A VIGILÂNCIA AMOROSA
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A VIGILÂNCIA AMOROSA
A VIGILÂNCIA AMOROSA: Por uma epistemologia da vacuidade. Jacques GAUTHIER1 O Senhor da Fala [um dos três apoios do Ego, inimigos da sabedoria] refere-se ao uso de conceitos como filtros que nos resguardam de uma percepção direta do que é. Os conceitos são levados demasiado a sério; são utilizados como instrumentos para solidificar o nosso mundo e a nós mesmos. CHÖGYAM TRUNGPA, 1973, p. 12. A pergunta geradora dessa contribuição Numa pesquisa sociopoética realizada com grupos-pesquisadores Pataxó do Extreme-Sul da Bahia (GAUTHIER, 2010), apareceu o personagem conceitual de Demarcador de Terra-mãe com saúde e educação baseadas nos saberes dos Encantados. Aí, a raiz da saúde, da educação, da cultura e do saber está viva no ritual ancestral AWÊ (Toré ou Torém em outras línguas indígenas), que é, segundo o grupo-pesquisador composto por jovens Pataxó responsáveis pela educação e pela saúde na sua comunidade, AMOR, UNIÃO e PAZ. Em religiões brasileiras híbridas, que compõem aspectos espíritos de origem oriental e européia com a ancestralidade indígena, na forma da ingestão de um chá sagrado, a Ayahuasca, que proporciona estados enteógenos (ou seja, que geram a sensação da presença do divino em nós), o que o culto desenvolve é, segundo essas religiões, estados cada vez mais profundos de FORÇA, LUZ E AMOR (segundo a “Doutrina do Santo Daime”) ou de PAZ, LUZ e AMOR (segundo a “União do Vegetal”). Percebe-se a proximidade espiritual dessas religiões. Até, é possível pensar que a UNIÃO, em comunidades indígenas, é a FORÇA do grupo. Nas religiões cristãs, Deus é AMOR, o Espírito Santo é LUZ, e a PAZ é o objeto de busca do fiel. No budismo, a LUCIDEZ é a condição da nossa liberação do sofrimento; ela permite um estado de COMPAIXÃO e AMOR universal e desenvolve, na vida cotidiana, uma ativa cultura da PAZ. Poder-se-ia multiplicar os exemplos que mostram essa convergência espiritual das instituições religiosas, como se no coração da espiritualidade existisse um SABER transcultural do que é o Bem para a humanidade. 1 Professor na UNIJORGE – Salvador, Bahia, nos cursos de Comunicação e Jornalismo, Administração e Relações Internacionais. Doutor em Educação. Endereço eletrônico: [email protected] Daí, minha pergunta: se existe uma convergência entre as religiões no que diz respeito à espiritualidade, se se configura assim um saber básico transcultural, até onde é possível ir rumo a convergências entre o saber, a ciência, de um lado, e a sabedoria, a espiritualidade, de outro? I. Minha implicação no meu questionamento Essa implicação é pelo menos tríplice: intelectualmente, como muitos pesquisadores, estive marcado pelo aporte de Francisco Varela em biologia e nas neurociências, particularmente quando ele explica a co-emergência do mundo (objetivo) e da sua percepção (subjetiva). Ou seja: a Evolução faz com que nascem certos tipos de animais (inclusive, humanos), dotados de certos órgãos de percepção; esses animais percebem seu ambiente conforme esses órgãos, o que cria a noção de “objeto” e “objetividade” para eles. E mais: como eles percebem agindo (e não passivamente), eles conformam o mundo a seus órgãos. O ambiente criou seus órgãos e esses órgãos criam o ambiente onde se movem. É o que Varela chama de “enação” (VARELA, THOMPSON, ROSCH, 2001). Um animal que vê cores infra-vermelhas ou ultra-violetas, ou ainda que percebe os raios vive num “mundo” diferente do nosso e contribui na criação e sustentação desse mundo. Outro, que percebe somente duas dimensões e não três, também vive num outro “mundo”. Outro ainda, que vive em cinco dimensões, vive num mundo que nem podemos imaginar, pois ignoramos o que podem ser essas duas dimensões que nos faltam. E o estranho é que, todos nós, podemos nos encontrar e, provavelmente, comunicar... apesar de agirmos em “mundos” diferentes. Ora, Varela possuía anos e anos de prática budista da meditação, e o conceito de co-emergência é tanto fundamental na prática budista como na biologia. A melhor explicação que conheço desse conceito encontra-se no site www.cebb.org.br, onde Lama PADMA SAMTEN expõe a noção de Mandala: “Apesar de estarmos todos no mesmo lugar, de certa forma não estamos” (SAMTEN, 2009). Na aparência, todos os humanos coabitam no planeta terra. Num aspecto mais sutil, cada um constrói seu mundo, sua percepção, a partir dos valores que orientam seus atos (podem ser, entre outros, o fortalecimento do ego e o êxito nos seus projetos pessoais, ou o altruísmo e o êxito em projetos sociais, ou ainda a alegria e compaixão). Ele entra assim num tipo de “mandala”. O que explica Lama Padma Samten é que serve de nada tentar mudar seu comportamento, se ficarmos na mesma mandala. É muito penoso, e estamos condenados a reencontrar as mesmas falhas das quais queremos nos libertar. O caminho é simples: é só mudar de mandala, gerar em nós outros órgãos, que permitem ver dimensões que não víamos antes. Assim é fácil a mudança espiritual. Ver além do ultra-violeta e aquém do infra-vermelho. Acabei de enunciar a segunda implicação minha no meu questionamento, espiritual e não mais científica: não quero me tornar esquizofrênico, em processo de desenvolvimento espiritual de um lado (direito ou esquerdo, como quiser) e em processo de pesquisa científica de outro. Eu quero entender até que ponto a abordagem budista do conhecimento e da sabedoria pode trazer elementos pertinentes para a pesquisa científica. Essa interrogação ecoa com a sociopoética, já que os/as sociopoetas cuidam, com o grupo-pesquisador, do significado espiritual das suas pesquisas, a partir de exigências científicas. Minha terceira implicação é oriunda da minha prática de pesquisa acadêmica intercultural: aprender, se formar, se tornar humano (se quisermos definir o humano como o animal que sempre vai aprendendo - na medida em que ele quer aprender), isso exige o contato com a diferença. Do ponto de vista científico da biologia, o homem é definitivamente inacabado, incompleto, e por essa razão, igual na diferença, capaz de criações ilimitadas (JACQUARD, 1981, 1991). Sozinho, ou fechado no meu etnocentrismo, ou narcisismo de classe, ou ainda, de gênero, estou condenado a saber pouco, a ser pequeno, como os orgulhosos que, por terem conseguido diplomas difíceis, fecharam seus ouvidos, seus olhos, seus sentidos, sua emoção e sua inteligência, e decidiram se tornar uma prisão para si mesmos, que vêm repetindo sem cessar os saberes aprendidos outrora, em outro contexto, que já perderam sua pertinência, sua força criadora e mobilizadora 2 . Assim funciona a instituição escolar, quando nós, membros que a fazem funcionar, não exercitamos a vigilância amorosa. A vigilância amorosa é escuta sensível do outro, a qual nos enriquece sem fim, já que o outro é uma prática de vida, um olhar sobre o mundo que por definição, não sou. (Aqui, diferentemente do que acontece com as mandalas espirituais, não há hierarquia: proclamo, declaro, declaramos a Igualdade dos Saberes; não sei mais que o outro, sei outras coisas, de modo diferente). Assim, ao ouvir o outro vou me ampliar cognitivamente. O oceano caiu na gota de orvalho escreveu o poeta indiano Kabir (ver Osho, 2009, p. 143-161). Experiência cognitiva, e também espiritual, reservada a quem soube acolher, acolher e acolher. Acolher, num espírito de igualdade na diferença, os saberes construídos em contextos culturais diferentes. Mas é hipócrita acolher o saber sem acolher o caminho, o método que conduziu a esse saber, por mais estranho que ele pareça. Agora, acolher não significa compartilhar as mesmas crenças. Por exemplo, posso acolher o saber e o 2 “Ao olhar os seres presos em coisas limitadas como campeonato de futebol, profissões, pós-graduações, o bodisattva sorri e tenta ajudá-los, de modo que ampliem suas próprias visões” (SAMTEN, 2006, p. 53): mesmo o doutor atualizado, que luta muito para ser um bom pesquisador e orientador, pode estar preso na sua atividade e sofrer. Ele está preso, e ele sofre, pois sua experiência do mundo é do tamanho da sua visão e da sua atuação. Mas, como todos, ele pode ampliar essa visão. caminho, o método que gerou esse saber, quando um ou uma pajé me diz que teve, num sonho ou com a ajuda de uma planta enteógena a visão espiritual da planta certa, que curará tal paciente de tal doença. Mas não tenho obrigação alguma de compartilhar essa crença espiritual, posso me satisfazer com uma explicação bioquímica dos indiscutíveis efeitos de cura da planta, conforme a tradição cultural da ciência eurodescendente. Da mesma maneira, o ou a xamã pode se interessar nas minhas explicações bioquímicas (se eu tiver), mas não tem obrigação alguma de compartilhar a crença materialista sobre a qual se fundamenta a minha ciência. Praticando a interculturalidade dialógica e crítica, eu, formado no racionalismo europeu, vou me enriquecer das cosmovisões africanas e indígenas, principalmente, das suas práticas da ancestralidade e das energias que estas práticas mobilizam (ver Oliveira, 2003; Langdon, 1996). Inesgotável é a fonte de vida, de luz e de paz proporcionada pela espiritualidade ancestral. E vou doar, vou presentear meus parceiros e parceiras com as fontes de saber e sabedoria onde bebi, ou seja, com meu racionalismo hoje enriquecido, intensificado e transformado pelas teorias da complexidade, da co-emergência, da ordem no caos3; vou fazer o melhor para difundir o melhor das contemporâneas aventuras do espírito científico eurodescendente que, como aprendi, nunca mais deve perder o respeito para com as ciências indígenas. E mais: que, hoje, deve tecer elos múltiplos de amor intelectual intercultural com as ciências indígenas e afrodescendentes. 3. Um esquema budista para ampliar nossa lucidez cientifica Proponho dar o status de categoria científica fundamental à noção de lucidez. Tanto importante quanto a de Determinismo (ou, para quem preferir, de “caos determinista”) ou de Complexidade. Por que à sabedoria seria reservada a lucidez, devendo a ciência se contentar de fazer o que pode para entender as leis, mudanças de fase e emergências de determinados estados da matéria? Quero mais para a ciência. Que a ciência mude de mandala! É bem isso que, talvez sem perceberem, procuram os que querem uma “mudança de paradigma”! Hoje vou apenas tomar a sabedoria budista como modelo (padrão), para tentarmos pensar, junto com leitores e leitoras, as direções dessa mudança de paradigma tão desejada4. 3 Ver, respectivamente, Morin, 1990 e 1996; Varela et al., 2001; Prigogine, 2001. 4 Nesta publicação, ver o artigo de Alexandre Simão de Freitas, que mostra como Foucault estava trabalhando nos limiares da espiritualidade quando interrogou o cuidado de si e dos outros em suas últimas aulas no Collège de France. Trata-se de uma lucidez específica, sobre a constituição de si como sujeito em práticas de si que implicam na vigilância e no auto-cuidado. Uma forma de vigilância amorosa. Meu modelo é o esquema budista básico das Cinco sabedorias. ESTRUTURAR (vermelho) OFERTAR (amarelo) LIBERAR DESTRUIR (branco) (verde) ACOLHER (azul) Num primeiro momento, vou falar para as ciências em geral, e numa segunda parte, me concentrarei sobre o aporte da sabedoria budista para a sociopoética, mais especificamente. 3.1. A Construção da Lucidez nas Ciências em geral Já vimos um pouco como funciona, numa pesquisa, o acolhimento e a oferta, quando descrevi minhas implicações neste questionamento: falei do acolhimento intercultural pela escuta sensível do outro (conceito, aliás, que René Barbier, 1993, construiu a partir de sua aproximação com o sábio e filósofo indiano Jiddu Krishnamurti, 1974), escuta que, de fato, não se limita ao acolhimento das falas, dos saberes e dos caminhos do outro, e sim, que aprendeu a ouvir o silêncio. Ruth Kohn (1996), a partir da obra de Fiona Mackie (1985), expõe o como dessa escuta sensível do silêncio e de suas ressonâncias empáticas. Falei igualmente da oferta dos meus saberes para os outros. Quanto mais compartilhamos nossos saberes, mais ricos nos tornamos. É uma mais-valia baseada em nenhuma exploração, pelo contrário! Pois teremos retornos, pagos em críticas construtivas, que nos ajudarão a perceber nossas falhas teóricas. Oferecer seus saberes é um luxo alegre. E quem sabe, talvez o outro vá, graças a nossa doação, mudar seu olhar sobre a realidade, criar nele uma outra mandala. Mudar, com sua realidade, a realidade. Pelo menos, sempre foi essa a pretensão, nem sempre orgulhosa e prepotente, dos acadêmicos ensinando aos leigos. Ou dos físicos quânticos ensinando aos que ignoram o modelo quântico. O saber, assim, pretende destruir as ilusões da realidade, tal como percebida de maneira imediata-ideológica ou a partir de teorias ultrapassadas. O saber científico pretende, também, destruir o negativo; no caso da pesquisa-ação, o negativo é o que impede um grupo de atingir seus objetivos; pode ser a ideologia que aprisiona os grupos dominados na aceitação, naturalização e justificação das opressões que sofrem. Isso está certo. Mas o modelo budista ao qual me refere5, diferentemente de outras religiões (eu estaria tentado de escrever: “diferentemente das religiões”), não tem a pretensão de substituir uma ilusão por uma “verdade estável”, e ecoa com a concepção científica eurodescendente contemporânea do mundo, que estuda instabilidades, os “estados distantes do equilíbrio” da astrofísica e da física quântica, submissos a altíssimas energias que o mundo que percebemos, com suas configurações estáveis, aparentemente desconhece. Com efeito, segundo o budismo, o que chamamos de realidade, imaginada em estruturas estáveis, cujas leis de estabilidade a ciência antiga tinha por função de descobrir, é, de fato, um ser impermanente, sem essência própria (para um estudo filosófico detalhado dessa noção e da noção irmã de interdependência, ver Nâgârjuna, 2002). A vida muda sempre, e o que estava estabilizado numa época, hoje já é diferente, obedecendo a outras leis. As estabilizações são sempre provisórias, como mostra um físico como Ilya Prigogine (2001), que nos explica que a ciência de hoje busca muito mais o conhecimento do que acontece em condições distantes do equilíbrio – com surgimento de ordens espontâneas no caos ou de devires imprevisíveis - do que as leis que gerem a natureza equilibrada que percebemos (o que era o projeto teórico das ciências clássicas). Já os teóricos da física quântica nos alertaram sobre as ilusões de estabilidade na escala macroscópica, enquanto o mundo quântico é descontínuo (daí a origem dos “saltos quânticos”) e extremamente instável. O filósofo Gilbert Simondon (2005) também escreveu uma obra de considerável relevância sobre os processos meta-estáveis de individuação, do cristal até as comunidades humanas: na estabilidade aparente, sempre há uma assimetria, e essa assimetria traz consigo a possibilidade de gerar estruturas mais complexas. Do seu lado, o budista vai dizer que as pessoas vivem em bolhas que são como nuvens. Não percebem que são nuvens e se apegam a elas. Podem ser bolhas egocêntricas, fáceis de denunciar moralmente, de êxito individualista, mas também bolhas generosas e altruístas, como o êxito em projetos sócio-ambientais e/ou implantados por movimentos sociais de libertação. Aqui não tem critério moral. Por que? Porque, por mais generoso e dedicado que eu possa ser, o mundo onde se desenvolve o referido projeto é um mundo onde as pessoas não são somente generosas e dedicadas. Encontro a violência, o que pode – e provavelmente vai, já que não sou um sábio - mobilizar formas de violência em mim. Nossos projetos são como nuvens que passam, condenadas a desaparecer. Mas, nem isso nem a onipresença da violência significam que eu deva renunciar à ação 5 O budismo é muito complexo, com muitas escolas e discussões filosóficas. Escrevo a partir da filosofia da vacuidade e produção interdependente, tal como aprece na tradição Mâdhyamika ou Escola do Meio fundade por Nâgârjuna (séc. II-III da nossa era) e na escola Iogakara fundada pelos irmãos Asanga e Vasubandhu, no séc. V. solidária e me isolar na espiritualidade. Pelo contrário! Primeiro, ao me isolar, encontrarei necessariamente a violência já depositada em mim. Segundo, na tradição Mahâyâna, a espiritualidade não é isolamento, e sim presença atenta ao mundo e aos outros. Isso significa que, na ação, na mandala do mundo humano tal como é, tenho de estar, ao mesmo tempo, 100% presente e 100% distanciado para que emirja uma nova mandala, ligada à Cultura da Paz. Fazendo o movimento certo, por extreme concentração, e, ao mesmo tempo, estando acima desse movimento, desterritorializado dele, como sabem os que praticam a capoeira ou disciplinas corporais orientais. Atrás das nuvens sempre fica o céu. Mais que um continente estável, ele é a capacidade de mudar. De passar para uma mandala superior, de compaixão e amor, e de ajudar os outros a, também, realizar essa passagem. Portanto, posso ser um militante comprometido em projetos sociais ou sócio-ambientais, vivenciando as lutas dos meus companheiros e companheiras, mas que não pertence ao mandala da luta, pois vejo as coisas do ponto de vista da Cultura da Paz. O céu azul: a infinita natureza, a pureza de cristal, uma realidade não pessoal, que é a interdependência dos seres na sua realidade última (que os budistas chamam de Natureza búdica). Já estamos no estruturar. Percebendo que a vida, como dizia Shakespeare, é um vasto teatro, que temos papéis que mudam sem parar, e que uma possibilidade infinita de encenar existe fora desses papéis. Não há nenhuma cena já escrita, nenhum destino, nenhum encenador, nenhum fim na peça. Somente uma possibilidade infinita e sempre renovada de encenar, única – instável - estabilidade. Nâgârjuna (2002) explica isso a seus detratores, que o acusam de ser niilista. Tudo não é ilusão, mas cuidado, se tiver a pretensão de me apegar a uma realidade (uma encenação “verdadeira”), já estou criando uma nova ilusão. Assim dos orgulhosos que pensam ter descoberto “a” verdade, fosse ela “budista”. Não, nem se pode nem dizer “sim” a uma representação, nem “não”, nem “sim e não” (como na dialética hegeliano-marxista), nem “nem sim nem não” (como no ceticismo). Pois toda representação da realidade já é ilusão. A realidade só é. Ou melhor, está. Aqui e agora. Assim pode-se entender o Zen-budismo6 e o sentimento da vacuidade no Caminho do Meio. Neste ponto, é bom cuidar de não ter uma visão “pessimista’ da vacuidade, que Lama Padma Samten (2006, p. 89-90) chama de “vacuidade mal-humorada”, quando vemos somente, como Hamlet, a evanescência das formas do nosso mundo: To be or not to be, neste mundo impuro e incerto? Com a “vacuidade bem-humorada” ou “lúdica”, 6 Ver, por exemplo, Osho, 2004, ou Watts, 2009. Observamos a luminosidade que gera a solidez aparente da multiplicidade de formas, sensações, percepções, formações mentais e identidades. Contemplamos as aparências e sua origem luminosa. LAMA PADMA SAMTEN, 2006, p. 91. É uma dimensão muito importante, pois o budismo não existe sem a prática da meditação. Através da meditação “tocamos” essa origem luminosa, o Buda em nós, e nos transformamos na vida cotidiana, ao praticarmos as quatro qualidades incomensuráveis – compaixão, amor, alegria e equanimidade. O que isso traz para as pesquisas científicas? É toda a problemática da implicação e do distanciamento. Estou e não estou onde estou. Estou totalmente, pois não existe realidade alguma, a não ser esta. Mas não estou, pois, a mandala que configura meu mundo, se eu tiver atingido um certo nível de não-ignorância, já me mostra a parcialidade de todos os pontos de vista separados. A Mandala do Conhecimento é a da impermanência e da interdependência. Logo, da necessidade de mandalas inferiores, onde jaz, apesar de toda escuridão, o ser comum, que é inseparável da natureza última, búdica. Mas esse ser não se pode conhecer pelo discurso. Ele é um sem-fundo, que somente o silêncio pode “tocar”. É o sem-forma que torna as formas possíveis. Ou seja: a natureza última (que, em nós, é nossa realidade búdica) não tem forma nem fundo. A partir de sua experiência na psicanálise, e da sua experiência das lutas sociais também, Cornelius Castoriadis (1982) fala do “imaginário radical” como “imaginário sem fundo”, ativo na “Instituição imaginária da sociedade”. Para interpretar Castoriadis em termos budistas, diremos que cada mandala, daquela onde tem só violência até a Mandala da Paz, cada mandala é instituída por nós – e as pessoas e os grupos sociais, geralmente, prendem-se na mandala que instituíram, naturalizando-a, tornando-a “óbvia”... até o final de sua vida. O estranho é que, a mais, elas se espantam de terem sido decepcionadas na sua experiência da vida... Em relação aos teóricos da implicação (de Bohr, 1995 a Kohn, 1985 e Lourau, 1988, 1993), o budismo supera o paradoxo do distanciamento crítico (estar acima do seu ponto de vista parcial) que – e aqui vem o paradoxo - somente pode ser atingido dentro de um contexto necessariamente parcial. Esse paradoxo é constitutivo das pesquisas interculturais e da psicoterapia segundo Bateson e a escola de Palo Alto (BATESON, 1986; ver Souza e Fleuri, 2003). Como se ver vendo? Será que o observador, na ciência, pode se ver vendo (vendo tudo o contexto embora pertença ao contexto), como o capoeirista, às vezes, se distancia do seu corpo e vê toda a roda onde ele está, as energias sutis que fluem entre ele e seu parceiro (ver Conceição, 2009)? Sempre aceitei o batesoneano paradoxo, agora tenho de fazer um esforço teórico para tentar superá-lo. Para superar o paradoxo, é preciso introduzir uma dimensão suplementar, mudar de paradigma. Já temos a resposta: não podemos repetir o erro paranóico de Hegel que se pretendia a cima dos outros saberes, como totalização e saber absoluto. Gödel comprovou que uma teoria potente o suficiente para formalizar a aritmética não podia decidir se ela mesma era verdadeira, o que vacinou definitivamente os pensadores contra a pretensão ao absoluto ou à onipotência. Mas se mudarmos a nossa mandala e enxergarmos os conhecimentos como impermanentes, fluídos e interdependentes, podemos, em certas regiões do real metodicamente investigadas, descrever as interações entre esses conhecimentos; suas traduções uns em outros, suas relações, revelando aos poucos o fio que os percorre. Esse fio é como o céu azul que sustenta as nuvens (e sabemos que as nuvens têm uma dimensão fractal), ou seja, ele não tem peso, sua densidade é mínima, ele vai se esvaziando a cada vez que se tira uma nuvem. Outra maneira de dizer as coisas: é o fio da vacuidade. Infinito como uma linha fractal. O que é a vacuidade? Não é o vazio. É a ausência de existência em si dos fenômenos. Portanto, o céu azul, o fundo onde se destacam as impermanentes nuvens, é, de fato, um puro sem-fundo. Não é a eternidade, nem uma raiz, nem uma ancestralidade. Nâgârjuna escreve: Já que todas coisas estão vazias de existência em si, o Tathâgata Inigualável 7 mostrou que a vacuidade de existência em si da produção interdependente é a realidade de todas coisas. (KOMITO, 2001, v. 68, p. 174 – trad. minha) E Gueshe Sonam Rintchen comenta: Ao afirmar a aparição dependente, evita-se o niilismo, e ao afirmar a vacuidade de existência em si evita-se o eternalismo. A realidade revelada pelo Buda dentro da visão mediana é a natureza vazia da aparição dependente. O outro lado dessa medalha é a aparência convencional das coisas. Num certo sentido, os dois se completam, como o côncavo e o convexo, pois são dois aspectos da mesma realidade. (KOMITO, 2001, comentário do v. 68, p. 174-175 – trad. minha). A própria ancestralidade é uma ilusão, a não ser que seus sábios saibam que nela, na ancestralidade, jaz a vacuidade e o não saber. Posso apostar que muitos sacerdotes africanos, afrodescendentes e indígenas o sabem, ao procurarem o retiro em si e o silêncio. Por essa razão, no budismo encontramos, no meu ver, uma epistemologia da vacuidade compatível com todas as pesquisas interculturais: ela é mais profunda que qualquer epistemologia, eurodescendente ou da ancestralidade, porque ela não tem fundamento, ela não é uma fonte, e sim um flutuar. Um devir (será que chegou o tempo de fazer uma leitura budista de Deleuze e Guattari, além do desejo8?). 7 8 Literalmente, “aquele que assim veio e se foi”: o Buda histórico, Gautama Sidarta Shakyamuni. Em Mil Platôs, o desejo é encontro, acontecimento entre linhas heterogêneas: uma certa cor no ar, um sorriso ou a forma de um rosto, uma alegria... Particularmente evanescente! As coisas se simplificaram bastante: em pesquisas interculturais, é só flutuar. Vivenciar a flutuação do oceano na gota de orvalho. Nosso campo de pesquisa: um devir-orvalho. Parece-me que a ampliação budista das epistemologias regionais (euro, afro ou americanodescendentes) possui uma dimensão que essas epistemologias não têm. Pois elas ainda vivem na ilusão de um chão firme, elas estão enraizadas em princípios ancestrais ou hipotético-dedutivos. Mas ao flutuar num mar (ou num céu, é a mesma coisa) sem fundo (não porque esse fundo é muito fundo, e sim porque inexiste mesmo!), podemos acolher epistemologia múltiplas, feitas para evanescerem, particularmente ao contato de outras. Assim vou doravante distinguir as pesquisas transculturais das interculturais: a pesquisa intercultural conecta epistemologias e ciências heterogêneas, com fundo próprio. A pesquisa transcultural acompanha os flutuares sem fundo do conhecimento que percorrem o campo de pesquisa. Ao flutuarmos juntos, nos transformamos. Comunicamos pela luminosidade que produz as aparências heterogêneas das nossas diversas culturas (ou seja: pelo espiritual em cada um/a de nós). Assim, a epistemologia da vacuidade é uma práxis. Neste nível de compreensão, prefiro esperar o momento em que falarei da lucidez sociopoética para explicitar esses flutuares, pois as coisas se tornarão mais fáceis. Agora, uma pessoa com espírito razoavelmente crítico objetará que estamos fazendo um golpe, ao dar a última palavra ao budismo, que, com sua epistemologia da vacuidade, possuiria a universalidade epistemológica que as outras epistemologias não têm. A verdade é que não há verdade, e ainda essa verdade da inexistência da verdade não posso afirmar verdadeiramente. Portanto, nem vou dizer que a epistemologia budista é superior. É só silenciar. E viver com lucidez, ou seja, consciência da vacuidade. No nosso caso, pesquisar com lucidez, com consciência da vacuidade. Proclamando a igualdade dos saberes e suas tranqüilas impermanências. Isso é budista? Ou universal? No meu ver, simplesmente, humano. Espiritual. Pois traz a Paz. Absoluta. Que é além ou aquém do saber, mas sem a qual todos saberes são mutilados, forçados, enrijados, ou seja, no final das contas, tristes. E se pudermos pesquisar na Paz, porque recusaríamos essa alegria? A alegria é troca de saberes, é dar e receber, é desvelar as ilusões e estruturar. A escola IOGAKARA de Asanga e Vasubandhu traz uma contribuição interessante neste ponto do debate, pois a dinâmica espiritual (ou seja, a aprendizagem, pela prática, do cuidar de si e dos outros no apagamento do ego e do apego) pressupõe a compreensão de que toda percepção e todo pensamento segue o padrão “dependente-de-outro”. Conforme John Keenan (2006, p. 227), “Esse padrão dependente-de-outro tem tanto um aspecto degenerado quanto um aspecto puro, uma vez que ele é a estrutura básica da mente, responsável tanto pela ilusão quanto pelo despertar”. Assim, geralmente gostamos de tal ou qual teoria, pessoa ou alimento, porque foi criado em nós por condicionamento e hábito tal estrutura desejante, separada e excludente. Porque imaginamos a ilusão de que essa teoria, pessoa ou alimento possui existência própria e essência independente. Esse aspecto degenerado caracteriza o “padrão imaginário”. Cortamo-nos como sujeitos separados de coisas (a teoria, a pessoa, o alimento), cuja existência postulamos como objetos independentes de nós. Aí vem a degenerescência. Podemos acreditar que as palavras “Buda”, o “budismo” (ou Jesus, ou Julieta, ou Foucault...) representam objetos reais, o que vai criar apego a essas palavras e aos objetos que imaginamos atrás delas. No esquecimento da dependência cultural e histórica nasce uma fé fechada e ignorante, que é um obstáculo ao próprio despertar, ou seja, ao alcance do estado de Buda. Criamos nossa própria mandala-miragem, um truque de magia, por falta de cuidado amoroso e atenção crítica, por falta de vigilância amorosa para com nossas dependências. Construindo meu budismo (ou meu amor intelectual de Foucault, ou de minha própria Julieta, ou de Deleuze etc.) nesta perspectiva vigilante, estou me construindo como apenas consciente da minha dependência, estou constituindo uma introvisão onde desaparece a distinção entre sujeito e objeto do conhecimento. A desaparição dessa distinção é muito difícil de entender na nossa cultura eurodescendente, mas ela me parece ter a ver com a emergência da pessoa como sujeito no cuidar-de-si segundo Foucault, conforme o artigo de Alexandre Simão de Freitas: O ‘Cuidado de Si’ como Articulador Pedagógico da Cultura de Paz, editado nesta revista. O mundo convencional e as verdades convencionais do dia-a-dia surgem de maneira nova, para quem entendeu lógica, intuitiva e praticamente a teoria da vacuidade ou não ser (independente) das coisas e para quem entendeu essa teoria como sendo “apenas9” uma doutrina e uma prática. Não é a verdade definitiva, que por definição não existe, pois, a vacuidade é o movimento mesmo do despertar, onde nasce um novo padrão, o padrão aperfeiçoado, aspecto puro do padrão dependente-de-outro. Em termos cognitivos, isso significa que o agir na compaixão ilimitada, na empatia amorosa, na alegria compartilhada e na eqüinamidade – conforme as quatro virtudes ilimitadas do budismo - exige a nossa desprogramação total das nossas preferências, conscientes e inconscientes. A vacuidade está presente aqui e agora no mundo cotidiano, mas para tocar nela há de praticar uma vigilância constante para que não reapareçam concepções essencialistas, fés teóricas e cortes entre sujeito e objeto do conhecimento, fontes de ilusões cognitivas e sofrimentos afetivos. Ilusões e sofrimentos que geram muitos clãs acadêmicos guerreiros e doenças institucionais. 9 Ashanta e Vasubandhu falam de “construção-consciente-apenas” (KEENAN, 2006, p. 276). Já estamos num mundo branco, no mundo da liberação – MOKSHA na Ioga. Mas não tenho conhecimentos os suficientes para fazer outra coisa que silenciar. Faltam-me apenas alguns anos de práticas tântricas de Guru Ioga (ver Lama THUBTEN YESHE, 2009)! 3.2. Lucidez sociopoética A Lucidez proporcionada pela epistemologia da vacuidade é limitada quando instituímos relações de dominação entre o/a pesquisador/a acadêmico/a e seus objetos de pesquisa. A sociopoética escapa dessa limitação, já que, pela instituição do dispositivo do “grupo-pesquisador”, todos os participantes da pesquisa têm poder e direito igual a participar do processo de construção coletiva do conhecimento. Não há dualismo entre sujeito e objeto de pesquisa. Os saberes são iguais em direito, e podem fluir livremente. A sociopoética valoriza os saberes que foram marginalizados, excluídos e dominados por diversas formas de colonização, ao dar vez e voz às ciências indígenas e afrodescendentes, na interpretação e, até, na produção dos dados de pesquisa. Assim, ela convoca saberes que flutuam de outra maneira, que pensam possuir raízes heterogêneas, para que se criem, no grupo-pesquisador, hibridizações e co-emergências imprevisíveis. Assim, a sociopoética está em fase com a epistemologia da vacuidade. Retrospectivamente, percebo a sabedoria da vontade desde o início afirmada de não ancorar a sociopoética em tal ou qual corrente teórico. Era, sem saber, uma prática da vacuidade. Se agora nos autorizamos a encontrar parceiros em Deleuze e Guattari, Foucault ou tal ou qual Lama, não é para fundamentar a sociopoética, e sim para cuidar de nós, dentro do padrão da interdependência lúcida. Quem sabe, se para mim as obras de Deleuze e Nâgârjuna como “teorias-apenas” ajudam no crescimento da pequena pérola de luz/lucidez que jaz em mim (o que é totalmente diferente de serem objetos teóricos independentes), para você leitor/a será outras teorias. O importante é desconstruir e praticar o cuidar amoroso e vigilante de si e do outro. Talvez vou tornar meio rígido meu texto, mas é preciso, agora, lembrar como definimos a sociopoética (ver SANTOS et al., 2005): ela é uma abordagem de pesquisa em ciências do ser humano e da sociedade, enfermagem e educação, com possibilidades de aplicação no ensino- aprendizagem, que segue cinco orientações básicas: 1) A instituição do dispositivo do grupo-pesquisador, no qual cada participante da pesquisa está ativo em todas as etapas dessa pesquisa (produção dos dados, leituras analíticas e transversais desses dados, socialização...), e pode interferir no devir da pesquisa. Isso garante a chamada de formas variadas de racionalidade e a possibilidade de que outras fontes de conhecimento, não racionais e sim emocionais, intuitiva, sensíveis, imaginativas e motrizes, entrem em jogo; 2) A valorização das culturas dominadas e de resistência é uma orientação que, diretamente, aponta para outras maneiras de interpretar o mundo, não eurodescendentes e que foram marginalizadas pela colonização e pelo capitalismo. Portanto, estão colocados em interação dialógica com as teorias em vigor no mundo acadêmico, modos diferentes de interpretar os dados de pesquisa (até, produzindo esses dados nas próprias formas dessas culturas, onde o corpo possui um papel essencial); 3) Os sociopoetas pretendem pensar, conhecer, pesquisar, aprender com o corpo inteiro, ao equilibrarem as potências da razão pelas da emoção, das sensações, da intuição, da gestualidade, da imaginação... Muitos saberes não se expressam com palavras, por terem sido recalcados nos nossos músculos e nervos por opressões diversas ou por pertencerem à ordem do silêncio, do sagrado ou da dança; 4) Ao privilegiarem formas artísticas de produção dos dados, os sociopoetas colocam em jogo capacidades criadoras que mobilizam o corpo inteiro e revelam fontes não conscientes de conhecimento – fontes que muitos atores e atrizes da pesquisa ignoravam possuir antes do decorrer da pesquisa; logo, eles não teriam podido utilizar essas fontes em formas mais convencionais de pesquisa tais como entrevistas, as quais são muito mais relevantes após o estudo coletivo das produções artísticas, no sentido de precisar, aprofundar ou ampliar os problemas construídos; 5) Enfim, os sociopoetas insistem na responsabilidade ética, política, noética e espiritual do grupo-pesquisador, em todo momento do processo de pesquisa, que não é propriedade dos pesquisadores “profissionais”, que não é somente voltado para o mundo acadêmico, e sim deve interferir com as necessidades e desejos dos grupos que acolhem as pesquisas. Essa última orientação favorece a desconstrução dos corpos assim como a emergência de desejos e devires imprevisíveis. 3.2.1. Sociopoética e epistemologia da vacuidade Na perspectiva da epistemologia da vacuidade, vou explicitar como a abordagem sociopoética favorece, nas pesquisas, a presença viva das cinco sabedorias, acolher, ofertar, destruir, estruturar e liberar. - O acolhimento é óbvio, lembrando os “Círculos de Leitura” de Paulo Freire (1987), pois o grupo-pesquisador pesquisa a partir de si mesmo, das histórias de vida de seus membros, das suas emoções, crenças, imaginações, boas e más razões etc. Não há hierarquia e, até os facilitadores (pesquisadores acadêmicos) não pretendem enunciar uma verdade teórica que os copesquisadores desconheceriam. Ou se fizerem, é numa ótica de troca, ou seja, acolhendo os saberes e interpretações trazidos pelos demais membros do grupo-pesquisador. - O que é, então, a oferta? Pois, diferentemente de Paulo Freire (pelo menos do Paulo Freire dos primeiros escritos, tal como é geralmente conhecido), não pretendemos conscientizar ninguém de nada. O dispositivo do grupo-pesquisador pode ajudar cada um a se conscientizar do que era inconsciente nele. Queremos nos conscientizar, juntos, dos saberes inconscientes que estavam implícitos no grupo. Só isso. A oferta, por certo, é a própria dinâmica de vida, de intensidade e autenticidade, que o grupo-pesquisador favorece. Sempre me limitei a examinar os efeitos cognitivos dessa libertação, já que o contrato inicial é de pesquisa e produção de conhecimentos. Agora, como disse que não quero ser paranóico, estou em posição delicada! Tenho a obrigação de examinar os efeitos espirituais do dispositivo! O que estamos dando? Uma oportunidade de fluidez, de deslizamento (Deleuze e Guattari, 1997, falam de “linhas de fuga” e de “desterritorialização”), de perder fé na consistência das nuvens que construímos e que também nos constroem. Espiritual, essa meta é igualmente cognitiva, científica - fato que o pensamento eurodescendente geralmente ignora. Vou repetindo: a fluidificação de nossos apegos teóricos é uma meta do conhecimento científico. Será que não podemos ir construindo – como dizia o poeta Henri Michaux (1967 – que, por certo, estava numa outra mandala), “com fumaça, com diluição de neblina, e com som de pele de tambor”, uma ciência irene, uma ciência da paz, sem sustentação, sem fundamento, só feita de trocas e de ventos? Pelo menos, na área das sociais e humanas? Desinstitucionalizada. Nem instituída, nem instituinte. Fora do quadro. - Ao pensarmos com rigor o dar e receber, já estamos no estruturar. A estruturação, do ponto de vista da prática sociopoética, é a conscientização de que tudo, na academia, no saber, na ciência, que não flui já está morto. A história das ciências é a história das revoluções nos seus fundamentos (ver Bachelard, 1985, e Kuhn, 1975). Portanto, uma ciência desfundamentada e desfundamentando é um paradoxo vivo! Se nos chamarem de poetas em lugar de cientistas, o problema será deles! Isabelle Stengers escreveu com Judith Schlanger um livro lindo sobre os conceitos nômades (STENGERS e SCHLANGER, 1989), mostrando que a epistemologia não pode ser enraizada, e sim aberta a transformações internas. Vou somente traduzir esta passagem, sobre a obra de Barbara McClintock 10 , que recebeu o Prêmio Nobel de Biologia (após ter sido marginalizada e tratada como uma velha louca pelos cientistas da genética molecular), para meditação dos leitores: 10 Ver igualmente FOX-KELLER, 1988. O milho estudado por McClintock é o produto de histórias entrelaçadas, a da sua reprodução, a do seu desenvolvimento, a do seu brotar em campos onde ele conhece o sol, o frio, os insetos predadores etc. Os cientistas devem, por certo, não acumular observações “neutras” a propósito do milho, e sim aprender dele quais as perguntas para lhe fazer, porque o milho é, como todo ser histórico, um ser singular. E dizer “o milho”, já é dizer demais; para Barbara McClintock, cada grão aberrante devia ser entendido em si mesmo: não como representante “do” milho, mas no que, precisamente, era diferente. Só depois, algumas lições gerais podiam eventualmente ser tiradas, certos “princípios de narratividade” podiam ser definidos que permitiriam contar de maneira inteligível o conjunto dessas histórias singulares, dessas verdadeiras “biografias” dos grãos de milho. STENGERS e SCHLANGER, 1989, p. 159-160 (trad. minha). Assim deslizou a genética da orgulhosa Biologia molecular a um assunto de Vegetais contadores de histórias para uma mulher pesquisadora - o que não vai sem lembrar as plantas-doutoras dos xamãs da Amazônia, tais como a Ayahuasca, o Cipó dos Ancestrais, que dá Luz, Força, Amor e Paz, através dos seus ensinamentos medicais e espirituais (ver Romuald LETERRIER,2001a e 2001b). Mais uma vez silenciarei a questão da liberação. 3.2.2. Do Corpo a Paisagem sociopoética Cabe ampliar aqui nosso conhecimento do budismo com os quatro itens que complexificam o esquema das cinco sabedorias, atravessando cada um delas: a PAISAGEM (a Mandala), a MENTE, a FALA (Energia) e o CORPO. Vamos começar pelo corpo, com o qual começamos a aventura sociopoética, na confluência entre ciência e arte. - O corpo é fonte de conhecimentos sociopoéticos. Na idealização de técnicas de pesquisa que potencializam o corpo como fonte de conhecimento, podemos seguir o esquema budista, ou seja: idealizar técnicas mais voltadas para o acolhimento, outras para a oferta, outras para a estruturação, outras para a destruição das ilusões, outras ainda para a liberação. Quem quiser imaginar, idealizar, experimentar, estamos aguardando, impacientemente pacientes! - A fala energética (ver Padma Samten, 2006, p. 50: Não somos regidos por palavras, mas por energias) também é fundamental na sociopoética, quando os copesquisadores explicitam o que criaram e estudam coletivamente suas produções, seja antes, seja depois do estudo realizado pelos facilitadores. Poderíamos dar diretrizes para que se gerem estilos determinados de falas, mais diversificados que as narrações costumeiras. Como em jogo teatrais (estou pensando, como no início da sociopoética, em Boal, 1988 e 1995!), onde se escolhe utilizar somente imperativos, ou condicionais, ou frases interrogativas etc. E podemos seguir o roteiro das sabedorias, acolher/ofertar/estruturar/destruir/liberar, após termos escolhido tais ou quais estilos. Falas cruzadas, energias emergentes. Energias emergindo entre as falas. - A mente, na sociopoética, é coletiva: o grupo-pesquisador é como um só pesquisador, um só pensador, um só filósofo. Percorrido de linhas de pensamento, geradas pela luminosa vacuidade, que se cruzam, contradizem, reforçam, convergem, divergem, se aliam ou transformam... Aqui me parece interessante relacionar o roteiro das sabedorias com a pesquisa-ação, ou seja: nosso grande – ou pequeno - cérebro coletivo, bem complexo... o que esse cérebro tem para acolher/ofertar/estruturar/destruir/liberar, nos meios onde ele está inserido (a academia e a associação que acolheu a pesquisa)? Dá vertigem, esse grau de responsabilidade em que entramos. - Considerar a paisagem, para nós sociopoetas, não é coisa nova. Pois sempre identificamos as linhas de fuga do grupo-pesquisador, as novas maneiras que ele elaborou de problematizar a vida, os confetos e os personagens conceituais que ele criou. E assumimos que os resultados de uma pesquisa sociopoética só valem para este grupo-pesquisador, neste momento, aqui e agora. Mas nesta impermanência da pesquisa, o que fica são os devires vivenciados pelo grupo, expressos nos problemas, confetos e personagens conceituais (que, assim, estão construindo o “plano de consistência” infinito do pensamento, ao falarmos como Deleuze e Guattari, 1992). Elaboramos uma paisagem que - por que não? - poderia tomar a forma final de uma mandala, realizada pelo grupo-pesquisador, com fins meditativos. Próxima desse objetivo foi a realização de Jogos de Tarô por grupos-pesquisadores (Tarô do Desejo em Fortaleza – 2000 – Tarô do Pesquisar em Salvador – 2010). Nestes casos, o conjunto das cartas do Tarô funciona como uma mandala. 4. Por uma Ciência da Paz A epistemologia da vacuidade é suficientemente potente para acolher saberes e métodos científicos de várias culturas. Na Bolívia e no Equador foi necessária uma grande mudança política, com a participação dos indígenas em instâncias supremas de poder, para que as Constituições desses países, pela primeira vez na história da humanidade, proclamassem a igual dignidade de todas as formas de conhecimentos, portanto, das ciências indígenas, afrodescendentes e eurodescendentes. Em conseqüência, foi possível ancorar nessas constituições os Direitos da Pacha Mama, da Terra-Mãe, também pela primeira vez na história da humanidade (ver Catherine WALSH, 2009). Um contrato natural, no Direito e na Epistemologia, pode e deve ser passado entre os diferentes reinos, mineral, vegetal e animal (logo, humano), para que se garante a nossa sobrevivência e as condições da superação da não-inteligência da nossa presença na terra. Temos coisas a aprender dos demais animais, dos vegetais, dos minerais. Temos de compartilhar nossos saberes. O capoeirista Jorge Conceição me contou como ele intuiu que devia improvisar uma dança amorosa com uma cobra perigosíssima que impedia seu grupo de progredir numa trilha da Chapada Diamantina, para que a cobra aceitasse a entrada do grupo na mata e se retirasse, interpretando esse evento como presença atenta do orixá Oxumarê, guardião da floresta. Os xamãs nos falam dos ensinamentos que recebem de animais de poder, no que diz respeito à cura e ao cuidado pelo equilíbrio do mundo. Minha experiência com a Planta-Doutora Ayahuasca me trouxe lucidez sobre minhas falhas e me mostrou o caminho da evolução espiritual, ensinando-me o Vegetal a vigilância amorosa. Não sei muito de minerais que ensinam, mas amigos Kariri-Xocó e Fulni-ô me falaram do papel dos rochedos, onde a terra escreve a memória dos ancestrais. Rochas, plantas, animais, seres humanos também: o Lama Padma Samten me fortaleceu na intenção de buscar as convergências epistemológicas entre ciência e sabedoria, na continuação dos instrutivos encontros entre o Dalai Lama e cientistas eurodescendentes (GOLEMAN e DALAI LAMA, 2003; EKMAN e DALAI LAMA, 2008). O querido Francisco Varela foi o primeiro que estimulou minha curiosidade, principalmente quando afirmou que, por ser uma prática rigorosa (como podemos dizer que a psicanálise é uma prática, cuja validade se mede pelos seus efeitos curadores), a meditação budismo era uma ciência. Fiquei cheio de perguntas... Percebe-se o quanto importante é o dispositivo do grupo-pesquisador na visão e na prática da Cultura da Paz. Pois, ao instituirmos um grupo-sujeito que autogere seus devires, desenvolvemos uma prática libertadora para o grupo e seus membros que, a depender do seu grau de vigilância amorosa, podem experimentar com intensidade a vacuidade e sua luminosidade. A comunidade hóspede da pesquisa pode igualmente instituir-se na Mandala da Paz, lutando pelos seus direitos com compaixão, amor, alegria e equanimidade. Percebi muito isso na pesquisa financiada pelo CNPq que realizei de 1996 a 1999 com grupos-pesquisadores de educadoras, de alunos e alunas e de pais e mães da Escola Comunitária Luiza Mahin, na cidade baixa de Salvador. Guerreiras, as educadoras, sim, já que a escola foi criada para suprir as carências dos poderes públicos, com o objetivo de formar cidadãos que lutem coletivamente por seus direitos e contra toda forma de opressão e humilhação. Astuciosos, os meninos e meninas, sim. Mas com ética, respeito ao outro e sempre, a vontade vital de ampliar as colaborações, os horizontes, as parcerias. E minha alegria, ao ver uma das educadoras mudar seu visual, amar seu corpo, se fazer bonita, mais leve, enquanto no início, o “resgate da auto-estima do Negro” parecia ser um objetivo da escola para os alunos e alunas, mas não para as educadoras! O fato de que a pesquisa revelou desejos pedagógicos dos alunos e alunas e, conseqüentemente, contribuiu para a ampliação da pedagogia da escola em direção à arte-educação deve ter a ver com a Mandala da Cultura da Paz... Para concluir, ficarei atento a uma particularidade da epistemologia da vacuidade. Dentro do meu percurso, hoje, caminhando com os leitores, resgatei uma fonte que a Europa e as ciências eurodescendentes esqueceram: a ligação íntima do saber com o cuidar e o curar. Ensinar, aprender, conhecer, em tantas tradições espirituais, é cuidar e curar! Não se curar de uma ignorância meramente intelectual, e sim de uma ignorância que dói. Saber, ser um bom cientista e estar bom de saúde: praticar a vacuidade transcultural. Referências bibliográficas BACHELARD, Gaston. O novo espírito científico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985. BARBIER, René. A escuta sensível em educação. Cadernos ANPEd N. 5. Belo Horizonte: ANPEd, 1993. _____. A pesquisa-ação. Brasília: LiberLivro, 2006. BATESON, Gregory. Mente e natureza. Rio de Janeiro. Francisco Alves, 1986. BOAL, Augusto. O Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. 5ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988. _____. 200 exercícios e jogos para o ator e não-ator com vontade de dizer algo através do teatro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995. BOHR, Niels. Física atômica e conhecimento humano. Ensaios 1932-1957. Rio de Janeiro: Contraponto, 1995. CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. CONCEIÇÃO, Jorge. 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