CENTRO DE ENSINO FACULDADE SÃO LUCAS Nauanny Karem
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CENTRO DE ENSINO FACULDADE SÃO LUCAS Nauanny Karem
CENTRO DE ENSINO FACULDADE SÃO LUCAS Nauanny Karem Rodrigues de Lima Silva NANOCORPOS DE CAMELÍDEOS COMO ALTERNATIVA PARA NEUTRALIZAÇÃO DE TOXINAS ANIMAIS Porto Velho – RO 2015 NAUANNY KAREM RODRIGUES DE LIMA SILVA NANOCORPOS DE CAMELÍDEOS COMO ALTERNATIVA PARA NEUTRALIZAÇÃO DE TOXINAS ANIMAIS Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Biomedicina da Faculdade São Lucas, para obtenção do grau de Bacharelado. Orientador: M.e Marcos Barros Luiz Porto Velho – RO 2015 NAUANNY KAREM RODRIGUES DE LIMA SILVA NANOCORPOS DE CAMELÍDEOS COMO ALTERNATIVA PARA NEUTRALIZAÇÃO DE TOXINAS ANIMAIS Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Biomedicina, para obtenção do grau de Bacharelado da Faculdade São Lucas. Aprovado (a): ___________________________ M.e Marcos Barros Luiz ___________________________ Nome – Local de origem (Membro) ___________________________ Nome – Local de origem (Membro) Porto Velho – RO 2015 AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente a Deus, pela minha vida e saúde. Aos meus pais que não mediram esforços para me proporcionar sempre o melhor. É imensurável o amor e admiração que tenho por vocês. A minha única e essencial irmã, pela companhia, risadas e brigas que foram de fundamental importância para o meu amadurecimento social. Aos meus avós, tios e primos, que mesmo de longe nunca deixaram de torcer por mim. Ao meu companheiro Jhenys Douglas por toda paciência, atenção e força prestada em todos os momentos. As minhas queridas amigas Keila Vitorino, Micheli Ribeiro e Rafaela Coelho, pela parceria em todas as horas, pelas várias gargalhadas e apoio durante toda a graduação. Ao amigo e orientador M.e Marcos Barros, por todos os ensinamentos, dedicação, paciência e incentivo. Tenho imensa admiração por você! As professoras Dra. Carla Celedônio e Dra. Soraya Santos, por contribuírem de forma enriquecedora para o meu crescimento cientifico e por toda generosidade ao me incluir em sua esquipe. A toda Fiocruz Rondônia, em especial ao laboratório de Engenharia de Anticorpos, responsável por despertar o interesse para pesquisa e o conhecimento base necessário para construção deste trabalho. RESUMO Os acidentes causados por animais peçonhentos representam um importante problema de saúde pública, sendo principalmente provocados por serpentes, escorpiões e aranhas. Esses animais estão presentes em todo o mundo e são considerados os de maior relevância médica, devido ao alto índice de acidentes e óbitos anuais. O tratamento recomendado às vítimas de envenenamento é realizado com administração de imunobiológicos compostos de IgG ou fragmentos F(ab’) e F(ab’)2, proveniente de cavalos hiperimunizados com veneno do animal de interesse. A soroterapia convencional apresenta alguns desafios que refletem diretamente na distribuição, qualidade, efetividade e segurança terapêutica. Além do alto custo de produção, são pouco eficazes na neutralização de toxinas em tecidos profundos e podem causar reações de hipersensibilidade. Assim é crescente a busca por métodos complementares a terapêutica atual, como a utilização de fragmentos de anticorpos de camelídeos. Estes animais, além de anticorpos convencionais (IgG 1), produzem anticorpos funcionais desprovidos de cadeia leve e de domínios CH1 (IgG2 e IgG3), os quais interagem com antígenos por meio de um domínio único, denominado VHH ou nanocorpo. Esses domínios podem tolerar severas mudanças nas condições de temperatura e pH, apresentam elevada solubilidade, baixa imunogenicidade e capacidade de penetrar em tecidos densos devido ao seu tamanho reduzido de 15 kDa. Desta forma, o objetivo do estudo foi realizar um levantamento bibliográfico sobre toxinas animais, epidemiologia dos envenenamentos por animais peçonhentos e os desafios do tratamento, contextualizando a utilização de nanocorpos de camelídeos como alternativa terapêutica de neutralização. Foram revisados 124 bibliografias, utilizando além de livros e publicações governamentais, bancos de dados como NCBI, Periódicos CAPES e SCIELO, no período de junho a novembro de 2015. Devido aos desafios do tratamento convencional e as vantagens elencadas aos nanocorpos, estudos vêm sendo desenvolvidos objetivando a validação desse modelo. Resultados promissores quanto ao reconhecimento e neutralização de toxinas animais, como as frações AahI e AahII do veneno de escorpião Androctonus australis hector, α-cobratoxina, BthTXI/II e crotoxina das serpentes Naja kaouthia, Bothrops jararacussu e Crotalus durissus terrificus, sustentam a proposição de utilização desses fragmentos de anticorpos como alternativa complementar ao tratamento convencional. Palavras-chave: toxinas animais, soroterapia, anticorpos, anticorpos de cadeia pesada de camelídeos, nanocorpos, VHH. ABSTRACT Accidents involving venomous animals represents a major public health problem, mainly caused by snakes, scorpions and spiders. These animals are present worldwide and considered the highest medical relevance due to the high accidents and deaths rates annually. The recommended treatment of envenoming victims is performed on the administration of immunobiologics as IgG or F(ab') and F(ab')2, derived from hyperimmunized horses with animal venom of interest. The conventional serumtherapy presents some challenges that directly reflect the distribution, quality and administration of the antivenoms. Besides the high production cost, conventional antivenoms are ineffective in neutralizing toxins into deep tissues and can cause adverse reactions. Thus, there is growing demand for complementary methods to current therapy, as the use of camelid antibody fragments. These animals, in addition to conventional antibodies (IgG1), produce functional antibodies devoid of light chain and CH1 domains (IgG2 and IgG3), which interact with antigens by of the single-domain designated VHH or nanobody. These domains can tolerate severe changes conditions of temperature and pH, have high solubility, low immunogenicity and ability to penetrate dense tissues due to its reduced size of 15 kDa. In this way, the objective of this study was conduct a literature review about animal toxins, epidemiology of envenomation by venomous animals and the challenges of treatment, contextualizing application for camelids nanobodies as neutralization alternative therapy. 124 bibliographies were reviewed, utilizing besides books and government publications, databases such as NCBI, CAPES periodicals and SCIELO in the period from June to November 2015. Due to the challenges of the conventional treatment and advantages listed concerning of nanobodies, studies has been developed with goal to validation of this model. Promising results for recognition and neutralization of animals toxins, such as venom fractions AahI and AahII from Androctonus australis hector scorpion, α-cobratoxin, BthTXI/II and crotoxin, from Naja kaouthia, Bothrops jararacussu e Crotalus durissus terrificus snake, supports the proposition on use of these antibody fragments as complementary alternative to conventional treatment. Keyword: Animal toxins, serumtherapy, antibodies, camelids heavy-chain antibodies, nanobodies, VHH. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 - Serpente da espécie Micrurus corallinus...................................................17 Figura 2 - Serpente da espécie Bothrops jararacussu...............................................18 Figura 3 - Serpente da espécie Crotalus durissus subespécie terrificus....................18 Figura 4 - Serpente da espécie Philodryas olfersii.....................................................19 Figura 5 - Aranha da espécie Loxosceles reclusa......................................................20 Figura 6 - Aranha da espécie Latrodectus mactans...................................................21 Figura 7 - Aranha da espécie Phoneutria nigriventer.................................................22 Figura 8 - Aranha da espécie Atrax robustus.............................................................23 Figura 9 - Escorpião da espécie Tityus serrulatus.....................................................24 Figura 10 - Número de casos e óbitos por animais peçonhentos: Brasil e Mundo....26 Figura 11 - Anticorpo convencional e seus fragmentos.............................................32 Figura 12 - Anticorpo de cadeia pesada de camelídeos (HCAbs).............................34 Figura 13 - Etapas de seleção e caracterização de nanocorpos...............................37 LISTA DE ABREVIATURAS BSA – Albumina sérica bovina BthTX – Bothropstoxina CA – Crotoxina A, Crotapotina CB – Crotoxina B, PLA2cro CDR – Região determinante de complementariedade cFLA – Fosfolipase cálcio dependente CH – Domínio constante da cadeia pesada de anticorpo CL – Domínio constante da cadeia leve de anticorpo CPPI – Centro de Produção de Pesquisa em Imunobiológicos DNA – Ácido desoxirribonucleico E.coli – Escherichia coli ELISA – Ensaio de imunoabsorção por ligação enzimática F(ab’) – Fragmento de ligação a antígeno F(ab’)2 – Fragmentos de ligação a antígeno ligados por pontes dissulfeto Fc – Fragmento cristalizável FLA2 – Fosfolipase A2 FR – do inglês: Framework FUNED – Fundação Ezequiel Dias Fv – Fragmento variável HCAbs - Anticorpos de cadeia pesada de camelídeos IBU – Instituto Butantan iFLA – Fofolipase cálcio independente Ig – Imunoglobulina IgA – Imunoglobulina A IgD – Imunoglobulina D IgE – Imunoglobulina E IgG – Imunoglobulina G IgM – Imunoglobulina M IL – Interleucinas IVB – Instituto Vital Brazil Mabs – do inglês: Monoclonal antibodies Nb – do inglês: Nanobody OMS – Organização Mundial de Saúde PAF-AH – Acetilhidrolases ativadoras do fator ativador de plaquetas PCR – Reação de cadeia polimerase pH – Potencial hidrogeniônico RANKL – do inglês: Receptor activator of nuclear factor kappa-B ligand RNA – Ácido ribonucléico RPS – Ressonância Plasmônica de Superfície RT-PCR – Reação de transcriptase reversa seguida de reação em cadeia da polimerase scFv – Fragmento variável de cadeia única sFLA2 – Fosfolipase secretada TNF – do inglês: tumor necrosis factor USA – Estados Unidos da América VH – Domínio variável da cadeia pesada de anticorpo VHH – Domínio variável da cadeia pesada de anticorpos de cadeia pesada VL – Domínio variável da cadeia leve de anticorpo α-LTX – α-Latrotoxina SUMÁRIO 2 1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 12 2 OBJETIVOS ........................................................................................................... 14 2.1 OBJETIVO GERAL ............................................................................................. 14 2.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS ............................................................................... 14 3 METODOLOGIA .................................................................................................... 15 4 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA .................................................................................. 16 4.1 TOXINAS ANIMAIS ............................................................................................. 16 4.1.1 Serpentes ........................................................................................................ 16 4.1.2 Aranhas ........................................................................................................... 19 4.1.3 Escorpiões ...................................................................................................... 23 4.2 EPIDEMOLOGIA DOS ENVENENAMENTOS POR ANIMAIS PEÇONHENTOS24 4.3 SOROTERAPIA .................................................................................................. 27 4.3.1 Desafios da soroterapia ................................................................................. 29 4.4 ANTICORPOS CONVENCIONAIS ...................................................................... 31 4.5 ANTICORPOS DE CAMELÍDEOS ...................................................................... 33 4.6 SELEÇÃO E CARACTERIZAÇÃO DE NANOCORPOS ..................................... 35 4.7 NANOCORPOS COMO ALTERNATIVA PARA A NEUTRALIZAÇÃO DE TOXINAS ANIMAIS. .................................................................................................. 37 5 CONCLUSÃO ........................................................................................................ 41 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 42 12 1 INTRODUÇÃO Em numerosos países os acidentes envolvendo animais peçonhentos são um importante problema de saúde pública, sendo austeramente negligenciados pelas autoridades de saúde e organizações não governamentais. Países em desenvolvimento localizados em regiões tropicais e subtropicais ganham ainda mais destaque nessa problemática, justificado pela carência de informações direcionadas a populações mais vulneráveis, incluindo principalmente moradores de áreas rurais e com difícil acesso ao serviço de saúde. Apenas no Brasil, a incidência anual média entre 2001 e 2012 foi de 52 casos de acidentes a cada 100.000 habitantes (CHIPPAUX, 2015; HARRISON et al., 2009). As ocorrências de acidentes estão relacionadas ao comportamento de defesa natural dos animais, abundância em um determinado local e em contrapartida, as atividades humanas como agricultura e silvicultura que tendem a colocar indivíduos em contato com esses habitats. Dentre os animais peçonhentos de maior relevância médica destacam-se as serpentes, aranhas e escorpiões responsáveis pelo alto índice de acidentes e óbitos por envenenamentos, somados a gravidade das possíveis sequelas nas vítimas (CHIPPAUX, 2015; NELSEN et al., 2014). Os mecanismos de defesa e predação de muitos animais são através da produção de veneno, que pode ser definido como uma mistura complexa formada principalmente por peptídeos e proteínas produzidas por glândulas ou tecidos, capazes de provocar danos à saúde de um ser vivo. É comumente utilizado na intenção de desencorajar ou matar predadores, servindo como autoproteção e ferramenta de caça, resultando possivelmente em mortalidade devido toxicidade e quantidade inoculada (UTKIN, 2015). Atualmente a soroterapia é a única alternativa terapêutica aplicada ao tratamento de vítimas de acidentes envolvendo animais peçonhentos. Consiste na administração de imunoglobulinas G (IgG) ou fragmentos F(ab’), F(ab’)2, obtidos de soros heterólogos de cavalos ou ovelhas hiperimunizados com veneno do animal, na tentativa de prevenir a evolução dos danos sistêmicos causados pelo envenenamento, sendo administrados por via intravenosa (ESPINO-SOLIS, 2009). Apesar da longa data de utilização e da capacidade minimizar os danos sistêmicos provocados pelo veneno, a soroterapia atual é ineficaz contra os danos teciduais 13 provocados pelas toxinas, incluindo aqueles que ocorrem no local da picada (CARDOSO et al., 2003). Os soroterápicos convencionais podem desencadear reações de hipersensibilidade devido à administração de imunoglobulinas não humanas (CARDOSO et al., 2003; ESPINO-SOLIS, 2009). Além disso, o alto custo para manutenção de animais, a baixa estabilidade dos produtos quanto a variação de temperatura e pH, e a pouca eficiência na neutralização de toxinas em tecidos profundos, instigam a busca por tratamentos complementares a partir de produtos ou processos inovadores na área (CARDOSO et al., 2003; GUPTA; PESHIN, 2012; STEWART et al., 2007). Entre as alternativas de tratamento prospostas, sugere-se a utilização de fragmentos de anticorpos de camelídeos. Esses animais produzem anticorpos funcionais desprovidos de cadeia leve (IgG2 e IgG3), denominados de anticorpos de cadeia pesada de camelídeos (HCAbs), os quais possuem sítio de reconhecimento antigênico formado por um domínio único, referido como VHH ou nanocorpo, com peso molecular de aproximadamente 15 kDa, cerca de um décimo do anticorpo convencional (HAMERS-CASTERMAN et al., 1993; RICHARD et al., 2013). Os nanocorpos possuem maior estabilidade a variações de temperatura e pH, quando comparados a anticorpos de humanos e murinos, além de maior solubilidade, baixa imunogenicidade, capacidade de penetrar em tecidos densos devido ao seu tamanho reduzido e facilidade de produção em microorganismos (MUYLDERMANS, 2013). Unindo as características biológicas de toxinas animais, os desafios apresentados pela soroterapia e a necessidade de desenvolvimento de produtos alternativos capazes de prevenir a evolução dos danos causados pelo envenenamento, o presente trabalho tem como objetivo realizar um levantamento bibliográfico sobre esta temática, contextualizando a utilização de nanocorpos de camelídeos como alternativa terapêutica de neutralização. 14 2 OBJETIVOS 2.1 OBJETIVO GERAL Realizar um levantamento bibliográfico sobre toxinas animais, epidemiologia dos envenenamentos por animais peçonhentos e os desafios do tratamento, contextualizando a proposição da utilização de nanocorpos de camelídeos como alternativa terapêutica de neutralização. 2.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS Descrever a diversidade de toxinas presentes no veneno de animais peçonhentos de importância médica; Descrever o perfil epidemiológico mundial e nacional dos envenenamentos com estes animais; Discutir a produção, aplicação e os desafios do tratamento soroterápico atual; Revisar a estrutura e função dos anticorpos convencionais, anticorpos de cadeia pesada de camelídeos e seus fragmentos; Descrever os métodos de seleção e caracterização de nanocorpos de camelídeos, expondo as vantagens desses fragmentos como alternativa para neutralização de toxinas animais; Descrever os resultados literários obtidos desta proposição terapêutica. 15 3 METODOLOGIA O trabalho trata-se de uma revisão literária sobre o tema “Nanocorpos de camelídeos como alternativa para neutralização de toxinas animais”. O levantamento bibliográfico foi realizado utilizando os bancos de dados NCBI, periódicos CAPES, SCIELO, além de livros e publicações governamentais, datados entre 1975 e 2015. A busca foi realizada no período de Junho à Novembro de 2015, utilizando as seguintes palavras-chave: toxinas animais, ofidismo, escorpionismo, araneísmo, soroterapia, produção de antivenenos, anticorpos, anticorpos de cadeia pesada de camelídeos, VHH, nanocorpos. Os resultados foram agrupados nas seções: toxinas animais; epidemiologia dos envenenamentos por animais peçonhentos; soroterapia; anticorpos convencionais; anticorpos de camelídeos; seleção e caracterização de nanocorpos; nanocorpos como alternativa para neutralização de toxinas animais. 16 4 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA 4.1 TOXINAS ANIMAIS Os animais venenosos produzem fisiologicamente uma complexa mistura de toxinas, denominada de veneno, capaz de provocar danos à saúde de um ser vivo, sendo constituído principalmente por peptídeos e proteínas, produzidas por glândulas ou tecidos. Utilizadas como mecanismo de defesa na intenção de desencorajar ou matar seus predadores, em alguns casos auxiliar na predação e início da digestão de alimentos, esses componentes são encontrados em animais como répteis (serpentes), aracnídeos (aranhas e escorpiões), anfíbios (sapos), peixes (arraias, baiacus), himenópteros (abelhas, vespas e formigas), lepidópteros (larvas urticantes de borboletas), coleópteros (potó, fogo-selvagem), celenterados (medusas) (MARCUSSI; ARANTES; SOARES, 2011; UTKIN, 2015). São descritos como animais peçonhentos aqueles que produzem veneno e são capazes de inoculá-lo por meio de ferramenta associada a glândulas específicas. Dentre os animais peçonhentos de maior relevância médica, destacamse as serpentes, aranhas e escorpiões, responsáveis pelo alto índice de acidentes e óbitos por envenenamento, somados a gravidade das possíveis sequelas nas vítimas (CHIPPAUX, 2015; NELSEN et al., 2014). 4.1.1 Serpentes Animais de sangue frio, as serpentes são répteis pertencentes à ordem Squamata, a qual inclui as famílias de animais venenosos: Elapidae (subfamílias: Elapinae, Laticaudinae, e hydrophidae), Viperidae (Crotalinae e Viperinae) e Colubridae (KARDONG et al., 1997). Além das diferenças biológicas e funcionais entre os animais destas famílias, os constituintes proteicos individuais presentes no veneno variam na concentração e interação com outros componentes, conforme a alimentação, idade e localização geográfica do espécime (DALTRY et al., 1996; EARL et al., 2006; GLENN et al., 1983). Enquanto existem venenos que são extremamente simples nas suas composições, como os de algumas serpentes da família Elapidae que possuem duas principais famílias de toxinas (α-neurotoxinas e fosfolipases A2), outros podem conter inúmeras proteínas e peptídeos, aumentando 17 as possibilidades de interações entre seus componentes e consequentemente os efeitos desencadeados pós-inoculação (PERKINS; TOMER, 1995; SANZ et al., 2008). Os venenos de serpentes da família Elapidae contém um grande número de peptídeos farmacologicamente ativos que influenciam em funções fisiológicas importantes, principalmente no sistema hemostático, circulatório e nervoso. Majoritariamente, possuem enzimas da família fosfolipase A2 (FLA2), capazes de provocar miotoxicidade e mionecrose, além de toxinas como fosfodiesterases, com função de hidrolisar ácidos nucléicos, L-aminoácido oxidases capazes de induzir apoptose celular e metaloproteases que provocam hemorragias e mionecrose (MACKESSY, 2010). O gênero Micrurus é um importante representante da família de serpentes Elapidae. A espécie Micrurus corallinus, mais conhecida como cobra-coral ou coral verdadeira é predominantemente encontrada em regiões de clima temperado como sul do Brasil, Uruguai, Argentina e leste do Paraguai. Esses animais possuem entre 70 e 80 cm de comprimento e caracteristicamente o corpo dividido por anéis que podem ser vermelhos, pretos e brancos (Figura 1) (AGUIAR, 2008; PETERSON, 2006). Figura 1: Serpente da espécie Micrurus corallinus. Fonte: PETERSON, 2006. Os Viperídeos possuem em seus venenos componentes semelhantes as da família Elapidae, alterando nas concentrações, sinergismo e potencialidade das toxinas presentes. Dentre elas, as fosfolipases A2 que causam danos à membrana celular devido a seu efeito miotóxico (KINI, 2003). Miotoxinas, como a 18 Bothropstoxina-I (BthTX-I), apesar de pouca ou nenhuma atividade fosfolipásica é capaz de desencadear neurotoxicidade e miotoxicidade grave (HOMSI- BRANDEBURGO et al., 1988; RODRIGUES et al., 2004). Já as metaloproteases são capazes de hidrolisar proteínas estruturais do endotélio vascular e fibras musculares provocando hemorragias e mionecrose (FOX, SERRANO, 2008). A família Viperidae é representada pelos gêneros Bothrops e Crotalus, dentre eles, as serpentes de maior significância médica no Brasil são as espécies Bothrops jararacussu (jararaca) e Crotalus durissus (Cascavel). Essas serpentes vivem em várias regiões da América Central, América do Sul e México, tendo como principais habitats cerrados e florestas. Existe uma grande variedade com relação a cores e tamanhos desses animais, a B. jararacussu pode atingir de 70 cm a 2,2 metros de comprimento com circunferência de aproximadamente 22 centímetros (Figura 2) (MILANI et al., 1997). A Crotalus durissus é mais comumente encontrada na América do Sul, habita terrenos áridos e semi-áridos, sendo responsável pela maioria de acidentes fatais recorrente de ações neurotóxicas e miotóxicas do seu veneno (GEORGIEVA et al., 2009). Caracteristicamente, essa serpente possui um guizo ao final da cauda (Figura 3) (BERNARDE, 2009). Figura 2: Serpente da espécie Bothrops jararacussu. Figura 3: Serpente da espécie Crotalus durissus subespécie terrificus. Fonte: Adaptado de MILANI et al., 1997. Fonte: Adaptado de BERNARDE, 2009. Os Colubrídeos possuem venenos formados majoritariamente por polipeptídeos que podem apresentar ou não atividade enzimática. Com atividade enzimática incluem-se proteases que podem atuar em substratos inespecíficos ou altamente especializados tais como as serinoproteases e metaloproteases, além de 19 fosfodiesterases e fosfolipases que auxiliam na digestão das presas (HILL; MACKESSY, 2000). Os polipeptídeos não enzimáticos encontrados no veneno incluem cardiotoxinas, neurotoxinas, miotoxinas, inibidores de proteases e acetilcolinesterases (MACKESSY, 2002). A espécie Philodryas olfersii, popularmente conhecida como cobra Boiubu ou cobra cipó, não é uma serpente peçonhenta e para injetar seu veneno morde e se fixa as presas. Possui ampla distribuição, presente em várias regiões do Brasil, além de países vizinhos, como Argentina, Uruguai, Paraguai e Bolívia. É considerada uma serpente de porte médio chegando a alcançar 1,5 metros de comprimento. Possui coloração verde-escuro no dorso e claro no ventre, podendo ser facilmente confundida com o verde da vegetação (Figura 4) (MARQUES et al., 2001). Figura 4: Serpente da espécie Philodryas olfersii. Fonte: Adaptado de FERREIRA et al., 2011. 4.1.2 Aranhas As aranhas são animais invertebrados pertencentes à ordem Araneae e juntamente com carrapatos, ácaros e escorpiões representam a classe Aracnídea. Os aracnídeos diferem dos outros artrópodes pela ausência de antenas e mandíbulas e tem como característica exclusiva a presença de quelíceras, utilizadas principalmente para capturar suas presas, visto que essas estruturas estão associadas com glândulas de veneno. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estabelece que apenas quatro gêneros de aranhas são capazes de causar acidentes de importância médica, sendo eles: Laxosceles, Latrodectus, Phoneutria e Atrax 20 (LUCAS, 2009). Entre os principais componentes do veneno de aranhas estão neurotoxinas, enzimas, proteínas, peptídeos, aminoácidos livres e sais inorgânicos (RASH, 2002). O veneno de aranhas do gênero Loxosceles é formado por uma mistura de toxinas e componentes de baixo peso molecular. Toxinas como hidrolases, hialuronidase, lípases, colagenases, fosfatase alcalina e esfingomielinases, são responsáveis pelos efeitos característicos do envenenamento por esses animais (FEITOSA et al., 1998; HOGAN; BARBARO; WINKEL, 2004;). As esfingomielinases (fosfolipases do tipo D) são os componentes mais presentes no veneno. Capazes de hidrolisar a esfingomielina em ceramida-1-fosfato são responsáveis por lesões dermonecróticas e reações que envolvem migração de leucócitos, agregação plaquetária e ativação de resposta inflamatória (MAGALHÃES et al., 2013). A aranha Loxosceles reclusa, conhecida popularmente como aranhamarrom, é uma das menores e mais perigosas, com dimensões entre entre 7 e 12 mm. São encontradas na África, América do Norte, Central e do Sul (MARQUES-DASILVA; FISCHER, 2005). Possuem uma característica particular que é a presença de três pares de olhos em vez dos tradicionais quatro pares (Figura 5) (JUCKETT, 2013). Figura 5: Aranha da espécie Loxosceles reclusa. Fonte: Adaptado de JUCKETT, 2013. Em todo o mundo, cerca de 40 espécies do gênero Latrodectus são encontradas principalmente em regiões tropicais e subtropicais. Os venenos desses animais possuem como componente principal a α-Latrotoxina (α-LTX), uma neurotoxina de alto peso molecular (130 kDa) que atua sobre terminações nervosas 21 induzindo uma descarga de neurotransmissores capazes de provocar manifestações clínicas que incluem hipertensão, espasmos, enfarto do miocárdio e síndrome compartimental (CORDEIRO et al., 2015; ROHOU, 2007; GRISHIN, 1998). As aranhas deste gênero são pequenas medindo cerca de 3 cm. A espécie Latrodectus mactans ou popularmente viúvas-negras ou flamenguinha, são aranhas muito conhecidas tanto pelo fato de matarem os machos após o acasalamento, como também devido a letalidade de seu veneno. Habitam normalmente jardins e locais com pouca ou nenhuma vegetação. A principal característica desses animais é um desenho avermelhado na região inferior do abdome em forma de ampulheta (Figura 6) (JUCKETT, 2013). Figura 6: Aranha da espécie Latrodectus mactans. Fonte: Adaptado de JUCKETT, 2013. Aranhas do gênero Phoneutria tem seu veneno constituído de peptídeos, aminoácidos livres, histamina, serotonina e serinoproteases (NUNES et al., 2008; REZENDE et al., 1991), que são capazes de provocar a ativação dos canais de sódio dependentes de voltagem e bloqueio de canais de potássio e de cálcio nas fibras musculares e terminações nervosas do sistema nervoso autônomo. Como consequência ocorre liberação exacerbada de neurotransmissores incluindo acetilcolina e catecolaminas, o que explica sintomas como dor local, agitação, sudorese, salivação e em casos mais graves arritmias (ANTUNES, 2009; LIMA, 2010). A espécie Phoneutria nigriventer é popularmente conhecida como aranhaarmadeira ou aranha da banana. Quando ameaçadas, assumem posição de defesa armada, elevando os pares de patas anteriores e apoiando-se sob as patas 22 traseiras. Seu corpo pode atingir 4 cm, com as patas estendidas até 15 cm e é coberto por pequenos pelos de cor cinza ou marrom. Possuem hábitos noturnos, sendo encontradas em cachos de banana, palmeiras, debaixo de troncos caídos, pilhas de madeira e entulhos (Figura 7) (CORDEIRO, 2015). Figura 7: Aranha da espécie Phoneutria nigriventer. Fonte: Adaptado de CORDEIRO, 2015. As aranhas do gênero Atrax também são capazes de provocar graves acidentes, principalmente por produzirem veneno neurotóxico potencialmente letal. Os machos são mais agressivos e venenosos que as fêmeas, sendo responsáveis pela maior parte dos ataques (HARRINGTON et al., 1999). A delta-atracotoxina (delta-ACTX-Ar1a) é a principal neurotoxina isolada do veneno destas aranhas. Este componente é responsável por provocar o bloqueio de sinal entre o sistema nervoso parassimpático e simpático, provocando um desequilíbrio autonômico nas vítimas, evidenciado por fadiga extrema, taquicardia, tontura, dor de cabeça, dormência, comprometimento da função motora, visão turva, boca seca, pouca tolerância a exercícios, distúrbios gastrintestinais, alterações da pressão arterial, impotência, desmaios, crises de ansiedade, infarto do miocárdio indolor e parada cardiorrespiratória (ALEWOOD et al., 2003). A espécie Atrax robustus é a mais importante deste gênero. Devido a forma em espiral de suas habitações semelhante a um funil, são conhecidas popularmente como funil-web. Essas aranhas são encontradas no norte da Austrália e regiões de florestas da Tasmânia (Figura 8) (NIEUWENHUYS, 2008). 23 Figura 8: Aranha da espécie Atrax robustus. Fonte: Adaptado de NIEUWENHUYS, 2008. 4.1.3 Escorpiões Com cerca de 1600 espécies distribuídas em todo o mundo, esses aracnídeos são classificados em seis superfamílias: Scorpionoidea, Chactoidea, Buthoidea, Chaeriloidea, Pseudochactoidea e Iuroidea (MARCUSSI; ARANTES; SOARES, 2011). Classificados na família Buthidae, as espécies de escorpiões que mais causam acidentes humanos estão presentes nos gêneros Androctonus, Buthus, Leiurus, Mesobuthus, Parabuthus, Centruroides e Tityus (CALISKAN et al., 2013). O envenenamento por picada de escorpião possuem elevada importância médica devido ao efeito neurotóxico do veneno desencadeado por inúmeras toxinas, além da presença de histaminas, serotoninas, inibidores de proteases e enzimas (ORTIZ, 2015; ZHIJIAN, 2014). São encontradas também substâncias orgânicas como aminoácidos livres, peptídeos, carboidratos e nucleosídeos (OUKKACHE et al., 2008). O veneno comumente interfere nos canais iônicos dependentes de voltagem podendo provocar desde dor e vermelhidão, até paralisia muscular, arritmia cardíaca, respiratória e edema pulmonar agudo (KULARATNE; SENANAYAKE, 2014). Dois importantes componentes presentes no veneno desses animais são as α-toxinas (α-NaScTxs), que se ligam a superfície de canais de sódio dependentes de voltagem provocando a super excitação de neurônios, podendo induzir dor e hiperalgesia e as β-toxinas (β-NaScTxs), que leva a inibição da excitabilidade neuronal e produz efeitos supressores sobre o comportamento (FENG et al., 2015; 24 PEDRAZA; POSSANI, 2013). Outros componentes evidentes no veneno são as fosfolipases A2, serinoproteases, metaloproteases e proteínas ricas em cisteína (CORDEIRO, 2015). O escorpião da espécie Tityus serrulatus, também conhecido como escorpião amarelo, é a espécie mais envolvida em acidentes provocados por esses animais na América do Sul. Podem alcançar até 7 cm de comprimento, apresentam tronco escuro, patas, pedipalpos e falsa cauda amarela (Figura 9) (MARCUSSI; ARANTES; SOARES, 2011). Figura 9: Escorpião da espécie Tityus serrulatus. Fonte: Adaptado de CORDEIRO, 2015. 4.2 EPIDEMOLOGIA DOS ENVENENAMENTOS POR ANIMAIS PEÇONHENTOS Os acidentes envolvendo animais peçonhentos ocorrem em todo mundo e frequentemente resultam em óbitos ou sequelas permanentes. No Brasil, de acordo com dados do Ministério da saúde, entre 2000 e 2013 ocorreram mais de 157 mil casos, com 2.847 óbitos. (BRASIL, 2015). Os relatórios geralmente associam a vulnerabilidade a picadas desses animais e o nível socioeconômico das vítimas. Essa problemática é severamente negligenciada pelas autoridades de saúde pública e organizações não governamentais, evidenciada pela falta de informação sobre a magnitude do problema e sobre as suas implicações médicas, sociais e econômicas para as comunidades (CHIPPAUX, 2015). Uma característica em comum aos três principais grupos de animais inoculadores de veneno (serpentes, escorpiões e aranhas) é o acometimento de indivíduos que habitam regiões com acesso limitado a higiene adequada, cuidados 25 de saúde e com escassez de soroterápicos, que atualmente é o único tratamento específico (HARRISON et al., 2009). Os acidentes ofídicos são um importante problema de saúde pública em áreas rurais de países tropicais e subtropicais, com maior prevalência no Sul e Sudeste da Ásia e África Subsariana, América Central e do Sul. A OMS estima que ocorram anualmente pelo menos 421.000 envenenamentos e 20.000 mortes, porém dados confiáveis são geralmente restritos a países desenvolvidos, onde esses acidentes são incomuns, tornando assim os dados reais quanto a picadas, envenenamentos, mortes, sequelas e impactos, amplamente desconhecidos (KASTURIRATNE et. al., 2008). No Brasil ocorrem cerca de 14 acidentes envolvendo serpentes a cada 100.000 habitantes. Em 2013 foram relatados 25.302 casos de acidentes com 108 óbitos, ocasionados pelas serpentes dos gêneros Bothrops, Crotalus, Lachesis e Micrurus. O gênero Bothrops é responsável por maior parte dos acidentes ofídicos (mais de 70%), Crotalus corresponde de 7-11% dos casos, Lachesis 9% e Micrurus aproximadamente 1% dos acidentes (BRASIL, 2015; CHIPPAUX, 2015). Frequentemente as vítimas desses acidentes são homens em idade produtiva e que se dedicam a atividades relacionadas a agricultura, caça e silvicultura (FEITOSA et. al., 2015). Esses grupos de trabalhadores, além do risco de vida, podem apresentar sequelas físicas que comprometem suas atividades laborais, o que altera a vida cotidiana de seus dependentes familiares (GUTIÉRREZ; THEAKSTON; WARRELL, 2006). Acidentes com escorpiões são considerados de emergência e comuns a muitas regiões do planeta. Estima-se que cerca de 1,5 milhão de casos de envenenamentos e 2.600 mortes sejam provocados por esses animais (CHIPPAUX, 2012). É considerado um grave problema de saúde pública em regiões tropicais e subtropicais do mundo, habitat preferencial desses animais (KRIFI et. al., 2005). São amplamente distribuídos de acordo com o gênero, por exemplo, Tityus é mais frequentemente encontrado em países como Colômbia, Venezuela, Brasil, Trinidade e Tobago, onde acidentes escorpiônicos são importante causa de mortes humanas, principalmente em crianças, com taxa de letalidade dez vezes maior quando comparado com adultos (CHIPPAUX; GOYFFON, 2008; MARCUSSI; ARANTES; SOARES, 2011). No Brasil, entre 2000 e 2013 ocorreram em média 21 acidentes a cada 100.000 habitantes, sendo aqueles de maior gravidade localizados na região 26 Norte do país (CHIPPAUX, 2015). Em 2013 foram notificados 69.036 casos e 80 óbitos nas cinco regiões do Brasil (BRASIL, 2015). A determinação de dados epidemiológicos de acidentes provocados por aranhas tem sido dificultada por conta de vários fatores, dentre eles a variedade de diagnósticos diferenciais, a não visualização do animal no momento da picada o que dificulta a investigação devido relato duvidoso, morte ou identificação errônea do gênero (ISBISTER, 2004). Sendo assim, estudos prospectivos realizados por especialistas com identificação e confirmação de espécies são necessários a fim de contribuir para obtenção de informações confiáveis e importantes para o desenvolvimento de medidas que busquem minimizar os danos provocados pelo veneno desses animais. Apesar da escassez de registros a respeito de picadas de aranhas, alguns países são destaques nesses eventos, como Austrália, Brasil e Chile (LITOVITZ et. al., 1998). No Brasil, ocorrem cerca de 10 acidentes envolvendo aranhas a cada 100.000 habitantes, somente no ano de 2013 foram registrados 27.125 casos e 36 óbitos no país. As espécies identificadas mais frequentemente são: Phoneutria, Latrodectus e Loxosceles (BRASIL, 2013; CHIPPAUX, 2015). Entre os habitats mais atrativos estão pilhas de madeira, porão, caixas de papelão e fendas de paredes (DIAZ, 2004). A figura 10 descreve os números de casos e óbitos envolvendo animais peçonhentos no Brasil e no Mundo. Figura 10: Número de casos e óbitos por animais peçonhentos: Brasil e Mundo Fonte: Adaptado de BORGES, 2009; BRASIL, 2015; CHIPPAUX, 2012; KASTURIRATNE et al., 2008. 27 4.3 SOROTERAPIA A partir da descoberta da soroterapia a mais de um século, muitos avanços foram alcançados. O primeiro trabalho descrevendo protocolos de imunização ativa de animais contra venenos data 1887, quando o Dr. Henry Sewall da Universidade de Michigan (USA), demonstrou que pombos tornavam-se imunes quando tratados com repetidas doses do veneno da serpente Sistrurus catenatus (SEWALL, 1887). Um ano após, Roux e Yersin (1888), demonstraram que a transferência de sangue entre animais imunizados e animais não imunes promovia proteção contra a difterotoxina, responsável pela difteria. Esses resultados, confirmados por Behring e Kitasato (1980), revelaram a eficácia da transferência de imunidade passiva na proteção contra agentes tóxicos de origem microbiológica (CHIPPAUX; GOYFFON, 1998; ESPINO-SOLIS et. al., 2009). Em 1894, os pesquisadores parisienses Césaire Auguste Phisalix e Gabriel Bertrand do Museu Nacional de História Natural (França), demonstraram atividade antitóxica do sangue de animais imunizados com veneno de Vipera aspis inativado por aquecimento. Concomitantemente, Albert Calmette do Instituto Pasteur, trabalhando com veneno de serpentes em Saigon (Antiga capital de colônia francesa de Conchichina, atualmente a cidade de Ho chi Minh, Vietnã), desenvolveu protocolos eficientes para produção de soros antiofídicos, tornando-se então promotor da soroterapia. Calmette acreditava que os soros produzidos apresentavam efeitos protetores independentes do gênero de serpente presente no acometimento ofídico, visto os efeitos similares do veneno desencadeados ao organismo (BOCHNER, 2003; ESPINO-SOLIS et. al., 2009). Em 1901, o médico e sanitarista Vital Brazil fundou o instituto Serumtherápico Butantan em São Paulo, iniciando a soroterapia antiofídica no Brasil e a promoção de protocolos eficientes de produção e distribuição de antivenenos. Vital Brazil foi também o primeiro a demonstrar que a especificidade dos soros está diretamente ligada ao gênero de serpente do qual foi extraído o veneno utilizado na produção, contrariando as afirmativas iniciais de Calmette, o que foi confirmado posteriormente nos estudos de Nicolas Maurice Arthus com antivenenos produzidos a partir da peçonha de Naja tripudians e Crotalus adamanteus (BOCHNER, 2003; SANT’ANNA; FARIA, 2005). 28 No Brasil, atualmente os soroterápicos são fornecidos a partir de quatro centros produtores de imunobiológicos: Centro de Produção de Pesquisa em Imunobiológicos (CPPI, Piraquara, PR), Instituto Vital Brazil (IVB, Niterói, RJ), Instituto Butantan (IBU, São Paulo, SP), Fundação Ezequiel Dias (FUNED, Belo Horizonte, MG) (BRASIL, 2009; 2013). Os soroterápicos convencionais são produzidos a partir de imunoglobulinas G (IgG) ou fragmentos F(ab’), F(ab’)2 obtidos de diferentes fontes animais. A escolha depende de fatores locais como zoonoses prevalentes, adaptação ao ambiente e o custo de manutenção. Por serem dóceis e fontes de elevado volume de plasma, os cavalos são os animais mais utilizados. As ovelhas podem ser utilizadas como alternativa, por serem animais com menor custo de manutenção, leves, mais tolerantes ao uso de adjuvantes a base de óleo e fontes de anticorpos úteis em terapias de pacientes com hipersensibilidade a proteínas de equinos (OMS, 2010; THEAKSTON; WARRELL; GRIFFITHS, 2003) Os soroterápicos utilizados no tratamento antiofídico podem ser monoespecíficos ou poliespecíficos. O primeiro é produzido a partir da imunização animal com veneno de uma única espécie de serpente, sendo empregado quando não existe dúvida no diagnóstico do espécime envolvido. Apresentam máxima atividade neutralizante e consequentemente são administrados em menor dose, reduzindo o risco de reações adversas. Já os poliespecíficos são produzidos a partir da mistura do veneno de diferentes serpentes, sendo utilizados nos casos em que a identificação do espécime não é possível e os fenômenos clínicos apresentados são semelhantes a de outros acidentes. Possuem menor atividade neutralizante, sendo administrados em maiores doses, o que aumenta o risco de reações adversas (THEAKSTON; WARRELL; GRIFFITHS, 2003). A produção de antivenenos tem início com a imunização dos equinos com veneno bruto ou mistura de venenos de animais diferentes, acrescidos de adjuvantes imunógenos como freund, hidróxido de alumínio ou alginato. A via de administração utilizada é a subcutânea em multisítios (8-12 locais), geralmente no pescoço ou dorso, com doses de 1 a 4 mg/animal. A imunização dura em média de 8 a 10 semanas, com intervalos quinzenais. O título de anticorpos neutralizantes é monitorado por ensaios imunoenzimáticos e de redução de letalidade do veneno (OMS, 2010; SRIPRAPAT et al., 2003). 29 A coleta de sangue para obtenção do plasma é realizada em volume recomendado de 13 a 15 mL/Kg do animal (OMS, 2012), em seguida a frações de IgG’s são purificadas por precipitação com sulfato de amônio, sulfato de sódio ou ácido caprílico. Antivenenos compostos de fragmentos de anticorpos F(ab’)2 ou F(ab’) são gerados por digestão enzimática utilizando as enzimas pepsina e papaína, respectivamente e submetidos a precipitação seguida de diálise, ultracentrifugação ou cromatografia de troca iônica para remoção de sais. O produto final pode ser pasteurizado e envasado na forma líquida ou liofilizada, com meia-vida de 3 e 5 anos. Ensaios de neutralização in vivo, inibição de atividade in vitro de componentes específicos do veneno e mensuração de afinidade e especificidade em imunoensaios, detecção de agentes infecciosos e endotoxinas, são utilizados para padronização lote a lote (CHIPPAUX; GOYFFON, 1998; OMS, 2010; THEAKSTON; WARRELL; GRIFFITHS, 2003). O soro antiofídico é administrado por via intravenosa em período de 20 a 60 minutos. Recomenda-se infusão lenta a fim de reduzir a quantidade de soro injetado e permitir maior controle das possíveis reações adversas imediatas. A dose administrada se baseia na identificação da serpente, intervalo entre o acidente e o tratamento, evolução clínica, título do soro utilizado e as instalações médicas disponíveis. E o volume total a ser administrado depende diretamente da reversão dos sinais sistêmicos do envenenamento, como a restauração da coagulação sanguínea e o desaparecimento de efeitos hemorrágicos e neurotóxicos durante o tratamento (CHIPPAUX; GOYFFON, 1998; WARRELL, 2012). 4.3.1 Desafios da soroterapia A soroterapia convencional enfrenta alguns problemas que refletem diretamente na disponibilidade, qualidade e administração terapêutica. O elevado custo de produção industrial é um fator limitante na metodologia de obtenção desses medicamentos. A demanda mundial necessária não é compatível com o número de laboratório produtores, qualidade e quantidade de soro. Consequentemente, a OMS estima que sejam realizados 600 mil tratamentos por ano, enquanto é necessário 2 milhões (BROWN, 2012; GUTIERREZ, 2012). A desproporcionalidade entre a oferta e a procura desses produtos deve-se a dificuldade industrial decorrente da falta de animais, elevado custo de manutenção, inviabilidade de utilização de equinos em 30 países endêmicos de zoonoses e dificuldade para produção homogênea dos lotes. Esses fatores contribuem para o elevado preço do produto final, estimado entre 8,00 e 1.338,00 dólares por ampola e de 40,00 a 24.000 dólares do tratamento completo, o que dificulta o acesso terapêutico em países menos desenvolvidos, justamente onde ocorre a maior parte dos acidentes com animais peçonhentos (BROWN, 2012; GUPTA; PESHIN, 2012; THEAKSTON; WARRELLl; GRIFFITHS, 2003). Outra desvantagem da soroterapia convencional são as reações de hipersensibilidade provocadas pela administração de IgG e fragmentos não humanos. Sugere-se que falhas nas etapas de remoção de proteínas próprias do soro, porções Fc e a presença de endotoxinas são as principais causas dessas reações (THEAKSTON; WARRELL; GRIFFITHS, 2003). O risco de efeitos adversos é geralmente dose-dependente, com exceção dos casos de sensibilização devida exposição prévia ao soro de equinos em terapia antitetânica ou antirábica (WARRELL, 2010). As reações adversas são classificadas conforme o intervalo de tempo da administração do soro até os primeiros sintomas. As reações imediatas (agudas) ocorrem de 10 a 180 minutos após administração do soro, com risco aumentado de acordo com a dose e velocidade de infusão (WARRELL, 2012). Os sintomas apresentados são prurido intenso, urticária, tosse seca, náuseas, vômitos, cólica abdominal, diarreia, taquicardia e em casos mais graves hipotensão, broncoespasmo e angioedema (WARRELL, 2010). As reações adversas tardias, também conhecida como doença do soro, ocorrem entre 5 e 24 dias após o tratamento, apresentando sintomas como febre, náuseas, vômitos, linfadenopatia, diarreia, inchaços prurido, urticária periarticulares, recorrente, proteinúria artralgia, com mialgia, presença de imunocomplexos, nefrite e mais raramente encefalopatias (WARRELL, 2010; 2012). Reações adversas também podem ocorrer devido a contaminação do antiveneno com endotoxinas pirogênicas durante sua produção e apresentam sintomas como calafrios, febre, vasodilatação, queda da pressão sanguínea e convulsões febris (WARRELL, 2010; THEAKSTON; WARRELL; GRIFFITHS, 2003). Somado as desvantagens já citadas, a soroterapia convencional mostra-se ineficaz na neutralização de toxinas presentes em tecidos, devido à variedade de perfis farmacocinéticos das toxinas que compõem o veneno dos animais peçonhentos. Toxinas de baixo peso molecular possuem biodisponibilidade elevada, 31 principalmente quando comparada com IgGs e fração F(ab’)2, o que justifica a incapacidade de prevenção ou retardamento dos efeitos teciduais, principalmente de miotoxinas e neurotoxinas. Além da elevada afinidade e capacidade de neutralização, idealmente os antivenenos devem possuir massa molecular semelhante a toxina alvo, garantindo assim uma biodisponibilidade similar, na intenção de neutraliza-la também em seu local de ação (CHIPPAUX; GOYFFON; 1998; GUTIERREZ; LEON; LOMONTE, 2003). 4.4 ANTICORPOS CONVENCIONAIS Os anticorpos são glicoproteínas utilizadas pelo sistema imunológico para identificar e neutralizar corpos estranhos ao organismo. Também conhecidos como imunoglobulinas (Ig), são secretados por plasmócitos que são células linfócitos B diferenciados após estimulação antigênica. São classificados em cinco isotipos: IgG, IgA, IgM, IgD, IgE, que se diferenciam principalmente quanto a função (ABBAS, 2008). A IgG é umas das proteínas mais abundantes no soro humano, representando cerca de 70 a 75% do total de imunoglobulinas séricas. Dividida em quatro subclasses, denominadas IgG1, IgG2, IgG3 e IgG4, é responsável principalmente por neutralizar toxinas e microorganismos, além de ser a única Ig capaz de atravessar a barreira placentária e proporcionar imunidade ao feto (VIDARSSON; DEKKERS; RISPENS, 2014). A IgA constitui cerca de 15-20% das Igs, trata-se de um monômero, podendo ser encontrada nas secreções na forma de dímero. Esse anticorpo é responsável por prevenir a colonização de patógenos nas mucosas. A IgM contribui com 10% do total de imunoglobulinas e majoritariamente apresentam a forma de pentâmero. Predominante no início da resposta imunológica, é capaz de se ligar a microorganismos para eventual eliminação. A IgD é encontrada em baixos níveis, cerca de 1% e funciona como receptor de antígeno presente na superfície de células B. A IgE apesar de ser pouco encontrada no soro também existe como um monômero e dentre suas funções exerce importante poder nas reações de hipersensibilidade imediata e infecções parasitárias (ABBAS, 2008; KUBBY, 2007; ROITT, 2003). As imunoglobulinas tem estrutura canônica formada a partir de duas cadeias pesadas (H, do inglês heavy) idênticas, incluindo três domínios constantes (CH1, 32 CH2, CH3) e um variável (VH), além de duas cadeias leves (L) idênticas com dois domínios (CL e VL), totalizando um peso molecular de aproximadamente 150 kDa (Figura 11). As cadeias pesadas e leves, bem como as duas cadeias pesadas, estão ligadas covalentemente por pontes dissulfeto e o número de pontes varia entre as diferentes isotipos. A região N-terminal dessas poliproteinas consistem de um par VH-VL, conhecidos como região Fv, que juntamente com os domínios constantes CL e CH1, compõem a região F(ab’), responsável pela interação antigênica (Figura 11B). As duas últimas regiões de cadeia pesada são denominadas de região Fc (fragmento cristalizável) e participam no recrutamento de células imunológicas e para desencadeamento de funções efetoras como a ativação do complemento. Entre as porções F(ab’) e Fc existe uma região rica em aminoácidos prolina denominada região de dobradiça, que permite uma maior flexibilidade da molécula, facilitando a interação com o antígeno (CALICH; VAZ, 2010; DAVIES, 1993; KUBY, 2007). Figura 11: Anticorpo convencional e seus fragmentos. Fonte: DE MEYER; MUYLDERMANS; DEPICKER, 2014. A partir da estrutura convencional dos anticorpos, fragmentos com a capacidade de interação antigênica preservada podem ser obtidos por meio de clivagem da região de dobradiça, utilizando enzimas proteolíticas como a pepsina e a papaína. Especificamente, a pepsina cliva o anticorpo na região carboxiterminal das pontes dissulfeto, produzindo fragmentos funcionais F(ab’)2 com 100 kDa, porém sem atividade efetora. A papaína quando utilizada é capaz de clivar o sítio que antecede as pontes dissulfeto, gerando dois fragmentos F(ab’) com aproximadamente 50 kDa cada e um fragmento Fc (CHIPPAUX; GOYFFON, 1998). 33 O avanço da engenharia molecular, sobretudo a metodologia de construção de linhagens de células B imortalizadas produtoras de anticorpos monoclonais (mabs), denominada tecnologia de hibridomas (KOHLER; MILTEIN, 1975), possibilitou a manipulação gênica de fragmentos ainda menores que as imunoglobulinas convencionais, com alta afinidade e especificidade, úteis a aplicações no diagnóstico e terapia (AHMAD, 2012). Além da possibilidade de construção de formas recombinantes de F(ab’) e F(ab’)2, é possível obter fragmentos denominados scFv (fragmento variável de cadeia única) que compreendem a região VH e VL dos anticorpos ligados por uma sequência flexível de peptídeos (Figura 11C) (NELSON, 2010). Com peso molecular de aproximadamente 30 kDa, esses fragmentos possuem maior biodistribuição e capacidade de penetração em tecidos densos (tumores sólidos), quando comparados a anticorpos convencionais. No entanto, possuem tempo de meia-vida entre 0,5 e 21 horas, devido à rápida eliminação renal por filtração glomerular, necessitando de um maior número de aplicações (ROSKOS; DAVIS; SCHWAB, 2004). 4.5 ANTICORPOS DE CAMELÍDEOS Uma distinta estrutura de imunoglobulinas G é encontrada no soro de camelídeos. Pertencente à subordem Tilópodes, que juntamente com ruminantes e suídeos, constituem a ordem Artiodáctilos. A família biológica Camelidae é formada por Camelos (Dromedarius camelus e Camelus bactrianus), Lama (Glama e Lama guanicoe) e Vicunhas (Vicugnas vicugnas e Vicugnas pacos). Esses animais produzem além de anticorpos convencionais (IgG1), imunoglobulinas funcionais formadas apenas por domínios de cadeia pesada denominadas como anticorpos de cadeia pesada de camelídeos (HCAbs), com um peso molecular de aproximadamente 90 kDa (HAMERS-CASTERMAN, et al., 1993; MUYLDERMANS, 2013). Os anticorpos de cadeia pesada são encontrados em isoformas IgG2 e IgG3 e caracterizam-se pela ausência de cadeias leves e do domínio CH1 de cadeia pesada, justificado pela remoção de sequencias que codificam CH1 durante o processo de splicing de RNAm (NGUYEN et al., 1999). Os isótopos IgG2 e 3 diferemse no tamanho de suas dobradiças, sendo mais longas no primeiro, com repetições de prolina-glutamina, o que pode compensar a ausência de CH1 e fornecer 34 angulação necessária para interação com antígeno. Ambos isótipos possuem suas regiões de ligação ao antígeno reduzido a domínios únicos referidos como VHH ou nanocorpos (MUYLDERMANS, 2013). Os nanocorpos apresentam sequências de aminoácidos hipervariáveis localizadas nas regiões determinantes de complementariedade (CDRs 1, 2 e 3), que fornecem superfície de contato de interação ao antígeno e são intercaladas por quatro regiões conservadas (Framework – FR 1, 2, 3 e 4) (MUYLDERMANS, 2001). O domínio VHH possui elevada similaridade com VH de anticorpos humanos, o que justifica a baixa imunogenicidade. Entretanto, existem algumas diferenças notáveis, como observada na CDR1 e, sobretudo, na CDR3 que são maiores no VHH, tendo em média 18 aminoácidos, enquanto a região VH humano é constituída por cerca de 14 resíduos (NGUYEN et al., 2000). Apresentam também substituições de aminoácidos hidrofóbicos na região FR2 (Val47, Gly49, Leu50, Trp52), que em estruturas de anticorpos convencionais participam na interação com VL, por aminoácidos menores ou hidrofílicos (Phe42, Glu49, Arg50, Gly52) (MUYLDERMANS, 2013). A presença de uma ponte dissulfeto entre as CDRs 1 e 3 sugere maior estabilidade a variações de temperatura e pH, quando comparados a anticorpos de humanos, mantendo ainda estabilidade química, que pode ser aumentada com a adição de cisteínas na posição 54 e 78 (GHAHROUDI et al., 1997). Possuem elevada capacidade de remodelamento mesmo após exposição a temperaturas desnaturantes, possivelmente devido a troca de aminoácidos hidrofóbicos por hidrofílicos em relação ao domínio VH (DUMOULIN et al., 2002). Figura 12: (A) Anticorpo de cadeia pesada de camelídeos (HCAbs), (B) VHH. Fonte: DE MEYER; MUYLDERMANS; DEPICKER, 2014. 35 Os nanocorpos são os menores fragmentos funcionais derivados de anticorpos com aproximadamente 15 kDa, cerca de um décimo do peso molecular da IgG, equivalendo estruturalmente e funcionalmente ao F(ab’) de anticorpos convencionais (MUYLDERMANS, 2013). O tamanho reduzido confere uma maior capacidade de penetração em tecidos profundos (RICHARD et al., 2013). Esses fragmentos podem ser obtidos facilmente a partir da expressão em bactérias, como por exemplo, Escherichia coli (E.coli), alcançando rendimentos elevados de até 200 mg/L (ZARSCHLER et al., 2013). Sistemas de expressão em leveduras, como Sacharomyces cerevisiae, células de mamíferos, como CHO (Célula de ovário de hamster chinês) e insetos, como Trichoplusiani larvae, também conferem excelentes rendimentos de 1-100 mg/L (GORLANI et al., 2012), 100 mg/L (AGRAWAL et al., 2012) e 257 mg/L (GÓMEZ-SEBASTIÁN et. al., 2012), respectivamente. Para a produção de formas fusionadas de VHH, como por exemplo VHH-Fc, a expressão em bactéria tende a ser ineficiente e além dos sistemas já descritos, podem ser utilizado plantas como Nicotiana benthamiana, com rendimento de 129,5 mg/Kg (DE BUCK et al., 2012; RICHARD et. al., 2013). Diante de tantas propriedades os nanocorpos vêm ganhando visibilidade progressiva em diversas possibilidades de aplicações no diagnóstico ou tratamento de graves patologias que acometem o homem (MORAIS et al., 2014). Atualmente, fármacos baseados nesses fragmentos de anticorpos estão sendo testados in vitro e in vivo, em etapas pré-clínicas e outros já avançaram para ensaios clínicos de fases I e II. Dentre eles, destacam-se o Caplacizumab, que tem como alvo o fator de Von Willebrand (vWF); o ALX-0171 indicado para infecções pelo vírus sincicial respiratório; ALX-0061, anti-IL-6R, presentes na artrite reumatoide e lupus eritematoso; ALX-0761, anti-IL-17A/F, presente na psoríase e os Ozoralizumab e ALX-0141, tendo como alvos o TNFα e RANKL, respectivamente (ABLYNX, 2015). 4.6 SELEÇÃO E CARACTERIZAÇÃO DE NANOCORPOS A seleção de nanocorpos pode ser realizada a partir de bibliotecas não imunes (naives), que são construídas com repertório gênico obtido de camelídeos não imunizados, ou também por bibliotecas imunes, que exploram a resposta natural desses animais frente ao desafio antigênico, facilitando o screnning de clones com 36 alta afinidade (RICHARD et. al., 2013). Nesta perspectiva, os camelídeos são imunizados com antígenos específicos acrescidos ou não de adjuvantes, administrados geralmente por via subcutânea ou intramuscular (BARAL, MACKENZIE, GHAHROUDI, 2013). A resposta imune é monitorada com base no título de IgG2 e IgG3 obtido em ELISA com soro em diluição seriada. A biblioteca de cDNA é construída por RT-PCR (reação de transcriptase reversa seguida de reação em cadeia da polimerase), realizada a partir de RNA total extraído de linfócitos periféricos. Em seguida, são realizadas duas PCRs consecutivas utilizando primers genes específicos para amplificação do repertório gênico VHH e inserção de sítios de endonucleases, como por exemplo, SfiI e NotI (GHAHROUDI et al., 1997). Vetores do tipo fagomídeos, como por exemplo, PHEN1 e pComb3X, são utilizados na clonagem por apresentarem gene que codifica a glicoproteina III de bacteriófagos M13, além de origem de replicação bacteriana e fágica, que possibilitam a etapa de seleção (BARBAS, 2001). O amplicon e o vetor fagomídeo são digeridos e recombinados utilizando endonucleases e ligase, respectivamente. Para construção de biblioteca primária, cepas de E.coli supressoras de stop codon, como cepa TG1, são transformadas com o fagomídeo recombinado por meio de procedimento denominado eletroporação (DOWER et al., 1988). Bacteriófagos auxiliares, como por exemplo M13KO7, são utilizados para infeção da biblioteca e devido defeito em sua origem de replicação, possibilitam a formação de partículas recombinantes contendo o genoma fagomídeo e em sua superfície o VHH fusionado a proteína III (RUSSEL; LOWMAN; CLACKSON, 2004). Os fagos recuperados, denominados de biblioteca secundária, são submetidos ao Biopanning, que consiste em uma técnica de seleção por afinidade capaz de determinar fagos que interagem com antígenos, por meio de ligantes expressos em seu capsídeo (VERHEESEN; LAEREMANS, 2012). O procedimento consiste na adsorção do antígeno em superfície aderente, geralmente placas ou imunotubos de poliestireno, seguindo de bloqueio com leite desnatado ou BSA (proteína albumina do soro bovino), interação a biblioteca secundária, lavagem e eluição em baixo pH, seguindo de neutralização. Os fagos recuperados são utilizados na infecção de novas cepas de E.coli TG1. A caracterização in silico dos clones geralmente é realizada a partir dos resultados obtidos no sequenciamento 37 utilizando ferramentas de bioinformática para alinhamentos e montagens de modelos computacionais de interação antígeno-anticorpo (MCGUIRE et. al., 2009). Como parte da caracterização in vitro, a capacidade de ligação e a constante de afinidade dos nanocorpos pós-purificação pode ser determinada por ELISA e Ressonância Plasmônica de Superfície (RPS) (PEREIRA et al., 2014). Ensaios de inibição de atividade biológica do alvo também são realizados. Os melhores clones são submetidos a testes in vivo que objetivam, por exemplo, avaliar a capacidade protetiva do nanocorpo frente ao desafio com toxina alvo em modelos experimentais (HMILA et. al., 2008). A figura 13 descreve as etapas de seleção e caracterização de nanocorpos. Figura 13: Etapas de seleção e caracterização de nanocorpos. 4.7 NANOCORPOS COMO ALTERNATIVA PARA A NEUTRALIZAÇÃO DE TOXINAS ANIMAIS As importantes características dos nanocorpos como o pequeno tamanho, capacidade de penetração tecidual, rápida biodistribuição, baixa imunogenicidade, alta solubilidade e estabilidade a variações de temperatura e pH, elevada afinidade, sensibilidade e especificidade, tornam esses fragmentos alternativa promissora para aplicações terapêuticas no envenenamento envolvendo animais peçonhentos, frente 38 as desvantagens na utilização da soroterapia convencional (AVARENGA, 2014; CHIPPAUX; GOYFFON, 1998; MUYLDERMANS, 2013). Além disso, os nanocorpos podem ser produzidos em larga-escala em microorganismos por meio de modernas e eficientes tecnologias, o que fortalece e incentiva a busca por alternativas complementares a soroterapia atual (RONCOLATO et. al., 2015). Alguns estudos vêm apresentando resultados promissores quanto à utilização de nanocorpos de camelídeos para neutralização de toxinas animais. Em 2003, foi relatado uma imunização bem sucedida de dromedários (Camelus dromedarius) contra neurotoxinas do escorpião Androctonus australis hector. Os anticorpos de cadeia pesada de camelídeos foram testados quanto a reatividade antigênica e neutralização da neurotoxina AahG50. Os resultados revelaram que ambas as subclasses de HCAbs (IgG2 e IgG3) são capazes de neutralizar a toxicidade do veneno (MEDDEB-MOUELHI, 2003). O escorpião Androctonus australis hector (Aah) possui veneno rico em neurotoxinas e tem a fração proteica denominada AahI sendo um dos principais componentes, capaz de afetar a função normal de canais iônicos, alterando a permeabilidade de canais dependentes de voltagem, resultando na liberação exacerbada de neurotransmissores (ADI-BESSALEMA; HAMMOUDI-TRIKIA; LARABA-DJEBARIA, 2008). Nanocorpos específicos foram selecionados e se mostraram eficientes na neutralização da letalidade dessa toxina em até 100% dos animais (camundongos swiss), em uma administração concomitante por via intracerebroventricular (HMILA et al., 2008), possibilitando perspectivas de utilização dos nanocorpos em soroterapias do envenenamento envolvendo escorpião. A fração proteica AahII é uma neurotoxina presente no veneno do escorpião Androctonus australis hector e uma das principais causas de desordens cardiovasculares e neuro-hormonais provocadas por acidentes com esses animais. Abderrazek e colaboradores (2009), selecionaram 12 clones que apresentaram afinidade com AahII mediada por RPS, dentre esses, destaque para o NbAahII10 que tem como alvo um epítopo único em AahII e é capaz de prevenir a letalidade desta toxina, atuando possivelmente na interface de interação entre AahII e os canais do iônicos sódio-dependentes (ABDERRAZEK et. al., 2009). Em 2012, Hmila e colaboradores identificaram o nanocorpo NbF12-10 que apresentou elevada afinidade para ambos os grupos de toxinas ativas (Aah I e AahII), neutralizando o efeito letal do veneno desses escorpiões, além de prevenir 39 distúrbios hemodinâmicos, lesões pulmonares e cardíacas, restaurar o ritmo cardíaco e recuperar a pressão arterial para valores normais, comprovando a potencialidade da terapêutica baseada em nanocorpos de camelídeos (HMILA et al., 2012). A toxina α-cobratoxina (α-Cbtx) é uma neurotoxina encontrada no veneno de Naja kaouthia capaz de provocar paralisia muscular e neuronal, devido o bloqueio dos receptores nicotínicos de acetilcolina (UTSINTONG et al., 2009). Nanocorpos específicos foram capazes de reconhecer a toxina em ensaios imunoenzimáticos e de RPS, sugerindo o desenvolvimento de antivenenos com maior poder de neutralização por possuir perfil farmacocinético mais semelhante à toxina alvo e minimizar os efeitos adversos provocados pela soroterapia convencional (STEWART, MACKENZIEB, HALL, 2007). O veneno de Naja kaouthia contém muitas isoformas de fosfolipases A2 (SFLA2 secretadas), FLA2 citosólica, cálcio dependente (cFLA2s), FLA2 citosólica, cálcio independente (iFLA2s), Acetilhidrolases ativadoras do fator ativador de plaquetas (PAF-AH) e FLA2 lisossomais), sendo consideradas os principais componentes tóxicos do veneno por provocar lise eritrocitária, inibição da agregação plaquetária e mionecrose nas vítimas de envenenamento. Estudo realizado em 2012 por Chavanayam e colaboradores, possibilitou o isolamento de FLA2 (P3 e P5) com atividade catalítica. Objetivando a prevenção desses efeitos, foram selecionados nanocorpos humanizados com capacidade de neutralização de atividade enzimática de diferentes isoformas encontradas no veneno (CHAVANAYARN et. al., 2012). O veneno da serpente Bothrops jararacussu possui as fosfolipases A2 Lys-49 e Asp-49, denominadas bothropstoxina I (BthTX-I) e bothropstoxina II (BthTX-II), respectivamente. A primeira é a miotoxina mais abundante do veneno, capaz de desencadear neurotoxicidade, mionecrose e miotoxicidade grave. A BthTX-II apresenta atividade edematogênica, anticoagulante, efeitos hemolíticos e indução da agregação plaquetária (GUTIÉRREZ; LOMONTE, 1995; HOMSI-BRANDEBURGO et al., 1988; PEREIRA et al., 1998). Com a proposta de uma alternativa complementar a soroterapia aplicada atualmente em casos de acidentes provocados por esses animais, Prado (2013), a partir de uma biblioteca imune de Lama glama, selecionou VHHs capazes de reconhecer especificamente toxinas de B. jararacussu, por meio de ensaio imunoenzimático do tipo ELISA. Dos 84 clones selecionados, 29% reconheceram BthTX-I e 21% BthTX-II. O nanocorpo KC329718 demonstrou maior 40 reatividade em ELISA e foi capaz de reconhecer ambas as toxinas, sendo indicado como promissor à neutralização das toxinas do estudo (PRADO, 2013). A crotoxina é o principal componente do veneno da serpente Crotalus durissus terrificus, formada por uma subunidade FLA2 básica, tóxica e enzimaticamente ativa (PLA2-CB, crotoxina B) e uma subunidade ácida, não tóxica sem atividade enzimática (CA, crotoxina A, crotapotina). Constitui cerca de 50% do veneno e é responsável por produzir efeitos neurotóxicos, miotóxicos e nefrotóxicos (FAURE; XU; SAUL, 2011). Objetivando produzir e caracterizar parcialmente nanocorpos de Lama glama que reconheçam essa toxina e suas frações CA e CB, Luiz (2014), identificou 58 clones VHH ativos contra crotoxina, 76 contra CB e 2 contra CA em ensaios imunoenzimáticos do tipo ELISA. Foram identificados cinco perfis distintos de nanocorpos com base nas sequencias nucleotídicas determinadas, sendo eles: KF498602, KF498603, KF498604, KF498605 e KF498606. O clone KF498604 por possuir a maior alça CDR3 e características previstas para VHH de camelídeos foi selecionado para etapas de expressão e purificação. Em ELISA para avaliação de imunorreatividade cruzada, foi verificada a especificidade deste clone ao veneno de subespécies de Crotalus durissus, reconhecendo a subunidade CB livre e conjugada no heterodímero crotoxina (LUIZ, 2014). 41 5 CONCLUSÃO Os venenos produzidos por animais peçonhentos possuem uma ampla variedade de compostos tóxicos capazes de provocar efeitos nocivos à saúde humana. Diante disso é de fundamental importância o conhecimento desses compostos a fim de identificar suas atividades, potencialidades e danos consequentes, bem como alencar possíveis alvos terapêuticos, objetivando minimizar os danos provocados nos acidentes. Com base nos altos índices de mortalidade devido acidentes provocados por animais peçonhentos, faz-se necessário a disponibilidade de alternativas terapêuticas que visem principalmente o bem estar do indivíduo, de forma que o acesso ao tratamento seja facilitado com terapias eficazes na reversão do quadro de envenenamento, além de uma maior atenção das autoridades governamentais, objetivando trabalhar com a redução desses acidentes e sobretudo os óbitos por eles gerados. Os estudos já publicados sobre os nanocorpos demonstram que além de características importantes para a neutralização de toxinas animais e prevenção de danos teciduais, esses fragmentos possuem diversas alternativas de produção que possibilitam maior eficiência na fabricação e distribuição, destacando-os como potenciais antivenenos. 42 REFERÊNCIAS ABBAS, A.; LICHTMAN, A.; PILLAI, S. Anticorpos e Antígenos. Imunologia Celular e Molecular. 6 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, p. 75-96, 2008. ABDERRAZEK, R. B. et al. 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