Histórias em quadrinhos Reflexões de Maria Livia Marchon

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Histórias em quadrinhos Reflexões de Maria Livia Marchon
Histórias em quadrinhos
Reflexões de Maria Livia Marchon
Quem não se lembra de boas leituras de quadrinhos na sua infância?
Uma ex-professora de Literatura da UECE afirmou que seu amor à literatura partiu dos quadrinhos, porta
de entrada para os livros e não prejuízo para os mesmos, como muitos ainda apregoam. Sou professora de
Literatura, amo livros, mas, dos anos de minha meninice brotam agradáveis recordações não apenas de
livros, mas também de histórias em quadrinhos muito atrativas.
Muitas tardes passei devorando com afã longos contos de fadas nas lindas edições de capa dura da
Editora Vecchi. Meu primeiro contato, porém, com a história do Tarzan se deu na edição quadrinizada, em
capa dura, não sei se da EBAL, um álbum em feitio de cheque gigante, desenhado, talvez, pelo famoso
André Leblanc.
E foi a revista Vida Juvenil que me despertou o interesse pelos clássicos da literatura que quadrinizava. Eu
teria apenas uns nove anos quando conheci o romance Os Miseráveis, de Victor Hugo! Jamais esqueci a
terrível cena de Fantine, a pobre mãe solteira que vendera até os cabelos e os dentes para sustentar sua
filhinha Cosette,ser atingida por pedaços de gelo jogados nas suas costas frágeis e tuberculosas por um
passante impiedoso.Lembro-me, como se fosse hoje,do ex-presidiário Jean Valgean, sendo salvo pelo bom
padre que afirma ao policial ter dado a ele os candelabros de prata, ou, depois, durante a
revolução,carregando pelos esgotos de Paris o jovem ferido que se casaria com sua querida Cosette e o
desprezaria, sem saber que tivera a vida salva pelo pai adotivo da amada. Muito antes de que os
personagens do imortal romance de Victor Hugo passassem às telas de cinema, eu tive meu primeiro contato
com eles nos quadrinhos da Revista Juvenil, de capa azul.
Na Vida Infantil,uma revista irmã de capa rosa,eu convivi com o nacional macaquinho Pinduca e também
com Hortelino Troca Letra, Frajola, Piu Piu, Pernalonga e os outros personagens da Warner Brothers.Aí
me deliciei, igualmente, com as mirabolantes aventuras da menina que ficava pequenininha graças às
palavras mágicas “Areia da grossa, areia da fina, areia me faça ficar pequenina”.
Havia ainda, anualmente, o Almanaque da Vida Infantil, com muitos quadrinhos agradáveis. Lembro-me
de estar com um embaixo do braço no aeroporto, antes de viajar para o Uruguai aos ... três anos de idade.
Muito Tico-Tico também eu li, com seus personagens Reco Reco, Bolão e Azeitona e só adulta vim a
saber que fora a primeira revista em quadrinhos no Brasil, durando de 1905 a 1957. E reli com prazer meus
queridos contos de fadas quando apareceram quadrinizados e versificados em simpáticas edições do fim dos
anos cinquenta.
Já adulta, pude apreciar, com meus filhos, as belíssimas edições de capa dura do Príncipe Valente, com
quadrinhos por vezes gigantescos, ocupando quase que uma página inteira para dar a ilusão de um muro alto
de castelo.
Não apenas histórias em quadrinhos completas, em revistas, marcaram minha infância; havia também,
nos jornais, tiras de três ou quatro quadrinhos inesquecíveis, como a do Reizinho, baixinho e barrigudo, a de
Dom Fulgêncio, o homem que não teve infância e as dos Sobrinhos do Capitão. Em feitio de folha de
cheque, eu lia as aventuras do Pequeno Xerife e as de Xuxa, um detetive que nada tinha a ver com a futura
apresentadora de TV.
Como criança típica da classe média gaúcha e, ainda por cima filha de uruguaia, eu lia com prazer a
revista argentina Billiken, onde também figuravam quadrinhos como os dos simpáticos coelhinhos da
Família Conejin. Dava boas risadas com as histórias do pato Donald e Mickey, da Disney, e a famosa
Luluzinha americana, até esta ser completamente desbancada pela Mônica, Magali e demais personagens de
Maurício de Souza, o primeiro brasileiro a conseguir enfrentar, com suas tiras brasileiras, o mercado
americano dos quadrinhos e a vencê-lo pelo mundo a fora.As editoras e jornais preferiam os quadrinhos
estrangeiros, muito mais baratos, mas Maurício soube se impor e hoje vende sua turma até no Nepal!
E Maurício ainda criou as histórias para os adolescentes, através da bem sucedida Turma Jovem da
Mônica, conquistando os jovens com sua forma de mangá, quadrinho japonês que há vários anos chegou
para ficar. O desenhista ainda pretende lançar a Mônica da terceira idade, abordando o duro tema da morte
com sua sabedoria de vida, que já vem aparecendo através de seu personagem Horácio, o simpático e
pensativo Dinossaurozinho, único personagem que o próprio Maurício desenha pessoalmente, e que ,
nascido de um ovo, vive a procurar a mãe perdida, como um personagem de recente novela televisiva.
Na adolescência, meu aprendizado de francês viu-se acelerado pela leitura das Aventuras do detetive
belga Tintim e seu cãozinho Milou. Ri muito com a sátira aos norteamericanos realizada por Udinesco
através de seu herói gaulês Astérix, continuamente a vencer os romanos invasores com a ajuda do
gigantesco amigo Obélix, que vive carregando um menhir (e foi representado no cinema por Gérard
Depardieu), Panoramix, o sábio druida, Ideafix, o cachorrinho, e outros habitantes da invencível aldeia
gaulesa. É interessante lembrar que, no Brasil, os quadrinhos começaram no século XIX justamente com as
charges políticas de revistas da época, tipo O Malho.
Já nos tempos universitários, li com muito prazer o Menino Maluquinho e, sobretudo, a Turma do Pererê,
encantadoras e bem humoradas revistas em quadrinhos do nosso Ziraldo. Nunca me esquecerei da onça
Galileu, de Tinintim ou do coelho Geraldinho, nem de uma inteligente versão brasileira da festa de Natal,
com uma palmeira em vez de pinheiro e frutas nacionais como banana e abacaxi ao invés de nozes e outras
gordurosas e caras frutas secas europeias. Até hoje lamento Ziraldo não ter continuado a publicar suas duas
revistas.
Vivendo em um lar que valorizava os livros e os apresentava em abundância, meu amor pela literatura,
de que me tornei professora, nunca se viu prejudicado pelo amor aos quadrinhos, cujo valor, já adulta, vim a
conhecer de modo intenso graças a meu irmão mais velho, Francisco Araujo. Formado em Letras Clássicas e
entendido em Homero e Virgílio, ele também valorizava cinema e quadrinhos e tornou-se o primeiro
professor universitário do Brasil, e talvez do mundo, a estudar comics como coisa séria, no Curso de
Introdução às Histórias em Quadrinhos, inaugurado em 1970, na Universidade Federal de Brasília.