Vila Socó, ferida que arde após 26 anos

Transcrição

Vila Socó, ferida que arde após 26 anos
Domingo 25
A TRIBUNA
abril de 2010
www.atribuna.com.br
Baixada Santista A-11
Vila Socó, ferida que arde após 26 anos
Personagens do incêndio que devastou o local em Cubatão relembram o sofrimento da madrugada de 25 de fevereiro de 1984
FOTOS NIRLEY SENA
LUIZ FERNANDO YAMASHIRO
DA REDAÇÃO
Dona Sônia desceu do carro e
correu os olhos pelas casinhas,
franzindo a testa, como que a
pescar algo na memória. Agora, todas elas eram de alvenaria, assentadas sobre ruas pavimentadas. Suspirou. “Tudo tão
diferente...”.
A Vila Socó que domina suas
lembranças ainda é a dos barracos sobre palafitas, alheia aos
dutos apodrecidos que a trespassavam e que, anos mais tarde, selariam seu destino. Cubatão, cidade-bomba. Foi lá que
chegou,em meados dos 70, carregando a esperança de dias
melhores.
Beirando os 30 anos de idade, a moça bem-nascida travava ali o primeiro contato com
uma comunidade carente. Recorda do choque inicial, reflexo
do encontro entre duas realidades tão distintas, tão distantes.
De um lado, olhares desconfiados e comportamento arredio
diante daquelas 20 voluntárias
bem vestidas, saídas do Centro
Comunitário. De outro, a descoberta do mundo real, para
além dos palácios de cristal, e a
necessidade de reavaliar velhos conceitos.
Certa vez, conseguiram do
imponente Parque Balneário Hotel uma doação de carpetes. Finos, caríssimos, devidamente repassados a famílias locais. Dias depois, Sônia viu um deles forrando
uma casinha de cachorro.
“Os valores eram muito diferentes”, diverte-se.
Agora, passados mais de 25
anos do incêndio que devastou
o lugar, ela voltava. Sabia que
alguns dos sobreviventes à tragédia ainda permaneciam pela
vizinhança. Reencontrá-los seria como voltar ao velho barracão onde ela coordenava cursos de culinária, corte e costura, datilografia.
Vai, primeiro, buscar Gilda, companheira daqueles
tempos. Pergunta de fulana,
beltrana, mas muitas delas já
partiram.
Avança bairro adentro, aborda moradores, pergunta e pergunta. “Dona Cida ainda mora por aqui?”. Enfim, um aceno positivo, uma indicação.
Minutos depois, uma troca de
Atualmente conhecido como Vila São José, o local guarda as lembranças do caos. Voluntárias ainda conseguiram encontrar conhecidos da época, mas a maioria não estava mais lá
Dramático
Cida escapou com o marido na Kombi da família, levando os dois filhos
e o enteado. Mas o tanque estava vazio, e a perua parou alguns metros
adiante, obrigando-os a correr até o pé da serra. Vida sarcástica.
A vilinha ardendo, mergulhada em gasolina, e eles sem nenhuma para
fazer com que o veículo se movesse.
olhares, um sorriso surpreso,
um abraço apertado. Cida era
a velha parceira que emprestava a casa para os bazares do
Centro Comunitário. Ali, as
roupas doadas à comunidade
eram convertidas em dinheiro
para a compra de mantimentos às famílias.
SEM GASOLINA?
Cida nasceu Maria Aparecida
Venâncio, em Muriaé, Interior
de Minas, 1960. Chegou à Vila
Concreto, asfalto e batismo
WALTER MELLO
Na madrugada de 25 de fevereiro
de 1984, a Vila Socó, à margem do
km 57 da Via Anchieta, foi
devastada por um incêndio. O
episódio é considerado até hoje
uma das maiores tragédias do
País. Oficialmente, foram 93
mortes, mas testemunhas
garantem que esse número foi
muito maior, ocultado por corpos
que jamais foram encontrados.
O fogo foi alimentado pelo
vazamento de 700 litros de
gasolina da tubulação corroída
que atravessava o mangue rumo
ao porto. A Petrobras,
responsável pelos dutos,
substituiu o sistema, indenizou e
construiu casas para os
sobreviventes. O lugar, então,
ganhou nome de santo: Vila São
José.
Mas ninguém foi
responsabilizado pelas mortes.
Socó aos 14, trazida pelo tio,
trabalhador da Cosipa –trajetória semelhante a outras tantas
daquele núcleo, formado majoritariamente por mão-de-obra
importada, principalmente do
Nordeste. Vinham para sustentar o polo industrial da Cidade.
Na noite em que a gasolina
vazou dos dutos e o fogo devorou os barracos, escapou com o
marido na Kombi da família,
levando os dois filhos e o enteado. Mas o tanque estava vazio,
e a perua parou alguns metros
adiante, obrigando-os a correr
até o pé da serra. Vida sarcástica. A vilinha ardendo, mergulhada em gasolina, e eles sem
nenhuma.
O incêndio tirou de Cida a
casa. A vida tirou-lhe o marido. Sobreviveu o bazar, agora,
para manter sua própria renda, no lugar onde escolheu
viver. “A gente sabe que os
canos ainda estão aí e tudo.
Mas vai fazer o quê?”.
Perigo
“A gente sabe
que os canos
ainda estão aí e
tudo. Mas vai
fazer o quê?”
Maria Aparecida Venâncio, a Cida,
sobrevivente que continua no local
DESCOBERTAS
Aconversa remete opensamento de Dona Sônia àquela madrugada, virada de sexta para
sábado de Carnaval. O telefone
toca, é Gilda, avisando do fogo.
Correria, viaturas bloqueando
a entrada da vila. Ela precisa
passar, trabalha ali, conhece
aquela gente. Foi para ensinar,
aprendeu muito.
Naquela beira de mangue, a
vida ganhara outra dimensão.
Na concepção da jovem voluntária, todo mundo tinha geladeira, todo mundo tinha fogão. A Vila Socó destruiu-lhe
as certezas: utensílios banais
em seu cotidiano eram sonho
de consumo para boa parte
daquelas famílias.
Não era a pobreza, porém,
o que mais lhe espantava. Havia entre aqueles homens e
mulheres uma solidariedade
quase invencível. Quanto
maior a dificuldade, maior a
união. Uma mãe precisa sair,
a vizinha se oferece para tomar conta dos filhos. Um novo parente chega de longe, a
família se aperta no barraco
para dar-lhe abrigo. “Isso, eu
jamais encontrei no meu
meio social”.
Sem aviso e sem misericórdia, o fogo, os gritos, os relatos de vultos em chamas cruzando a escuridão enterraram para sempre, naquele
mangue, os sonhos que a jovem Sônia acalentava. No dia
seguinte, o barracão, berçário
dos projetos, virou depósito
de corpos carbonizados.
“Enche tudo, igualzinho àquela época”
TTT No meio da conversa, Gilda
surge de uma viela, acompanhada de outra senhora. Novo
abraço, ainda mais demorado.
Dona Sônia conta, feliz: Maria,
hoje, é funcionária da Prefeitura. Não mora mais em barraco,
não amarra mais as crianças
levadas num pedaço de pau,
como costumava fazer antes
das duas se conhecerem.
Baiana de Abaíra, Maria Oliveira é mais uma sobrevivente
do incêndio. Acordou aos sobressaltos naquela noite e, de
camisola, deixou obarraco, junto com marido e quatro filhos.
Além das perdas materiais, lamenta pelo cachorro e o passarinho, deixados para trás.
Mas porincrível que pareça,a
vila pré-incêndio, na Cubatão
ValedaMorte,desperta-lhesaudades. Talvez porque a moradia
nova, em ferro e concreto, seja
menor que o velho barraco, onde havia um quintalzinho. “As
casas de agora são coladas uma
na outra, uma umidade só”. Ou
talvez porque alguns problemas, entra governo, sai governo, jamais se resolvem. “Quando a maré sobe, enche tudo.
Igualzinhoàquelaépoca”.
A mesmice incomoda. No caminho de volta para Santos,
onde mora, Dona Sônia fala da
incapacidade do Poder Público. Incapacidade de aprender,
Sônia e Maria Oliveira: um reencontro de quem viu a morte de perto e conseguiu escapar
de planejar, de sobrepor a vida
ao lucro. Políticos, em geral,
não pensam no futuro – a não
ser no próprio.
A prática de recrutar trabalhadores de outras regiões por
salários ridículos continua,
agora, para alimentar espigões que brotam em bairros
chiques. Novas vilas socós virão, e com elas, novas tragédias. “O que aconteceu agora
no Rio, as casas construídas
em cima do lixão... é exatamente isso”, lamenta.
SEM MEDO DO FOGO
A professora Sônia Leida Franco Coelho atuou como voluntária no Centro Comunitário da
Vila até o dia do incêndio. Depois, acabou contratada pela
Prefeitura de Cubatão para lecionar na rede municipal.
Mais de uma década após a
tragédia, a mãe de um aluno
abordou-a na escola municipal Tocantins, Vila Natal, para onde foi transferida boa
parte dos sobreviventes. Queria saber se era ela a voluntária Sônia do Centro Comunitário, que num dia frio lhe
dera um cobertor. Ato simples, do qual a agora professora sequer lembrava. “Ela me
agradeceu muito, me abraçou. Essas coisas ficam, não
tem incêndio que leve”.

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