O Segredo dos Mundos Paralelos
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O Segredo dos Mundos Paralelos
O Segredo dos Mundos Paralelos Thiago Floriano dos Santos *Conto vencedor do Prêmio Franklin Cascaes de Literatura 2005 Mundos paralelos eram realmente difíceis de se imaginar. Mas hoje se sabe que além de Canderia, realmente existe outro plano espiritual. Batizado de Flocaderia, este mundo teve sua existência provada pelo xamã Jamal Flocadin, recebendo dele o nome. Flocadin sempre afirmara sentir uma força exterior, além das conhecidas em seu mundo. Sabia, então, se tratar de um mundo espiritual paralelo. Cabelos e barba grisalhos, olhos negros e olheiras fortes, aproximadamente um metro e noventa de altura. Flocadin era um Mago que possuía uma aparência deveras abatida, embora sua vitalidade estivesse ainda preservada ao longo de seus mais de duzentos e cinqüenta anos. Vestia-se com uma túnica cinza, que combinava perfeitamente com sua aparência. Foi em uma de suas viagens por Canderia que conheceu o sábio druida Croden Lofer, cuja fama de mestre do ilusionismo precede qualquer experimento que tenha feito publicamente. Ao contrário do que o povo Canderiano sugeria, Lofer não trabalhara mais com ilusionismo. Estava agora abrigado em sua caverna, em seu mais novo anseio: conseguir resultados na área da necromancia, com invocações. Ao contrário de Flocadin, ele era um Mago jovem, não aparentava possuir mais de cento e vinte anos, embora já estivesse prestes a completar cento e oitenta. Com seus quase dois metros de altura, cabelos e olhos castanhos, Lofer realmente apresentava-se muito jovial e vestia um sobretudo azul marinho. 1 Thiago Floriano dos Santos como Thomas Fernando Sadig Flocadin e Lofer trocaram muitos de seus conhecimentos mutuamente, cada um com um intuito diferente, mas sabiam que poderiam ser úteis um ao outro. O xamã procurava uma forma de provar a existência do segundo plano espiritual, enquanto o druida mantinha-se fiel à proposta de invocar espíritos, independente de sua origem. Minotauros e Elfos de Canderia, embora não exprimissem nenhuma afinidade na diplomacia, estavam de acordo em uma questão: todos achavam que Lofer estava se arriscando demais ao invadir o campo da necromancia. Certo dia, após seu tradicional almoço composto de ervas vermelhas e carne de tatu, voltou ao seu quarto de experiências. Defronte ao espelho, emoldurado com penas e resíduos de metais, encontrou um recado de Flocadin. Um pergaminho escrito aparentemente com sangue que dizia: “descobri algo que deve interessar-lhe, procure-me ao pôr-do-sol no caminho para o reino dos Orcs”. Lofer não hesitou. Ao final da tarde, partiu imediatamente rumo ao reino dos Orcs, e lá estava Flocadin, a exatamente duzentas jardas de distância da caverna. O caminho até a terra dos Orcs ainda era enorme, mais umas quatro mil jardas. De onde estavam conseguiram avistar o que Flocadin falara em seu recado. Era um sinal de fumaça amarelado, saindo de um lugar que imaginavam, por sua experiência, ser o castelo de pedra dos Orcs. Seguiram pelo caminho lúgubre em direção ao longínquo destino. Seguindo à frente, percebiam que o sinal de fumaça não estava exatamente onde imaginavam. Para piorar a situação, avistaram uma frota de salteadores. Como não carregavam nada de valor que pudesse agradar os ladrões, temiam ser punidos pela audácia 2 Thiago Floriano dos Santos como Thomas Fernando Sadig de atravessar aquele caminho sem um único cubo de ouro. Flocadin agarrou seu cetro de marfim como se fosse a única coisa que lhe tivesse significado na vida, mas seguiram corajosamente. O grupo de salteadores era formado por sete cavaleiros. O líder, Hérodo, se posicionava no meio, utilizando um elmo dourado e o restante da armadura preta. Sua aparência causava pânico a qualquer ser, dos fortes Minotauros aos sábios Magos (incluindo Flocadin e Lofer), dos audazes Orcs aos ágeis Elfos. Não se sabia de forma alguma a qual reino pertencia ou se era alguma criatura errante. Hérodo desceu de seu cavalo e dirigiu-se vagarosamente aos destemidos magos. Perguntou se possuíam algo de valor para oferecer-lhe - sua voz retumbante ecoava pelos ares de maneira assustadora. Lofer, por ser mais eloqüente, tomou a frente e afirmou estarem numa jornada em busca do desconhecido. Todos em Canderia sabiam que magos não costumavam falar nada inteligível a ouvidos alheios, porém Flocadin o interrompeu e explicou estar seguindo na direção do sinal de fumaça amarela. Os cavaleiros de Hérodo demonstraram temor instantaneamente, e até ele pareceu ter sentido o peso das palavras. - Desde que a cortina de fumaça áurea se sobrepôs àquela região, ninguém que ousou entrar naquela área voltou para contar-nos sua história. – Falou Hérodo com ar aterrorizado - Se são suficientemente loucos, sigam por este caminho estreito a noroeste. Os senhores me desculpem mas tenho pessoas ricas para assaltar. – E seguiu rumo ao reino dos Elfos. 3 Thiago Floriano dos Santos como Thomas Fernando Sadig Os Magos se entreolharam incrédulos, mas seguiram no caminho indicado pelo salteador. Dispostos a desafiar o bosque até chegar na “cortina de fumaça áurea”, como descrevera Hérodo, os dois seguiram empunhando seus cetros, única arma contra os exóticos animais encontrados no local. Alimentavam-se pelo caminho apenas com as poucas ervas boas que achavam, até que vislumbraram a incrível cortina de fumaça. Era exatamente como se imaginava quando Hérodo a descreveu. Ao entrar, parecia um domo de energia, cercado de espíritos, que, numa formação circular faziam uma espécie de culto. A situação era, no mínimo, imprevisível. Ficaram perplexos e observaram inertes todo aquele ritual. Eis que surgia, no centro do círculo, um ser amorfo. Logo imaginaram que fosse mais um espírito sendo invocado. E não estavam errados, era o espírito do necromante Haznar que viera evocar todos os espíritos que ali estavam e para transmitir uma mensagem a quem quisesse ouvir. - O segredo que vocês procuram desvendar encontra-se guardado em drágeas mágicas. Os Minotauros, quando acham alguma, utilizam para alimentar seus escaravelhos antes de torná-los oferendas aos seus deuses. Não há muitas destas drágeas em locais conhecidos, mas o Pântano Pardo reserva muitos segredos. – Haznar fala com um tom sereno de quem já conhece quaisquer perguntas e respostas. 4 Thiago Floriano dos Santos como Thomas Fernando Sadig Mais uma vez os magos ficaram atônitos. Lofer pensava como era possível aquela evocação dos espíritos, enquanto Flocadin imaginava-se encontrando as drágeas e partindo para o novo mundo. - Como saberemos se encontramos as tais drágeas? – perguntou Lofer a Flocadin. - Sabia que perguntariam. – antecipou-se Haznar – As drágeas mágicas parecem sementes durante o dia, portanto é preciso procurá-las à noite. Em meio à mais completa escuridão elas exibem uma exuberante mudança de cores ao serem tocadas. Para ter certeza de que estão com as drágeas certas basta pressionar suas pontas, desta forma elas exalam um odor característico. Estou certo de sua capacidade para encontrá-las. Boa sorte! Os magos saíram do recinto e partiram imediatamente rumo ao reino dos Minotauros. Afinal, era muito mais simples encontrar um Minotauro que pudesse responder onde encontrar uma das drágeas do que se aventurar em meio ao Pântano Pardo. Rumaram no sentido leste, passariam pelo reino Orc e em seguida tomariam o caminho para o dos Minotauros. Seriam alguns dias de aventura, portanto, não era má idéia parar e conversar com os Orcs em busca de algumas idéias e ajudas com suprimentos. Os Magos não tinham nenhum tipo de controvérsia diplomática com nenhum dos outros reinos, nem mesmo com a maior parte das criaturas errantes que vagavam por Canderia. A jornada até o Castelo das Pedras, símbolo-mor do reino Orc, foi tranqüila. Chegaram e foram logo bem recebidos, embora a hospitalidade dos Orcs não seja algo digno de admiração. Conseguiram algumas ervas para 5 Thiago Floriano dos Santos como Thomas Fernando Sadig levar consigo na viagem, além de alguns bons pedaços de carne de jabuti. Uniram-se a eles um grupo de mercenários sedentos por sangue, ouro e desafios. Lúcius, Cotran e Marlos eram os nomes dos mercenários. Guerreavam juntos desde a última aparição do cometa Finley (que acontece a cada período de aproximadamente 128 anos), quando venceram um dragão que estava a assombrar os Elfos. Lúcius era um guerreiro nato, virtuoso no manuseio das espadas, demonstrava sua habilidade em qualquer oportunidade de tornar-se famoso. Cotran, por sua vez, costumava se fazer valer de sua experiência com as adagas - lançava-as com velocidade e com ferocidade espantosas. Já Marlos era especialista em criar armas. Seu talento em utilizar para o combate qualquer material que encontrasse pelo caminho o consagrara como um verdadeiro mestre das invenções. Seguiram caminho, novamente em direção ao leste, mudando em alguns pequenos trechos para sudeste de forma que chegariam exatamente no coração do reino dos Minotauros. Lá poderiam procurar algum sacerdote, que lhes ajudaria em sua busca. Desta vez a viagem não foi tão tranqüila como esperavam, logo no primeiro cento de jardas se depararam com uma criatura errante das mais temíveis, um unicórnio negro chamado Mortar. Os mercenários assustaram-se, mas tomaram a dianteira no que seria uma sangrenta batalha. Lofer, por sua vez, ocupou-se em não permiti-la. Utilizando toda sua habilidade com o ilusionismo, fez voar aos céus uma grande esfera luminosa, que indubitavelmente apavorou Mortar. O unicórnio correu o máximo que podia, emitindo sons que se assemelhavam a gemidos. Após a demonstração de poder do mago, o grupo sentiu-se muito revigorado e confiante, era o primeiro passo para a conquista do trajeto. 6 Thiago Floriano dos Santos como Thomas Fernando Sadig Os três bravos mercenários e os dois destemidos e curiosos magos seguiam o percurso, sempre em estado de alerta. Cruzaram a fronteira do reino dos Orcs com a dos Minotauros e mais uma vez depararam-se com uma horrenda criatura. Desta vez o assombro foi causado por um Golem de Ferro, com olhos profundos e possuidor de uma força incrível que nem os valentes Minotauros ousavam questionar. O Golem posicionou-se bem no centro da viela em que andavam os viajantes, impedindo assim o prosseguimento da jornada. Seus grunhidos já haviam virado lenda por seu absurdo volume, dizia-se poder ouvi-los até mesmo em outros reinos. Os magos questionavam-se sobre o que poderiam fazer para enfrentar aquele gigante ferroso, os mercenários posicionavam à frente para o eminente combate. Enquanto Lúcius e Cotran atiravam-se contra o Golem, Marlos fora atirado pelo gigante para o meio da Floresta Abissal que cercava a viela. Flocadin tentou, em vão, utilizar uma mágica de desintegração enquanto a luta prosseguia. Eis que surge Marlos novamente de dentro da floresta, trazendo consigo um coco. Os demais se espantaram ao ver aquilo. Como podia Marlos pensar em comida numa hora dessas? Empunhou sua espada, cortou o coco ao meio e arremessou as partes com a abertura voltada para cima. A concavidade permitiu que o líquido contido no coco só se espalhasse ao atingir o Golem, que incrivelmente perdeu parte dos movimentos. Parecia que havia enferrujado. Todos correram para aproveitar a chance de fugir daquele gigante. Finalmente chegaram ao Altar de Kashtar, o palco de todas as oferendas dos Minotauros para seus Deuses. Sob o altar residiam os altos sacerdotes, que serviriam aos Magos como 7 Thiago Floriano dos Santos como Thomas Fernando Sadig principal fonte de informações sobre as drágeas. Flocadin se aproximou da porta e nela bateu três vezes. - Quem é? – perguntou um dos sacerdotes com uma voz retumbante, típica dos Minotauros. - Os Magos Lofer e Flocadin desejam falar-lhes – apressou-se Cotran. A porta se abriu, e lá estavam quatro Minotauros, vestidos em túnicas vermelhas, exceto por Khabul, que utilizava a cor verde. Khabul era o mais elevado sacerdote do reino, cabendo a ele a incumbência de presidir a ordem sacerdotal. - Precisamos de sua ajuda para encontrar o alimento sagrado que dão aos seus escaravelhos antes de ofertá-los aos Deuses – afirma Lofer tomando a iniciativa. - Sinto que chegaram em má hora, estamos também em busca, pois os Deuses já esbravejam conosco pela falta de oferendas. Kashtar, o Deus da luz, já não nos transmite mais sua energia. Há quanto tempo o céu não resplandece com a beleza do arco-íris? – Khabul parece cabisbaixo. De fato, as drágeas não se faziam presentes nas oferendas por um vasto período de tempo. Os Minotauros chamaram alguns de seus jovens guerreiros para auxiliá-los na busca. O Pântano Pardo ficava entre os reinos Élfico e Orc, sendo assim um lugar perigoso para os Minotauros que não tinham uma boa relação com os Elfos. Mas, acompanhado dos Magos e dos mercenários, não parecia um problema para Khabul deixar que alguns de seus soldados partissem no intuito de encontrar o “alimento sagrado”. Com a presença de alguns Minotauros tudo parecia mais fácil, já que eles conheciam as drágeas e não seria difícil identificá-las. 8 Thiago Floriano dos Santos como Thomas Fernando Sadig Partiram imediatamente para sudoeste como se fossem para o reino dos Elfos, chegando na estrada que leva ao reino procurariam a primeira trilha a noroeste que encontrassem e estariam no pântano. Levavam consigo mais suprimento, com boas ervas e carne de carneiro, afinal, não poderiam se privar de uma boa alimentação. O caminho até o pântano foi tranqüilo, exceto pelo cansaço. Mas ao entrar naquele lugar se viram em um melindre. Ninguém conhecia o local, e mesmo se conhecessem, seria assustador. O cenário só se descrevia por uma palavra: tétrico! O grupo, agora formado por dez corajosos aventureiros, seguia desbravador para o interior do pântano, com cautela, mas sem medo. Sabiam que, naquele lugar, qualquer descuido poderia tornar-se um desastre fatal. As criaturas que habitavam o pântano não eram das mais amigáveis e certamente não faziam gosto de visitas. Não era possível fazer distinção entre dia e noite em meio àquele sombrio local, o que tornava a busca mais difícil ainda. Caminharam por horas analisando todo o tipo de semente que encontravam pelo caminho. Foram atacados por diversos animais que não gostaram de ter seu lar invadido, mas obtiveram êxito contra todos. Ao final de uma longa caminhada, um dos Minotauros avistou o que deveria ser o “alimento sagrado” e apressou-se em chamar os demais. Lofer e Flocadin lembraram imediatamente das palavras de Haznar ao ver a mudança de cores nas drágeas. Nem de perto contiveram sua alegria ao apertar as pontas e sentir o odor característico que exalavam. Não que ele fosse agradável, mas era gratificante senti-lo depois de tão árdua procura. 9 Thiago Floriano dos Santos como Thomas Fernando Sadig Sim, mas e agora, o que fazer com as drágeas? Os Minotauros guardavam as que podiam, já pensando em suas oferendas. Flocadin, por sua vez, tomou coragem e arriscou. Ingeriu a drágea e instantaneamente desmaiou. Todos ficaram preocupados com ele e assustados com o poder das drágeas. Neste momento ele fazia a travessia para o outro plano, através de um grande túnel negro, girando como se estivesse no olho de um furacão. Ao chegar lá viu-se rodeado de árvores, como se estivesse na floresta, mas algo era diferente e ele não sabia explicar. Alguém apareceu ao seu lado, apresentou-se como sendo Haznar, desta vez em uma forma humana. - É assim que somos no outro lado de nossas vidas. Podemos ser Orcs, Minotauros, Elfos, Magos e até criaturas errantes em Canderia, mas aqui, somos todos Humanos. Não sei se isso é bom ou ruim, pois as guerras não param existindo uma única espécie reinante, mas é a realidade. Aqui todos são iguais na sua matéria, mas diferentes em suas posses e idéias, e todos tentam impor seu modo de vida aos outros. – Haznar tinha um tom de tristeza na voz. Apontou um espelho na direção de Flocadin, que ficara chocado com o que via. Sua figura refletida era humana, tal qual a figura de Haznar. Ele não sabia se gostaria de voltar ou se queria explorar o mundo que descobrira, mas o homem ao seu lado o alertou. - Volte para Canderia, a crueldade impera no mundo humano. No seu mundo existem criaturas terríveis, mas você as identifica visualmente e consegue decifrar suas índoles à distância. Aqui todos aparentam ser iguais e você nunca sabe se está 10 Thiago Floriano dos Santos como Thomas Fernando Sadig lidando com um cordeiro ou com um lobo. Para ficar eternamente aqui, basta tomar uma drágea durante a travessia, mas aconselho que não o faça. Neste instante Flocadin voltava a Canderia. Estava rodeado por seus companheiros atônitos com o desmaio repentino do xamã. Explicou-lhes da existência do outro mundo e como ele era, também tornou pública a fórmula para não voltar para Canderia. Todos ficaram curiosos em conhecer Flocaderia, e experimentaram a oportunidade. Quando voltaram estavam atordoados, ofegantes, queriam somente compartilhar suas observações. Por sugestão de Lofer, inventaram histórias tenebrosas, de forma que ninguém em Canderia quisesse experimentar uma daquelas drágeas. Excitados com toda a aventura, saíram do pântano e seguiram cada um ao seu reino para contar as histórias que haviam protagonizado. Os mercenários fizeram questão de transmitir todos os detalhes nos quatro cantos do mundo, afinal, o que queriam eles além da fama? Ainda hoje há quem não acredite em Flocaderia, mas é praticamente consenso em todos os reinos que se admire a história dos planos espirituais. As palavras do sábio Haznar ainda consomem o pensamento de Flocadin, que desde a aventura no outro mundo nunca mais foi o mesmo. Trancou-se em sua caverna e raramente recebe visitas. Dizem que ele está louco e ainda pretende voltar para entender a razão pela qual Haznar disse-lhe aquilo tudo. 11 Thiago Floriano dos Santos como Thomas Fernando Sadig