TRECHO DE BOQUETE O céu estava bem azul, sem nuvens. O

Transcrição

TRECHO DE BOQUETE O céu estava bem azul, sem nuvens. O
TRECHO DE BOQUETE
O céu estava bem azul, sem nuvens. O clima, quieto, nem as folhas das árvores balançavam. O sol estava lá, já
quente, embora não fossem sete da manhã. Ninguém passava por ali, ninguém viu quando Vermelho abriu a porta
e saiu de dentro da casa, segurando um balde azul cheio. Debaixo do outro braço ele tinha uma brocha larga e
nova. Olhou para os lados, como se procurasse alguém, sentiu o ar fresco entrar em seus pulmões e caminhou até a
frente da casa principal. Estava agora bem diante daquele amarelo esmaecido, que lhe causava enjoo. Olhou com
cuidado. Aquela cor pálida, toda craquelada, era realmente horrível. Aquela casa era uma casa sem vida, sem cor,
desbotada. O ânimo dele estava assim também.
Há tempos ele queria isso, pintar a casa de vermelho, a sua cor, o seu nome. Não era um pedido complicado, não
havia nenhum sacrifício em aceitar isso. Mas Sara não queria, gostava do amarelo, tinha trauma de casas pintadas
de vermelho. Mas ele ia pintar.
Colocou o balde no chão, enfiou a brocha ali, ergueu pelo cabo o máximo que pôde. E começou a cobrir o amarelo
com aquele vermelho escuro, brilhante. A cor aderia totalmente à parede, que parecia sedenta. E ele ia pintando
obstinado, enquanto a parede sugava.
Fazia já uns vinte minutos que ele estava ali, quando as meninas começaram a acordar. Os pássaros cantavam, o sol
batia forte e ele sabia que o dia estava começando cedo no Recanto Drinks. Não ligou para o barulho das primeiras
janelas batendo, os primeiros olhares curiosos de dentro da casa. Ouviu também algum tilintar de xícaras e seguiu
firme em seu propósito. Pintava a casa de vermelho: era isso o que estava fazendo.
Uma das garotas saiu para olhar. Viu-o coberto de respingos, olhou para a parede vermelha e percebeu as moscas.
Muitas. Cobrindo boa parte da parte pintada. Olhou mais uma vez para ele e fitou seus olhos vidrados. O próximo
sentido a ser aguçado foi o olfato, o cheio podre. Entrou correndo na casa, segurando o vômito e um grito.
Quinze minutos depois, quase toda fachada estava vermelha e as moscas se amontoavam por todo espaço, vindas
de todos os lados. Ele estava também todo respingado, o vermelho misturado ao ruivo dos cabelos e da barba não
feita. E moscas também sentando nele. Ele estalou a língua e sentiu o gosto ruim na boca, gosto de bílis, metálico.
Os carros da polícia chegaram, junto com algumas pessoas da redondeza, do comércio da área rural.
Os policiais foram se aproximando com armas em punho, cuidadosos. Ele permanecia imóvel, parado defronte a sua
última grande obra, olhando para aquela parede frontal completamente vermelha, com pontos e pontos móveis
negrinhos, as moscas que dançavam.
Já fazia uns cinco ou dez minutos que ele estava ali, inerte, quase sem piscar, contemplando seu maravilhoso
trabalho.
- O que está acontecendo aqui? - perguntou o policial, apontando para o peito de Vermelho.
- ...
- O senhor mora nessa casa? O que é isso aí na parede?
- ...
- Que cheiro insuportável! Oh, meu Deus! – exclamou o policial, checando o balde azul, inerte no chão - Isso é
sangue!
- É sim - respondeu Vermelho. É da Sara.
...