliveira. O Poder Constituinte na Gênese do
Constitucionalismo Moderno. Lisboa, N°. 5-6, p. 77-95, 1990.
278
MARTINS, Afonso D‘Oliveira. O Poder Constituinte na Gênese do
Constitucionalismo Moderno. Lisboa, N°. 5-6, p. 77-95, 1990.
437
origem de tudo, a sua vontade, ou particularmente, o poder
constituinte que lhe corresponde não tem, também, antes de si, nem
acima de si qualquer outro poder que o fundamente. Daí, desde logo,
o seu carácter inicial279.
Em tal ótica, propõe Sieyès, que o Poder Constituinte é fonte ilimitada e
incontrolável de todo e qualquer instituto jurídico já existente, ou que,
porventura, venha a existir. O autor não diverge da idéia que emana o Poder
Constituinte, como todo poder que se firme no direito, nas fontes do direito
natural, entretanto apresenta-se como força que, naturalmente, para que possa
expressar
todos
os
seus
fatores,
apenas
necessita
pautar-se
tais
características. O papel que possui o Poder Constituinte se funda a criar, a
dividir e limitar os Poderes a descrever todo e qualquer organismo jurídico do
Estado, assim é tarefa do Poder Constituinte organizar a nação de modo que
se torne um Estado.
3.2 Poder Constituinte Originário e Poder Constituinte Derivado: relação e
características
É sabido que o Poder Constituinte surge de forma a criar e regular as
diversas situações e instituições presentes no Estado. Que seu aparecimento
vincula por vezes mudanças e valorização de escolhas e caminhos a serem
seguidos pela sociedade. Essa força inicial e absoluta atinge sua função
quando conjuga todos os seus fatores de modo a criar a Constituição do
Estado, externando e direcionando as demais forças naturalmente presentes
na sociedade. Porém, distinto do que se poderia concluir, caberá ao Poder
Constituinte, desta vez regrado pela própria Carta Constitucional, atuar em
momentos cuja sociedade (povo) – única titular de tal força – proclama a
necessidade de implantar mudanças no cenário das antigas escolhas e
direções, amoldando-as, agora, aos novos ditames sociais.
A dualidade de modos de atuação do Poder Constituinte costuma ser
responsável pela constante adequação da Constituição com o que Lasalle
279
MARTINS, Afonso D‘Oliveira. O Poder Constituinte na Gênese do
Constitucionalismo Moderno. Lisboa, N°. 5-6, p. 77-95, 1990.
438
costumava chamar de fatores reais de poder, circunstâncias pela qual a
Constituição se torna eficaz, ao ponto de, com louvor, regular a sociedade:
Sieyès distinguiu entre poder constituinte e poderes constituídos. Há,
porém, um poder – o poder de modificar a constituição em vigor
segundo as regras e processos nele prescritos – que é também
considerado como constituinte, embora por outro lado, ele seja
instituído pela própria constituição. Este poder – poder constituinte
derivado, poder de revisão, poder constituinte em sentido impróprio –
distingue-se do poder constituinte originário. Este último seria um
poder que residia sempre na Nação (e não apenas nos momentos de
criação de uma constituição), permanecendo fora da constituição (lei
constitucional). (...) Os poderes constituídos movem-se dentro do
quadro constitucional criado pelo poder constituinte. O poder
constituinte de revisão é, consequentemente, um poder constituído
como o poder legislativo 280.
Aqui resta consagrado a distinção entre Poder Constituinte Original
(poder constituinte propriamente dito) e Poderes Constituídos (poder
constituinte derivado), sendo este, a exemplo dos demais poderes estatais,
fruto daquele, força absoluta e suprema da Nação. Não se confundem tais
forças. Cada uma exerce sua específica função no cenário que lhe é
correspondente, ao passo que a Constituição seja criada e possa se
desenvolver de forma sólida e eficiente ao longo dos anos.
O autor Hugo Cesar de Araújo Gusmão retrata o assunto fazendo uso de
Vanossi:
Em sentido estrito, nos referimos ao Poder Constituinte somente
como poder originário, ou seja, aquele de cujo exercício deriva a
Constituição. Em sentido amplo, e em termos dogmáticos, no entanto
o Poder Constituinte pode ser compreendido como uma grande
categoria que abarca conceitualmente não só a criação como a
reforma da Constituição e daí, conforme se refira a um fenômeno ou
ao outro, recebe a denominação de originário ou derivado,
respectivamente.281
Ainda seguindo a análise entre poder constituinte original e derivado,
encontramos sentido nas palavras de Hugo Cesar de Araújo Gusmão:
280
CANOTILHO, José Joaquin Gomez. Direito Constitucional e Teoria da
Constituição, 5 ed., Coimbra: Livraria Almeidina, 1967.
281
GUSMÂO, Hugo César de. Uma reflexão Sobre o Exercício do Poder de Reforma
da Constituição de 1988 à Luz da Análise do Fenômeno da Mutação Constitucional,
Revista Jurídica Verba Volante, Scripta Manent. Patos, p. 104-124, v.4, n.1, dez. 2008.
439
Enquanto categoria do Direito Constitucional, o Poder Constituinte se
bifurca, abarcando, teoricamente, a criação e a reforma da
Constituição. No que concerne ao primeiro fenômeno, tratamos de
um Poder Constituinte Originário. Já em relação ao segundo,
estamos diante de um Poder Constituinte Derivado. Por desencadear
a ruptura da antiga ordem constitucional, estabelecendo o
ordenamento sob novo fundamento de validade, o Poder Constituinte
Derivado, manifestando-se conforme parâmetros advindos da
vontade constituinte originária, se apresenta sob limitações
expressamente estabelecidas282.
A principal característica de diferenciação entre um, e o outro se passa
na limitação de irradiação dos seus efeitos. O Poder Constituinte Originário,
advém de uma fonte ilimitada, não se funda em algo superior, ele é essa força
superior e, portanto, não se limita a ―o que‖ ou ―a quem‖, sua vontade como
expressão da soberania do povo é ilimitada e absoluta, responsável por formar
os demais poderes que originam o Estado.
Já o Poder Constituinte Derivado, se pauta em uma força superior
(poder constituinte originário), restando então subordinado e limitado a tal
força, seus objetivos e características transcendem ao poder inicial, o seu
exercício, aqui se assemelha aos demais poderes que vinculam a formação do
Estado, atuando em conjugação de forças. Os poderes constituídos são
regrados pela própria Constituição e, por conseguinte sua formação e exercício
são determinados ao preenchimento de restrições e regras a fim de validar
suas ordens:
―Nisto consiste precisamente a separação do poder constituinte e dos
poderes constituídos, a qual subsiste mesmo quando é confiado o poder
constituinte aos mesmos representantes que compõem o Corpo Legislativo.
Neste último caso eles exercem poderes distintos, devendo manter-se em cada
momento dentro dos limites próprios do poder que está em sua causa‖283.
Como Sieyès afirma, possui o Poder Constituinte Originário, as
características da autonomia, da imprescritibilidade, inalienabilidade e da
onipotência, tudo isso como maior manifestação da pureza do poder que se
282
GUSMÃO, Hugo César Araújo de. Poder Constituinte: Uma Categoria ainda válida
nos nossos dias? Constituent Power: stilla valid category in ours day?. São Paulo, N-6, P
95 – 115, Julho-Dezembro de 2005.
283
MARTINS, Afonso D‘Oliveira. O Poder Constituinte na Gênese do
Constitucionalismo Moderno. Lisboa, N°. 5-6, p. 77-95, 1990.
440
encontra materializado na sociedade, Mais uma vez, Afonso Martins, lembrado
as palavras do Abade Francês retrata bem tais elementos:
A Nação, exercendo então o mais importante dos seus poderes, deve
ser livre de toda a sujeição e de toda a forma que não seja a que
entende dever adoptar. Como já anotara no ―Tiers‖, dando conta
também da omnipotência do poder constituinte, de qualquer maneira
que uma nação queira basta que ela queira; todas as formas são
boas e a sua vontade é sempre a lei suprema. Pondo o acento nesta
idéia, afirmou que basta que a sua vontade apareça, para que todo o
direito positivo cesse diante dela284.
Acerca do Poder Constituinte Derivado, originar-se do Poder Constituinte
Inicial: ―... o exercício deste suposto poder estará sujeito aos parâmetros
estabelecidos pelo Constituinte Originário, sendo, portanto, um exercício
constituído, derivado, não soberano.‖ 285
Então seu exercício é acessório, submetido à vontade de um outrem
poder, isto é, resta subordinado a limites pré-estabelecidos e ainda
condicionado ao respeito frente a um rígido procedimento que legitima o seu
aparecimento no cenário dos fatos. ―Os poderes constituídos movem-se dentro
do quadro constitucional‖286.
O Poder Derivado objetiva em ultima instância atualizar a Carta
Constitucional às realidades que porventura apareçam de tempos em tempos
na sociedade. Seu compromisso é que a Carta Magna não se torne obsoleta,
restando por perder o caráter de espelho da sociedade.
Na verdade, o Poder Constituinte de revisão visa, em última análise,
a permitir a mudança da Constituição, a adaptação a novas
necessidades, a novos impulsos, a novas forças sem que para tanto
seja preciso recorrer à revolução, sem que seja preciso recorrer ao
Poder Constituinte Originário. Não é outro senão este o objetivo do
Poder Constituinte de revisão: permitir que a modificação da
Constituição dentro da ordem jurídica, sem uma substituição da
ordem jurídica,sem ação, quase sempre revolucionária, do Poder
Constituinte Original287.
284
MARTINS, Afonso D‘Oliveira. O Poder Constituinte na Gênese do
Constitucionalismo Moderno. Lisboa, N°. 5-6, p. 77-95, 1990.
285
DE OTTO, Ignácio. Derecho Constitucional - Sistemas de Fuentes, 2 ed., Barcelona:
Ed.Ariel, 2001.
286
CANOTILHO, José Joaquin Gomez. Direito Constitucional e Teoria da
Constituição, 5 ed., Coimbra: Livraria Almeidina, 1967.
287
MANOEL GONÇALVES, Ferreira Filho. O Poder Constituinte, 3 ed. Rev. e Amp. São
Paulo: Saraiva, 1999.
441
4. CONCLUSÃO
Assim estabelecidas tais circunstâncias pode-se concluir que, resta por
demais necessário, o estudo do Poder Constituinte.
Descrever de modo coerente os fatores e elementos responsáveis pela
criação da Constituição e como estes, se assemelham a sociedade de modo
uníssono, se verifica como fundamental para conceber tal instituto do Direito
Constitucional. E ainda, perceber, como semelhante manifestação suprema de
poder, atua na tarefa de externar, um mecanismo eficaz e especial a fim de que
o conjunto de atos normativos que fazem parte do corpo constitucional, não se
torne obsoleto ou alheios, a sociedade.
A relação entre Poder Constituinte Originário e o Poder Constituinte
Derivado, deve ser entendida como essencial e conjunta. Tais institutos são
formados por uma série de tarefas, que se manifestam em distintas áreas, mas
quando realizadas, são responsáveis por envolverem a Carta Constitucional,
de modo que sua atuação frente à sociedade seja pautada com coerência e
eficácia, regulando seus comandados da forma mais justa e digna,
representando efetivamente o povo.
Por tudo isso, é que não podemos entender o poder constituinte
derivado como meio indiferente ou de pouca valia no cenário jurídico, haja vista
que sua atuação em comunhão com o poder originário, se mostra fundamental,
principalmente quando pensamos na intensa mobilidade, que a sociedade
contemporânea passa a tomar no trato das suas relações. Restando, por
conseguinte, carente, a uma norma eficaz e dinâmica, que possa com
satisfação, regular as novas formas de relação social, que surgem e se
modificam constantemente na sociedade.
5. REFERÊNCIAS
BÖCKENFÖRDE, Ernst Wolfgang. Estudios sobre el Estado de Derecho y la
Democracia, Madrid: Editorial Trota, 2000.
DE OTTO, Ignácio. Derecho Constitucional, - Sistemas de Fuentes, 2 ed.,
Barcelona: Ed.Ariel, 2001.
442
GUSMÃO, Hugo César Araújo de. Poder Constituinte: Uma Categoria ainda
válida nos nossos dias? Constituent Power: still a valid category in ours
day?.
GUSMÃO, Hugo César Araújo de. Uma reflexão Sobre o Exercício do Poder
de Reforma da Constituição de 1988 à Luz da Análise do Fenômeno da
Mutação Constitucional, Revista Jurídica Verba Volante, Scripta Manent.
Patos, p. 104-124, v.4, n.1, dez. 2008.
São Paulo, N-6, P 95 – 115, Julho-Dezembro de 2005.
CANOTILHO, José Joaquin Gomez. Direito Constitucional e Teoria da
Constituição, 5 ed., Coimbra: Livraria Almeidina, 2007.
HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Tradução Pedro Cruz
Villalon: Centro de Estudos Constitucionales, 2º Edição. Madrid, 1992.
JELLINEK, G. Reforma y Mutacion de la Constitucion. Estudio Preliminar:
Pablo Lucas Verdu; Traducción: Christian Förster; Revisada por: Pablo Lucas
Verdu: Centro de Estudos Constitucionales, Madrid, 1991
LASSALE, Ferdinand. O Que é Uma Constituição; Tradução Hiltomar Martins
Oliveira, Belo Horizonte: Cultura Jurídica Ed. Líder, 2001.
MANOEL GONÇALVES, Ferreira Filho. O Poder Constituinte, 3 ed. Rev. e
Amp. São Paulo: Saraiva, 1999.
MARTINS, Afonso D‘Oliveira. O Poder Constituinte na Gênese do
Constitucionalismo Moderno. Lisboa, N°. 5-6, p.77-95, 1990.
WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, estado e direito. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 1989.
443
PROCESSO DE ADESÃO DA VENEZUELA AO MERCOSUL: a ótica jurídica.
TIAGO BARBOSA DA SILVA288
RESUMO
A adesão de um novo sócio como membro pleno ao Mercado Comum do Sul é um
processo que envolve aspectos jurídicos, políticos e econômicos, ainda pouco conhecidos pela
população de seus países-membros. Por isso, o presente estudo buscou: descrever o processo
de adesão previsto nos tratados constitutivos e acervo normativo do MERCOSUL,
apresentando, em paralelo, o status do recente processo de adesão da Venezuela ao bloco. O
estudo foi realizado através do paradigma crítico-dialético, descritivo e explicativo, pois buscou
compreender o processo de adesão da Venezuela ao MERCOSUL, considerando aspectos
sócio-políticos e conjunturais. A pesquisa desenvolvida, por sua vez, caracterizou-se como
sendo: bibliográfica e documental. Pôde-se perceber que a Venezuela cumpriu os requisitos
legais exigidos para sua adesão, incorporando boa parte do acervo normativo do MERCOSUL,
restando algumas pendências relacionadas à adoção da Tarifa Externa Comum (TEC) e aos
documentos essências a conformação da área de livre comércio.
Palavras-chave: MERCOSUL. Processo de adesão. Venezuela.
ABSTRACT
The adhesion of a full member to the Common Market of the South (MERCOSUR) is a
process which involves legal, political and economical aspects which are still unknown by the
population of its States. Therefore, motivated by Venezuela‘s ongoing adhesion, the present
study aims at: describing the process of adhesion defined in MERCOSUR‘s constitutive treaties
and other legal documents, showing in parallel the status of its Venezuela‘s recent adhesion.
The study was carried out through the descriptive critical dialectic meth, once its goal was to
comprehend the adhesion process, considering socio political aspects. The research conducted
was mainly bibliographic and documental. From the study, it was possible to realize that
Venezuela fulfilled the legal requirements to join MERCOSUR, incorporating most of its legal
documents. On the other hand, there are still some issues regarding the adoption of the
Common External Tariff and some fundamental documents to the conformation of the free trade
area.
Key-words: MERCOSUR. Process of Adhesion. Venezuela.
288
Mestrando em Desenvolvimento Regional pela Universidade Estadual da Paraíba.
[email protected]
444
INTRODUÇÃO
Na segunda metade da década de 1980, surgiram blocos econômicos
com o propósito de reduzir os efeitos negativos da liberalização comercial e de
políticas neoliberais agressivas que diminuíram a importância do Estado. Na
América do Sul, especificamente no caso do Cone Sul, foi lançado o Mercado
Comum do Sul - MERCOSUL, que, além de objetivos econômicos, busca uma
integração mais ampla, que promova o desenvolvimento com justiça social.
Este bloco regional é fruto de uma aproximação bem sucedida entre suas duas
principais economias - Argentina e Brasil - que, embora decididas a formarem
na América do Sul um bloco integrado, historicamente, foram economias, ou
melhor, Estados com posicionamentos e interesses antagônicos. Para Penna
Filho (2006, p. 65), a mudança dessa realidade só aconteceu quando o Brasil
assumiu uma posição de efetiva solidariedade aos argentinos durante a Guerra
das Malvinas, ainda durante os regimes militares.
O primeiro passo rumo à integração foi dado, em julho de 1986, com a
assinatura da ‗Ata para a Integração Brasileiro-Argentina’, que criou o
Programa de Integração e Cooperação Econômica Brasil-Argentina – PICE. O
segundo, em 1988, quando Brasil e Argentina assinaram o ‗Tratado de
Integração, Cooperação e Desenvolvimento entre o Governo da República
Federativa do Brasil e o Governo da República da Argentina‘, em que
demonstram interesse em constituir, em no máximo 10 anos, um espaço
econômico comum, por meio da liberalização comercial, prevendo, entre outras
medidas, a eliminação de todos os obstáculos tarifários e não-tarifários ao
comércio
de
bens
e
serviços
e
a
harmonização
de
políticas
macroeconômicas289.
Além dos 12 protocolos assinados junto com a ‗Ata para a Integração
Brasileiro-Argentina‘, até 1989, foram assinados outros 12 protocolos290.
289
Canal
do
MERCOSUL:
http://www2.uol.com.br/actasoft/actamercosul/novo/antecedentes.htm, acesso em 03 de
outubro de 2009.
290
Protocolo N.º 13 - Siderurgia (Brasília, 10/12/1986); Protocolo N.º 14 - Transporte
Terrestre (Brasília, 10/12/1986); Protocolo N.º 15 - Transporte Marítimo (Brasília, 10/12/1986);
Protocolo N.º 16 - Comunicações (Brasília, 10/12/1986); Protocolo N.º 17 - Cooperação Nuclear
445
Esses
acordos
foram
todos
absorvidos
no
denominado
‗Acordo
de
Complementação Econômica N.º 14‟, assinado em dezembro de 1990, no
âmbito da ALADI, que constituem a base para a criação do MERCOSUL.
Em 6 de julho de 1990, com as mudanças introduzidas nos programas
econômicos dos governos brasileiro e argentino, firmou-se a ‗Ata de Buenos
Aires‘, que fixou o prazo de 31 de dezembro de 1994 para a formação definitiva
do mercado comum. Paraguai e Uruguai aderiram ao processo em curso,
através da assinatura do ‗Tratado de Assunção‘, em 26 de março de 1991,
ratificado em 17 de dezembro de 1994 pelo „Protocolo de Ouro Preto‟.
No preâmbulo do ‗Tratado de Assunção‘, os Estados signatários
declaram considerar a ampliação de seus mercados nacionais, através da
integração, uma condição fundamental para acelerar seus processos de
desenvolvimento econômico com justiça social. Dessa forma, a integração não
visa apenas a integrar economicamente os países, mas promover a justiça
social, o desenvolvimento tecnológico e científico e sócio-cultural, objetivos
muito mais amplos e difíceis de serem alcançados.
As negociações para elaboração dos documentos considerados,
conforme Cervo e Bueno (2002, p. 453), consideraram como condições para o
êxito do processo integrativo a possibilidade de integração de outros países do
continente ao bloco. Ademais, o próprio MERCOSUL considera a possibilidade
de inclusão de outros Estados ao ‗Tratado de Assunção‘ um ―avanço no
esforço tendente ao desenvolvimento progressivo da integração da América
Latina, conforme o objetivo do Tratado de Montevidéu‖ (Tratado de Assunção).
É importante salientar que o MERCOSUL ou Mercado Comum do Sul é
um processo de integração regional ainda em construção e que a participação
como membro pleno de tal processo pode provocar diversas alterações na
situação interna do Estado interessado e no próprio bloco. Podem ocorrer
(Brasília, 10/12/1986); Protocolo N.º 18 - Cultura (Buenos Aires, 15/07/1987); Protocolo N.º 19 Administração Pública (Viedma, 17/07/1987); Protocolo N.º 20 - Moeda (Viedma, 17/07/1987);
Protocolo N.º 21 - Indústria Automotriz (Brasília, 07/04/1988); Protocolo N.º 22 - Indústria de
Alimentação (Brasília, 07/04/1988); Protocolo N.º 23 - Regional Fronteiriço (Buenos Aires,
29/11/1988); Protocolo N.º 24 - Planejamento Econômico e Social (Brasília, 23/08/1989).
446
alterações no ordenamento jurídico do estado, na economia, na política e na
própria identidade cultural dos povos participantes.
Apesar de todas estas implicações, o MERCOSUL é ainda pouco
conhecido pela população dos Estados-partes. Por isso, aproveitando o atual
processo de adesão da Venezuela ao bloco, o presente estudo visa a contribuir
para a disseminação do conhecimento sobre o MERCOSUL, respondendo as
seguintes questões: que procedimento legal deve ser observado pela
Venezuela para tornar-se membro pleno do bloco regional? E qual o status do
processo de adesão desse país ao bloco?
Metodologicamente, foi utilizado o paradigma crítico-dialético, pois o
tema em questão exigiu que seu estudo fosse descritivo e explicativo. A forma
de raciocínio utilizada foi a indutivo-dialética, visto que se buscou identificar o
status da adesão venezuelana ao bloco, considerando aspectos sócio-políticos
e conjunturais. E a pesquisa, por sua vez, caracterizou-se como sendo:
bibliográfica, na medida em que utilizou, como substrato teórico, livros e artigos
acadêmicos que tratam do processo de integração do Cone Sul, e documental
ao utilizar Tratados, Protocolos e outros documentos oficiais.
ADESÃO DA VENEZUELA AO MERCOSUL
A adesão a um processo de integração como o do Cone Sul implica na
adoção de Tratados, Protocolos, e Decisões pelo país interessado, tendo em
vista a necessidade de preservação da igualdade de condições entre os
membros do bloco. Por um lado, isto implica em um comprometimento formal
do Estado aderente no sentido de incorporar a seu acervo normativo normas
criadas por outros Estados. Por outro lado, sugere a existência de uma
pluralidade de sistemas normativos. Para Couto (2006, p. 265), integrar
significa, juridicamente, reavaliar conceitos, como o da soberania, e conviver
com um pluralismo de ordens normativas distintas, sendo necessário reavaliar
esses valores e buscar ―procedimentos que eliminem as disparidades e evitem
os choques do pluralismo das ordens normativas que se integram‖.
Para permitir a relativização do nacionalismo é necessário se
estabelecer uma igualdade de condições entre todos os membros do processo
447
de integração. No MERCOSUL, o estabelecimento desta igualdade e a
aquisição da condição de membro pleno são alcançados através de um
processo legal composto de fases distintas, previstas no ‗Tratado para
Constituição do MERCOSUL‘ e na ‗Decisão N° 28/2005‘ do Conselho Mercado
Comum. Para melhor analisar estas questões, o presente trabalho será dividido
em quatro sessões distintas. Consideraremos inicialmente as previsões do
‗Tratado de Assunção‘ (1.1), em um segundo momento, as previsões da
Decisão N° 28/2005 (1.2), o status da adesão venezuelana em relação aos dois
documentos anteriores (1.3), e o processo de ratificação do protocolo de
adesão pelo Congresso Nacional Brasileiro (1.4).
1.1 Regras de Adesão Previstas no „Tratado de Assunção‟
O Art. 2º. do ‗Tratado para Constituição do MERCOSUL‘ (Tratado de
Assunção) estabelece condição importante para os países participantes do
processo de integração, pois determina que um dos fundamentos do
MERCOSUL é o princípio da reciprocidade de direitos e obrigações entre os
Estados-Partes. Isto significa que o Estado interessado em tornar-se membro
do processo de integração do Cone Sul, no nosso caso a Venezuela, deverá
adotar tratados, protocolos, decisões e resoluções válidos no bloco, de modo a
igualar-se aos outros membros.
Em decorrência desse fundamento, surge a necessidade de se respeitar
a cláusula democrática, prevista no ‗Protocolo de Ushuaia sobre Compromisso
Democrático no MERCOSUL, Chile e Bolívia‘, assinado em 24 de julho de 1998
pelos quatro Estados-Partes do MERCOSUL e mais dois Estados associados.
Em seu artigo 1º, o protocolo em destaque estabelece que ―a plena vigência
das instituições democráticas é condição essencial para o desenvolvimento dos
processos de integração entre os Estados-Partes‖, sendo a democracia
condição sine qua non para o desenvolvimento do processo de integração,
reiterando expressamente a Declaração Presidencial de Las Leñas, de 27 de
junho de 1992, ―no sentido de que a plena vigência das instituições
democráticas é condição indispensável para a existência e o desenvolvimento
448
do MERCOSUL‖. Pode-se dizer, portanto, que a assinatura do Protocolo de
Ushuaia é fundamental para a participação no MERCOSUL e para o
desenvolvimento deste, constituindo verdadeira cláusula democrática do
processo de integração.
Conforme o Art. 20 do ‗Tratado de Assunção‘, para aderir ao
MERCOSUL, o Estado deverá ser membro da Associação Latino-Americana de
Integração (ALADI) e não poderá, nos primeiros cinco anos de vigência do
tratado em questão, fazer parte de esquemas de integração ou de associações
sub-regionais. Sendo 12 os países da ALADI (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile,
Colômbia, Cuba, Equador, México, Paraguai, Peru, Uruguai, Venezuela), o
MERCOSUL encontra-se aberto à adesão plena de 7 Estados: Bolívia, Chile,
Colômbia, Cuba, Equador, México, Peru e Venezuela.
Para Coelho (2006, p. 6), o segundo parágrafo do Art. 20 foi aplicado
especificamente ao caso do Chile, que aderiu ao MERCOSUL como membro
associado antes que os trabalhos de formação da zona de livre comércio e da
união aduaneira fossem concluídos. Bolívia, Chile, Colômbia, Equador e Peru
já são membros associados do MERCOSUL, o que demonstra o compromisso
do bloco com o aprofundamento do processo de integração regional e com o
desenvolvimento e intensificação das relações com os países membros da
ALADI. A condição de Estado Associado garante a participação nas reuniões
dos órgãos da estrutura institucional do MERCOSUL, na qualidade de
convidado, para tratar de temas de interesse comum, sem direito a voto. As
normas referentes à associação estão previstas nas seguintes Decisões do
Conselho
Mercado
Comum:
MERCOSUL/CMC/DEC.
Nº
14/96
e
MERCOSUL/CMC/DEC. Nº 18/04.
Como podemos perceber, as regras de adesão do Tratado de Assunção
são bastante genéricas, limitando-se a estabelecer condições gerais para
adesão. Por causa disso, o processo de adesão foi regulamentado através de
Decisão do Conselho Mercado Comum – CMC, como veremos a seguir.
449
1.2 Regras de Adesão Previstas na „Decisão N° 28/2005 do CMC
Para solucionar a generalidade do ‗Tratado de Assunção‘ no que
concerne ao processo de adesão, o CMC, por meio da Decisão N° 28/2005,
definiu condições e termos específicos, regulamentando o processo em tela.
Esta Decisão determina, em seu Art. 1º, que o país membro da ALADI deve
apresentar uma solicitação escrita a Presidência Pro Tempore do CMC, que é
―assumida por período de seis meses por cada um dos Estados-membros do
MERCOSUL, de maneira rotatória por ordem alfabética‖ (Freitas Júnior, 2006,
p. 271). Esta solicitação deverá ser aprovada por unanimidade pelos EstadosPartes através de Decisão expressa do CMC.
Posteriormente, o Artigo 3 da Decisão N° 28/2005 determina que alguns
termos são de negociação obrigatória. A negociação desses pontos
obrigatórios, conforme o Art. 4 da Decisão N° 28/2005, será realizada por um
Grupo Ad Hoc integrado por representantes dos Estados-partes e do Estado
Aderente, que deverá fornecer, ao CMC, os seus resultados em um prazo
máximo de 180 dias a partir da primeira reunião.
No caso de não conclusão dos trabalhos de negociação no prazo
mencionado, o Art. 4, prevê possibilidade de prorrogação automática deste por
período idêntico. Se mesmo assim as negociações continuarem inconclusas, o
CMC avaliará a situação do Estado Aderente com relação ao MERCOSUL.
Obviamente, os trabalhos de todas essas negociações deverão ser
documentados. Por isso, o Art. 6 estabelece que os resultados das
negociações deverão ser escritos em forma de Protocolo de Adesão.
A Decisão N° 28/2005 estabelece ainda que ―até a entrada em vigor do
Protocolo de Adesão, o Estado aderente poderá participar das reuniões dos
órgãos e foros do MERCOSUL, com direito a voz‖ (Art. 7).
1.3 Status do Processo de Adesão da Venezuelana
A aproximação entre a Venezuela e o MERCOSUL não é tão recente,
pois desde o fim dos anos 1990 este país aproxima-se do bloco econômico,
através da celebração de acordos de cooperação. De qualquer forma, a
450
solicitação da Venezuela para incorporar-se como Estado-Parte, como exige o
Art. 20 do ‗Tratado de Assunção‘, somente foi acolhida em 08 de dezembro de
2005, através da MERCOSUL/CMC/DEC. Nº 29/05 – Solicitação de Adesão da
República Bolivariana da Venezuela ao Mercado Comum do Sul.
Dessa forma, a Venezuela, país membro da ALADI, cumpriu a exigência
prevista no ‗Tratado de Assunção‘ e no Art. 1 da ‗Decisão N° 28/2005‘, tendo
em vista que sua solicitação por escrito foi aprovada por unanimidade pelos
Estados-Partes, através de Decisão expressa do Conselho Mercado Comum.
Além disso, a Venezuela demonstrou estar disposta a respeitar a
cláusula democrática do MERCOSUL através da interiorização do ‗Protocolo de
Ushuaia‘, realizada em 20 de junho de 2005291, no governo de Hugo Chávez,
confirmando o seu compromisso com a preservação de suas instituições
democráticas, como demonstra a ‗Ata de Adesão ao Protocolo de Ushuaia‘, em
que a República Bolivariana da Venezuela expressa:
Sua plena e formal adesão aos princípios e disposições contidas no
“Protocolo de Ushuaia sobre o Compromisso Democrática no
MERCOSUL, a República da Bolívia e a República do Chile”, [...] e
reitera o compromisso do Governo venezuelano com a promoção,
preservação e defesa dos valores democráticos.
Além da aprovação expressa da solicitação venezuelana, a ‗Decisão Nº
29/05‘ prevê, em seu Art. 2º, a criação de um Grupo Ad Hoc, ―integrado por
representantes dos Estados-partes do MERCOSUL e da República Bolivariana
da Venezuela para negociar os prazos e condições que determinarão o
desenvolvimento do processo de adesão deste país ao MERCOSUL.‖
Este Grupo ficou responsável pelas negociações para a plena adesão da
Venezuela. Conforme Coelho (2006, p. 7), o Grupo Ad Hoc foi criado, em maio
de 2006, seguindo as determinações contidas no Artigo 2 do Acordo-Quadro.
Dessa forma, a Venezuela passou a negociar os termos previstos no Art. 3 da
Decisão N° 28/2005, ou seja, os termos e condições de negociação obrigatória,
291
Ata de Adesão ao Protocolo de Ushuaia sobre o Compromisso Democrático no
MERCOSUL, Bolívia e Chile.
http://www.mre.gov.py/dependencias/tratados/mercosur/registro%20mercosur/Acuerdos/Act
a%20de%20Adhesion%20P.%20Ushuaia/portugues/Adhesion%20Venezuela%20al%20Prot
ocolo%20de%20Ushuaia.pdf Acesso em 29 de outubro de 2009.
451
que, observados de perto, podem ser divididos em quatro categorias: adesão
aos tratados e protocolos constitutivos do bloco (1.3.a); adoção da TEC (1.3.b);
adesão aos documentos de formação da área de livre comércio (1.3.c) e
adesão ao acervo normativo do bloco (1.3.d).
(1.3.a) Adesão da Venezuela aos Tratados Constitutivos do MERCOSUL
O ‗Protocolo de Adesão da República Bolivariana da Venezuela ao
MERCOSUL‘ foi assinado em 04 de julho de 2006. Este documento define os
compromissos e as etapas do processo de adesão e confirma, em seu Art. 1º,
a adesão da Venezuela ao ‗Tratado de Assunção‘, ao ‗Protocolo de Ouro
Preto‘, e ao ‗Protocolo de Olivos para a Solução de Controvérsias no
MERCOSUL‘, nos termos estabelecidos no artigo 20 do ‗Tratado de Assunção‘,
e conforme exigência expressa no Art. 3, I da Decisão N° 28/2005.
A adesão da Venezuela a tais documentos é fundamental, visto que
implica no reconhecimento do objetivo de se constituir um mercado comum, no
reconhecimento do seu instrumento jurídico básico, no reconhecimento da
personalidade jurídica internacional do bloco e de sua conformação
institucional, no reconhecimento do poder normativo do bloco e de seu
mecanismo de solução de controvérsias e no reconhecimento de seu primeiro
órgão supranacional. Obviamente, cada um dos documentos apontados possui
importância e trata de aspectos essenciais em um processo de integração
como o do Cone Sul e, por isso, serão considerados individualmente.
1.3.a.1 O Tratado de Assunção
O ‗Tratado de Assunção‘ foi assinado em março de 1991, na capital do
Paraguai, pelos presidentes Carlos Menem, da Argentina, Fernando Collor, do
Brasil, Andrés Rodriguez, do Paraguai e Luis Alberto Lacalle, do Uruguai. Este
tratado modifica a lógica integracionista seguida nas etapas antecedentes, pois
entrelaça questões de política doméstica dos diversos países membros com
suas políticas externas. De acordo com Mariano (2000, p. 55), ―o Tratado de
Assunção inaugurou uma nova lógica de integração na qual o entrelaçamento
452
das questões domésticas e da política exterior, principalmente, medidas de
alcance macroeconômico, aprofunda-se mais acentuadamente‖.
Antes do ‗Tratado de Assunção‘, o projeto de integração objetivava criar
uma zona de livre comércio, depois, o processo de integração passou a buscar
a formação de um mercado comum, prevendo a livre circulação de bens,
serviços e fatores produtivos em toda a área dos países participantes (Baptista,
1991 in Mariano, 2000, p. 55), ampliando o objetivo do bloco econômico.
Para consolidar tal mudança, o próprio tratado estabelece, em seu Art.
3º, um período de transição que se estendeu de sua entrada em vigor até 31
de dezembro de 1994. Este período foi previsto para ―facilitar a constituição do
Mercado Comum‖ (Tratado de Assunção, art. 3º). Nesse período de transição,
o mercado comum avançou em pontos relacionados à sua formação
institucional, devido principalmente a Reunião de Las Leñas e a Constituição
do Grupo Ad Hoc sobre Assuntos Institucionais. Para Mariano (2000, p. 62), a
Reunião de Las Leñas, através de seu cronograma, direcionou e definiu a
pauta das negociações permitindo um avanço expressivo no processo de
integração, e a constituição do Grupo Ad Hoc sobre Aspectos Institucionais,
definiu o que seria o MERCOSUL a partir de primeiro de janeiro de 1995, no
que diz respeito à sua organização institucional e poderes decisórios.
Em uma das reuniões do Grupo Ad Hoc sobre Assuntos Institucionais,
foi decidido que o Tratado de Assunção continuaria sendo o instrumento
jurídico básico do bloco e que o documento emergente da Conferência
Diplomática, de 28 e 29 de setembro de 1994, posteriormente conhecido como
Protocolo de Ouro Preto, respeitaria a mesma hierarquia jurídica.
Pode-se dizer que a adesão da Venezuela ao ‗Tratado de Assunção‘ é
fundamental, pois demonstra o reconhecimento do instrumento jurídico básico,
da hierarquia e dos objetivos do bloco: a formação de um mercado comum,
onde haja livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos entre todos os
países membros e a promoção do desenvolvimento justo social.
453
1.3.a.2 Protocolo de Ouro Preto
Como visto anteriormente, o Grupo Ad Hoc sobre Aspectos Institucionais
definiu o que seria o MERCOSUL em termos de organização institucional e
poderes decisórios. Esta definição foi materializada no ‗Protocolo Adicional ao
Tratado de Assunção sobre a Estrutura Institucional do MERCOSUL‘, chamado
de ―Protocolo de Ouro Preto‖, que encerrou o período de transição previsto no
‗Tratado de Assunção‘ para institucionalização do mercado comum.
A estrutura institucional, prevista no protocolo em destaque, passou a
vigorar a partir de 1º de Janeiro de 1995. Além da definição dos seis principais
órgãos do MERCOSUL (Conselho Mercado Comum – CMC; Grupo Mercado
Comum – GMC; Comissão de Comércio do MERCOSUL – CCM; Comissão
Parlamentar Conjunta – CPC; Fórum Consultivo Econômico-Social, e
Secretaria
Administrativa
do
MERCOSUL),
o
protocolo
atribuiu
às
competências e os poderes de cada um deles dentro do processo decisório e
previu a possibilidade de criação de outros órgãos auxiliares, se necessário.
Além do estabelecimento da estrutura definitiva do MERCOSUL e da
determinação exata do poder de cada um de seus órgãos, Freitas Jr. (2006, p.
262) aponta três outros aspectos importantes do protocolo: (a) reconhecimento
da obrigatoriedade de acatar as decisões das instituições do MERCOSUL,
como fontes derivadas de direito comunitário, e dos tratados como fonte
originária; (b) estabelecimento do compromisso dos Estados-membros de
adotar as medidas necessárias para garantir o cumprimento de normas
obrigatórias, compromisso chamado de Princípio da Observância, e (c)
interiorização das normas obrigatórias do MERCOSUL.
Desse modo, a adesão da Venezuela ao ‗Protocolo de Ouro Preto‘ é
vital, por significar que o país aderente reconhece o próprio MERCOSUL como
personalidade jurídica internacional, reconhece seus órgãos institucionais e o
poder normativo destes, e reconhece as decisões e resoluções do MERCOSUL
como fonte derivada de direito comunitário, comprometendo-se a adotar as
medidas necessárias ao cumprimento das medidas obrigatórias.
454
1.3.a.3 Protocolo de Olivos para a Solução de Controvérsias no MERCOSUL
O ‗Protocolo de Olivos‘, firmado em 18 de fevereiro de 2002, estabelece
o mecanismos de solução de controvérsias e incorpora algumas novidades ao
processo de integração. Através deste documento foram estabelecidos um
procedimento com maiores garantias processuais para os Estados-membros e
uma melhor proteção dos direitos privados, aperfeiçoando-se o sistema de
solução de controvérsias existentes no bloco.
O protocolo foi pensado, conforme seu preâmbulo, para criar
mecanismos aptos a ―garantir a correta interpretação, aplicação e cumprimento
dos instrumentos fundamentais do processo de integração e do conjunto
normativo do MERCOSUL, de forma consistente e sistemática‖, de modo a
―consolidar a segurança jurídica no âmbito do MERCOSUL‖, criando o primeiro
órgão supranacional do MERCOSUL, o Tribunal Permanente de Revisão.
A adesão da República Bolivariana da Venezuela a este protocolo
significa o seu reconhecimento do modo de solução de controvérsias jurídicas
existentes entre particulares e/ou entre Estados-membros do MERCOSUL. Em
outras palavras, a Venezuela reconhece o poder do MERCOSUL para julgar
celeumas jurídicas entre seus membros e cidadãos.
1.3.b Adoção da Tarifa Externa Comum
A tarifa externa comum (TEC) é uma tarifa básica que deve ser aplicada
a todos os países não membros do MERCOSUL de forma uniforme. A TEC tem
dois objetivos principais: (a) harmonizar as condições de concorrência e (b)
estimular a integração produtiva entre as economias do bloco. Isto pode ser
visto no fragmento abaixo, extraído do sítio do Ministério das Relações
Exteriores dedicado ao MERCOSUL292,
a Tarifa Externa Comum (TEC) abrange todo o universo de produtos
comercializados com terceiros países, totalizando, em 2007, 9.721
292
Tarifa Externa Comum: http://www.mercosul.gov.br/perguntas-mais-frequentes-sobreintegracao-regional-e-mercosul-1/sobre-integracao-regional-e-mercosul/ Acesso em 31 de
outubro de 2009.
455
itens tarifários. Esses itens são descritos na Nomenclatura Comum do
MERCOSUL (NCM), em oito dígitos. Trata-se de passo necessário
para equalizar as condições de concorrência, ou seja, garantir que os
produtores dos diferentes Estados-partes pagarão o mesmo montante
para importação de insumos e máquinas e, portanto, poderão
competir entre si em condição de igualdade. É também, na medida
em que expõe os quatro países à mesma estrutura de proteção, um
instrumento de estímulo à integração produtiva entre suas
economias.
Na prática, a TEC resulta na impossibilidade de se taxar, por exemplo,
um produto argentino no Brasil com um imposto desproporcionalmente superior
ao aplicado ao produto brasileiro, e na impossibilidade de se realizar acordos
paralelos entre um dos membros do bloco e outros países, mesmo na América
Latina, se este acordo puder prejudicar a harmonia tarifária do MERCOSUL.
Dessa forma, se houver vantagens em um entendimento entre a Argentina e o
Equador, isso deverá ser estendido aos outros membros do bloco.
Sendo assim, A TEC é relevante no processo de integração do Cone
Sul, visto que contribui para uma integração mais profunda de suas economias
e constitui uma ferramenta diplomática imprescindível, que permite a atuação
em bloco nas negociações comerciais com terceiros países, aumentando o
poder de barganha dos Estados-membros. Conforme texto disponível no sítio
do Ministério das Relações Exteriores293, a existência da TEC caracteriza o
MERCOSUL como um projeto de integração profunda, que visa a formação de
um espaço econômico ampliado, delimitado pela aplicação uniforme de tarifas
a produtos oriundos de terceiros países. Ainda para o Ministério das Relações
Exteriores, ―a TEC constitui um ativo diplomático sem precedentes para a
região e é elemento fundamental para a atuação em bloco nas negociações
comerciais com terceiros países ou grupos de países‖.
Por outro lado, a adoção da TEC requer um maior comprometimento dos
Estados-membros do bloco econômico, visto que estes perdem parte de sua
autonomia tarifária e parte de seu poder de negociação com terceiros países.
Além disso, a revisão e fixação de alíquotas da TEC só podem ser feitas em
acordo pelos países-membros. Em tese, isso significa que, se o Uruguai quiser
293
Tarifa Externa Comum: http://www.mercosul.gov.br/perguntas-mais-frequentes-sobreintegracao-regional-e-mercosul-1/sobre-integracao-regional-e-mercosul/ Acesso em 31 de
outubro de 2009.
456
negociar um acordo envolvendo tarifas preferenciais vantajosas com a África
do Sul, ele só poderá fazer isso, se os benefícios forem estendidos a todos os
países-membros do bloco. E, sentindo-se prejudicado pela alíquota da TEC, o
Uruguai só poderá revê-la em comum acordo com seus pares.
O Ministério das Relações Exteriores do Brasil também entende que
para a aplicação adequada da TEC, faz-se necessário um comprometimento
maior por parte dos países membros do bloco, uma vez que os Estados-Partes
―perdem autonomia na fixação de alíquotas do imposto de importação e na
negociação com terceiros países. A TEC, definida em comum, também só pode
ser revista de comum acordo pelos países-membros‖.
Portanto, a adoção da TEC pelo Estado aderente é fundamental para a
harmonia tarifária e preservação das condições de concorrência entre os
membros. Não existindo a TEC, a realização de uma integração profunda e
benéfica será dificultada. Por isso mesmo, um protocolo de adesão não pode
deixar de considerar a adoção da TEC pelo Estado aderente.
O ‗Protocolo de Adesão da Venezuela ao MERCOSUL‘ trata da adoção
da TEC, em seu Art. 4. Fica estabelecido que a Venezuela terá um prazo de
até quatro anos, contados da entrada em vigência do ‗Protocolo de Adesão‘,
para adotar a TEC. Como previsto no Art. 3, II, da Decisão Nº 29/05, do CMC,
pode-se definir um cronograma de convergência para a aplicação da TEC. Por
isso, foi definido no artigo 11 do ‗Protocolo de Adesão‘, um Grupo de Trabalho
cuja função seria estabelecer um cronograma de adoção, contemplando
eventuais exceções, de acordo com as normas pertinentes ao MERCOSUL.
Segundo Barbosa (2008), embora o informe do GT tenha sido aprovado,
deixou sem conclusão a maioria das questões técnicas e comerciais, estando,
suas negociações, suspensas desde março de 2007, quando foi criado um GT,
ad hoc, para concluir os trabalhos em 180 dias, prazo prorrogável por igual
período, contados a partir de 1º. de outubro de 2007.
Restam pendências em relação a seu cronograma de adesão, visto que
o GT definiu prazos e o percentual de produtos, mas não definiu as listas de
produtos que deverão ser incluídas em cada etapa (Barbosa, 2008). Para
457
Pinheiro (2009, p. 8), ―até o momento, o que se sabe, é que as negociações
neste foro não foram definidas, passados dois anos de sua criação‖.
Além desta indefinição, a Venezuela já possui acordos que prevêem
tarifas externas preferenciais, com os países membros da Comunidade Andina
de Nações (Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela) e com o grupo dos
três (Venezuela, Colômbia e México). Dessa forma, países que não fazem
parte do MERCOSUL poderiam ter tarifas externas melhores que aquela
aplicada aos seus membros, perfurando assim o instituto da TEC. Isto implica
na necessidade de criação de um mecanismo de convergência que estabeleça
o equilíbrio entre todos estes acordos. Para Coelho (2006, p. 10),
a Venezuela como membro da Comunidade Andina e do Grupo dos
Três (Venezuela, Colômbia e México) aplica preferências e uma TEC
própria dessa união aduaneira e diferente das adotadas pelo
MERCOSUL. É preciso, portanto, que seja criado um mecanismo de
convergência dessas tarifas, evitando-se eventuais perfurações à
TEC, além de se evitar que terceiros países recebam tratamentos
preferenciais melhores do que os sócios do MERCOSUL.
A existência de perfurações a TEC é um fator sério que depõe
negativamente contra o bloco, pois demonstra descompasso entre as políticas
econômicas dos seus membros sendo, a desmoralização desse instituto, para
Cervo e Bueno (2002, p. 485), uma fragilidade do processo de integração. Esta
é também a opinião de Couto (2006, p. 267), quando diz que ―o ponto crucial
da tarifa externa comum na união aduaneira é de sua aplicação uniforme. E, o
problema que se apresenta para o MERCOSUL, são as exceções impostas à
tarifa externa comum‖. Exceções em relação à aplicação uniforme da TEC
geram distorções que podem dificultar o alcance da livre circulação de
mercadorias, de serviços e de capitais almejada pelo MERCOSUL.
Considerando os acordos entre a Venezuela e terceiros países, é
urgente a criação de mecanismos de convergência que estabeleçam o
equilíbrio, de modo a preservar a TEC e seus benefícios, e não permitam que a
adesão deste Estado ao bloco implique em problemas a área de livre comércio.
Pela importância do instituto, é fundamental que os gargalos
encontrados pela Venezuela em sua adoção sejam resolvidos, preservando a
unidade tarifária e o poder de barganha do bloco. Ademais, é importante que o
458
país aderente não gere novas exceções e perfurações no instituto. Por isso, a
Confederação Nacional da Indústria - CNI, em audiência na Comissão de
Relações Exteriores e Defesa Nacional, realizada em 05 de setembro de 2007,
recomendou a não aprovação do Protocolo de Adesão antes da conclusão dos
trabalhos do Grupo de Trabalho Ad Hoc294. Para alguns esta recomendação é
antes de tudo política, pois o ‗Protocolo de Adesão da Venezuela‘ está dentro
do padrão dos acordos ratificados pelo Congresso Nacional Brasileiro.
Assim, apesar de estabelecer um prazo máximo para a adoção da TEC,
o Protocolo de Adesão não define quais itens deverão compor a lista de
exceção e não deixa claro se a Venezuela será obrigada a reduzir
gradualmente a lista, tal como foi estipulado para os demais membros.
1.3.c Adesão aos Documentos de Formação da Área de Livre Comércio
Uma área de livre comércio visa a estimular o comércio entre os países
participantes de um bloco econômico, por meio da especialização, da divisão
do trabalho e da vantagem competitiva. Para alcançar tal objetivo, os países
participantes devem concordar em eliminar as tarifas, quotas e preferências
que recaem sobre a maior parte dos bens importados e exportados entre eles.
O ‗Protocolo de Adesão da Venezuela ao MERCOSUL‘, em seu Art. 5º,
estabelece um cronograma para a liberalização gradual da economia
venezuelana. Um prazo menor foi determinado para a abertura das economias
da Argentina e do Brasil para a Venezuela. O Paraguai e o Uruguai têm um
prazo maior para abertura de suas economias. A Venezuela, por sua vez, tem
um prazo único, devendo abrir sua economia para todos os membros do
MERCOSUL ao mesmo tempo.
294
Confederação Nacional da Indústria – CNI. Adesão da Venezuela ao MERCOSUL.
Audiência na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, realizada em 05 de
setembro de
2007.http://www.google.com.br/url?sa=t&source=web&ct=res&cd=1&ved=0CAgQFjAA&url=
http%3A%2F%2Fwww.cni.org.br%2Fportal%2Flumis%2Fportal%2Ffile%2FfileDownload.jsp
%3FfileId%3D8A9015D0151A06480115393EB19A0516&ei=ksXuSte6MoqllAf0KX_BA&usg=AFQjCNFN3Yku7_XR07eS84aYcwB0O7olDg&sig2=IaJj79rAlFIlLJWFPAH-QA
Acesso em 2 de novembro de 2009.
459
A Tabela 1 apresenta o cronograma de cumprimento dos compromissos
de livre comércio adotados pelos Estados Parte no acordo de adesão da
Venezuela ao MERCOSUL.
Tabela 1: Cronograma de cumprimento dos compromissos de livre comércio adotados pelos
Estados Parte no acordo de adesão da Venezuela ao MERCOSUL.
País
Prazo máximo
Argentina para Venezuela
01 de janeiro de 2010
Brasil para Venezuela
01 de janeiro de 2010
Paraguai para Venezuela
01 de janeiro de 2013
Uruguai para Venezuela
01 de janeiro de 2013
Venezuela para Argentina
01 de janeiro de 2012
Venezuela para Brasil
01 de janeiro de 2012
Venezuela para Paraguai
01 de janeiro de 2012
Venezuela para Uruguai
01 de janeiro de 2012
Adaptação do Art. 5º do ‗Protocolo de Adesão da República Bolivariana da Venezuela ao
MERCOSUL‘.
Os prazos previstos para a abertura das economias do MERCOSUL
para a Venezuela poderão, de acordo com Coelho (2006, p. 9), no caso de
produtos sensíveis, ser estendidos até 01 de janeiro de 2014. Extensão
semelhante poderá ser acordada para produtos sensíveis da Venezuela
comercializados com as principais economias do bloco – Brasil e Argentina.
Ainda em relação à abertura das economias dos países membros e do
país aderente, o Art. 5º prevê que o Grupo de Trabalho, criado no Art. 11 do
Protocolo de Adesão, estabelecerá um programa de liberalização comercial
com seus respectivos cronogramas e que, durante o período de transição do
programa de liberalização comercial e até que a Venezuela adote o Regime de
Origem do MERCOSUL, o Regime de Origem aplicado às transações
comerciais entre os Estados envolvidos será o previsto no Acordo de
Complementação Econômica 59295.
Para Coelho (2006, p. 9), ―o ACE nº 59 regula um mecanismo de
salvaguardas, que pode ser considerado mais um obstáculo para a
consolidação da entrada da Venezuela no MERCOSUL‖, pois durante as
O ACE 59 é, conforme informações do Portal Oficial do MERCOSUL , ―um Acordo de
Livre Comércio assinado em 18/10/04 e em vigor desde 02/02/05‖, que prevê ritmos e prazos
de liberalização econômica e desgravação diferenciados, ―com concessões maiores para os
países andinos, Paraguai e Uruguai‖.
295
460
negociações para introdução de salvaguardas podem sobrevir atritos entre os
membros. Isto aconteceu entre Brasil e Argentina durante as negociações para
inclusão da Medida de Adaptação Competitiva (MAC), que segundo Coelho
(2006, p. 9), é um protocolo adicional do ACE nº 14 entre Brasil e Argentina,
tido como exemplo de anomalia dentro da área de livre comércio criada pelo
MERCOSUL, já que restringe as relações comerciais. Ainda conforme Coelho
(2006, p. 9), embora tenha por objetivo proteger, por meio de salvaguardas,
setores industriais da Argentina e do Brasil, quando as exportações de um ou
de outro estiverem causando, ou ameaçando causar, ―dano importante‖ à
economia doméstica, o problema do MAC é que o protocolo não estabelece um
prazo máximo de vigência.
A Decisão N° 28/2005, em seu Art. 3º, III, estabelece que a adesão do
Estado aderente ao ACE Nº 18 e seus Protocolos Adicionais através da adoção
de um programa de liberalização comercial é de negociação obrigatória. Para
Santos (2007, p. 4), ―a leitura atenta da mensagem presidencial (MSC 82/2007)
que propõe ao Congresso Nacional a Adesão da Venezuela ao MERCOSUL,
oriunda do Protocolo de Adesão, revela que tais condicionantes foram de fato
atendidas‖, como pode se perceber nos Artigos 4, 5, 6 que estabelecem o
cronograma de adesão à TEC, ao Programa de Liberalização Comercial e ao
ACE. Sendo assim, a Venezuela cumpriu mais uma etapa rumo à adesão ao
MERCOSUL, mesmo ainda existindo pendências.
1.3.d Adoção do Acervo normativo do MERCOSUL
Em relação à adoção do acervo normativo do MERCOSUL, incluindo as
normas em processo de incorporação, o ‗Protocolo de Adesão‘ prevê, no Art.
3º, que a Venezuela adotará o acervo normativo de forma gradual, em no
máximo quatro anos contados a partir da data de entrada em vigência do
Protocolo de Adesão, que prevê ainda que o Grupo de Trabalho, criado em seu
Art. 11, estabelecerá o cronograma de adoção da referida normativa.
Segundo Barbosa (2008), o Grupo de Trabalho deixou em aberto um
grande número de questões. A situação atual da adoção do acervo normativo
461
está entre as questões pendentes, pois ―do total de 783 normas, há 169 sem
indicação de prazo para adoção pela Venezuela‖. Este fato sozinho pode gerar,
posteriormente, impasses, já que permite que surjam argumentos contra a
adesão, baseados no não estabelecimento da igualdade entre os sócios.
De qualquer modo, a mensagem presidencial (MSC 82/2007) revela em
seus artigos 1, 2, 3, 4, 5, e 6 a adesão da Venezuela ao quadro normativo do
MERCOSUL, o que implica no cumprimento de mais uma etapa rumo à
aquisição da condição de membro pleno.
1.4 Ratificação do Protocolo de Adesão da Venezuela pelo
Congresso Nacional Brasileiro
Como pudemos perceber, nas fases iniciais, o processo de adesão de
um país como membro pleno é discutido no âmbito dos órgãos decisórios
fundamentais ao MERCOSUL: o Conselho do Mercado Comum, o Grupo
Mercado Comum e a Comissão de Comércio do MERCOSUL. Somente depois
dessas fases, o processo de adesão passa a ser discutido pelos poderes
legislativos
dos
interiorização,
ou
países
seja,
membros,
para
incorporação
do
a
ratificação
‗Protocolo
de
e
consequente
Adesão‘
aos
ordenamentos jurídicos do Estado aderente e dos Estados-membros, conforme
previsto no Art. 6, da Decisão N° 28/2005.
Além da aprovação do Poder Legislativo Venezuelano, o ‗Protocolo de
Adesão da Venezuela‘ precisa ser aprovado pelos legislativos dos quatro
Estados-membros do bloco econômico. É importante salientar que tal protocolo
já foi aprovado pela Venezuela, pelo Uruguai, pela Argentina e Brasil.
Segundo Pinheiro (2009, p. 2), o ―acordo foi ratificado pela Assembléia
Nacional da Venezuela, por unanimidade, em cinco dias‖. O Congresso do
Uruguai ratificou o Protocolo de Adesão da Venezuela em 02 de novembro de
2007 e a Lei correspondente Nº 18.053 foi promulgada pelo Executivo em
06/11/2007. O Congresso da Argentina ratificou o Protocolo de Adesão da
Venezuela ao MERCOSUL no dia 06 de dezembro, e o documento foi
incorporado em sua legislação doméstica através da Lei 26.192. O protocolo de
adesão foi aprovado pela Argentina, de acordo com Mendes e Narciso (2007,
462
p. 24), ―mesmo sem que o Grupo de Trabalho tivesse concluído os
cronogramas de adesão às normas do MERCOSUL, à TEC assim como de
liberação comercial entre Argentina e Venezuela.‖ O trâmite legislativo ocorreu
de forma similar na Venezuela, Argentina e no Uruguai, pois o processo foi
marcado pela celeridade e pela coesão política em torno da aprovação do
protocolo. Entretanto, a tramitação do ‗Protocolo de Adesão da Venezuela‘ foi
eivado de lentidão no Paraguai e encontrou sérias barreiras no Congresso
Brasileiro.
No Brasil, a tramitação dos acordos internacionais no Congresso
Nacional obedece a certos padrões procedimentais. Inicialmente, os termos da
negociação, no nosso caso do ‗Protocolo de Adesão da Venezuela‘, foram
transformados em uma ‗Mensagem Presidencial‘ enviada ao Congresso
Nacional para exame. Sendo assim, a iniciativa, neste caso, é do Presidente da
República, pois é ele quem desencadeia o processo legislativo. Uma vez
recebida, a Mensagem Presidencial é enviada para a Mesa da Câmara que,
através do Centro de Comissões Permanentes, envia a mensagem para a
comissão permanente responsável pelo exame da ‗Mensagem Presidencial‘,
onde se indica um relator cuja responsabilidade é emitir um parecer, que,
sendo favorável, transforma-se em Decreto Legislativo. No caso em tela, a
Mensagem Presidencial foi despachada para a Comissão de Relações
Exteriores e Defesa Nacional (CREDN), onde foi favoravelmente analisada.
Posteriormente, o Decreto Legislativo é enviado a plenário, podendo tramitar
em regime ordinário ou extraordinário. No caso de tramitação em regime
extraordinário, de urgência urgentíssima (o regime de tramitação é decidido
pelos líderes que compõem a maioria da Casa), sobresta-se às demais
matérias em tramitação, indo a voto na ordem do dia seguinte a aprovação do
referido regime. Aprovada na Câmara dos Deputados, o mesmo rito deverá ser
percorrido no Senado Federal.
O ‗Protocolo de Adesão da Venezuela‘ tramita no Congresso Nacional
sob a forma de Projeto de Decreto Legislativo Nº 387, de 2007. É importante
perceber que, concluído o trâmite no Congresso Nacional, o Decreto
Legislativo não requererá sanção ou veto, sendo promulgada pelo Presidente
463
do Senado Federal, sem possibilidade de ser atacada pelo controle direto de
inconstitucionalidade. Em outras palavras, não haverá possibilidade de
alteração decorrente de ação do Presidente da República, como o veto total ou
parcial (Araújo e Nunes Júnior, 2009, p. 376).
No dia 29 de outubro de 2009, o ‗Protocolo de Adesão da Venezuela‘ foi
aprovado pela Comissão de Relações Exteriores do Senado Federal. A
aprovação no Plenário veio em 15 de dezembro de 2010. Uma vez aprovado
pelo Congresso brasileiro, o ―Protocolo de Adesão‖ ainda precisa ser aprovado
pelo Congresso do Paraguai.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como vimos no presente estudo, o processo de adesão de um novo
sócio ao MERCOSUL, previsto nos tratados constitutivos do bloco econômico e
em seu acervo normativo, é juridicamente complexo, tendo em vista sua
tramitação, primeiro nos órgãos do próprio bloco e, posteriormente, nos
congressos nacionais de todos os países membros.
As regras de adesão previstas no ‗Tratado de Assunção‘ são bastante
genéricas, estabelecendo apenas condições gerais para adesão, por isso, o
processo de adesão foi regulamentado através de Decisão do Conselho
Mercado Comum – CMC. A Venezuela solicitou por escrito sua adesão ao
CMC, aprovada por unanimidade por todos os membros, e incorporou parte do
acervo normativo do bloco, restando algumas pendências relacionadas à
adoção da TEC e aos documentos essências a conformação da área de livre
comércio. De qualquer modo, a mensagem presidencial (MSC 82/2007) revela
em seus artigos 1, 2, 3, 4, 5, e 6 que este país já aderiu ao quadro normativo
do MERCOSUL. Por fim, resta pendente a aprovação do Paraguai para que a
Venezuela se torne de fato Estado-membro do MERCOSUL, já que, no dia 29
de outubro de 2009, o ‗Protocolo de Adesão da Venezuela‘ foi aprovado pela
Comissão de Relações Exteriores do Senado Federal e pelo Plenário, no dia
15 de dezembro de 2010.
464
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sobre-integracao-regional-e-mercosul-1/sobre-integracao-regional-e-mercosul/
Acesso em 31 de outubro de 2009.
466
PROTESTO POR NOVO JÚRI
Análise de seu cabimento após o advento da Lei 11.689/2008
Júlia de Arruda Rodrigues296
Lina Marie Cabral297
Marina Dantas Pereira298
RESUMO
Por ocasião da Lei 11.689/2008, advieram várias transformações no Tribunal do Júri, dentre
elas a extinção do Protesto por Novo Júri. Devido à relevância deste instituto processual ainda
hoje, mesmo após sua abolição, realizamos uma pesquisa bibliográfica qualitativa, buscando
solucionar a seguinte problemática: é possível continuar-se admitindo o protesto por novo júri
em crimes praticados antes da Lei 11.689/2009, e processados sob a égide deste novo
diploma normativo? Teremos assim, como objetivo geral a análise do cabimento do Protesto
por Novo Júri após o surgimento da nova lei, e especificamente: indicar seu conceito e
peculiaridades e, sob a perspectiva do Direito Intertemporal, estabelecer sua natureza jurídica
e efeitos, bem como as doutrinas e jurisprudências acerca do tema, além de apresentar nossas
próprias considerações sobre suas repercussões em nosso ordenamento jurídico.
Palavras-chave: Protesto por Novo Júri. Crimes praticados antes da Lei 11.689/2008
Processos e posteriormente processados. Direito Intertemporal. Natureza Jurídica.
ABSTRACT
Many changes were brought about to the Grand Jury by introduction of Law 11.689/2008,
among them the abolition of Protest for New Jury. Due to the relevance of this institute
proceedings nowadays, even after its abolition, we conducted a qualitative research literature,
seeking to solve the following problem: is it possible to continue admitting Protest for New Jury
on crimes committed before Law 11.689/2009, but processed under the aegis of this new legal
diploma? This way, we‘ll have as general goal the analysis of suitability of Protest for New Jury
after the appearance of the new law, and specifically: indicating its concept and peculiarities
and, under Intertemporal Law perspective, to establish its Legal Nature and effects, as well as
the doctrines and jurisprudence on the subject, beyond presenting our own considerations
about its impact on our legal system.
Key-words: Protest for New Jury. Crimes committed before Law 11.689/2009 and processed
afterwards. Intertemporal Law. Legal Nature.
296
Graduanda em Direito junto à Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). E-mail para
contato: [email protected].
297
Graduanda em Direito junto à Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). E-mail para
contato: [email protected].
298
Graduanda em Direito junto à Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) E-mail para
contato: [email protected].
467
1. INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, especificamente após a promulgação da Constituição
Federal de 1988, vem se discutindo a razoável duração do processo, bem
como os meios para se lograr este objetivo. É neste contexto que os recursos
ganham relevância, haja vista a complexidade da sistemática recursal pátria.
Em se analisando esta questão sob a ótica do Processo Penal, a
discussão apresenta contornos bem mais preocupantes, posto que tal
disciplina versa sobre direitos inalienáveis e indisponíveis do indivíduo, tais
como a liberdade, a vida, e a integridade física, entre outros. Em decorrência
destas novas preocupações e anseios, é que foi editada a Lei 11.689/2008,
trazendo consideráveis alterações para o Processo Penal e, especificamente
para o Tribunal do Júri.
Por ocasião desta nova lei, foi extinto o Protesto por Novo Júri, recurso
que sempre trouxe muita inquietação à doutrina, frente às suas peculiaridades
processuais, e à sociedade como um todo, cuja revolta se dirigia à
possibilidade que o dito recurso criava a possibilidade de um novo julgamento
em casos de crimes desumanos, amplamente divulgados pela imprensa.
Diante da relevância que este instituto processual possuía para o
Tribunal do Júri, e da repercussão reavivada pelo recente julgamento do casal
Nardoni, entendemos essencial a reflexão acerca dos efeitos sociais e jurídicos
provenientes desta alteração.
Assim, situa-se como problemática o seguinte questionamento: é
possível continuar-se admitindo o Protesto por Novo Júri em crimes praticados
antes da Lei 11.689/2009, e julgados sob a égide deste novo diploma
normativo? Apresenta-se, assim, como objetivo geral, a análise do cabimento
do Protesto por Novo Júri após o advento da nova lei, e especificamente:
indicar seu conceito e peculiaridades e, sob a perspectiva do Direito
Intertemporal, estabelecer sua natureza jurídica e efeitos.
Desta feita, sem a pretensão de esgotar a polêmica deste assunto,
através do método de pesquisa bibliográfica qualitativa, nos dedicaremos ao
468
longo deste artigo a abordar sinteticamente as transformações operadas em
nosso ordenamento jurídico pela Lei 11.689/2008, com enfoque específico para
o Protesto por Novo Júri, apontando as disposições doutrinárias e
entendimentos jurisprudenciais referentes ao mesmo, além de nossas próprias
considerações sobre suas implicações no sistema judiciário brasileiro.
2. PROTESTO POR NOVO JÚRI: SISTEMÁTICA ANTERIOR
O recurso é uma garantia do indivíduo ao Duplo Grau de Jurisdição, com
previsão implícita na Constituição Federal, com a finalidade precípua de
assegurar que as decisões proferidas pelos órgãos de primeiro grau do Poder
Judiciário não sejam únicas e imutáveis, mas que possam ser submetidas a um
juízo de reavaliação por uma instância superior.
Convém ressaltar que o Brasil, ao ratificar a Convenção Americana de
Direitos Humanos (Decreto 678/92)299, garantiu status constitucional ao Duplo
Grau de Jurisdição, vez que existe previsão expressa da garantia individual de
ter as decisões judiciais reavaliadas por instância superior, embora não seja
uma garantia absoluta, segundo entendimento do Supremo Tribunal Federal.
É nesta esteira que a discussão sobre os recursos ganha relevância,
haja vista as peculiaridades de cada instrumento recursal e as repercussões
sociais que porventura possam acarretar para a sociedade.
Dentro deste tema, surge a figura do Protesto por Novo Júri300,
fazendo-se necessário analisar suas peculiaridades, por ser um recurso que
sempre gerou controvérsias doutrinárias em virtude de suas características
atípicas. Vale ressaltar que esse recurso foi extinto com o advento da Lei
n°11.689/2008 que alterou a sistemática do Tribunal do Júri.
O PNJ era um recurso especial contra decisões tomadas pelo Tribunal
do Júri, que terminavam por impor uma nova oportunidade de julgamento,
anulando-se o anterior, sendo introduzido na legislação pátria, com o Código
299
Artigo 8º - Garantias judiciais: (...) h) direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal
superior.
300
Por questões de praticidade, o Protesto por Novo Júri passará a ser identificado neste
texto através da sigla PNJ.
469
de Processo Criminal de 1832. Posteriormente, em 1941, as alterações
introduzidas na legislação processual afetaram o PNJ, restringindo-o aos
crimes sancionados com penas de morte ou galés perpétuas.
Esse recurso, cujo uso, ao invés de ser eliminado na era republicana
quando se proscreveram aquelas penas extremas, foi ampliado, passando a
ser utilizado para casos considerados de suma gravidade, isto é, de
condenação pelo Tribunal do Júri à pena igual ou superior a 20 (vinte) anos.
Tratava-se, assim, de um recurso privativo da defesa que somente era
admitido quando a sentença condenatória estabelecia pena de reclusão por
tempo igual ou superior a vinte anos, não podendo ser utilizado mais de uma
vez, consoante os termos do revogado art. 607 do Código de Processo Penal.
Estavam legitimados a oferecer o PNJ tanto o réu, diretamente, quando
tomava ciência da sentença, como seu defensor, através de petição ou
oralmente, após a leitura da sentença penal condenatória. Não havia
necessidade de mencionarem-se razões, bastando aduzir o inconformismo do
réu,
requerendo
novo
julgamento,
verificando-se,
portanto,
que
os
pressupostos de admissibilidade desse recurso eram meramente objetivos, não
vislumbrando qualquer questão de mérito; recebido o pedido, o juiz limitava-se
a verificar os pressupostos de admissibilidade, para então designar nova data
para o julgamento, intimando-se as partes. Da mesma forma, não havia
necessidade de fundamentar a decisão judicial, haja vista a anulação do
primeiro julgamento, com designação de um segundo, já que tinha expressa
previsão legal.
Saliente-se
que
no
segundo
julgamento
havia
impedimento
à
participação dos jurados que atuaram no primeiro, requisito lógico, já que se
faz necessário assegurar
a imparcialidade dos jurados, conforme o
entendimento manifestado na Súmula 206 do Supremo Tribunal Federal.
O PNJ era, deste modo, um recurso sui generis, vez que era apreciado
pelo mesmo órgão julgador que proferiu a sentença, caracterizando-se por ser
um recurso de juízo a quo para a quo. Contrariava, portanto, o próprio conceito
do termo recurso, já que este pressupõe a apreciação por uma instância
jurisdicional superior ao juízo que proferiu a sentença recorrida, diferentemente
470
do que ocorria com o recurso em epígrafe, que era apreciado pelo mesmo
órgão julgador.
Com o advento da Lei n.º 11.689/2008, que acabou por provocar
alterações significativas na legislação processual penal, em especial quanto ao
procedimento do Tribunal do Júri, foi extinto o PNJ.
Um ponto interessante a ser destacado são os motivos que levaram à
extinção desse recurso da sistemática jurídica pátria. Vejamos os fundamentos
levantados por René Ariel Dotti, responsável pela elaboração do Anteprojeto:
Trata-se de uma imposição dos tempos modernos e da
necessidade de se aplicar a pena justa ao caso concreto.
Historicamente o protesto se impunha em face do sistema criminal do
Império cominar as penas de morte e galés perpétuas, justificando a
revisão obrigatória do julgamento. Nos tempos modernos a supressão
já foi sustentada por Borges da Rosa e pelo mais fervoroso defensor
do tribunal popular: o magistrado Magarinos Torres que, presidindo
durante tantos anos o Conselho de Sentença, averbou este recurso
de supérfluo e inconveniente. Quanto ao aspecto da pena justa,
forçoso é reconhecer que embora condenados por homicídio
com mais de uma qualificadora, muitos réus são beneficiados
com a pena de reclusão inferior a 20 anos. Tal estratégia tem o
claro objetivo de impedir o novo Júri que se realizará mediante o
simples protesto, sem necessidade do processo chegar ao
tribunal de apelação. Procura-se, com esse expediente, fugir dos
ônus de um novo julgamento, com a fatigante reencenação da
vida e da morte dos personagens do fato delituoso. (DOTTI,
1994). (grifo nosso)
Cumpre destacar que a mídia teve importante papel na abolição desse
recurso, posto que, nos últimos anos, deu destaque a casos de crimes
bárbaros, cujo disposto na legislação penal, paralelamente às condições em
que o crime foi praticado, levaria o réu a ser condenado a uma pena gravosa,
surgindo, por outro lado, a oportunidade de ser julgado novamente e, talvez,
reverter essa condenação.
Destaca-se como caso emblemático que casou estrema revolta em toda
população, com repercussão internacional, o julgamento de Vitalmiro Bastos de
Moura, o ‗‗Bida‘‘, fazendeiro que foi acusado de ser um dos mandantes e
mentor intelectual da morte da missionária Dorothy Stang, no ano de 2005. A
acusação alegava que a missionária foi assassinada porque defendia a
471
implantação de assentamentos para trabalhadores rurais em terras públicas
que eram reivindicadas por fazendeiros e posseiros da região.
O que causou espanto e revolta foi que no primeiro julgamento o réu foi
condenado a 30 anos de reclusão por tal acusação e, após o PNJ, em novo
julgamento, foi surpreendentemente absolvido, ficando a pergunta: o que teria
acontecido para uma mudança tão drástica? A sociedade clamava há muito
pela extinção do PNJ, em virtude do aumento dos índices de violência em todo
país e da revolta de ver os acusados absolvidos em segundo julgamento.
A reforma foi pautada também no anseio de tornar o processo mais
célere, o que justifica a extinção do PNJ, haja vista que a modernidade do
sistema recursal não comportava mais um recurso que só obstaculizava o
término da prestação jurisdicional, já que o primeiro julgamento era totalmente
modificado, mesmo que não houvesse nenhuma irregularidade. Assim, os
critérios de admissibilidade do recurso também geravam polêmica, por serem
meramente objetivos, sem a necessidade de fundamentação.
Outro
ponto
defendido
é
que
o
PNJ
seria
um
instrumento
inconstitucional, não proporcionando direito ao Contraditório e, muito menos, à
igualdade das partes, pois a defesa não pode ter, sozinha, direito a impetrar
recurso exclusivo, não podendo haver a concessão unilateral de direitos ou
faculdades.
Assim, mesmo com a extinção do PNJ, surgiu uma nova problemática,
em virtude da intertemporalidade da lei, vez que casos em que o crime fora
cometido antes da Lei 11.689/2008, mas cujo julgamento se deu ou
aconteceria após o advento desta Lei, traziam a celeuma jurídica acerca do
cabimento ou não do PNJ para aqueles acusados, caso preenchessem os
requisitos dos revogados artigos acerca desta revogada previsão jurídica, o
que trataremos no decorrer deste artigo.
3. DIREITO INTERTEMPORAL
Quando uma norma é posta em vigência, esta ingressa no mundo
jurídico para que produza seus efeitos num determinado lapso de tempo e um
determinado local, ensejando, portanto, a força normativa que o torna eficaz.
472
Ressalta-se que em regra uma norma jurídica encontra-se vigente até o
momento em que outra norma a revogue.
Todavia, as relações humanas que o ordenamento jurídico visa regular
se encontram em constantes câmbios históricos e sociais e, deste modo, deve
a ordem jurídica acompanhar as contínuas mudanças nos anseios da
sociedade.
É nesta circunstância que surge a problemática do Direito Intertemporal,
caracterizado pelo conflito de leis no tempo, ou seja, quando diante de uma
sucessão de normas no tempo, uma determinada ação é praticada
anteriormente da promulgação da nova lei, passando esta a disciplinar a
conduta inicialmente realizada.
É, pois neste ponto que surge o conflito entre dois dogmas jurídicos: de
um lado, encontra-se a segurança jurídica das relações constituídas sob o
amparo da lei revogada, e de outro, a nova lei que externa as novas
necessidades sociais, a progressão do regime diante da evolução da realidade
social.
Logo, podemos destacar que é nesse ponto que se situa a problemática
do manifesto trabalho, a qual consiste em esclarecer se para os delitos
praticados anteriormente à promulgação da lei nº. 11.689/2008, que extinguiu o
PNJ, e que somente foram ou serão julgados posteriormente a este advento,
ainda existe a possibilidade de interposição do meio recursal supracitado, uma
vez presentes todos os requisitos.
Para responder tal questionamento, faz-se necessário definir a natureza
jurídica da norma revogada, ou seja, cabe indagar-se se a norma que
estabelece o PNJ possui natureza puramente processual ou híbrida – penal e
processual.
Faz-se mister, no entanto, que preliminarmente ao exame da natureza
jurídica do PNJ, façamos uma análise sobre as diferenças entre uma norma
jurídica de natureza penal e uma norma jurídica de natureza processual,
apontando seus respectivos efeitos.
As normas jurídicas de natureza penal (material) caracterizam-se pela
relação que estabelecem, mesmo que indiretamente, com o jus puniendi, ou
473
seja, aquelas que criam, ampliam, reduzem ou extinguem a pretensão punitiva
estatal, alterando, desse modo, a situação de direito material frente ao jus
puniendi do Estado, inclusive as que derivam do poder de disposição do
conteúdo material dado ao particular, como por exemplo, o indulto, graça,
prescrição, entre outros. Assim dispõe o ilustre professor Fernando Capez:
Desse modo, normas que criam tipos penais incriminadores têm
natureza penal, pois estão gerando direito de punir para o Estado, em
relação a essas novas hipóteses. Normas que disciplinam novas
causas extintivas da punibilidade têm conteúdo penal, pois estão
extinguindo o direito de punir. As que aumentam ou diminuem as
penas trazem novas causas de aumento ou diminuição, estabelecem
qualificadores, agravantes ou atenuantes, modificam a pretensão
punitiva, reduzindo ou elevando a sanção penal. As que proíbem a
concessão de anistia, graça ou indulto, ou aumentam o prazo
prescricional, também possuem caráter penal, visto que fortalecem a
pretensão punitiva do Estado, tornando mais difícil a sua extinção.
Leis que criam mais causas interruptivas ou suspensivas da
prescrição também dificultam o perecimento do jus puniendi,
retardando o término do lapso prescricional, razão pela qual são
penais. (CAPEZ, 2008, p. 48).
Diante de tais considerações sobre as normas penais, estabelece a
Constituição da República de 1988, em seu art. 5º, inciso XL301, a regra de
que a lei penal não retroagirá, excetuando os casos que forem para beneficiar
o acusado, do mesmo modo dispõe o art. 2º do Código Penal Brasileiro, in
verbis: ―Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar
crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença
condenatória. Parágrafo Único – A lei posterior, que de qualquer modo
favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por
sentença condenatória transitada em julgado‖.
Assim, conclui-se que, uma vez que a nova lei seja mais prejudicial ao
réu, e que a lei revogada seja considerada a mais benéfica, continuará esta a
disciplinar os delitos cometidos durante sua vigência, ocorrendo a sua ultraatividade, respeitando, portanto, a época dos fatos.
Por outro lado, as normas jurídicas de natureza processual são aquelas
que repercutem diretamente no processo, sem guardar qualquer relação com o
direito de punir do Estado. São, portanto, as que incidem sobre o início,
301
Art. 5º, inc. XL, CR – A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;
474
desenvolvimento e fim do processo, ou seja, as que dizem respeito a meras
formas processuais, sem alterar o jus puniendi do Estado.
Neste mesmo ponto, leciona o professor Fernando Capez:
Quanto à lei que proíbe a liberdade provisória, aumenta o prazo da
prisão temporária, obriga o réu a se recolher à prisão preventiva, sua
natureza é exclusivamente, processual, já que a restrição do
processo, sem aumento ou intensificação do direito de punir. Para o
Estado, enquanto titular do jus puniendi, tanto faz se o agente
responde solto ou preso o processo. Seu direito de punir em nada
será afetado com essa situação. (CAPEZ, 2008, p. 49)
Em corolário, as normas de natureza processual não se submetem ao
Princípio da Retroatividade disposto na Carta Magna, mas sim, segundo os
termos do art. 2º302 do Código de Processo Penal, têm incidência imediata em
todos os processos, independentemente de serem mais benéficas ou não para
os acusados, respeitando, por outro lado, os atos processuais já concluídos, ao
que a doutrina denomina de Princípio do tempus regit actum, ou seja, as coisas
jurídicas devem reger-se pela norma da época em que ocorrem – o tempo rege
o ato.
Desse modo, a norma processual regula atos processuais futuros, que
ainda estão por cumprir-se ou realizar-se, independente de o processo que
regula, ter sido iniciado na vigência de outra lei. Assim manifesta-se o douto
doutrinador Tourinho Filho (2003, p. 112), afirmando que: ―enfim, uma coisa é
anterioridade da lei ao fato, e que diz respeito ao Direito Penal, e, outra, é a
anterioridade da lei ao ato, e que concerne ao Processo Penal‖.
Por outro lado, insta ressaltar que surgem no ordenamento jurídico
normas cuja natureza jurídica podemos denominar de mista, vez que abarcam
tanto disposições de natureza penal, quanto de natureza processual. Para
estes tipos de normas encontra-se pacificado o entendimento, tanto na doutrina
quanto na jurisprudência, de que deve prevalecer a orientação penal (material)
para fins de retroatividade e ultra-atividade da Lei em benefício do réu, uma vez
que encontra disposição na própria Lei Maior do Estado, enquanto que o
princípio tempus regit actum, encontra-se disciplinado em legislação ordinária,
302
Art. 2º - A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos
atos, realizados sob a vigilância da lei anterior.
475
sendo, portanto inferior aquela. Podemos citar o exemplo dado por Fernando
Capez:
No caso do réu citado por edital não comparecer, nem constituir
advogado, ficam suspensos o processo e o prazo prescricional até
que ele seja localizado para receber a citação pessoal. Nesse caso
pode-se falar, verdadeiramente, em norma híbrida, pois uma parte
tem conteúdo processual (suspensão do processo) e a outra, penal
(suspensão do prazo prescricional). [...] Como a parte penal
(suspensão da prescrição) é menos benéfica, a norma não retroage
por inteiro. (CAPEZ, 2008, p.51).
A partir da análise sobre a discussão acerca da natureza jurídica das
normas e seus respectivos efeitos, pode-se avançar nos estudos relativos ao
exame da natureza jurídica da norma que dispõe sobre o PNJ.
4. NATUREZA JURÍDICA DO PROTESTO POR NOVO JÚRI
A grande celeuma doutrinária suscitada nesta produção acadêmica
reside no questionamento sobre o cabimento da interposição do recurso do
PNJ aos delitos praticados antes da promulgação da nova lei, mas que só
foram ou serão julgados posteriormente a mesma.
Logo, a solução encontra-se no estudo do Direito Intertemporal, através
da definição da natureza jurídica da norma que estabelece o PNJ, para que
assim se possa auferir se haverá ou não a ultra-atividade da lei revogada.
Ademais, insta esclarecer que não há na doutrina entendimento pacífico
quanto à natureza jurídica desta norma, surgindo duas correntes: a primeira,
que entende ter a norma caráter híbrido, opinião defendida pelos doutrinadores
Luiz Flávio Gomes e Rogério Sanches Cunha, dentre outros, e a segunda que
compreende pelo caráter exclusivamente processual da norma, posição esta,
defendida no presente trabalho.
4.1 Primeira corrente: natureza híbrida.
Não há como se negar o caráter processual presente em qualquer
norma que estabeleça um recurso, pois este sempre será um meio processual,
476
como dispõe Câmara Leal (1943 apud Fernando Capez, 2009, p. 673): ―é o
meio processual que a lei faculta à parte ou impõe ao julgador para provocar a
reforma, ou confirmação de uma decisão judicial‖. Assim, não deixa de ter a
norma que estabelece o PNJ natureza processual.
No entanto, entendem alguns doutrinadores que esta norma possui
ainda natureza híbrida, por contemplar um direito subjetivo do réu, qual seja o
direito estabelecido na própria Constituição da República de 1988 ao duplo
grau de jurisdição disposto em seu art. 5º, inciso LV,303. Isto porque o
Princípio do Duplo Grau de Jurisdição tem caráter de norma materialmente
constitucional, sendo estabelecido, conforme já demonstrado, também na
Convenção Americana de Direitos Humanos.
Por tais circunstâncias, supostamente não poderia a norma em questão
ser considerada como norma puramente processual, mas sim como norma
processual-penal e, por possuir tal natureza, deveria prevalecer o caráter penal
da norma relativo aos efeitos da retroatividade e ultra-atividade.
Em corolário, diante de tal entendimento, o PNJ possuiria o caráter da
ultra-atividade da norma penal, consubstanciado no fato da lei revogada ter
eficácia mesmo depois de cessada a sua vigência, uma vez que se caracteriza
por ser mais benéfica do que a posterior.
Assim, em casos como no do casal Nardoni, que recentemente foram
condenados a penas maiores que 20 (vinte) anos304, supostamente
possuiriam estes direito de interposição do recurso de PNJ, uma vez que o
delito foi cometido em 29 de março de 2008, portanto, anteriormente à
promulgação da nova lei, em 9 de agosto de 2008, baseando-se este
entendimento no dito caráter híbrido desta norma.
303
Art. 5º, inc. LV da CR – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos
acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e
recursos a ela inerentes.
304
Alexandre Nardoni foi condenado à pena de 31 (trinta e um) anos, 01 (um) mês e 10
(dez) dias de reclusão, a ser cumprida inicialmente em regime prisional fechado, e à pena de
08 (oito) meses de detenção, pela prática do crime de fraude processual qualificada, a ser
cumprida inicialmente em regime semi-aberto. Anna Carolina foi condenada à pena de 26
(vinte e seis) anos e 08 (oito) meses de reclusão, a ser cumprida em regime fechado, e à pena
de 08 (oito) meses de detenção, pela prática do crime de fraude processual qualificada, a ser
cumprida inicialmente em regime semi-aberto.
477
4.2 Segunda corrente: natureza unicamente processual.
Em primeira análise, a corrente que considera a natureza da norma que
extinguiu o PNJ como híbrida - processual e material, parece acertada e
condizente com a ideologia de nosso ordenamento jurídico. No entanto,
analisando-se tais preceitos profunda e acuradamente, percebe-se que não há,
de fato, fundamentações que justifiquem que a norma extintora do referido
recurso, possua qualquer indício de natureza material, caracterizando-se em
norma híbrida.
Assim, a solução de nossa problemática perpassa, primeiramente, o
estudo da natureza dos recursos em geral, que, como se verá, é única e
exclusivamente processual.
Como já apostado, o que difere as normas materiais das processuais é a
incidência, ou não, do resultado da norma na pretensão punitiva do Estado,
alterando a situação material do acusado, bem como seu referencial de
atuação, isto é, se a lei se refere à época do fato delitivo, ou à época dos atos
processuais.
Em resumo, a lei que possui natureza material ou híbrida, é a que
influencia direta ou indiretamente na pretensão punitiva do Estado, casos em
que necessariamente aplicar-se-á a lei mais benéfica, seja através do
fenômeno da retroatividade ou da ultra-atividade da lei, em relação à época dos
fatos. Sendo norma de natureza puramente processual, influenciará no início,
desenvolvimento ou extinção do processo, sem jamais tangenciar o poder
punitivo do Estado ou o âmbito material da lide, aplicando-se à norma de
imediato, doutro modo, respeitando os atos processuais validamente
realizados.
Ora, não se pode atribuir ao recurso o poder de retirar do Estado sua
pretensão punitiva, pois não possui o condão de modificar a situação material
do indivíduo perante o poder punitivo Estatal, como ocorre nos casos de graça,
induto ou anistia, por exemplo. Pelo contrário, tão somente diz respeito ao
conteúdo formal do processo, porquanto à decisão do Conselho de Sentença;
busca-se apenas a realização de novo julgamento - ato processual, não
478
havendo no PNJ ou sendo necessária, qualquer fundamentação fática ou
jurídica que retire do Estado seu poder punitivo, sendo, assim, norma de
natureza exclusivamente processual.
Isto porque a supressão da possibilidade jurídica de um recurso, neste
caso, o PNJ, não é apta a interferir no poder ou pretensão punitiva do Estado,
retirando-lhe ou conferindo-lhe o direito de sancionar ou não o sujeito,
constituindo-se o recurso, deste modo, em mera utilização do direito de ação
decorrente do ato processual decorrente da figura da sentença.
Neste sentido, Carlos Frederico Coelho:
Há dispositivos evidentemente materiais como, por exemplo, as
disposições sobre a teoria do crime e a teoria da pena, a extinção da
punibilidade, as normas incriminadoras etc., assim como existem
normas nitidamente processuais, como aquelas que regulam os
ritos ou procedimentos, os atos e prazos processuais, os recursos,
as nulidades processuais, a sentença e a coisa julgada, a prisão e a
liberdade provisória, a competência etc. (COELHO apud Andrey
Borges de Mendonça, 2010). (grifo nosso)
Note-se ainda, que reiteradamente nossos Tribunais têm decidido pela
natureza eminentemente processual dos recursos, devendo-se este fato ser
levado em consideração para a definição da natureza jurídica do PNJ:
RECURSO
ESPECIAL.
PROCESSUAL
PENAL.
REVISÃO
CRIMINAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO CONSUMADO E TENTADO.
RECONHECIMENTO
DA
CONTINUIDADE
DELITIVA.
JULGAMENTO ANTERIOR À VIGÊNCIA DA LEI N.º 11.689/2008.
PROTESTO POR NOVO JÚRI. NOVO JULGAMENTO.
[...] 2. A recorribilidade se submete à legislação vigente na data
em que a decisão foi publicada, consoante o art. 2.º do Código
de Processo Penal. Incidência do princípio tempus regit actum.
[...] Cumpre ressaltar que a norma exclusivamente processual,
como é o caso do dispositivo em questão, se submete ao
princípio tempus regit actum, ou seja, a lei processual penal
deve ser aplicada a partir de sua vigência, conforme preconizado
no art. 2.º do Código de Processo Penal, in verbis: "A lei processual
aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados
sob a vigência da lei anterior." Assim, a norma que exclui recurso
tem vigência de imediato, sem prejuízo dos atos já praticados.
(STF. 5ª Turma. Recurso Especial 1094482/RJ. Relatora Ministra
Laurita Vaz. Julgado em 01 Setembro 2009. Publicado em: DJe 03
Novembro 2009). (grifo nosso)
Noutro
norte,
temos
que,
aparentemente,
considerando-se
o
entendimento de que os recursos possuem natureza híbrida, aplicar-se a nova
479
norma (o não cabimento do PNJ), trata-se de retroatividade de lei menos
benéfica para o réu, pois retiraria do mesmo o direito a interposição deste
recurso. No entanto, o que verdadeiramente ocorre é a aplicação imediata da
lei, o Princípio tempus regit actum.
Melhor explicando, não há retroatividade da lei menos benéfica, pois,
como disposto no art. 2º do CPC, continuam sendo respeitados todos os atos
processuais anteriores ao surgimento da nova lei, conforme o entendimento de
Tornaghi e Fernando Capez, respectivamente:
Com argúcia observa Tornaghi: Note-se bem, o que a Constituição
exige não é a aplicação da lei anterior ao delito. A norma de
Direito Processual Penal tem que ver com os atos processuais,
não com o ato delitivo. Nenhum ato do processo poderá ser
praticado a não ser na forma da lei que lhe seja anterior, mas nada
impede que ela seja posterior à infração penal. Não há, neste
caso, retroatividade da lei processual, mas aplicação imediata.
(Tornaghi apud Tourinho Filho, 2003, p. 111). (grifo nosso)
Essa corrente doutrinária encontra-se detalhadamente representada
na lição de Guilherme de Souza Nucci, a seguir transcrita:
―O protesto por novo júri não passava de uma segunda chance,
concedida ao acusado, porque se entendia que a pena fora fixada em
patamar elevado (...). Não se pode considerar o antigo direito ao
protesto por novo júri como norma processual penal material
somente pelo fato de que a sua interposição condicionava-se a
um determinado patamar de pena. Essa situação não tem o
condão de transformar a norma processual pura em norma
processual material (...). O protesto por novo júri não permitia a
soltura do acusado, nem gerava a extinção da sua punibilidade.
Em suma, deferido ou não, nenhuma conseqüência no campo
penal desencadeava. A sua utilização não afetava o direito de
punir do Estado. Aliás, cabia ao Tribunal do Júri, por intermédio
de outro Conselho de Sentença, julgar novamente o caso. Nada
mais. (CAPEZ, 2008, p. 970). (grifo nosso)
Seguindo o mesmo raciocínio supracitado, Tourinho Filho (2003, p. 113):
―Assim sendo, resumindo tudo quanto dissemos: se (sic) se tratar de norma
processual penal propriamente dita, isto é, que verse exclusivamente sobre
matéria processual, que não obstaculize a ampla defesa a que se refere a
Carta Magna, terá aplicação imediata, pouco importando se mais severa ou
não, aplicando-se, como é óbvio, também aos processos em curso‖.
Nessa esteira, se no caso concreto a sentença fosse prolatada em até 1
(um) dia antes da promulgação da Lei 11.689/2008, caberia PNJ, respeitando-
480
se o direito adquirido ao recurso com o advento da sentença válida305,
enquanto ato processual perfeito. Por outro lado, dando-se a prolação da
sentença no dia da promulgação da Lei ou depois, não caberia PNJ, pois o ato
processual que gera o direito ao recurso - a sentença - reger-se-á pela nova lei
processual, que aboliu de nosso ordenamento jurídico o recurso de que aqui se
trata.
Por fim, vale-se a primeira corrente (que defende o caráter híbrido da
norma que extinguiu o PNJ, e, portanto, a possibilidade jurídica do referido
recurso para todos os casos em que o fato delitivo tenha ocorrido antes da lei
extintiva), do argumento de que impossibilitar a utilização do recurso implicaria
em desrespeito ao Princípio do Duplo Grau de Jurisdição e à Ampla Defesa.
Note-se que o PNJ, como já devidamente exposto, era espécie de
recurso anômalo, pois era dirigido ao Juízo a quo, o mesmo que fora
responsável pela prolação da sentença recorrida. O duplo grau de jurisdição,
por sua vez, implica necessariamente que o recurso seja feito a uma instância
superior, o que obviamente não ocorre neste caso. Assim, não há que se falar
em desrespeito ao Princípio do Duplo Grau de Jurisdição ou de normas
constitucionais, vez que o PNJ é dirigido ao próprio Juízo a quo.
Ademais, o não cabimento do PNJ não retira do réu a possibilidade de
valer-se do Duplo Grau de Jurisdição, vez que subsistem outros recursos
disponíveis, tais como a apelação, que proporciona a consecução da garantia
constitucional, não constituindo, assim, cerceamento de direito subjetivo do
acusado, posto que apenas por questões de política processual, foi tão
somente modificado o rol de recursos disponíveis para o réu, em nada afetando
o poder punitivo do Estado nem o direito fundamental do indivíduo. Neste
sentido, Andrey Borges de Mendonça:
305
STF. 5ª T. Recurso Especial 1094482/RJ. Rel: Ministra Laurita Vaz. Julgado em 01
Setembro 2009. Publicado em DJe 03 Novembro 2009. [...] Vale observar que, para a
aferição da possibilidade de utilização de recurso suprimido, a lei que deve ser aplicada é
aquela vigente quando surge para a parte o direito subjetivo ao recurso, ou seja, a partir da
publicação da decisão a ser impugnada. (grifo nosso). Nesta mesma linha, Nestor Távora e
Rosmar Antonni (2009, p. 786): ―A garantia da irretroatividade da lei penal mais gravosa não
pode ser ampliada ao ponto de inviabilizar as reformas processuais penais. O direito ao
recurso só surge para o acusado no momento em que este se torna sucumbente, com a
data de definição do recurso interponível e seus consectários legais é, portanto, a sentença
(não a prática do crime)‖.
481
Em relação à suposta garantia do duplo grau de jurisdição, é
necessário relembrar que o protesto por novo júri não é dirigido ao
Tribunal. (...). Assim sendo, não há que se falar em garantia do duplo
grau de jurisdição. Ademais, a extinção do protesto por novo júri não
afeta em nada eventual duplo grau de jurisdição referente às demais
decisões do júri, eis que mantida a possibilidade de apelação das
decisões, nas hipóteses descritas no art. 593, inc. III, do CPP.
(MENDONÇA, 2010).
Em que pese a Ampla Defesa, temos que também não é desrespeitado,
pois, o próprio Princípio em tela encontra limites no próprio ordenamento
jurídico nacional. Uma vez que o PNJ foi abolido de nosso sistema, não está
incluído no direito de ação do acusado, pois, como dispõe o art. 2º do CPP, a
lei processual tem eficácia imediata. Assim, não ocorre cerceamento de defesa,
pois, como já destacado, poderá servir-se de todos os demais recursos
admitidos pela lei processual vigente, respeitando-se, desta feita, seu direito à
Ampla Defesa. Neste raciocínio, decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo:
HABEAS CORPUS. PROTESTO POR NOVO JÚRI. Alegação de que
ao tempo do crime ainda vigia dispositivo legal permitindo o recurso.
(...) Inadmissibilidade do pleito. Inteligência do artigo 2º, do CPP,
que prevê a imediata aplicação da lei processual penal. Ampla
defesa garantida, inclusive porque previsto recurso de apelação
na lei vigente. Constrangimento ilegal não evidenciado. Ordem
denegada. (TJ-SP. Habeas Corpus nº 990.09.257545-7. 5ª Câmara
de Direito Criminal. Relator: Desembargador Pinheiro Franco. 17
Dezembro 2009). (grifo nosso)
Observa-se, neste ínterim, que embora ainda seja o tema controverso, a
própria jurisprudência vem se dirigindo ao que aqui afirmamos:
O protesto por novo júri foi abolido na lei processual penal pátria. O
paciente foi julgado quando o protesto por novo júri não mais existia
como recurso. A lei processual penal obedece ao princípio de sua
aplicação imediata aos atos processuais futuros. A admissibilidade do
recurso é regida pela lei processual que está em vigor no momento
da sentença Na hipótese, quando o paciente foi julgado, estava em
vigor a Lei n° 11.689/08, a qual aboliu o recurso de protesto por novo
júri e, como a lei processual penal não retroage e nem possui ultraatividade, não há como acolher o pedido para receber o recurso. (TJSP. Habeas Corpus 990081492156. 2ª Câmara de Direito Criminal da
Comarca de Taubaté. Relatora: Almeida Braga. Julgado em: 26
Janeiro 2009. Publicado em: 10 Março 2009).
482
Recentemente, a questão do não cabimento do PNJ foi novamente
assentada em caso de grande repercussão, já mencionado neste trabalho, o
assassinato da menina Isabella pelo casal Nardoni, condenado a mais de 20
anos por homicídio doloso triplamente qualificado, decidindo o Juízo pelo não
cabimento do PNJ, diante da natureza puramente processual da norma,
conforme o exposto:
CONCLUSÃO
Em 06 de abril de 2.010, faço estes autos conclusos para o
MM. Juiz de Direito Auxiliar,DR. MAURÍCIO FOSSEN, em exercício
neste 2º Tribunal do Júri da Capital - Foro Regional I Santana. Eu,__,
Escr., subscrevi.
Processo nº: 274/08
VISTOS
1. Recebo o recurso interposto pelos réus às fls. e, e por
seus II. Defensores às fls., apenas como recurso de Apelação, por
ter sido apresentado tempestivamente, ficando afastado, no
entanto, seu acolhimento como pretensão de Protesto por Novo
Júri.
Porquanto se reconheça que se trata de matéria ainda não
pacificada pela jurisprudência pátria, (...) filia-se este julgamento à
corrente doutrinária que entende ser incabível o Protesto por
Novo Júri na hipótese dos autos.
Aqueles que entendem ser ainda cabível o Protesto por Novo
Júri em relação àqueles delitos que teriam sido praticados antes da
entrada em vigor da Lei nº 11.689/2008, baseiam-se na alegação de
que o dispositivo legal que previa a existência daquele recurso (art.
607 do CPP) possuía natureza jurídica de cunho misto, ou seja, tanto
processual, quanto penal.
Contudo, ouso discordar desse posicionamento por filiarme àquela corrente contrária que entende tratar-se de norma
jurídica com natureza exclusivamente processual.
Isto porque o referido dispositivo legal revogado que previa
a existência daquele recurso não implicava, de forma direta, na
soltura do réu quando de sua interposição ou mesmo na
extinção de sua punibilidade, posto que, caso viesse a ser
deferido, tão somente submeteria o réu a novo julgamento pelo
Tribunal de Júri.
[...] Com a reforma processual introduzida pela Lei nº
11.689/2008, foi suprimida aquela disposição legal de natureza
exclusivamente processual (protesto por novo júri), mantendo-se
apenas o recurso de apelação e, com isso, respeitado o direito
constitucional dos acusados ao exercício do duplo grau de
jurisdição, inerente ao direito à ampla defesa.
Assim, se aquela norma de cunho exclusivamente processual
deixou de existir em nosso ordenamento jurídico, essa alteração é
aplicável desde logo para todos os casos que já estejam em
andamento, ainda que o fato típico tenha ocorrido anteriormente
à entrada em vigor do novel Diploma Legal, a teor do disposto no
art. 2º do Código de Processo Penal, se naquele momento
(entrada em vigor da nova lei) o direito subjetivo (interposição do
recurso) ainda não havia sido exercido.
483
[...] Apesar de ainda incipiente nossa jurisprudência sobre o
tema, pelo fato da reforma processual que aboliu o protesto por novo
júri ainda ser bastante recente, já é possível identificar uma clara
tendência perante o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo no sentido do posicionamento aqui adotado (...).
[...] Portanto, como se vê, quando surgiu para os réus o
direito subjetivo à interposição do recurso, em decorrência da
prolação da sentença condenatório pelo Tribunal do Júri em
27.03.2010, já havia entrado em vigor, de há muito, a Lei nº
11.689/2008, que havia revogado o art. 607 do Código de
Processo Penal, motivo pelo qual não fazem mais jus à utilização
daquela extinta via recursal, diante de sua natureza
exclusivamente processual, a teor do disposto no art. 2º do
Código de Processo Penal.
[...] São Paulo, 06 de abril de 2.010.
MAURÍCIO FOSSEN
Juiz de Direito (grifo nosso)
Diante
destas considerações,
é
possível concluir que,
mesmo
preenchendo os requisitos necessários para interposição do PNJ, não caberá o
recurso nos casos em que, a despeito de dar-se a materialidade do fato delitivo
antes da Lei 11.689/2008, a prolação da sentença - ato processual que faria
surgir o direito ao PNJ, se deu após sua extinção, em virtude do caráter
puramente processual da norma que aboliu o referido recurso de nosso
ordenamento jurídico, e, portanto, de sua imediata aplicação, esperando-se
que assim se pacifique a doutrina e jurisprudência, por ser o entendimento
condizente com as normas constantes de nosso ordenamento jurídico.
5. CONCLUSÃO
Com o advento da Constituição Federal de 1988, passou-se a discutir a
celeridade processual, em paralelo aos muitos direitos inalienáveis e
indisponíveis do indivíduo tratados no estudo do Processo Penal, buscando-se,
assim, que o ordenamento jurídico acompanhe as mudanças ocorridas na
sociedade, que justificam, ou não, a sua perenização em nossa sistemática
jurídica.
Por este motivo é que foi editada a Lei 11.689/2008 que, dentre outras
alterações, extinguiu o Protesto por Novo Júri, diante de sua natureza polêmica
e incompatibilidade com a nova realidade social e jurídica contemporânea, vez
que este recurso foi criado para reavaliar casos com penalidades muito
484
gravosas, tais como a pena de morte ou perpétua, situações que já não são
mais abarcadas pelo Sistema Judiciário Brasileiro, não se justificando a sua
manutenção como meio recursal em nosso ordenamento.
Embora não restem dúvidas quanto à necessidade e propriedade da
extinção do Protesto por Novo Júri, diante de todo o já explicitado, tal
modificação trouxe também novas celeumas jurídicas situadas no campo do
Direito Intertemporal, em razão daqueles processos que ainda estão em
andamento ou que se iniciaram após o advento desta lei, mas cuja
materialidade do fato criminoso se deu antes da mesma, surgindo várias
correntes acerca da aplicabilidade ou não do recurso para tais casos.
Existe respeitável doutrina, composta por eminentes doutrinadores, que
admitem o cabimento do Protesto por Novo Júri nestas situações, em virtude
da sua suposta natureza jurídica híbrida – penal e processual – e conseqüente
ultra-atividade da norma, por ser mais benéfica ao réu que a nova lei, pois esta
norma decorreria do direito subjetivo do acusado ao duplo Grau de Jurisdição e
Ampla Defesa.
Data venia, nos reservamos do direito de discordar dos doutos juristas,
por entendermos que não se trata de norma híbrida, mas puramente
processual, não havendo que se falar em ultra-atividade da lei, mas somente
de aplicação imediata, sem que haja, de tal modo, ofensa ao Duplo Grau de
Jurisdição ou Ampla Defesa, posto que o Protesto por Novo Júri era dirigido ao
próprio juízo a quo, e não para uma instância superior, e que sua extinção de
nosso ordenamento não retirou do acusado o direito aos demais recursos ainda
vigentes em lei.
Insta esclarecer que esta norma possui caráter exclusivamente
processual tendo-se em vista que não afeta, nem mesmo indiretamente, o
poder punitivo do Estado, tratando-se aqui tão somente de realização de novo
julgamento, o que faz cair por terra o entendimento de que seria norma mista,
pois, se o fosse deveria ser apta a modificar a situação material do acusado
perante o processo e a pretensão punitiva do Estado, o que obviamente não
ocorre neste caso.
485
Ademais, a não aplicação do Protesto por Novo Júri a situações
jurídicas de que aqui se trata não afeta de forma alguma o direito subjetivo do
indivíduo à Ampla Defesa e ao Duplo Grau de Jurisdição, porque não retira
dele o direito de utilizar-se de outros instrumentos recursais, tais como a
apelação, conforme vem ocorrendo em situações hodiernas.
Cumpre ressaltar que este já é um entendimento que vem se
assentando na jurisprudência dos nossos Tribunais, conforme se pode
observar no recente julgamento do casal Nardoni, em que foi denegado o
pedido de Protesto por Novo Júri, recebendo-se o recurso apenas como
Apelação, em uma brilhante decisão do Douto Magistrado responsável.
Resta clara, portanto, a natureza processual da norma em estudo, e a
patente plausibilidade de seu não cabimento nos crimes cometidos antes da
promulgação da Lei 11.689/2008, mas que foram processados e/ou julgados
somente após o advento da mesma, não se reconhecendo a ultra-atividade da
lei antiga, posto que tal princípios não se aplica a norma de caráter processual,
pois sua incidência e aplicação devem ser imediatas, atingindo todos os
processos futuros e em andamento.
6. REFERÊNCIAS
BRASIL. Código de Processo Penal: Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de Outubro
De 1941. Organização do texto: Anne Joyce Angher. Vade Mecum Acadêmico
de Direito. 7ª Ed. São Paulo: Rideel, 2009.
_____________ Constituição da República Federativa do Brasil,
promulgada em 5 de outubro de 1988. Organização do texto: Anne Joyce
Angher. Vade Mecum Acadêmico de Direito. 7ª Ed. São Paulo: Rideel, 2009.
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal parte geral. Vol. 1. 12º ed. São
Paulo: Editora Saraiva, 2008.
_____________ Código de Processo Penal Comentado. 8ª Ed. São Paulo:
Editora RT, 2008.
_____________ Curso de Processo Penal. 16º ed. São Paulo: Editora
Saraiva, 2009.
COELHO, Carlos Frederico. Ob. cit, V. 1, p. 99. in MENDONÇA, Andrey
Borges de. O Protesto por Novo Júri e o Casal Nardoni: um estudo sobre a
486
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José da Costa Rica, 1969. Disponível em:
http://www.justica.sp.gov.br/downloads/biblioteca/Tratado%20Internacional%20
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DOTTI, René Ariel. Anteprojeto do Júri. Revista dos Tribunais, v. 702, abr.
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Casal Nardoni: um estudo sobre a aplicação da lei processual penal no tempo.
Março
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MENDONÇA, Andrey Borges de. O Protesto por Novo Júri e o Casal
Nardoni: um estudo sobre a aplicação da lei processual penal no tempo.
Março
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2010.
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em:
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=14604 Acesso em: 22 Mar 2010.
STF. 5ª Turma. Recurso Especial 1094482 - RJ. Ementa: RECURSO
ESPECIAL. PROCESSUAL PENAL. REVISÃO CRIMINAL. HOMICÍDIO
QUALIFICADO CONSUMADO E TENTADO. RECONHECIMENTO DA
CONTINUIDADE DELITIVA. JULGAMENTO ANTERIOR À VIGÊNCIA DA LEI
N.º 11.689/2008. PROTESTO POR NOVO JÚRI. NOVO JULGAMENTO.
Relator. Min. Laurita Vaz. Acórdão publicado no DJ 03.11.2009 PP.
TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito
Processual Penal. 3ª Ed. Rev. Ampl. e Atual. Salvador: Editora Jus Podivm,
2009.
TJ-SP. 2ª Câmara de Direito Criminal da Comarca de Taubaté. Habeas
Corpus 990081492156. Relator Min. Almeida Braga. Acórdão publicado no DJ
10-03-09 PP.
TJ-SP. 5ª Câmara de Direito Criminal. Habeas Corpus nº 990.09.257545-7.
Ementa: HABEAS CORPUS. PROTESTO POR NOVO JÚRI. Relator: Des.
Pinheiro Franco. Acórdão publicado no DJ 17.12.2009.
TORNAGHI. Processo Penal. V. 1. p. 42. in TOURINHO FILHO, Fernando da
Costa. Processo Penal. Vol. 1. 25ª Ed. Ver. Atual. São Paulo: Editora Saraiva,
2003.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. Vol. 1. 25ª Ed. Ver.
Atual. São Paulo: Editora Saraiva, 2003.
487
ÚLTIMA INSTÂNCIA. Leia a íntegra da decisão que negou novo júri para o
casal
Nardoni.
Disponível
em:
http://ultimainstancia.uol.com.br/noticia/LEIA+A+INTEGRA+DA+DECISAO+QU
E+NEGOU+NOVO+JURI+PARA+O+CASAL+NARDONI_68724.shtml
em: 07 Abr 2010.
Acesso
488
TEORIA DA CO-CULPABILIDADE NO
ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Andréa Guimarães de Faria306
Camilla Alves de Farias307
RESUMO
Este trabalho apresenta a Teoria da Co-culpabilidade como forma de
humanização e democratização da pena e de que maneira ela poderia ser
aplicada no ordenamento jurídico brasileiro. O desenvolvimento do artigo se
deu através de pesquisas teóricas, tendo como fonte livros de especialistas na
área, além de artigos de juristas renomados. Tem por objetivo fundamentar a
teoria da co-culpabilidade e alertar para a importância de sua aplicação.
Palavras-chave: Teoria da Co-culpabilidade. Humanização da pena. Inexigibilidade de
conduta diversa.
ABSTRACT
This work presents the Theory of Co-culpability as a way of humanizing and
democratizing the penalty and how it could be applied in the Brazilian legal
system. The development of the article was through theoretical research,
having books of specialists in the area as the source, besides articles of
renowned jurists. Aims to support the Theory of Co-culpability and alert to the
importance of its application.
Key-Words: Theory of Co-culpability.
diverse behavior.
Humanization of the sentence. Unenforceability of
306
Bacharelando de Direito da Universidade Estadual da Paraíba. E-mail:
[email protected]
307
Bacharelando de Direito da Universidade Estadual da Paraíba. E-mail:
[email protected]
489
1. INTRODUÇÃO
A Teoria da Co-Culpabilidade é um tema bastante controverso, que por
diversas vezes recebe críticas por parte da doutrina. Dizem principalmente que
ela pode vir a firmar o entendimento que a criminalidade surge da pobreza,
além da possibilidade de afetar a segurança jurídica pela avaliação subjetiva do
juiz no caso concreto. Tais afirmações podem ser equivocadas quando
observada a real proposta da Teoria da Co-Culpabilidade: solidificar um Direito
Penal garantista e em consonância com a constituição, que trate o agente
hipossuficiente humanamente, de modo que a pena seja proporcional à
reprovabilidade de sua conduta em face ao contexto social vivenciado por ele,
através da partilha do seu ônus com o Estado.
Mister lembrar que a Teoria da Co-Culpabilidade ameniza apenas a
situação de quem provadamente sofreu diversas carências no âmbito social, o
que contribui para uma formação deficiente e propensa a influências do meio.
Não afirmamos com isso que todos os marginalizados, no sentido lato da
palavra, serão suscetíveis de cometer crime, incapazes de resistir a toda sorte
de necessidades. Entretanto, notadamente existem aqueles que são, e é
justamente para eles que deve ser aplicada a referida teoria, como paliativa às
omissões estatais.
2. A CULPABILIDADE COMO FATOR DE RESPONSABILIZAÇÃO PENAL
Evidenciado a existência do crime através do exame da tipicidade e da
ilicitude, passamos para a fase de atribuição de juízo de valor que permitirá a
responsabilização do autor e o cálculo da pena com base no grau de
reprovabilidade da ação. A esta valoração se dá o nome de culpabilidade, que
seria o ―juízo de censurabilidade e reprovação exercido sobre alguém que
praticou um fato típico e ilícito.‖ (CAPEZ, 2008, p. 299).
Neste tema abre-se espaço para a teoria da co-culpabilidade, a qual a
responsabilização pode ser compartilhada com o Estado devido a sua falta de
atuação no campo social, surgindo a possibilidade da atenuação ou até mesmo
exclusão da pena, uma vez que se o hipossuficiente houvesse recebido
490
amparo através de ações positivas que o emancipassem, possivelmente não
teria cometido a infração penal.
3. TEORIA DA CO-CULPABILIDADE
O conceito de co-culpabilidade provavelmente foi desenvolvido por Jean
Paul Marat, médico, não jurista, em 1799. Em contraposição ao pensamento
kantiano, afirmou que a pena mais justa seria a talional, mas para que esta
proposição fosse verídica seria necessário a observância de uma sociedade
justa e igualitária.
Não é difícil perceber, desde a época que foi concebida a teoria, que a
igualdade e justiça social ficaram num plano puramente ideal e nunca foi
efetivada. Mediante este fato, questiona-se o caráter retributivo da pena, uma
vez que parece injusto apreciar o mesmo grau de reprovabilidade a pessoas
que
tiveram
oportunidades
distintas,
afetando
a
capacidade
de
autodeterminação do indivíduo na sociedade.
É importante lembrar que o Brasil tomou feições de Estado Democrático
Social de Direito, já que a constituição cidadã de 1988 atribuiu a ele não só o
dever de apoiar a justiça social e o bem estar da pessoa humana, mas o de
assegurá-los, mediante a sua efetiva atuação no meio social.
Deste modo, observando a omissão estatal nas suas obrigações
constitucionais de prover condições básicas para o desenvolvimento e sustento
humano, como saúde, educação e moradia, é razoável admitir que o Estado
assuma uma parte da responsabilidade pelos atos ilícitos praticados pelo
cidadão, se observado que a situação em se encontra este é aquém do que
considerado digno para a existência humana, e que em razão disto foi
praticado uma conduta criminosa.
Se houvesse uma responsabilização do Estado pelo cometimento do
crime,
o
grau
de
reprovação
sofrido
pelo
agente
seria
menor
e
consequentemente o cálculo da pena diminuiria.
Então podemos dizer que a co-culpabilidade:
Trata-se da responsabilidade conjunta do Estado sobre os atos
praticados por seus cidadãos, mormente quando estes sofreram
491
menosprezo em seus direitos fundamentais por parte de um Estado
omisso no campo social. E assim sendo, nada mais justo que repartir
com o agente infrator da lei parte da pena a ele imposta pelo próprio
Estado, assumindo sua parcela de responsabilidade e, por
conseqüência, diminuindo o quantum da pena aplicada ao autor do
delito. (CONSENTINO, 2006)
A diminuição da pena ou até mesmo a sua exclusão nestes casos seria
uma forma de construir um direito penal mais igualitário, justo e humano.
De fato as idéias aqui apresentadas têm um caráter inovador, mas de
nada adianta se não houver meios para concretizar seus preceitos.
A partir de agora passaremos à discussão de como implementar esta
teoria
no ordenamento jurídico brasileiro apresentando soluções legais e
supralegais.
4. APLICAÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
A apreciação do cálculo da pena é dividida em três fases. A primeira é a
fase de ―pena base‖, em que o juiz deve observar os aspectos subjetivos
relacionados ao autor, às circunstâncias e à vítima, previstos no artigo 59 do
Código Penal, para estabelecer uma pena suficiente que esteja dentro dos
limites da lei. Embora aí já haja uma análise subjetiva com relação à culpa no
caso concreto, ainda não abre espaço para o exame da co-culpabilidade.
Na segunda fase da dosimetria há a observância dos fatores atenuantes
ou agravantes. Os artigos que tratam de circunstâncias atenuantes são os 65 e
66 do CP, porém apenas o 65 é de cunho obrigatório, devendo sempre ser
observado pelo juiz. Ele tipifica as possibilidades em que há a diminuição da
pena, não deixando espaço para avaliação subjetiva do julgador.
Já o artigo 66, de cunho não obrigatório, prevê que situações relevantes,
anteriores ou posteriores ao crime, não previstas em lei poderão reduzir a
pena. É a partir deste artigo que poderá ser implantada a teoria da coculpabilidade.
Os casos em que a teoria da co-culpabilidade pode se enquadrar são
aqueles cujas situações relevantes anteriores é a omissão do Estado, que não
492
garantiu, apoiou e promoveu o desenvolvimento social de forma igualitária,
digna e eficaz.
Como é possível esperar que alguém que não obteve oportunidades na
vida para desenvolver-se integramente, que tem carências de ordem
educacional, higiênica e econômica tenha a mesma visão acerca da realidade
de outra que sempre foi assistida? É realmente possível esperar outra atitude
que não contrarie o direito mediante situações tão adversas as quais grande
parte da população brasileira vivencia?
Diante dessas indagações é que se faz tão plausível a aplicação da
teoria da co-culpabilidade.
5. INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA
A teoria aceita da culpabilidade, que é a normativa pura, afirma que ela é
composta por três elementos: a imputabilidade, a potencial consciência de
ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa.
A exigibilidade de conduta diversa foi fundamentadora do novo conceito
de culpabilidade como a reprovação da conduta praticada e não como simples
liame psicológico entre a conduta e o resultado. Ela deve ser observada dentro
de um conceito de normalidade das circunstâncias, isto é, a obrigatoriedade de
comportamento conforme o direito só pode ser exigida dentro de um quadro
normal de situações.
Em contrario sensu surge o conceito de inexigibilidade de conduta
diversa, em que não se pode exigir do autor conduta diferente da praticada se
a situação for adversa, culminando na exculpação ou na inculpabilidade da
ação. Legalmente há duas previsões no código penal elencados no artigo 22: a
coação moral irresistível e em caso de estrita obediência a ordem de superior
hierárquico.
A doutrina majoritária só admite o uso da inexigibilidade legalmente, pois
alegam que a discricionariedade do juiz pode prejudicar a segurança jurídica.
Este entendimento acaba se tornando um entrave para a concretização da
493
teoria da co-culpabilidade, uma vez que várias outras situações são excluídas
da possibilidade de aplicação da inexigibilidade.
Entretanto, cremos que é possível a utilização da inexigibilidade de
conduta diversa observando cada caso concreto, em observância à falta de
atuação do Estado, este podendo assumir uma parcela da culpa do agente. A
utilização de critérios supralegais como causas dirimentes fazem parte da
estrutura complexa de culpabilidade, que responsabiliza de acordo com o grau
de reprovabilidade. Ora, não é coerente considerar totalmente responsável
alguém cuja vida foi permeada por desigualdades, não sendo observadas
ações positivas estatais para sua auto-afirmação, muito menos há de se
considerar totalmente reprovável a ação do agente que comete um crime por
não ser capaz de resistir às carências de ordem socioeconômicas que lhe são
impostas todo dia.
A inexigibilidade de conduta diversa é capaz de levar a igualdade
jurídica ao direito penal, e mesmo que ainda não tenha previsão legal, é uma
maneira de viabilizar a aplicação da Teoria da Co-Culpabilidade, humanizando
a pena.
6. CONCLUSÃO
Diante
do
já
exposto,
nota-se
a
extrema
razoabilidade
a
instrumentalização da Teoria da Co-Culpabilidade como forma de garantir um
Direito Penal mais isonômico. Embora ainda seja distante da realidade
brasileira, com apenas alguma discreta utilização dela pelos juízes do Rio
Grande do Sul, já há previsões legais nos códigos penais de outros países da
América Latina, como Argentina (artigo 41, inciso II) e Peru (artigo 45, inciso I),
o que denota que paulatinamente o seu uso vai sendo entendido como
necessário pelo legislador, para que dentro da esfera penal também se
efetivem os direitos fundamentais, pois estes devem permear e orientar todos
os ramos do direito.
494
7. REFERÊNCIAS
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de direito penal brasileiro: parte geral.
5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte geral. 12. ed. São Paulo:
Saraiva, 2008. V. 1.
RODRIGUES, Cristiano. Temas controvertidos de direito penal. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2009.
MIRABETE, Julio Frabini. Manual de direito penal. 21 ed. São Paulo: Atlas,
2004.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 8. ed.
São Paulo: Saraiva, 2003. V. 1.
CONSENTINO, Luís Cláudio Senna. A teoria da co-culpabilidade na
perspectiva
do
Estado
Democrático
de
Direito.
Disponível:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9206 [2006]> Acesso: 29 maio
2009.
495
TRANSAÇÃO PENAL: Breves considerações acerca de seus
pontos controvertidos
Kalina Lígia Pereira Clementino308
Rochanna Mayara Lúcio Alves Tito309
Thaise Sales Urtiga de Farias310
Resumo
A transação penal é um instituto criado pela Lei 9.099/95, resultado de previsão constitucional
do artigo 98, inciso I, da Constituição Federal de 1988. A utilização da transação penal para a
aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas poderá ser proposta pelo Ministério
Público. Seu objetivo maior é a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena
não privativa de liberdade.
Apesar de sua enorme contribuição para a solução de alguns problemas, como por exemplo, a
lotação carcerária e a alta demanda de processos no poder judiciário, muitas são as dúvidas e
discussões que norteiam esse instituto.
(Palavras- chave: transação penal; lei 9.099/95; aplicação imediata)
Abstract
Criminal transaction is a institute created by the Law 9.099/95, consequence of constitutional
forecast of article 98, interpolated proposition I, of the 1988 Federal Constitution. The utilization
of the criminal transaction in restrictive penalty of rights or fines immediate application could be
propose by the Public Prosecution Service. The main goal is the reparation of the damages
suffered for the victim and the application from not privative penalty of freedom.
Despite the contribution to problems solutions, such as jail capacity and the high demand of
processes in the judiciary power, several doubts e discussions still remains about this subject.
(Keywords: criminal transaction; law 9.099/95; immediate application)
308
Estudante do 10º período do Curso de Direito da Universidade Estadual da Paraíba. Email para
contato: [email protected]
309
Estudante do 10º período do Curso de Direito da Universidade Estadual da Paraíba. Email para
contato: [email protected]
310
Estudante do 10º período do Curso de Direito da Universidade Estadual da Paraíba. Email para
contato: [email protected]
496
15. INTRODUÇÃO
A criação dos Juizados Especiais Criminais se deu pela Lei 9.099/95, e
trouxe para o direito brasileiro uma nova ordem jurídica: o da justiça criminal
consensual, fato este inédito no direito pátrio. Representou uma mudança sem
precedentes no cenário penal-processual, sem esquecer a importância dos
seus efeitos e objetivos processuais civis e de natureza cível material
Previstos no artigo 98, inciso I, da Constituição de 1988, os Juizados
Especiais Criminais foram criados com competência para a "conciliação, o
julgamento e a execução de infrações penais de menor potencial ofensivo". O
objetivo da norma constitucional foi o de propiciar uma justiça criminal mais ágil
e mais adequada à conjuntura social em um Estado democrático, simplificando
procedimentos e impedindo o desgaste do acusado pelo processo penal.
Um dos institutos criados pela Lei 9.099/95 foi o da transação penal,
objeto de estudo deste trabalho. Sergio Turra Sobrane define a transação
penal:
O ato jurídico através do qual o Ministério Público e o autor do fato,
atendidos os requisitos legais, e na presença do magistrado, acordam
em concessões recíprocas para prevenir ou extinguir o conflito
instaurado pela prática do fato típico, mediante o cumprimento de
uma pena consensualmente ajustada. (SOBRANE, 2001)
16. TRANSAÇÃO PENAL
2.1 Conceito
O artigo 76 da Lei 9099/95 define transação penal como a aplicação
imediata de pena restritiva de direitos ou multas, ao dizer que havendo
representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada,
não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a
aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multa, a ser especificada na
proposta.
Segundo Dotti (2004, p. 433), a transação penal é medida alternativa
que visa impedir a imposição de pena privativa de liberdade, mas não deixa de
497
constituir sanção penal. Como o próprio dispositivo claramente estabelece, a
pena será aplicada de imediato, ou seja, antecipa-se a punição. E pena no
sentido de imposição estatal, consistente em perda ou restrição de bens
jurídicos do autor do fato, em retribuição à sua conduta e para prevenir novos
ilícitos,
Muitos doutrinadores acham que com a criação dos juizados especiais,
especificamente os criminais, foram inseridos no sistema jurídico alguns
institutos benéficos ao réu, com o intuito de conferir tratamento diferenciado
aos autores de crimes considerados de menor potencial ofensivo. Evitando,
assim, que infratores de pequena periculosidade sejam submetidos ao
desgastante trâmite de um processo penal, buscando alternativas mais
eficazes à reeducação e à ressocialização do autor do que uma pena privativa
de liberdade.
O conceito de menor potencial ofensivo encontra-se, atualmente,
definido no artigo 61 da Lei 9.099/95 como "as contravenções penais e os
crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 anos, cumulada ou
não com multa". Tal patamar, inicialmente fora previsto em 1 ano, na redação
original da Lei, posteriormente aumentado para 2 anos, na previsão da Lei
10.259/01, e unificado pela Lei 11.313/06.
Damásio de Jesus (1995, p. 62) diz tratar-se de um negócio entre o
Ministério Público e a defesa, possibilitando-se ao juiz, de imediato, aplicar uma
pena alternativa ao autuado, justa para a acusação e defesa.
Quando o legislador, no art. 76 da Lei 9.099/95, fala em aplicação
imediata da pena, ele não quis dizer pena, mas sim ―medida penal‖, pois só é
possível aplicar uma pena no Brasil depois de instaurado o devido processo
legal. Na transação penal o autor do fato aceita a proposta do Ministério
Público para não ser processado, portanto não houve processo. Então o que
ele aceitou não foi uma pena, mas uma ―medida‖ a ser cumprida para que se
evite um processo. Nesse novo modelo, não existe acusação, ou seja, o autor
do fato não reconhece sua culpa ao aceitar a proposta feita pelo Ministério
Público, apenas conforma-se com uma medida penal para que não venha a ser
acusado e processado criminalmente.
498
Luiz Flávio Gomes, externa a sua preocupação com o instrumento:
Ao se permitir uma facilitação de pronta reabilitação ao infrator (o que
sinceramente não consigo vislumbrar com a mesma clareza e
autenticidade); economizam-se recursos humanos e materiais. Em
contra posição, e com procedência inequivocamente maior aos meus
olhos, há um exército de desvantagens do porte do sacrifício do
princípio da presunção de inocência (que adquire um caráter farisaico
no sistema norte-americano atua!), da verdade real, do contraditório,
do devido processo legal; há, ademais, o risco das injustiças, da
flagrante desigualdade das partes, da falta de publicidade e de
lealdade processual, dentre tantos outros (GOMES, 1995, p. 88-109).
Acreditamos que a pena aplicada na transação penal não tem caráter
punitivo, mas sim de uma medida penal que pode ser aceita de forma
voluntária pelo autor do fato, evitando assim o processo sem a admissão de
culpa ou de responsabilidade civil. Se houvesse o sentido de punição, só
poderia ser aplicada depois do devido processo legal. Tanto é assim que a
própria lei n. 9099/95 estabelece que a aceitação, pelo autor da infração da
proposta do Ministério Publico de imediata aplicação de uma medida restritiva
de direitos ou multa não importará em reincidência, sendo registrada apenas
para impedir novamente o mesmo benefício no prazo de 5 (cinco) anos (art. 76,
par. 4º).
2.2 Requisitos
Para a transação penal, há requisitos a serem observados, preenchidos.
Requisito prévio é a existência das condições da ação, não se admitindo a
apresentação de proposta se o caso determina o arquivamento do
procedimento investigatório.
Ademais, a partir da criação do estudado instrumento, não se admite sua
apresentação quando houver dúvidas quanto à autoria, materialidade,
existência do fato típico e ilícito. Ao contrário da análise que se faz no momento
do oferecimento da denúncia, informada pelo princípio in dubio pro societate, a
transação penal deve ser informada pelo princípio in dubio pro reo, ou seja, na
dúvida não se pode admitir a aplicação imediata de sanção penal, sob pena de
se montar princípios constitucionais diversos. Aqui, sim, justifica-se o temor da
499
flagrante desigualdade das partes (GOMES, 1997, p. 88-109). Os demais
requisitos estão estabelecidos no artigo 76, parágrafo 2°, da Lei 9.099/95.
Se o autor do fato não preencher os requisitos legais para se beneficiar
com a transação penal (art. 76) - não sendo caso de arquivamento - o promotor
de justiça oferecerá a denúncia, momento em que poderá, se o denunciado
preencher os requisitos, oferecer proposta de suspensão condicional do
processo (art. 89). Não tendo o autor do fato direito a nenhum desses
benefícios (ou não sendo estes aceitos), a denúncia será recebida e o
processo seguirá normalmente no Juizado Especial Criminal.
Nesse caso, não há razão para que o feito seja remetido para Justiça
Comum. Se a infração for de menor potencial ofensivo, em regra, será
processada no Juizado Especial Criminal.
Ressalte-se que, em vez do inquérito policial, para fundamentar os
procedimentos do Juizado Especial Criminal, é lavrado o chamado TCO (termo
circunstanciado de ocorrência), de acordo com o artigo 69 da Lei 9.099/95.
É mister que o acusado seja primário e tenha bons antecedentes, não
tenha sentença condenatória definitiva com trânsito em julgado porque milita ao
seu favor a presunção da inocência; da data da infração, o acusado não pode
ter sido beneficiado pela transação penal a menos de cinco anos; não
indicarem os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, em
como os motivos e as circunstâncias, ser necessária e suficiente a adoção da
medida.
O reincidente, que tenha condenação anterior, com sentença definitiva,
qualquer que seja o lapso temporal, impede a propositura da transação penal,
por parte do Ministério Publico. Com isso, observamos que a lei dos Juizados
Especiais não exige a reincidência conforme consta nos artigos 63 e 63 do
Código Penal (ex.: inciso I do artigo 64 do CP, que diz: ―não prevalece a
condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a
infração posterior tiver decorrido período de tempo superior a 5 (cinco) anos,
computado o período de prova da suspensão ou do livramento condicional, se
não ocorrer revogação‖).
500
É importante ressaltar que o inciso I do art. 76 exige a condenação
anterior de crime, não cabendo as penas transitadas em julgado de
contravenções penais. Sendo assim o autor do fato que tenha sido condenado
por contravenção penal poderá ser beneficiado pela transação penal.
Quando a ação penal for publica incondicionada, a transação penal
independerá da conciliação civil, enquanto que na ação penal publica
condicionada, só poderá existir transação penal se restar frustrada a tentativa
de acordo entre a vítima e o autor do fato, e a vítima oferecer a representação.
2.3 A Proposta Inicial
Um traço da proposta importante da transação penal é a existência de
proposta do Ministério Público. Não se pode idealizar uma transação,
essencialmente bilateral, sem a participação do órgão do Ministério Público,
que é titular privativo da ação penal (art. 129, I, CF).
A proposta da transação penal é realizada pelo representante do
Ministério Público, quando este entender cabível. Essa proposta consistirá na
aplicação, de imediato, de pena restritiva de direitos ou multa especificada, não
podendo a proposta ser imprecisa ou genérica.
O Promotor de Justiça tem discricionariedade na hora de fixar a escolha
da sanção penal a ser aplicada ao autor da infração. Porém, essa fixação deve
obedecer a certos parâmetros, como a observância ao autor do fato (ex.:
personalidade, conduta social), a finalidade social da pena, fatores referentes à
infração praticada (ex.: motivo do cometimento da infração, conseqüências).
Quando o Promotor promover a pena restritiva de direito, essa escolha
estará limitada ao que versa o artigo 43 do Código Penal, podendo ser a
prestação de serviços a comunidade, interdição temporária de direitos e
limitação de fim de semana. Essa pena restritiva de direito é utilizada sempre
como substitutiva da pena privativa de liberdade, tendo inclusive a mesma
duração (art. 55 do Código Penal).
Já na aplicação da pena pecuniária, o valor da mesma deverá levar em
consideração a situação econômica do autor do fato.
501
2.4 Aceitação da Transação Penal
Amparado pelo princípio da ampla defesa, há a necessidade da
aceitação da proposta de transação penal tanto pelo autor da infração, como
pelo seu defensor. Isso se dá com o objetivo de preservar a defesa técnica,
não podendo a aceitação de um prevalecer sobre a negativa do outro. Esse
posicionamento vem sendo defendido pelo STF e STJ. Vale ressaltar, porém,
que já houve entendimento contrário.
2.5 Homologação da Transação Penal
Quando a proposta da transação penal for aceita, deverá então ser
submetida ao acolhimento e homologação pelo juiz. Se este acolher a
proposta, deverá então aplicar a pena decorrente do acordo entre o MP e o
autor da infração. Esta pena aplicada não gerará reincidência, não terá efeitos
civis e nem constará de certidão de antecedentes criminais. Haverá somente o
impedimento da concessão do beneficio ao autor do fato, pelo prazo de cinco
anos.
Nesse momento, o juiz analisará tanto a legalidade da proposta
realizada pelo Ministério Público, como a aceitação da proposta por parte do
autor do fato e de seu defensor. Se estiverem presentes os requisitos legais
para a propositura da transação e os pressupostos para a efetuação da
proposta, o Juiz homologará a sentença. Caso não estejam presentes os
requisitos acima citados, o Juiz não acolherá a proposta do MP e não
homologará a transação penal. De ambas as decisões, caberá a interposição
do recurso da apelação.
De acordo com o princípio da oportunidade regrada, caso o Juiz não
concorde com o mérito da elaboração da proposta pelo MP e a aceitação do
autor da infração, poderá se utilizar, por analogia, do artigo 28 do Código de
Processo Penal. Isso ocorre por ser função privativa do Órgão Ministerial a
propositura da ação penal, não podendo o Julgador fazê-la, pois estaria ferindo
502
os princípios da imparcialidade do Juiz, bem como o do devido processo legal e
sistema acusatório.
Ao longo do exposto, percebe-se a discricionariedade do Ministério
Público de transacionar a pena a ser aplicada ao autor do fato. A transação
penal pressupõe consenso entre as partes, não podendo de forma alguma ser
imposta a qualquer delas pelo órgão julgador.
Durante certo período, existiu a discussão da possibilidade da realização
de transações penais mediante iniciativa dos juízes ou provocação da defesa,
chamadas de transação ex officio. Porém, o Supremo Tribunal Federal vem
decidindo que as propostas da transação penal são exclusivas do Parquet, e
não direito público subjetivo do acusado.
Como exemplo de acórdão, o STF decidiu:
RE492087 / SP - SÃO PAULO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO.
Relator(a): Min. CARLOS BRITTO. Julgamento: 19/09/2006 Órgão
Julgador: Primeira Turma
EMENTA: CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. RECURSO
EXTRAORDINÁRIO.
JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS. PROPOSTA DE TRANSAÇÃO
PENAL. ARTIGO 76 DA LEI Nº 9.099/95. INICIATIVA. MINISTÉRIO
PÚBLICO. A TRANSAÇÃO PENAL PRESSUPÕE ACORDO ENTRE
AS PARTES, CUJA INICIATIVA DA PROPOSTA, NA AÇÃO PENAL
PÚBLICA, É DO MINISTÉRIO PÚBLICO. PRECEDENTE: RE
468.191, RELATOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE,
PRIMEIRA
TURMA.
RECURSO
EXTRAORDINÁRIO
PARCIALMENTE CONHECIDO E PROVIDO.
Sendo assim, é inadmissível a transação penal ex officio, posto que esta
decorre da vontade das partes, obedecidos os requisitos legais e não de uma
obrigação legal a ser imposta às partes pelo Juiz.
O próprio espírito da Lei 9.099/95 é de transação, efetuada a través de
proposta do acusador ao acusado. Sendo assim, se o Juiz formular ex officio
proposta de transação penal e esta venha a ser aceita pelo acusado, findando
em uma homologação, esta será tida por inexistente.
Com isso, formou-se o entendimento de que o autor do fato tem direito à
manifestação fundamentada do Ministério Público, propondo ou não a
transação. Se esta não for proposta, não compete ao juiz substituir-se ao
Ministério Público. O que pode caber ao Julgador é a aplicação analógica do
503
art. 28 do Código de Processo Penal, quando este entender pertinente a
transação penal, remetendo os autos ao Procurador Geral, para que este
analise o caso concreto, insistindo no início da ação penal, oferecendo a
transação ou designando outro membro ministerial para fazê-lo.
Se o Julgador não homologar a transação realizada, adentrando na
esfera da discricionariedade das partes, caberá mandado de segurança por
parte do Ministério Público, e habeas corpus por parte do autor do fato, pois
estaria ferindo seu direito de ir e vir. Da mesma forma, esses remédios
constitucionais podem ser utilizados quando o Juiz modificar o teor da
transação penal. Se a pena a ser aplicada for pecuniária, poderá o Juiz reduzila até a metade, no momento da sentença, observadas as condições do autor
do fato. Dessa sentença de redução da pena proposta, caberá apelação.
No caso do autor do fato e seu defensor não concordarem com a
transação proposta, as partes passarão para a próxima fase da audiência
preliminar, onde o Ministério Público, não havendo diligências imprescindíveis,
oferecerá a denúncia oral ao Juiz, havendo assim o prosseguimento do feito,
com o início do procedimento sumaríssimo.
2.6 Natureza Jurídica da Sentença Homologatória da Transação
Penal
A doutrina majoritária entende que a natureza jurídica da sentença
homologatória da transação penal é condenatória. Pois, impõe uma sanção
penal ao autor do fato, que deve ser executada.
Acreditamos haver certa contradição nesta afirmação, pois é difícil
imaginar uma condenação penal sem um reconhecimento de culpa ou o devido
processo legal para apuração dos fatos, posto que até esta fase apenas se fala
em termo circunstanciado, inexistindo inquérito policial.
São requisitos da sentença homologatória: a descrição dos fatos
tratados; a identificação das partes envolvidas; a disposição sobre a pena a ser
aplicada ao autor do fato; e a data e a assinatura do Juiz.
504
3. A TRANSAÇÃO PENAL E A AÇÃO PENAL DE INICIATIVA
PRIVADA
Na ação penal privada encontramos uma total discricionariedade da
vítima, podendo ocorrer a qualquer tempo o perdão do ofendido, a desistência
da ação ou o abandono. Dessa forma, percebe-se uma incompatibilidade com
o presente instituto.
Supõe-se que por esses motivos a Lei não contemplou a hipótese de
transação penal para a ação penal de iniciativa privada, uma vez que menciona
apenas a possibilidade de proposta por parte do Ministério Público.
O Enunciado 5 do IV Encontro de Coordenadores de Juizados Especiais
Cíveis e Criminais do Brasil expõe em seu texto que não há a aplicação da
transação penal em crimes contra a honra, pois estes possuem rito especial.
4. A TRANSAÇÃO PENAL E O PERDÃO JUDICIAL
Entendemos que se a situação for de perdão judicial a transação penal
será prejudicada.
A súmula 18 do Superior Tribunal de Justiça diz que a sentença
concessiva do perdão judicial é declaratória da extinção da punibilidade, não
subsistindo qualquer efeito condenatório.
5. PRESSUPOSTOS DA TRANSAÇÃO PENAL E A COISA JULGADA
Se ocorrer sentença homologatória de transação penal com o posterior
trânsito em julgado e em um segundo momento for percebida uma das causas
impeditivas do §2° do art. 76 da Lei, a coisa julgada prevalecerá sobre o
impedimento.
No entanto, dentro do prazo recursal, não ocorrendo trânsito em julgado,
constatado fato impeditivo de conhecimento posterior da transação penal,
poderá a parte legitimada interpor apelação.
505
6. TRANSAÇÃO PENAL E CONCURSO DE AGENTES
Havendo mais de um autor do fato, ou até mesmo um partícipe, poderá
apenas um deles efetuar a transação penal, sem qualquer impedimento para
que isto ocorra.
É possível também, aquele que transacionou ser ouvido como
testemunha em eventual processo que se instaurar contra os demais, pois
àquele que transacionou não será co-réu, dessa forma não existirá
impedimento.
7.
TRANSAÇÃO
PENAL
E
SUSPENSÃO
CONDICIONAL
DO
PROCESSO
A suspensão condicional do processo destina-se aos crimes com pena
mínima igual ou inferior a um ano, abrangendo, portanto, mais crimes do que
aqueles considerados pela Lei como infrações de menor potencial ofensivo
(contravenções e crimes com pena máxima de 2 anos).
Não sendo a suspensão condicional do processo uma condenação,
nada obsta como impedimento objetivo nesse caso específico para que o autor
do fato obtenha a transação penal.
Porém, fatos ocorridos anteriormente que acarretaram a suspensão
condicional de um processo poderão sobrepesar no inciso III do art. 76.
8. TRANSAÇÃO PENAL E RETROATIVIDADE
Conhecemos bastante a questão da retroatividade da lei para beneficiar
o réu. Dessa forma, a transação penal por possuir natureza tanto penal quanto
processual e que beneficia o réu deverá ter aplicação imediata e também
retroativa para alcançar os fatos ocorridos anteriormente à sua vigência. No
entanto, a referida norma alcançará apenas os fatos que tenham seus
processos ainda em curso, não atingindo àqueles definitivamente julgados.
506
9. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A transação penal é um instituto despenalizante no qual é formulada
pelo Ministério Público uma proposta para imediata aplicação de pena em
procedimento jurisdicional especial, constituindo-se essa proposta na peça
exordial de uma ação penal condenatória onde é privilegiado o caráter
consensual na prestação jurisdicional.
O Instituto não apresenta qualquer vício de inconstitucionalidade desde
que examinado sob o prisma de um procedimento jurisdicional.
Torna-se, portanto, necessário repensar a questão da efetividade da
transação penal ante a forma como está regulada na Lei dos Juizados
Especiais Criminais, a fim de que se possa viabilizar a finalidade da pacificação
social pretendida pelo legislador, quer seja vinculando a proposta ao
ressarcimento prévio dos danos causados ao lesado, quer seja conferindo à
decisão homologatória o caráter de título executivo judicial na forma do artigo
584, Inciso II do CPC, o que importaria em admitir-se a assunção de culpa na
aceitação da proposta.
10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARAÚJO,
Francisco
Fernandes.
Juizados
Especiais
Criminais
-
Comentários à Lei Federal n° 9.099/95. São Paulo: Ed. Copola, 1995.
DOTTI, René Ariel. Bases e alternativas para o sistema de penas. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
GOMES, Luiz Flávio. Suspensão Condicional do Processo Penal. 28ª
Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.
GRINOVER, Ada Pellegrini. et. al. Juizados Especiais Criminais Comentários à Lei n° 9.099, de 26.09.95. 28ª Edição. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1997.
507
JESUS, Damásio Evangelista de. Lei dos Juizados Especiais Criminais
Anotada, São Paulo: Saraiva, 1995.
MOLINA, Antonio García-Plabos. GOMES, Luiz Flávio. Criminologia. 6ª Ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.
PAZZAGLINI FILHO, Marino. et. al. Juizado Especial Criminal. 3ªed. São
Paulo: Atlas, 1999.
SOBRANE, Sérgio Turra. Transação Penal. São Paulo: Saraiva, 2001.
508
UMA ANÁLISE ACERCA DA INCLUSÃO DA FORMA
REPUBLICANA DE GOVERNO COMO CLÁUSULA PÉTREA NA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Carolynne Maria Granja Ferraz311
Resumo
A priori, é necessário citar que os problemas constitucionais proporcionam diversas leituras
acerca de suas possíveis soluções, já que se tratam de complexos pareceres que permeiam a
realidade das sociedades políticas. Dentre as inúmeras questões que possuem um conteúdo
dotado de controvérsias no texto constitucional, a possibilidade, ou não de incluir a forma
republicana de governo no art. 60,§4°, tornando-a cláusula pétrea, caracteriza uma temática
discutida e interpretada de forma divergente por alguns teóricos. A partir da pesquisa
bibliográfica com ênfase na análise comparativa, este artigo visa contrapor textos clássicos do
Direito e,a partir deles abordar a pluralidade de posição tomada por teóricos diante de uma
questão singular.
Palavras-chave: Constituição. Forma Republicana. Cláusula Pétrea. Poder de Reforma.
ABSTRACT
Initially, it is necessary to cite the constitutional problems provide several readings on its
possible solutions, since they deal with complex opinions that permeate the reality of political
societies. Among the many issues that have a content provided with controversies in the
constitutional text, the possibility or not to include the republican form of government in art. 60, §
4, making the clause stony, features a theme discussed and interpreted in different ways by
some theorists. From the literature with emphasis on comparative analysis, this article seeks to
counter the classic texts of law, and from them to address the plurality of position taken by
theorists on a single issue. Initially, it is necessary to cite the constitutional problems provide
several readings on its possible solutions, since they deal with complex opinions that permeate
the reality of political societies.
Key words:Constitution. Republican Way. Immutable clauses.Power Reform.
311
Graduanda em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba.
509
1. INTRODUÇÃO
O referente artigo visa a análise da possibilidade de inclusão da forma
republicana de governo no rol dos conteúdos imutáveis do texto constitucional,
as cláusulas pétreas. Para tanto, faz-se uso das perspectivas favoráveis de
Siéyes, bem como da opinião divergente de Canotilho e demais doutrinadores.
Objetiva-se realizar a pesquisa bibliográfica312 através de uma análise
comparativa .
Inicialmente observa-se a origem dos poderes responsáveis pela
produção e reforma da Carta Magna,os quais possuem suas origens em
movimentos europeus do século XVIII e permeiam a sociedade contemporânea
nacional .A seguir analisa-se o surgimento e evolução da forma republicana de
governo , com ênfase à tradição constitucional ocorrida no Brasil .
Num outro momento,aborda-se a possibilidade de adicionar a forma
republicana no art. 60, § 4º, pois o texto dessa não proíbe em quaisquer
trechos a inclusão de novos conteúdos, mas sim impede a mobilidade dos que
já estão previstos. Destaca-se também a observância da opinião dos
doutrinadores acerca do tema, podendo deduzir teses que se inclinam sob
julgo favorável acerca de tal inclusão, tal como a de Sieyés, bem como a
análise de uma possível lesão para com a credibilidade do legislador originário
caso concretize-se a questão debatida, já que faz-se necessário considerar as
funções específicas de cada poder. Destarte, ressalta-se a partir da concepção
de Konrad Hesse uma rejeição à existência de conteúdos imutáveis na
Constituição e, consequentemente, ao acréscimo desses. Assim, propõe-se a
observância de opostas posições perante a mesma questão e ,explicita-se a
que me parece mais viável.
312
‖[...]é desenvolvida a partir de material já elaborado, constituído principalmente de
livros e artigos científicos‖. (GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social.
5. ed. São Paulo: Atlas, 1999. p.65.).
510
2 O PODER CONSTITUINTE ORIGINÁRIO E O PODER CONSTITUÍDO
DERIVADO
O Poder Constituinte Originário surge na ocorrência de uma ruptura
política na sociedade que, por sua vez produz a instauração de uma
Constituição. Contudo, é necessário citar que o momento em que se manifesta
o poder constituinte nem sempre coincide com o surgimento formal de uma
nova carta Magna, já que:" la precisión temporal del surgimiento de una ruptura
como la provocada por el Poder Constituyente Originario se sujeta al domínio
de la política‖.313
O Poder Constituinte Originário possui como características a
inicialidade e ilimitação, ou seja, as normas provenientes deste poder possuem
um caráter político e, não precisam se submeter aos pressupostos de nenhum
outro comando normativo. Por tais motivos, a configuração das normas
originárias difere das demais normas, já que estas podem ter seu critério de
validade aferido, o que já não ocorre com aquelas. Assim, tal poder é
responsável por designar os princípios normativos que devem ser cumpridos
pela população para a qual a Carta Magna será destinada,bem como deve
garantir para os sujeitos a preservação de direitos tidos como fundamentais.
O Poder Constituinte Derivado, Instituído, de Emenda ou ainda de 2º
Grau ,como o próprio nome explicita,provém do Poder Constituinte Originário e
foi criado por este para promover uma melhor adequação do texto
constitucional para com a realidade. Subdivide-se em Reformador, responsável
pelas alterações no texto constitucional, e Decorrente, responsável por elaborar
as Constituições Estaduais através da Assembléia Legislativa obedecendo ao
texto da Constituição Federal.
O Poder Constituído Derivado Reformador não pode alterar o texto da
Carta Magna de forma aleatória, já que esse é condicionado aos limites
impostos pelo Poder Constituinte Originário. Tais limitações estão expressas no
art. 60 da Constituição Federal de 1988 e podem ser temporais (a Constituição
só pode ser modificada após período determinado pelo legislador, esteve
313
GUSMÃO, Hugo César de Araújo. Reforma Constitucional e Integración Europea.
2008.479 f. Tese. Direito Constitucional Europeu. Universidad de Granada, p. 123.
511
presente na Constituição do Império), circunstanciais (em caso de intervenção
federal, estado de defesa e estado de sítio) e materiais, dentre essas últimas
figura o §4° do artigo supracitado, que por sua vez contém as Cláusulas
Pétreas.
3 A FORMA REPUBLICANA
A palavra república deriva do latim res publica, ou seja, bem
público,coisa pública, destarte a forma republicana de governo nasce de um
interesse do povo para governar em seu benefício, diante da ação dos demais
segmentos.Assim, a classificação das formas de governo, dada pelo modo de
organização político do Estado, inclui a
república e monarquia. Para José
Afonso da Silva314 a forma republicana não surge somente como contraposição
à forma monárquica, pelo contrário, ambas deveriam ser conceituadas como
formas institucionalistas do Estado.
Já os sistemas de governo, cuja classificação advém do grau de
relacionamento entre os Poderes Executivo e Legislativo conceituam-se em
presidencialismo, parlamentarismo ou sistema diretorial ou convencional315.
A forma republicana presidencialista (adotada pelas Constituições de
1891, 1946, 1988) é aquela onde o presidente é escolhido através do voto
direto do povo, para exercer sua função de chefe de Estado e de Governo por
um período regular e, a forma republicana parlamentarista, ao exemplo da
França, se configura na escolha via indireta do Legislativo para o chefe de
governo, e escolha do povo pelo chefe de Estado.
No Brasil, a forma republicana de governo foi instaurada de fato no ano
de 1889, em substituição à monarquia, que por sua vez entrou em decadência
devido uma série de conflitos, dentre eles a interferência do imperador em
314
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 20 ed. São Paulo:
Malheiros, 2002, p. 102.
315
PINHO, Rodrigo César Rebello. Teoria geral da constituição e direitos
fundamentais. 3 ed. v. 17. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 4.
512
assuntos religiosos que provocou a reação da Igreja Católica,e também pelo
desejo do povo por uma maior participação no âmbito político.
A relevância do republicanismo no cenário nacional é apreciável devido
a possibilidade de uma mínima participação popular no contexto político,vista
no ato do voto dos cidadãos. Promove também uma transitoriedade no poder
por parte dos representantes legais do povo, que por sua vez dificulta o abuso
daqueles que estão admitidos no cargo e, gera possibilidades de inclusão de
diversos outros sujeitos na esfera governamental. Tais fatores permitem uma
democratização na conjuntura sócio-política.
A forma republicana esteve presente até mesmo no período ditatorial,
contudo é válido citar que a essência literal da república (coisa do povo) , que
por sua vez caracteriza-se como pressuposto da democracia,absteve-se
durante o período autoritário.
4 AS CLÁUSULAS PÉTREAS
O termo Cláusula provém do latim e significa artigo,disposição ou
condição de um documento público ou privado e,pétreo por sua vez, advém
igualmente do latim e se refere a de,ou relativo a pedra. Destarte,as cláusulas
pétreas configuram conteúdos resistentes à alteração (eis a proveniência
analógica da origem do termo),numa melhor acepção,elas se caracterizam
como conteúdo imutáveis.
Conforme classificado por Maria Helena Diniz, as cláusulas pétreas são
super eficazes, pois possuem eficácia absoluta e não admitem disposição em
contrário e, manifestam eficácia positiva(se adequam à realidade) e negativa
(oferecem resistência para as demais normas que pretendem modificá-las).
A Constituição Brasileira Republicana de 1891 foi a primeira Carta
Magna nacional que continha limitação expressa e material ao seu poder de
reforma , que por sua vez, compreendia a forma de governo Republicana, a
513
forma de Estado como Federação e a representação igualitária dos Estados no
Senado,tais dispostos estavam presentes no artigo 90, § 4º316.
Na Constituição de 1988, instituiu o legislador originário:
Art. 60.
§4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a
abolir:
I-a forma federativa de Estado;
II-o voto direto, secreto, universal e periódico;
III-a separação dos Poderes;
IV-os direitos e garantias individuais.
Como pode ser observado, a forma republicana não foi incluída, pelo
legislador de 1988 no rol dos conteúdos imutáveis, embora o art. 34, VII do
texto constitucional de 1988 assegure a observância da forma republicana nos
estados, bem como no Distrito Federal da União. Tal questão é fonte de
diversas interpretações por parte dos doutrinadores,logo se faz necessária a
explanação dessas para assim ser possível a formulação de uma posição
particular.
5 AS DIFERENTES POSIÇÕES DOUTRINÁRIAS
Considerando a perspectiva constitucional do abade francês Emmanuel
Joseph Sieyés, é possível admitir como titular legítimo do poder a nação, cujo
conceito contemporâneo a esse teórico caracterizava a conjuntura francesa, e
o 3° Estado, que por sua vez, é designado por Sieyés (1986) como indivíduos
pertencentes à mesma ordem e que na sua teoria, compunha maioria numérica
dos sujeitos integrantes do Estado Nacional,assim como também o é,o
conceito moderno de povo.
Devemos conceber as nações sobre a terra como indivíduos fora do
pacto social, ou como se diz, no estado de natureza. O exercício de
sua vontade é livre e independente de todas as formas civis [...]
316
MORAES, Alexandre. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 6.
ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 1152.
514
Qualquer que seja a forma que a nação quiser, basta que ela queira;
317
todas as formas são boas, e sua vontade é sempre a lei suprema.
É fato que em 1993 houve um plebiscito no Brasil, previsto pelo art.2°,
Caput do ADCT, e que o povo optou pela forma republicana, assim, o titular
legítimo do poder conferiu validade a tal forma de governo. Destarte, partindo
de uma possibilidade jurídica material, seria possível o acréscimo dessa forma
como cláusula pétrea, já que a mesma encontra validade na decisão popular, e
sobretudo pelo fato que o art.60,§4° não deixa expresso em seu texto que é
vedado o acréscimo de conteúdos imutáveis,mas sim veta a proposta de
emendas que possuam a tendência de abolir quaisquer dos conteúdos já
previstos.Tal posição parece viável no que diz respeito a explicitação de algo
que sob aspecto valorativo já faz parte do texto constitucional,assim como por
exemplo, a proibição de o legislador elaborar um projeto de emenda
constitucional, garantido poder legiferante pleno e ilimitado ao Legislativo.
Para fins de análise, cabe aqui citar a Constituição da Espanha que não
possui limites de reforma materiais expressos, e segundo Aguilar 318: ―[...]no es
absolutamente necesario que los limites estén expresamente formulados em la
Constitución:algunos de ellos pueden derivarse de La propia configuración del
sistema constitucional‖.A partir de tal perspectiva, torna-se possível acolher a
ideia de que a inclusão de demais aspectos como cláusulas pétreas,como a
forma republicana, pode ser viável já que esta é tida como integrante da
realidade e,consequentemente do texto constitucional. Contudo, é necessário
citar que a noção de soberania, que por sua vez é pressuposto para criação da
Carta Magna, é diferente no país citado e no Brasil, eis o motivo de que tal
teoria não cabe na conjuntura nacional.
A partir de uma perspectiva jurídica formal, qualquer que seja a
mobilidade (incluindo o acréscimo) exercida dentro do art. 60,§4° que
corresponde às cláusulas pétreas pode ser configurado como inviável, já que o
317
SIEYÉS, Emmanuel Joseph. A constituinte burguesa:o que é o Terceiro estado? Org.
e introd. de Aurélio Wander Bastos, pref. de José Ribas Vieira, trad. de Norma Azevedo. Rio
de Janeiro: Liber Juris, 1986, p. 120.
318
AGUILAR, Juan Fernando López; CALLEJÓN, Maria Luisa Balaguer et al. Manual de
Derecho Constitucional. Coord. Francisco Balanguer Callejón. v.1. 2 ed. Madrid:
Tecnos,2007.
515
autor dos conteúdos imutáveis caracterizou-se pelo Poder Constituinte
Originário, e coube somente a ele exercer tal função.
O motivo que levou o legislador a especificar quais seriam os conteúdos
inalteráveis não se deu de forma inconseqüente, e se esse não admitiu a forma
republicana como conteúdo inalterável, o que era previsto nas constituições
republicanas anteriores, (1891 a 1967) é porque ele pretendeu facilitar uma
possível adaptação do texto constitucional para com a realidade, visando assim
uma maior perpetuidade desse.
Segundo Hesse319, ―A norma constitucional não tem existência
autônoma em face da realidade. A sua essência reside na sua vigência, ou
seja, a situação por ela regulada pretende ser concretizada na realidade‖.
Destarte, para esse teórico conterrâneo de Kant, a Constituição de uma
sociedade deve ser atual, ou seja, deve estar apta às modificações, para assim
impedir que os processos revolucionários sejam instaurados toda vez que se
faça necessária a mudança de aspectos do texto constitucional. Assim é
possível admitir que a existência de cláusulas pétreas dificulta esse processo
de adequação da Constituição para com a realidade concreta e, vincula os
interesses e necessidades das gerações futuras ao texto em questão. Ainda
dentro de tal perspectiva, a existência de conteúdo imutável na Constituição
Federal é reprovada assim como também é, de forma conseqüente, o
acréscimo de tais preceitos. Sob essa visão,não seria coerente a inclusão da
forma Republicana de governo no art. 60,§4°,V .
Sob o ponto de vista de Lassale320, a Constituição é composta pela
soma dos reais fatores de poder, ou seja, a Constituição Jurídica é válida
somente quando corresponde e atende às necessidades dos poderes
concretos. Dentre esses poderes, inicialmente tal teórico cita o povo, que por
sua vez figura como agente ativo somente em condições extremas, por
exemplo, quando sua liberdade individual é restrita.
319
HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira
Mendes. Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 1991, p. 14.
320
LASSALE, Ferdinand.O que é uma Constituição?. tradução de Hiltomar Martins
Oliveira. Belo Horizonte: Cultura Jurídica-Ed. Líder, 2001, p. 48.
516
Dentro da perspectiva de Lassale,no entanto,o fato do povo ainda que
titular do poder,ter optado pela forma republicana não configura motivo
suficiente para admitir o ingresso de tal conteúdo no texto constitucional,já que
o plebiscito não marcou uma ruptura política no cenário nacional,pois antes
dele,a forma republicana já compunha o cenário pátrio. Não havia situação dita
extrema, segundo o conceito de Lassale.
José Afonso da Silva cita a existência das limitações materiais implícitas
e limitações materiais explicitas, e exemplifica as primeiras com o assunto
norteador desse artigo: a forma republicana de governo, que embora não
esteja incluída no rol dos ―conteúdos imutáveis‖ do texto constitucional, tem no
art. 34, VII, da Constituição Federal sua existência como princípio que deve ser
assegurado.
Isso quer dizer, por um lado, que certos elementos do conceito de
República, como a periodicidade de mandato, devem ser
assegurados e observados, mas, por outro lado, fica também
reconhecido o direito de formação de partido monarquista que atue
no sentido de instaurar a Monarquia, mediante emenda à
321
Constituição .
A opinião de estudiosos conceituados tal como Canotilho322, também é
digna de ser observada, já que o mesmo admite a existência de fatores
implícitos nos textos constitucionais, que limitam o poder de revisão;
Outras vezes, as constituições não contêm quaisquer preceitos
limitativos do poder de revisão, mas entende-se que há limites não
articulados ou tácitos, vinculativos do poder de revisão. Esses limites
podem ainda desdobrar-se em limites textuais implícitos, deduzidos
do próprio texto constitucional, e limites tácitos imanentes numa
ordem de valores pré-positiva, vinculativa da ordem constitucional
concreta.
Contudo, ao se referir aos fatores implícitos, Canotilho introduz uma
ideia que não nos permite admitir a forma republicana como um desses fatores,
mas sim os fatores que propunham o impedimento à mudança do processo de
emenda constitucional, dentre eles, o conteúdo que visa facilitar tal
procedimento.
321
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 20 ed. São Paulo:
Malheiros, 2002, p. 66.
322
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da
Constituição. 2 ed. Coimbra: Almedina, 1998, p. 943.
517
Sob outro ponto de vista, mas abordando a mesma matéria, José Afonso da
Silva não nega a existência das limitações materiais implícitas, mas demonstra
uma modificação estrutural ocorrida no que diz respeito à tomada de posição
da doutrina perante tal questão: ―Há [...] uma tendência a ampliar as hipóteses
de limitações materiais expressas que, por certo, tem a conseqüência de não
mais reconhecer-se a possibilidade de limitações materiais implícitas‖.323
6 CONCLUSÃO
As discussões que permeiam a realidade constitucional hodierna são
fruto de uma constante mudança pela qual tem passado a sociedade
e,possuem aspectos benéficos no que faz referência às buscas por uma
melhoria no texto constitucional.
Neste sentido,em consulta aos compêndios e doutrina e,através de um
estudo sistemático,buscou-se suprir fundamentos relevantes que pautaram as
antagônicas justificativas e posições diante da problemática que permeia a
possibilidade da inclusão da forma republicana, como cláusula pétrea na
Constituição Federal.
Destarte, acredita-se que cabe somente ao Poder Constituinte Originário
presumir quais conteúdos devem ser tidos como imutáveis e, já que esse não
delegou tal ação para o Poder Constituinte Derivado,este não pode admitir para
si funções alheias. Assim,por considerar que o ordenamento jurídico preza pelo
Direito Positivo,acredita-se que prevaleça a conjuntura formal sobre a material
e que tal fato impossibilite o acréscimo da forma republicana como cláusula
pétrea na Constituição de 1988,vigente nos dias atuais. Se fosse possibilitado
ao Poder Constituinte Derivado incluir a forma republicana no rol dos
conteúdos imutáveis,haveria abertura de precedentes para introdução de
outros temas,o que por fim resultaria numa modificação (ainda mais)
exacerbada do texto constitucional.
323
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 20 ed. São Paulo:
Malheiros, 2002, p. 67.
518
Embora esta seja a posição tomada diante da problemática,não se pode
transpor a contento como única disposição viável,já que como demonstrado
existem opiniões diversas e válidas acerca do tema. É necessária a
continuidade desse debate para observar as possibilidades viáveis com o
contexto político e jurisprudencial contemporâneo para assim,chegar a uma
solução desse impasse constitucional.
7 REFERÊNCIAS
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520
UMA ANÁLISE DA LEGÍTIMA DEFESA PUTATIVA COMO
REFLEXO DO ATUAL CONTEXTO SOCIAL
Andressa Caroliny Gois Gonzaga 324
Luiz Mesquita de Almeida Neto 325
Mayza de Araújo Batista 326
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo relacionar as áreas jurídica, psicológica e sociológica,
para a compreensão da Legítima Defesa Putativa, partindo do pressuposto de que a violência
contemplada no cotidiano da sociedade pode ser vista como um meio capaz de incutir no
indivíduo a necessidade de defesa, ainda que em casos onde esta violência se manifeste
apenas no imaginário da pessoa. O atual estudo demonstrará o instituto da legítima defesa,
pontuando seus aspectos, assim como, na modalidade putativa, sua conexão com o contexto
contemporâneo e violento em que estamos inseridos, o qual constantemente representa uma
ameaça a bens jurídicos extremamente relevantes, como a própria vida. Propomos a análise
sob variados enfoques deste instituto, cuja importância se revela inequívoca na medida em que
sua existência constitui fato sobre o qual se deparam os operadores do Direito.
Palavras chave: Violência; Medo; Legítima Defesa.
ABSTRACT
This paper aims on the interconnection between the juridical, psychological, sociological areas,
related to the comprehension of the putative self-defense, starting our thought supposing that
the contemporary violence present in our society can be seen as a capable mean insert in the
individual the need for defense, even though in cases that this violence is seen only in people
imaginary. This study shows self-defense pointing out it‘s aspects and it‘s putative kind, it‘s
connection with the contemporary and violent context in which we‘re in, and as this represents a
constant threat to the juridical property of extreme relevance, as life itself. We propose the
analysis of this institute on different spotlights, which importance reveals itself clearly as its
existence constitutes a fact faced by law professionals.
Key- Words: Violence; Fear; Self-defense
324
325
326
Estudante do 4° período do curso de direito da Universidade Estadual da Paraíba.
Estudante do 11° período do curso de direito da Universidade Estadual da Paraíba.
Estudante do 4° período do curso de direito da Universidade Estadual da Paraíba.
521
1. INTRODUÇÃO
A sociedade está exposta a um fenômeno que, de maneira desenfreada,
vem se alastrando no meio social: a violência. Esta é uma forma de causar
dano a algo ou alguém, podendo se consubstanciar em violência física, moral,
material, psicológica, dentre outras.
Não obstante os Direitos humanos visarem igualdade, bem como a
presença do ideal de justiça social, as desigualdades sociais e a falta de
assistência do Estado fazem com que a violência cresça gradativamente. Esta,
por sua vez, desenvolve nas pessoas um sentimento que as inquieta diante de
uma noção, equivocada ou não, de perigo ou ameaça frequentes. Isso faz com
que a população busque suas próprias medidas de proteção.
Segundo Zaffaroni e Pierangelli327:
...para avaliar o controle social em um determinado contexto, o
observador não deve deter-se no sistema penal, e menos ainda na
letra da lei penal, mas é mister analisar a estrutura familiar (autoritária
ou não), a educação (a escola, os métodos pedagógicos, o controle
ideológico dos textos, a universidade, a liberdade da cátedra, etc.), a
medicina e muitos outros aspectos que tornam complicadíssimo o
tecido social...
Portanto, de acordo com o trecho acima apreciado, não apenas o
ordenamento jurídico, mas todo o contexto social, psicológico, econômico,
dentre outros, influi decisivamente na efetividade do controle social de dada
comunidade.
Quando, no entanto, visualizamos a estrutura de uma sociedade,
percebemos, ainda de acordo com Zaffaroni e Pierangelli328 (2004, p.61- 62)
que ―toda sociedade tem uma estrutura de poder (político e econômico) com
grupos mais próximos e grupos mais marginalizados do poder, na qual,
logicamente, podem distinguir-se graus de centralização e de marginalização‖.
Assim, a crescente disparidade econômica, com a consequente
desigualdade social, geram um maior número de pessoas marginalizadas do
poder, mais afastadas, por isso mesmo, de todos aqueles instrumentos de
controle social, mais propensos, pois, à criminalidade.
327
ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, Henrique. Manual de Direito Penal
Brasileiro: Parte Geral. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p.
61.
328
Ibidem, p. 61-62.
522
Todavia, não se pode afirmar que a criminalidade e, por sua vez, as
várias
formas
de
violência
se
concentram
apenas
em
tais
grupos
marginalizados, pois, não raro, a sociedade se depara também com um
crescente número de crimes praticados por aqueles grupos mais próximos
desta estrutura de poder, tal como casos como os de Isabella Nardoni, Suzane
Richtofen, dentre outros.
2. LEGÍTIMA DEFESA
Historicamente, as sociedades repeliram agressões injustas a bens
jurídicos como a vida e a integridade física, originariamente não apenas como
um meio de defesa, senão também como formas de vingança, configurando
esta última, muitas vezes, uma forma de satisfação da justiça social. Assim,
temos, por exemplo, com relação à lei judaica, que:
A vingança privada não era permitida. ―Eu (Deus) vingarei a vida do
homem da mão do homem, e da mão de seu irmão, que o matou.
Quem derrama o sangue do homem será punido pela efusão de seu
próprio sangue, porque o homem foi criado à imagem de Deus‖. Mas
quem matava deveria morrer. (...) Admitia a lei hebraica a reparação
do dano. Mas a Lei de Talião, ―olho por olho, dente por dente‖, está
prevista no Levítico 329.
Por outro lado, com o curso natural do tempo, o direito, em sua face
punitiva, afastou-se muito desta noção, optando, enfim, pela defesa da
sociedade, em detrimento deste anterior entendimento. Assim, segundo o autor
Paulo Dourado de Gusmão330, temos que:
Direito intimidativo, destinado a assegurar a ordem interna, o direito
penal esteve, na sociedade arcaica, à mercê da vingança do ofendido
ou de sua família. Era então governado pela lei ―dente por dente, olho
por olho‖. Depois, a aplicação dessa lei draconiana passou a
depender da vontade da vítima ou de sua família, que podia escolher
outra forma de punição. (...) Com o tempo, o poder de punir o
delinqüente foi monopolizado pelo Estado, pondo assim fim à
insegurança e à intranqüilidade geradas pela vingança, ou seja, pela
justiça privada.
A legítima defesa, portanto, nada guarda de semelhança com a vingança
privada, até porque esta vem a ser extirpada do nosso ordenamento jurídico,
329
GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do direito. 34. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2004, p. 300-301.
330
Ibidem, p. 179.
523
enquanto aquela é por ele, não apenas permitida, como também considerada
legítima, por representar ―... uma verdade imanente à consciência jurídica
universal, que paira acima dos códigos, como conquista da civilização.‖ 331
Assim, a legítima defesa não pode ser confundida com a vingança, pois
esta se trata de uma reação posterior ao fato ocorrido, enquanto aquela é uma
resposta imediata a um perigo, podendo ser compreendida como um instinto de
sobrevivência em que o agredido se coloca no lugar do agressor, agredindo
para se proteger. Possui duas importantes explicações: a primeira diz respeito
à defesa de um bem jurídico, e a outra quanto à necessidade de que o
ordenamento jurídico não seja atingido por uma ação ilegítima.
Por toda esta diferenciação exposta é que, se, por um lado, o sistema
penal brasileiro pune a solução individual daquele que, ao invés de apresentar
sua pretensão, ainda que legítima, ao Estado, age de acordo com suas
próprias razões (art. 345, do Código Penal), por outro lado, entende legítimo o
comportamento do indivíduo que acaba por ofender bens jurídicos de um
agressor na busca pela defesa de seus próprios bens jurídicos, ou de terceiros,
desde que estando diante de injusta agressão (art. 25, do Código Penal).
Neste sentido é que se pode afirmar que, sendo possível a apreciação
do Estado no caso concreto, não pode o indivíduo burlar este procedimento,
devendo levar ao conhecimento da autoridade competente seu problema, não
devendo agir por conta própria, sob pena de incidir em crime, de acordo com o
supra mencionado art. 345, CP, ou, melhor ainda, na lição de Damásio
Evangelista de Jesus332 sobre este crime específico ―O objeto da tutela penal
é a administração da justiça. Pretende-se que alguém que tenha uma
pretensão não a satisfaça pessoalmente, incumbindo à justiça a sua realização.
(...) No fato penalmente proibido o agente despreza a justiça e toma para si a
tarefa de realizar o seu direito‖.
331
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral. 14. ed. São Paulo:
Saraiva, 2009. JORGE, 1986, p. 290 apud BITENCOURT, 2009, p. 340
332
JESUS, Damásio Evangelista de. Direito penal. Parte especial: Dos crimes contra a fé
pública a Dos crimes contra a administração pública. 12. ed. rev. e atual. São Paulo:
Saraiva, 2002, p. 305.
524
Ressaltando, mais adiante, o mesmo autor333, em comentário a este
tipo penal, que ―Não há delito, por atipicidade do fato, quando a conduta do
sujeito está autorizada pela lei, i.e., quando a lei admite a justiça particular.‖,
exemplificando, ainda, com o caso do desforço imediato.
Desta maneira, percebe-se que, em algumas circunstâncias, pode a
própria lei excepcionar esta regra geral, fazendo com que a pessoa possa agir
independentemente da apreciação prévia do judiciário.
É o que acontece quando o caso concreto, por apresentar um perigo
imediato, e não sendo possível a atuação do Estado, exige do indivíduo uma
atuação, independentemente deste crivo anterior estatal, que, por isso mesmo,
permite tal reação do particular. É este o caso, por exemplo, quando o
ordenamento jurídico permite que qualquer indivíduo faça cessar o ilícito que
encontrar sendo praticado, por meio da prisão em flagrante delito, nos ditames
do art. 301, do Código de Processo Penal, conforme enuncia Mirabete334 ―a
possibilidade de se prender alguém em flagrante delito é um sistema de
autodefesa da sociedade, derivada da necessidade social de fazer cessar a
prática criminosa e a perturbação da ordem jurídica, tendo também o sentido
de salutar providência acautelatória da prova da materialidade do fato e da
respectiva autoria‖.
Percebe-se claramente, assim, que, em alguns casos, apesar de uma
conduta ser originariamente punível pelo ordenamento jurídico, este próprio
autoriza, em dadas situações, a mesma conduta, desta vez dotada de
legitimidade por conta de outra lei, que, por sua vez, exclui a aplicação de uma
primeira, punitiva, pois, segundo Nucci335 ―Quando qualquer pessoa do povo
prende alguém em flagrante, está agindo sob a excludente de ilicitude
denominada exercício regular de direito (art. 23, III, CP);...‖.
Estas excludentes de ilicitude, ou causas de justificação, ou ainda tipos
permissivos, como são indistintamente denominados por alguns autores, agem
333
JESUS, Damásio Evangelista de. Direito penal. Parte especial: Dos crimes contra a fé
pública a Dos crimes contra a administração pública. 12. ed. rev. e atual. São Paulo:
Saraiva, 2002, p. 306.
334
MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. 18. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas,
2007, p. 374.
335
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 3. ed.
rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 544.
525
de maneira equitativa, com o escopo de repelir do ordenamento jurídico o fato
de que, sob o pretexto da aplicação de uma lei, situações aberrantes, em total
descompasso com os valores da nossa sociedade, fossem abrigadas pelo
direito.
Em última análise, de acordo com Zaffaroni e Pierangeli336 ―... a
natureza última das causas de justificação é a de exercício de um direito.‖, ao
que, perscrutando um pouco mais, aduzem os mesmos autores que:
É difícil assinalar um fundamento comum a todos os tipos
permissivos, ainda que a teoria do ―fim‖ posa ser, talvez, um
indicador: o fim de coexistência demanda que, em certas situações
conflitivas, sejam concedidos direitos à realização de condutas
antinormativas, os quais têm por limite o próprio fim de que
emergem337.
A legítima defesa, enquanto figura primordial, que é, deste rol de causas
de justificação, ou excludentes de ilicitude – termo este último escolhido pelo
nosso Código Penal – não poderia deixar de se pautar por estes elementos
gerais e básicos.
Para definir o fundamento filosófico do instituto da legítima defesa,
utilizando-se de um caráter dúplice, afirma Luiz Regis Prado338 que ―a
verdadeira natureza jurídica – fundamento – dessa eximente é dupla: em
primeiro lugar reside na necessidade de defesa de bens jurídicos e em
segundo lugar, ao se repelir agressão ilícita, preserva-se o ordenamento
jurídico.‖, assentando-se esta segunda afirmação, com relação à preservação
do ordenamento jurídico, no fato de que ―Faz-se valer a máxima de que o
Direito não tem que ceder ante o ilícito.339‖ Por outro lado, apontam Zaffaroni
e Pierangeli340, que ―o fundamento da legitima defesa é único, porque se
baseia no princípio de que ninguém pode ser obrigado a suportar o injusto‖,
336
ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, Henrique. Manual de Direito Penal
Brasileiro: Parte Geral. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p.
547.
337
Ibidem, p. 548.
338
Ibidem, p. 250.
339 PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte geral. 2. ed. rev., atual e
ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. WELZEL, 1970, p. 122 apud PRADO, 2000, p.
249).
340
Eugenio Raul Zaffaroni e Henrique Pierangeli, op. cit., p. 249.
526
reiterando a divergência quanto ao caráter dúplice do instituto no sentido de
que:
O fundamento individual (defesa dos direitos ou dos bens jurídicos) e
o fundamento social (defesa da ordem jurídica), não podem ser
encontrados simultaneamente, porque a ordem jurídica tem por
objetivo a proteção dos bens jurídicos, e se, numa situação conflitiva
extrema, não consegue lográ-lo, não pode recusar ao indivíduo o
direito de prover a proteção dos bens por seus próprios meios.
Enfim, conforme este último ponto de vista, que confere à legítima
defesa um caráter subsidiário em relação à proteção que o Estado deve prover
aos indivíduos em geral, aplicável apenas aos casos em que os representantes
deste Estado não puderem estar presentes, é que se compreende melhor a
legítima defesa, portanto não como um instrumento realizador da finalidade do
ordenamento jurídico, mas como conquista individual e justa da civilização de
preservação de bens jurídicos caríssimos ao fim de convivência social.
Entrementes, a legítima defesa, enquanto instituto jurídico, assenta seu
conceito em três pressupostos, de acordo com o Código Penal, em seu artigo
25, onde se afirma que: ―entende-se em legitima defesa quem, usando
moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou
iminente a direito seu ou de outrem‖. Portanto, os requisitos que se fazem
necessários para que haja a configuração da legitima defesa, são: uma
agressão injusta, atual ou iminente, a direito próprio ou de terceiro, e o uso
moderado de meios necessários para a proteção deste direito.
No que se refere à agressão, sendo esta o primeiro requisito
caracterizador da legítima defesa, analisada por si só, diz-se que deve ser uma
conduta antijurídica e intencional para que se possa falar em legítima situação
de defesa, não se fazendo necessária que seja uma conduta tipificada como
crime, bastando que venha a ameaçar bens juridicamente tutelados.
Por agressão injusta entende-se, portanto, como sendo aquela ―que não
estiver protegida por uma norma jurídica, isto é, não for autorizada pelo
ordenamento jurídico‖341. Por assim dizer, a reação à agressão justa não
341
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral/ Cezar Roberto
Bitencourt. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 342.
527
configura legítima defesa, pois é justamente o teor ilícito da ameaça que
permite o emprego da legítima defesa.
De acordo com Zaffaroni342 ―... a autoria da agressão antijurídica é o
que dá o caráter de sujeito passivo da ação de defesa, porque esta não pode
ser dirigida contra outra pessoa que não seja o agressor.‖ Desse modo, é
possível inferir que a utilização deste instituto está condicionada a atual
agressão ou iminente ameaça, que, por sua vez, deve ser injusta, ou seja, um
fato ilícito, não se fazendo necessária a sua atribuição como crime, a qual
deverá ser retribuída a quem de fato a pratique ou esteja na iminência de
praticá-la.
No que tange ao tempo da agressão se faz necessário que esta tenha
sido iniciada e que ainda não se tenha concluído ou que esteja prestes a
acontecer. Esta última não se confunde com agressão futura, que não enseja a
utilização deste instituto, ao passo em que, nesta modalidade de agressão,
onde se tem conhecimento de sua incidência para o porvir, o indivíduo deve
recorrer ao Estado, responsável constitucionalmente pela segurança pública, o
qual exercerá sua função, daí afirmarmos o caráter subsidiário da legítima
defesa, a ser utilizada apenas quando da impossibilidade, por questões de
ordem prática, no exato momento em que a agressão injusta é praticada.
Quanto ao segundo requisito que pinçamos, dentre as diversas
classificações da doutrina, por considerar relevante, temos que, se faz
necessária a existência de um bem jurídico envolvido na agressão. O legislador
atribui a competência ao indivíduo para que faça uso deste instituto, desde que
venha a defender bens jurídicos de qualquer natureza, próprios ou de terceiros,
salvo, quanto a estes últimos, se forem considerados disponíveis, dada a
autonomia do seu titular em escolher quais os bens que merecem proteç

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