Processos Básicos e Cognição: uma Reflexão Epistemológica
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Processos Básicos e Cognição: uma Reflexão Epistemológica
Psychologia Latina 2012, Vol. 3, No. 2, 98-106 http://dx.doi.org/10.5209/rev_PSLA.2012.v3.n2.40245 Copyright 2012 by Psychologia Latina ISSN 2171-6609 Procesos Básicos y Cognición: una Reflexión Epistemológica Ronie Alexsandro Teles da Silveira Universidade Federal da da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Brazil) Basic Processes and Cognition: an Epistemological Reflection In this paper, the basic processes are understood as elementary units of a human cognitive science. However, an epistemological analysis that produces such elements generates difficulties in light of the supposed synthetic character of reality. These difficulties are typical of a realistic perspective of knowledge. This perspective is characterized and criticized in consideration of the predicaments it generates. As an alternative, a pragmatist point of view is indicated to eliminate such dilemmas. The advantages of adopting a pragmatist point of view on the basic trials are analyzed, bypassing the major epistemological problems that arise from the realistic perspective. The use of analytical procedures responsible for the adoption of the concept of “basic processes” is justified by a principle of intellectual economy. Keywords: basic processes, realism, instrumentalism, pragmatism. Processos Básicos e Cognição: uma Reflexão Epistemológica Neste trabalho, os processos básicos são entendidos como as unidades elementares de uma ciência da cognição humana. No entanto, a análise epistemológica que produz tais elementos gera dificuldades diante do suposto caráter sintético da realidade. Essas dificuldades são típicas de uma perspectiva realista sobre o conhecimento. Essa perspectiva é caracterizada e criticada em função dos impasses que gera. É indicada uma alternativa pragmatista que elimina tais impasses. As vantagens de se adotar um ponto de vista pragmático sobre os processos básicos são analisados, contornando os principais problemas epistemológicos decorrentes da perspectiva realista. Por um princípio de economia intelectual se justifica o uso de procedimentos analíticos responsáveis pela adoção do conceito de “processos básicos”. Palabras clave: processos básicos, realismo, instrumentalismo, pragmatismo. Correspondence concerning this article should be addressed to Ronie Alexandro Teles da Silveira. Avenida da Abolição, nº 7, Centro. Redenção – CE, (Brazil), CEP.: 63790-000. E-mail: [email protected] 98 PROCESOS BÁSICOS Y COGNICIÓN Os processos básicos são os constituintes primários de nossas atividades cognitivas. Trata-se, portanto, de unidades elementares da vida mental tais como a percepção, a atenção, a memória, o pensamento e a linguagem (Kolers e Roediger, 1984; Eysenck e Keane, 1997; Sternberg, 2000). Conceber a vida mental a partir dessas unidades permite que possamos ter uma visão geral do desafio científico para explicar o conhecimento humano em sua dinâmica cognitiva. Nessa perspectiva, tal explicação poderá ser fornecida por meio de um estudo analítico de cada um desses processos e, posteriormente, de todos eles em conjunto. Quando se faz referência a processos básicos, se afirma implicitamente a possibilidade de se estabelecer uma arquitetura geral da cognição humana. Não há como se referir às partes, sem se referir à totalidade da qual elas fazem parte. Se elaborarmos uma definição explícita dessa arquitetura, passamos a estar em condições de ter uma idéia do empreendimento científico que precisa ser realizado no futuro para a completa compreensão da cognição humana. Se essa arquitetura não estiver devidamente clara para os cientistas que tentarão realizá-la, fracassos ou mal-entendidos poderão se suceder continuamente, sem que tenhamos sequer como perceber os motivos que levaram a eles. Assim, um panorama geral do conjunto dos processos básicos constitui um projeto necessário para o desenvolvimento planejado da compreensão sobre o conhecimento humano. É por esse motivo que uma discussão prévia acerca do estatuto dessa arquitetura cognitiva é importante. Não pretendo defender aqui a tese de que a definição do estatuto ontológico e epistemológico dos processos básicos seja uma condição necessária para seu êxito científico – uma forma de pensar comum para aqueles que ainda julgam que a Filosofia possui a missão de fundamentar a Psicologia (Canguilhem, s.d.). Apenas creio que podemos evitar muita confusão e desperdício de energia no debate científico posterior se nos detivermos em analisar, em primeiro lugar, algumas características dessa arquitetura básica. A perspectiva que adoto para entender os processos básicos não parte, portanto, da idéia de que exista uma hierarquia que conduza de problemas ontológicos para questões epistemológicas e dessas para as questões metodológicas. Apenas creio que se houver consenso sobre a base a partir da qual nos lançamos à pesquisa sobre os processos básicos se ganhará em clareza sobre o conjunto da empreitada e se tornará claro como cada contribuição particular está integrada a esse empreendimento. Parecem-me haver dois grandes problemas ligados à possibilidade de tratarmos cientificamente dos processos básicos. O primeiro consiste na possibilidade de separá-los. Com efeito, parecem equivocadas as tentativas de descrever um único processo básico em separado dos demais se acreditamos que eles, na realidade, estão ligados uns aos outros. Seria como pretender conhecer algo sem a sua condição específica de existência. 99 É comum encontrarmos, por exemplo, teorias sobre a memória que a tratam como um objeto de estudo independente, sem fazer qualquer referência a outros processos básicos que normalmente julgamos estarem vinculados a ela - como a atenção ou a percepção (Tulving, 1972; Reyna e Brainerd, 1995; Brainerd e Reyna, 2005). À primeira vista, parece legítimo o argumento de que o tratamento que essas teorias dão à memória, como uma entidade independente, termina por invalidar sua própria pretensão de apreender a dinâmica da vida mental. Isto é, se é verdade que a memória está ligada à atenção e à percepção, uma boa teoria sobre ela não deveria deixar de envolver também esses outros processos básicos. E, se uma teoria sobre a memória não faz isso, ela não parece ser uma boa teoria na medida em que não apreende seu objeto de estudo no contexto em que ele existe. Essa suposta fraqueza das teorias sobre os processos básicos estaria ligada ao fato de promoverem um tratamento incompleto da realidade do fenômeno que se dispõem a estudar. Para compreendermos a dimensão dessa primeira dificuldade, devemos estendê-la à possibilidade de se separar qualquer processo básico da totalidade da cognição. Ela é uma decorrência de nossa maneira analítica de proceder no trato científico com tais processos. Em outras palavras, a primeira dificuldade é a seguinte: 1) é legítimo separar teoricamente um processo básico do outro, se tudo leva a crer que uma compreensão adequada deles exige uma perspectiva global? Uma “compreensão adequada” significa, aqui, a possibilidade de promover a apreensão intelectual de um processo básico, tendo em vista a sua suposta condição ontológica de existir integrado a outros processos. A segunda dificuldade está intimamente ligada à primeira. Com efeito, quando suspeitamos que o tratamento analítico dado aos processos básicos não é adequado, pressupomos que eles estão unidos na realidade. O problema com o tratamento analítico é que ele separaria artificialmente aquilo que supostamente está unido no mundo real. Isso nos remete à segunda dificuldade: 2) o que são os processos básicos realmente – quer dizer, para além das teorias que os separam? Essa segunda questão submete à dúvida aquilo que aparece como um postulado inquestionável na primeira. Observe que a primeira só tem importância por partir da idéia de que há uma diferença entre o plano do conhecimento (analítico) e o plano da realidade (sintético). Acredito que sem resolver essa segunda questão não resolveremos a primeira. Em geral, muitos psicólogos cognitivos entendem seu próprio trabalho como um esforço de apreensão da realidade exterior e como parte de um longo processo de revelação de um mundo ainda desconhecido. Essa postura é denominada de realismo (Rorty, 1991a; 1991b) e será melhor descrita abaixo. Acredito que a maioria dos psicólogos cognitivos estaria disposta a assumir a primeira dificuldade na medida em que reconhece que suas teorias são analíticas embora também admita que a realidade seja sintética. Porém, 100 SILVEIRA creio que para a maioria deles a segunda dificuldade não faça muito sentido. Embora ela não seja muito discutida, é evidente que ela visa justamente àquilo que é um pressuposto da primeira dificuldade. Tomando essa segunda questão como o foco principal, pretendo tornar evidente no restante desse artigo que sua resolução implicará na vantagem adicional de eliminarmos a primeira. Ou seja, resolvendo a questão do estatuto ontológico dos processos básicos, se diluirá a dificuldade gerada pela matriz realista - o suposto descompasso entre procedimentos epistemológicos analíticos e o caráter sintético da realidade. Essa dificuldade a ser removida é bastante relevante quando consideramos que ela está presente na Psicologia sempre que se visa um dos processos básicos em particular. Ela nos permitirá eliminar a disfunção metodológica que se identifica ao reconhecermos que nossos procedimentos são analíticos, embora a realidade seja sintética. Isto é, ela nos permite superar a diferença que reconhecemos existir entre como os processos básicos são (sintéticos) e como nós o tratamos na Psicologia (de maneira analítica). Análise e síntese Há um modo bastante difundido de se entender o trabalho da ciência como um esforço de descobrimento ou de exposição de uma realidade que se encontra oculta (Sagan, 1996). Assim, o conhecimento avançaria na apreensão da realidade na proporção em que diminuiria nossa ignorância. Nesse sentido, qualquer forma de conhecimento também é uma forma de desvelamento do mundo real, uma busca por mostrar o que se encontra oculto além da nossa consciência. A evolução da ciência seria, portanto, o crescente aumento de nossa capacidade de iluminar a escuridão das trevas exteriores e a ampliação de nossa compreensão do vasto império exterior que se encontra escondido. Esse modo de entender o conhecimento humano possui suas origens na Grécia Antiga, no pensamento de Platão (1974) e Aristóteles (1982). Embora esses filósofos antigos divirjam sobre o que é o verdadeiro objeto do conhecimento, estão de acordo sobre sua função básica: obter a posse de uma realidade exterior. Como a tarefa principal é apreender intelectualmente um objeto real pré-existente e fora da consciência, essa perspectiva é chamada de realismo (Rorty, 1979). Desse ponto de vista, conhecer os processos básicos seria, então, retirar o véu que está sobre eles e trazê-los à luz. Para essa perspectiva realista, as teorias sobre a memória ou a atenção seriam descrições de como esses processos funcionam na realidade. E, se pensarmos que eles estão conectados uns aos outros na realidade, seria sempre possível acusar qualquer uma dessas teorias de ser incompleta. Além disso, elas também poderiam ser responsabilizadas por deturpar seu objeto estudo, na medida em que o arrancam de seu contexto de origem. Ou seja, é a própria tentativa de apreender a realidade que trairia a sua natureza. A ação de conhecer altera o que deveria ser conhecido. A consciência desse tipo de interferência do aparato cognitivo sobre o objeto de conhecimento foi explicitada por Kant (1781/2001) e Hegel (1806/2007). Na melhor das hipóteses as teorias sobre um dos processos básicos seriam incompletas, pois a forma como representam seu objeto de estudo não inclui a vinculação que um desses processos possui com os demais. Além disso, dependendo do grau de radicalidade com o qual se encara a questão, seria possível argumentar que o tratamento analítico também desconsidera a moldura mais ampla do organismo em que os processos básicos ocorrem, assim como o ambiente em que ele atua. A idéia de que conhecer é operar certo corte na realidade está ligada à perspectiva realista de compreender o conhecimento científico. Isso ocorre porque a realidade está lá fora, mas não pode ser conhecida como uma totalidade desde o início. Temos que separá-la para entendê-la. Contra as teorias construídas a partir dessa noção de análise da realidade, sempre será possível argumentar que elas tratam seus objetos de maneira inadequada. E isso pode ocorrer mesmo quando os cientistas afirmam que isso é somente uma deficiência momentânea do conhecimento atual e que no futuro estarão em condições de reunir os conhecimentos parciais e construir uma apreensão mais completa e representativa de toda a realidade. Essa inadequação significa que aquilo que o conhecimento realiza é uma modalidade de má representação de seu objeto de estudo. Ou seja, o conhecimento não consegue estar plenamente no lugar do objeto - como pretende a definição realista do termo representação (Silveira, 2004). Ele não faz justiça ao objeto que pretende apreender na medida em que altera o seu significado ao separá-lo de seu contexto ontológico de origem e obtém dele apenas uma visão parcial e fragmentada. Assim, se os processos básicos estão ligados uns aos outros no plano real, eles se tornam independentes no âmbito do conhecimento científico. Logo, aquilo que conhecemos não corresponde ao que existe, pois conhecemos em separado o que existe em conjunto. O conhecimento científico dos processos básicos seria, na melhor das hipóteses, uma representação que toma a parte pelo todo. Dessa forma, ele estaria cometendo um pecado lógico fundamental chamado de falácia da divisão (Copi, 1981). Essa situação de falta de correspondência entre o aspecto sintético do objeto e os procedimentos analíticos do conhecimento não é minimizada por aquela afirmação já referida de que o conhecimento atual dos processos básicos é analítico porque a Psicologia Cognitiva ainda não está suficientemente capacitada para entender a totalidade completa que os constitui realmente. Não há nenhuma garantia de que o tratamento analítico possa conduzir a uma melhor compreensão de objetos sintéticos em algum futuro remoto. Portanto, essa afirmação é somente a manifestação PROCESOS BÁSICOS Y COGNICIÓN de fé de alguns cientistas de que procedimentos inadequados hoje redundarão em conhecimento verdadeiro no futuro. A questão é que um tratamento científico incorreto, desde a origem, não parece poder se transformar em conhecimento adequado através do seu aprofundamento ao longo do tempo, como sugere aquele gesto de fé. A inadequação só deverá aumentar, ampliando a distância entre o modo como as coisas são e a maneira como as conhecemos. O conhecimento das partes em separado não nos ajuda em nada a conhecer a totalidade. Pelo contrário, esse conhecimento fragmentado torna a apreensão sintética ainda mais remota ao insistir em procedimentos que promovem a fragmentação. Ele é claramente equivocado se contraposto ao seu objeto sintético de estudo. Pode-se notar que há sérias dificuldades ocasionadas pela promoção de uma perspectiva epistemológica analítica no trato com uma suposta natureza sintética dos processos básicos – a partir da matriz realista. Uma alternativa epistemológica sintética poderia representar uma boa solução dentro dessa maneira de pensar. Ela significaria uma alteração dos procedimentos epistemológicos no sentido de fazerem justiça à suposta natureza sintética do objeto de estudo. Ou seja, adotaríamos procedimentos epistemológicos sintéticos desde o princípio e não em um futuro remoto e indeterminado - já que é isso o que parece solicitar a suposta estrutura ontológica sintética dos objetos de estudo de uma ciência da cognição humana. Isso significa que passaríamos a adotar a estrutura ontológica sintética como modelo e critério para os procedimentos epistemológicos. Da ciência ao misticismo Aparentemente, isso nos colocaria em condições de representar adequadamente os processos básicos, pois não haveria nenhuma alteração substancial na passagem do plano ontológico para o epistemológico. Evitaríamos que nossa ação de conhecer alterasse o objeto que visamos apreender. Essa hipotética opção por uma epistemologia sintética consistiria na negação do caráter fragmentário dos processos básicos e na necessidade de construir uma alternativa científica que trate esse objeto de estudo na sua integridade real. Contudo isso significa não somente que um conhecimento autêntico e legítimo dos processos básicos implicaria a todos eles, simultaneamente, como também a necessidade de incluir o organismo em que eles ocorrem e todo o ambiente no qual esse organismo opera. Um conhecimento dos processos básicos nesses termos seria, em uma palavra, um conhecimento de todas as coisas. Nesse sentido, não haveria nenhuma diferença entre conhecer a memória e o universo. Aliás, somente o conhecimento do universo seria, de fato, científico em um sentido sintético estrito. Qualquer separação mais específica seria novamente um erro cometido contra a integridade da realidade. 101 O que é improvável nessa noção de conhecimento é o fato de que ela consiste em uma ciência sintética da qual nenhuma parte pode ser destacada sob a forma de um objeto de estudo em particular. Em outras palavras, um conhecimento sintético e ontologicamente legítimo seria somente o conhecimento total, o conhecimento de todas as coisas produzido de uma só vez. Isso porque a existência de progresso ou de acúmulo de conhecimento também é a expressão de procedimentos de análise. Só há progresso no conhecimento porque conhecemos pouco a pouco. Isto é, porque não conhecemos tudo tal como ele existe. Conhecer um único aspecto do mundo implicaria em conhecer simultaneamente tudo o mais: todos os processos básicos, a totalidade do organismo em que esses processos ocorrem e também o ambiente completo em que o organismo vive. Além de ser completa, a obtenção desse conhecimento deveria ser definitiva, já que ele teria que se originar e terminar na consciência como um único evento. Essa ciência seria uma espécie de iluminação instantânea da consciência acerca do que é a totalidade do mundo. Trata-se de algo claramente impossível de ser realizado nos termos dos empreendimentos racionais da ciência ocidental e se assemelha mais a experiências místicas do que a processos de conhecimento. Processos envolvem etapas e graduações que consistem em partes obtidas em separado no tempo e no espaço. Logo, um processo é derivado de um procedimento epistemológico analítico. É evidente que um conhecimento sintético como o que estamos descrevendo não pode ser gradual. Não estou negando que seja possível que experiências místicas produzam esse tipo de conhecimento definitivo. Entretanto, como essa iluminação instantânea da consciência não pode ser comunicada, ela descumpre uma das regras básicas da atividade científica: o caráter público do conhecimento. Logo, se alguma forma de misticismo pode produzir uma apreensão sintética da realidade, ele não pode tornar esse conhecimento acessível de forma pública por meio da linguagem – já que esta última também depende de um processo de comunicação. Dada sua natural incomunicabilidade, ficamos sem poder saber se tal conhecimento existe de fato. Portanto, do ponto de vista público, exigido pela ciência, não há como ter acesso a tal conhecimento – se é que ele existe. Note que a perspectiva geralmente denominada de estudos da complexidade ou de paradigma da complexidade (Morin, 1990) deve se debater permanentemente com as conseqüências de sua crítica ao procedimento analítico: se separar é uma espécie de traição ao objeto, somente o conhecimento da totalidade é plenamente fiel a ele. Do ponto de vista epistemológico, não interessa se a análise implica muitas ou poucas divisões e sim que o procedimento de separação é uma descaracterização do seu objeto integral de estudo, porque rompe a sua integridade original. A recuperação do caráter ontológico integral, a complexidade, parece conduzir ao misticismo, como indicamos acima, e não à ciência. Complexidades intermediárias parecem ser 102 SILVEIRA tão ruins quanto análises excessivamente fragmentadoras. O problema não parece estar no quanto se divide um objeto de estudo e sim em que o dividimos para conhecê-lo. Com efeito, isso parece ser o dilema de todas as perspectivas que criticam a noção de conhecimento como fundado em alguma modalidade de corte na realidade do mundo. Ao recusar o corte, a tentativa de preservar o suposto caráter sintético da realidade, termina por postular um conhecimento completo e obtido sem processos e gradações - algo que parece ser claramente impossível de ser obtido por seres humanos finitos como nós ou, pelo menos, de ser comunicável. A maldição da correspondência Em síntese, até o momento temos a seguinte situação. Por um lado, notamos que a promoção de uma atitude analítica, que corta um determinado aspecto da realidade, não nos coloca na direção de um conhecimento válido dos processos básicos. Ele parece comprometer a possibilidade de um conhecimento adequado desses processos na medida em que nada nos garante que a análise das partes poderá nos levar a um conhecimento da totalidade da atividade cognitiva. Então, ele é um procedimento científico equivocado porque nos distancia da verdadeira apreensão dos processos básicos. Não parece razoável, senão como expressão de uma atitude religiosa, afirmar que no futuro a análise conduzirá a um conhecimento sintético. Por outro lado, vimos também que a tentativa de preservar o caráter integral da realidade não nos leva à possibilidade de obter um conhecimento científico dela, dadas as suas características exorbitantes e contrárias ao caráter público requerido pela ciência. De um lado, nos deparamos com a ilegitimidade de todo conhecimento analítico produzido e, de outro, com uma utopia irrealizável de um conhecimento sintético da totalidade das coisas. O que nos resta, além dessas duas alternativas extremas e aparentemente paralisantes? Uma maneira de evitar tais problemas é abrir mão do enquadramento conceitual realista em que o problema foi apresentado até agora. Com efeito, o dispositivo teórico do realismo implica duas instâncias distintas na sua explicação do conhecimento: uma ontológica e uma epistemológica. A ontológica corresponde à esfera do objeto e a epistemológica à esfera do sujeito. Isso indica que estamos concebendo o conhecimento humano como a apreensão de uma instância ontológica exterior com relação ao sujeito que a conhece. A própria idéia de não obtermos um conhecimento completo da realidade através de procedimentos analíticos indica a carência de uma desejável correspondência entre essas duas instâncias. É evidente, portanto, que estamos nos movendo em um escopo teórico caracterizado pela busca de correspondência entre o plano ontológico e o epistemológico. De fato, essa busca por correspondência ou por uma representação correta do mundo exterior é uma das características marcantes do realismo. Uma maneira de pensar alternativa a essa é defender que o conhecimento não consiste na tentativa de estabelecer uma correspondência epistemológica com o âmbito ontológico. Assim, podemos pensar que o conhecimento não significa a apreensão de uma realidade exterior. Mas, se o conhecimento não visa apreender à realidade, resta o problema de sua referência. Conhecimento sem objeto? Tradicionalmente, entendemos os problemas do conhecimento a partir de uma matriz conceitual realista. A partir dessa matriz se produzem todas as dificuldades relativas à correspondência entre o plano ontológico e o epistemológico que foram apresentados. Se resolvermos eliminar toda essa série de problemas e tentamos entender o conhecimento sem a noção de correspondência, a situação muda radicalmente. Para eliminarmos as questões de correspondência, teremos que anular o pressuposto de que a realidade já está lá fora como um objeto a ser conhecido. Note que isso não é um lance gratuito, porque estamos eliminando algo que era somente um pressuposto da noção realista de conhecimento: a diferença entre o plano ontológico e o epistemológico. Embora em geral pareça muito óbvio, não há provas convincentes sobre a existência de objetos no sentido realista, como o demonstram mesmo as formas mais radicais de empirismo (Hume, 1739/2001). Ao eliminar o pressuposto da existência de uma realidade pré-existente que nosso conhecimento deveria apreender, abandonamos a busca pela correspondência e pela boa representação. Assim, não existiriam os tais processos básicos sintéticos que serviriam como parâmetro para o conhecimento analítico. Ficamos com um único dos termos do problema anterior: com o próprio conhecimento. E ficamos com ele porque sabemos que ele existe, já que somos nós que o produzimos. Podemos ter dúvidas sobre a realidade exterior, mas não sobre possuirmos algum conhecimento. Quando nos desapegamos de nossas crenças realistas e abrimos mão do pressuposto atávico da existência de uma realidade exterior que o conhecimento deveria representar bem, só ficamos com esse último elemento. Dessa perspectiva, tudo o que há é o conhecimento e não o conhecimento de algo exterior a nós. Assim, o que nós antes chamávamos de realidade agora tem de ser entendido como resultado da própria atividade do conhecimento. Então, só existiria aquilo que conhecemos. Um princípio que Berkeley (1710/1973) defendeu ao afirmar que a existência é um resultado do conhecimento. Se partirmos desse princípio, a noção de conhecimento como correspondência perde todo o sentido na medida em que não há, desde o princípio, uma dualidade a ser superada. PROCESOS BÁSICOS Y COGNICIÓN Com isso, eliminamos os problemas realistas decorrentes da necessidade de representação e de correspondência. Observe que o princípio que nos conduziu ao dilema entre um conhecimento analítico e uma realidade sintética é a necessidade de correspondência entre a esfera da realidade e a da ciência. Abrindo mão dessa cisão inicial, ficamos em condições de postular alternativas. Na prática, isso significa que um dos extremos da concepção realista de conhecimento foi eliminado e, com ele, aqueles problemas oriundos da adequação de uma a outra. O conhecimento não deve mais ser adequado a uma realidade, já que não há algo assim. Então não há mais necessidade de adequação ou correspondência. E, dessa forma, não há também nenhum problema de inadequação entre ontologia e epistemologia. Nessa nova moldura teórica, todos aqueles problemas deixam de ter sentido. Isso significa que o conhecimento humano não possui um objeto de referência exterior, mas não que ele não possua um objeto de referência. Com efeito, há um objeto do conhecimento: aquilo que é definido no interior do próprio conhecimento por meio de procedimentos epistemológicos. O que queremos conhecer quando tratamos de processos básicos não é um objeto externo, mas algo que é identificado pelas próprias definições que somos capazes de oferecer para processos básicos. Isto é, os processos básicos são entidades teóricas para todos os efeitos – e nada mais além disso. Eles não estão em contato, por qualquer meio, com processos básicos exteriores no sentido realista do termo. Definições são apenas entidades lingüísticas. Com a introdução de uma definição de memória, por exemplo, criamos a entidade memória. Isto não significa que ela começa a existir no mundo exterior porque a definimos. A definição do termo memória torna possível que nós possamos nos entender e resolver determinados tipos de problemas. Nesse sentido, algo existe porque consiste em uma crença aceita e compartilhada por várias pessoas e não porque já estava lá fora antes ou porque passou a estar lá fora quando a definimos. É o conhecimento que possuímos que torna a existência de algo possível – porém sem envolver aquele sentido de exterioridade típica do realismo. O conhecimento nesses termos não realistas continua possuindo um objeto: aquele que é definido internamente pelo próprio conhecimento. Como as definições são instrumentos para a criação e a resolução de problemas é comum denominar essa corrente de instrumentalismo (Rorty, 1991a). Com a adoção do instrumentalismo, eliminamos todas as dificuldades que emergiam da noção de conhecimento como correspondência com a realidade. O instrumentalismo é um dos princípios da posição pragmatista e, mais especificamente, da posição neopragmatista de Richard Rorty (1979; 1982; 1989; 1998; 2007). O termo neo-pragmatista é utilizado para diferenciar Rorty dos pragmatistas clássicos: Peirce, Dewey e James. Entretanto, sigo a sugestão do próprio Rorty e evito essa 103 distinção que é, de fato, desnecessária aqui. Para o que interessa na presente discussão, basta sabermos que o pragmatismo é uma perspectiva instrumentalista e antirealista. Gostaria de acrescentar dois esclarecimentos adicionais sobre a posição pragmatista que envolvem o instrumentalismo e o anti-realismo. O primeiro esclarecimento diz respeito à noção de objetividade. Adotar a alternativa pragmatista não implica em afirmar que “A distinção entre objetivo e subjetivo é desnecessária” (Borba e Tourinho, 2009, p. 2). Obviamente a distinção entre objetivo e subjetivo desaparece quando tentamos garantir que essa diferença seja derivada de critérios realistas por meio da correspondência (o que é objetivo corresponderia ao real e o subjetivo não). Mas ela persiste enquanto uma diferença interna nas práticas epistemológicas dos membros de uma comunidade de cientistas na matriz pragmatista. Isto é, para uma determinada comunidade de cientistas usuários de uma linguagem sempre há uma distinção entre o que é de caráter objetivo e o que é subjetivo. O que é objetivo é o que uma dada comunidade reconhece como tendo existência pública e comprovada. Definições aceitas por ela são objetivas. Portanto, cada comunidade faz suas próprias distinções entre o que considera objetivo e o que considera subjetivo. Essas distinções estão sempre presentes nas atividades de investigação, mesmo como um valor implícito. Se não houvesse, de fato, uma distinção entre objetivo e subjetivo, não haveria nenhuma diferença entre ciência e opinião. O que o pragmatismo critica é a noção de que tais conceitos são derivados de algum contato especial com a realidade e não que eles sejam inadequados em todos os sentidos. Portanto, mesmo nesse contexto não-realista e instrumentalista, se preserva a validade da distinção entre objetividade e subjetividade. É essa distinção que permite diferenciar as práticas públicas da ciência das práticas privadas do devaneio individual e das experiências místicas. Sem objetividade, não há ciência. O segundo esclarecimento diz respeito à tentativa de obter apoio do pragmatismo para teorias particulares. Por exemplo, se é verdade que o Behaviorismo (Borba e Tourinho, 2009) pode obter algum tipo de legitimização epistemológica por parte de uma vertente pragmatista, isso é igualmente válido para o platonismo – que usa uma linguagem essencialista e realista. A questão fundamental é que para o pragmatismo não há uma maneira de se obterem privilégios epistemológicos realistas para teorias particulares. Isso ocorre porque não há como conectar teorias com uma realidade exterior. Logo, os critérios de objetividade e cientificidade são obtidos das práticas lingüísticas das comunidades particulares de cientistas. Dessa forma, não há sentido em pretender que o Behaviorismo seja mais verdadeiro que o Platonismo por ser instrumentalista. Ambas as formas de discurso científico obtém apoio de suas respectivas comunidades científicas. Não há critérios independentes dessas comunidades. 104 SILVEIRA Sendo assim, chegamos à questão epistemológica central: é a própria discussão sobre legitimidade epistemológica que deixa de ter sentido para o pragmatismo. Não há como pretender que o pragmatismo beneficie uma ou outra teoria científica particular por questões de afinidade ou de proximidade. Não é porque uma teoria possui pontos de contato com o pragmatismo que ela poderá ser considerada mais verdadeira ou mais legítima. Pensar dessa forma, é preservar um procedimento realista dentro de uma postura pragmatista. Há uma diferença entre criticar o realismo em benefício de uma posição behaviorista e a dissolução dos problemas do realismo, como defende o pragmatismo. O que o pragmatismo de Rorty (1991) diz é que o debate por legitimação do conhecimento perdeu o sentido. Logo, a busca por privilégios epistemológicos é ainda um resíduo do realismo, mesmo quando se afirma tê-lo abandonado. Nesse sentido, para o pragmatismo o que é decisivo não é mais uma discussão teórica para estabelecer parâmetros de cientificidade e sim as condições práticas de uso da linguagem dentro das comunidades científicas. Ou seja, a questão principal sobre o conhecimento abandonou o plano epistemológico tradicional e adotou um novo âmbito epistemológico em que são as práticas das comunidades científicas que estabelecem valores de objetividade. Esse novo âmbito é claramente político. Pragmatismo e liberdade Entretanto, o pragmatismo possui seus próprios desafios, em que pese parecer ter introduzido uma enorme liberdade no exercício da atividade científica. Essa liberdade diz respeito ao fato de não haver mais um parâmetro que deve ser respeitado por ter sido derivado do âmbito ontológico. Com efeito, sem a pressão de uma ontologia pré-definida como a das posturas realistas, parece que o conhecimento científico poderia criar mundos novos, forjar novas ontologias de acordo com qualquer tipo de princípio e de forma inteiramente livre (Ghiraldelli,1999). Aparentemente o conhecimento poderia navegar sem nenhum tipo de âncora. Entretanto, sabemos pela prática científica efetiva que nem tudo é aceitável em matéria de conhecimento. Existem limites sociais para o exercício livre da subjetividade no interior das comunidades de usuários de determinada linguagem. Compartilhamos algumas crenças sobre os processos básicos: definições, metodologias de investigação, resultados razoavelmente bem estabelecidos e uma agenda de problemas a serem enfrentados em função das teorias vigentes. Esse conjunto de parâmetros funciona como critérios que temos que obedecer para sermos entendidos, mesmo quando propomos algo extremamente radical e inovador. O convencimento só pode ser produzido dentro de uma base compartilhada de crenças. Essa base é um requisito para a compreensão mútua e para a pertinência do que é dito. Ela é uma âncora, embora seja uma âncora interna. Não há atividade cientifica que não seja feita dentro desses parâmetros socialmente compartilhados. Assim, o trabalho científico é um trabalho eminentemente social e não deve ser confundido com o trabalho subjetivo de um artista – em que a liberdade é muito maior. As âncoras ou as limitações se impõem naturalmente e são estabelecidas pelas práticas políticas dentro de cada comunidade de cientistas e não como resultados de discussões teóricas ou decretos feitas por epistemólogos ou filósofos da ciência. Isso evidencia a existência de constrangimento social na proposição de inovações científicas (Kuhn, 1962/2003) que pode servir como um conforto para aqueles que se alarmam com o abandono das referências realistas. Sem essas últimas, o trabalho científico não fica sem parâmetros de cientificidade e objetividade, como mostrei acima. Apenas passamos a reconhecer que os parâmetros não são exteriores, mas eles continuam a existir. Assim, embora a perspectiva pragmatista possa nos liberar da baliza de uma ontologia exterior, ela não nos libera de todas as limitações. Ou seja, o conhecimento científico, mesmo em tais parâmetros flexíveis, possui limitações e parâmetros e não se identifica com o exercício de uma imaginação subjetiva fértil e ilimitada. Com isso, podemos afastar a idéia de que, estando libertos da estabelecer uma correspondência entre o conhecimento e a realidade, poderia parecer que podemos tudo e que a ciência se transformaria em um jogo sem regras em que tudo é permitido. O pragmatismo certamente não é um relativismo. Há limitações para a prática da atividade científica, porém elas não são originárias do exterior e sim do próprio âmbito em que o conhecimento é produzido. Tais limitações são políticas e dizem respeito à necessidade desse conhecimento ser produzido e compartilhado no contato com outros seres humanos. Embora, a princípio, tudo seja logicamente possível, nem tudo é aceitável, justamente porque uma das características do conhecimento científico é que ele exige o respaldo de uma comunidade científica. A aceitabilidade social não é uma conseqüência da verdade de uma teoria e sim o seu próprio processo de obtenção. Assim, as prováveis ontologias que podem vir a ser propostas por cada cientista em particular deverão passar pelo crivo de uma discussão pública que levará ou não à sua aceitação. Dessa forma, se aceitamos vários conceitos de memória (memória semântica, episódica, de curto e de longo prazo, de trabalho etc), várias memórias existirão até que a comunidade de cientistas chegue a um consenso sobre o que é memória. Isso não impede que alguns de nós possamos ter convicção sobre um conceito particular de memória. Uma ontologia privada não vale como ontologia pública, até passar pelo crivo da aceitação de outras pessoas. Os limites para a instauração ontológica de uma nova realidade sempre são dados pelo que é típico da atividade científica: a discussão pública de seus resultados ou, se quisermos, sua estrutura democrática (Rorty, 1982; 2007). É essa última que 105 PROCESOS BÁSICOS Y COGNICIÓN impulsiona e põe limites ao que é aceitável em ciência. É essa estrutura que difere a ciência do uso subjetivo e poético da imaginação e não algum suposto contato privilegiado com a realidade exterior. Conclusão: o que são processos básicos? Uma das conclusões mais importantes que podemos inferir da alternativa pragmatista é justamente que a ciência não é um desvelamento ou uma tentativa de descrever a realidade. Ela é apenas um modo de fazermos frente aos problemas cotidianos e não possui uma ligação especial com nenhum âmbito ontológico exterior. O que ela possui de especial é seu caráter democrático e público e é isso que garante que ela formule maneiras alternativas de resolver problemas humanos. É óbvio que há arranjos científicos mais ou menos democráticos, mas se nós pretendemos que a ciência se torne eficaz e gere soluções, devemos zelar pelo seu caráter público e transparente e incentivar a diversidade de posições no seu interior. O autoritarismo presente na falta de diversidade ou na ausência de um ambiente de debate sobre o conhecimento é especialmente danoso porque contraria o próprio conceito de ciência. Mas, o que nós efetivamente ganhamos com uma solução pragmatista para a questão dos processos básicos? Em primeiro lugar, nos liberamos de todos aqueles problemas gerados pela noção de correspondência entre ontologia e epistemologia. Todas as críticas ao caráter fragmentário do conhecimento sobre os processos básicos são fundadas na noção de correspondência. Em termos pragmatistas, não há fragmentação ilegítima quando separamos a memória da atenção ou do raciocínio. Também não há fragmentação ilegítima quando separamos memória semântica de memória episódica. Não há ilegitimidade alguma em distinções analíticas. Só há ilegitimidade quando não há aceitação de tais distinções por uma comunidade de cientistas. Crenças compartilhadas são crenças epistemologicamente legítimas. Crenças não compartilhadas são certamente crenças subjetivas. Em segundo lugar, obtemos um grau enorme de liberdade para postular tipos de entidades que podem vir a existir no mundo. Para aqueles que julgam que o conhecimento científico é o contrário do exercício livre da imaginação e da poesia, isso deve ser uma surpresa. Eles são, de fato, semelhantes. Obviamente não devemos esquecer que cada comunidade científica possui seus parâmetros de aceitação para que uma entidade seja reconhecida como existindo de fato. Ou seja, trata-se de liberdade com moderação social – exatamente o mesmo tipo de prática social que caracteriza a nossa liberdade cotidiana. Um terceiro fator importante é a questão da tolerância epistemológica. Há várias formas de se fazer ciência e se produzir conhecimento. A perspectiva pragmatista que delineei acima nos obriga a reconhecer a legitimidade de todas elas, desde que elas tenham como base uma comunidade que lhes confira validade. Não há uma forma correta de fazer ciência e sim várias. Não há uma metodologia científica e sim várias. Permanecer na busca e na defesa de exclusividade de métodos ou de procedimentos é lesar a principal marca da ciência: a abertura para novas possibilidades. Ninguém em particular está de posse do conjunto de procedimentos que abre o cofre secreto da realidade, porque não há um cofre secreto. Portanto, não existe uma hierarquia no plano epistemológico de tal forma que um tipo de prova seja superior ao outro ou de tal maneira que um procedimento seja mais científico do que outro. Há padrões de aceitabilidade que podem e devem ser continuamente aperfeiçoados. Isto é, a ciência é o reino da democracia epistemológica e a proliferação da diversidade é sua virtude principal. Acreditar que estamos fazendo uma ciência mais verdadeira ou superior porque seguimos os parâmetros de nossa comunidade científica é uma vaidade desnecessária que tende a nos cegar para a diversidade de possibilidades que sempre se encontram abertas diante de nós. Só podemos fazer ciência optando por uma forma de ciência, mas não podemos esquecer que se trata sempre de uma opção de adesão a determinados parâmetros. O fato de serem os nossos parâmetros prediletos não diz nada sobre alguma suposta legitimidade especial por parte deles. A quarta e última vantagem é que nessa perspectiva pragmatista, podemos responder à questão sobre a natureza dos processos básicos sem cair nas dificuldades da visão realista sobre o conhecimento científico. Os processos básicos são entidades que existem separadamente uns dos outros na medida em que foram definidos e reconhecidos pela comunidade de cientistas que os estudam. Isso não exclui a possibilidade de que, no futuro, o conhecimento de cada um deles seja integrado em um único objeto de estudo: a cognição humana ou a mente. Isso inclusive é algo que julgo constituir, cada vez mais, parte de nossa agenda de pesquisa. O que não há aqui é uma hierarquia entre o conhecimento analítico e a pretensão de se obter uma síntese. Ambos são possíveis e aparentemente desejáveis. Entretanto, sua viabilidade é uma questão prática que será resolvida em função de nossas atividades hoje e no futuro. Referencias Aristóteles. (1982). Metafísica. Madrid, Spain: Gredos. Berkeley, G. (1973). Tratado sobre os princípios do conhecimento humano. São Paulo, Brazil: Abril Cultural. (Orig. 1710). Borba, A., & Tourinho, E. Z. (2009). Usos do conceito de eventos privados à luz de proposições pragmatistas. Estudos de Psicologia (Natal), 14(2), 1-10. Brainerd, C. J., & Reyna, V. F. (2005). The science of false memory. Oxford: Oxford University Press. Canguilhem, G. (s.d). 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