A cidade de Palladio

Transcrição

A cidade de Palladio
Itália
A Villa Godi foi o primeiro trabalho de Palladio como arquitecto
Vicenza
A cidade de Palladio
Depois da febre industrial, Vicenza descobriu Palladio e tornou-se no sítio
com maior concentração de obras classificadas da UNESCO. Luís Maio (texto e fotos)
visitou a cidade-berço do estilo de arquitectura mais popular no mundo inteiro
16 • Sábado 20 Fevereiro 2010 • Fugas
O Barbaran da Porto alberga o museu dedicado a Palladio
A Loggia del Capitaniato data de 1571
Toda a gente conhece a
arquitectura palladiana, mesmo
sem nunca ter posto os pés em
Itália, ou sequer ouvido falar de
Palladio (1508-1580). A influência
da sua obra transcendeu épocas
e fronteiras, convertendo-o no
único autor que deu nome a um
estilo de arquitectura. Um estilo
que enformou a construção
de todo um escol de edifícios
majestosos nos séculos XVII e
XVIII, desde o Palácio de Inverno
de São Petersburgo, na Rússia,
até Monticello e a Universidade
da Virgínia, nos Estados Unidos,
passando pela Stowe House, no
inglês Buckinghamshire.
O palladianismo persistiu
inclusive depois do surto
neoclássico, uma constância
ilustrada por obras monumentais
muito posteriores, como a National
Gallery de Washington (1941), ou o
mais recente palacete construído
pelo magnata Muni El-Masri na
Palestina (2000). Portugal não é
excepção: o modelo palladiano
reconhece-se na maior parte das
obras de vulto pós-terramoto,
como sejam o portuense Palácio
da Bolsa ou o lisboeta Teatro D.
Maria II, prevalecendo depois
em edifícios públicos como o da
Câmara Municipal de Lisboa e o
Palácio de São Bento.
O palladianismo é, portanto,
universal e duradouro, pelo
menos até prova em contrário. Já
a actividade de Andrea Palladio
se concentrou na área de Vicenza
de meados do século XVI, então
no centro da expansão interior e
agrícola da República de Veneza
(por reacção ao declínio do
Mediterrâneo, motivado pelos
Descobrimentos). A maior parte
dos edifícios que projectou ao
longo de quatro décadas de
actividade conservam-se de
pé, contando-se 23 na cidade
de Vicenza classificados como
Património da UNESCO, desde
1994. Vinte e quatro villas rurais
ganharam a mesma distinção, dois
anos depois, 16 na mesma região
vicentina e o resto nas imediações.
A extraordinária concentração
de obras de Palladio faz de Vicenza
o lugar com maior número de
monumentos protegidos do planeta
e isto por causa de um único autor.
Daqui também já se depreende
que o maior atractivo da cidade
no coração da região do Veneto
é justamente Palladio, seja pelas
obras que produziu seja pelas
muitas mais que inspirou. Porque
se no centro histórico da cidade
nem tudo é obra dele, duplos e
derivados estão um pouco por toda
a parte, enquanto nas c
Fugas • Sábado 20 Fevereiro 2010 • 17
Itália
c redondezas se contam nada
menos de quatro mil villas de
factura Palladiana. Nem sempre
resulta fácil distinguir os originais
das cópias e até pode acontecer
gostar-se mais destas que daquelas.
A fama universal de que o
arquitecto nascido em Pádua e
fixado em Vicenza veio a auferir
deve-se a fãs tão célebres como
o escritor alemão Goethe e o
arquitecto inglês Inigo Jones,
mas sobretudo ao sucesso do
seu tratado Os Quatro Livros de
Arquitectura (1570). Há mesmo
quem defenda que a sua obra
não foi nem melhor nem pior que
a de tantos outros arquitectos
da Alta Renascença, tal como
ele apostados em ressuscitar os
modelos da Antiguidade. A grande
diferença, nesta perspectiva, é que
ele sistematizou como ninguém
os princípios desse generalizado
regresso aos clássicos.
O certo é que a “palladiomania”,
ou melhor, a reconversão de
Vicenza na cidade de Palladio é
francamente tardia. Na verdade,
a cidade viveu a maior parte
do século XX investida no
desenvolvimento industrial (o
famigerado “milagre italiano”) e só
inflectiu para a exploração do filão
palladiano com a candidatura à
rede UNESCO em 1994.
Informações
www.cisapalladio.org
www.vicenzae.org
Tel.: +39 0444964380
Como ir
A TAP voa todos os dias para
Veneza, a partir de 79€. Os voos
duram cerca de três horas e saem
de cá às 8h às 3.ª,4.ª e 6.ª e às 13h20
à 2.ª, 5.ª e domingo, descolando
de lá cerca de uma hora depois da
chegada. A distância do aeroporto
Marco Polo de Veneza a Vicenza é
de 65 quilómetros.
Onde ficar
Campo Marzio
Viale Roma, 21
Tel.: +39 0444545700
www.campomarzio.com
Europa
Strada Padana Verso Verona, 11
Tel.: +39 0444 564111
Cristina
Corso S. Felice e Fortunato, 32
Tel.: +39 0444323751
Onde comer
Torchio Antigo (Villa Godi)
Via Palladio 44, Lugo de Vicenza
Tel.: +39 0444889306
A praça que
resume tudo
18 • Sábado 20 Fevereiro 2010 • Fugas
Agli Schioppi
Contra Piazza del Castello, 26
Tel.: +39 0444543701
Trattoria Nogarazza
Via S. Agostino, 61
Tel.: +39 0444288900
AUSTRIA
SUÍÇA.
Vicenza
A
CI
OÁ
CR
A Piazza dei Signori foi e
continua a ser a praça principal
de Vicenza. Uma longa praça
rectangular dominada pela Torre
do Campanário de 82 metros de
altura e, um pouco mais abaixo,
por colunas que sustentam um
Leão Alado e um Cristo Redentor.
É uma skyline que não destoaria
em Veneza, mas os edifícios mais
emblemáticos da praça pertencem
já a essa outra galáxia que é a
arquitectura de Palladio.
A intervenção no Palazzo della
Ragione, mais conhecido por
Basílica (1546), foi a primeira
encomenda importante, ao passo
que a Loggia del Capitaniato
(1571) é um dos projectos mais
emblemáticos dos últimos anos
de carreira. Ambas são obras
maiores do arquitecto quinhentista,
mas têm essa mais-valia de se
encontrarem quase frente a
frente, sugerindo de imediato
comparações entre as suas fases de
juventude e de maturidade. A praça
é, portanto, um perfeito ponto
de partida (ou de chegada) para
qualquer roteiro de descoberta de
Vicenza e aquilo que não se pode
perder, mesmo numa visita de
médico.
Roma
ALBÂNIA
Mar
Mediterrâneo
ITÁLIA
TUNÍSIA
ARGÉLIA
La Rotonda é a villa mais célebre de Palladio
O Palazzo della Ragione era a
antiga sede das autoridades locais
(os signori a que alude o nome da
praça). Um edifício gótico, que
a edilidade quis emoldurar com
uma dupla ordem de loggias, em
finais do século XV, por motivos
estéticos mas também para dar
tecto ao mercado que cresceu
à volta. A primeira empreitada
correu mal e ruiu, dando lugar
a um novo concurso a que se
habilitaram alguns dos arquitectos
mais prestigiados da época.
Andrea Palladio, então com 38
anos de idade, era ainda quase
desconhecido – um cortador de
pedra originário de Pádua, que
ambicionava reinventar-se como
arquitecto em Vicenza.
Depressa, contudo, se fez
notar e ganhou o patronado
de personalidades influentes,
como o humanista Trissino, que
em muito terá contribuído para
as autoridades lhe confiarem o
projecto. Palladio resolveu a parada
projectando nas duas ordens de
loggias o motivo do chamado Arco
Serliano, centrado num grande vão
abobadado, flanqueado de dois
vãos rectangulares mais pequenos,
bordejados por filas duplas de
colunas. Uma solução sóbria
e ao mesmo tempo majestosa,
funcional mas nem por isso
menos elegante, resumindo toda
a paixão do Renascimento pela
Antiguidade, depois celebrizada
como palladianismo.
Mas se Palladio sempre se
manteve fiel aos ensinamentos
clássicos, não é menos certo que
nunca parou de se reinventar (ou
de os reinventar, aos clássicos).
De tal modo que quando foi
chamado de volta à Piazza
dei Signori, desta vez para
desenhar a nova sede do governo
veneziano, o resultado apurouse substancialmente diferente. A
Loggia del Capitaniato, da qual
acabaram por ser construídos três
dos cinco ou sete eixos inicialmente
previstos (embora hoje pareça
completo), é um edifício de
acentuada impulsão vertical com
uma fachada dominada por quatro
colunas colossais, que se prolonga
nas alturas por enormes capitéis
misturando as ordens jónica e
coríntia.
A matriz vertical da Loggia
del Capitaniato contrasta com
a horizontalidade dominante
no Palazzo della Ragione, do
qual descola igualmente pelo
acento colocado no relevo das
loggias e pelo jogo de cores,
que faz alternar o vermelho do
tijolo nas colunas ao branco da
pedra talhada dos pedestais. As
combinações de luz e sombras,
bem como o profuso emprego de
elementos ornamentais, justificam
a aproximação ao maneirismo.
A unidade dinâmica, vertical e
plástica do conjunto poderá ser
vista como uma antecipação do
barroco. Mas o que é sobretudo
ostensivo na comparação dos dois
edifícios da Piazza dei Signori é o
progresso de Palladio de um registo
de refinada sobriedade para um de
exuberância e complexidade.
O essencial da
excursão urbana
O centro histórico de Vicenza
é exíguo, a maior parte dos 23
edifícios classificados pela UNESCO
encontra-se em meia dúzia de
quarteirões. Se esta classificação
implica envolvimento de Palladio
nos ditos edifícios, já não quer
dizer que os tenha projectado a
todos de raiz, nem que o seu valor
artístico seja igual. Talvez por isso
não há um só roteiro consagrado,
mas uma multiplicidade de opções
de visita. Vai do itinerário restrito
ao best of de Palladio àqueles que
o enquadram na descoberta de
Vicenza por bairros. Vai dos guias
que só contam anedotas da Vicenza
de Quinhentos aos que se limitam
ao jargão arquitectónico. No meio,
como sempre, estará a virtude, ou
neste caso o Palladio essencial.
Uma etapa comum à maior parte
dos roteiros é o Palazzo Thiene
(1542), natural quando se trata da
estreia de Palladio em Vicenza.
Pegou-lhe aos 34 anos de idade,
devido à morte prematura do
arquitecto Giulio Romano, que
assinou o projecto original. É
interessante, uma vez que se trata
um típico palácio renascentista
em que Palladio se envolveu um
ano antes de mergulhar no estudo
aprofundado da arquitectura
clássica, na sua segunda estadia
em Roma. A diferença entre o
antes e o depois torna-se flagrante
comparando com o Palazzo Iseppo
da Porta, edificado na mesma rua,
apenas dois anos depois. A fachada
colossal, o branco imaculado, a
repartição espacial da Antiguidade,
aliada a concepções estéticas do
Renascimento, fazem deste edifício
um marco na sua obra.
Outra estação obrigatória
é o Palazzo Chiericati (1550),
porventura a mais formosa das
residências urbanas desenhadas
por Palladio. Testemunho de
uma arquitectura aberta a toda
a largura, é dominado por onze
eixos ritmados em dois níveis,
reencarnando à beira do rio de
Vicenza o modelo da villa marittima
O Palazzo Chiericati é também uma paragem obrigatória
permanente ao requiem do mestre.
Há depois toda uma constelação
de residências familiares
disseminadas pela cidade velha
que merecem uma visita, como
o Pallazo Valmarana Braga Rosa,
o Porto Breganze e sobretudo
o Barbaran da Porto, que hoje
alberga o museu e centro de
estudos dedicados a Palladio.
Falando na Vicenza actual,
haverá que notar que boa parte
dos edifícios do centro acolhem
museus, teatros e imensas lojas.
Palladio será equivalente a Vicenza,
mas a verdade é que ele ou a sua
herança nunca estão sós. Toda essa
animação é um extra que subtrai a
cidade do Veneto à estrita condição
de museu a céu aberto.
da Antiguidade. Mesmo ao lado fica
o Teatro Olímpico, desenhado por
Palladio aos 72 anos de idade, em
1580, pouco antes da sua morte. É
uma clara extrapolação do modelo
dos teatros romanos ao ar livre para
o primeiro teatro permanente de
Vicenza, na realidade o mais antigo
teatro coberto que se conserva no
mundo inteiro.
Obra derradeira, mas também
culminante de Palladio, é o seu
trabalho seguramente mais
complexo, dominado por uma
espectacular scenea fronts de
três andares, que põem em obra
uma densa rede de elementos e
variações. Palladio já não assistiu
à inauguração do teatro com a
tragédia grega Édipo Rei, para a
qual Vicenzo Scamozzi construiu
uma reprodução em miniatura da
Tebas antigas, que veio conferir
perspectiva e acabou como adição
Palladio’s
country
As villas de Palladio iluminam
hoje ainda escaninhos de idílio
rural da Itália do Norte. Não são
as moradias rurais apenas que
justificam a visita, mas toda a
paisagem circundante e a forma
delicada, quase orgânica, como as
primeiras se inscrevem na segunda.
Faz sentido numa arquitectura que,
apesar da pureza assumida, sempre
foi pensada como imitação da
natureza, regida pelas mesmas leis
universais. A beleza das mansões
rústicas de Palladio passa muito por
essa constante procura de sintonia
com a paisagem. E o que também é
notável, ou até milagroso, é como
essa harmonia foi preservada
até aos nossos dias, passando ao
lado do pesado legado que a era
industrial deixou um pouco por
toda a região.
Palladio funciona, portanto,
como um excelente pretexto para
partir à descoberta dos recantos
mais bucólicos da província
vicentina. De novo o problema são
as escolhas, quando a maior parte
das suas 16 villas classificadas se
encontram em lugarejos e ao longo
de vias secundárias, implicando
que em meio-dia não se consiga
ver mais de duas. Depois são quase
todas privadas e só algumas se
visitam, por vezes em condições
muito restritas.
Uma das poucas exploradas
comercialmente (visitas,
casamentos, concertos) é a Villa
Godi (1537), o primeiro trabalho
de Palladio como arquitecto.
Típica villa renascentista com
duas torres avançadas e um corpo
central recuado, a Godi exibe já a
sua chancela, nomeadamente na
rigorosa simetria do projecto e na
severidade das fachadas, em clara
ruptura com a tendência decorativa
de Quatrocentos. Os exuberantes
jardins circundantes, o belveder
sobre os campos ondulados em
redor, e sobretudo os sumptuosos
frescos no interior (que serviram
de cenário a Senso, de Visconti) são
igualmente preciosos.
A Villa Pisani (1542) é outras das
essenciais, uma vez que marcou
um ponto de viragem na carreia de
Palladio, logo depois da revelação
da Antiguidade na sua primeira
viagem a Roma. Beneficiando pela
primeira vez de um orçamento
confortável para edificar uma
mansão aristocrática, no centro de
uma vasta propriedade agrícola, o
arquitecto quis não apenas conferir
a esta casa de campo um requinte
mais próprio dos palácios urbanos,
mas também racionalizar aos
equipamentos agrícolas adjacentes.
Estes ficaram incompletos e
acabaram por ser demolidos,
conservando-se, porém, a
esplêndida casa senhorial, onde a
loggia dominante se abre sobre três
arcadas rematadas por um frontão
triangular, à maneira de um templo
da Roma antiga.
A Villa Pisani só se visita por
marcação, a não ser que haja
exposições de arte contemporânea,
periodicamente organizadas
pelos donos, que são artistas. Arte
contemporânea que, vamos ser
honestos, não casa lá muito bem
com a arquitectura de Palladio. São
questões que já não se levantam
a propósito da Villa Poiana (1548),
recentemente adquirida pela
edilidade, que lhe devolveu o
brilho original, reabrindo-a em
horário de museu. O privilégio
justifica-se sobretudo pela brilhante
extrapolação da arquitectura das
termas romanas para o contexto
das mansões rurais de Quinhentos,
patente nas duas fachadas do corpo
central, onde se recortam janelas
serlianas, coroadas por arcos
duplos abobadados, penetrados
por cinco oculis.
A villa mais célebre de
Palladio não é, porém, rural,
mas suburbana. É Villa Almerico
(1566), nome do cónego de família
aristocrática que a mandou
construir, meio quilómetro a sul
de Vicenza. Acabou, no entanto,
por ser mais conhecida como
La Rotonda, correspondendo à
sua concepção absolutamente
simétrica em torno de um centro
circular, antecedido por quatro
pórticos monumentais, todas
iguais, correspondendo aos quatro
pontos cardeais. Cada pórtico é
composto por cinco colunas jónicas
rematadas por frontões, enquanto
o núcleo central é coroado por um
tecto abobadado (um oculus aberto
na primeira versão), que acentua a
analogia com o Panteão de Roma.
A harmonia das proporções, o
jogo de volumes e a não menos
extraordinária integração
paisagística fazem de La Rotonda
a villa mais admirada e imitada
de Palladio. Só admite visitantes
no interior às quartas, mas em
compensação os jardins abrem
diariamente.
Fugas • Sábado 20 Fevereiro 2010 • 19

Documentos relacionados

Renascimento Italiano

Renascimento Italiano hotel. Tempo livre para descanso. À noitinha, passeio pela cidade com obras renascentistas importantes como as igrejas de Sant’Andrea e San Sebastiano, de Alberti, as casas do arquiteto Giulio Roma...

Leia mais

Page 1 ! " ! # Visitando: Roma, Ostia, Siena, Arezzo, Florença

Page 1 ! " ! # Visitando: Roma, Ostia, Siena, Arezzo, Florença Transfers aeroporto/hotel/aeroporto; Hotéis categoria turística superior com ar-condicionado e café da manhã, muito bem localizados, facilitando os passeios no tempo livre; City-tour de ônibus em R...

Leia mais

costa e silva e grandjean de montigny

costa e silva e grandjean de montigny alugarem as suas casas e de fazerem habitar os telhados, o arquitecto propunha antes a construção de um pequeno andar sobre a cimalha antes do telhado 22 , à maneira de um ático, como ainda hoje se...

Leia mais