O reacender do clima de guerra fria

Transcrição

O reacender do clima de guerra fria
 46
OPINIÃO
O PAÍS Sexta-feira, 22 de Abril de 2016
LUÍS FERNANDO
SEBASTIÃO MARTINS* www.sebas
O cinquentão Pedro Ganda
Manuel “Pepas”
O reacender do clim
H
á muito não ia a uma
festa de anos com a
mobilização prévia e o
esforço logístico elevados a níveis tão altos de exigência,
como aconteceu com os cinquenta
desse amigo que prezo e tenho como um membro da minha família
alargada, o Pedro Ganda Manuel,
Pepas no nosso círculo de afectos.
Começou pelo seu notável gesto
de ser ele mesmo, em pessoa, a ir
até à casa levar o convite e deixar
os avisos e as advertências –quase
ameaças – que se deixam sempre
nessas ocasiões: “tia Paula, trago
o convite para a festa dos meus 50
anos e não vou aceitar desculpas se
faltarem. Diga ao tio Luís que passei
e que espero por todos vocês no dia”.
No meu regresso a casa, foi-me
comunicada a intimação do meu
amigo e sobrinho por “decreto” (as
boas pessoas entram logo pra minha
família bantu, é a regra, para que se
sintam acolhidíssimas) e lamentei
profundamente o facto de não o ter
podido ver nessa passagem que quebrava uma ausência de largos meses.
Mergulhei logo no espírito da festa,
que aconteceria dali a duas semanas.
A “Velhota” – Patroa, Mãe Grande
ou como se queira, referindo-nos
sempre à minha Paula, a “costela”
bíblica – chamou-me a atenção para
o dress code que, além de assinalado
no sofisticado pedaço de cartolina a
fazer de convite formal, tinha sido
enfatizado pelo aniversariante: todo
o mundo de roupa africana!
Eu, que tenho de África um conceito de identidade e amor que nem
mesmo as borradas de certos filhos
seus com poder conseguem beliscar, exultei logo com a feliz escolha
do Pepas e, empurrado por esse voo
sem rota que é a imaginação viva
de escritor, consegui visualizar no
imediato a turma a seguir viagem
até Viana no dia D, toda embrulhada nas festivas e garridas cores do
nosso belo continente. Só por essa
perspectiva a festa ganhara já uma
motivação reforçada.
No dia seguinte, convocado como
quem tem de cumprir uma missão
de Estado, lá apareceu o artesão
eleito para ser ele a cuidar das
vestimentas do clã. E mais uma
vez a minha mente treinada para
voar escapuliu-se, recuou séculos
e foi poisar sobre os velhos costumes da Idade Média, quando, na
Corte, alfaiates, bobos e filósofos
eram homens de mão impossíveis
de prescindir. A minha família
entregou-se, por inteiro, ao talento
e aptidão do costureiro chamado a
casa para garantir a logística essencial para o dia de anos do Pepas.
O aniversariante lembrou-se de
tudo, como exigir que os convidados mergulhassem em cheio
no espírito da África do nosso
orgulho, chegassem cedo e não se
preocupassem com mais nada a
Começou pelo
notável gesto de
ser ele mesmo,
em pessoa, a ir
até à casa levar o
convite e deixar
os avisos e as
advertências que
se deixam sempre nessas ocasiões: “tia Paula,
trago o convite
para a festa dos
meus 50 anos e
não vou aceitar
desculpas se faltarem”.
não ser a vontade de o alegrarem
com a sua presença, mas não foi até
ao pormenor de requisitar submarinos para deixar no vasto quintal
de casa, em Viana, a vasta legião de
amigos chamados para a divertida
noite comemorativa. Ninguém é
perfeito, percebemos todos, e lá
tivemos nós de nos abstrair do
nada romântico esquecimento do
Pepas e seguir sem ideias de como
sobreviveríamos àquela aventura
improvável de nadar, com carro e
tudo, pelas ruas alagadas da cidade
satélite. As chuvas de Abril são
inimigas confessas do nosso espírito
festivo, por mais que os angolanos
acreditemos que sempre existe uma
maneira infalível de se dar a volta
aos percalços da vida. Levámos duas
horas a desembaraçar-nos do cerco
das águas no coração de Viana, com
a agravante de o rápido crescimento
habitacional do bairro em que reside
o aniversariante, ter apagado da
memória as coordenadas que o GPS
ainda não assumira. Uma missão de
resgate colocou-nos na festa quando já as cinquenta velas tinham sido
sopradas com o fôlego e a alegria
testemunhados por outros quase
trezentos convidados todos belissimamente trajados com as cores de
África. Dois finos despachados de
rajada ajudaram a afugentar o desconforto daquelas horas de tormento nos alagados caminhos vianenses
e a minha tribo dispersou-se por
aí, renovando o ânimo com o que
viesse a calhar: a Paulinha aliou-se
às brincadeirinhas próprias dos seus
inocentes sete anos de idade, os
manos Tula e Jorge espalharam-se
pelos refrigerantes e nacos de boi
no espeto e a “mãe das crianças”,
a Paula, sossegou o espírito com
um cacusso temperado a preceito,
bem regado com um vinho branco
combinado com o frescor insubstituível de uma latinha de Sprite.
Quase uma hora da manhã e os
termómetros andavam pelos trinta
e muitos graus de calor!
O
período compreendido entre o final da Segunda Guerra Mundial
e o colapso da União
das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), confirmado em
1991, dividiu o mundo em dois
pólos opostos e foi marcado por
disputas político-estratégicas
resultantes de um confronto que
opôs as duas maiores potências
da época: os Estados Unidos da
América (EUA) e o bloco soviético liderado pela URSS. Este
ficou historicamente conhecido
como Guerra Fria, processo que
compreendeu um conflito com
disputas políticas, tecnológicas, económicas, ideológicas
e também militares, que, por
nunca ter avançado para um
embate bélico, adquiriu tal
nomenclatura.
Ao longo do conflito, a
tensão latente arvorou-se
diversas vezes, embora
nunca descambando em
actos ofensivos, recaindo a
preferência de ambos os lados
numa constante demonstração
de capacidades em detrimento
da sua utilização para atacar o
oponente. A justificação para
este tipo de actuação explicarse-á pela impossibilidade de
antever um vencedor em caso
de confronto directo, visto
que a previsão de vitória de
uma das partes era inviável
na perspectiva de um conflito
nuclear, de consequências
inimagináveis. Diante da
metodologia de conflito, o
mundo assistiu com suspense
a uma corrida armamentista,
enquanto americanos e
soviéticos ampliavam o seu
arsenal nuclear, a fim de
alargarem a sua capacidade
de dissuasão, atingindo o
auge com a apresentação do
programa militar «Iniciativa
Estratégica de Defesa» –
conhecido como «Guerra
das Estrelas» – proposto pela
administração Reagan e que
visava preparar a resposta
dos EUA a um possível ataque
nuclear.
Um confronto pela via do
combate directo retumbaria,
inevitavelmente, num embate nuclear, com resultados
drásticos para todos. Tendo
os dois lados consciência
disso, optaram por passar a
sua luta para teatros terceiros,
disputando influência por todo
o mundo. Assim, EUA e URSS
enveredaram por um envolvimento em vários conflitos
regionais, como na Coreia e
no Vietname, interferindo
também em África, com
especial incidência no conflito
ocorrido em Angola, pela
obtenção da independência,
onde o apoio das duas
potências foi distribuído pelos
participantes, obrigando a
uma polarização deste, como
aconteceu noutros conflitos.
Contudo, com o advento do
decénio de 1990 e assistindose à queda do bloco socialista,
alguns teóricos – dos quais se
destacou Francis Fukuyama
com o livro O Fim da História
e o Último Homem – defenderam que se estaria a assistir ao
fim da linha política soviética,
o que permitia a legitimação
de um modelo de democracia
ocidental de cariz pró-americano que se expandiria de
forma gradual, devendo tornar
o mundo menos conflituoso
com a ascensão de uma única
superpotência, e em que novos
actores, além dos Estados,
surgiriam com mais revelo.
A instalação de uma realidade
unipolar confirmou-se,
mas ao contrário do que foi
vaticinado, a realidade pósGuerra Fria tornou-se menos
previsível, o que dificultou a
prevenção de perigos e
ameaças, com as relações
internacionais a ficarem mais
O PAÍS Sexta-feira, 22 de Abril de 2016
47
stiaomartins.org
ma de guerra fria
difusas e repletas de acções
inesperadas.
Com a preponderância crescente
dos actores não estatais, os Estados foram sendo menosprezados
na análise conjuntural, com
prejuízo para os derrotados, em
que se pode enquadrar a Rússia,
herdeira do império soviético.
Mas numa observação correcta
do mundo contemporâneo – sem
escamotear a existência de uma
panóplia de actores – não pode
ser esquecida a importância dos
Estados, sendo que alguns que
tiveram um lugar preponderante
na história querem reafirmá-lo
na actualidade, como faz a
Rússia: parece querer vincar o
lugar de potência com influência
global, pois detém uma capacidade militar passível de ser posta
em prática na defesa dos seus
interesses, internos e externos.
Alguns episódios que nos
relembram o período da Guerra
Fria têm figurado nas primeiras
páginas dos jornais, como os
recentemente ocorridos no mar
Báltico, onde movimentações
militares puseram num frente-afrente militares russos e norteamericanos, com caças Sukhoi
SU-24 e helicópteros de combate
da aviação russa a sobrevoarem,
de forma «agressiva», segundo
os americanos, um contratorpedeiro da sua Marinha que navegava nas proximidades de uma
base russa, indicaram os últimos.
Esta situação, apesar de não ser
virgem, gerou controvérsia e
declarações antagónicas, com os
EUA a mostrar o seu desagrado
pela voz do secretário de Estado,
Jonh Kerry, que classificou o
incidente como «imprudente,
provocatório e perigoso», defendendo que segundo as regras
militares as aeronaves russas
«podiam ter sido abatidas» e
referindo que não permitirão
«novas intimidações» em águas
internacionais. Por seu turno, os
russos ripostaram, declarando
que os exercícios que levaram
ao sobrevoo seguiram as regras
e foram feitos em conformidade
com as normas internacionais,
não tendo havido qualquer tipo
de agressividade por parte dos
pilotos.
Situações semelhantes – comuns
durante o período da Guerra
Fria – já tinham sido noticiadas
nos últimos anos, tendo no Verão
de 2015 envolvido, também, um
navio ucraniano que se encontrava a realizar manobras de treino
com outro americano. Mas não
só os EUA se têm queixado deste
tipo de procedimentos levados
a cabo pela aviação russa que,
entre 2014 e 2015, foi identificada
a sobrevoar o espaço aéreo sob
jurisdição de vários Estadosmembros da Organização do
Tratado do Atlântico Norte
(OTAN), o que levou à demonstração de descontentamento e
activação de medidas de resposta
defensiva por parte de alguns dos
visados, como Portugal, Reino
Unido e Suécia.
Episódios como estes reacendem
receios de um choque militar
entre EUA e Rússia, mas não são
os únicos a trazer lembranças do
período do mundo bipolarizado,
numa altura em que parece
que os interesses de Moscovo e
Washington voltam a debater-se,
e novamente longe dos seus
territórios.
A participação das duas partes
no conflito que assola a Síria
assemelha-se a um confronto
entre duas superpotências que
dividem a influência mundial,
tal como acontecia durante o
período da Guerra Fria.
Neste campo, a Rússia apresentase mais activa, parecendo querer
reacender o prestígio das suas
acções passadas, apoiando um
antigo aliado da URSS, enquanto
defende o interesse geopolítico
em manter a salvo a base naval
que detém em território sírio,
localizada em Tartus, a sua única
no Mediterrâneo, que, pela sua
importância estratégica, foi nos
últimos anos
ampliada e dotada de melhores
infra-estruturas, alargando a
capacidade operacional e de
recepção de navios, que tem
aumentado desde o início da
guerra civil na Síria. Desta
forma, a Rússia demonstra que se
mantém fiel às alianças antigas
e reafirma a sua capacidade
externa, aclamando o orgulho
pátrio.
Mas não é só pelo apoio
directo à Síria que a Rússia se
tem destacado, uma vez que
aproveita o receio em torno do
autoproclamado Estado Islâmico
(EI) para também se evidenciar
na tentativa de combate
àquele grupo extremista, ou
de forma independente ou
liderando projectos. Exemplo
disto é a criação do Centro de
Coordenação Estratégico para a
planificação das operações contra
o EI, localizado em Bagdad, e que
junta aos russos a própria Síria,
o Irão e o Iraque. A recémaliança ganhou forma depois de
discussões entre os presidentes
Vladimir Putin e Barack Obama,
em que a vontade de Moscovo
imperou, cimentando a ampliação da sua esfera de influência
com esta aliança, em torno de um
determinado objectivo.
Apesar das várias acusações à
intervenção de Putin – que criticam os russos de segurar Bashar
al-Assad, contra a intenção
ocidental e de a aviação russa,
baseada na Síria, em Lataquia,
bombardear mais do que alvos
pertencentes ao EI, atingindo
grupos apoiados pelos interesses
ocidentais, como o Exército
Síria Livre (sinal de interferência
directa num conflito interno),
apoiando um dos lados – a
vontade do poder moscovita tem
imperado, demonstrando-se por
meio de uma actuação robusta
que contrasta com a indecisão
A participação
das duas partes no conflito
que assola a
Síria assemelha-se a um
confronto entre duas superpotências
que dividem a
influência
mundial, tal
como acontecia durante o
período da
Guerra Fria
apresentada pelos EUA, que
fragilmente têm tentado apoiar
Sauditas e Turcos, actuando
na região em prol de supostos
interesses ocidentais, e relevando
a Rússia como protagonista de
destaque na política do Médio
Oriente.
Por meio de um anúncio feito em
meados de Março, Vladimir Putin
destacou o sucesso da operação
militar que o Kremlin pôs em
prática na Síria e informou de
que iria retirar grande parte dos
meios militares empenhados,
iniciando-se a desmobilização
das tropas após uma reunião que,
em Genebra, juntou alguns dos
lados envolvidos no conflito e
onde foi decretado cessar-fogo.
Não obstante, demonstrando a
atenção que aquele problema
merece, o presidente russo
afirmou que o país poderá
voltar a intervir em território
sírio, caso necessário, tendo-se
mesmo verificado, depois da
desmobilização, actividade aérea
russa na região e a participação
de militares russos na tomada da
cidade de Tadmur, nos arredores
de Palmira, em que, de forma
enfatizada e heróica, foi noticiada
a morte de um combatente russo.
Na Síria, assiste-se a uma
guerra civil, mas vários factos
demonstram haver duas partes
externas implicadas: uma une os
interesses do Ocidente, representada no terreno pelos aliados
dos Americanos, a Turquia e a
Arábia Saudita, que enquanto
combatem o flagelo terrorista
tentam derrubar o regime de
Assad; e a outra parte, a russa,
que além da batalha contra o EI,
pretende proteger a posição do
chefe de Estado sírio, batendo
em todos aqueles que a ele se
opõem no terreno. Esta situação,
que conflitua com a da outra
parte, reacende a tida como
findada Guerra Fria, parecendo
estar já em curso em solo sírio,
embora a maioria das atenções,
talvez por esquecimento da sua
génese, recaiam sobre episódios
de aparente confronto entre
aviadores russos e marinheiros
americanos. Tudo isto se vai
desenvolvendo num momento
em que parece ressurgir uma
conjuntura mundial, cujo
interesse dos Estados volta a
imperar, demonstrando que estes
são ainda actores preponderantes
na prossecução da política
internacional.
*Mestre em Estratégia e
Doutorando em Ciência Política.
Leigo Católico