Artigo - Recivil

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Artigo - Recivil
Artigo - Fertilização in vitro expõe conflito entre cortes - Por Ana Paula
Carvalhal
A vida humana é inviolável. Este é o teor do artigo 21 da Constituição da Costa Rica
e foi com base nele que a Sala Constitucional da Corte Suprema de Justiça da Costa
Rica entendeu que as atuais técnicas de fertilização in vitro (FIV) violam o direito à
vida e a dignidade humana.
Os tratados internacionais de direitos humanos e as ordens constitucionais dos
estados democráticos protegem a vida humana e determinam sua inviolabilidade. A
grande questão que se coloca aos juristas é determinar quando nasce esse direito
inviolável, ou melhor, quando começa a vida humana? A par das indagações de
índole filosófica, o progresso científico e tecnológico põe em cheque nossos
conceitos sobre a vida e a morte. No campo da reprodução humana, o
desenvolvimento de técnicas de fertilização in vitro, ao esmiuçar o processo da
concepção, apresenta novos desafios éticos e jurídicos, demandando sua
normatização.
A regulamentação das técnicas de reprodução assistida operou-se na Costa Rica por
meio do Decreto Executivo 24029-S, de 3 de março de 1995, que tratou da técnica
de fertilização in vitro nos artigos 9o a 13[1]. De 1995 a 2000, nasceram na Costa
Rica 15 crianças por meio da FIV, procedimento realizado por uma entidade privada
denominada Instituto Costarriquense de Infertilidade.
No entanto, em 15 de março de 2000, a Sala Constitucional da Corte Suprema de
Justiça do Estado da Costa Rica, ao analisar a ação de inconstitucionalidade
promovida pelo cidadão Hermes Navarro Del Valle[2], por meio da Resolução 200002306, declarou a inconstitucionalidade do Decreto Executivo, sustentando,
inclusive, que nenhuma outra norma poderia vir a autorizar a realização da FIV
enquanto a ciência não desenvolvesse novas técnicas capazes de evitar danos aos
embriões[3]. Em suma, a decisão considerou que a fertilização in vitro, a partir de
técnicas que levam à concepção em laboratório, viola o direito à vida e à dignidade
humana, protegido desde a sua concepção, ao permitir a morte de embriões.
Como consequência da decisão da Corte Suprema, o Estado da Costa Rica passou
não só a proibir tal técnica de reprodução, como também a criminalizar sua prática.
Em janeiro de 2001, Gerardo Trejos, em nome de Ana Victoria Sánchez Villabolos e
outros, apresentou uma denúncia perante a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos contra a Costa Rica, pedindo sua responsabilização internacional em
razão da Resolução 2000-02306 da Sala Constitucional da Corte Suprema.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, após investigação, considerou
que houve violação aos direitos assegurados pelos artigos 11.2 (proteção da vida
privada e familiar), 17.2 (direito à formar família) e 24 (igual proteção da lei) da
Convenção Americana e solicitou a responsabilização internacional da Costa Rica à
Corte Interamericana por conta da decisão da Corte Suprema daquele país.
Em 2010, diante das recomendações da Comissão Interamericana, o Poder
Executivo da Costa Rica apresentou à Assembleia Legislativa projeto de lei
objetivando permitir e regulamentar a realização de fertilização in vitro. No
entanto, por força ainda da Resolução da Corte Suprema em relação à matéria, o
projeto não foi aprovado.[4] Segundo as provas apresentadas à CIDH, a Costa Rica
é o único país no mundo que proíbe de maneira expressa a FIV.[5]
Em 28 de novembro de 2012, foi proferida a sentença da Corte Interamericana de
Direitos Humanos. Após exame das provas apresentadas, reconheceu-se a
existência de um direito à vida privada e familiar e a formar uma família, protegido
pela Convenção Americana, e que a proibição geral da prática da fertilização in vitro
viola tais direitos. Dessa forma, a corte responsabilizou o Estado da Costa Rica
determinando, inclusive, que fossem adotadas medidas administrativas e legais
para permitir a realização da FIV por aqueles que desejarem.
O que chama atenção é que as duas cortes chegaram a soluções diametralmente
opostas a partir do exame de uma mesma norma: o art. 4.1 da Convenção
Americana:
“Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser
protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser
privado da vida arbitrariamente.”
A grande divergência gira em torno do conceito de “concepção”. E, a verdade é que
o desenvolvimento das técnicas de reprodução assistida tornaram mais complexo o
seu significado.
Como restou consignado na sentença da CIDH, as técnicas ou procedimentos de
reprodução assistida são um grupo de diferentes tratamentos médicos utilizados
para ajudar pessoas a engravidar que incluem “a manipulação, tanto de óvulos
como de espermatozoides, ou embriões”. Entre essas várias técnicas encontra-se a
FIV, a transferência de embriões, a transferência intratubária de gametas, a
transferência intratubária de zigotos, a transferência intratubária de embriões e o
aluguel de útero.
Pela FIV, os óvulos de uma mulher são removidos de seus ovários, fecundados com
o esperma em um procedimento de laboratório e, uma vez concluída a fecundação,
o embrião é colocado no útero da mulher. Esta técnica é utilizada quando a
infertilidade decorre de obstrução das trompas de falópio, infertilidade masculina ou
causas desconhecidas. A FIV segue as seguintes fases: 1) indução da ovulação; 2)
aspiração dos óvulos; 3) inseminação dos óvulos com os espermatozoides
coletados; 4) observação do processo de fecundação e incubação dos embriões; 5)
transferência do embrião ao útero materno. O desenvolvimento embrionário nesta
técnica se desenvolve ao longo de cinco dias: fecundam-se os óvulos maduros para
que se transformem em zigotos; nas primeiras 26 horas o zigoto se divide em duas
células, que se dividem em quatro células no segundo dia e em oito células no
terceiro dia; no quarto dia, temos o desenvolvimento de uma mórula (primeiro
estágio de desenvolvimento do embrião); no quinto dia chega-se ao estágio de
blastocisto (camada de células que origina o embrião). A transferência pode ocorrer
do segundo ao quinto dia, dependendo das características morfológicas da divisão
celular observada no laboratório.
A Sala Constitucional da Corte Suprema da Costa Rica, com base no art. 4.1 da
Convenção Americana, entendeu que a vida inicia-se na concepção, entendendo
como concepção “a união entre o gameta masculino e o feminino”, “momento em
que é individualizada uma nova vida do ponto de vista genético”. Assim, na medida
em que muitos embriões são “destruídos, voluntaria ou involuntariamente” durante
o procedimento, por “imperícia do médico ou por inexatidão da técnica”, ocorreriam
“violações ao direito à vida”.
Por sua vez, a Corte Interamericana, invocando sua competência de última
intérprete da Convenção, consignou que “o termo ‘concepção’ não pode ser
compreendido como um momento ou processo excludente do corpo da mulher,
dado que o embrião não tem nenhuma possibilidade de sobrevivência se a
implantação não ocorrer”. Entendeu que a FIV demonstra que pode decorrer um
tempo entre a união do óvulo com o espermatozoide e a sua implantação,
constatando que a definição de “concepção” dos redatores da Convenção Americana
mudou.
Dessa forma, firmou o entendimento de que a concepção só ocorre com a
implantação, razão pela qual não se pode invocar o artigo 4.1 da Convenção em
momento anterior. Ainda, explicou que a expressão “em geral” permite inferir que o
direito à vida não é absoluto, mas gradual a partir do seu desenvolvimento.
Do confronto entre a Corte Suprema da Costa Rica e a Corte Interamericana de
Direitos Humanos resultou o entendimento de que há um direito, amparado pelo
Pacto de San José da Costa Rica, de utilização das técnicas de fertilização in vitro
pelos cidadãos que o desejarem e que tal direito não pode ser negado de forma
absoluta pelo Estado sob pena de violação do direito à integridade física, liberdade
e vida privada e familiar.
Assim, com base nas competências atribuídas pela Convenção (art. 2 e 63), a Corte
Interamericana determinou a cessação imediata da proibição da FIV na Costa Rica,
aplicando as seguintes medidas de reabilitação, satisfação e garantias de não
repetição, de forma a condenar o Estado a:
1) arcar com tratamento psicológico por quatro anos às vítimas impedidas de
realizar a técnica de FIV;
2) publicar, no prazo de seis meses, o resumo oficial da sentença da Corte no
Diário Oficial e um jornal de ampla circulação nacional e que a sentença integral
fique disponível pelo período de um ano no site oficial do poder judiciário;
3) adotar as medidas necessárias para que, com a maior brevidade possível, fique
sem efeito as medidas que proibiam a prática da FIV, de modo que as pessoas que
desejem utilizá-la possam fazê-lo sem impedimentos, devendo informar em seis
meses as medidas adotadas;
4) regulamentar, com brevidade, os aspectos que considerar necessários para a
implementação da FIV, tendo em conta os princípios estabelecidos na sentença da
Corte, devendo estabelecer sistemas de inspeção e controle da qualidade das
instituições e profissionais qualificados que desenvolvam esse tipo de técnica,
devendo informar anualmente sobre as medidas adotadas;
5) incluir a técnica de FIV dentre seus programas e tratamentos de infertilidade,
devendo informar em seis meses as medidas adotadas para tanto;
6) implementar programas e cursos permanentes de educação e capacitação em
direitos humanos, direitos reprodutivos e não discriminação, dirigidos a funcionários
judiciais de todas as áreas e hierarquia, devendo fazer especial menção a presente
sentença;
7) pagar o valor de US$ 5 mil para cada pessoa considerada vítima perante a Corte
a título de indenização por danos morais e US$ 20 mil a título de dano imaterial.
Portanto, tem-se, aqui, exemplo de promoção de direitos fundamentais decorrente
da interação entre ordens jurídicas doméstica e internacional, inclusive com
contraste e superação da decisão Corte Suprema nacional. A afirmação da
declaração de direitos no plano supraestatal, pelo influxo de sua corte de tutela,
repercutiu na ordem interna da Costa Rica, determinando a conformação do direito
doméstico à jurisprudência internacional.
[1]
Decreto
Ejecutivo
23029-S
disponível
em:
http://www.pgr.go.cr/scij/scripts/TextoCompleto.dll?Texto&nNorma=25469&nVersi
on=26946&nTamanoLetra=10&strWebNormativa=http://www.pgr.go.cr/scij/&strO
DBC=DSN=SCIJ_NRM;UID=sa;PWD=scij;DATABASE=SCIJ_NRM;&strServidor=\\pg
r04&strUnidad=D:&strJavaScript=NO.
[2] O art. 75, § 2o., da Lei da Jurisdição Constitucional da Costa Rica permite que
no
caso
de
defesa
de
interesses
difusos,
disponível
em:
http://www.tse.go.cr/pdf/normativa/leydejusridiccion.pdf
[3] Resolución 2000-02306, de 15 de marzo del 2000, disponível em:
http://wvw.nacion.com/ln_ee/2000/octubre/12/sentencia.html.
[4] Comentários ao projeto de lei, histórico da matéria na Costa Rica e razões para
sua
não
aprovação:
http://www.asamblea.go.cr/Centro_de_informacion/Centro_Dudas/Lists/Formule%
20su%20pregunta/Attachments/691/fe5%20(2).pdf
[5] O Brasil não possui legislação regulamentando as técnicas de reprodução
assistida. As técnicas são realizadas com base na Resolução do Conselho Federal de
Medicina n. 1.358/92 e na Resolução de 2006 da ANVISA que estabelece condições
técnicas para o funcionamento de bancos de semen, óvulos e embriões. A Lei
11.105/2005 (Lei de Biossegurança) tratou da doação de embriões gerados pela
fertilização in vitro para fins de pesquisas clínicas. Por outro lado, a Lei
11.935/2009 prevê que os planos de saúde cubram a FIV.
Ana Paula Carvalhal é procuradora da Fapesp e professora de Direito Constitucional
da FMU. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra e
doutoranda em Direito do Estado pela USP.
Fonte: Conjur