TRANSLATION AND NATION: PAULO HENRIQUES

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TRANSLATION AND NATION: PAULO HENRIQUES
TRADUÇÃO E NAÇÃO: PAULO HENRIQUES BRITTO, ELIZABETH BISHOP E A QUESTÃO DA
IDENTIDADE NACIONAL EM POEMAS DO BRASIL
TRANSLATION AND NATION: PAULO HENRIQUES BRITTO, ELIZABETH BISHOP AND
THE ISSUE OF THE NATIONAL IDENTITY IN POEMAS DO BRASIL
Andréa Soares Santos*
Resumo
Este artigo, tomando como objeto de análise o volume Poemas do Brasil, seleção de poemas de Elizabeth Bishop,
com organização e tradução de Paulo Henriques Britto, procura demonstrar como a atividade tradutória, articulando
neste caso um significativo diálogo entre representações culturais, oferece uma alternativa de reflexão sobre a
questão, tão marcante em nossa história cultural, da identidade nacional. Ao mesmo tempo, e assumindo que, ao
traduzir, todo tradutor filia-se de alguma maneira à tradição tradutória e à tradição literária de seu país, busca
evidenciar as relações entre a prática tradutória da geração concretista, aqui representada por Haroldo de Campos,
e a geração contemporânea, na figura do poeta-tradutor Paulo Henriques Britto, no que concerne ao modo como
equacionam, em suas traduções, as tensões entre o elemento estrangeiro e o nacional.
Palavras-chave: Tradução, Identidade Nacional, Haroldo de Campos, Paulo Henriques Britto, Elizabeth Bishop.
Abstract
This paper, taking as object of analysis the book Poemas do Brasil, a selection of poems of Elizabeth Bishop
organized and translated by Paulo Henriques Britto, intends to show how the activity of translation, articulating in this
case a significant dialogue among cultural representations, offers an alternative for reflection on national identity, a
subject so outstanding in our cultural history. Assuming that when translating, all translators join somehow the
translation tradition and the literary tradition of his/her country, this paper also evidences the relationships among
the translation practice of the concretist generation, here acted by Haroldo de Campos, and the contemporary
generation, in the person of the translator-poet Paulo Henriques Britto, expressed in the way they establish in their
translations the tensions between the foreign and the national elements.
Key words: Translation, National Identity, Haroldo de Campos, Paulo Henriques Britto, Elizabeth Bishop.
1 Tradução e Nação: articulações
O volume Poemas do Brasil (1999), seleção de textos de Elizabeth Bishop traduzidos pelo também poeta
Paulo Henriques Britto, ponto de partida desta reflexão, nos coloca o problema da articulação entre nação
e tradução por no mínimo dois vieses.
Em primeiro lugar, por se tratar de Elizabeth Bishop, autora nascida nos Estados Unidos, que, tendo migrado
para o Brasil e aqui produzido parte de sua poesia, acaba por fazer dela um palco muito peculiar para a
encenação das representações dessas duas diferentes culturas.
Em segundo, porque, no intento de recortar, dentro da obra de Bishop, os poemas que melhor traduziriam a
relação da poeta norte-americana com o Brasil, reuni-los numa antologia e deles fazer uma tradução voltada
para o leitor brasileiro, Paulo Henriques Britto talvez nos dê uma boa medida de como, na trajetória da
produção literária brasileira, a atividade tradutória tem contribuído para o debate sobre a questão, tão
marcante em nossa história cultural, da identidade nacional.
Em que pese, na consideração do primeiro viés, a existência de uma já rica bibliografia relativa às questões
do lugar, do deslocamento e da identidade na poesia de Bishop ou às da presença do Brasil na obra da
norte-americana, concentrar-se-á aqui no modo como Paulo Henriques Britto opera com essas questões no
volume que organiza, agenciando-as por meio de instrumentos como o ensaio de abertura do livro,
intitulado “Bishop no Brasil”, a “Nota introdutória aos poemas”, as “Notas do tradutor”, a divisão em partes,
a escolha dos poemas e, é claro, as traduções propriamente ditas.
Ao redesenhar a trajetória de Bishop no Brasil, ao recortar-lhe na obra os Poemas do Brasil, Paulo Henriques
Britto estará re-traduzindo a tradução que a poeta fez do país, numa operação que certamente incluirá um
“transporte” das representações culturais que a autora terá engendrado, mas já combinada com aquelas que
lhe imprime o próprio tradutor. Enfim, marcar-se-á definitivamente a diferença que é intrínseca a toda
tradução.
Resgata-se aí, então, o segundo viés de articulação entre nação e tradução. Ao traduzir, todo tradutor,
explícita ou implicitamente, manifesta suas concepções de tradução, desenha sua poética tradutória e o faz a
partir do acervo de sua língua e sua cultura. Ao mesmo tempo, filia-se de alguma maneira à tradição
tradutória e à tradição literária de seu país.
E, ainda que não se tenha escrito nenhuma história da tradução literária brasileira 1, muito menos das
concepções assumidas por nossos tradutores ao longo do tempo, é certo que a prática tradutória veio
acompanhando de perto a nossa prática literária, mesmo que com status de atividade inferior, e sua história
se narrando, mesmo que à margem da história “maior” e “mais importante”, a história da literatura brasileira.
Ainda é certo que a prática da tradução foi para muitos de nossos autores exercício de aprendizagem
poética e meio de se manter em sintonia com a literatura estrangeira, na tentativa, sempre constante em
nossa história cultural, de buscar “a síntese de tendências universalistas e particularistas”, para usar a tão
conhecida formulação de Antonio Candido (1981). E é claro, também, que em cada ponto dessa história ela
assumiu o papel que as próprias concepções literárias da época lhe admitiam assumir.
Mas no capítulo mais recente dessa narrativa da trajetória da tradução literária no Brasil, é inegável a
relevância do trabalho dos poetas do Concretismo, em especial o de Haroldo de Campos. Pode-se
considerá-lo certamente um divisor de águas no modo de pensar e praticar a tradução no Brasil,
principalmente por fazer da tradução, mais do que um exercício prático, um campo de reflexão. De fato,
Haroldo de Campos notabilizou-se como tradutor, crítico e poeta, exatamente por problematizar a
inferioridade de status da prática tradutória frente à atividade criativa dos poetas; por articular, em sua
teorização e em sua prática, tradução e tradição; por sua preocupação de refletir sobre a história de
tradução literária no Brasil e trazer à tona alguns de seus esquecidos ou renegados; e por defender uma
reflexão sobre a história literária brasileira e o cânone nacional que leve em conta a questão da
tradução.
Não é difícil admitir, então, que, a partir desse momento, tenha-se criado uma nova ambiência para o
trabalho dos tradutores no Brasil, em que certa retomada ou referência ao trabalho tradutório dos
concretistas seja, consciente ou inconscientemente, sempre efetuada.
É, portanto, tomando como pressuposto o fato de que certas formulações de Haroldo de Campos possam
repercutir na obra dos tradutores que, como Paulo Henriques Britto, lhe foram sucessores, que se pode
perceber como, na operação que efetua Britto sobre a obra de Bishop em Poemas do Brasil, articula-se esse
outro viés da relação entre tradução e nação, aqui pensado tanto pelo modo como a tradução se faz uma
produção literária nacional, como pelo modo com que essa prática se filia a uma tradição já marcada pelo
debate da identidade nacional.
2 A Nação como Tradução
Um aspecto bastante peculiar da trajetória de Haroldo de Campos como tradutor é o engendramento de
todo um discurso sobre suas concepções de tradução que se materializa ora em ensaios mais teóricos
sobre o tema, ora em textos explicativos que, acompanhando as traduções na forma de prefácios, notas e
similares, empenham-se por desvelar as manobras e as escolhas significativas do tradutor.
É possível, sem dúvida, que esse modo (de certa forma até insistente) de afirmar sua prática tradutória
tenha ajudado, sem excluir, é claro, a própria qualidade de suas traduções, a assegurar a Haroldo o lugar de
destaque na história mais recente da tradução literária no Brasil, na medida em que garantiu visibilidade a
posturas que, se já presentes no fazer de tradutores que o precederam, ainda não tinham sido objeto de tão
veemente exposição. É possível também que esse discurso tenha contribuído para criar, das traduções
haroldianas, uma imagem nem sempre condizente com o que se atestaria no exame do produto mesmo da
tradução. Aliás, nesse sentido, nunca é demais reconhecer a possibilidade de dissonâncias entre aquilo que
os tradutores dizem de sua prática e aquilo que nela efetivamente realizam.
Mas não se pode negar que esse discurso tenha permitido uma série de discussões fundamentais ao campo
da tradução no Brasil, como também tenha se constituído numa forma de, na prática, reverter a tradicional
relação de servilidade entre original e tradução, deixando, nela, de modo mais nítido, as marcas da autoria
do tradutor2.
Em Poemas do Brasil, essas marcas de autoria se fazem sentir na proposição do projeto que define o livro,
formulada na “Nota do tradutor”. Ela deixa bem clara a intervenção autoral do tradutor, ao definir suas
intenções e critérios de escolha:
A pequena antologia que se segue não é uma compilação dos poemas de Elizabeth Bishop que
mencionam o Brasil. Nem todos os poemas de temáticas brasileiras estão incluídos aqui, e nem todos
os itens aqui incluídos referem-se a coisas e lugares brasileiros. Minha intenção foi apresentar uma
seleção de textos poéticos que registrassem o impacto do Brasil sobre a autora, ainda que as
referências ao país fossem oblíquas, utilizando apenas poemas cujo valor literário garantiria sua
inclusão numa antologia que se pretendesse representativa de toda a trajetória da autora (Bishop,
1999, p. 55).
Britto certamente leva em conta aqui o fato de que “as imagens do Brasil, na obra de Bishop, revelam muito
sobre ela mesma” (Przybycien, 1993, p. 14) e, em vista disso, vai decidir também da estrutura de
apresentação dos poemas traduzidos:
Optei por reunir os poemas em cinco grupos temáticos, correspondentes a momentos diversos da
relação entre Bishop e o Brasil: o impacto inicial da descoberta de um mundo novo e desconhecido; a
paixão pelo Brasil, metonimizado na pessoa de Lota e na casa de Samambaia; a observação
distanciada e crítica da realidade brasileira; a repulsa de um mundo que parece rejeitá-la; e, por fim, já
de volta aos Estados Unidos, a recollection in tranquillity do período brasileiro, sob o signo da perda
(Bishop, 1999, p. 56).
Já o ensaio de introdução ao volume, “Bishop no Brasil”, figura como uma espécie de desdobramento e
justificativa para todas essas decisões, ao narrar a trajetória de Bishop no Brasil por sob o olhar avaliativo
do tradutor que fundamenta a escolha de certos poemas e aprecia-os quanto à qualidade literária e quanto
aos reflexos que guardam da relação de Bishop com o Brasil.
Esse ensaio tem algumas características dignas de atenção. É visível que, em sua formulação, Britto se
beneficia intensamente da experiência de também tradutor da correspondência de Elizabeth Bishop3, a
julgar pela quantidade de citações cuja referência são as cartas da autora. É como se a narrativa da história
de Bishop com e no Brasil se fizesse também pela voz da própria poeta. A bem da verdade, poder-se-ia dizer
que esse é quase um meio de fazer desse um ensaio de dupla autoria, híbrido, como também tem dupla
autoria e é híbrida toda e qualquer tradução.
Nele, Britto faz questão de frisar, dentre outros, dois pontos que aqui se quer ressaltar: primeiro, a questão
do desenraizamento como condição da própria existência de Elizabeth Bishop4 e, segundo, o modo como,
em função dele e também de outros fatores, a autora mantém, em sua vida e em sua obra, uma relação
contraditória com o Brasil.
O desenraizamento leva Bishop à condição de viajante, de migrante, e, nesse sentido, pode ser útil aqui
considerar que no texto “DissemiNação: o tempo, a narrativa e as margens da nação moderna”, Homi K.
Bhabha (2001, p. 199) não só afirma articular suas reflexões a partir de sua própria experiência de migração,
como também destaca que o fato de que a emergência da última fase da nação moderna, a partir de meados
do século XIX, tem como principal motivador o movimento migratório, ainda hoje persistente. As reflexões
de Bhabha, que a partir daí visam a propor uma nova forma de se conceber a nação, sugerem aqui que se
inverta o foco de análise privilegiado no ensaio de Britto. Ao contrário de indagar como se dá a presença do
Brasil na vida e na poesia de Bishop, perguntar como pensar o Brasil a partir da presença dela, migrante,
estrangeira. Ou, noutros termos, qual é o Brasil, a identidade da nação brasileira, que se constitui a partir da
presença de Bishop.
Mas antes de responder a essas perguntas, é necessário ainda voltar ao segundo ponto assinalado no ensaio
do tradutor brasileiro: a questão da relação contraditória de Bishop com o Brasil. Esse é ponto sobre o qual
Britto mais se alonga, mas desde já fica claro que essa relação contraditória se dá por um complexo de
causas que vão da educação de matriz calvinista recebida pela poeta até a outras bem pessoais como sua
relação amorosa com Maria Carlota Costellat Macedo Soares (Lota).
Mas o que certamente não se esconde nos comentários de Britto a esse respeito é aquilo que expõe
Regina Przybycien (1993) quando afirma que “Bishop viu o Brasil, como de resto toda a América Latina, com
o olhar de superioridade de quem pertence a uma cultura dominante, respaldada pelas imagens que se
construíram sobre esta região ao longo da história, desde a época da colonização” (p. 13-14).
Em sintonia com essa observação está o fato, muitas vezes ressaltado por Britto, de que o interesse de
Elizabeth Bishop pelo Brasil se concentra naquilo que ela considera primitivo – a natureza, o elemento
humano –, enquanto sua repulsa incide sobre o Brasil das elites, políticas ou intelectuais, ou do ambiente
urbano5. Quanto ao distanciamento que a poeta norte-americana mantém com relação à cultura letrada
brasileira, Paulo Henriques Britto faz questão de mencionar a inabilidade que, de um modo geral, Bishop
manifesta como tradutora de literatura brasileira. “A limitação fundamental das traduções de Bishop –
afirma – é sem dúvida seu conhecimento deficiente do português. Como sempre manteve uma distância
desconfortável em relação ao idioma, apesar dos quase vinte anos que conviveu com ele no dia-a-dia, Bishop
jamais conseguiu dominar seus recursos” (Bishop, 1999, p. 40). E ainda: “A atitude de superioridade com que
Bishop vê o Brasil se estende ao idioma falado no país. Nunca considerou o português um idioma que
valesse a pena cultivar, e portanto nunca o aprendeu direito” (Bishop, 1999, p. 42). A mesma limitação Britto
vê também comparecer na avaliação que Bishop faz da produção literária brasileira: “Uma compreensão
mais aprofundada da literatura brasileira teria exigido de Bishop um mergulho na cultura brasileira que ela
jamais esteve disposta a empreender” (Bishop, 1999, p. 26-27).
Esses dados merecem atenção, pois, em primeiro lugar, a oposição entre o primitivo e o derivado, entre o
primeiro e o secundário, ou mesmo, noutras formulações, entre o original e a cópia, entre o autêntico e o
reproduzido, ainda que no caso de Elisabeth seja bem sintomática – nada mais natural para quem se sente
em condição permanente de desenraizado do que buscar nas coisas a origem –, historicamente, comandou
e, em alguns aspectos ainda hoje comanda, também a nossa própria representação da nação, sempre
oscilando entre o privilégio de um desses dois pólos ou entre a tentativa de conciliá-los.
De modo que, no olhar deslocado de quem se sente em exílio permanente no Brasil, a visão de Bishop
sobre o país espelha um pouco a nossa, fazendo-nos reconhecer o quão exilados também estamos da
própria visão que assumimos do país. O que o confronto com o pensamento de Bishop nos revela é como
o discurso de nossa identidade cultural se impregna pelo discurso do dominador. No entanto, é a presença
e a vivência da autora no Brasil, em sua condição de migrante, de voz “outra”, que ao mesmo tempo nos
leva à consciência disso6, consciência essa que o ensaio de Britto em suas avaliações críticas tão bem traduz.
Talvez aquele “mergulho na cultura brasileira” que Britto reivindica na postura de Bishop se dê, na verdade,
efetivamente, por meio da própria atuação de Britto como tradutor brasileiro, pois se trata de um mergulho
nas próprias diferenças culturais que se abrigam na nação.
Esboça-se, assim, portanto, a resposta às questões deixadas em aberto anteriormente. Como afirma Bhabha
(2001), “é a partir dessa instabilidade de significação cultural que a cultura nacional vem a ser articulada
como uma dialética de temporalidades diversas – moderna, colonial, pós-colonial, ‘nativa’ – que não pode ser
um conhecimento que se estabiliza em sua enunciação” (p. 215). A tradução é exatamente o procedimento
lingüístico e cultural que atua na dialética de diversas temporalidades, que lida com essas instabilidades.
Pensar a identidade brasileira, a partir dessa perspectiva, é pensar a nação como tradução.
3 O Texto Traduzido: produção literária nacional
Se o exame da organização geral de Poemas do Brasil e em especial do ensaio que o introduz, como formas
já de operação tradutora, nos levaram a formular uma reflexão acerca do próprio sentido da nação, o
exame dos poemas traduzidos em si, ao lado ainda dos comentários que deles faz Britto no mesmo ensaio e
de par com outras traduções brasileiras da poesia de Bishop, irá nos permitir abordar aquele segundo viés
da relação entre tradução e nação. Trata-se agora de pensar, como foi apontado anteriormente, como a
tradução de Britto exibe as marcas, por sobre as de Bishop, de suas próprias representações do Brasil,
fazendo de suas traduções produto literário nacional, e como, ao fazê-lo, filia-se a uma tradição já marcada
pelo debate da identidade nacional.
A formulação mais clara e enfática, e também mais recente, do problema da articulação entre tradução e
tradição literária nacional foi certamente, como aqui já se disse, a elaborada por Haroldo de Campos.
Ao discutir as bases de estabelecimento de nosso cânone, repropondo a leitura de certos autores
brasileiros à luz dos paradigmas da modernidade e dos valores estéticos que prestigia, Haroldo o fez
levando em conta a tradução como gesto criativo. Alguns exemplos: ao reler, em texto de 1981, o projeto
alencariano de fundação de uma língua literária nacional estabelecido no romance Iracema e detalhado no
posfácio do livro, a “Carta ao Dr. Jaguaribe”, Haroldo de Campos o faz à luz de sua própria experiência de
tradutor:
... Alencar se comporta como um tradutor que aspirasse à radicalidade, “estranhando” o português
canônico e verocêntrico – língua da dominação da ex-metrópole – ao influxo do paradigma tupi, por
ele idealizado como uma língua edênica, de nomeação adâmica, em estado de primeiridade icônica,
auroral (Campos, 1992, p. 132).
O mesmo se dá com a poesia de Gregório de Matos: “Acredito que o enfoque de Gregório de Matos
ganharia nova luz se se levasse em conta a questão da dignidade estética da tradução, como categoria da
criação” (Campos, 1977, p. 209), afirma, mostrando que Gregório revela-se um tradutor criativo, seja quando
se utiliza de expressões de origem indígena, a “miscigenação idiomática de caldeamento tropical”, ou quando
se apropria de passagens de Gôngora e Quevedo, o que Haroldo vê como uma forma de tradução.
Nessa reflexão sobre nossa história literária, Haroldo de Campos não descuidou da problemática que é sua
marca intrínseca: a questão do nacional e do universal, da relação entre patrimônio cultural universal e
peculiaridades locais.
No ensaio “Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira” (1992, p. 231-255), sua crítica à
historiografia brasileira pauta-se no valor da diferença, como bem ilustra essa passagem: “Daí a necessidade
de se pensar a diferença, o nacionalismo como movimento dialógico da diferença (...) a historiografia como
gráfico sísmico da fragmentação eversiva, antes do que como homologação tautológica do homogêneo”
(Campos, 1992, p. 237).
E, mais que isso, não se pode lhe negar o mérito de ter conseguido, nas traduções, abrir caminho para uma
prática que agencia as tensões entre o local e o global, por meio de um exercício de liberdade tradutória7.
Assim é que, ao traduzir, Haroldo de Campos irá freqüentemente valer-se de soluções extraídas de obras da
própria literatura brasileira, bem como no arsenal das expressões correntes ou coloquiais da língua
brasileira, tal como se revela em comentários como esses, extraídos de um dos ensaios que acompanham a
tradução do Fausto:
A tradução é também uma persona através da qual fala a tradição. Nesse sentido, como a paródia, ela
é também um “canto paralelo”, um diálogo não apenas com a voz do original, mas com outras vozes
textuais. (...) Na recriação do “Coro dos Lêmures” (Grablegung/Enterramento), usei deliberadamente
uma dicção cabralina, haurida no auto Vida e Morte Severina (...) O efeito de “toada”, em que os
hemistíquios de certo modo respondem um ao outro, como partes de um contraponto frásico, não
deixa de evocar o modelo do auto cabralino, que é também um canto fúnebre, em grande parte de
seu andamento (Campos, 1981, p. 191).
Um dos mais notáveis achados do texto goethiano é a dicção maliciosa, irônico-erótica, das alusões
“perversas” do Demo senil aos andróginos adversários angelicais. Assim: Es ist bübisch-mädchenhafte
Gestümper /Trino meloso de moço-donzela. Joguei com o sintagma lexicalizado “moça-donzela” (que
lembra um pouco o populário nordestino), introduzindo nele, com o masculino “moço”, um desejado
“efeito de estranhamento” (Campos, 1981, p. 197).
E esse, relativo à tradução do Eclesiastes:
Para enfrentar a dificuldade apontada por N. Frye na tradução bíblica – o contraste no texto entre o
tom oracular (autoritário-repetitivo) e o mais imediato e familiar (registros partilhados entre a “voz
de Deus” e a “voz do homem”), temos já, em nossa língua, na prática literária moderna, um fundo
retórico pré-constituído graças a escritores como Guimarães Rosa (Grande Sertão) e João Cabral
(Autos), como também um certo estrato da dicção drumoniana. Abeberaram-se, todos, na tradição
(memória oral do povo) e na inovação paralela; na surpresa “consentida” de efeitos sonoros, lexicais
e morfo-sintáticos, freqüentes vezes resgatados por revitalização ao arcano das falas populares (...)
Procurei, de minha parte, no Qohélet, preservando o “estilo-provérbio, aforismático-reiterativo, injetar,
onde cabível, para determinados propósitos, a inflexão oral de expressões como “vivente” (em lugar
de “ser vivo”) ou “feito” (em lugar de “como”) ... (Campos, 1991, p. 34-35).
Nas traduções efetuadas por Paulo Henriques Britto em Poemas do Brasil, veremos se manifestarem
soluções semelhantes. Nesse trecho de “Ribeirinho”, o verso de Britto também usa o “feito”, ou o
“igualzinho”, no lugar do “como”, para verter o “like” do original:
They gave me a mottled rattle
Me deram um chocalho mosqueado
and a pale-green coral twig
e um galho de coral verde
and some special weeds like smoke.
e umas ervas feito fumo.
(…)
(...)
Her rooms shine like silver
As salas brilham prateadas
with the light from overhead
com uma luz que vem de cima,
a steady stream of light
um rio de luz constante,
like at the cinema.
igualzinho no cinema.
Por sua vez, Maria Lúcia Milléo Martins, que resenhou as traduções reunidas em Poemas do Brasil, mostra
que, no poema “O ladrão da Babilônia”, “às seis favelas citadas no original, Britto acrescenta duas outras,
‘Macumba’ e ‘Noronha’. Obviamente, existe a questão da rima, mas de qualquer forma temos o acréscimo
da história, intensificando ainda mais no poema a assustadora proliferação de favelas” (Martins, 2000, p.
270).
Compare-se o trecho do original e a tradução:
But they cling and spread like lichen,
Pois cada vez vem mais gente.
And the people come and come.
Tem o morro da Macumba,
There’s one hill called the Chicken,
And one called Catacomb;
There’s the hill of Kerosene,
And the hill of the Skeleton,
Tem o morro da Galinha,
E o morro Catacumba;
Tem o morro do Querosene
O Esqueleto, o do Noronha,
The hill of Astonishment,
Tem o morro do Pasmado
And the hill of Babylon
E o morro da Babilônia.
Por fim, mais dois outros poemas: “One art”, exemplo daqueles em que a referência ao Brasil se faz, como
explicita Britto, obliquamente, pelo viés da perda, e “Pink dog”, por ele considerado “o mais carioca” dos
escritos de Bishop.
No primeiro, é notável, na tradução de Britto, a opção por expressões mais próximas do modo de falar
brasileiro, como “não é nenhum mistério”, ou “bestamente”, o que se torna ainda mais perceptível na
comparação com a tradução de Horácio Costa (1990)8:
The art of losing isn’t hard to master;
A arte de perder não é nenhum mistério;
so many things seem filled with the intent
Tantas coisas contêm em si o acidente
to be lost that their loss is no disaster.
De perdê-las, que perder não é nada sério.
Lose something every day. Accept the fluster
Perca um pouquinho a cada dia. Aceite [austero,
Of lost door keys, the hour badly spent.
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
The art of losing isn’t hard to master.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Já no segundo, que Britto considera extremamente calcado em referências históricas geográficas e culturais
brasileiras, a ação do tradutor incorpora sua própria vivência dessa cultura. Isso se faz sentir por todo o
poema e, sobretudo, nessa estrofe final, em que Britto arremata a tradução acrescentando, como fecho ao
poema, a expressão “A-lá-lá-ô...!”, que evoca imediatamente para o leitor brasileiro o conhecido refrão
carnavalesco:
Carnival is always wonderful!
O Carnaval está cada vez melhor!
A depilated dog would not look well.
Agora, um cão pelado é mesmo um horror...
Dress up! Dressp up and dance at Carnival!
Vamos, se fantasie! A-lá-lá-ô...!9
Exemplos como esses, embora expostos aqui em número limitado, são constantes em Poemas do Brasil.
Demonstram assim como, por meio da atividade tradutória, se articula uma resposta alternativa à questão
da identidade cultural e da nação.
Notas
[1]
Sobre essa questão veja-se o ensaio “A tradução literária no Brasil”, de José Paulo Paes (1990),
em Tradução, a ponte necessária (p. 9-31).
2 Essa forma de “rasura da origem”, para empregar a expressão tão utilizada pelo próprio Haroldo de Campos, fica
muito bem explicitada nesta análise de Else Pires Vieira quanto à capa do Deus e o diabo no Fausto de Goethe, uma das
muitas recriações poéticas de Haroldo: “A iconografia da capa também traz à tona a questão da autoria na tradução. A
assinatura na capa é a de Haroldo de Campos, sendo que a assinatura de Goethe somente aparece na terceira página.
Por outro lado, a capa apresenta uma composição de quatro retratos de Goethe, assinalando-se, assim, pictoricamente,
a autoria do texto. É interessante notar também que, pela junção dos retratos, as orelhas, emparelhadas, sugerem os
membros inferiores do Diabo – em outras palavras, a própria composição subtrai dos retratos a sua nitidez,
substituindo-a pela noção de metamorfose, transformação. E a questão da autoria torna-se ambígua por conter a
assinatura do tradutor e o retrato do autor, ambos icônicos, mas que passam a simbolizar a dupla autoria e a
redistribuição da autoridade dentro da tradução” (Vieira, 1992, p. 41-42).
3 O volume Uma arte: as cartas de Elizabeth Bishop, organizado por Robert Giroux e traduzido por
Paulo Henriques Britto (1995).
4 Logo nas primeiras páginas do ensaio, Britto nos informa que Bishop, muito cedo afastada dos
pais, viu sua infância dividida entre o Norte e o Sul, entre o carinho e a proteção familiar dos avós
maternos no Canadá e a negativa experiência de convívio com os avós paternos em Worcester,
perto de Boston, depois seguida da convivência com tios. Desenraizamento, pois, familiar, que se
intensifica na fase adulta com as sucessivas mudanças e viagens, até culminar na vinda da poeta para
o Brasil.
5 Afirma ele: “O que realmente a fascinava no Brazil era a natureza; os costumes da gente simples
despertavam nela uma curiosidade distanciada; e a high culture brasileira pouco a interessava, com
exceção de um número muito reduzido de escritores” (Bishop, 1999, p. 26).
6 Na formulação de Homi Bhabha (2001): “O problema não é simplesmente a ‘individualidade’ da
nação em oposição à alteridade de outras nações. Estamos diante da nação dividida no interior
dela própria, articulando a heterogeneidade de sua população” (p. 209).
7 Penso aqui nas formulações benjaminianas da relação entre liberdade e fidelidade, em A tarefa do tradutor: “Sendo
assim, o que resta de significativo para o sentido na relação entre tradução e original pode ser apreendido num símile:
da mesma forma com que a tangente toca a circunferência de maneira fugidia e em um ponto apenas, sendo esse
contato, e não o ponto, que determina a lei segundo a qual ela continua sua via reta para o infinito, a tradução toca
fugazmente e apenas no ponto infinitamente pequeno do sentido do original, para perseguir, segundo a lei da fidelidade,
sua própria via no interior da liberdade do movimento da língua” (p. 211); ou, ainda, “... na tradução literalidade e
liberdade devem obrigatoriamente unir-se, sem tensões...” (Benjamin, 2001, p. 215).
8 Horácio Costa (1990) traduz as mesmas estrofes assim: “A arte de perder não tarda aprender;/
tantas coisas parecem feitas com o molde / da perda que o perdê-las não traz desastre. // Perca
algo a cada dia. Aceita o susto / de perder chaves, e a hora passada embalde. / A arte de perder não
tarda aprender” (p. 207).
9 Aqui também compare-se com a versão de Horácio Costa (1990): “O carnaval é sempre
maravilhoso!/ Uma cadela depilada não combina/ Veste-te! Veste-te e pula o Carnaval” (p. 223).
Referências
BHABHA, Homi k. O local da cultura. Tradução Myriam Ávila, Eliana Lourenço, Gláucia Renate Gonçalves. Belo
Horizonte: Ed. da UFMG, 2001.
BENJAMIN, Walter. A tarefa do tradutor. Tradução Susana Kampff Lages. In: HEIDERMANN, Werner (Org.). Clássicos da
teoria da tradução. Florianópolis: Núcleo de Tradução/UFSC, 2001. v. 1, p. 188-215.
______. A tarefa do tradutor. Tradução Kralheinz Barck. Cadernos do Mestrado – UERJ, Rio de Janeiro, n. 1, p. i-xxii, 1992.
______. Magia, técnica, arte e política. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras
escolhidas).
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Dados da autora:
Andréa Soares Santos
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Mestre em Literatura Brasileira e doutoranda em Literatura Comparada – FALE/UFMG. Docente no
CEFET-MG
Endereço para contato:
Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, Coordenação de Língua Portuguesa
Av. Amazonas, 5263 – Nova Suíça
30480-000 Belo Horizonte/MG – Brasil
Endereço eletrônico: [email protected]
Data de recebimento: 29 maio 2007
Data de aprovação: 20 ago. 2007