Artigo de duas páginas sobre o magazine Berlinda

Transcrição

Artigo de duas páginas sobre o magazine Berlinda
16 17
L
V
Viagens
03
01
01 Vista geral de Berlim, entre
a ilha dos museus e a torre da televisão da antiga
RDA
Para ir e ficar
02 Alexanderplatz é um espaço mítico da capital, que
teve direito a um célebre
romance de Alfred Döblin
03 Inês Thomas de Almeida,
entre muitas actividades,
criou e anima a Berlinda
IR
O que não falta são
companhias aéreas com bons
preços. Pela edreams
consegue voos a 200€.
Stephan Ackermann
02
BERLIM/
A cidade
é um mundo,
mas está cercada
de alemães
Uma cantora de ópera criou a Berlinda,
uma publicação sobre a capital da
Alemanha e os falantes de português.
Nuno Ramos de Almeida
É
uma cidade mágica,
estranhamente calma,
em que a história está
entranhada nas paredes. Por vezes em formato de cicatrizes de
bala que marcam as paredes desde a
Segunda Guerra Mundial. No filme “O
Terceiro Homem”, Orson Welles faz uma
adenda à obra de Graham Greene com
o mesmo título, declarando que os italianos tiveram os Borgia, séculos de guerras, mas tiveram Miguel Ângelo, Ticiano, Botticelli e Leonardo da Vinci. Já os
suíços viveram 500 anos de democracia
e paz e inventaram o relógio de cuco.
Aqui nas margens do Spree não inventaram relógios de cuco. Há cidades que
transcendem a própria geografia. Berlim é a capital da Alemanha, mas não
se confunde com o resto do país. Nada
tem a ver com o ar tradicional de Munique nem com o ar cinzento e bancário
de Frankfurt. Inês Thomas de Almeida
vive aqui há três anos. Nasceu na República Dominicana, veio com quatro anos
para Lisboa, e a música levou-a à Alemanha. Antes de chegar a Berlim viveu
cinco anos em Rostock. É cantora de
ópera. Foi a paixão pela cidade e o desejo de ter família que a levou a ficar aqui.
“Estava farta de percorrer a Alemanha
inteira em concertos. Durante anos os
comboios foram quase a minha casa, e
as casas de banho das composições eram
os camarotes em que me vestia para
actuar na ópera”, relembra. Resolveu
mudar de vida durante um ano e meio
e ter um filho. “Escolhi Berlim, passei a
ter trabalhos mais sedentários. Fui coreógrafa e assistente de encenador.” Depois
de ter tido o filho, Max, inventou a Berlinda (www.berlinda.org), um magazine cultural de Berlim e o mundo de língua portuguesa. Nas suas páginas divulga-se a actividade cultural da cidade,
com especial realce para a dos falantes
da língua portuguesa. A iniciativa está
a ser um sucesso. “Temos tido uma excelente reacção. Recebo diariamente emails
e temos mais de 1000 page views diárias”, garante a criadora do Berlinda.
Inês destaca, nas páginas virtuais da
revista, a entrevista que fez ao escritor
moçambicano Ungulani Ba Ka Khosa,
em que a propósito do seu conto “Histórias de Amor e Espanto” o escritor
recorda tempos de um passado recente
em Moçambique: “Nós contamos às
outras gerações o que vivemos, vamos
aos supermercados de Moçambique e
eles estão cheios de comida. E eu lembro-me como era antes a paisagem no
supermercado: quando muito via-se uma
barata a circular pelas montras, não
havia nada. É por isso que eu digo, a literatura tem a força de trazer essas histórias, trazer esse ambiente e essa época, muito difíceis, que nós vivemos”, lembra Ungulano. No site podemos também
ler as palavras do artista angolano Nástio Mosquito sobre a sua exposição
“Ghostbusters”, em que o artista problematiza as razões que levam os angolanos e os seus criadores a ficarem em
silêncio perante o trauma da guerra civil
angolana. “Eu julgava que com o fim da
guerra civil haveria seguramente muitos artistas a tratar o tema da guerra.
Contrariamente às minhas expectativas,
não encontrei praticamente nada que
lidasse com isso. Isso levou-me à questão do que deve ser lembrado e por quanto tempo, e se não é por vezes melhor
esquecer do que lembrar”, confessa Mosquito nas páginas da Berlinda, para justificar a criação desta exposição, que
pode ser vista em Berlim, na Galeria
Savvy, em Berlim-Neukölln. “Para mim
esses fantasmas não são apenas coisas
do nosso passado, mas também, na acepção alemã da palavra ‘Geist’, uma imaginação que nos pode ajudar a projectar o futuro.”
Inês Thomas de Almeida compara as
cidades em que viveu. Para ela Berlim
vale pela mistura. É um lugar cosmopolita em que se encontram pessoas muito diferentes. Às vezes não parece que
estamos na Alemanha. A cidade é muito
mais barata que o resto do país, o preço
do metro quadrado das casas é metade
do de Lisboa. Por ser uma cidade atraente, em que se vive bem, atrai muita gente. No espaço de poucos anos a cidade
mudou muito. Bairros como Prenzlauer
Berg sofreram uma profunda transformação em menos de 20 anos (ver caixa).
De bairro dos artistas da RDA e dos estudantes passou a bairro dos “alternativos”
e agora a bairro turístico. Já Kreuzberg,
o antigo bairro dos imigrantes de Berlim
Ocidental, tornou-se um bairro mais central, em que imigrantes, turistas e artistas convivem nas ruas. Um dos símbolos
desse processo de “gentrização” na cidade é o fim do Tacheles (um vasto edifício
ocupado por artistas durante mais de 20
anos). O lugar foi-se tornando turístico e
agora foi despejado por um banco. Um
dos seus criadores foi Jochen Sandig,
casado com a famosa coreógrafa Sascha
Waltz. “Depois de ter criado o Tacheles
criou o Sophiensaele, depois a Schaubbühne
e finalmente o Radialsystem, um dos grandes espaços da cidade e onde é obrigatório ir para ver o que de novo se faz em
Berlim”, garante Inês.
FICAR
No meio de Prenzlauer Berg,
ao pé das lojas de roupa
alternativa, fica um velho
edifício. É o Hotel Pension
Kastanienhof. A paragem de
eléctrico Kastanienallee
encontra-se no exterior do
Pension Kastanienhof. A Praça
Alexanderplatz pode ser
alcançada em 15 minutos
usando os transportes
públicos. A estação de metro
subterrâneo de Senefelder
Platz encontra-se a uma
distância a pé de oito minutos.
COMER
A zona da Helmholtzplatz, em
Prenzlauer Berg, oferece
também uma grande variedade
de cafés, bares e restaurantes.
O Frida Kahlo é um dos mais
conhecidos restaurantes
mexicanos da cidade, o café
Kiezkind, com o seu espaço
especial para as crianças
brincarem, é ponto de encontro
para as muitas mães e pais do
bairro, e o pequeno café Das
Wohnzimmer (na tradução
literal: a sala de estar), mobilado
com usadas mas confortáveis
poltronas, como se de uma sala
de estar se tratasse, é um dos
sítios onde se pode sentir essa
mistura entre o chique e o
alternativo em Prenzlauer Berg
(as dicas dos restaurantes
foram tiradas do Berlinda).
Imigrantes love their
children too. Pode
ir a Berlim-Neukölln
●●● Um grupo de raparigas jovens de
origem turca passeia pela rua. As três
do meio usam calças de ganga e blusas coloridas, ocultando o cabelo e a
testa com um lenço; outra veste uma
túnica verde pastel que a cobre da cabeça aos pés, deixando só o rosto de fora;
as outras duas – saltos altos, calças de
licra apertadas e top a descobrir a barriga – exibem o rosto excessivamente
maquilhado e uma permanente de caracóis pretos que caem aos cachos. Em
qualquer outro lugar, este grupo heterogéneo de amigas seria algo bizarro.
Não é o caso em Berlim-Neukölln. Este
bairro, maioritariamente associado a
pobreza, problemas sociais, integração
deficiente, turcos, afegãos e libaneses,
é retratado pelos jornais com títulos
alarmistas que ou remetem para violência e desemprego ou se referem às
minorias étnicas em tom paternalista.
Neukölln será tudo isto – mas é, indiscutivelmente, de há uns anos para cá
e em ritmo cada vez mais acelerado,
um dos pólos actuais da arte urbana
berlinense. Artistas plásticos, músicos,
escritores, performers e criativos têm
vindo a sair de Kreuzberg devido ao
preço crescente do arrendamento e a
deslocar-se para sul, para o bairro dos
turcos. Neukölln, por ser um bairro de
emigrantes, é um dos mais baratos de
Berlim em termos habitacionais.
O bairro dos artistas
transformou-se
no dos turistas
●●● Dir-se-ia que este bairro tem tudo
para agradar a toda a gente: muitas
árvores, restaurantes, galerias, ruas
cheias de animação, pequenas lojas de
autor e inúmeros cafés e esplanadas
onde se pode saborear tranquilamente a vida e um bom pedaço de bolo. Na
realidade, Prenzlauer Berg é um idílio
só para turistas e para quem escolheu
vir morar para Berlim. Os berlinenses
de gema são unânimes no seu desdém:
se os moradores dos bairros ocidentais não se revêem neste traçado de
ruas estreitas e fachadas coloridas
(“quando vou a Prenzlauer Berg tenho
a sensação de não estar na minha cidade”, dizia-nos recentemente uma berlinense de Dahlem, um bairro residencial elegante a sudoeste do centro), já
os antigos moradores da ex-República Democrática Alemã se sentem renegados à condição de turistas naquele
que já foi o seu próprio espaço.
Inês Thomas de Almeida, Berlinda