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CAPA UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE CULTURA E ARTE CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL-JORNALISMO ENTRE PROSTITUTAS E ADÚLTERAS: ANÁLISE DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS FEMININAS NA MÚSICA BREGA ISABELE RODRIGUES CÂMARA FORTALEZA 2014 ISABELE RODRIGUES CÂMARA ENTRE PROSTITUTAS E ADÚLTERAS: ANÁLISE DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS FEMININAS NA MÚSICA BREGA Monografia apresentada ao Curso de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo do Instituto de Cultura e Artes da Universidade Federal do Ceará, como parte dos requisitos para obtenção do título de graduado em Jornalismo. Orientador: Prof. Dr. Ricardo Jorge de Lucena Lucas FORTALEZA 2014 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Federal do Ceará Biblioteca de Ciências Humanas C177e Câmara, Isabele Rodrigues Entre prostitutas e adúlteras: análise das representações sociais femininas na música brega. / Isabele Rodrigues Câmara. – 2014. 80 f.; 30 cm. Monografia (Graduação) – Universidade Federal do Ceará, Instituto de Cultura e Arte, Curso de Comunicação Social, 2014. Orientação: Prof. Dr. Ricardo Jorge de Lucena Lucas. 1. Música popular – Brasil. 2. Música – Estilo musical – Mulheres. 3. Mulheres – Canções e música. I. Título. CDD 784.5 ISABELE RODRIGUES CÂMARA ENTRE PROSTITUTAS E ADÚLTERAS: ANÁLISE DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS FEMININAS NA MÚSICA BREGA Monografia apresentada ao Curso de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo do Instituto de Cultura e Artes da Universidade Federal do Ceará, como parte dos requisitos para obtenção do título de graduado em Jornalismo. Orientador: Prof. Dr. Ricardo Jorge de Lucena Lucas Aprovado em __/__/__ BANCA EXAMINADORA _______________________________________________________________ Prof. Dr. Ricardo Jorge de Lucena Lucas (orientador) Universidade Federal do Ceará (UFC) _______________________________________________________________ Prof. Me. José Ronaldo Aguiar Salgado Universidade Federal do Ceará (UFC) _______________________________________________________________ Prof. Pedro Rocha de Oliveira Profissional AGRADECIMENTOS A Deus, a Nossa Senhora e a São Francisco Sales, padroeiro dos jornalistas, por iluminarem de forma generosa o início da minha caminhada profissional. Aos meus pais, por me ensinarem os bônus da responsabilidade e, às minhas irmãs, pelos ótimos exemplos. Ao meu namorado, por ser o engenheiro civil com mais alma de jornalista que já conheci na vida. Aos meus amigos antigos, as minhas primeiras e maiores referência de amizade. Obrigado ainda por me apresentarem à musica brega, essa monografia também foi escrita por vocês. Aos amigos que fiz nos últimos tempos, agradeço por se permitirem ser parte da minha vida. E, aos amigos jornalistas, claro. Serei eternamente grata à profissão que escolhi, ela me apresentou vocês. E ao Prof. Dr. Ricardo Jorge de Lucena Lucas, pela excelente orientação. “Tem gente que não gosta lá do brega É no brega que está a solidão No brega entra preto e entra branco No brega entra pobre e barão Você vive desfazendo lá do brega Será que você não tem coração?” (Cidadão no Brega, Oswaldo Bezerra) RESUMO O objetivo desta monografia é analisar como as representações sociais femininas da prostituta e da mulher adúltera são formadas dentro da música brega e apropriadas por esse estilo musical, além de entender quais os resultados sociais dessas representações. O método escolhido para a monografia é a pesquisa bibliográfica, com base, em especial, nos estudos de Marcos Napolitano sobre música e Serge Moscovici sobre teoria das representações sociais. A análise será empregada em seis músicas consideradas “cafonas”: “Vou Tirar Você Desse lugar”, “Secretária da Beira do Cais”, e “Menina da Calçada”, “O Dia do Corno”, “Eu Lhe Peguei no Flagra” e “Lua de Mel”. PALAVRAS-CHAVE: música brega, prostituta, mulher adúltera, representação social. ABSTRACT The objective of this monograph at analyzing the way women's social representations of the prostitute and adulteress are formed within the corno music is appropriate for this style, besides understanding what social results of these representations. The method chosen for the monograph is literature based, especially, in studies by Marcos Napolitano about music and Serge Moscovici on social representations theory. The analysis will be conducted in six songs considered "cafona", " Vou Tirar Você Desse lugar ", " Secretária da Beira do Cais " and " Menina da Calçada ", " O Dia do Corno ", " Eu Lhe Peguei no Flagra " and " Lua de Mel ". Keywords: music brega, prostitute, adulteress, social representation SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................09 2 CONHECENDO O “BREGA”..........................................................................................13 2.1“VOCÊ VIVE DESFAZENDO LÁ DO BREGA/ SERÁ QUE VOCÊ NÃO TEM CORAÇÃO”........................................................................................................................... 13 2.2 O KITSCH ........................................................................................................................14 2.3 O KITSCH MUSICAL ......................................................................................................15 2.4 A MÚSICA BREGA DESPIDA DE PRECONCEITOS ..................................................17 2.5 A ORIGEM DA PALAVRA “BREGA” ..........................................................................19 3 AS PROSTITUTAS E AS ADÚLTERAS .....................................................................22 3.1 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS .......................................................................................22 3.1.1 Breve história do conceito de representações sociais ...........................................22 3.1.2 Conceito de Representação Social ...............................................................................23 3.1.3 Moscovici eDurkheim ..................................................................................................25 3.1.4 Autores que também colaboraram com as teorias das representações sociais.............27 3.1.5 Crítica às teorias das representações sociais ................................................................29 3.1.6 Como trabalhar com as representações sociais ...........................................................30 3.2 BREVE HISTÓRIA DA PROSTITUIÇÃO NO BRASIL ..............................................31 3.2.1 Antes do brega, as prostitutas habitaram o samba................................................35 3.2.2 Prostitutas no brega ......................................................................................................36 3.3 LEVIANAS, AS MULHERES QUE TRAEM ..................................................................37 3.3.1 Introdução ao mundo do adultério ..................................................................................37 3.3.2 Breve história da traição no Brasil ..................................................................................39 3.3.3 A traição e o romance na música brega ..........................................................................41 3.3.3.1 A conversa ....................................................................................................................42 3.3.3.2 O ausente ......................................................................................................................43 3.3.3.3 O coração .....................................................................................................................43 3.3.3.4 A dependência ..............................................................................................................44 3.3.3.5 A destruição .................................................................................................................44 3.3.3.6 A espera ........................................................................................................................45 3.3.3.7 Os objetos, as recordações e o saudosismo ..................................................................45 3.3.3.8 A solidão ......................................................................................................................46 4 ANÁLISE DAS MÚSICAS BREGAS................................................................................47 4.1 INSTÂNCIAS CONTEXTUAIS DA CANÇÃO ..............................................................47 4.1.1Criação ............................................................................................................................47 4.1.2 Produção .........................................................................................................................49 4.1.3 Circulação ......................................................................................................................49 4.1.4 Recepção/apropriação ....................................................................................................50 4.2 ANÁLISE DAS MÚSICAS................................................................................................55 4.2.1 “Vou Tirar Você Desse lugar”, Odair José ...................................................................56 4.2.2.“Secretária da Beira do Cais”, César Sampaio ...............................................................59 4.2.3 “Menina da Calçada”, FernandoMendes ........................................................................60 4.2.4 “O Dia do Corno”, Reginaldo Rossi ...............................................................................62 4.2.5 “Lua de Mel”, Reginaldo Rossi ....................................................................................64 4.2.6 “Eu lhe peguei no flagra”, Genival Santos ..................................................................66 4.3 A representação social das mulheres na música brega .....................................................67 4.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...........................................................................................71 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................74 REFERÊNCIAS ELETRÔNICAS .......................................................................................76 9 1. INTRODUÇÃO O objetivo desta monografia é questionar como as representações sociais femininas da prostituta e da mulher adultera são formadas dentro da música brega e como são apropriadas por esse estilo musical. O tema foi proposto depois de perceber a recorrência destas personagens e da forma como elas são retratadas pelos letristas dessa vertente musical. Ou seja, o objetivo da monografia é responder as perguntas: o que são essas representações? O que representam a prostituta, a musa do brega, e a mulher leviana, escondida atrás do “corno”, dentro desse estilo musical? A monografia será realizado por meio das teorias de representações sociais, baseadas em Serge Moscovici, e os estudos sobre música, de Marcos Napolitano. A importância de estudar as representações sociais femininas também tem relação com a maneira como as personagens da música brega podem refletir na sociedade. Isso pode ser explicado pelo teórico Stuart Hall, “A cultura não é uma prática, nem é simplesmente a descrição da soma dos hábitos e costumes de uma sociedade. Passa por todas as práticas sociais e é a soma das suas inter-relações” (HALL, 1980, p. 60). O desejo em estudar esse tema se relaciona com a tentativa de diminuir o preconceito que essa vertente musical sofre, por ser ligada a algo de baixa qualidade. Por isso, é interessante e necessário propor conceitos de música brega que fujam a representações sociais pejorativas e que não abordam a complexidade do assunto. Em relação à exclusão do brega dos estudos acadêmicos, Paulo Cesar de Araujo, autor do livro Eu não sou cachorro, não, versa sobre como essa vertente musical é deixada de lado pelos livros de história e de música. Para ele, “a história continua sendo mal contada”, por meio de uma produção “autoritária e excludente”. A opinião do autor baseia-se no fato dos historiadores, segundo ele, abordarem apenas os estilos musicais ligados a classes mais favorecidas, excluindo, dessa forma, o brega, ritmo ouvido pelas camadas mais pobres da população, para Paulo Cesar de Araujo. Já Carmen Lucia José, autora do livro Do Brega ao Emergente, traz outra interpretação desse quadro de preconceitos contra o brega. Segundo ela, existiu, sim, um 10 tempo em que apenas os “produtos de alta cultura” tinham espaço nos estudos acadêmicos e científicos. No entanto, agora a “Universidade democratiza-se” e “a cultura brasileira amplia seus horizontes para além do que ocorria no universo das elites” (JOSÉ, 2002, p.7). Concordo que a música brega vem ganhando mais espaço na academia, mas ainda é preciso confronta os historiadores elitistas que Paulo Cesar de Araujo cita. O método escolhido para a monografia é a pesquisa bibliográfica. Inicialmente, a bibliografia foi identificada, localizada e adquirida. Posteriormente esse material foi analisado e a monografia começou a ser produzida. O método de análise das músicas tem base nos estudos de Marcos Napolitano. Já sobre as representações sociais, foram usados Serge Moscovici, Denise Jodelet, Márcio S. B. S. de. Oliveira, Angela Arruda e Alda Judith AlvesMazzotti. No que se refere ao brega, os estudiosos utilizados foram Paulo Cesar de Araújo, Adriana Mattos de Oliveira, Fernando Israel Fontanella, Abraham Moles, Carmen Lucia José e Antonio Carlos Cabrera, além de Jairo Severiano que estuda a música brasileira. Eliana dos Reis Calligaris, Gilberto Freyre, Mary Del Priore, Gabriela Silva Leite, Philippe Ariés e André Béjin foram utilizados para explicar questões ligadas à sexualidade, à prostituição e aos relacionamentos amorosos. Voltando às representações sociais que serão tratados na monografia, é importante saber, inicialmente, algumas informações sobre as personagens desse estudo: as prostitutas e as mulheres que traem. Segundo Paulo César de Araújo, as prostitutas, são tema recorrente na música popular brasileira. Canções como “Dama Do Cabaré”, “Quem Há de dizer” e “Vida De Bailarina”, por exemplo, mostram mulheres com certo status social, no contexto da Lapa (bairro do Rio de Janeiro) boêmia, frequentada pelos artistas. Já as prostitutas retratadas pelos artistas bregas são mulheres solitárias, sem os mesmos status mostrados anteriormente. Para Paulo Cesar de Araújo, estudioso da música brega, a explicação para as prostitutas aparecerem nas canções está no fato da proximidade dos cantores desse estilo musical com essas profissionais. A primeira mulher de Waldick Soriano foi uma prostituta de Belém do Pará, Nelson Ned se envolveu emocionalmente com várias prostitutas em determinada fase de sua vida e Odair José diz que tinha muita proximidade com esse tema. Minha escolha por essas personagens deu-se pela grande recorrência em que as prostitutas aparecem nas canções bregas, além disso, elas são a personificação do que é viver 11 as margens da sociedade e sofrer preconceito. Situação semelhante ao que acontece à própria música brega: marginalizada e vitimada culturalmente. As músicas analisadas serão: “Vou Tirar Você Desse lugar”, Odair José; “Secretária Da Beira do Cais”, César Sampaio; e “Menina da Calçada”, Fernando Mendes. As músicas foram escolhidas por abordarem com profundidade a personagem prostituta, além de trazerem à tona discussões sobre o universo da prostituição, uma vez que essas canções tratam do amor boêmio entre o cantor brega e a prostituta, da vontade que a mulher sente de abandonar a vida que leva, da tristeza e da solidão. A outra personagem é a mulher que trai, a leviana. A mulher escondida atrás do “corno” que escreve os clássicos bregas. O “chifrudo”, o “cornudo”, vítima de muitas piadas no imaginário popular, nas quais pode ser ridicularizado, cometer crimes ou, simplesmente, fingir que a traição não existiu. Toda a riqueza de histórias que pode envolver essas dois personagens, o “corno” e a leviana, acaba transformando eles em protagonistas perfeitos para uma música brega. Reginaldo Rossi, cantor desse estilo, explica a influência do “corno”, nas histórias, por exemplo, e como geralmente as tramas se desenrolam ao redor desse personagem: "O ‘corno’ é muito importante nas novelas. Eles deveriam ganhar um troféu. E toda novela tem final feliz, menos para eles", explica o cantor em uma entrevista ao programa Vídeo Show. No entanto, nessa monografia deixo de lado o protagonismo dos homens traídos para dar espaço as mulheres que os traem. As músicas que serão analisadas nesse tema são: “O Dia do Corno”, Reginaldo Rossi; “Eu Lhe Peguei no Flagra”, Genival Santos; e “Lua de Mel”, Reginaldo Rossi. As canções foram escolhidas por tratarem do universo do amor e das traições, ambiente propício ao surgimento da personagem leviana. Além disso, as canções escolhidas são de dois grandes nomes da música brega, Reginaldo Rossi e Genival Santos. Para analisar as seis canções, serão levados em conta as quatro instâncias de análise contextual propostas por Marcos Napolitano, em História & Música: história cultural da música popular, além de usar os parâmetros poéticos e os parâmetros musicais também propostos pelo mesmo autor. Em resumo, o primeiro capítulo apresenta o campo de estudos sobre música brega no Brasil, conceitos relacionados ao kitsch e ao kitsch musical, a história das canções “cafonas” também é contada. 12 No segundo capítulo, começam as discussões sobre as representações sociais. A história dessa teoria, os conceitos, os principais autores, as críticas e a relevância do estudo serão tratados nessa primeira parte. O capítulo discutirá as duas representações sociais trabalhadas na monografia: a prostituta e a mulher adúltera. Dessa forma, é mostrada a história da prostituição no Brasil e como essas mulheres aparecem na música brasileira, em especial, o samba de Noel Rosa e o brega. A última parte do capítulo traz discussões sobre a prostituição. Inicialmente, o texto perpassa sobre as relações fora do casamento e a sexualidade ocidental, depois o contexto volta-se para o Brasil e, por fim, a traição na música brega. No terceiro e último capítulo, inicialmente, são trabalhados os conceitos de Marcos Napolitano tendo como base o livro História & Música: história cultural da música popular. Ou seja, criação, produção, circulação e recepção/apropriação das músicas são analisados. Depois, serão apresentas as análises de seis músicas bregas. São elas: “Vou Tirar Você Desse lugar”, de Odair José, “Secretária da Beira do Cais”, de César Sampaio, “Menina da Calçada”, de Fernando Mendes, “O Dia do Corno”, de Reginaldo Rossi, “Lua de Mel”, também de Reginaldo Rossi, e “Eu lhe peguei no flagra”, de Genival Santos. Em seguida, é feita uma análise das representações sociais das mulheres na música brega. 13 2. CONHECENDO O BREGA 2.1 “VOCÊ VIVE DESFAZENDO LÁ DO BREGA/ SERÁ QUE VOCÊ NÃO TEM CORAÇÃO?” Inicialmente o Capítulo 1 mostra os preconceitos que a música brega sofre e como esse tema é abordado no meio acadêmico. Em seguida, são apresentados conceitos ligados ao kitsch e ao kitsch musical. Por fim, é mostrada a história do brega, além da origem dessa vertente musical. Inquieta-me o preconceito que a música brega sofre. Essa exclusão classifica o estilo musical estudado como algo ruim, o que é resultado de um processo de hierarquia classista, que beneficia determinados estilos musicais. Segundo Fontanella, mestre que escreveu a dissertação A Estética do Brega, “o imaginário do belo sempre é pensado pelas instituições da hegemonia dentro de uma legitimação dos grupos dominantes”(FONTANELA, 2005, p. 42-43). Ainda de acordo com Fontanella (2005), a classe intelectual hegemônica tem necessidade de impor papéis para as diferentes condições culturais de status dentro de uma sociedade. Isso acontece porque essa classe intelectual se sente ameaçada com a tentativa de romper com os papéis e valores por ela impostos, ou seja, quando a estética “causa desconforto e instabilidade dentro do imaginário das representações idealizadas que sustentam a estética hegemônica” (FONTANELA, 2005, p. 107). As transgressões causadas pelos artistas bregas também causam incômodo às elites intelectuais, segundo Fontanella. Essas mudanças trazidas por esse estilo de música acarretam experiências estéticas, que podem até não terem a intenção de contestar uma hegemonia, mas acabam por desestabilizá-la, de acordo com Fontanella. Essas mudanças podem ser as temáticas abordadas por esse estilo que trata de prostitutas, traições e homossexualismo, por exemplo. Existe ainda outro problema: a crítica da música popular brasileira considera o brega de difícil classificação. Para Paulo César de Araújo (2003), a crítica julga que a música brega não pertence nem à tradição nem à modernidade. Ou seja, esse estilo não seria entendido como algo produzido pelo povo, uma vez que o gênero é considerado como uma adaptação da indústria cultural para propósitos de venda, mas também não seria produzida pelas vanguardas modernas, já que é considerada música sem valor estético. 14 O mau gosto ao qual o brega é associado pode ainda ter a ver com a valoração que esse produto cultural possui ― entende-se como produto cultural a própria música brega. Para Carmen Lúcia José, essa explicação tem um teor social, uma vez que se alimenta da lógica da acumulação de capital. A mercadoria é incumbida de fornecer ou não prestígio a quem a possui: as mercadorias bregas são aquelas cujos elementos não refletem mais o padrão estético da elite, ou porque essa categoria cultural já dispensou definitivamente esse objeto do seu conjunto ou porque o objeto considerado brega traz algum traço definitivamente forte que espelha algum elemento dos segmentos sociais de baixo poder aquisitivo (JOSÉ, 2002, p.51). Ou seja, o que vemos mais uma vez é outra explicação que justifica a associação do brega a algo de baixa qualidade por meio da ligação que essa vertente musical possui com as classes menos favorecidas economicamente. No entanto, é importante entender que o público alvo do brega mudou. Por isso, essas taxações pejorativas não fazem sentido. Hoje o brega atinge também um segmento social diferente, podendo chegar até a ser cult. Carmen Lúcia José explica isso como um empréstimo que a cultura popular promove quando fornece elementos constituintes e objetos. Eles passam a ter o valor de uso e de função diferentes do que expressam no universo de signos do determinado grupo social que pertencem. 2.2 O KITSCH Antes de entrar em conceitos sobre o que é música brega e quais as origens do estilo estudado, é necessário analisar um elemento diretamente ligado ao brega: o kitsch. Segundo Abraham Moles, “o kitsch (...) nunca coincide exatamente com um estilo artístico definido” (MOLES, 1986, p. 138). Abraham Moles explica ainda que “é a mercadoria barata, é uma secreção artística derivada da venda dos produtos de uma sociedade em grandes lojas que assim se transformam, a exemplo das estações de trem, em verdadeiros templos” (MOLES, 1972 apud JOSÉ, 2002, p.60). Para Carmem Lúcia José, o kitsch sempre existiu. Ele está presente nas manifestações artísticas de todos os tempos. No entanto, seu momento de efetivação foi no triunfo da burguesia. Nesse contexto, essa classe social passou a comandar a sociedade e alienou as outras classes sociais por meio do kitsch, que participavam do consumo de bens acreditando serem todos indivíduos iguais. 15 Segundo Umberto Eco (1972, apud JOSÉ, 2002, p.78), o kitsch é uma condição do mau gosto, uma vez que existe a “ausência de medida”. Para ele, existe apenas uma variação de acordo com épocas e civilizações, o que confirma o fato do kitsch sempre ter existido. Para entender o kitsch mais profundamente, é necessário entender como funciona o consumo. Carmen Lúcia José explica que o consumo não é apenas adquirir. Vai além. O consumo é, na verdade, uma “função que faz com que a vida seja um desfile acelerado de objetos” (JOSÉ, 2002, p.62). Em relação ao consumo, o kitsch teve dois grandes momentos. Primeiro, no contexto da ascensão da burguesia, com a consciência dos valores que os objetos possuíam. Segundo, quando o objeto é transformado em um produto com a vida útil muito curta. Nesse segundo momento, origina-se o brega. Vale lembrar que o kitsch opõe-se à simplicidade, enquanto o brega a valoriza. Muitas outras características diferenciam o brega e o kitsch. Carmen Lúcia José explica que o Kitsch vive entre “o original e o banal”, enquanto o brega vive apenas “do banal, do repetitivo”. É importante, no entanto, ter cuidado para essa afirmação não cair no vão dos questionamentos pejorativos sobre o brega. É como se o kitsch se ligasse à produção e criação, enquanto o brega se relacionasse com a cópia. Esse conceito não cabe nessa monografia, uma vez que trabalharemos com criações bregas e a riqueza do discurso que as letras bregas carregam. É comum achar que os dois são a mesma coisa, porque todos são classificados como mercadorias ordinárias. Esse é um pensamento carregado de preconceito comum nas pessoas que tem como base a cultura erudita. 2.3 O KITSCH MUSICAL Por mais que kitsch e brega não sejam sinônimos, é necessário entender a relação do primeiro com a música. O kitsch na música possui relação com canções de entretenimento. Vale lembrar que são canções clássicas, uma vez que o kitsch se caracteriza pela popularização do erudito, do clássico, do que faz parte do gosto burguês. No livro de 16 Abraham Moles, O Kitsch, o autor apresenta uma lista de compositores mais admirados pelo grande público na época, ou seja, em 1986. São eles: Tabela 1 ― Compositores mais admirados pelo grande público em 1986, para Abraham Moles Chopin 15% Tchaikovsky 24% Strauss 25,9% Bach 31% Schubert 34% Wagner 38% Verdi 41% Beethoven 67% Lehar 88% Mozart 153% Fonte: livro O Kitsch, de Abraham Moles. Abraham Moles enumera algumas características do kitsch musical. Primeiro, “a desproporção entre os meios empregados e o tema ou fatores fundamentais” (MOLES, 1986, p. 130). Por exemplo, uma orquestra tocando um funk carioca, ou seja, uma música considerada pelo senso comum sem muito valor cultural. Segundo, a acumulação de efeitos, que visa uma sinestesia musical. Com o uso desse princípio, muitos canais sensoriais são estimulados ao mesmo tempo. Trazendo isso para exemplos mais atuais podemos ver o grande aparato tecnológico que envolve os shows de estrelas do Sertanejo universitário, do forró e até mesmo do tecnobrega. Todos são exemplos de kitsch, uma vez que eram elementos típicos de um setor social, mas, ao agradarem uma classe que tem o poder de disseminar algo, passaram a ser populares. Isso não é um exemplo de fusão, uma mistura social, é mais característico de uma segregação, na qual 17 a classe com poder de difusão passa para as outras classes algo que lhe agrada. Essa disseminação é feita por meio de “mercadorias culturais, de bens de consumo, de serviços e das mídias” (JOSÉ, 2002, p. 79). Também não são bregas partindo do conceito que é utilizado nessa monografia. Terceiro, meio termo, ou seja, inserção do cotidiano da execução (instrumento, etc.) de obras concebidas e compostas para um contexto de exceção (igrejas, coros, etc.): a marcha nupcial de Mendelsohn no acordeão, a serenata de Toselli em órgão, a Nona Sinfonia em orquestra de cervejaria (MOLES, 1986, p. 131). O kitsch musical pode ainda ser dividido em categorias, mas Abraham Moles apenas as indica e as exemplifica, sem grandes aprofundamentos. São elas: kitsch exótico (são exemplos as músicas “Danúbio Azul”, “Olhos Negros” e “La Paloma”), kitsch romântico (fala de amores secretos e pode se aproximar do brega, por conta da temática), kitsch kitsch (por exemplo, a adaptação de uma música húngara para uma orquestra de blues) e o kitsch erótico (canções carregadas de duplo sentido, o que permite um paralelo com os exemplos de kitsch atuais, exemplificados acima. Sertanejo universitário, o forró e até mesmo o tecnobrega). 2.4 A MÚSICA BREGA DESPIDA DE PRECONCEITOS Antes de mergulhar em conceitos sobre o que é brega, é necessário saber que essa vertente musical, antes de ter uma explicação acadêmica, possui um conceito ligado ao senso comum. As palavras “brega” e “cafona”, por exemplo, fazem parte do vocabulário do brasileiro. Quando faladas, carregam estereótipos nacionais, preconceitos enraizados e rótulos pejorativos. Isso causa preocupação e, baseada nessa inquietação, vejo a importância que tem a apresentação da história e do conceito de brega. No livro Eu não sou cachorro, não, Paulo Cesar de Araújo explica que esse estilo de música se originou da Jovem Guarda. Essa última deriva de um programa homônimo 18 exibido na Rede Record de 1965 a 1968, apresentado por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa. Segundo Marcelo Fróes, no livro Jovem Guarda em Ritmo de Aventura (FRÓES, 2000), a Jovem Guarda representa um importante “momento” musical na história do Brasil, com férteis vertentes musicais nos anos 1960, incluindo a música brega. O programa estimulou mudanças no cotidiano dos jovens brasileiros, por conta da influência da mídia televisiva. Estilos de vida eram mostrados. Os ídolos da juventude apresentavam aos telespectadores maneiras de se vestir, como falar, o que pensar e como se comportar. O contexto dessa época era a expansão da televisão. Ela chegou ao Brasil na década de 1950, iniciando seu crescimento na década seguinte, coincidindo com o período em que surgiu o movimento da Jovem Guarda, que também contou com divulgação através de programas de rádio. O programa da Jovem Guarda existiu apenas entre 1965 e 1968, mas apresentou ao Brasil muitos talentos musicais; alguns deles mais tarde seriam de extrema importância para a música brega. É importante notar que cantores atualmente considerados bregas tiveram ligação com a Jovem Guarda. Reginaldo Rossi, por exemplo, foi líder dos The Silver Jets, participando de alguns programas da Jovem Guarda. Depois o cantor decidiu seguir carreira solo e se auto intitular Rei do Brega. A cantora Kátia, outro exemplo,também teve sua ligação com a Jovem Guarda, uma vez que Roberto Carlos era o seu padrinho artístico. A “música brega” também tem suas raízes em outros ritmos. Waldick Soriano, por exemplo, cantou boleros como “Quem És Tu?” e “Só Você”; em 1961 lançou o tango “Dona do meu coração” e o merengue “Amor de Vênus”. Nelson Ned, Lindomar Castilho e Claudia Barroso também sofreram influência hispânica, presente no Brasil desde a década de 40, e, por isso, cantaram boleros. Benito di Paula, Luiz Ayrão e Wando ― esse último, no início da carreira, ainda não cantava baladas românticas― pertenciam à linha do samba ou "sambãojóia", como era chamado na época. Existiam ainda as baladas românticas com Paulo Sérgio, Odair José, Evaldo Braga e Agnaldo Timóteo. Elas foram consolidadas por Roberto Carlos e os músicos da Jovem Guarda. Essa mistura acontece porque a “música brega” se apropriou do samba, das baladas românticas e do bolero, o que pode dificultar, muitas vezes, uma definição e classificação desse tipo de música. É importante voltar no tempo e analisar os ritmos que deram origem à música brega. A música “cafona” recebeu influências do samba, em especial o samba-canção, uma 19 vez que esse último tem como característica a letra romântica. O ritmo precisou de 20 anos para se consolidar. Antes disso, era rotulada apenas a categoria de “samba”. Em 1948, o samba-canção assumiu a hegemonia da música brasileira, deixando de lado a valsa e o foxcanção. Esse ano ainda marca uma popularização do bolero, ritmo que também influenciou a música brega. O bolero estava presente na programação das rádios brasileiras desde os anos 30. No entanto, em 1945, foi a consolidação do ritmo por meio da canção “Santa”, de Agustín Lara, tema do filme Santa: o destino de uma pecadora. O grande sucesso abriu o mercado cinematográfico brasileiro para a exibição de filmes mexicanos. Com as películas estrangeiras, vieram os boleros. Para Jairo Severino, autor de Uma História da Música Popular Brasileira, “a força do bolero, digamos, potencializou a moda do samba-canção” (SEVERIANO, 2008, p. 290). Juntos os dois ritmos influenciaram o surgimento do brega. O samba-canção foi organizado em duas categorias: a tradicional e a moderna. A tradicional tinha inspiração poética e musical na Época de Ouro, os expoentes eram Lupicínio Rodrigues e Herivelto Martins. Já a corrente moderna era renovadora tanto para o samba-canção como para a Música Popular Brasileira. Essa última categoria inspirou a bossa nova, enquanto o samba-canção tradicional inspirou, juntamente com o bolero e as baladas românticas da Jovem Guarda, a música brega. No final da década de 1960, o samba-canção começou a perder popularidade. Era a época dos festivais televisivos, que davam espaço para baladas de ritmos variados. A consolidação da música brega vem entre 1968 e 1978, quando artistas como Odair José, Nelson Ned, Agnaldo Timóteo, Waldik Soriano, Cláudia Barroso, Benito di Paula e a dupla Dom & Ravel apareciam nas listas das mais altas vendagens do mercado fonográfico e seus discos batiam recordes de execução em rádios. Algumas das músicas de sucesso eram “Eu Não Sou Cachorro, Não”, “Pare de Tomar A Pílula”, “Vou Tirar Você Desse Lugar” e “Cadeira de Rodas”. 2.5 A ORIGEM DA PALAVRA “BREGA” 20 No Dicionário Brasileiro de Insultos (ARANHA, 2002, p. 60), o termo “brega” está entre as palavras de significado pejorativo e o verbete traz ainda uma das possíveis origens do termo: Brega: de mau gosto, de baixo nível. Consta que a palavra teve origem em Salvador, mais propriamente numa área urbana de baixo meretrício onde uma placa indicando a rua Padre Manuel da Nóbrega teve gasto o letreiro, sobrando apenas as duas últimas sílabas. Aplica-se a pessoas que se mostram sem elegância, que exibem mau gosto. (ARANHA, 2002, p. 60) Em 1989, durante uma entrevista coletiva para promover um show na casa de espetáculos “Olympia”, em São Paulo, Wando contou que a origem do termo “brega” vinha de uma boate no Norte ou no Nordeste, ele não lembra ao certo, que se chamava Manuel da Nóbrega. Roubaram parte do letreiro e ficou apenas Manuel Brega. Por conta disso, as pessoas começaram a usar a expressão “vamos ao brega”. Morais Moreira tem outra versão para a história. Para ele, Manuel da Nóbrega seria uma rua “da pesada” localizada na Bahia, que, segundo o dicionário de Houaiss, essa região de que Morais Moreira fala é tratada como “zona de meretrício”. Isso mostra a aproximação da música brega com o universo da prostituição, tema abordado por essa monografia. Para Paulo César de Araújo, o conceito de música brega ―despido de preconceitos, vale ressaltar― é o seguinte: A palavra “brega”, usada para definir esta vertente da canção popular, só começou a ser utilizada no início dos anos 80. Ao longo da década de 70 ― período que compreende o universo desta pesquisa ― a expressão utilizada é ainda "cafona", palavra de origem italiana, “cafóne”, que significa indivíduo humilde, vilão, tolo. Divulgada no Brasil pelo jornalista e compositor Carlos Imperial, a expressão “cafona” subsiste hoje como sinônimo de “brega”, que, segundo a Enciclopédia da Música Brasileira, é um termo utilizado para designar "coisa barata, descuidada e malfeita" e a "música mais banal, óbvia, direta, sentimental e rotineira possível, que não foge ao uso sem criatividade de clichês musicais ou literários". Ressalto que sempre que eu fizer referência ao repertório “cafona” ― a palavra aparecerá entre aspas porque contém um juízo de valor impregnado de preconceitos com os quais não compartilho ―, estarei me referindo àquela vertente da música popular brasileira consumida pelo público de baixa renda, pouca escolaridade e habitante dos 21 cortiços urbanos, dos barracos de morro e das casas simples dos subúrbios de capitais e cidades do interior. (ARAÚJO, 2002, p. 20) Por fim, por meio desse primeiro capítulo de monografia, conclui-se que alguns fatores colaboram para que o brega seja visto como algo consumido apenas “pelo público de baixa renda, pouca escolaridade”, como disse acima Paulo Cesar de Araújo. Fontanella aponta o processo de hierarquia classista, a imposição de papéis para as diferentes condições culturais de status dentro de uma sociedade e as transgressões causadas pelos artistas bregas. Já Paulo César de Araújo, comenta a difícil classificação do brega, apontada pela crítica musical. Carmen Lúcia José mostra que o valor cultural que o brega carrega contribui para a associação desse produto com algo de mau gosto. Assim, concluímos que o mau gosto é atribuído ao brega por conta da forma pejorativa como esse estilo de música ainda é visto pela sociedade. 22 3. AS PROSTITUTAS E AS ADÚLTERAS Inicialmente, nesse capítulo, serão mostrados conceitos, autores e críticas relacionadas às representações sociais, além da importância dessas teorias para esta monografia. Depois, será feito um resgate histórico da prostituição no Brasil. Em seguida, será mostrado como as garotas de programa são retratadas na música, em destaque, no brega. A segunda parte do capítulo mostra as mulheres adúlteras e a história da traição no Brasil, além de abordar a infidelidade e o romance na música brega. Os conceitos, as teorias e as informações sobre representações sociais são baseados em quatro autores: ALVESMAZZOTTI, 2008; ARRUDA, 2002; OLIVEIRA, 2004; JODELET, 1989. Todos os autores se baseiam nas ideias de Serge Moscovici, o romeno naturalizado francês, que propôs originalmente o conceito de representação social em 1961. 3.1 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS Neste capítulo, inicialmente, serão trabalhadas as representações sociais. Conceitos, autores e críticas serão alguns dos assuntos tratados. A segunda parte do capítulo é destinada à prostituição. A história dessa profissão no Brasil e como as prostitutas estão presentes na música serão os temas vistos. Por fim, a última parte do capítulo aborda o adultério como tema. A história da traição no Brasil e esse tema na música brega são analisados. 3.1.1 Breve história do conceito de representações sociais Quando se estuda representações sociais, a primeira pergunta feita é: por que construímos representações? A resposta vem de Denise Jodelet. A autora explica que não vivemos em um “vazio social”, dessa forma, compartilhamos o mundo com outros indivíduos e neles nos apoiamos para compreender, gerenciar ou afrontar. Por isso as representações são sociais e são tão importantes na vida cotidiana. Elas nos guiam na maneira de nomear e definir em conjunto os diferentes aspectos de nossa realidade cotidiana, na maneira de interpretá-los, estatuí-los e, se for o caso, de tomar uma posição a respeito e defendê-la (JODELET, 1989, p. 1) 23 Em relação ao campo de estudos das representações sociais, segundo Alda Judith Alves-Mazzotti, ele se inicia em 1960, na França, com o aumento do interesse pelos fenômenos do domínio simbólico. A partir deles cresce a vontade de explicá-los por meio das noções de consciência e de imaginário, segundo Angela Arruda. Foi com a publicação da obra La Psychanalyse, son image, son public, de Moscovici, em 1961, que a matriz da teoria é lançada. Na década seguinte, começa a surgir na Europa um número significativo de pesquisas nessa área. No entanto, foi somente na década de 80 que os estudos em representações sociais chamaram atenção de pesquisadores e de revistas especializadas por meio de um grande número de publicações em inglês e de trabalhos realizados. Do fim dos anos 60 ao início dos anos 80, período de consolidação das teorias das representações sociais, o contexto foi marcado por novos conceitos, como o de gênero, e representação de categorias visando levá-las mais em consideração, como é o caso da noção de novos movimentos sociais. Vale lembrar ainda que a Teoria das Representações Sociais não é atrelada a um único campo de estudos. Ela é oriunda da sociologia de Durkheim, mas passa pela psicologia social de Serge Moscovici e Denise Jodelet. 3.1.2 Conceito de Representação Social Para Alda Judith Alves-Mazzotti, as representações sociais investigam como se formam e como funcionam os sistemas de referência que são utilizados para classificar pessoas e grupos, além de interpretar os acontecimentos da realidade cotidiana. As representações surgem da seguinte maneira: Nas conversações diárias, em casa, no trabalho, com os amigos, somos instados a nos manifestar sobre eles [novas questões e os eventos] procurando explicações, fazendo julgamentos e tomando posições. Estas interações sociais vão criando “universos consensuais” no âmbito dos quais as novas representações vão sendo produzidas e comunicadas, passando a fazer parte desse universo não mais como simples opiniões, mas como verdadeiras “teorias” do senso comum, construções esquemáticas que visam dar conta da complexidade do objeto, facilitar a comunicação e orientar condutas. Essas “teorias” ajudam a forjar a identidade grupal e o sentimento de pertencimento do indivíduo ao grupo (ALVES-MAZZOTTI, 1994, p.21) 24 Para Denise Jodelet, a ação de representar é o ato de pensamento pelo qual o sujeito relaciona-se com um objeto. Este pode ser tanto uma pessoa, uma coisa, um evento material, psíquico ou social, um fenômeno natural, uma ideia, uma teoria etc.; pode ser tanto real quanto imaginário ou mítico, mas sempre requerer um objeto (JODELET, 1989, p. 5) Ou seja, não existe representação sem objeto. E, na relação sujeito e objeto, é possível ver o seguinte: de um lado, “a representante mental do objeto que reconstitui simbolicamente. De outro lado, como conteúdo concreto do ato de pensar, a representação carrega a marca do sujeito e de sua atividade” (JODELET, 1989, p. 5). É necessário lembrar que a importância do estudo das representações sociais está atrelada ao fato delas contribuírem, segundo Denise Jodelet, na aproximação da vida mental individual e coletiva. Além disso, segundo Alda Judith Alves-Mazzotti, o conceito de representação social proposto por Moscovici busca a especificidade através da elaboração de um conceito verdadeiramente psicossocial, na medida em que procura dialetizar as relações entre indivíduo e sociedade, afastando-se igualmente da visão sociologizante de Durkheim e da perspectivapsicologizante da Psicologia Social da época (ALVES-MAZZOTTI, 1994, p.22) O conceito de representação social não pode se confundir com cognição social. Nessa última, os modelos explicativos têm como foco apenas os processos e a lógica subjacente, ou seja, “o sujeito é visto como um processador de informações” (ALVESMAZZOTTI, 1994, p.37). A outra diferença possui relação com os erros cometidos pelos sujeitos nos seus julgamentos sobre os objetos ou eventos sociais. Para a teoria das representações sociais, não faz sentido falar em erro, pois as características “são decorrentes das situações sociais em que esse pensamento se origina e das normas sociais que os moldam” (ALVES-MAZZOTTI, 1994, p.38). Outro fato que não pode acontecer, segundo Alda Judith Alves-Mazzotti, é confundir o conceito de representação social com simples “opiniões sobre” ou ainda “imagens de”. O conceito é na verdade uma teoria coletiva sobre o real com lógica e linguagem particulares, além de uma estrutura baseada em valores e conceitos. 25 A representação social, para Angela Arruda, é um saber social, uma vez que conduz ao estudo de fenômenos de ordem cognitiva, orientada pelas marcas sociais e as condições da sua gênese. Tal estudo apóia-se no conteúdo dessas representações e se dá baseado no suporte desses conteúdos: a linguagem, contida em documentos, práticas, falas, imagens e outros. O estudo dos conteúdos implica assim abarcar o campo da representação social, ou seja, a totalidade de expressões, imagens, idéias e valores presentes no discurso sobre o objeto, segundo Jodelet (2002). (ARRUDA, 2002, p. 140). 3.1.3 Moscovici e Durkheim Para entender melhor as propostas e os conceitos de Moscovici, é necessário aprofundar os conhecimentos sobre as pesquisas de Durkheim. Angela Arruda explica que: As representações coletivas em Durkheim apresentavam razoável estabilidade e um relativo estancamento no tocante às representações individuais, configurando-se em algo semelhante ao group mind, como diria Moscovici. Consistiam em um grande guarda-chuva que abrigava crenças, mitos, imagens, e também o idioma, o direito, a religião, as tradições. (ARRUDA, 2002, p. 134). No entanto, Angela Arruda critica a abrangência do conceito, o que o torna “pouco operacional”. A própria sociologia acabou por deixá-lo de lado. A antropologia acrescentou ao conceito o foco do simbólico e a história das mentalidades agregou a memória. Movido pela necessidade de atualizar o conceito, Moscovici o remodela. O termo “coletivas”, de Durkheim, é substituído por “sociais” e usado junto com a palavra “representações”. “A pedra de toque do argumento foi, de um lado, o estabelecimento das fraturas existentes nas ‘forças coletivas’ e, de outro, a maneira pela qual essas fraturas impactam diversamente o cotidiano de grupos e indivíduos” (OLIVEIRA, 2004, p. 5). Além disso, o contexto dessa troca é marcado pela intensa divisão do trabalho, na qual a dimensão da especialização e a informação adquirem grande importância na vida das pessoas e dos grupos, segundo Angela Arruda. Atualizar o conceito significa: 26 ao mesmo tempo, tornar o conceito operacional para ser aplicável em sociedades com essas características, sociedades em que a velocidade da informação não lhes outorga o tempo de sedimentar-se em tradição, na quais se impõe um processamento constante da novidade, nas quais se conhece por delegação, uma vez que ninguém tem acesso a todo o saber. (ARRUDA, 2002, p. 135). Segundo Márcio S. B. S. de Oliveira, Moscovici resgata o conceito de representações coletivas de Émile Durkheim além de estudar como a psicanálise foi “percebida (representada), difundida e propagandeada ao público parisiense” (OLIVEIRA, 2004, p. 2). As conclusões desse trabalho são as seguintes: Podemos sintetizá-las em três pontos fundamentais: 1) entre o que se acreditava cientificamente ser a psicanálise e o que a sociedade francesa entendia por ela existia um intermediário de peso, as representações sociais; 2) essas representações não eram as mesmas para todos os membros da sociedade, pois dependiam tanto do conhecimento de senso comum (ou popular), como do contexto sociocultural em que os indivíduos estavam inseridos; e 3) no caso de novas situações ou diante de novos objetos, como, por exemplo, a psicanálise, o processo de representar apresentava uma seqüência lógica: tornar familiares objetos desconhecidos (novos) por meio de um duplo mecanismo então denominado amarração – "amarrar um barco a um porto seguro", conceito que logo evoluiu para sua congênere "ancoragem" –, e objetivação, processo pelo qual indivíduos ou grupos acoplam imagens reais, concretas e compreensíveis, retiradas de seu cotidiano, aos novos esquemas conceituais que se apresentam e com os quais têm de lidar. (OLIVEIRA, 2004, p. 2) Ainda para Márcio S. B. S. de Oliveira, Serge Moscovici tem a obra classificada dentro das ciências sociais como pertencente ao campo da sociologia do conhecimento. Segundo o autor do artigo, Moscovici não se interessou apenas em entender como o conhecimento é produzido, mas também em analisar seu impacto nas práticas sociais e dessas últimas no conhecimento. Como Moscovici comenta, interessou-se no “poder das ideias” de senso comum. Ou seja, para ele, “estudo de como, e por que as pessoas partilham o conhecimento e desse modo constituem sua realidade comum, de como eles transformam idéias em práticas” (DUVEEN, apud, OLIVEIRA p.8). Em resumo, Moscovici interessa-se em compreender como os grupos, os atos e as ideias constituem e transformam a sociedade. Vale lembrar que essa preocupação está presente desde a tese de doutorado do autor publicada em 1961, segundo Márcio S. B. S. de Oliveira. 27 3.1.4 Autores que também colaboraram com as teorias das representações sociais Além de Émile Durkheim e Serge Moscovici, outros autores influenciaram as teorias de representações sociais. Começaremos por Denise Jodelet, já citada nessa monografia e a principal colaboradora de Moscovici, além de ser responsável pelo aprofundamento teórico, esclarecimento de conceitos e de processos formadores das representações sociais, segundo Alda Judith Alves-Mazzotti. A autora conceitua as representações sociais com “uma forma específica de conhecimento, o saber do senso comum, cujos conteúdos manifestam a operação de processos generativos e funcionais socialmente marcados. De uma maneira mais ampla, ele designa uma forma de pensamento social” (ALVES-MAZZOTTI, 1994, p.27). Doise (1989) é outro importante autor. Ele propõe uma abordagem integrada das atitudes, relacionando o estudo do indivíduo à sua inserção em sistemas de natureza societal e às relações simbólicas entre autores sociais, incluindo as diferenças entre os indivíduos, os grupos e as culturas. O autor ainda propõe a utilização da tipologia elabora por Moscovici sobre opiniões, atitudes e estereótipos. Hewstone e Ross também são autores que contribuem com as teorias de representações sociais. Para o primeiro, as representações sociais podem ser consideradas, nesse contexto, como “quadros de referência que classificam e selecionam a informação, assim como sugerem explicações” (p.208). Propõe integrá-las ao estudo do “processamento socializado” (usando aqui uma expressão de Wells), o qual busca compreender como as pessoas aprendem a respeito das causas dos eventos sociais e adotam hipóteses culturais através do processo de comunicação (ALVES-MAZZOTTI, 1994, p.38). Já para Ross, apesar da grande atenção dada aos estudos de esquemas e “scripts”, os progressos relativos ao seu papel na precisão ou no erro inferencial são desanimadores. Conclui que é necessário saber como os esquemas são recrutados, pois continuamos ignorando o que faz um observador ou um ator social ser levados a aplicar um dado esquema a uma dada situação (ROSS, 1981). A teoria das representações sociais permite superar esse impasse, como o reconheceu Hewstone. (ALVES-MAZZOTTI, 1994, p.38). 28 Autores como Lévy-Bruhl, Vygotsky, Jean Piaget e Freud também são importantes para as teorias das representações sociais. Moscovici recorreu a esses primeiros autores como base para explicar algumas questões. Piaget contribui por meio dos seus estudos relacionados ao desenvolvimento do pensamento das crianças, estruturado a partir de imagens e também por corte-e-cola, juntando fragmentos do que a criança já conhece para formar uma configuração que traduza o que ela desconhece ― o que muitas vezes se manifesta mais claramente para os adultos como o “falar errado” das crianças. Mas também, a partir do julgamento moral, indicando a importância do contato com os adultos, primeiramente, e com outras crianças, mais tarde, para o desenvolvimento desse tipo de juízo e para a construção das regras pelas crianças. (ARRUDA, 2002, p. 135). Já Lévy-Bruhl, contribui por meio de estudos sobre o pensamento místico que, presente em povos distantes, mostra diferentes formas lógicas para pensar o mundo, levando em conta princípios diversos do pensamento ocidental. A contribuição de Freud vem das teorias sexuais das crianças que indicam como elas elaboram e internalizam suas próprias teorias sobre questões fundamentais para a humanidade, teorias que carregam as marcas sociais da sua origem: a experiência vivida no seu grupo, na sociedade, e o diálogo com outras crianças, como as teorias que explicam o ato sexual. (ARRUDA, 2002, p. 136). Por último, Vygotsky é usado por Moscovici para traçar um paralelo com Piaget. O primeiro autor tem ligação com o marxismo soviético e acredita, juntamente com Lévy-Bruhl, que: uma mesma cultura pode gerar distintas representações, não havendo empréstimos ou substituições entre elas, mas eventualmente "saltos" ou "revoluções". O autor contextualiza este debate sobre o caráter universal ou evolucionista das representações nos anos de 1920 e em plena polêmica marxista-leninista em torno do "controle" da consciência social e do destino único das sociedades européias. As possibilidades históricas de então – tanto o marxismo como o nazismo, como bem demonstrou Karl Mannheim – foram igualmente mortíferas, abreviando assim o debate que se iniciava. (OLIVEIRA, 2004, p. 4) 29 3.1.5 Crítica às teorias das representações sociais Segundo Alda Judith Alves-Mazzotti, os questionamentos são de nível teórico e se referem à falta de clareza na definição dos conceitos. A principal crítica liga-se ao uso do termo “social” aplicado às representações. Para Harré (1984; 1989), existe uma tripla ambiguidade no uso dessa palavra: o termo é usado para indicar que a representação é de um objeto social, ou que ela própria, enquanto entidade, é algo social, ou, ainda, que a representação é social por ser partilhada por um grupo. Para Harré esta última concepção seria aplicável apenas a grupos reais, que se intercomunicam, desempenham papéis e têm entre si relações de compromisso. (ALVES-MAZZOTTI, 1994, p.32). Já para Codol (1988), é legítimo o uso do termo “social”, uma vez que as pessoas se apropriam, atualizam e expressam as formas sociais das culturas e dos grupos que fazem parte. Potter e Litton (1985) também fizeram outra crítica às representações sociais. Os autores questionam o fato de que apesar de um sujeito participar de vários grupos, nada garante que ele sinta realmente uma identidade com aquele grupo especificado pelo pesquisador. Essa crítica alerta para a necessidade de estabelecer critérios analíticos na hora de escolher os grupos em estudo (LEME, 1993), além de obter informações detalhadas sobre os indivíduos envolvidos, por meio da análise de dados. Os autores ainda mostram preocupação com outra questão pouco clara, segundo eles: que tamanho devem ter os grupos e qual o nível de consenso necessário para que se possa dizer que estamos frente a uma representação social? Alda Judith Alves-Mazzotti alerta para a grande variação desse ponto nas pesquisas. “Moscovici, em seu estudo sobre a psicanálise, trabalhou com um grande número de sujeitos (2.265); trabalhos posteriores, porém, usaram grupos bem menores, alguns não chegando a uma dúzia de sujeitos” (ALVESMAZZOTTI, 1994, p.33). Outro problema é apontado por Márcio S. B. S. de Oliveira. Um dos principais erros enfrentados pelas teorias das ciências humanas é generalizar tomando como base observações locais, ou seja, a “teoria das representações sociais apresentam (sic) certa incapacidade de passar da micro à macrosociedade” (OLIVEIRA, 2004, p. 6). 30 3.1.6 Como trabalhar com as representações sociais De acordo com Denise Jodelet, as representações sociais trabalham com “fenômenos diretamente observáveis ou reconstruídos por um trabalho científico” (JODELET, 1989, p. 1). Depois de alguns anos, esses fenômenos se tornaram um objeto central das ciências humanas, segundo a autora. Ao redor deles formam-se um domínio de pesquisa constituído por instrumentos conceituais e metodologias próprias, o que interessa a várias disciplinas. A autora lembra também que as observações das representações sociais “circulam nos discursos, são carregadas pelas palavras, veiculadas nas mensagens e imagens mediáticas, cristalizadas nas condutas e agenciamentos materiais ou espaciais” (JODELET, 1989, p. 1). Por isso, a relevância do estudo das representações sociais para a minha pesquisa está no fato dessa teoria interessar-se pelos grupos sociais e os indivíduos que o compõem, no caso dessa monografia, a música brega e seus personagens, ou seja, as prostitutas e as mulheres envolvidas em traições. Alda Judith Alves-Mazzotti explica que os estudos de representações sociais podem apresentar várias abordagens, uma vez que eles são relacionados a diversas áreas e não há uma metodologia “canônica”. Por conta dessa variedade, o pesquisador deve ter em mente as questões que pretende responder. De acordo com Denise Jodelet, o estudioso deve responder a dupla pergunta que constrói a base da teoria: “como o social interfere na elaboração psicológica que constitui a representação e como essa elaboração psicológica interfere no social” (ALVES-MAZZOTTI, 1994, p.34). Esse questionamento ajuda a perceber como a visão social contribui na formação da figura da prostituta e da mulher adultera. Ao estudar as representações sociais como produtos, deve-se procurar “apreender seu conteúdo e sentido através de seus elementos constitutivos: informações, crenças, imagens, valores, expressos pelos sujeitos e obtidos por meio de questionários, entrevistas, observações, análise de documentos, etc”. (ALVES-MAZZOTTI, 1994, p.34). Já quando as representações sociais são estudadas como processo, “estamos interessados na relação entre a estrutura da representação e suas condições sociais de produção, bem como nas práticas sociais que induzem e justificam” (ALVES-MAZZOTTI, 1994, p.34). Isso requer a análise de aspectos culturais, ideológicos e interacionais. No entanto, Alda Judith Alves-Mazzotti afirma que não se pode exigir que o pesquisador individual capte toda a complexidade dos processos envolvidos no estudo das representações sociais. 31 3.2 BREVE HISTÓRIA DA PROSTITUIÇÃO NO BRASIL Como foi visto anteriormente, segundo Alda Judith Alves-Mazzotti, as representações sociais são teorias coletivas sobre o real com lógica e linguagem particulares, além de uma estrutura baseada em valores e conceitos. Por conta disso, antes de discorrer sobre as prostitutas na música brega, é necessário entender a história dessa profissão, uma vez que essa história contribui para a forma das representações sociais. Tudo começa ainda na descoberta do Brasil. Para pensar em prostituição, ou seja, em entrega do corpo sem amor, Eliana dos Reis Calligaris, em Prostituição: O Eterno Feminino, relembra da entrega do corpo da índia aos colonizadores. “Não foi necessária a intermediação da linguagem, numa espécie de antecipação: ‘É o meu corpo que ele quer!’” (CALIGARIS, 2005, p.66). Cultural, adultério ou prostituição? É importante entender que muitos fatores uniram a mulher índia e o homem português. O econômico não era um desses motivos, por tanto não se pode falar em prostituição, uma vez que um dos fatores que mais caracteriza esse ato é justamente a troca comercial que envolve sexo e dinheiro. Segundo Gilberto Freire, em Casa Grande & Senzala, as circunstâncias (índias andando nuas) facilitavam a luxúria. Além disso, os colonizadores possuíam um “sentimento de justiça”, ou seja, uma necessidade de conviver bem com os índios. No início do período colonizador, essa união acontecia pela escassez de mulheres brancas, depois era por preferência sexual mesmo. Algumas índias se entregaram aos colonizadores por acreditarem que eles eram deuses, além delas acharem que os europeus eram mais luxuriosos. Dando um salto no tempo, agora no século XVIII, começa no Brasil o Século de Ouro. Era época de explorar o interior da colônia, as capitanias de Minas Gerias, Bahia, Goiás e Mato Grosso. Grande quantidade de ouro e de diamantes vinha desses lugares. No entanto, a dicotomia era grande. De um lado, riquezas eram ostentadas, do outro, mulheres pobres viam na prostituição uma forma de ganhar dinheiro, uma atividade complementar. Tudo isso se passa no contexto do rápido povoamento dos sertões pelas pessoas que, com facilidade, eram transformadas em ricos por meio do ouro. As vendas eram parte de uma economia de abastecimento. Nelas podiam ser encontrados produtos alimentícios. Lá eram lugares também considerados de “perigo social” e 32 “suposta imoralidade”, uma vez que se assemelhavam a alcovas. O secretário do governo de Minas, Manuel Afonseca de Azevedo, preparou uma longa representação tratando desse assunto e encaminhou-a ao rei, em 1732. Os moradores, em grande número, têm casas de venda de comer e beber, onde põem negras suas para convidarem os negros a comprarem [...]. Muitas vezes sucedem retirarem-se os senhores das casas das vendas, dando os passeios [...] para darem lugar a que as negras fiquem mais desembaraçadas para o uso de seus apetites (PRIORE, 2010. p. 150) Como se pode ver, essa atividade muitas vezes era apoiada pelos patrões. Luiza Pinta, exemplo trazido no livro Histórias das Mulheres no Brasil, era dona de uma venda, Vila Rica. Ela permitia que ali sua escrava Antonia se prostituísse. O livro conta que a dona da venda “utilizava o estabelecimento para fins torpes e desonestos” (PRIORE, 2010. p. 151). Nesse período, a prostituição foi amplamente combatida. Um dos frutos dessa atividade que mais preocupavam as autoridades era o aumento do número de enjeitados, que eram responsabilidade dos cofres municipais. Além disso, a prostituição era acusada de aumentar a mestiçagem, que “produziam um desequilíbrio “nas gentes” que parecia ameaçar a precária ordem social” (PRIORE, 2010. p. 165). A prostituição não se restringia às mulheres que trabalhavam nas vendas. Esse ofício era disseminado na cultura popular de Minas Gerais. Os prostíbulos eram conhecidos como “casas de alcouce”. Eles se multiplicavam indiscriminadamente, até próximo de residência de pessoas importantes. Para Caio Prado Jr., a prostituição era um fenômeno de todo o Brasil colonial, por ser “uma espécie de expressão tipicamente feminina da pobreza e da miséria social”. Já Gilberto Freyre, ressalta a crueldade da exploração sexual dessas mulheres, já tão exploradas pela escravidão. Vale ressaltar, que por mais que a prostituição seja um fenômeno presente em todo o Brasil colonial, em Minas Gerais, essa prática atingiu proporções maiores. As exigências burocráticas da Igreja e do Estado para os casamentos legais tornavam o matrimônio oficial quase impossível para a grande parte da população. Além disso, existiam muitos mineradores solitários e que não se fixavam em um local, o que tornava a constituição de família algo difícil. Outra explicação vem dos grandes tributos que a população de Minas 33 era obrigada a pagar. As mulheres que não tinham dinheiro se prostituíam para conseguir verba e, dessa forma, não sofrerem com confiscos, multas ou prisões. Às vezes, essas mulheres trabalhavam no próprio ambiente familiar: Pais consentiam na prostituição de sua prole [...] Muitas viúvas parecem ter trilhado o caminho do meretrício e, assinalando uma embrutecedora realidade criada diante da morte do marido, arrastavam suas filhas consigo (PRIORE, 2010. p. 163). As imigrantes também tiveram a imagem atrelada à prostituição. Por volta de 1900, as polacas, chamadas de “polaquinhas”, viram personagens importantes no Sul do país. Elas iam trabalhar como criadas e tinham algumas regalias. Na literatura, as polacas eram associadas às empregadas domésticas e às prostitutas. Nos jornais, era alvo de comentários preconceituosos: “a volubilidade dos serviçais é problema que preocupa seriamente as donas de casa” (PRIORE, 2010. p.296). As polonesas também tinham as atividades ligadas à prostituição, uma vez que possuíam “valores morais e comportamentos social e sexual bastante diferentes daqueles exigidos às mulheres ‘distintas’” (PRIORE, 2010. p.297). Dando um salto na história do Brasil, do período que vai de 1880 até a Primeira Guerra Mundial, o cenário é de mudanças no país. Os higienistas visavam formar a “mãe burguesa”, a “mãe educadora”. Ela deveria voltar à vida para a maternidade e a família. Era preciso ainda se deixar dominar pelo homem, pois as mulheres eram seres caprichosos. Além disso, era essencial ser doce e frágil, o que servia para mostrar como as mulheres eram inferiores aos homens. Nesse contexto, qual era o espaço destinado às prostitutas e às meretrizes? Elas eram perseguidas e estudadas pelos sanitaristas, espécie de “polícia médica”, que interferiam no “organismo” social, para zelar pela saúde dos cidadãos e da cidade. Eles: investigavam seus hábitos, diagnosticavam sua “doença” e tentam regulamentar a profissão. Em nome do “perigo venero” domesticam a sexualidade feminina. Para os médicos, a mulher pobre que se prostitui se iguala a uma criança selvagem que precisa de proteção superior (PRIORE, 2010. p. 429). No Brasil, a mulher ideal envolvia várias personagens em uma: “a mãe piedosa da Igreja, a mãe-educadora do Estado positivista, a esposa companheira do aparato médicohigienista” (PRIORE, 2010. p.528), todas esses representações sociais desembocavam na 34 pureza sexual. Por isso, a virgindade tinha um enorme valor. Por meio dela era possível conseguir um “bom casamento”, pois a sexualidade feminina era “um tipo de patrimônio familiar”. Uma vez a virgindade perdida, em geral, a “culpa” era da menina que deve arcar com a consequências de tal ato, que caracterizava falta de moral feminina. A mulher que fugia ao padrão era considerada “mulher decaída”, acusada de conseguir dinheiro por meio da prostituição. Vale ressaltar que esse moralismo não combinava com o contexto da época, que, por exemplo, era marcado por concubinagem, não por casamentos. Bastava uma mulher se separar e juntar-se a outro homem para o seu antigo companheiro a rotular de prostituta. “Qualquer mulher que não correspondia à norma ideal era uma ‘rameira’ em potencial” (PRIORE, 2010. p.532). Elas eram caluniadas e depreciadas no tribunal, para perderem o direito de criarem os filhos, deixando essa responsabilidade para os homens. Para as mulheres pobres e sem perspectivas, se não dava para serem santas, a outra opção era ser puta. As alternativas abertas a mulheres de origem humilde e baixo nível de escolaridade não eram particularmente atraentes. Historiadores e antropólogos têm demonstrado repetidamente que, para a mulher jovem e bonita, em tais circunstâncias a prostituição soa como opção nada desprezível (PRIORE, 2010. p. 533). É importante saber que as prostitutas não representavam um grupo à parte da sociedade. Elas eram casadas, amasiadas, mães solteiras e viviam ao lado das mulheres “honestas”. Na verdade elas se localizavam “entre a condenação pela moral burguesa e a tolerância tácita para com um modo de vida que se desviava radicalmente da norma oficial” (PRIORE, 2010. p.534). Além do simples fato de bastar a mulher se separar para ser difamada, outro contexto aproxima o sexo feminino à prostituição: o trabalho. Era frequente a associação da mulher que trabalha à falta de moralidade social. Isso porque o trabalho feminino fora do ambiente do lar podia ser responsável por destruir a família, os laços de afeto ficariam frouxos e as crianças cresceriam sem o olhar das mães, o que resultaria em adultos ruins. As mulheres abandonariam as representações sociais de mães dedicadas e esposas carinhosas. 35 Quando as ideias anarquistas entram no Brasil, novos conceitos de relações são propostos, incluindo a prostituição. O casamento monogâmico e indissolúvel é criticado. O que deve acontecer é a “livre união”, na qual homens e mulheres definiriam livremente o tipo de relação amorosa e sexual que desenvolveriam. A separação era permitida, uma vez que deveria trazer felicidade para ambas as partes. A prostituição, por sua vez, era vista como fruto da exploração capitalista do trabalho, o que fica longe das teorias eugenistas defendidas pela elite que acreditavam que a origem da prostituição estava na constituição biológica da mulher, por conta das “taras hereditárias no sistema nervoso” (PRIORE, 2010. p.598). As ideias anarquistas não esqueciam ainda de abordar a virgindade. Esse grupo político criticava a grande valorização da mesma pela burguesia. Além disso, era reconhecido o direito ao prazer sexual. 3.2.1 Antes do brega, as prostitutas habitaram o samba Segundo Paulo Cesar de Araújo, como já foi dito anteriormente, o brega nasce com influências da Jovem Guarda, do bolero e do samba. Então, levando em conta a influência desse último ritmo sobre o brega, esse tópico trata das prostitutas no samba. Segundo o livro Uma História da Música Popular Brasileira, de Jairo Severiano, o compositor e letrista Noel Rosa, por exemplo, teve a carreira dividida em duas fases. Uma fase tratava de amarguras ligadas ao amor, como o ciúme e a traição. Ela possuía um tom autobiográfico. A outra fase discorria sobre a alegria, eram crônicas do cotidiano que traziam o amor à Vila Isabel e fatos inusitados tratados em tom satírico. O sambista adotava ainda o verso livre de métrica irregular, a paródia e o poema-piada. Um fato curioso é que as letras de Noel trazem os episódios da vida de quem amou várias mulheres ligadas à prostituição. No samba “Dama do Cabaré”, o músico declara amor a uma prostituta e fica triste ao saber do caráter “diplomático” da moça que no fundo não ama ninguém. Nesse contexto duas personagens ganham destaque na discografia de Noel: Júlia Bernardes e Juraci Correia de Morais. Para a dama da noite Júlia Bernardes, o sambista escreveu canções como “Meu Barracão” e “Cor de Cinza”. Em uma noite de São João, no Cabaré Apolo, localizado na Lapa, Noel conheceu Juraci Correia de Morais, a Ceci. Para ela, o sambista escreveu “Último Desejo”. A jovem o conquistou pelo recato, o que a diferenciava 36 das outras amigas de profissão. O romance entre Noel e Ceci foi conturbado, uma vez que o músico tinha crise de ciúmes por conta da profissão da moça. Outra personagem que merece destaque no capítulo da história de música que entrelaça o samba e as prostitutas é a música “Vida de Bailarina”, escrita por Dorival Silva, o Chocolate, e por Américo Seixas. A canção é interpretada por Ângela Maria e traz a outra vertente da prostituição, não é mostrada o amor entre uma “mulher da vida” e um homem, mas sim o que se ouve é a própria prostituta contando sua história: Quem descerrar a cortina/ Da vida da bailarina/ Há de ver cheio de horror⁄ Que no fundo do seu peito/Abriga um sonho desfeito/ Ou a desgraça de um amor Os que compram o desejo/ Pagando amor a varejo/Vão falando sem saber⁄ Que ela é forçada a enganar/ não vivendo pra dançar, mas dançando pra viver/ Obrigada pelo ofício a bailar dentro do vício Como um lírio em lamaçal/ É uma sereia vadia/ Prepara em noites de orgia/ O seu drama passional / Fingindo sempre que gosta/ De ficar a noite exposta Sem escolher o seu par/ Vive uma vida de louca/ Com um sorriso na boca/ E uma lágrima no olhar 3.2.2 Prostitutas no brega As prostitutas são personagens recorrentes na música brega. Para Paulo Cesar de Araújo, escritor do livro Eu não sou cachorro, não, existe uma grande diferença entre as prostitutas retratadas pela música “cafona” e pelo samba, que vimos anteriormente. Para ele, esse último trata as mulheres com um certo status, no contexto da Lapa boêmia frequentada por artistas e intelectuais. Já as prostitutas da música brega são mulheres solitárias e sem status algum. Segundo o autor, “esta recorrência ao tema da prostituição feminina no repertório ‘cafona’ se dá em grande parte em virtude da proximidade desses compositores com o universo da noite” (ARAÚJO, 2005, p. 151). 37 Odair José, por exemplo, conta que conhecia de perto o universo da prostituição. A primeira esposa de Waldik Soriano se apresentava em um cabaré de Belém do Pára. “Mesmo sabendo tratar-se de uma prostituta. Porém, com meu amor não tem preconceito, amei Maria José, a Zelita, até o fim de sua vida”, conta o músico no livro de Paulo Cesar de Araújo. Nelson Ned se envolveu com prostitutas e para elas escreveu algumas músicas, como “Quando Eu Estiver Chorando”. Como mostra o livro livro Eu não sou cachorro, não, alguns exemplos de importante músicas bregas com tema da prostituição são: “Secretária da Beira do Cais” (César Sampaio), “Dama da Noite” (Patrick), “Menina da Calçada” (Fernando Mendes), “Flor da noite” (Totó- McDonald), “Menina da noite” (Claudio Fontana), “Mulher de Ninguém” (Antonio Carlos e Othon Russo), “Maria Pureza” (Sobreira- Da Costa) e “Maria Esperança” (Lindomar Castilho). 3.3 LEVIANAS, AS MULHERES QUE TRAEM Nelson Rodrigues tem uma frase famosa: “Tudo passa, menos a adúltera. Nos botecos e nos velórios, na esquina e nas farmácias, há sempre alguém falando nas senhores que traem. O amor bem-sucedido não interessa a ninguém”. Trazendo essa inquietude de querer saber mais sobre a traição, chega-se a pergunta: quem são as mulheres adulteras que constroem as histórias contadas nas músicas bregas? A pergunta é mote para um estudo da traição, mais que isso, uma análise das representações sociais que ligam as mulheres a tal ato. Pela etimologia da palavra “traição”, segundo Philippe Ariès, autor do livro Sexualidade Ocidentais, sugere uma ideia de “alteração”, não de relação sexual. Algo como se a adúltera mudasse a ordem “certa” dos relacionamentos, no caso, caracterizado por ter apenas um parceiro. A fidelidade passa a importar nos relacionamentos quando as pessoas decidem se juntar para obter prazer e satisfação. Antes os casamentos, segundo Bassanezi (1997), existiam por questões econômicas e por status. Nessa época, a traição masculina era tolerada, era uma forma de satisfazer os desejos sexuais. 3.3.1 Introdução ao mundo do adultério No artigo “O combate da castidade”, presente no livro Sexualidades Ocidentais, de Philippe Ariès e André Béjin, Michel Foucault comenta que o adultério faz parte da 38 trilogia dos pecados da carne que são: o adultério, responsável por desobedecer a fidelidade da união conjugal, a fornicação (relações sexuais fora do casamento) e a “corrupção de crianças”, que não fica clara se é exploração sexual ou pedofilia. Foucault apresenta ainda as dicas presentes no Didaché, escritos que defendem as tradições do judaísmo antigo e do cristianismo contemporâneo. “evite conversas obscenas e olhares impudentes, pois tudo isso engendra adultério”. André Béjin, também autor do livro Sexualidade Ocidentais, conceitua o adultério. Para ele, esse ato está ligado ao amor à primeira vista e ao amor fogoso. O autor acredita que o casamento é uma espécie de “porto seguro”, no qual seria mais difícil entregarse as razões apenas do coração, que incluem o adultério. No entanto, o casamento tinha suas regras. Uma delas era manter o decoro. “Manifestar muito livremente seu carinho pela esposa diante de outrem era rebaixá-la ao nível da amante, até da prostituta, e por tanto atentar contra a honra, contra a dignidade dela” (BÉJIN, 1982, p. 188). Por outro lado, o sexo na traição não necessitava de respeito às mulheres. Nele os homens poderiam expor com mais liberdade os seus desejos. O pecado do adultério também aparece em uma lista feita por São Paulo. Nos escritos, ele cita a lista das infrações e as classifica. O adultério é identificado como pecado “contra seu corpo”, que, para São Paulo, é o local sagrado. Por isso, não se possui liberdade para fazer tudo o que se quer com o próprio corpo. Nesse grupo de pecados existem os seguintes delitos: a prostituição, a traição com a mulher de outro homem, finalidades que retardam o coito (como a masturbação, por exemplo) e a homossexualidade. É interessante perceber que a traição, tanto na lista de São Paulo como nas observações de André Béjin, aparece apenas como um ato masculino. Para Philippe Ariès, é como se São Paulo afirmasse que apenas os homens cometessem o pecado do adultério “porque tem o poder e são responsáveis” (ARIÈS, 1982, p. 52). Essa visão não é exclusiva de São Paulo. É muito comum encontrar nos estudos sobre adultério uma visão unilateral, ou seja, que tal ato é exclusivo do gênero masculino. Quando o estudo se propõem a falar de mulheres, é mais comum colocá-las na personagem Outra, o que também caracteriza estereotipar a mulher como ser que não emite a ação, que é trair, mas sim pessoa usada na ação, uma espécie de meio. A explicação para esse preconceito nos estudos pode ter relação com a repressão à sexualidade feminina. 39 Prova dessa repressão é que existem poucas pesquisas voltadas para esse assunto. O que se tem da época do século XVII, na Europa, por exemplo, são diários íntimos de mulheres. Mesmo sendo uma plataforma muito pessoal, as mulheres ainda não escreviam abertamente sobre sexo em seus diários. No entanto, uma coisa é clara: a importância da castidade. Ela devia fazer “parte da essência feminina”. No livro Sexualidade Ocidentais, Angeline Coreau analisa o poema de Lady Carey no qual a autora apresenta a seguinte ideia: uma mulher que deseja “chegar às alturas” almeja um poder masculino, o da ereção. Ou seja, uma mulher não tem o direito de se satisfazer sexualmente, pois isso é um privilégio masculino. Isso não pertence a “esfera feminina”, termo recorrente nos manuais de etiqueta que indicavam o que cabia às mulheres. O que é estudado nessa monografia mostra um contexto bem diferente desse, no qual mulheres não só apresentam uma maior liberdade sexual, como também vão além dos limites propostos pela relação antes considerada indissolúvel, quase como “o que Deus uniu o homem não separa”, e procuram satisfação fora desses relacionamentos. 3.3.2 Breve história da traição no Brasil Antes de analisar as músicas bregas que abordam a temática da traição, é necessário entender o caminho que o adultério percorreu na História do Brasil. Entre os índios, o adultério era fortemente repudiado, como mostra o livro História das Mulheres no Brasil. A mulher que traísse era trucidada ou “abandonada nas mãos dos rapazes”. Se a traição gerasse um filho, a criança deveria ser enterrada viva. No entanto, não existiam castigos para os amantes, porque os índios não deveriam criar inimizades uns com os outros, o que poderia levar a uma guerra interna. É interessante perceber que apesar de todo esse caráter moralista em relação à traição feminina, o mesmo não acontecia com a virgindade. Segundo Jean de Lévy, “é muito raro entre eles que uma jovem se case virgem” (PRIORE, 2010, p. 20). No Brasil Colônia, a diferença entre homens e mulheres continua. Aos maridos, era permitida uma vida mais livre, isso era admitido pelo Estado e pela Igreja. Além disso, os homens tinham o poder sobre suas mulheres, para assegurar-lhes a honra. Quando o marido viajava, por exemplo, ele podia deixar a esposa em uma casa de recolhimento, que podiam ser os conventos. No livro de Mary Del Priore, conta-se o caso de uma senhora que passou 20 40 anos no Recolhimento dos Perdões, porque seu marido viajou a Lisboa e “esqueceu” a esposa lá. O homem sofria com a possibilidade de ser traído, pois caso isso acontecesse, ele seria julgado socialmente como um marido que não satisfez sexualmente a esposa. Pelo menos, aqui já vemos a liberdade da mulher em sentir prazer, ainda que com muitas regras e opressões. Ao homem traído, cabia ainda o direito de matar a mulher e o amante, isso era previsto pela lei, no código penal de 1890, em nome da “legítima defesa da honra”. Muitas tragédias aconteceram, mas o mais comum era a separação (ainda não existia o divórcio legal) ou a mulher passava um período em uma casa de recolhimento. Ou seja, aprisionamento e punição pelo crime do adultério. Em um artigo intitulado de Ser mulher, mãe e pobre, escrito por Cláudia Fonseca, é contada a história de Eutherpe R., mulher de Joaquim de C. Sobrinho. O contexto é a República do Brasil recém consolidada. O marido acusa a esposa de “mulher adúltera”, “mulher desregrada” e “indigna mãe”, uma vez que cometeu “um crime perante a Lei, perante a Sociedade” juntando-se a um “homem perdido em vício, jogos e bebedagem” (PRIORE, 2010, p. 513). A mulher é acusada e humilhada. Cláudia Fonseca analisa a fundo esse caso e mostra que o discurso do marido traído é marcado por palavras empregadas de forma que persuadisse os ouvintes e, dessa forma, mostrasse a culpa da mulher adúltera que pode nem ter cometido, de fato, a traição. Para a autora, o homem do exemplo é um grande “contador de histórias”. Quantas Eutherpes não devem ter existido? E o pior: sendo as vítimas. E quantas ainda não existem? Eutherpe R. ainda é acusada de ser uma “mulher desregrada” e isso é justificado pelo fato dela ter uma patologia. A doença não é citada, mas muitas mulheres foram condenadas por serem histéricas. Era um momento de “disciplinarização dos corpos e mentes”, segundo Magali Engel. Era o momento de medicalização da loucura que passava a ser uma doença mental. O artigo traz o exemplo de M.J., mulher diagnosticada como histérica e com crises epiléticas, que apresentou melhoras no quadro clínico depois de ter casado e mostrado “extrema dedicação ao marido”, o que deixa claro que mulher “normal” é a submissa ao esposo, capaz 41 de anular a própria vida em prol do cônjuge. No entanto, depois M.J. o abandonou e se relacionou com “três homens de classe baixa”. Os médicos ligavam a histeria ao fato das mulheres rejeitarem sexualmente seus maridos e sentirem interesse por outros homens, o que poderia levar ao “abandono do lar”. Isso destruía o papel da mãe zelosa e da esposa carinhosa. A situação de vulnerabilidade social a qual as mulheres eram obrigadas a viver dava margem ainda para a sedução seguida de abandono. Magali Engel, ainda em seu artigo, conta a história de M.F.L. doméstica de 28 anos que foi seduzida e depois abandonada pelo seu amante. A mulher tentou o suicídio e depois apresentou sintomas de histeria. Na década de cinquenta, segundo Carla Bassanezi Pinsky, eram comuns os crimes passionais e os castigos às mulheres adúlteras cometidos pelo maridos traídos. As autoridades perdoavam o criminoso passional. Para as mulheres, sobrava o divórcio, pois se acreditava que elas não seriam boas mães. Já se o marido mostrasse sinais de que estava traindo a esposa, mas não deixasse de sustentar a família, a mulher não deveria fazer nada. A infidelidade masculina era explicada pelo temperamento poligâmico. Toda a raiva que a mulher traída sentisse deveria recair sobre a amante, não sobre o marido que sempre volta. Mais uma vez mulheres, no caso a Outra, são culpabilizadas pela traição masculina. 3.3.3 A traição e o romance na música brega Segundo Carmen Lúcia José, autora já citada nesta monografia e escritora do livro Do Brega ao Emergente, o gênero literário romântico foi “a matriz ou o modelo copiado na composição do discurso musical brega” (JOSE, 2002, p. 94). De fato, a exaltação do amor, seguida dos ônus e bônus desse sentimento, está muito presente na música “cafona”. Carmen Lúcia José ressalta ainda que o romantismo que aparece no século XIX, no Brasil, vem como uma imitação do que era feito na Europa. Em especial, a segunda geração, desiludida com o desenrolar dos movimentos que geraram o romantismo (Revolução Industrial e Revolução Francesa). E, voltando para a música brega, um dos temas que mais abordam as tristezas das canções “cafonas” é a traição, a rejeição da mulher amada, seguida da troca por outro homem. Isso pode ser explicado pela aproximação entre “a composição da poesia romântica e a estrutura de composição do discurso musical brega” (JOSE, 2002, p. 100). Nas duas vertentes 42 artísticas, a arte gira em torno do EU e da forma como ele vê o mundo ao seu redor e sente as experiências vividas. O AMOR aparece nas letras das músicas bregas, e não só nelas, mas em todas as canções de massa, com um conto resumido em fragmentos que dá ao ouvinte a ilusão de ser a sua história de amor. (...) outros aspectos da vida social, das relações pessoais não são assuntos das canções (JOSE, 2002, p. 101). A autora afirma ainda que o valor do amor, estereotipado pela música brega, é colocado num patamar da paixão triste e do ressentimento que são exaltados nas canções. Por isso, as músicas apresentam um teor melancólico, como um desabafo ou uma lamentação. A mulher que trai o homem que canta suas dores foi a semente para esses sofrimentos. Carmen Lúcia José indica fragmentos de clichês amorosos, que servem para a análise de temas recorrentes nas músicas bregas. Abaixo eles serão elencados e citarei músicas em que julgo que estão presentes: 3.3.3.1 A conversa: Os autores das músicas bregas necessitam externar seus sentimentos, suas dores, para isso fazem uso da conversa, é um testemunho do amor, um desabafo de um sentimento contido. Muitas vezes, a figura do garçom aparece como um ouvinte dessas lamentações. O garçom está na música brega atrelado à figura da bebida. O álcool é uma forma de esquecer dores e desilusões, pode ainda liga-se ao personagem traído e curar a chamada ‘Dor de corno’. É uma anestesia para o sofrimento. Uma das explicações para o recorrente uso da figura do bêbado pode ser a mesma da utilização das prostitutas: os músicos pertencem ao universo boêmio, mundo que os fazem conviver com a bebida. Exemplo de música 1: “Garçom! Mas eu!/ Eu só quero chorar/ Eu vou minha conta pagar/ Por isso eu lhe peço atenção...” (“Garçom”, Reginaldo Rossi). Exemplo de música 2: 43 “Garçom, Olhe pelo espelho/ A dama de vermelho/Que vai se levantar/ Note, que até orquestra/ Fica toda em festa/ Quando ela sai para dançar”. Em outro trecho da música: “Garçom, amigo! /Apague a luz da minha mesa/ Eu não quero que ela note /Em mim tanta tristeza”. (“Dama de vermelho”, Reginaldo Rossi). 3.3.3.2 O ausente: Na música brega, o sentimento de ausência é colocado como a falta do objeto amado e, como consequência disso, o autor da canção se sente rejeitado, uma vez que a ausência é a “prova do abandono”. “o EU (o apaixonado) fala de sua dor, de seu sofrimento, de suas lembranças, de suas decisões e do valor do seu amor” (JOSE, 2002, p. 106). A mulher amada pode trair o homem e o abandonar. Exemplo de música 1: “E mais um dia sem você/ Mais uma noite que eu espero” (“Fui Eu”, José Augusto). Exemplo de música 2: “Um amor quando se vai, deixa a marca da paixão” (“Chora Coração”, Wando) 3.3.3.3 O coração: Esse órgão possui caráter simbólico. Ele guarda os sentimentos, sofre com as tristezas e representa o sentimento amoroso. O discurso colocado como do coração pode ainda representar o desejo do autor da música que culpabiliza esse órgão pelo sentimento vivido, uma vez que é simbolicamente colocado como uma parte do corpo movida apenas por sentimentos, ou seja, nada racional. Exemplo de música 1: “Meu coração/ Bobo demais/É um coração coitado/Meu coração/Besta demais/É um coração safado/Chora demais/Sofre demais/Vive atormentado/Gosta do amor/Tem medo do amor/É um coração pirado/Canta, coração/Chora, coração/Pobre coração/Como se perdeu/O amor é muito louco, doido/E eu te avisei” (“Coração Safado”, Reginaldo Rossi). Exemplo de música 2: 44 “Eu tento esquecer, mas não consigo/ Pois esse amor é bem maior que eu/ Viver sozinho assim é um castigo/ Meu bem, meu coração ainda é seu”. (“Meu Coração Ainda É Seu”, Odair José). 3.3.3.4 A dependência: O cantor brega descobre a dependência em relação à pessoa amada quando os dois se separam. Então, o homem é acometido pelo “mal do amor”, ou seja, “o sofrimento do EU com a ausência do OUTRO; o fim do sofrimento é algo que o EU não domina porque sabe que só a pessoa amada pode pôr fim nele” (JOSE, 2002, p. 108). Exemplo de música 1: “Depois que perdi você/ Jamais tive outro alguém/Minha madrugada é fria” (“Não Consigo Te Esquecer”, Amado Batista). Exemplo de música 2: “A minha historia/ Talvez seja igual a sua/ Porque quem ama se habitua/ A sofrer desilusão” (“Taça da Amargura”, Waldick Soriano). 3.3.3.5 A destruição Já que a dependência existe, como viver sem o ser amado? Uma das saídas para isso é a autodestruição, uma vez que é difícil viver com o peso de ter sido abandonado pelo objeto amado. A destruição é apresentada como uma consequência da separação. Exemplo de música 1: “Sinto que eu vou morrer/De tanta solidão/De tanta tristeza/De tanta paixão/Da tremenda falta/Que você me faz/Corre, volta bem depressa/Volta, meu amor!/Vem curar/As dores desse sofredor/Que vai pouco a pouco/Morrendo de amor” (“Morrendo de Amor”, Reginaldo Rossi). Exemplo de música 2: “Oi, vem me devolver/ O gosto de viver/ Sem você, meu amor/ Eu juro que eu não sinto nada” (“Tão Sofrido (Triste Pena)”, Reginaldo Rossi). 45 3.3.3.6 A espera A espera na música brega é caracterizada pela espécie de resolução do conflito amoroso que separou o casal. A mulher amada voltaria e o EU teria a reconstrução da sua felicidade. Exemplo de música 1: “Mas o tempo vai te convencer/ E um dia vai reconhecer/ Que sem mim não pode mais viver” (“Fui Eu”, José Augusto). Exemplo de música 2: “Quando você quiser voltar/ Estou a lhe esperar/ Com todo um grande amor” (“Quando Você Foi Embora”, Reginaldo Rossi). 3.3.3.7 Os objetos, as recordações e o saudosismo Os objetos tocados ou usados pela mulher amada viram referência desse ser. As referências podem ser ainda ligadas a recordações de experiências vividas ou o saudosismo em relação a um lugar. Exemplo de música 1: “Eu me sento na varanda do quintal/Pra lembrar do tempo que passou/Uma vida onde sonhos eu vivi/Tanta coisa que eu ainda não esqueci Eu agora vejo tudo diferente/Eu agora simplesmente posso recordar/Esse mundo é passado, não mais existe/Eu fico triste que vontade de chorar” (“Lembranças”, Odair José). Exemplo de música 2: “Lembro com muita saudade/Daquele bailinho/Onde a gente dançava/Bem agarradinho/Onde a gente ía mesmo/É prá se abraçar...” (“A Raposa e as Uvas”, Reginaldo Rossi) Vale destacar que nesta música Reginaldo Rossi canta os objetos que remetem a mulher amada e ao tempo passado. O laquê no cabelo, o vestido rodado, a lambreta, os perfumes usados, além, claro, dos costumes da época (o patriarcalismo seguido dos fortes valores morais). 46 3.3.3.8 A solidão O cantor brega apresenta a seguinte situação: ele não está com a mulher amada, por isso, se sente só e por esse motivo também acredita não ter ninguém mais na vida. Diante dessa situação, o personagem pode apresentar o “mal de amor”, ou seja, “um amor suspenso”, naquele momento ele não existe. Os personagens podem estar separados ou o próprio amor pode não existir. Exemplo de música 1: “Às vezes eu me lembro das coisas que a gente fazia/Nosso amor era grande só existia um caminho/ Um dia sem dizer a razão, você foi embora” ( “Que Saudade de Você”, Odair José). Exemplo de música 2: “você plantou e agora vai colher/ prefiro a solidão/ eu lavo as minhas mãos/ vou refazer a vida, adeus” (“Cada Um Por Si”, Wando). 47 4. ANÁLISE DAS MÚSICAS BREGAS 4.1 INSTÂNCIAS CONTEXTUAIS DA CANÇÃO Inicialmente, serão trabalhadas as instâncias contextuais propostas por Marcos Napolitano. Em seguida, serão analisadas as músicas “Vou Tirar Você Desse lugar”, de Odair José, “Secretária da Beira do Cais”, de César Sampaio, “Menina da Calçada”, de Fernando Mendes, “O Dia do Corno”, de Reginaldo Rossi, “Lua de Mel”, também de Reginaldo Rossi, e “Eu Lhe Peguei no Flagra”, de Genival Santos. Depois da análise das músicas, será o momento de discutir as canções à luz dos conceitos teóricos ligados às representações sociais. Por fim, serão apresentadas as considerações finais sobre essa monografia. Marcos Napolitano, no livro História & Música: história cultural da música popular, explica que na análise de canções é importante estudar também o “contexto”, não só o “texto”. O grande desafio de todo pesquisador em música popular é mapear as camadas de sentido embutidas numa obra musical, bem como suas formas de inserção na sociedade e na história, evitando, ao mesmo tempo, as simplificações e mecanismos analíticos que podem deturpar a natureza polissêmica (que possui vários sentidos) e complexa de qualquer documento de natureza estática (NAPOLITANO, 2002, p. 7879) Ainda segundo Marcos Napolitano, existem quatro instâncias de análise contextual. São elas: criação, produção, circulação e recepção/apropriação. Elas estão ligadas ao pólo “contextual”. Por meio delas, o pesquisador deve “traçar o mapa dos circuitos socioculturais e das recepções e apropriações da música” (NAPOLITANO, 2002, p. 101). Essas instâncias serão analisadas abaixo tendo como objeto de estudo a música brega. 4.1.1 Criação Para Marcos Napolitano, “a canção é produto de uma subjetividade artística” (NAPOLITANO, 2002, p. 100). As músicas apresentam tradição estética, formação cultural, singularidades biográfica e psicológica, colocação social e simbólica no tempo. Por isso, em uma análise, é necessário o estudo do universo referencial. No caso da música brega, será 48 observado o contexto em que essa vertente musical se desenvolveu. Isso ajudará a entender as letras. No primeiro capítulo, o tópico “A música brega despida de preconceitos”, já foi explorada a história das canções “cafonas”. Sabe-se que esse estilo musical nasceu na década de 60, com influências da Jovem Guarda, do bolero e do samba-canção. Nessa mesma época, o Brasil passa a ser governado por militares, foi o chamado golpe militar (1964-1985). As produções culturais sofriam repressão e censura, quando iam de encontro às ideias defendidas pelos novos governantes do país. Eles defendiam os “bons costumes” e se baseavam em slogans e lemas como “Milagre Econômico”, “Brasil, ame-o ou deixe-o” e “Você precisa acreditar”. Nesse contexto, alguns cantores bregas sofreram censura e já outros, em contrapartida, foram esquecidos pela ditadura, por acreditarem que esse tipo de música não protesta contra situação política. Para Paulo Cesar de Araújo, “o ceticismo e a melancolia do repertório ‘cafona’ acabam por adquirir, mesmo que não intencionalmente, um caráter transgressor e de resistência ― principalmente quando a tristeza vinha associada às questões sociais do país” (JOSÉ, 2002, p. 265). A canção “Eu não sou cachorro, não”, por exemplo, inserida no contexto autoritário e excludente da sociedade brasileira, acaba ganhando outro sentido e conotação, segundo Paulo Cesar de Araújo. Para ele, poderiam ser trabalhadores massacrados cantando: “eu não sou cachorro, não/ para ser tão humilhado”. Essa nova interpretação foi proposta pela primeira vez por alunos de curso de Comunicação da PUC de Belo Horizonte, em 1973. Artistas populares como Luiz Ayrão, Benito di Paula e Wando, por exemplo, fizeram letras com críticas à situação do pais, mas a censura deixou passar, porque esses não eram cantores da MPB e, por isso, “não seriam capazes de refletir e criticar” (JOSÉ, 2002, p. 127). Na música de 1977, “Presidente da favela”, por exemplo,Wando conta a história de uma comunidade que hoje oferece melhores condições para seus moradores por conta do trabalho de um líder comunitário. A música cheia de reflexões sociais passou despercebida pela censura. Odair José foge à regra. Ele não passou impune pela censura. Depois de escrever “Vou tirar você desse lugar”, a ditadura passou a prestar mais atenção no cantor. Ele devia 49 enviar suas composições para a Divisão de Censura. Suas letras eram acusadas de ferirem “a moral e os bons costumes”, segundo Assunção e Bonfim (2011). 4.1.2 Produção Para Marcos Napolitano, a canção passa pela leitura, ou seja, a interpretação do cantor e passa também por um tratamento técnico “lastreado por uma tecnologia de registro e suporte sonoro historicamente determinado. Esta cadeia tecno-industrial, por sua vez, acaba interferindo no próprio ato do criador e do interprete” (NAPOLITANO, 2002, p. 69). No caso da música brega, esse processo de criação dos artistas “cafonas” foi influenciado pelo contexto musical da época, ou seja, pelo crescimento da indústria fonográfica. Entre 1970 e 1976, essa indústria cresceu 1.375% em faturamento, no Brasil. Nessa época, as vendas de LPs e de compactos aumentaram de 25 milhões de unidades por ano para 66 milhões de unidades. O consumo de toca-discos, entre 1967 e 1980, cresceu em 813%. Isso rendeu ao Brasil o quinto lugar no mercado mundial de discos, conta Paulo César de Araujo. Muitos discos foram gravados nesse período. Eram sambas, boleros e baladas. 4.1.3 Circulação Segundo Marcos Napolitano, a circulação é “complexa, entrecruzada e costuma caracterizar um determinado hábito musical ou uma forma social e histórica de escuta” (NAPOLITANO, 2002, p. 101). No contexto da música “cafona”, a circulação dos artistas teve uma ajuda dos programas de auditório, de acordo com Antônio Carlos Cabrera, autor do livro Almanaque da música brega. Almoços com as Estrelas e Clube dos Artistas eram apresentados por Airton Rodrigues e Silva Gonçalves Rodrigues Leite, a Lolita Rodrigues. Esses eram dois importantes programas que mostravam para o resto do pais, não só eixo Rio―São Paulo, o que fazia sucesso. Silvio Santos também foi importante para a divulgação dos cantores nacionais. Entre seus programas e seus quadros estavam: Os Gãlas Cantam e Dançam (quadro exibido dentro do Programa Silvio Santos na década de 70), Música É Alegria (primeiro programa de Silvio na TV), Qual é a música (gincana musical), Show de Calouros 50 (sempre com a participação de um cantor já consagrado) e Rei Majestade (onde apareciam cantores já afastados da mídia). 4.1.4 Recepção/apropriação Recepção e apropriação não significam a mesma coisa, mas Marcos Napolitano mantém as duas juntas para efeito didático. No entanto, as duas relacionam-se com as formas de recepção das canções, o que pode ter muitas variantes: “grupo ou classe social; poder aquisitivo; faixa etária, gênero sexual; escolaridade; preferências ideológicas e culturais” (NAPOLITANO, 2002, p. 103). Na década de 70, artistas como Chico Buarque, Elis Regina, Gilberto Gil e Milton Nascimento, em discos como "Sinal fechado", “Falso Brilhante” e "Clube da Esquina", faziam sucesso. No entanto, eram consumidos por um público mais restrito, a classe média. Isso reforça a ideia preconceituosa de que a música brega era consumida por quem possuía menos estudo e menor poder aquisitivo. Rótulo que permanece até os dias de hoje, ainda que o brega tenha ganhado status de cult, como já foi comentado. De acordo com Paulo César de Araújo (2003), enquanto a vertente da tradição faz uma “defesa intransigente de uma música popular brasileira ‘autêntica’, ‘pura’” (2003; p. 339); a vertente da modernidade entende “os compositores modernos como aqueles que deram um passo à frente” (2003; p. 343). Acredita-se que “são exatamente todos estes artistas ― os da tradição e os da modernidade ― que hoje formam aquilo que o público qualifica de MPB” (2003; p.343); já “nomes como Nelson Ned, Agnaldo Timóteo estão muito longe de qualquer coisa do que se considera tradição ou modernidade” (2003; p. 344). Isso explica a difícil classificação da música brega, quanto à temporalidade, o que acaba se tornando motivo para descriminar esse estilo musical, o que já foi abordado anteriormente. No entanto, mesmo com essas formas negativas de categorizar a música brega, ela é responsável por auxiliar a definir as identidades culturais brasileiras. Isso acontece porque a cultura é plural, o que permite pensamentos diversos sobre um mesmo assunto. Enquanto os críticos e as classes intelectuais criminalizam a música brega, o público a utiliza como forma de definir identidades culturais. Essa dupla função só é permitida porque, segundo Alfredo Bosi: 51 Não existe uma cultura brasileira homogênea, matriz dos nossos comportamentos e dos nossos discursos. Ao contrário: a admissão do seu caráter plural é um passo decisivo para compreendê-la como “efeito de sentimento”, resultado de um processo de múltiplas interações e oposições no tempo e no espaço (BOSI, 2003, p. 7) Nos últimos anos, a música brega sofreu algumas mudanças no seu processo de aceitação pelo público e pela crítica. Algo semelhante ao que aconteceu ao samba, segundo Vinícius Souza, mestre pela Universidade Federal da Bahia com o Projeto de Investigação Brega: música em transformação. Para ele, esse ritmo foi alvo de preconceitos intelectuais, nas décadas anteriores, mas foi passando por transformações, até virar um símbolo nacional. O samba foi se expandindo para os lugares frequentados pela classe média carioca, dessa forma, foi perdendo o que era considerado rusticidade e ganhando intelectualização. Em relação à música brega, alguns exemplos mostram essa maior aceitação que aconteceu nos últimos anos. Carlos Bonfim (2005) percebe um fenômeno que ele intitula de “revisão nos estereótipos construídos historicamente”. Esse conceito denomina o que acontece quando músicas antes cantadas por artistas considerados bregas, como Márcio Greyck, Lílian e Reginaldo Rossi, passam a ser interpretadas por cantores que não recebem essa intitulação, como Lenine, Zeca Baleiro, Mundo Livre, Otto, Caetano Veloso, Adriana Calcanhoto e Chico César. Outro exemplo é o caso de Odair José. O cantor foi intitulado pela crítica de forma pejorativa como “Cantor das empregadas” e “Bob Dylan da Central”, uma vez que o seu público-alvo eram pessoas de classes com menor poder aquisitivo. No entanto, a biografia de Odair José escrita por Paulo César de Araújo em seu livro Eu não sou cachorro não e o CD Vou Tirar Você Desse Lugar -- Tributo a Odair José em sua homenagem, com participação de Paulo Miklos, Pato Fu, Zeca Baleiro, Mombojó, Mundo Livre S/A, dentre outros, fizeram com que o cantor brega passasse a ser mais aceito pelo grupo que não era o público-alvo anterior. Ter a biografia contada no livro Eu não sou cachorro, não e a música Você não me ensinou a te esquecer interpretada por Caetano Veloso também ajudaram o músico 52 Fernando Mendes a ser aceito. Em entrevista para o site da Musizcity (2008), o artista confessou ter sentido dificuldades para participar de alguns programas de televisão, mas com a ajuda do livro e da música gravada por Caetano Veloso ele diz que passou a ser encarado de outra forma. Isso rendeu prêmios importantes, entre eles a indicação para o Gremmy Latino 2004. Uma nova fase na carreira do cantor começou e ele chegou a propor o lançamento de um DVD em que cantores da MPB interpretariam suas músicas. Waldick Soriano é outro exemplo. Além da biografia, também, pesquisada pelo livro Eu não sou cachorro, não, o artista foi tema de um documentário feito por Patrícia Pillar intitulado Waldick - sempre no meu coração. O cantor teve ainda um show ao vivo também dirigido pela atriz e lançado em forma de DVD pela Som Livre. Esses projetos foram transformando o artista, antes vítima de ostracismo, em músico cult. Além disso, essas novas versões para a música “cafona” mostram que o que torna uma canção brega não é a melodia ou a letra, que não muda nessas releituras, mas a performance de quem a interpreta. Segundo Marcos Napolitano, a “letra” carrega os parâmetros poéticos (mote, “eu poético”, desenvolvimento da história narrada, intertextualidade literária, tipos de rimas e formas poéticas, figuras e gêneros de linguagem) e a “música” traz os parâmetros musicais (melodia, arranjo, andamento, vocalização, gênero musical, intertextualidade musical, “efeitos” eletroacústicos e tratamento técnico de estúdio) (NAPOLITANO, 2002. P. 99-100) Por mais que esses projetos, que fazem esse estilo de música ser mais aceito, tragam inovações, a essência ainda é da música brega: Sempre que uma inovação penetra a cultura popular, ela vem de algum modo traduzida e transposta para velhos padrões de percepção e sentimento já interiorizado e tornados como uma segunda natureza. De resto, a condição material de sobrevivência das práticas populares é o seu enraizamento (BOSI, 2003, P. 11) Agora, com um contexto em que o brega passa a ser mais aceito, essa vertente musical convive com uma dicotomia: ora é atacado e considerado uma mercadoria de mau gosto, ora é endeusado por ser considerado algo cult. Quando essa última situação acontece, é possível até ver indivíduos diferentes do público-alvo que a música brega possui consumindo essa mercadoria. Para Carmen Lucia José, existem dois momentos de consumo do brega. Primeiro, quando essa mercadoria é ligada a algo de mau gosto, uma vez que tem relação com 53 o proletariado. Ressalvo que não concordo com essa colocação. O segundo momento, quando o brega se torna mercadoria cultural. Nesse último, o consumo desse objeto pode ser feito por qualquer segmento social. No entanto, vale lembrar que os preconceitos existem mesmo com a maior aceitação. É importante ressaltar ainda que o gosto popular pelas músicas tidas como bregas pode ser considerado uma herança melancólica portuguesa, em que o amor associa-se à dor, o que pode ser visto no fado, que é “o gênero musical que melhor representaria essa tendência cultural para o saudosismo piegas do povo português, o brega seria o representante luso desse pieguismo” (COELHO, 1986 apud ARAUJO, 2002, p. 259). O brasileiro é naturalmente triste, porque tristes são as três raças que contribuíram para a nossa formação. O português é nostálgico como a lânguida toada dos seus fados; o africano é um abatido, suas revoltas são gritos de dor contra as agruras do exílio em que o puseram; e o índio é um sofredor, tem na alma a resignada queixa dos rios e o murmúrio das selvas silenciosas (CARVLHO, 1984 apud ARAUJO, p. 259). No contexto atual, existem bandas que utilizam referencias da música brega, para compor seu estilo. A banda de Goiânia, Pedra Letícia, por exemplo, surgiu em 2005. Os músicos tocam rock, com letras que prezam pelo lado cômico, sendo classificados como bregas. Os temas tratados nas canções, no geral, são os mesmos de muitas baladas românticas bregas, as dificuldades enfrentadas em relacionamentos amorosos. “Confesso Eu Sou Cafajeste”, “Pega uma Baranga”, “Como Que Ocê Pôde Abandoná Eu” e “Eu Não Toco Raul” são algumas músicas do grupo. No Ceará, uma banda que também se destaca é a Leite de Rosas e os Alfazemas. A banda é cover, ou seja, não possuem canções autorais, nos shows, cantam músicas de artistas já consagrados. A banda faz ainda versões bregas de músicas famosas da MPB. Outros elementos característicos do estilo brega são usados pelos músicos, como por exemplo, o vestuário, que é composto por roupas exageradamente coloridas e acessórios considerados como fora de moda. No entanto, o brega não é só música. Ele é também comportamento. Para Carmen Lucia José: 54 O comportamento brega pode ser visto como um ajustamento que esses sujeitos fazem, com base em escolhas amplamente pessoais, diante de um mundo de objetos atraente, sedutores, que, nas palavras de Jean Baudrillard, atuam sobre impulsos primitivos, antipatias e aversões tradicionais (JOSÉ, 2002, p. 79). A autora ainda afirma que o universo brega, composto por objetos, textos e comportamentos, acaba tornando-se referência para as populações de baixo poder aquisitivo. Vale lembrar que essa ligação do brega com as classes baixas não pode servir de pretexto para classificar essa vertente cultural como de baixa qualidade. Carmen Lucia José acredita ainda que a aquisição das mercadorias brega significa o consumo do “espetáculo que expõe/impõe a tradição como valor positivo” (2002, p. 25). Vale lembrar que as mercadorias bregas também são consumidas por segmentos sociais distintos do público-alvo que as caracteriza. Carmen Lucia José compara isso ao consumo de artesanatos. É como se o valor da cultura se transformasse em adorno. A cultura popular empresta seus elementos ou seus objetos, os quais são deslocados da sua função e do seu grupo social característico virando uma mercadoria diferente. Em resumo, o brega é uma maneira de selecionar e relacionar objetos e signos disponíveis para o consumo, além de ser um conteúdo único e uma forma de fazer uma analogia com a classe que escolheu comprá-lo. Esse paralelo é feito pelo fato de ao adquirir um objeto brega, deseja-se parecer com determinada classe. Esse conceito aproxima-se do kitsch, uma vez que o consumo do kitsch carrega o desejo de parecer com a burguesia. O brega é ainda um comportamento massificado do consumo, também segundo Carmen Lucia José. O consumidor é um receptor de informações, às quais ele responde comprando ou não uma mercadoria. A hipótese utilizada traz uma dialética entre a mercadoria e o consumo, “na medida em que a primeira significa o segundo, ao mesmo tempo em que o segundo ocupa uma posição social determinada pelo primeiro” (JOSÉ, 2002, p. 14). Essa dialética permite pensar quais são os objetos rotulados como bregas e como se caracteriza o grupo de pessoas que adquirem esses produtos. No consumo, a divulgação ganha um papel de destaque. Ela funciona a partir da redundância, que expõe um modelo até obter a certeza que ele “tenha sido interiorizado pelo 55 conjunto social e, assim, passe a se constituir como uma forma, um espelho” (JOSÉ, 2002, p. 15). Os objetos são expostos, aprovados e desaprovados, ou seja, consumidos ou não. 4.2 ANÁLISE DAS MÚSICAS Outros conceitos de Marcos Napolitano, agora tratando-se de “letra” e de “música”, no livro História & Música: história cultural da música popular, servem de mote para a análise das canções bregas. As músicas estudadas são: “Vou Tirar Você Desse lugar”, de Odair José, “Secretária da Beira do Cais”, de César Sampaio, “Menina da Calçada”, de Fernando Mendes, “O Dia do Corno”, de Reginaldo Rossi, “Lua de Mel”, também de Reginaldo Rossi, e “Eu Lhe Peguei no Flagra”, de Genival Santos. Em relação aos estudos de Marcos Napolitano, existem os parâmetros poéticos, que são ligados à “letra”: mote (tema geral da canção), identificação do “eu poético” (“quem” fala por meio da “letra” da música) e seus possíveis interlocutores (“para quem” se fala através da música), tipos de rimas e formas poéticas, ocorrência de figuras, gêneros literários ou intertextualidade literária (citação de outros textos literários ou discursos). Existe ainda o conceito de desenvolvimento, que não será usado na análise dessa monografia. Ele refere-se a qual fábula é narrada, quais imagens poéticas são utilizadas, além de quais o léxico e sintaxe são predominantes. Já sobre os parâmetros musicais, ou seja, os conceitos de avaliação ligados à “música”, são eles: melodia (pontos de tensão/repouso melódico; clima predominante, ou seja, se é alegre ou triste, por exemplo), andamento (rápido ou lento), vocalização (tipos e efeitos da interpretação vocal) e ocorrência de intertextualidade musical (citação de partes de outras obras ou gêneros musicais). Parâmetros como arranjo, gênero musical, além de efeitos eletro-acústicos e tratamento técnico de estúdio não serão levados em conta na análise das músicas dessa monografia. Fatores, como por exemplo, qual versão da música será analisada e história do interprete também são levados em conta. Marcos Napolitano propõe ainda um questionamento: “a prática musical provoca debates?”, que também é usado como mote da 56 discussão sobre as músicas. Por último, existem as classificações relacionadas aos valores comunicativos: Valores comunicativos: a música diz alguma coisa, similar às funções emotiva e referencial de R. Jakobson. Valores rituais: criação de solidariedade, consciência dos problemas cotidianos etc.. Função fática. Valores técnicos: explicitam como a música é feita, tornam familiar seus códigos, normas e fórmulas. Função metalingüística. Valores eróticos: música envolve, energiza e estrutura o corpo, sua superfície, músculos, gestos e desejos. Função conativa. Valores políticos: podem ser expressão de identidade (opositora ao sistema) ou de protesto, estrito senso (denúncia de algo). No primeiro caso, função fática. No segundo, emotiva e referencial. (NAPOLITANO, 2002, p. 104 e 105) 4.2.1 “Vou Tirar Você Desse lugar”, Odair José Olha... A primeira vez que eu estive aqui/Foi só pra me distrair /Eu vim em busca do amor/ Olha... /Foi então que eu te conheci/Naquela noite fria/ Em seus braços/meus problemas esqueci/ Olha... / A segunda vez que eu estive aqui/ Já não foi pra distrair/ Eu senti saudade de você Olha... / Eu precisei do seu carinho/ Pois eu me sentia tão sozinho/ Já não podia mais lhe esquecer/Eu vou tirar você desse lugar/ Eu vou levar você pra ficar comigo/E não interessa/ O que os outros vão pensar/ Eu vou tirar você desse lugar/Eu vou levar você pra ficar comigo/ E não interessa/O que os outros vão pensar Eu sei... / Que você tem medo de não dar certo/ Pensa que o passado vai estar sempre perto/ E que um dia eu posso me arrepender/ Eu quero/ Que você não pense nada triste/ Pois quando o amor existe/ Não existe tempo pra sofrer Eu vou tirar você desse lugar/ Eu vou levar você pra ficar comigo/ E não interessa/ O que os outros vão pensar/ Eu vou tirar você desse lugar/ Eu vou levar você pra ficar comigo/ E não interessa/ O que os outros vão pensar/ Eu vou tirar você desse lugar 57 A primeira música a ser analisada é uma versão de 1972 de “Vou Tirar Você Desse lugar”, Odair José. Essa canção foi escolhida para ser estudada porque, segundo Paulo Cesar de Araújo, “a temática da prostituição feminina foi incorporada ao repertório “cafona” a partir de 1972, quando Odair José alcançou grande sucesso com a balada Vou Tirar Você Desse lugar” (ARAÚJO, 2002, p. 149). Antes de analisar a canção, é necessário conhecer a história do compositor e intérprete. Odair José nasceu em Morrinhos, em Goiás. Na infância aprendeu a tocar violão, piano e gaita. Na adolescência, formou uma dupla de sertanejo com o amigo chamado Demetrius. O colega faleceu logo depois da criação do dueto, vítima de uma reação alérgica. Quando completou 18 anos, Odair José mudou-se para o Rio de Janeiro. Sem dinheiro, o músico dormia na rua e chegou a trabalhar em “inferninhos e boates ‘barrapesadas’”, como intitula Antonio Carlos Cabrera. Mas foi graças a essa vivência na noite que Odair lapidou um estilo de cantar único e marcante. Especializou-se em narrar as mazelas dos mais desafortunados, como as empregadas domésticas, operários, deprimidos e apaixonados. Foi maldosamente apelidado de “terror das empregadas domésticas”, por ter nesse público muita aceitação. Chegou a participar de dois shows um no Rio de Janeiro e outro em São Paulo, em apoio à regulamentação da profissão dessa categoria (CABRERA, 2007. p. 91) O talento de Odair José também foi reconhecido por outros artistas. No camarim de um show, Dorival Caymmi disse: ”Odair, eu sou apaixonado por aquela sua canção que diz ‘vou tirar você desse lugar’. De todos nós compositores, você foi quem melhor descreveu a história da puta” (ARAÚJO, 2002, p. 149). No entanto, a história que inspirou essa canção não fala de prostitutas nem mesmo bordéis. Segundo Paulo Cesar de Araujo, a letra faz referência à gravadora CBS, onde Odair estava antes de trabalhar na Phonogram. Naquele primeiro semestre de 1972 o cantor vivia o limite do desgaste de relacionamento com os dirigentes da gravadora e o ambiente de trabalho tornava-se para ele cada dia mais insuportável. A ideia da canção surgiu nesse contexto. (ARAÚJO, 2002, p. 150). 58 Em entrevista a Paulo Cesar de Araujo, Odair contou que um dia saiu da gravadora aborrecido e cantou para si mesmo “eu vou tirar você desse lugar”. Ao chegar em casa, começou a trabalhar nos versos e na melodia tentando relacionar o problema da gravadora com o tempo em que atuava como cantor na noite. Então surgiu “Vou Tirar Você Desse lugar”. Como foi mostrado, a letra e a performance partem do mesmo artista, Odair José. O mote geral é a história de um homem que se apaixona por uma prostituta e quer tirá-la desse emprego. Odair José representa o “eu poético” desse homem enamorado e o interlocutor é o ser amado, a garota de programa. Em relação às rimas, Odair opta por usar versos seguidos que terminam com palavras rimadas, por exemplo: “Eu precisei do seu carinho / Pois eu me sentia tão sozinho”, “O que os outros vão pensar/ Eu vou tirar você desse lugar”, “Que você tem medo de não dar certo / Pensa que o passado vai estar sempre perto ”e “Que você não pense nada triste/ Pois quando o amor existe”. As rimas são externas, uma vez que acontecem no final dos versos. Já em relação aos parâmetros musicais também propostos por Marcos Napolitano, o clima predominante é calmo, com andamento lento, e até um pouco triste, no entanto, o refrão é um pouco mais vibrante que o resto da canção. É no refrão também que a interpretação vocal de Odair José ganha mais força. Por conta da temática abordada nessa música, ou seja, a prostituição, e nas outras duas canções que serão analisadas (“Secretária da Beira do Cais”, César Sampaio; e “Menina da Calçada”, Fernando Mendes), elas provocam debates. Isso está ligado à forma de avaliar e analisar a eficácia política da música proposto por Richard Middeton (MIDDLETON, 1990 apud NAPOLITANO, 2002, p. 103). No caso dessa primeira canção estudada, “Vou Tirar Você Desse Lugar”, a discussão gira em torno do amor entre pessoas de mundos diferentes, preconceitos em relação à profissão de prostituta, a dicotomia entre amor e sexo, além de falar sobre solidão e carência, uma vez que aponta o fato do “eu poético” precisar pagar por amor indo a um prostíbulo. A música tem portanto valores rituais e função fática, ou seja, atuam na “criação de solidariedade, consciência dos problemas cotidianos etc.”. (NAPOLITANO, 2002, P. 105). Além de apresentar a função emotiva, essa função refere-se ao estado emocional de quem interpreta as músicas. 59 4.2.2 “Secretária da Beira do Cais”, César Sampaio Ela espera e não desespera na beira do cais/ Ela quer quem vier, quem trouxer, quem der mais/ Ela sabe que os homens de branco estão pra chegar/ E em câmara lenta ela tenta a vida ganhar Seu olhar inquieto vacila em qualquer direção/ O seu corpo empinado desfila na escuridão/ Ela é uma estrela que brilha na vida que traz/ Ela é a mulher maravilha da beira do cais Fim de mês é a hora e a vez de rever os parentes/ Ela vai levando nas mãos milhões em presentes/ Num instante se torna a mocinha do interior/ Num alguém com a pureza de quem nunca teve um amor Como vai pergunta o pai a filha querida/ Ele quer saber como é que está sua vida Ela diz que é muito feliz na vida que traz/ Que trabalha como secretária da beira do cais (4x) A segunda música escolhida para ser analisada é “Secretária da Beira do Cais”, versão gravada em 1975, escrita por Xavier e Nenzinho e interpretada pelo cantor César Sampaio. Vale lembrar que, para Marcos Napolitano, os cantores ou instrumentistas fazem mais sucesso que os compositores principalmente “nas músicas de maior apelo popular, direcionados para o sucesso fácil” (NAPOLITANO, 2002, P. 58). A canção é escolhida porque mostra a figura da prostituta de uma maneira diferente da representada em “Vou tirar você desse lugar”. Essa fala abertamente da história de amor de um cliente e uma garota de programa, aquela comenta de maneira penalizada e cheia de eufemismos a dor de uma prostituta. Segundo o livro Almanaque da música brega, o compositor carioca César Sampaio teve sua primeira oportunidade na Polydor, depois de inúmeras tentativas em várias gravadoras sem sucesso. Entrou no estúdio da Polydor para gravar uma fita de demonstração, as famosas “fitas demos”, com a música Secretária da beira do cais, dos compositores Chico Xavier e Nem. A banda de apoio para a gravação foi a hoje internacionalmente prestigiada Azymulth, que na época era a banda de estúdio da Polydor. O produtor Tony Bizarro tinha vinte artistas para produzir e, mesmo assim, 60 apresentou a “fita demo” em uma reunião com o executivo André Midani, que autorizou a gravação do compacto imediatamente, farejando o sucesso da canção (CABRERA, 2007. p. 34) Ainda sobre a história de César Sampaio, também segundo Antonio Carlos Cabrera, o cantor gravou vinte LPs, vinte compactos e noves CDs com 20 milhões de cópias vendidas no total. Em relação aos prêmios, ganhou quatro discos de ouro no Brasil. O grande sucesso do intérprete foi “Secretária da beira do cais”. A canção conta a história de vida de uma prostituta mostrando a relação da moça com a família e com os clientes. O “eu poético” é quem conta essa história e seu possível interlocutor é o próprio público. Os compositores escolheram rimar as palavras seguidas no fim das frases. As palavras rimadas são: “cais” e “mais”, “chegar” e “ganhar”, “direção” e “escuridão”, “traz” e “cais”, “parentes” e “presentes”, “interior” e “amor”,“querida”e “vida”. A rima é do tipo emparelhada, uma vez que as últimas palavras dos dois primeiros versos rimam e o mesmo acontece com os dois últimos versos de cada estrofe. A canção é formada por metáforas, uma escolha para tratar de forma mais discreta o assunto prostituição. “Secretária da beira do cais” é a profissão falada no lugar de garota de programa. “Homens de branco” são os cliente das prostitutas, eles podem ser os marinheiros que possuem fardamento branco e convivem na beira do cais. Em relação aos fatores que atuam na música (MIDDLETON, 1990 apud NAPOLITANO, 2002, p. 103) a melodia é lenta e permanece a mesma em toda a canção. Já sobre a letra, ela faz pensar sobre a relação das prostitutas com a vida que levam, com os clientes e com a família. Como elas lidam com isso tudo, como escondem dos pais a profissão, como os dias passam para elas e como no fundo elas são as mocinhas puras do interior que nunca amaram. A letra traz valores rituais e função fática, ou seja, como indica Marcos Napolitano,conscientizam para os problemas cotidianos, no caso, o problema social da prostituição. 4.2.3 “Menina da Calçada”, Fernando Mendes 61 Tão sozinha na calçada/ Vendo gente a passar/ O seu corpo tão pequeno/ Qualquer um pode levar Seu passado é tão triste/ Seu futuro ilusão/ Uma espera infinita/ Teu amor que nunca vem Mas eu cruzei o seu caminho/ Vou mudar o seu destino/ Vou lhe dar o meu amor/ Sei que é menina da calçada/ Mas será a minha amada Tão sozinha na calçada/ Sem ninguém pra conversar/ Esperando por alguém/ Que talvez nem vá chegar Os seus olhos não encontram/O que o pensamento busca/ No seu peito uma tristeza/ E a vontade de chorar... Mas eu cruzei o seu caminho/ Vou mudar o seu destino/ Vou lhe dar o meu amor/ Sei que é menina da calçada/ Mas será a minha amada/ Vou viver só pra você A terceira música analisada é “Menina da Calçada”, versão gravada em 1976, através da EMI Music Brasil Ltda, escrita e interpretada por Fernando Mendes em um álbum que leva o seu nome. Segundo o site oficial do cantor, a canção ficou conhecida por ser tema da novela exibida pela Rede Globo de Televisão, "Duas Vidas". A música foi escolhida porque se diferencia ainda mais da outra duas analisadas. “Vou Tirar Você Desse lugar” fala da prostituição de forma mais clara, se comparada às outras duas. “Secretária da Beira do Cais” faz uso de metáforas para entra nesse assunto. Já “Menina da Calçada” comenta a prostituição de uma maneira ainda mais discreta e velada. Sem nem mesmo usar palavras que se refiram a esse mundo. Para Paulo Cesar de Araújo, essa canção fala da prostituta de uma maneira diferente que era mostrada antes pela música popular brasileira. “Dama do cabaré”, de Noel Rosa, “ Quem A de Dizer”, de Lupicínio Rodrigues, e “Vida de Bailarina”, de Ângela Maria, são exemplos de canções em que apesar de serem “obrigadas pelo ofício a bailar dentro do vício”, as personagens dessas canções ocupam um certo status dentro do processo de hierarquização social 62 que também permeia a atividade das prostitutas. Afinal, são todas dançarinas e mais ou menos contemporâneas de uma Lapa ainda boêmia, frequentada por artistas e intelectuais. Já as personagens retratadas pelos compositores “cafonas” na década de 70 são de outra ordem e atuam em outro espaço: exibem-se solitárias pelas ruas da cidade. Como ilustram as canções Secretária a beira do cais (Xavier-Nenzinho), Dama da noite (Patrick) e Menina da calçada, gravação do cantor Fernando Mendes. (ARAÚJO, 2002, p. 149). O interprete da canção analisada, Fernando Mendes, nasceu em Minas Gerais. O cantor e compositor ficou conhecido em 1973, quando gravou o primeiro compacto chamado A desconhecida. O primeiro LP vendeu 100 mil cópias e o seu maior sucesso foi “Cadeira de rodas”, em 1975, no qual ele conta a história de uma cadeirante. Em 2003, Fernando Mendes passou de cantor “cafona” para cult. Foi quando Caetano Veloso gravou “Você não me ensinou a te esquecer” para a trilha sonora do filme Lisbela e o Prisioneiro. A canção analisada, “Menina da Calçada”, fala da tristeza e da falta de perspectiva de uma prostituta. Por isso, provoca reflexões sobre as condições de vida das garotas de programa, através da função fática e do valor ritual. No entanto, tudo muda quando o “eu poético” entra na sua vida salvando-a da melancolia. “Mas eu cruzei o seu caminho/ Vou mudar o seu destino/ Vou lhe dar o meu amor”, diz a letra. O compositor faz uso tanto de rimas em versos seguidos (calçada e amada, caminho e destino) como também rima em versos intercalados (passar e levar, conversar e chegar). A letra apresenta algumas metáforas. Em “qualquer um pode levar”, pode-se entender como qualquer indivíduo pode se relacionar com a prostituta, basta pagar. “Cruzei o seu caminho” pode ser uma metáfora para entrar na vida de alguém. A música tem melodia triste reforçada pela voz rouca de Fernando Mendes. A melancolia é quebrada pelo refrão. 4.2.4“O Dia do Corno”, Reginaldo Rossi Hoje é o dia do corno⁄ Foi bom te encontrar⁄ Vamos tomar um bom porre⁄ Pra comemorar A mulher que você ama⁄ Eu amo também⁄ Pelo que eu sei⁄ Ela já enganou mais de cem 63 Até um galã de novela⁄ Que dela gostou⁄ Tornou-se um pobre coitado⁄ Que ela arrasou⁄ Contigo fez gato e sapato⁄ Do teu coração⁄ Comigo deixou-me de quatro⁄ Me arrastando no chão Hoje é um dia pra gente⁄ Jamais esquecer⁄ Vamos unir nossas dores⁄ Chorar e beber⁄ Vamos tomar um bom porre⁄ Pra comemorar⁄ Hoje é o dia do corno⁄ Foi bom te encontrar Mas homem adora mentir⁄ E enganar a mulher⁄ Homem adora trair⁄ Mas a quer bem fiel⁄ Então tem que levar o troco⁄ Ele tem que pagar⁄ Sofrendo, chorando e bebendo⁄ Na mesa de um bar Hoje é um dia pra gente⁄ Jamais esquecer⁄ Vamos unir nossas dores⁄ Chorar e beber⁄ Vamos tomar um bom porre⁄ Pra comemorar⁄ Hoje é o dia do corno⁄ Foi bom te encontrar Hoje é um dia pra gente⁄ Jamais esquecer⁄ Vamos unir nossas dores⁄ Chorar e beber⁄ Vamos tomar um bom porre⁄ Pra comemorar Hoje é o dia do corno⁄ Foi bom te encontrar⁄ Hoje é o dia do corno⁄ Foi bom te encontrar⁄ Hoje é o dia do corno⁄ Foi bom te encontrar As duas primeiras músicas relacionadas à traição, “O Dia do Corno” e “Lua de Mel”, são do cantor e compositor Reginaldo Rossi. O artista é pernambucano nascido em Recife em 1944. O cantor começou a carreira em 1964 cantando no grupo The Silver Jets. O estilo da banda se parecia com o do cantor Roberto Carlos. O primeiro disco foi O pão, pela gravadora Chantecler. O segundo LP lançado foi Festa dos pães. Em 1970, Reginaldo Rossi mudou para a gravadora CBS, foi quando “mergulhou no romantismo exagerado, criando uma marca que permanece até hoje” (CABRERA, 2007. p. 102). Já em 1990, o cantor se torna conhecido no resto do país por conta da música “Garçom” (gravada em 1987), o que fez o cantor vender mais de um milhão de cópias. Sobre a escolha da música “O Dia do Corno”, ela será analisada por ser outra vertente do brega. Repleta de exageros românticos e, ao mesmo tempo, de um bom humor que torna a tragédia da traição algo cômico. Por isso, em relação aos parâmetros musicais, a 64 melodia é predominantemente lenta, porém alegre, por conta desse tom jocoso, seguido de um refrão em que Reginaldo parece aumentar um pouco o tom de voz. Em um artigo escrito por Tiago Barbosa ao Diário de Pernambuco intitulado “REI DO BREGA: Como Reginaldo Rossi reinventou a figura do corno”, Reginaldo comenta sobre essa canção: “É onde eu digo tudo”. O artigo ainda fala que As colocações simples, cômicas e quase despretensiosas cutucam a ferida aberta por padrões patriarcais e machistas comuns à sociedade brasileira, especialmente à nordestina, na qual o homem introjeta desde cedo a ideia de ser livre para trair, controlar e mandar nas mulheres. Rossi compreende o quadro de subjugação. Inverte o rumo. E equilibra os sexos no imprevisível jogo de amores e paixões. Sujeita letras próprias ou de outros autores a um feminismo às avessas, reduz a carga de desilusões amorosas e encaixa elementos do cotidiano para se aproximar da realidade do público, com a licença do trocadilho, fiel às composições. (BARBOSA, 2013) A música analisada é uma versão gravada em 1998 no CD O Melhor de Reginaldo Rossi: ao Vivo. A letra traz como “eu poético” um “corno” que encontra no bar outro homem, seu interlocutor, que também foi enganado pela mesma mulher que ele. O “eu poético” desabafa e sugere que os dois unam as dores, para chorar e beber. Em determinado momento, Reginaldo Rossi comenta: “Homem adora trair, mas a quer bem fiel/ Então tem que levar o troco, ele tem que pagar/ Sofrendo, chorando e bebendo na mesa de um bar”. Nesse trecho, ele faz referência à cultura machista que exige a fidelidade da mulher e, por outro lado, entende e justifica o fato dos homens serem infiéis. O compositor usa rimas de versos seguidas. Por exemplo, as palavras seguintes são usadas de forma seguida: encontrar e comemorar, também e cem, gostou e arrasou, coração e chão, esquecer e beber, pagar e bar. Reginaldo debocha do tão temível “chifre”. Por conta dessa quebra, falar de algo trágico em tom bem humorado, a letra promove um “choque” (NAPOLITANO, 2002, P. 103). A letra apresenta ainda valores comunicativos, “porque diz alguma coisa” (NAPOLITANO, 2002, P. 105), no caso, ela conta a história de um homem traído. Além de fazer uso da função emotiva, uma vez que mostra estado emocional do interprete da música. 4.2.5 “Lua de Mel”, Reginaldo Rossi 65 Toda vez que o seu namorado sai/ Você vai ver outro rapaz/ Olha todo mundo já está comentando/ Seu cartaz tá aumentando. Moça linda, por favor, / Guarde todo esse amor pra um rapaz/ Dá vergonha de dizer/ O que disseram de você mas ouça: Dizem que o seu coração/ Voa mais que avião/ Dizem que o seu amor/ Só tem gosto de fel/ Vai trair o marido em plena lua de mel A segunda música sobre traição analisada é uma versão de “Lua de Mel”, de Reginaldo Rossi, gravada em 1999 para o CD Meus Momentos: Reginaldo Rossi. A escolha da música é explicada pelo fato da letra trazer um Reginaldo Rossi diferente do cantor apresentado nas outras canções, o que provoca o questionamento apresentado abaixo. Na maior parte do repertório “cafona” escrito por esse compositor, o comum é ver a traição como merecida pelo homem que também não era fiel à mulher. O homem traído jocosamente retratado nas linhas simples dos cordéis, nas costuras orais de rimas dos poetas populares, na piada maldosa do dia a dia ou na vingança desmedida registrada pelas estatísticas criminais ganha, nas canções entoadas pelo Rei do Brega, uma justificativa moral para existir e deve se conformar com os chifres colocados sobre a cabeça (BARBOSA, 2013). Em “Lua de Mel” vemos o contrário: uma preocupação, acompanhada de conselhos machista, com o fato de a mulher correr o risco de ficar “mal falada”, já que traiu o namorado. O “eu poético” avisa a sua interlocutora que “todo mundo já está comentando” que ela se encontra com outro rapaz, quando o seu namorado vai embora. Ele aconselha: “Moça linda, por favor,/ Guarde todo esse amor pra um rapaz”. O tom machista aparece na frase “Dá vergonha de dizer/O que disseram de você”, que expõem o fato da menina ser alvo das fofocas e do estigma de não servir para ser uma boa esposa. Isso fica claro em: “Vai trair o marido em plena lua de mel”. A música poderia até, por conta da temática do machismo presente nela, iniciar discussões sobre esse assunto e, dessa forma, apresentar valor ritual e função fática. No entanto, a letra usa um tom jocoso para tratar a traição e o machismo, o que acaba não deixando espaço para uma abordagem discursiva de um tema tão sério. 66 Em relação aos parâmetros poéticos, Reginaldo Rossi rima versos seguidos: comentando e aumentando. Na última estrofe, as últimas palavras dos dois primeiros versos rimam (coração e avião), o mesmo acontece com os dois últimos versos (fel e mel). Na canção, duas metáforas aparecem. O avião é usado para explicar que o coração da moça é rápido, ou seja, seus sentimentos mudam com velocidade. Por isso, ela trai o namorado. O gosto nada saboroso do fel também é utilizado para caracterizar o amor da personagem da canção. Já os parâmetros musicais, a melodia é predominantemente alegre e ganha mais força no refrão, onde a musicalidade parece mais rápida e outras vozes se juntam a de Reginaldo Rossi. 4.2.6 “Eu Lhe Peguei no Flagra”, Genival Santos Eu lhe peguei no fragra/ E não quero explicação/ Você beijando um cara/ Com que cara? / Vou lhe dar o meu perdão Eu lhe peguei no fragra/ E não quero explicação/ Você beijando um cara/ Com que cara? / Vou lhe dar o meu perdão⁄ Não, não, não Você não tem coração/ Não, não, / Não quero amor a prestação/Agora estou/ Estou de mal contigo/ Você me magoou/ Perdoar eu não consigo, eu não/ Não, não, não/ Você não tem coração/ Não, não/ Não quero amor à prestação/ Eu lhe peguei no fragra... A última música analisada é “Eu Lhe Peguei no Flagra”, de Genival Santos, gravada em 1998 no CD 20 Sucessos: Genival Santos. A canção fez sucesso em meados dos anos 70. O interessante é que a letra traz um erro de português. Genival canta “fragra” e não “flagra”. Segundo entrevista para o blog Farofafá, da Carta Capital, o artista afirmou que hoje brinca com o erro de português e acentua a pronúncia da palavra errada, durante os shows. Em relação à história de vida de Genival, o cantor é paraibano da cidade de Campina Grande. Ele começou a carreira no programa de Flávio Cavalcanti, conta a jornalista e socióloga Fabiana Moraes, em seu blog Farofafá. Na primeira apresentação, ganhou nota zero de quase todos os jurados que eram a cantora Maysa, o compositor Ronaldo e o cantor e apresentador José Messias. No entanto, a atriz Márcia de Windsor deu nota dez para o novo cantor e ainda antecipou que ele iria vender mais discos que Gilberto Gil e Caetano Veloso. 67 Dias depois, muitas cartas chegaram à produção de Flávio Cavalcante. As pessoas queriam ver de novo Genival Santos no programa de televisão. Ele voltou e cantou “Meu Coração Pede Paz“, música que deu nome ao seu primeiro LP que vendeu 85 mil cópias. Depois vieram 28 discos e cinco milhões de cópias comercializadas. A música “Eu Lhe Peguei no Flagra” foi escolhida para análise porque é uma das canções mais presentes no imaginário popular quando se fala de traição. Na letra, o “eu poético” fala para sua parceira, que também é sua interlocutora, sobre ter lhe pego no ato da traição. Diferente da primeira música analisada, na qual o autor conversa com um homem também traído, e da segunda canção que o “eu poético” conversa com uma moça que trai o namorado, mas não tem relação com o autor. É usada a rima solta, uma vez que as palavras rimadas não seguem um padrão. No refrão, as seguintes palavras rimam: coração, não e prestação. Em outras partes da música, existem as rimas: “perdão” e “explicação” e “flagra” e “cara”. O autor da música usa ainda um jogo de palavras empregando em dois versos seguidos a palavra “cara”, mas com significados diferentes. Na seguinte parte: “Você beijando um cara/ Com que cara?”. Em relação aos parâmetros musicais, a melodia da canção é típica da música brega, ou seja, é muito semelhante ao bolero, ritmo que influenciou o repertório “cafona”. A melodia é a mesma em toda a música, mas na segunda estrofe a vocalização ganha a presença de backing vocals. Assim como “Em Plena Lua de Mel”, o tom jocoso da música prevalece em relação ao possível debate que ela provocaria sobre como um homem pode reagir à traição. O mesmo acontece com o valor ritual e a função fática, a letra poderia conscientizar para um acontecimento ligado ao cotidiano, a descoberta de um adultério, mas o tom de brincadeira chama mais atenção do que isso. No entanto, a canção apresenta função emotiva, uma vez que apresenta o estado emocional do interprete da música. 4.3 A REPRESENTAÇÃO SOCIAL DAS MULHERES NA MÚSICA BREGA Fazendo um apanhado das três canções ligadas à prostituição analisadas verificase que as versões são da década de 1970. “Vou Tirar Você Desse lugar” é de 1970, “Secretária da Beira do Cais” foi gravada em 1975 e “Menina da Calçada” é uma versão de 1976. Isso ratifica a afirmação de Paulo Cesar de Araújo, em Eu não sou cachorro, não, de 68 que a canção de Odair José citada lança a temática da prostituição feminina no repertório “cafona”. Depois dela, como pode ser visto, outros letristas se apropriam do assunto. Já as versões escolhidas para tratar o tema da traição foram sucessos na década de 1990. “O Dia do Corno” é de 1998, “Lua de Mel”, foi gravada em 1999, e a versão escolhida de “Eu Lhe Peguei no Flagra” é de 1998, resultado de uma coletânea de sucessos. Em relação a Reginaldo Rossi, a fama nos anos 1990 é explicada porque o cantor ficou nacionalmente conhecido após a repercussão da música “Garçom”, a qual já tinha sido gravada em 1987. Em relação à melodia, um dos parâmetros musicais propostos por Marcos Napolitano, o que predomina nas músicas analisadas é a lentidão, o que pode caracterizar uma melancolia. Essa aparente tristeza na canção brega aproxima a música cafona do pieguismo do fado português, como sugere Teixeira Coelho. Vale ressaltar que “Lua de Mel”, de Reginaldo Rossi, é a única das canções analisadas que se afasta dessa melodia triste das outras músicas. É importante também entender que o que caracteriza uma música como brega não é a letra ou a melodia, mas a interpretação do cantor. Um exemplo que ilustra isso é o fato de “Você não me ensinou a te esquecer”, ser considerada brega na voz de Fernando Mendes, mas cult quando cantada por Caetano Veloso. A melodia usada pelos dois cantores é muito semelhante, mas a interpretação de Fernando Mendes é mais visceral, mais passional. Já Caetano é mais contido. Em relação às rimas, que fazem parte dos parâmetros poéticos no que diz respeito aos tipos de formas, todas as músicas usam rimas seguidas, ou seja, as últimas palavras dos versos rimam. Todas as canções apresentam ainda a rima externa, uma vez que é no final do verso que estão as palavras que rimam. Em “Menina da Calçada” aparecem ainda as rimas intercaladas. Elas acontecem quando as palavras que rimam são separadas por um verso. E em “Eu Lhe Peguei no Flagra”, as rimas soltas são utilizadas, ou seja, não existe um padrão. Todas as canções analisadas sobre prostituição podem gerar debate. Elas são motes para discussões sobre os assuntos que permeiam essa profissão, além de fazerem pensar sobre as representações sociais das mulheres. Por conta disso, essas músicas apresentam valores rituais, ou seja, criam solidariedade, uma vez que formam consciência dos problemas do cotidiano, segundo o conceito de Marcos Napolitano. E, por isso, apresentam também a função fática. Segundo o linguista Roman Jakobson, “dificilmente lograríamos, contudo, encontrar mensagens verbais que preenchessem uma única função. A diversidade reside não 69 no monopólio de alguma dessas diversas funções, mas numa diferente ordem hierárquica de funções” (JAKOBSON, 2007, p. 82). Ou seja, dificilmente um texto apresentará uma única função. Dessa forma, ressalto ainda que as canções “Vou Tirar Você Desse lugar”, “O Dia do Corno” e “Eu lhe peguei no flagra” apresentam também a função emotiva, uma vez que as músicas mostram as emoções de quem canta. As canções sobre traição não geram debate por conta do tom jocoso que apresentam. As brincadeiras relacionadas ao “corno” acabam sendo o maior foco dessas músicas, o que leva ao adultério, o machismo e o sexismo ficam em segundo plano. Essas discussões geradas pelas canções sobre prostituição são justamente as citadas anteriormente, as questões sociais relacionadas à prostituição, que aparecem nas músicas analisadas. Inclui-se o preconceito com as prostitutas, como essas mulheres vivenciam os relacionamentos amorosos, a solidão que esse trabalho ocasiona e como elas são excluídas socialmente. As músicas também geram discussões no campo da teoria das representações sociais. Usando como base os conceitos de Jodelet, pode-se dizer que toda representação se refere a um objeto, no caso das canções “cafonas”, esse objeto é a mulher. Esse objeto está “imerso em condições específicas de seu espaço e tempo” (ARRUDA, 2002, p. 142). Jodelet propõem ainda os fatores que servem como condição de produção das representações sociais. São eles: a cultura, a comunicação e linguagem, e a inserção socioeconômica, institucional, educacional e ideológica. No caso das representações sociais existentes na música brega, as canções estão inseridas em um contexto cultural. Em relação às segundas condições, comunicação e linguagem, entende-se, segundo Angela Arruda, que “a representação social encadeia ação, pensamento e linguagem nas suas funções primordiais de tornar o não-familiar conhecido”, o que possibilita a comunicação e favorece o controle sobre o meio em que se vive, além de ajudar na compreensão do mundo e das relações que nele existem. E as inserções socioeconômica, institucional, educacional e ideológica acrescentam conteúdo às representações sociais da prostituta e da mulher adúltera. Existem ainda dois conceitos importantes para entender o processo de formação da representação social: a objetivação e a ancoragem. A primeira consiste na “passagem de conceitos ou idéias para esquemas ou imagens concretas” (ALVES-MAZZOTTI, 1994, p.24) e, dessa forma, as representações da prostituta e da mulher adúltera presentes nas músicas analisadas se tornam “supostos reflexos do real” (Moscovici, apud Alves-Mazzotti, p.24). Já a 70 ancoragem, é a constituição de “uma rede de significações em torno do objeto, relacionando-o a valores e práticas sociais” (ALVES-MAZZOTTI, 1994, p.24). Objeto que, no caso, é a mulher retratada nas letras. Como foi visto no primeiro capítulo, por mais que kitsch e brega não sejam sinônimos, segundo Carmen Lucia José, é impossível não achar a definição de Abraham Moles para kitsch musical do tipo romântico semelhante às músicas de brega analisadas. Para o autor, o kitsch musical pode ser romântico quando fala de amores, como é o caso dessas canções estudadas. Apenas “Secretária da Beira do Cais”, de César Sampaio, não apresenta o tema romance como assunto central da letra da música. Vale lembrar que o conceito de romântico usado aqui é simplesmente o que se refere ao relacionamento amoroso, de acordo com Abraham Moles. O uso de representações sociais da prostituta e da mulher adúltera não são exclusividades da música brega. A Música Popular Brasileira têm importantes personagens com essas características. Chico Buarque cantou os julgamentos sociais sofridos por uma prostituta em “Geni e o Zepelim”. “Joga pedra na Geni!/ Ela é feita pra apanhar!/ Ela é boa de cuspir!/ Ela dá pra qualquer um!/ Maldita Geni!”, canta Chico Buarque. O compositor também mostrou a prostituta como mãe, na música “Minha História”. Na canção, Jesus, filho de uma garota de programa, conta como sua mãe ficou grávida de um homem que trabalhava no mar e que fugiu antes do menino nascer. “Me ninava cantando cantigas de cabaré”, canta ele. Em 1983, Raul Seixas lança a música “Babilina”. Nela o Maluco Beleza implora a exclusividade do amor de uma prostituta. “É dentro de casa que eu te quero, meu amor/ Larga desse emprego, baby”, ele canta. “Você me garante que não sente nada, não/ E que só comigo você tem satisfação”, continua. Em 1978, Mauro Kwitko escreveu a música “Mal Necessário” para Ney Matogrosso cantar. “Nos bares, nas camas, nos lares, na lama/ Sou o novo, sou o antigo, sou o que não tem tempo/ O que sempre esteve vivo, mas nem sempre atento”, diz a canção. O nome da música e esse trecho parecem fazer referência ao universo da prostituição, o qual algumas vezes é visto socialmente como “mal necessário”, uma vez que é reconhecido como profissão, mas ainda é vítima de preconceitos sociais. Já sobre traição, as personagens mostradas na MPB são diversas. Alcione, em “A Loba”, afirma ser fiel e, por isso, não aceita traições. “Não pise na bola/ 71 Se pular a cerca/ Eu detono”. Martinho da Vila, em “O Preço da Traição”, conta a história de um homem que traiu e depois foi traído. “Onde eu cheguei/ Com outro alguém em meus braços/Ela chegou também/Nos braços de outro alguém/Foi o momento pior/ Que eu tive na vida”. Chico Buarque acaba com qualquer clichê e desculpa o ser traído por ter cometido tal ato em “Mil Perdões”. “Te perdôo porque choras/ Quando eu choro de rir/Te perdôo/ Por te trair”, canta Chico Buarque. A MPB constrói as representações sociais das prostitutas e dos seres adúlteros ― ressalto que os personagens que cometem a traição nos exemplos mostrados acima não são apenas mulheres ― com condições de produção diferentes da música brega. O contexto cultural não é igual, por serem estilos de música distintos. A forma de comunicar e as linguagens utilizadas também são diferente, uma vez que as personagens são retratadas de diversas formas nas músicas de MPB. E as inserções socioeconômica, institucional, educacional e ideológica também acrescentam conteúdo às representações sociais da prostituta e da personagem adúltera na MPB, assim como na música brega. 4.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS O objetivo geral dessa monografia foi questionar como as representações sociais femininas da prostituta e da mulher adultera são construídas dentro da música brega e como são apropriadas por esse estilo musical. Os questionamentos iniciais foram: o que são essas representações? O que representam a prostituta e a mulher leviana dentro da música brega? Inicialmente, no primeiro capítulo, é apresentado como está o campo de estudos sobre música brega no Brasil, conceitos relacionados ao kitsch e ao kitsch musical. Em seguida, a história das canções “cafonas” é contada. No fim do capítulo, são trabalhados os conceitos de Marcos Napolitano tendo como base o livro História & Música: história cultural da música popular. Dessa forma, criação, produção, circulação e recepção/apropriação das músicas são discutidas. O segundo capítulo começa com discussões sobre as representações sociais. A história dessa teoria, os conceitos, os principais autores, as críticas e a relevância do estudo são assuntos tratados nessa primeira parte. O capítulo abre espaço, então, para as duas 72 representações sociais trabalhadas na monografia: a prostituta e a mulher adúltera. Dessa forma, é mostrada a história da prostituição no Brasil, como ela pode ser uma fantasia feminina e como essas mulheres aparecem na música brasileira, o samba de Noel Rosa e o brega. A última parte do capítulo traz discussões sobre a prostituição. Inicialmente, o texto perpassa sobre as relações fora do casamento e a sexualidade ocidental, depois o contexto volta-se para o Brasil e, por fim, a traição na música brega. No terceiro capítulo, apresenta-se a análise de seis músicas bregas. São elas: “Vou Tirar Você Desse lugar”, de Odair José, “Secretária da Beira do Cais”, de César Sampaio, “Menina da Calçada”, de Fernando Mendes, “O Dia do Corno”, de Reginaldo Rossi, “Lua de Mel”, também de Reginaldo Rossi, e “Eu Lhe Peguei no Flagra”, de Genival Santos. Em seguida, é feita uma análise das representações sociais das mulheres na música brega. A partir dessas discussões conclui-se que, como mostra Alda Judith AlvesMazzotti, a representação é construída valendo-se do “já pensado”. Isso traz à tona pensamentos antigos e posições preestabelecidas, que surgem a partir da classificação, categorização e rotulação. E essas ações estão relacionadas à teoria que temos sobre o objeto. Trazendo essa teoria para a monografia, entende-se que a maneira como a música brega apresenta as personagens prostitutas e as mulheres adúlteras colabora para que o público forme uma imagem composta por características machistas, como por exemplo, a ideia de que apenas um homem pode salvar a mulher da prostituição, por meio do amor, ou a noção de que o adultério deve ser castigado e a mulher que o cometeu pode ser difamada. Em relação às músicas sobre prostitutas, os eufemismos e as metáforas, além do fato de não falar abertamente sobre a prostituição, caracterizam um preconceito velado. Nos trechos de duas das canções analisadas, aparece um forte teor machista: “Eu vou tirar você desse lugar/ Eu vou levar você pra ficar comigo” e “Mas eu cruzei o seu caminho/ Vou mudar o seu destino”. O homem é o grande responsável por salvar a mulher daquela situação de sofrimento e o único capaz de mudar aquela realidade. Respondendo as perguntas propostas no início da monografia, as prostitutas representam as musas inspiradoras dos cantores de brega. Os dois convivem no mesmo universo da boemia. Além dos dois serem personagens marginalizados. Eles vivem nas margens da cultura, por produzirem um estilo musical ainda não tão aceito. Elas são 73 marginalizadas socialmente, porque ganham dinheiro de forma julgada popularmente como condenável. Já sobre as canções que tratam da temática do adultério, na música brega, por um lado, o tema ganha um teor cômico. Por outro, também se vê características machistas. As duas primeiras músicas analisadas, em especial, apresentam fortemente esse caráter, o que pode ser visto nos trechos “Homem adora trair, mas a quer (a mulher) bem fiel”, presente na música “Dia do Corno”, e “Dá vergonha de dizer/O que disseram de você”, na canção “Lua de Mel”, com forte teor moralista, também. O machismo que reveste as canções que tratam do tema do adultério apenas reflete como o ato é visto na sociedade. Ou seja, algo moralmente condenável, desculpa para a difamação da mulher e impossível de perdoar. Dessa forma, entende-se que, como propõe Jodelet, o social interfere na elaboração psicológica que constitui a representação. Para essa estudiosa, o pesquisador deve responder esses dois questionamentos. A elaboração psicológica interfere na social quando colabora com o “já pensado”. Os conceitos sobre o objeto são formados tendo como base o que já se conheceu previamente sobre ele. Enxerga-se a prostituta na canção brega com base nas referências culturais, religiosas e sociais que se tem sobre essa profissão. O mesmo acontece com o ato de trair e, consequentemente, com a mulher adúltera. No entanto, ainda que as músicas brega não gerem discussões, levando em conta o conceito de Marcos Napolitano para valores rituais e função fática, essas canções trazem um tema pouco comum e extremamente válido: a traição feminina. Como foi visto no capítulo 2, segundo São Paulo e André Béjin, esse ato era tratado como exclusivamente masculino. Ao retratar as personagens adúlteras, essas músicas dão mais espaço às mulheres, ainda que muitas vezes de forma pejorativa ou jocosa. E o que representa a mulher leviana, escondida atrás do “corno”, dentro da música brega? A reposta para a pergunta feita no início da monografia encontra-se no fato da adúltera representar um personagem que comete ações dentro da história contada na música. Ela não é um ser passivo, pelo contrário, ela faz a ação e, dessa forma, faz a história acontecer. Por isso, ela representa a mulher no papel de destaque, ainda que não seja ela o “eu poético”. O mesmo acontece com as canções sobre prostituição. Por mais que, às vezes, sejam machistas, falam sobre o universo marginalizado das prostitutas. E, por isso, levantam discussões sobre esse meio, o que é muito importante. 74 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES-MAZZOTTI, Alda Judith Alves. Representações sociais: aspectos teóricos e aplicação à educação. Revista Múltiplas Leituras, v.1, n. 1, p. 18-43, jan. / jun. 2008. Disponível em: < https://www.metodista.br/revistas/revistasims/index.php/ML/article/viewFile/1169/1181 >. Acesso em: 10 de março de 2014. ARANHA, Altair J. Dicionário Brasileiro de Insultos. 1. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002. ARAÚJO, Paulo Cesar de. Eu não sou cachorro não. Rio de Janeiro: Record, 2005. CARVALHO, Ronald. . Pequena história da literatura brasileira, 1984. In: ARAÚJO, Paulo Cesar de. Eu não sou cachorro não. Rio de Janeiro: Record, 2005. COELHO, Teixeira. O que é indústria cultura. 1986. In: ARAÚJO, Paulo Cesar de. Eu não sou cachorro não. Rio de Janeiro: Record, 2005. ARIÉS, Philippe; BÉJIN, André. 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