Liberdade e dignidade da pessoa humana Deodato Rodrigues
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Liberdade e dignidade da pessoa humana Deodato Rodrigues
Revista Diálogos Interdisciplinares - Edição Especial 2015, vol. 4, n°2 - ISSN 2317-3793 Liberdade e dignidade da pessoa humana Deodato Rodrigues Leite1; Victor Athie2; João Francisco Gonçalves3 Resumo Este trabalho apresenta os conceitos de justiça, dignidade da pessoa humana e da liberdade, discutindo sua aplicação em casos concretos como o arremesso de anões e a recusa do paciente a submeter-se a tratamento vital. Concluímos que a definição do que seria o justo ao caso concreto é uma questão aberta, que terá diferentes interpretações dependendo da formação religiosa, moral, social e política do aplicador do direito. Palavras-chave: liberdade, justiça, dignidade da pessoa humana, tratamento vital 1Introdução Poderia o Estado impedir que o indivíduo exerça o seu direito de liberdade sob o argumento de seu exercício violar o princípio da dignidade da pessoa humana? Procuramos discutir a problemática que envolve a análise do justo diante do conflito entre o exercício do direito à liberdade e da dignidade da pessoal humana. Poderia o Estado cercear a liberdade do indivíduo sob o argumento de que o que ele pretende fere sua dignidade? Para compreender a extensão do problema iniciamos com uma análise acerca do conceito de justiça ao longo da história do pensamento, passando em seguida para uma análise do que seria a e dignidade da pessoa humana, e da visão contemporânea para a resolução de conflitos entre princípios. Discutimos também os conceitos de liberdade e dignidade da pessoa humana como direitos fundamentais e as técnicas de aplicação destes princípios quando em conflito. Aborda-se dois casos polêmicos: o arremesso de anões como atividade profissional e a recusa do paciente a tratamento vital. Finalmente, procuramos demonstrar que o respeito efetivo ao princípio da dignidade da pessoa humana somente será possível quando se assegurar condições mínimas para a sua existência, com ênfase na tutela e efetividade dos direitos fundamentais de liberdade e igualdade. 1 Orientador. Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2003), PósGraduadolatu sensu; em Direito Penal pela Universidade Braz Cubas (2002). Professor Universidade Braz Cubas. 2 Pós-Graduado latu sensu em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade de Mogi das Cruzes (UMC). Professor da Universidade Braz Cubas. 3 Discente do Curso de Direito da Universidade Braz Cubas. 119 2 Dignidade da pessoa humana O Princípio da dignidade da pessoa humana é um valor inerente ao ser humano, e está elencado no rol de direitos fundamentais da Constituição Brasileira de 1988. Desde a formulação clássica de Kant que afirmava que as coisas tem preço ou dignidade, o conceito de dignidade vem evoluindo até nossos dias, mas sempre embasado neste princípio kantiano de que a dignidade não tem preço. O conceito de dignidade da pessoa humana abrange uma diversidade de valores, que torna cada ser humano merecedor de respeito e igualdade de tratamento por parte do Estado e da comunidade, assegurando a cada indivíduo, condições existenciais mínimas para uma vida saudável. 3 Justiça Mais complexo que o conceito de dignidade é o conceito de justiça. Desde logo vale a pena apresentar a advertência de Hans Kelsen ao estudar a Teoria da Justiça: Iniciei este ensaio com a questão: o que é justiça? Agora, ao final, estou absolutamente ciente de não tê-la respondido. A meu favor, como desculpa, está o fato de que me encontro nesse sentido em ótima companhia. Seria mais do que presunção fazer meus leitores acreditarem que eu conseguiria aquilo em que fracassaram os maiores pensadores. De fato, não sei e não posso dizer o que seja justiça, a justiça absoluta, esse belo sonho da humanidade. Devo satisfazer-me com uma justiça relativa, e só posso declarar o que significa justiça para mim: (...) É a justiça da liberdade, da paz, da democracia, da tolerância4. A resposta “o que é justiça” não está ao nosso alcance, na verdade, existe um conjunto conflitante de concepções de justiça, umas valorizando a questão do mérito, outras os direitos humanos fundamentais, ou ainda o contrato social, sem olvidar das que apelam para os padrões de utilidade social 5. Este conflito atinge não só a sociedade, mas também os indivíduos per se, que são levados através da educação a adotarem um modo coerente de pensar e julgar, com uma ótica construída a partir de uma fusão de fragmentos sociais e culturais legados de diferentes tradições que deram origem a nossa 4 KELSEN, Hans. O que é justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 25. 5 MACINTYRE, Alasdair. Justiça de Quem? Qual Racionalidade? São Paulo: Loyola, 1991. 120 cultura (puritana, católica, judaica, etc.), bem como de diferentes estágios e aspectos do desenvolvimento da modernidade (iluminismo francês, Iluminismo escocês, liberalismo econômico do século XIX, liberalismo político do século XX, etc.)6. Que substantivo suporta o atributo de justo? Se a justiça não está na essência, mas sim na qualidade do que é justo, é de fundamental importância identificar quem merece o atributo de justo. As coisas da natureza não podem ser adjetivadas de justas ou injustas, pois elas são naturalmente como só poderiam ser. O comportamento dos animais não podem ser qualificados de justos ou injustos, pois não é possível exigir-se que procedam de outra forma, pois eles agem naturalmente sempre da mesma forma, sem qualquer possibilidade de agirem diferentemente do que lhes exige a natureza. Assim, só podemos qualificar de justo ou injusto o comportamento do homem, pois somente ele pode deliberar agir de forma diferente. Mas, nem todas as ações humanas livres podem ser classificadas como justas ou injustas. Não existe justiça na escolha de uma roupa ou de um alimento determinado. Embora sejam condutas humanas livres, mesmo que a pessoa resolva agir de outra forma, vestindo azul ao invés de preto, tal escolha não pode ser titulada de mais ou menos justa. Concluímos, assim, que somente as ações humanas relacionais, intersubjetivas, é que poderiam ser adjetivadas de justas ou injustas. As justiça ou injustiça de uma conduta humana está diretamente relacionada com o resultado que tal ação causará em outra pessoa. Se considerarmos como critério de justiça o atendimento de todas as necessidades das pessoas, logo perceberíamos que isso seria impossível, uma vez que os bens são limitados, não sendo possível dar a cada um o que cada um gostaria de ter. Parece então mais justo uma divisão equitativa de todas as coisas, dividindo todos os bens em partes iguais. A distribuição de tudo em partes iguais também não atende o critério de justiça por diversas razões. Primeiro porque alguns bens são indivisíveis, de forma que sua divisão 6 MACINTYRE, Justiça...op. cit., p. 12. 121 em partes iguais inviabilizaria sua utilização, se transformando de uma grande injustiça. Segundo porque nem todos precisam ou desejam determinadas coisas, e a atribuição de coisas desnecessárias a um, privando outro que precisaria de mais, também parece injusto. Na impossibilidade de se fazer justiça pelo critério distributivo, faz-se necessário a utilização de outro critério, denominado critério corretivo. Perelman utiliza-se da noção de "categorias essenciais", pela qual a justiça implica o tratamento igual dos seres que são iguais em dadas circunstâncias. Só é realizável a justiça desde que haja identidade comum entre os indivíduos a que a mesma é aplicada. Argumenta Perelman que para a aplicação dos conceitos de justiça é preciso dividir as pessoas em categorias essenciais, ou seja, dividir as pessoas de acordo com situações de igualdade essencial para cada caso concreto, de forma que se possa aplicar sua classificação de justiça a cada grupo essencial, tratando assim, igualmente, pessoas que para aquela situação possam ser consideradas iguais, ou seja, os seres de uma mesma categoria essencial devem ser tratados da mesma forma7. Perelman8 elenca seis concepções concretas da noção de "justiça", num rol meramente exemplificativo, a fim de demonstrar, através de fortes argumentos, ser pouco provável se conseguir a extração definitiva e universal do que seja "justiça". São eles: 1. Igualdade absoluta (a cada qual a mesma coisa). 2. Igualdade distributiva (a cada qual segundo seus méritos). 3. Igualdade comutativa (a cada qual segundo suas obras). 4. Igualdade de caridade (a cada qual segundo suas necessidades). 5. Igualdade aristocrática (a cada qual segundo sua posição). 6. Igualdade formal (a cada qual segundo o que a lei lhe atribui). Todas essas concepções se referem a critérios de distribuição de justiça, e como tal, amplamente relativos, sob o aspecto material, posto que, numa visão perelmaniana, não há como se eleger um "melhor" critério. 7 PERELMAN, Chaïm. ética e Direito. T rad. de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996, passim. 8 PERELMAN, Chaïm. Op. Cit. P 19 122 Com o conceito de Parelman, tratando desigualmente os grupos desiguais encontraríamos um melhor equilíbrio, pois haveria uma correção na distribuição, definindo-se alguns princípios de justiça que permitirão identificar quais os aspectos relevantes que devem servir de base para uma distribuição equitativa de responsabilidades e benefícios: a cada um, uma parte igual; a cada um, em função das suas necessidades; a cada um, em função do seu empenho; a cada um, em função do seu contributo social; a cada um, em função do seu mérito; a cada um, de acordo com as regras de mercado, etc. A questão agora é saber quem deveria definir qual o melhor critério para atribuir a determinado grupo determinado bem. Parece pacífico o entendimento de que é necessário que a sociedade edite leis que definam quem deve receber o que. Aristóteles associa a justiça à conformidade com a lei. No mesmo sentido é o conceito de legalidade para Kant. Mas é importante destacar que esses dois filósofos não tem a mesma concepção do que seja a lei Para Aristóteles, , esta lei é a natural ou comum, fruto da reta razão, e não a lei particular, passível das mais variadas distorções e equívocos. Para kant, porém, a legalidade refere-se à lei particular. Portanto, para o filósofo grego, a legalidade refere-se à justiça universal é a conformidade com esta última, e não com a justiça particular Dar a cada um o que é seu já estava presente na República de Platão 9 e no Digesto10 do direito romano. Kelsen11 critica esta fórmula afirmando que ela depende de uma ordem normativa que determina o que é para cada um. Chaïm Perelman lembra de inúmeras outras regras muito próximas como a “não faças a teu semelhante o que não desejarias que ele te fizesse” que é muito viva na filosofia Cristã e no próprio imperativo categórico de Kant (Age do modo que desejarias que agissem teus semelhantes)12. A justiça é a caridade do sábio e abrange, além da tendência para fazer o bem, aliviando os sofrimentos, a regra da razão. Ademais, existe certo consenso filosófico de que a justiça se define por igualdade e liberdade. 9 PLATÃO, A República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996 10 Upiano, Digesto, I, 1.10 11 KELSEN, Hans. O problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 18. 12 PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 70-76. 123 4 O direito à liberdade A Constituição Federal regulamenta o direito à liberdade como: liberdade de locomoção (art. 5º, inciso XV da CF); liberdade de opinião ou pensamento (art. 5º, inciso IV da CF); liberdade de expressão de atividade intelectual, artística, científica e de comunicação (art. 5º, inciso IX da CF); liberdade de informação (art. 5º, inciso 220 da CF); liberdade de consciência e crença (art. 5º, inciso VI da CF); liberdade de reunião (art. 5º, inciso XVI da CF); liberdade de associação (art. 5º, inciso XVII da CF) e liberdade de opção profissional (art. 5º, inciso XIII da CF). Segundo CUNHA JÚNIOR 13 , Liberdade é “um direito subjetivo de buscar a felicidade e a satisfação pessoal, podendo fazer tudo aquilo não é vedado pela lei.” Em outras palavras, como afirma José Afonso da Silva14, o homem se torna cada vez mais livre na medida em que amplia seu domínio sobre a natureza e sobre as relações sociais. O homem domina a necessidade na medida em que amplia seus conhecimentos sobre a natureza e suas leis objetivas. Então, não tem cabimento sobre a discussão sobre a existência e não existência da liberdade humana com base no problema da necessidade, do determinismo ou da metafísica do livre-arbítrio, porque o homem se liberta no correr da história pelo conhecimento e consequente domínio das leis da natureza, na medida em que, conhecendo as leis da necessidade, atua sobre a natureza real e social para transformá-la no interesse da expansão de sua personalidade. 5 O arremesso de anões O arremesso de anões é um esporte que surgiu na Austrália em meados da década de 1980, popularizando-se nos Estados Unidos em 1985 e a partir daí espalhando-se para o resto do mundo. A prática consiste numa competição, de arremesso de anões à distância. Aquele que arremessar mais longe os anões recebe um prêmio. Uma danceteria de umacidade francesa chamada Morsang-sur-Orge promovia semanalmente tal competição, porém o prefeito daquela cidade interditou o espetáculo, alegando razões de ordem pública. Inconformada, a empresa, em litisconsórcio com um dos anões ajuizou ação para anular o ato do prefeito perante o Tribunal Administrativo de Versailles que lhes deu 13 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. rev. ampl. atual. Editora JusPODIVM, 2008. 14 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional. 34. ed. rev. atual. Malheiros Editores, 2011. 124 ganho de causa. Mas em grau de recurso, o Conseil d´Etat reformou a decisão do Tribunal Administrativo, por atentado à dignidade humana. O caso foi levado à Comissão das Nações Unidas para os Direitos Humanos, que em 27 de setembro de 2002 julgou que a decisão não era discriminatória aos anões, estabelecendo que o banimento do arremesso não era abusivo, e sim necessário para manter a ordem pública, fazendo ainda considerações a respeito da dignidade humana. 6 Testemunhas de Jeová e a transfusão de sangue Os seguidores da religião Testemunhas de Jeová recusam-se a se submeter a tratamentos médicos ou cirúrgicos que incluam transfusões de sangue. Na impossibilidade de se valerem de tratamentos alternativos, negam-se a receber transfusões, mesmo que isso possa levá-las à morte. A recusa às transfusões de sangue possui importantes reflexos na esfera médica, acarretando dilemas éticos pois os médicos estão condicionados a enxergar a manutenção da vida biológica como o bem supremo, e no âmbito jurídico, no qual se debate se é direito do paciente recusar um tratamento médico por objeção de consciência quando este, aparentemente, é o único meio apto a lhe salvar a vida. Diante da recusa do paciente a submeter-se à transfusão de sangue, a postura médica é valer-se de uma decisão judicial para resguardar-se de responsabilidades, pois que, se concordar com o paciente e não fizer a transfusão de sangue, poderá responder ética, civil e criminalmente pelas consequências advindas ao paciente. Se fizer a transfusão mesmo contra a vontade do paciente, certamente será processado por desrespeitar a vontade do paciente No judiciário, o juiz deverá valorar tanto o direito à vida como o direito à liberdade do paciente para deliberar sobre qual das conduta atenderá melhor aos critério da melhor justiça. A Constituição Federal garante ao paciente o Direito a vida e a Liberdade. Como poderá o magistrado cumprir o preceito de dar a cada um o que é seu, se não é impossível dar as duas coisas ao mesmo tempo? Em que consiste o direito a vida? Simplesmente uma existência biológica? A esta indagação o STF respondeu que a pessoa humana deve ser vista ao mesmo tempo no 125 sentido notarial, biográfico, moral e espiritual, destacando inclusive que embora o Estado seja laico, há referência expressa à figura de Deus no preâmbulo da Constituição (voto do Min. Carlos Aires Britto na ADI 3510 – Células tronco). No mesmo caso, a Corte Suprema Brasileira destacou a incidência do princípio da responsabilidade: independentemente dos conceitos e concepções religiosas e científicas a respeito do início da vida, é indubitável que existe consenso a respeito da necessidade de que os avanços tecnológicos e científicos, que tenham o próprio homem como objeto, sejam regulados pelo Estado com base no princípio da responsabilidade 15e ao lado dele o princípio da esperança16, contrapondo-o (voto do Min. Gilmar Mendes – ADI 3510). Note-se que não é a vida um valor absoluto, tampouco um fundamento da República, primeiro porque a Constituição admite a pena de morte em caso de guerra, segundo porque no art. 1º., o fundamento da República é a dignidade humana e não a vida. Assim, a vida deve ser vista sob o prisma do princípio da dignidade humana. A Constituição não resolve o tema sem que haja esforço interpretativo, vez que se encontram em aparente colisão as normas de proteção à vida e as normas de liberdade, especificamente neste caso, a liberdade religiosa. O Direito à vida não se resume ao viver...O Direito à vida diz respeito ao modo de viver, à dignidade do viver. Só mesmo a prepotência dos médicos e a insensibilidade dos juristas pode desprezar a vontade de um ser humano dirigida a seu próprio corpo. Sem considerar os aspectos morais, religiosos, psicológicos e, especialmente filosóficos que tão grave questão encerra. (voto vencido: Desembargador Marco Antonio Ibrahim, TJRJ - 2004.002.13229) 7 direito de recusa do paciente a tratamento vital No caso vertente, não estamos diante de uma simples ponderação entre o direito a vida (bem maior) e o direito à liberdade (bem menor em relação ao primeiro). Dependendo da ótica, pode-se dizer que o conflito é entre uma vida (ou sobrevida precária e infeliz) e a vida (no paraíso). O direito do paciente recusar determinado tratamento, mesmo que isso lhe custe a vida, é garantido por nosso sistema jurídico que lhe garante o livre arbítrio. 15 JONAS, Hans. O princípio da responsabilidade. Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Trad. Marijane Lisboa. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006, p. 57. 16 BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Trad. Nélio Schneider. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. 126 A Constituição Federal ao proteger a dignidade da pessoa humana e o direito à vida, garante também o direito a uma vida digna, o que possibilita que alguém, usando dessa liberdade, recuse-se a manter uma vida medíocre e indigna, de acordo com seus valores éticos e culturais. O médico não pode efetuar qualquer procedimento sem o prévio esclarecimento e consentimento do paciente, sendo proibido, ainda, exercer sua autoridade de maneira a limitar o direito do paciente de decidir se aceita ou não determinado tratamento. Pelo princípio bioético da autonomia, a pessoa humana pode rechaçar determinado tratamento médico ou cirúrgico com apoio em seus próprios valores, sem influência externa. Segundo Ronald Dworkin17, nos contextos médicos, “a autonomia da vontade está frequentemente em jogo, sendo que um paciente pode se recusar a receber tratamento, cirurgia ou transfusão sanguínea necessária para salvar a sua vida, se estes procedimentos ofenderem suas convicções religiosas”. Embora a intervenção forçada tenha o condão de salvar vidas, tal comportamento viola os direitos individuais da pessoa humana, sobrepondo a opinião do profissional médico à opinião do paciente, não sendo possível ao médico garantir o resultado de sua intervenção Assim, é legítima e legal, por exemplo, a postura das Testemunhas de Jeová em recusar a receber transfusões sanguíneas, sendo ético para o médico respeitar a vontade de recusa do paciente, pois caso contrário, a dignidade desse paciente estaria ferida Não há conflito entre o direito à vida, privacidade e liberdade e o direito de recusa à intervenção médica, pois o direito à vida é um direito exercido pelo ser vivente erga omnes, ou seja, todos, Estado e sociedade, devem respeitar tal direito do indivíduo, que o exercerá amplamente, de forma que não se pode falar em obrigação de viver ou direito do estado em exigir que se viva. Autores, porém, como Néri Tadeu Câmara Souza 18, sustentam a possibilidade de intervenção médica forçada em caso de risco de vida 17 Dworkin Ronald.(Domínio da vida: Aborto, Eutanásia e Liberdades Individuais. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 319 18 SOUZA, Néri Tadeu Câmara. Responsabilidade civil e penal do médico. Campinas, SP: LZN, 2006. 127 O Código de Ética Médica, aprovado pela RESOLUÇÃO CFM Nº1931/2009 (Publicada no D.O.U. de 24 de setembro de 2009, Seção I, p. 90), estabelece em seu artigo 31: É vedado ao médico: Art. 31. Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte. O artigo Art. 32 do mesmo código reza que é vedado ao médico deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente. Dessa forma, aparentemente estaria excluída a antijuricidade do ato médico praticado sem o consentimento do paciente, desde que este ato seja praticado em situação de existência de iminente perigo de vida, sendo esta intervenção urgente, necessária e inadiável, a fim de evitar a morte do paciente. Entretanto, muito embora do ponto de vista ético disciplinar o médico esteja autorizado a desrespeitar a vontade do paciente, normas jurídicas de maior coercibilidade, como a Constituição Federal o Código Penal e o Código Civil, garantem o direito à vida, saúde e, consequentemente, a dignidade humana. Todavia, numa interpretação sistêmica do ordenamento jurídico poderíamos afirmar que o direito de recusa do paciente não é absoluto, pois diante de iminente perigo de vida o médico tem a obrigação de realizar o procedimento, agindo de acordo com o exercício regular de um direito ou mesmo de seu dever de salvar vidas, sob pena de incorrer em responsabilidade civil e penal. Assim, da ponderação entre o direito à vida e o direito à liberdade e autonomia de escolha, prevalece o direito à vida. A recusa do paciente de submeter-se a qualquer tipo de procedimento médico, independentemente da iminência de risco de vida, encontra guarida nos princípios da liberdade religiosa, da autonomia da vontade e autodeterminação, na dignidade humana e até mesmo no princípio da legalidade. Esta recusa deve ser respeitada de forma absoluta, se ausente a iminência de perigo de vida para o paciente. Do contrário, haverá conflito entre tais direitos e o direito à vida, considerado este como um direito supremo, do qual derivam todos os demais direitos fundamentais, 128 devendo, pois, ser respeitado. É o que se tira não apenas do seu caráter de supremacia, mas também da leitura de disposições dos mais variados diplomas legais nacionais. Para os casos de conflito, independente da existência de iminente perigo de vida para o paciente ou da possibilidade ou não de cura, a doutrina é divergente: há quem considere que deve prevalecer o direito à vida. Outros, que deve prevalecer o direito à liberdade religiosa, à autonomia da vontade, direitos esses, que em última análise, têm estreita ligação com a dignidade humana e com a recusa ao tratamento. Em respeito a esses raciocínios, o médico que atende a vontade do paciente em não se submeter a procedimento médico (tratamento médico ou intervenção cirúrgica), exceto nos casos de iminente risco de vida, não pode ser responsabilizado civil e criminalmente, mesmo que da conduta sobrevenha a morte do paciente. O julgador, nestes casos, para proferir a autorização ou não da realização do procedimento no paciente deverá ponderar todas as razões que o levaram a recusa e, posteriormente, manifestar-se, isentando responsabilidades dos envolvidos na questão. 8 Considerações finais Muito embora nosso sistema jurídico proteja a liberdade, a dignidade da pessoa humana, a vida, etc., a aplicação prática desse princípios ao caso concreto nem sempre é fácil. Embora nosso sistema legislativo busque abarcar todas as hipóteses, sempre haverá situações em que o julgador nãoencontrará uma norma simples e clara para alcançar a tão desejada justiça. Nesses casos, será necessário recorrer-se a princípios, que, por vezes, estarão em conflito entre si, exigindo grande capacidade de ponderação do julgador. Em última análise, verifica-se que é o juiz a pessoa que decidirá o que é justo ou injusto, seja aplicando uma norma legal específica ou sobrepondo um princípio a tal norma, ou ainda decidindo dentre diversos princípios, qual o que ele entende mais adequado à situação concreta. Assim, saber-se se o arremesso de anões ou a recusa a tratamento vital é justo ou injusto, não é uma questão filosófica, mas simplesmente uma questão política, definida 129 por uma magistrado que aplicará os princípios que lhes parecer mais de acordo com a sua forma de pensar, sua formação cultural, religiosa, política, etc. Sendo a justiça uma convenção social, a sociedade, representada pelo judiciário, é quem tem legitimidade nos tempos atuais para definir o que é o justo. Conclui-se que o justo não depende de concepções filosóficas de uma sociedade, mas sim da legitimidade do órgão julgador, que, por sua vez, é selecionado por determinados critérios predefinidos por aqueles que detém o poder de decisão, o que impede que pessoas com pensar diferente do existente alcance um posto de decisão, mantendo-se assim o poder de dizer o direito sempre no mesmo grupo social dominante. Referências BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Trad. Nélio Schneider. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. BRASIL. Constituição (1988). Constituição [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 1988. ______. Lei no. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial de 11 de janeiro de 2002, Brasília, DF. CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. rev. ampl. atual. JusPODIVM, 2008. Dworkin Ronald. Domínio da vida: Aborto, Eutanásia e Liberdades Individuais. São Paulo: Martins Fontes, 2003. JONAS, Hans. O princípio da responsabilidade. Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Trad. Marijane Lisboa. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. KELSEN, Hans. O que é justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2001, MACINTYRE, Alasdair. Justiça de Quem? Qual Racionalidade? São Paulo: Loyola, 1991. PERELMAN, Chaïm. ética e Direito. Trad. de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996, passim. PLATÃO, A República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional. 34. ed. rev. atual. Malheiros Editores, 2011. Upiano, Digesto, I, 1.10. SOUZA, Néri Tadeu Câmara. Responsabilidade civil e penal do médico. Campinas, SP: LZN, 2006.