Por detrás dos dentifrícios

Transcrição

Por detrás dos dentifrícios
edição 07 | Abril 2013
Por detrás dos dentifrícios
Entrevista com o Prof. Dr. Jaime Cury
Graduação em Odontologia pela Universidade Estadual de Campinas
(1971), mestrado em Ciências (Bioquímica) pela Universidade Federal
do Paraná (1974), doutorado em Ciências Biológicas (Bioquímica) pela
Universidade de São Paulo (1980) e pós-doutorado pela Universidade de
Rochester, EUA (1995 e 2005).
Atualmente é professor titular de bioquímica da Faculdade de
Odontologia de Piracicaba, Unicamp.
Tendo em vista a coincidência temporal entre a
adição de flúor aos dentifrícios e a redução de
cárie observada em pelo menos 16 países, a
maioria tem considerado os dentifrícios como
os responsáveis pelo fato. Por outro lado a
explicação não é tão simples, pois se assim
fosse bastaria fluoretar os dentifrícios de todos
países para uma solução global da doença
cárie. Ao aprofundarmos na questão temos que
considerar não só o flúor do dentifrício, mas o
que se esconde por detrás deste. Assim, além
da qualidade do flúor do dentifrício temos que
considerar que empunhando a escova dental
em um indivíduo inserido num contexto sócioeconômico extremamente complexo. Por outro
lado, contrariando quase todos os prognósticos,
o declínio de cárie dental também é uma
realidade no Brasil e em 2010 fomos classificados
entre os países com baixo índice de cárie. Seria o
Brasil o 17o pais do mundo a contribuir para esta
relação simples “causa-efeito”? Com prudência
diríamos que existem indicadores mas a leitura
final só pode ser feita considerando a conjuntura
dos fatos.
Começaremos pelo mais simples que é a
parte técnica. De fato, tivemos um salto qualiquantitativo em termos de dentifrícios fluoretados
no Brasil. A partir de um chamamento da classe
Odontológica, via Coordenação de Saúde Bucal,
Ministério da Saúde, feita no final da década de
80 as empresas produtoras foram receptivas e a
qualidade do flúor presente nos dentifrícios os
capacitou a ser um veículo para o controle da
cárie dental. Porém, o fato mais marcante em
termos de repercussão social só aconteceu a
partir de Setembro de 1988 com a agregação de
flúor ao mais popular creme dental vendido no
Brasil, representando um aumento 50% na oferta
de dentifrícios fluoretados. Assim, dentifrícios
com preço mais acessível e tendo flúor ativo
para o controle de cárie passaram a ser uma
realidade no Brasil. Entretanto, a resolução em
vigor da ANVISA que regulamenta a qualidade
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do flúor nos dentifrícios apenas especifica que
um dentifrício não pode conter mais que 1500
ppm F, sem colocar limite mínimo de quanto deve
estar solúvel para ser efetivo no controle de cárie
e hoje sabemos que um dentifrício deve conter
uma concentração de nomínimo 1000 ppm F.
deste beneficio do flúor do dentifrício pudessem
hoje sorrir com dentes saudáveis, como tem
sido feito pelo Programa Brasil Sorridente. A
conscientização pela educação em saúde bucal
contagiou pessoas e instituições e o resultado da
escovação com dentifrícios fluoretados se refletiu
nos levantamentos epidemiológicos realizados
no Brasil nas ultimas décadas.
Por outro lado, só o flúor do dentifrício seria
suficiente? Poderia até ser para uma parcela
privilegiada da população em função de condições Deve ser enfatizado, que embora o Brasil continue
culturais e econômicas. Aí
com suas desigualdades sociais
entramos na contextualização
acumuladas na sua história,
CÁRIE COMO
do que ocorreu no Brasil.
indicadores atuais apontam
DOENÇA
JAMAIS
SERÁ
Quase que simultaneamente
para uma diminuição dessa
com a melhoria dos dentifrícios
desigualdade,
melhoria
ERRADICADA....ASSIM,
fluoretados tivemos no nosso
da qualidade de vida e
TEMOS QUE ESTAR
país um fato histórico que
provavelmente uma maior
PERMANENTEMENTE
foi a reforma sanitária. A
preocupação em relação a
descentralização da saúde foi o
higiene bucal. Na década de
VIGILANTES PARA MANTER
momento político que a pratica
80-90, o consumo per capita
A CÁRIE SOB CONTROLE E
reprimida de investir na saúde
de dentifrício no Brasil teve um
O TRABALHO CONJUNTO
bucal da população pudesse
aumento de 45% nos últimos 10
ter autonomia. Assim, houve
anos. O Brasil passou de 7o para
DE COMPROMETIMENTO
no país uma multiplicação de
o 3o, atrás dos Estados Unidos e
COM O PROBLEMA
ações em saúde bucal, tendo
Japão e em média o brasileiro
ENVOLVENDO
a frente colegas cirurgiõesusa por dia 1,5 g de dentifrício/
dentistas, que produziram em
dia.
INDÚSTRIA-GOVERNOSpouco tempo resultados que
INSTITUIÇÕES NÃO PODE
Por outro lado, ao mesmo tempo
outras áreas da saúde ainda
SOFRER
SOLUÇÃO
DE
que tem havido uma euforia
não conseguiram.
em relação ao declínio de cárie
CONTINUIDADE.
Neste contexto tributo deve ser
dental no Brasil, não há motivo
rendido à entidades ou grupos. À
para acomodação. Cárie como
ABOPREV por levantar a bandeira pela promoção doença jamais será erradicada (biologicamente
de saúde bucal e aos colegas dos serviços públicos é provocada por bactérias que estão na boca de
(ENATESPO) por tornarem isto uma realidade. todos nós e pela exposição frente a açúcares) e
O flúor dos dentifrícios não faria nada sozinho embora tenha havido uma redução significativa
se programas de saúde bucal não tivessem sido de lesões nos dentes de grande parcela da
implementados no Brasil graças ao momento população 44% das crianças aos 12 anos de idade
político e o espírito de cidadania de verdadeiros continuam tendo manifestação da doença, sendo
heróis anônimos. Dificuldades foram superadas a maioria delas as socialmente vulneráveis (“Cárie
para que crianças que seriam marginalizadas é uma doença biosocial!”). Assim, temos que
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estar permanentemente vigilantes para manter
a cárie sob controle e o trabalho conjunto de
comprometimento com o problema envolvendo
Indústria-Governos-Instituições não pode sofrer
solução de continuidade.
Em acréscimo, outra questão tem sido hoje
levantada é fluorose dental. Todos, indistintamente
podemos contribuir para que a redução de
cárie que está ocorrendo no Brasil não seja
traumática em termos de aumento da prevalência
de fluorose dental. Os fatores que contribuem
para seu aumento são conhecidos e podem ser
controlados da mesma forma que se conseguiu
reduzir cárie dental. Deste modo, os vários
segmentos da sociedade tem que assumir suas
responsabilidades antes que todo um trabalho
de benefícios do uso de flúor seja comprometido
pela desinformação quanto ao risco de fluorose
dental. Promessas de dentifrícios adequados
para crianças, sendo inclusive capazes de evitar
fluorose, devem ser vistas com cautelas, mesmo
porque a fluorose dental decorrente do uso de
creme dental na concentração convencional
(1000-1500 ppm F) não compromete a qualidade
de vida das pessoas acometidas... o benefício
supera o risco!
Em conclusão, seguramente flúor de dentifrício
foi um dos fatores importantes para o declínio
de cárie ocorrido no Brasil. Por outro lado, isto
não ocorreu por acaso. Muitos contribuíram
para que isto acontecesse e um pouco do
que está por detrás de um dentifrício eu me
arrisquei a desvendar. Falta muito e mais ainda
quantos ficaram no anonimato. Para estes a
maior realização é ver o resultado no sorriso de
uma criança.