o Convênio de Taubaté e seus reflexos na economia paulista

Transcrição

o Convênio de Taubaté e seus reflexos na economia paulista
Ação do Estado e mercado cafeeiro: o Convênio de Taubaté e
seus reflexos na economia paulista (1896-1906)
José Eduardo Marques Mauro
Programa de Pós-Graduação em História Econômica – FFLCH/USP
Introdução
A presente comunicação versa sobre intervenções do Estado na área econômicofinanceira no final do Império e nas primeiras duas décadas do regime republicano que
teve início, no Brasil, em 1889. Em especial, focalizaremos a intervenção oficial, de
grande envergadura, que se efetuou no mercado cafeeiro, capitaneada pelo Governo do
Estado de São Paulo, em 1906, conhecida como Convênio de Taubaté. Traçaremos a
conjuntura financeira que originou esta ação estatal, bem como analisaremos os seus
reflexos na maior região produtora de café do mundo: o oeste paulista, sob o prisma
específico do município cafeeiro de Casa Branca-SP.
Aspectos históricos da atuação intervencionista do Estado Brasileiro (1866-1914)
A economia cafeeira desenvolveu-se, essencialmente, como uma atividade
privada, sem ajuda direta significativa, desde os anos 1820-30, até as vésperas da
Primeira Grande Guerra (1914-1918).
A única contribuição oficial recebida do Governo Imperial foi a criação do
crédito rural, por intermédio de autorização concedida, em 1873, aos bancos
hipotecários, de modo a permitir-lhes a emissão de bônus hipotecários. Essa medida foi
seguida de outra permissão, outorgada, em 1881, a outros bancos, para lançamento, no
Exterior, também de bônus hipotecários, vinculados ao ouro.
Até 1888, o governo central do Império não oferecera quaisquer subsídios, em
forma de empréstimos, ou isenção de impostos, ou mesmo garantias de margens de
lucros.
Apenas a Província de São Paulo procedeu de modo diverso, em 1882, quando
assegurou ao Banco de Crédito Real de São Paulo, margem de lucro de 7% ao ano. Em
contrapartida, o Governo Imperial dificultou o funcionamento do mercado de crédito
rural, ao absorver grande parte das disponibilidades líquidas de capitais, com o
lançamento de Letras do Tesouro; ainda, pela inércia do Estado em não regularizar os
títulos sobre terras e registros de hipotecas, apesar de já estar em vigor, desde 1850, a
Lei de Terras.
No entanto, a situação do crédito, que estava escasso na Província do Rio de
Janeiro, era mais confortável para os plantadores de café em São Paulo, onde, segundo
João Ribeiro, havia abundância de letras hipotecárias. De acordo com uma estimativa
bem fundada, os bancos chegaram a conceder setenta e cinco mil contos em hipotecas
nesta Província, tendo pessoas físicas fornecido outro tanto. Dessa maneira, estimava-se
que, em cada quatro proprietários de terra, um carregava uma hipoteca.
A bibliografia brasileira pertinente ao tema, em sua maioria, entendia que o
crédito disponibilizado, apesar de insuficiente para as necessidades do setor cafeeiro,
então em plena expansão, beneficiava, principalmente, os fazendeiros ricos e bem
relacionados.
Se bem que estudos e pesquisas recentes, ou ainda em andamento, sobre a
história do complexo cafeeiro dessa época, tenham revelado que, em algumas regiões
cafeeiras pioneiras no Estado de São Paulo, essa afirmativa, a propósito dos privilégios
para obtenção de financiamentos, no período após proclamação da República (1889),
comporta revisão, no sentido de relativizar essa generalização, pois, tem sido
encontrado em pesquisas realizadas em arquivos de antigas cidades cafeeiras, no então
chamado Oeste Paulista, uma realidade um pouco diferente, que permite estabelecer
nuances a essa afirmação.
Entretanto, ainda, deve ser mencionada a intervenção parcial prestada pelo
Governo Imperial aos fazendeiros de café ao ter, com a canalização de recursos a
apenas a uma fração da sociedade, ao longo do processo de consolidação da economia
cafeeira, tenha proporcionado:
- garantia de juros para instalação de ferrovias, de alguns portos, modernizações
indispensáveis em outros já existentes, que exerceram papéis fundamentais no
extraordinário crescimento da lavoura cafeeira, e, também, na organização do sistema
de exportação da rubiácea;
- política de baixas tarifas, de modo a impedir ações de retaliações por parte de
países estrangeiros, consumidores do produto, que poderiam prejudicar a aceitação do
café brasileiro;
- pelo menos até quase às vésperas da Abolição (1884-87), a manutenção do
regime escravista sob controle, com esporádicas insurreições, que pudessem perturbar a
“paz social”, e o sistema de trabalho escravo nas fazendas.
Assim, apesar das fragilidades apontadas na exploração agrícola do café, no que
respeita notadamente ao crédito agrícola, e também pela ausência de um sólido e
compacto sistema de apoio aos cafeicultores, as exportações de café multiplicaram-se
dezessete vezes, entre a primeira década da Independência, até a última do Império.
Características da expansão da cafeicultura, 1830-1914
Pode-se afirmar que o desenvolvimento da cafeicultura deu-se sem qualquer
planejamento, e, por isso, tornou-se vulnerável à manipulação de agentes da sua
comercialização no Exterior, porque, finalmente, a exportação era o principal destino da
produção cafeeira, e principal esteio da economia brasileira, até 1930. Igualmente, é
preciso sublinhar que o complexo cafeeiro, considerável partícipe da rede mundial de
comércio, por isso também sujeito às crises econômicas mundiais, tão freqüentes na
história do capitalismo da segunda metade do século XIX; algumas vezes, sofreu suas
duras conseqüências, por não estar devidamente preparado para enfrentá-las, uma vez
que o mercado de café funcionava livremente, sem intervenção, nem anteparos eficazes
que pudessem minimizar os seus efeitos mais danosos.
Como já mencionado, de um lado ocorreram problemas de suprimento de
créditos agrícolas, e quando existente, não contemplava a modalidade de longo prazo;
Stevem Topik aponta, também, a ausência de (...) um adequado sistema de
warrantagem, pelo qual o produtor não fosse obrigado a vender sua safra pouco tempo
depois de ser colhida sua produção.
Como é do conhecimento geral, o café era apanhado em um único período, de
duração aproximada de quatro meses, o que ocasionava uma saturação do mercado, com
a conseqüente queda de preços. Ainda, como observa Steve Topik, devido à escassez de
crédito e de armazéns, o Comissário não podia mandar o café longe do mercado, por
muito tempo, a fim de forçar uma alta de suas cotações. Esta alta teria beneficiado o
fazendeiro, porque o comissário atuava como consignatário (p. 73-74).
A longa fase de comercialização desordenada, também, se refletia no sistema
monetário do país, pois, o grande volume de produção, que ciclicamente inundava o
mercado, fazia elevar o valor do ouro, de mil réis, ocasionado pelo volume de ouro que
entrava no país, naquele momento, para quitar as compras das sacas do produto.
Surgia assim uma situação bastante peculiar, e recorrente na história econômica
do país: quando era chegado o momento da entrada de recursos externos, ocasião essa,
em que o produtor acabava por receber valores menores, em mil réis, pela venda da sua
produção, devido estar a moeda menos valorizada monetariamente.
De fato, na rotina de trabalhos organizada nas fazendas, para a exploração
econômica do produto, acontecia que, mais para o final do ano, quando o fazendeiro
deveria fazer suas compras, pagar salários etc, o valor da moeda, o mil réis, baixava,
porque o ouro, ao invés de entrar, estava saindo do país, para pagamento de produtos
importados, o que ocasionava aos produtores um maior custo para atender às suas
necessidades, e realizar suas compras, em mil réis.
Outro aspecto importante para a compreensão da exploração agrícola, de valor
econômico do produto café, reside no aspecto relacionado com a expansão de novas
áreas para plantio, uma forma vantajosa, do ponto de vista econômico, para manter o
crescimento e auto-alimentação do próprio complexo cafeeiro, e, em particular,
utilizado pelos lavradores para consolidarem e manterem o regime de alta produção em
suas unidades, para auferir maiores ganhos.
O percurso histórico das plantações de café no país constitui forte evidência da
procura contínua pelos lavradores, por terras cada vez mais férteis, no momento em que
suas plantações começavam a envelhecer, apresentando nítidos sinais de redução de sua
produtividade, questionando inclusive sua viabilidade econômica para continuar a
mantê-las em atividade.
A história do cultivo de café mostra a adaptação do cafeeiro, principalmente, em
duas zonas da Província do Rio de Janeiro, situadas próximas ao Rio Paraíba, no trecho
do seu curso em terras fluminenses; mas em ambos, depois de algumas décadas deu-se o
esgotamento dos terrenos, com queda inquietante da produtividade dos cafeeiros, a
ponto de não mais compensar a sua exploração.
Na falta de novas áreas, as plantações avançaram em direção à fronteira paulista,
em nova frente, principalmente por intermédio da cidade de Bananal e adjacências, em
seguida, ganhando as terras mais baixas e ribeirinhas ao rio Paraíba, no seu trecho
paulista.
Mais algumas décadas decorridas, desenhava-se novamente o mesmo cenário de
esgotamento dessas áreas, impondo aos agricultores a opção de iniciar a exploração
cafeeira, no Oeste Paulista, tendo como eixo, a zona circunvizinha à cidade de
Campinas. No início nessa nova etapa, ocorreu paulatina substituição das plantações de
cana-de-açúcar, introduzidas no último quartel do século XVIII, até sua substituição
total depois da década de 1840 em diante, pelo café.
O próximo passo se desenvolveu pelo desbravamento de novas zonas do interior
do Oeste paulista, onde se assistiu ao início do processo que traria importantes
modificações, no então sistema de exploração agrícola com base no braço escravo. De
fato, o sistema escravista já agonizava no Brasil, desde a década de 1860, devido à
extinção do tráfico de escravos africanos ocorrida em 1850. Esse processo prosseguiu
na metade da década de 60, tendo como protagonista principal, o próprio imperador D.
Pedro II, graças à sua intervenção junto ao Conselho de Estado, ocasião em que forçou
o Órgão a apreciar moção proposta por um dos seus membros, a pedido do Imperador,
para que fosse incluída na pauta de discussões do Conselho, no ano seguinte, a questão
da abolição definitiva da escravatura. Apesar de ter sido longamente debatida, e
reconhecida como relevante, pelos membros desse colegiado, além de pertinente e
urgente para o futuro do país, a decisão final foi adiada, em razão do estado de guerra
que o Império moveu, juntamente com a Argentina e Uruguai, contra o Paraguai (186570).
Essa discussão mereceu nova reflexão após o término do conflito, quando
novamente o próprio Imperador voltou à carga, e catalisou a apresentação de projeto,
conhecido depois como “Lei do Ventre Livre” (1871), pela qual previa libertação dos
filhos de escravos, nascidos após sua aprovação, e definitiva liberdade ao completarem
dezoito anos.
Essa lei, embora não tenha sido aplicada imediatamente, pois embutia vacância
temporal para concessão plena de liberdade, teve condão de enfraquecer, sobremaneira,
os argumentos de que se serviam grupos renitentes de proprietários-lavradores de terras
para defender a continuidade da utilização do braço escravo, em suas atividades
econômicas, e domésticas.
Na realidade, o sistema escravista passou, a partir daí, a ter os dias contados.
Posteriormente, sofreu outro golpe, de menor alcance real, mas importante como peça
de debate obrigatório no Parlamento, entre elites intelectuais, e econômicas: tratava-se
da “Lei dos Sexagenários”, que garantia liberdade aos escravos africanos, maiores de
sessenta anos, aprovada em 1885, embora debatida desde 1882. Daí em diante, assistiuse a “Campanha Abolicionista”, que mobilizou amplamente o país, conhecendo lances
dramáticos, na sua porção final, por ter contado com grande participação popular, amplo
apoio da família real, e do próprio Trono.
A remodelação do sistema de mão-de-obra
A exploração do complexo cafeeiro praticamente dividiu-se em dois cenários,
com relação à utilização da mão de obra nas lavouras, e demais trabalhos: de um lado,
estavam os produtores das áreas de exploração mais antiga, naquele momento, com seus
cafeeiros apresentando traços visíveis de decadência de produtividade; por sua vez,
contrários à substituição da mão-de-obra escrava pelo trabalho livre e assalariado,
embora já sentissem escassez de braços; em sua maioria, sediados nas zonas de
exploração do café da Província do Rio de Janeiro, e nas zonas degradadas do Vale
Paraíba de São Paulo.
Os fazendeiros das áreas mais dinâmicas e produtivas do Oeste Paulista, por ter
percebido, com clareza, o problema da escassez de mão-de-obra em suas fazendas, e
detectada sua importância para o porvir da economia cafeeira, para expansão das
plantações, novas derrubadas de matas, atender aos cuidados reclamados pelas culturas
do café; também para o abrimento de novas fazendas, necessitando trabalhadores para
povoá-las, e providenciar moradias, e instalações nos novas propriedades.
Outro sério empecilho era o alto custo do escravo africano; primeiramente, após
extinção do tráfico, houve remanejamento interno de escravos, provenientes de outras
regiões decadentes, ou de menor dinamismo, até às vésperas da Abolição, em 1888.
Portanto, a solução encontrada, na época, e que, desde 1819, já conhecera
antecedentes de estímulos ao povoamento do território; também pela experiência de
substituição de mão-de-obra em lavouras de açúcar e café, na Província de São Paulo,
desde 1840; estas se caracterizaram pelo recrutamento de mão-de-obra estrangeira, por
iniciativas particulares. Posteriormente, pela fundação da Sociedade Auxiliadora para
Imigração/Colonização, em 1871, substituída, em 1886, pela Sociedade Promotora da
Imigração, entidades privadas, que contaram com ajuda discreta do Governo paulista;
esses esforços, entre 1840-1884, atraíram aproximadamente 92.000 pessoas.
Esse número de imigrantes continuou insuficiente, mas essas experiências
serviram para convencer novos agricultores das vantagens oferecidas, em curto prazo,
numa conjuntura de grande expansão das culturas cafeeiras, e incremento das
exportações do produto, onde o déficit de braços constituía fator limitador para o
crescimento da cafeicultura, quando outros fatores cruciais para o fortalecimento da
economia cafeeira já estavam equacionados, como, por exemplo, as ferrovias paulistas,
cuja implantação havia contribuído para viabilizar a multiplicação das lavouras, para
escoamento das safras, reduzindo de 30 a 40% dos fretes, rumo a Santos, pela
regularidade/qualidade do serviço, possibilidade para utilizá-lo a qualquer momento,
com qualidade, e segurança das cargas. Ainda, principalmente, pela abertura do acesso
ao porto de Santos, propiciado por uma ferrovia inglesa, que conseguira vencer os
obstáculos da descida e subida da Serra do Mar, interligando Santos, São Paulo e
Jundiaí, essa última constituiu-se em eixo comum de outros empreendimentos
ferroviários, que desenharam a rede ferroviária paulista, mediante tráfego mútuo entre
as empresas e a São Paulo Railway, promotora exclusiva da comunicação entre o
Planalto paulista e o Litoral.
Nesses exemplos, o Estado foi oportuno protagonista, exercendo importante
atuação no contexto de uma economia liberal, que prevaleceu como pano de fundo, e
das idéias dos políticos e da elite intelectual e econômica, atuando diretamente no
estabelecimento do sistema cafeeiro de exportação.
De fato, o Estado foi primeira personagem, com importante desempenho, na fase
aguda da substituição da mão-de-obra nas fazendas de café, e, ainda, com menor
intensidade na implantação da rede ferroviária, episódios que tiveram o seu fulcro na
Província de São Paulo, com repercussões em outras províncias do país.
Na questão imigratória, no período mais crítico dos anos de 1880, o Governo
Imperial agiu rapidamente, embora com ação discreta, inicialmente mediante subsídios,
apesar de insuficientes para as necessidades urgentes dos fazendeiros; porém, mais
incisiva foi a intervenção do Governo Provincial de São Paulo, que tomou a frente
assumindo a imigração subsidiada, logrando deslocar um contingente numeroso de
trabalhadores europeus, italianos, alemães, espanhóis e portugueses, e, também , em
menor escala, de outras procedências e nacionalidades, mas também insuficientes, se
não tivessem contado com as levas de imigrantes espontâneos , que aqui chegaram com
seus próprios recursos. Esse movimento pode ser visualizado nos gráficos, tabelas, com
despesas governamentais, referenciados nesse trabalho.
Ao final de 15 anos de esforços o total de imigrantes subsidiados superou,
ligeiramente, o número de imigrantes espontâneos, da maneira seguinte:
- Total de imigrantes subsidiados: 1.335.104, contra 1.193.233 de espontâneos,
recrutados para São Paulo, até 1929.
Nesse esforço, o Estado de São Paulo colaborou, ainda, com a montagem de
uma infra-estrutura para recepção e atendimento aos imigrantes, ao desembarcar em
Santos, assim como, para facilitar-lhes contato com fazendeiros interessados, com
proposição de contratos de colonato.
Para isso, construiu um alojamento em Santos e outro mais amplo em São Paulo,
a Hospedaria dos Imigrantes, em 1896. Cuidou, igualmente, de editar leis
regulamentadoras do trabalho, e criação de tribunais especializados para julgamento de
questões, eventualmente surgidas entre patrões/empregados.
No que respeita às construções de estradas de ferro, o governo imperial já havia,
desde 1850, editado a Lei de Terras, visando a validar títulos de propriedades,
concedidas desde os tempos coloniais, sob a forma de sesmarias e datas de terra; em
1852, pela edição de lei, regulamentando a criação de ferrovias, e, principalmente,
incentivando sua implantação, por intermédio de cláusulas asseguradoras aos
concessionários, de garantia de juros, geralmente de 5% pelo Governo Imperial, e,
permitindo às Províncias, no seu eventual interesse, de complementar estímulo ao
investimento, subscrevendo contribuição, geralmente, de 2%, o que atraía investidores,
pela garantia de receberem dividendos, mesmo que o empreendimento, nos anos
iniciais, não produzisse lucros, pois, a garantia total poderia chegar até o limite de 7%.
Porém, a intervenção mais significativa do Estado na área econômica privada, se
daria, comandada pelo Estado republicano, no caso, pelo Governo Estadual de São
Paulo, em face da severa crise de produção e preços, que ocorreu em 1906, conhecida
como operação de “Valorização”, talvez impropriamente, cognominada pela
historiografia como Convênio de Taubaté, foco da elaboração inicial do Plano de
Combate à crise, também das primeiras medidas tomadas para enfrentar a crise.
Ação dos operadores do mercado 1
O que se verificou é que os preços do varejo permaneceram, praticamente,
inalterados entre 1886-1905, o que teria levado o consumo a ter flutuado, de acordo com
a variação do nível de rendimento, e com o volume da população, o que determinaria
flutuações de nível de rendimento relativamente lentas. Antonio Delfim Netto, indaga a
1
Os dados compulsados neste tópico foram retirados de: NETTO, A. Delfim. O Problema do Café no
Brasil. São Paulo: IPE/USP, 1981. P.56-62.
respeito desse fenômeno: “Como se explicariam, então, as violentas oscilações no
volume das exportações?”
O mesmo
autor,
responde:
esses
“movimentos
se explicariam
pelo
comportamento dos operadores do mercado, que procuravam realizar os seus estoques
quando os preços eram mais baixos, e reduzidas as suas compras, quando os preços se
elevavam”.
Na verdade, eles agiam de maneira a impedir que os produtores pudessem tirar
vantagens dos anos de safras medíocres, em que ocorria a diminuição da oferta. Assim,
“o comportamento dos operadores somente diminuía a amplitude das oscilações, e não o
funcionamento do sistema de preços.”
Todavia, pela experiência e análise dos dados percebe-se que o sistema
funcionou relativamente bem, enquanto não existiu um excesso grandemente volumoso
de produção, porque nesse caso, os intermediários teriam dificuldades para absorver os
excedentes,por exemplo, de super-safras contínuas.
Como adverte Delfim Netto, essa absorção era difícil, pelo grande risco que
implicaria; também pela inexistência de recursos monetários suficientes. Na realidade, a
possibilidade da inexistência desse estoque em mãos dos operadores tornaria a procura
de café muito mais elástica, em curto prazo; de um lado, se os produtores pudessem
reter os estoques em seu domínio, o seu poder de resistência cresceria, nos momentos do
mercado em alta, e, de outro, porque poderia facilitar a colocação dos excedentes, a
preços baixos.
Assim, as vantagens que poderiam advir para os produtores, podem ser
resumidas em:
- aumentar a elasticidade da procura do café, assegurando uma receita mais ou menos
estável de divisas, dentro de amplos períodos; enquanto as condições monetárias não se
deteriorassem rapidamente, isto significaria uma relativa estabilidade cambial;
- ademais, acresce lembrar, que quando as perspectivas eram desfavoráveis, não só o
crédito era mais escasso, como também aumentava o risco, porque exigia uma baixa de
preços do produto, que estava correlacionada, não só à magnitude da crise, como às
condições do próprio mercado cafeeiro.
Fatores primordiais da superprodução cafeeira
Torna-se necessário abordar resumidamente a conjuntura cafeeira entre 18961906, caracterizada pelo descontrole entre a oferta e procura do produto, ocasionada
pela excepcional superprodução, cujas raízes próximas se assentaram no próprio ciclo
produtivo do arbusto produtor; e como grande parte da produção agrícola dependia de
fatores climáticos, comportamento do mercado de venda, relações da demanda e do
sistema de preços em face da ampliação e recuo da demanda, dos dados de consumo do
produto em relação ao crescimento da população mundial, especialmente nos países
consumidores. Além disso, da infra-estrutura de comercialização, política monetária
vigente, regime da mão-de-obra etc.
Focalizaremos, inicialmente, os dados impressionantes a respeito do dinamismo
da cafeicultura paulista, que por outro lado começaram a se constituir em constante
preocupação no setor cafeeiro, mais consciente da fragilidade a que ficava exposto o
complexo cafeeiro, não só paulista, uma vez que se tornara o carro-chefe da economia
do país, representando a cifra, entre 60 a 70% das rendas advindas da exportação,
dependendo do período da economia brasileira.
Os dados da produção paulista e brasileira, desde os anos de 1850-51 até 1902,
oferecem panorama bastante nítido do crescimento do setor e da exportação do produto.
Assim, na safra de 1850-51 embarcada no Porto de Santos passaram 82.608 sacas (parte
da produção paulista do Vale do Paraíba era despachada no Rio de Janeiro).
A safra de 1872-73, período em que havia sido finalizada a ligação ferroviária
Santos-Jundiaí foi de 443.210 sacas, enquanto no Rio de Janeiro embarcaram 3.040.062.
Já na safra 1873-74 o montante foi de 666.949; entre 1883-87, 1.837.846 (média anual);
entre 1887-92, 2.512.637 sacas; entre 1892-97, média 3.437.579; entre 1902-1907,
média 8.681787.
Os dados de embarques da produção brasileira, de todas as procedências: 18821887 média anual de 5.994.845; 1902-07 média 12.497.552.
Assim, ocorreu aumento de sete milhões de sacas nos embarques anuais de café
entre 1882-87 para 1902-07, principalmente, pela alta produção do Oeste paulista. O
aumento da produção paulista contou com a chegada dos imigrantes europeus, cuja
média anual de entradas foi, entre 1890-1904, de 45.551; e entre 1905-1929 de 18.049.
O antigo déficit de mão-de-obra foi sanado pelo Estado de São Paulo, mas contribuiu
para o surgimento da superprodução cafeeira, em virtude, dentre outros, também da
forma de contratos estabelecidos entre colonos, que estimulava a abertura de novas
frentes de trabalho, de modo a satisfazer a mão-de-obra estrangeira a aumentar seus
ganhos.
Outro aspecto que atuou de maneira significativa foi o fato da maturação dos
grãos da primeira safra dos cafezais novos, só acontecer depois de 5-6 anos, o que
determinava o desconhecimento do resultado da expansão das safras futuras, que só
aconteceriam seis anos depois, quando não se saberia quais seriam os preços de venda
do café. Isso dificultava a previsão do volume das safras, que ainda ficavam sujeitas aos
azares, ou eventos benfazejos, de ordem climática.
Por impossibilidade de abarcar todos os aspectos que atuavam na economia
cafeeira, concentrar-nos-emos num dos pontos menos estudados, que são os referentes
ao sistema de crédito agrícola. Apresentaremos dados coletados na região de Casa
Branca, importante produtora do Oeste paulista.
As causas e consequências da Primeira Política de Valorização do café pelo prisma
de um município cafeeiro: o caso de Casa Branca.
A verificação Tabela 1 apresenta a supremacia dos bancos nacionais no total de
empréstimos efetivados com garantia hipotecária. Eles abarcaram, respectivamente,
58%, entre 1874 e 1884, e 42% entre 1885 e 1895; decaindo para 11% no intervalo de
1896 a 1906, pois esse período foi marcado por uma conjuntura financeira delicada
decorrente da política governamental deflacionista, seguida pela baixa cotação
internacional do café 2, elevando-se sua participação, mesmo que timidamente, no
período posterior a Primeira Valorização, em 1906, que buscou manter a estabilidade e
a alta dos preços do produto.
2
“[...] no governo de Campos Sales, mais precisamente a partir de 1899, como resultado da política
econômica ortodoxa, a taxa cambial começou a valorizar-se, conjugando-se com uma queda internacional
nos preços do café que vinha desde 1896. Superprodução – em função dos estímulos existentes no
período do Encilhamento – queda dos preços externos e valorização cambial foram os fatores que deram
origem, em 1906, ao primeiro esquema valorizador”. In: PERISSINOTTO, R. M. Classes dominantes e
hegemonia na Republica Velha. Campinas, SP: Ed.UNICAMP, 1994. p.69.
Tabela 1. Porcentagem, por ocupação, nos créditos hipotecários concedidos no
município de Casa Branca, 1874-1914.
18741885189619071884
1895
%
1906
%
1914
%
%
negociante/comerciante
112,4
6%
321,7
4%
838,7
6%
243,8
3%
capitalista
222,7 11%
382,4
5% 2.965,9 20%
124,6
1%
proprietário
3,4
0%
228,0
3% 1.370,8
9%
797,1
9%
comissário
156,2
8% 1.505,1 19% 2.006,0 13% 2.392,5 28%
lavrador
326,4 16% 1.820,2 24% 4.369,4 29% 1.466,0 17%
banco nacional
1.176,0 58% 3.275,3 42% 1.694,7 11% 1.320,1 15%
banco internacional
0,0
0%
0,0
0%
0,0
0% 1.621,7 19%
outros
8,9
0%
160,9
2% 1.614,4 11%
603,7
7%
indeterminado
7,6
0%
27,3
0%
12,4
0%
41,6
0%
total
2.013,8 100% 7.721,3 100% 14.872,6 100% 8.611,4 100%
Fonte: Livros de Inscripção Especial, sob os números 2, 2A, 2B, 2C, e 2D, do Oficial de Registro de
Imóveis e Anexos de Casa Branca. Valores em contos de réis. Adaptado de: FONTANARI, R. O
problema do financiamento: uma análise histórica sobre o crédito no complexo cafeeiro paulista: Casa
Branca (1874-1914). 1. ed. São Paulo: Editora Unesp/Cultura Acadêmica, 2012.
Podemos perceber que os bancos emprestavam mais nas conjunturas favoráveis,
não arriscando seus capitais em situações financeiras adversas, o que explica o
“sumiço” dos empréstimos promovidos pelos bancos nacionais entre 1896 e 1906,
retomando a concessão de crédito após a primeira defesa do café, pois assim seus
investimentos teriam lucros garantidos.
Como visto, a primeira grande crise financeira que assolou a economia paulista e
que repercutiu sobremaneira no setor bancário, foi a de 1896-1906. Wilson Cano
observou que, nesse contexto:
Cassado o privilégio de emissão, aos bancos, em 1896, e
desencadeada a deflação, o sistema atingiria seu ponto crítico em
1900, com a crise bancária, quando vão à falência, nada menos de 17
bancos nacionais. Nesse período são inúmeras as transformações
bancárias que ocorrem, como falências, novos bancos, fusões etc.3
Podemos compreender, desta maneira, o porquê da “fuga” dos empréstimos
bancários, entre 1896 e 1906 derivada, em nossa visão, de dois fatores principais: a) a
crise, apesar de ter sido sentida com menor intensidade em São Paulo, repercutiu sim,
de forma negativa, no sistema bancário, gerando também redução de capitais,
diminuição dos financiamentos para a cafeicultura; b) por outro lado, aqueles bancos
que se mantiveram “intactos”, não se sentiam seguros em fazer concessão de créditos
3
CANO, W. Raízes da Concentração Industrial em São Paulo. Rio de Janeiro: Difel, 1977. p.73.
para o setor agrário-exportador, pois o preço do café estava em baixa 4, complicando a
saúde financeira dos fazendeiros, o que aumentava o risco de inadimplências. No
momento em que mais precisavam de crédito institucionalizado, com menores taxas de
juros, prazos mais dilatados, os cafeicultores se viam totalmente desprotegidos, sem
retaguarda necessária de créditos agrícolas. 5
A situação só foi restabelecida depois da Primeira Valorização, realizada em
1906, que contou com a participação dos presidentes de Estado de São Paulo, Rio de
Janeiro e Minas Gerais, cujas visavam, principalmente: a desvalorização do mil-réis; a
retirada de parte da produção via compras efetuadas pelo governo, que contrairia
empréstimos internacionais para proceder tais compras, visando a elevar o preço do
produto, fixando o preço do café em patamares lucrativos, para proteger o setor da
especulação.
Podemos dizer que o resultado imediato e mais visível da intervenção
valorizadora foi a estabilização e subida dos preços do café, que permaneceu estável
entre 7,6 e 7,9 cents por libra-peso, já entre 1906 e 1908, passou a 13,8 cents.
Observa-se pela tabela 1, que a elevação dos preços do produto fez retomar a
confiança dos Bancos nos negócios do café, ou seja, garantida a lucratividade do setor
não teria porque não injetar dinheiro nessa atividade.
De acordo com Flávio Saes, foi corriqueira a súplica dos lavradores quanto à
exploração sofrida por esta fração frente aos interesses especulativos, levado a cabo
principalmente pelos agentes comerciais ligados ao setor exportador. 6 O apelo geral dos
produtores de café, sempre esteve direcionado a modalidade de crédito que rompesse
com a forma mercantil, demasiadamente danosa, nos momentos de baixa internacional
dos preços do café.
Luiz Tannuri afirma que “dada a inexpressividade do sistema bancário paulista
no interior era também o comissário que exercia a intermediação financeira, tanto do
custeio quanto da formação de novos cafezais”. 7 Esses agentes marcaram forte presença
4
“A crise cafeeira do período de 1896-1906 levou o preço do café de 100$, em 1893, para 25$, em
1903”. In: PERISSINOTTO, R. M. Classes dominantes e hegemonia na Republica Velha. Campinas, SP:
Ed. UNICAMP, 1994. p.47.
5
Em relação à crise “a importância para os brasileiros foi que o plano permitiu à indústria do café
sobreviver a sua maior crise, intacta” (HOLLOWAY, 1978, p.99).
6
SAES, F. A. M. de. Crédito e bancos no desenvolvimento da economia paulista. 1850-1930. São Paulo:
IPE/ USP, 1986.
7
TANNURI, L. A. O Encilhamento. São Paulo: HUCITEC; Campinas, SP: FUNCAMP, 1981. p.109.
na economia de Casa Branca, e possibilitavam melhores condições de financiamento,
como aponta a Tabela 2.
Tabela 2. Porcentagem, por ocupação, nos créditos com penhores agrícolas concedidos
no município de Casa Branca, 1874-1914.
1885-1895
%
1896-1906
%
1907-1914
%
negociante/comerciante
29,5
6%
417,2
7%
108,2
2%
capitalista
68,0
13%
70,5
1%
0,0
0%
proprietário
0,0
0%
325,0
5%
57,0
1%
comissário
104,8
21%
4.035,4
68%
2.497,3
57%
lavrador
115,5
23%
727,9
12%
166,1
4%
banco nacional
156,0
31%
40,4
1%
654,4
15%
banco internacional
0,0
0%
0,0
0%
821,7
19%
outros
11,6
2%
175,2
3%
25,8
1%
indeterminado
21,3
4%
172,9
3%
14,0
0%
total
506,8
100%
5.964,8
100%
4.344,7
100%
Fonte: Livro de Transcripção de Penhor Agrícola e Escravos, sob o número 5, do Oficial de Registro de
Imóveis e Anexos de Casa Branca. Valores em contos de réis. Adaptado de: FONTANARI, R. O
problema do financiamento: uma análise histórica sobre o crédito no complexo cafeeiro paulista: Casa
Branca (1874-1914). 1. ed. São Paulo: Editora Unesp/Cultura Acadêmica, 2012.
Nota-se, pela Tabela 2, que a presença dos comissários foi mais significativa nos
contratos de fornecimento de crédito, mediante penhor agrícola, dado o seu interesse na
comercialização do café; mas, os mesmos também recorriam às hipotecas para afiançar
seus investimentos. Constata-se que houve certa uniformidade na ação comercial desses
agentes, que emprestavam a juros de 12% a.a., com prazo de um ano, sempre de safra a
safra. Isso pôde, por um lado, representar certos benefícios para o agricultor, pois tinha
acesso a um crédito rápido, e a venda do café estaria garantida. Porém, sinalizava uma
monopolização da safra pelos comissários, privando os cafeicultores dos lucros da
venda, situação peculiar à maior parte da camada inferior do médio capital cafeeiro, isto
é, não passando, assim, de “simples” proprietários de terra.
Se esta situação já era delicada para o produtor nas conjunturas favoráveis, em
condições adversas da economia cafeeira, então, ela ficava ainda mais complicada,
devido à desvalorização cambial, e à queda dos preços do produto no mercado
internacional, em função da superprodução, portanto, os lucros do setor minguavam. 8
Isso ocorreu entre 1896 e 1906.
8
A especulação foi mais um “mal” que assolou o setor produtivo, pois os especuladores “sabiam que o
‘produtor’ precisava vender a sua safra de qualquer maneira, pois só tinha crédito de curto prazo. Além
disso, tinham também consciência que o comprador se apoiava nos estoques existentes para, no meio da
maior gravidade em face da superprodução, fingir não precisar do café oferecido pelo fazendeiro. Sabiam,
em suma, que a causa da queda dos preços do café não era exclusivamente da superprodução, mas
Tal conjuntura agravou a situação dos cafeicultores, principalmente daqueles
integrantes do médio capital cafeeiro, que viviam exclusivamente da terra e da
produção. Em Casa Branca, ocorreu uma reformulação nos contratos de fornecimento
de crédito mediante hipoteca e penhor. Observemos alguns desses que apresentavam
cláusulas mais “severas”.
Vicente Augusto de Silos Lima, lavrador em São José do Rio Pardo, contraiu
empréstimo, em 1901, junto aos comissários J.D. Martins, de Santos, no valor de
28:800$000, com juros de 10% ao ano, e prazo de quatro anos para o pagamento. Como
garantia o devedor penhorou a safra “pendente dos cafezais” da Fazenda Alegria,
situada em Casa Branca, calculada em 3.000 arrobas de café; estendendo-se este penhor
às safras de 1902, 1903 e 1904, em suas totalidades, “sendo esse café consignado ao
outorgado em Santos, para ser por elle vendido mediante a comissão uzual de 3%”. Na
escritura consta mais um aditamento, resguardando a plena garantia ao cumprimento do
contrato, com o seguinte teor:
Extravio de todo ou parte dos bens que são dados em garantia do
penhor, falta da denuncia dos credores da deterioração ou sinistro que
lhes altere o valor ou modifique de qualquer modo o direito dos
outorgados sobre os ditos bens, fallecimento de qualquer outorgante,
falta de aplicação precipua ao custeio e grangeio da lavoura adiante
hypothecada em garantia das quantias mensalmente fornecidas por
J.D. Martins [...] falta de consignação ao mesmo J.D. Martins da
totalidade dos fructos empenhados a escriptura fica vencida, e multa
de 20% caso seja necessário aos credores recorrerem aos meios
judiciais para cobrança. 9
É latente que, no contexto de crise, as escrituras passaram a ter um caráter mais
rigoroso e inflexível, pois o credor não poderia arriscar seu capital de forma leviana. Por
isso, “reforçava” judicialmente seu direito sobre o imóvel hipotecado, e sobre o direito
de comercialização do café da safra do devedor, que de forma alguma poderia ser
extraviada ou vendida a terceiros.
Em 1906, Ferreira Junior & Saraiva, comissários em Santos, emprestaram ao
Coronel José de Vasconcellos Bittencourt, lavrador em Casa Branca, a cifra de
também da especulação comercial”. In: PERISSINOTTO, R. M. Classes dominantes e hegemonia na
Republica Velha. Campinas, SP: Ed. UNICAMP, 1994. p.70.
9
Inscrição de Penhor Agrícola nº 136. Livro de Transcripção de Penhor Agrícola nº 5. Oficial de Registro
de Imóveis e Anexos de Casa Branca.
80:402$720, com juros de 12% ao ano. O devedor penhorou toda a safra pendente de
café, calculada em 20.000 arrobas, depois de beneficiada, que deveriam “ser remettidas
aos credores em sua totalidade na praça de Santos até o prazo do contrato, ainda que
parte da safra seja suficiente para pagar a divida. [...] multa de $500 por arroba de café
que faltar”. 10 Desta forma, percebemos que mesmo a produção ultrapassando o valor da
dívida, o devedor seria obrigado a consignar todo o café junto à casa credora, ficando
impedido de comercializar o restante de sua própria colheita; caso contrário, se faltasse
alguma quantidade de café, em relação ao que foi acordado, o devedor ficaria sujeito a
multa.
Em meio à crise, outro recurso foi bastante corriqueiro nos contratos, referimonos à “revisão de prazo”. Em vista dos baixos preços do produto no mercado, muitos
cafeicultores não puderam saldar suas dívidas, lançando mão, mediante o consentimento
do credor, desse recurso que permitia a dilatação dos prazos de pagamento.
Nesse sentido agiu o Capitão David de Almeida Santos, negociante e lavrador,
em Tambaú. Ele havia se constituído, no ano de 1897, devedor dos comissários
Penteado & Dumont, estabelecidos em Santos, da quantia de 54:000$000, com juros de
15% ao ano, e prazo de um ano para o vencimento. Como garantia o devedor hipotecou
seus bens: quatorze casas sitas na povoação de Tambaú, sendo uma de máquina de
beneficiar café. Na averbação desse título constava o seguinte: “certifico que por
escriptura publica de 24 de fevereiro de 1899, lavrada em São Paulo, os credores
Penteado & Dumont concederam mais dois anos de prazo aos devedores, com juros de
1,5% ao mês”. 11 Isso corrobora a argumentação até aqui exposta, de que os credores não
almejavam a execução judicial, preferindo rolar as dívidas até o limite máximo de
solvência dos devedores; desde que estivesse devidamente garantida alta lucratividade
ao credor, e mediante contrapartidas, como a elevação dos juros de 15% a.a. para 18%
a.a., essa estratégia foi usualmente utilizada.
Contudo, nem sempre o recurso de estender o prazo para evitar a execução
judicial era utilizado, e mesmo quando o foi, acabou não funcionando, devido às crises
do mercado cafeeiro, que ocasionava a incapacidade dos cafeicultores em reter suas
safras por mais tempo, na tentativa de aguardar elevação no preço do produto. Como
resultado aconteceram uma série de falências no município.
10
11
Inscrição de Penhor Agrícola nº 230. Livro de Transcripção de Penhor Agrícola nº 5. Idem.
Escritura de hipoteca nº 215. Livro de Inscripção Especial nº 2. Ibdem.
Para frisar a questão, vale destacar mais um caso que aponta duas falências num
mesmo empréstimo. Em 1901, vemos Manoel Escobar, lavrador em Jaguari (MG),
emprestando a e sua mulher, lavradores em Casa Branca, a quantia de 40:000$000, com
juros de 12% ao ano, e prazo de vencimento de dois anos. Os devedores hipotecaram a
Fazenda São Joaquim, em Itobi, contendo 85 alqueires de terras de cultura, 40.000 pés
de café formados e 20.000 novos, casa de moradia e colonos “[...] fazenda essa que os
devedores houveram em praça no executivo hypothecario que (contra) a José Fortino e
sua mulher moveram Izidoro Vanucci & Filhos [...]”. A situação dos cafeicultores era
tão drástica que na averbação vemos o devedor, Antonio Silvério da Silva Musa, ser
obrigado a entregar também as mesmas terras. A escritura, que já se achava em
execução hipotecária, foi transferida para os comissários, de Santos, Delfino Martins &
Cia, no ano de 1905, no valor de 59:735$071, sendo 40:000$000 de capital e o restante
de juros acrescidos e não pagos e multa de 20%. Os novos credores, Delfino Martins &
Cia, não tendo recebido o pagamento da mesma, “arremataram em praça no dia
11/11/1909, a Fazenda São Joaquim [...] na acção executiva hypothecaria que moveram
a Antonio Silvério da Silva Musa e sua mulher, conforme consta da respectiva carta de
arrematação [...]”. 12
Quanto aos grandes fazendeiros locais (com mais de 100.000 pés e que faziam
empréstimos acima de 100:000$000), podemos afirmar que, em sua maioria, eram
integrantes do médio capital cafeeiro, pois eram extremamente especializados na
produção de café, tendo na terra sua principal “empresa”. Esses, também não resistiram
à crise.
Vejamos um caso onde o credor teve que recorrer à liquidação forçada.
Em 16 de fevereiro de 1895, o Banco de Crédito Real de São Paulo, concedeu
um crédito ao Dr. Fortunato dos Santos Moreira e sua mulher, fazendeiro em Casa
Branca, no valor de 300:000$000, com juros de 8% ao ano, e prazo de quinze anos para
pagar. Como garantia o devedor hipotecou a Fazenda São Miguel, situada em Casa
Branca, contendo 301 hectares, 250.000 pés de café, casa de morada, casa para
administrador, uma dita para escritório, cinqüenta casas de colonos, maquinismos
completos para beneficiar café, movidos a água e a vapor de força de 10 cavalos e
terreiros ladrilhados. O devedor começaria a pagar a dívida em 30 de junho de 1895, por
anuidades sucessivas de 38:052$000, compreendendo os juros anuais na razão de 8% ao
12
Escritura de hipoteca nº 779. Livro de Inscripção Especial nº 2C. Ibdem.
ano, amortização e comissão de 1%, calculadas sobre a importância total do contrato.
As anuidades eram exigidas em prestações semestrais de 19:026$000, cada uma,
vencíveis em 30 de junho e 30 de dezembro de cada ano. Mesmo sendo um crédito de
boas condições, frente ao que havia no mercado de capitais, o devedor não conseguiu
arcar com o pagamento, e a dívida foi quitada em 17 de outubro de 1906, mediante
liquidação forçada. 13 Pelas fontes documentais percebemos que o Dr. Fortunato dos
Santos Moreira e sua mulher, também contraíram outros empréstimos junto a grandes
casas comissárias, como, a Prado, Chaves & Cia e Raphael Sampaio & Cia.
Desta maneira, apesar de terem tido acesso ao crédito bancário, e também dos
comissários, ou seja, fontes especializadas de crédito, que possibilitava melhores
condições de empréstimo com juros menores, e prazos maiores, esse exemplo
demonstra a fraqueza do médio capital cafeeiro, que mesmo conseguindo reduzir os
custos da produção de café, ainda ficavam suscetíveis às crises, bem como de todas
incertezas da vida agrícola, como geadas e pragas.
De acordo com o exposto, podemos assegurar que tanto os pequenos produtores
quanto os grandes fazendeiros especializados na produção (médio capital cafeeiro),
estabelecidos em Casa Branca, sofreram com a ausência de uma política de crédito
agrícola consistente, ficando, pois, reféns de um crédito comercial, de alto custo e de
giro curto que revelava a fragilidade econômica em que vivia o senhor territorial,
agravada nos momentos de crise.
Longe estava, portanto, o fazendeiro médio de possuir riqueza igual a dos
componentes do grande capital cafeeiro, que, por sua vez, conseguiam suportar melhor
as crises, devido aos seus investimentos diversificados no setor de transporte,
financiamento e comercialização. Todavia, o segmento identificado no médio capital
cafeeiro, em decorrência de possuírem maiores propriedades, apresentavam melhores
condições, em relação dos pequenos produtores, que, por sua vez, arcavam com as
incongruências do sistema, pagando juros altos, ainda, impedidos de comercializar a
própria colheita, fato que diminuía, ainda mais, seu percentual de lucro, nas conjunturas
adversas.
13
Escritura de hipoteca nº 419. Livro de Inscripção Especial nº 2A. Ibdem.
Considerações finais
Algumas leituras do Convênio de Taubaté chamaram atenção para o papel do
capital internacional como o grande “ganhador” dessa política econômica, aplicada pelo
Governo do Estado de São Paulo (e outros estados produtores de café, em sua primeira
fase), e, posteriormente pela aliança do Governo de São Paulo com grupos alemães,
ingleses e norte-americanos.
Nesse contexto destacamos a participação dos grupos ligados ao capital
internacional – Theodor Wille & Co. de Hamburgo, que já atuava há longo tempo no
Brasil, e de seus contatos mediados, principalmente, com os outros participantes,
J.Henry Schroeder & Co. de Londres, Crossmann & Sielcken Co. de Nova Iorque.
A atuação do Estado de São Paulo e seus agentes governamentais, juntamente ao
grande capital cafeeiro, com investimentos diversificados, que participaram dessa
primeira política de valorização, e que graças a essa intervenção lograram preservar o
processo de acumulação do setor cafeeiro, após a superação da aguda crise de 19061909, que também beneficiou os grupos de fazendeiros de café, a ponto de poderem
prosseguir, terminado o período de proibição de plantio de novos cafeeiros, a expandir
as plantações, até mesmo depois da grande crise de 1929.
A continuidade desse processo de acumulação de capitais, centrados na atividade
cafeeira, não pode ser desconsiderada, ainda que nesse período tenha prevalecido, na
esfera da produção, a tutela dos comissários de café e dos exportadores, representantes
do capital comercial e internacional, que, juntamente com a insuficiente política pública
de crédito agrícola, acabou reiterando a expropriação de parte significativa dos capitais
agrícolas, que continuou sendo drenado para o setor financeiro e comercial.
Ainda que tal assimetria hierárquica permanecesse existindo, entre os capitais e
os interesses de grupos distintos ao dos lavradores de café, mesmo após a Primeira
Valorização, ressaltamos que tal política de valorização conseguiu solucionar a severa
crise que afetou os plantadores de café, entre 1896 e 1906, como evidenciaram os dados
coletados no município de Casa Branca, no interior de São Paulo.
A nosso ver, sem tal política econômica de caráter de salvação do complexo
cafeeiro, e do setor de exportação, carro-chefe da economia do país, levada a cabo pelos
Estados produtores, dificilmente seria restabelecida a confiança do setor cafeeiro, pela
superação dos problemas criados na esfera da produção, cujas conseqüências poderiam
ter sido avassaladoras para a sociedade brasileira, como um todo.
Nesse sentido, “nem São Paulo nem o governo federal entraram no mercado
cafeeiro com o intuito de obter grandes lucros. Eles simplesmente pretendiam fortalecer
as cotações do café e com isso proteger o setor privado, manter a estabilidade da moeda
e, como subproduto, aumentar as receitas em impostos”. 14
BIBLIOGRAFIA
FONTANARI, R. O problema do financiamento: uma análise histórica sobre o crédito
no complexo cafeeiro paulista: Casa Branca (1874-1914). São Paulo: Editora
Unesp/Cultura Acadêmica, 2012.
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 32. ed. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 2003.
HOLLOWAY, Thomas H. Vida e morte do Convênio de Taubaté: a primeira
valorização do café. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1978.
_____. Condições do mercado de trabalho e organização do trabalho nas plantações
na economia cafeeira de São Paulo, 1885-1915, Estudos Econômicos, volume 2– 1972N. 6, p. 145-180.
LEFÈVRE, EUGÊNIO. A Administração do Estado de São Paulo na República Velha.
São Paulo: 1937.
LLOYD, Reginald. Impressões do Brasil no Século Vinte. Inglaterra: Lloyd's Greater
Britain Publishing Company, 1913.
MORAES, Luiza Paiva de Melo. A atuação da firma Theodor Wille & Cia. no mercado
cafeeiro do Brasil (1844-1918). São Paulo: Tese (Doutorado em História), FFLCHUSP, 1988.
PRADO JUNIOR, Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense,1969.
TOPIK, Steven. A presença do Estado na Economia Política do Brasil de 1889 a 1930.
Rio de Janeiro: Ed. Record, 1987.
SAES, Flávio A. M. A Grande Empresa de Serviços Públicos na Economia Cafeeira.
São Paulo: 1986.
NETTO, A. Delfim. O Problema do Café no Brasil. São Paulo: IPE/USP, 1981.
RIOS, José Arthur. O café e a mão de obra agrícola. IN ENSAIOS SOBRE O CAFÉ E
DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO. Rio de Janeiro: IBC, 1973.
14
TOPIK, Steven. A presença do Estado na Economia Política do Brasil de 1889 a 1930. Rio de Janeiro:
Ed. Record, 1987.
Anexo I:
Produção exportável do Brasil, produção exportável dos outros países produtores e
estoque mundial de café, em 1.000.000 de sacas (1899-1906).
Safra
Produção Exportável
Do Brasil
Produção Exportável
Dos Outros Países
Estoque
Mundial
1899/1900
9,25
4,35
6,20
1900/1901
11,31
3,79
5,84
1901/1902
16,09
3,65
6,87
1902/1903
13,07
4,50
11,26
1903/1904
11,13
4,63
11,90
1904/1905
10,52
3,92
12,36
1905/1906
11,49
3,95
11,26
Fonte: NETTO, A. Delfim. O Problema do Café no Brasil. São Paulo: IPE/USP, 1981.
P.51.
Anexo II:
Mapa da malha ferroviária do Estado de São Paulo, década de 1960. Destaque
para a região de Casa Branca.
Fonte: Adaptado de HOLLOWAY, Thomas H. Imigrantes para o café: café e sociedade
em São Paulo, 1886-1934. p.35.

Documentos relacionados