O Amor e a Sexualidade na Biblia

Transcrição

O Amor e a Sexualidade na Biblia
EQUIPAS DE NOSSA SENHORA
O Amor e a Sexualidade na Bíblia
“Amemo-nos uns aos outros, porque a caridade vem de Deus e todo
aquele que ama nasceu de Deus e conhece a Deus.”
( 1 Jo 4,7 )
TEMA DE ESTUDO
(adaptado do livro de Pierre Débergé
editado pela Paulus)
1ª Edição – Maio de 2004
1
“O Cântico dos Cânticos IV, 1958”
Pormenor de Marc Chagall
2
INDÍCE
Apresentação ................................................................................... 7
Introdução ....................................................................................... 9
I – O AMOR HUMANO AO LONGO DA BÍBLIA........................15
1ª REUNIÃO………………………………………………………..15
Uma sexualidade dessacralizada……………………………………16
Sexualidade, fecundidade, violência………………………………..22
2ª REUNIÃO………………………………………………………..33
Entre a desconfiança e o desprezo………………………………….33
E o Cântico dos Cânticos…………………………………………...40
II – OS RELATOS DA CRIAÇÃO (Gn 1-3)………………………49
3º REUNIÃO………………………………………………………..49
Homem e mulher Ele os criou……………………………………...50
A admiração de Adão………………………………………………56
4ª REUNIÃO………………………………………………………..67
O reino da inveja e o domínio………………………………………67
Elogia da diferença…………………………………………………75
3
III – JESUS, MENSAGEIRO DO AMOR………………………...79
5ª REUNIÃO………………………………………………………..79
Jesus e as mulheres…………………………………………………81
Jesus e a moral sexual do Seu tempo……………………………….84
Jesus e o casamento………………………………………………...90
6ª REUNIÃO………………………………………………………..97
Jesus e o celibato……………………………………………………97
A graça da castidade………………………………………………105
IV – PAULO, O INCOMPREENDIDO………………………….111
7ª REUNIÃO………………………………………………………111
Enfim, diferentes…………………………………………………..112
O Corpo reencontrado……………………………………………..114
Matrimónio ou celibato?..................................................................117
A “submissão” das mulheres……………………………………...124
Uma aliança a reconstruir sem cessar……………………………..130
EPÍLOGO – SE TU CONHECESSES O DOM DE DEUS……135
8ª REUNIÃO………………………………………………………135
4
ABREVIATURAS E SIGLAS
Por ordem alfabética:
Ab
Ag
Am
At
Br
Cl
1Cor
2Cor
1Cr
2Cr
Ct
Dn
Dr
Ecl
Eclo
Ef
Esd
Est
Ex
Ez
Fl
Fm
Gl
Gn
Hab
Hb
Is
Jd
Jl
Jn
Jó
Jo
1Jo
2Jo
3Jo
Abdias
Ageu
Amós
Actos dos Apóstolos
Baruc
Colossences
1ª Epístola aos Coríntios
2ª Epístola aos Coríntios
1º Livro das Crónicas
2º Livro das Crónicas
Cântico dos Cânticos
Daniel
Deuteronômio
Eclesiastes (Coélet)
Eclesiástico (Sirácida)
Epístola aos Efésios
Esdras
Ester
Êxodo
Ezequiel
Epístola aos Filipenses
Epístola a Filomeno
Epístola aos Gálatas
Gênesis
Habacuc
Epístola aos Hebreus
Isaías
Epístola de S. Judas
Joel
Jonas
Jó
Evangelho segundo S. João
1ª Epístola de S. João
2ª Epístola de S. João
3ª Epístola de S. João
5
Jr
Js
Jt
Jz
Lc
Lm
Lv
Mc
1Mc
2Mc
Ml
Mq
Mt
Na
Ne
Nm
Os
1Pd
2Pd
Pr
Rm
1Rs
2Rs
Rt
Sb
Sf
Sl
1Sm
2Sm
Tb
Tg
1Tm
2Tm
1Ts
2Ts
Tt
Zc
Jeremias
Livro de Josué
Judite
Livro dos Juízes
Evangelho segundo S. Lucas
Lamentações
Levítico
Evangelho segundo S. Marcos
1º Livro dos Macabeus
2º Livro dos Macabeus
Malaquias
Miquéias
Evangelho segundo S. Mateus
Naum
Neemias
Números
Oséias
1ª Epístola de S. Pedro
2ª Epístola de S. Pedro
Provérbios
Epístola aos Romanos
1º Livro dos Reis
2º Livro dos Reis
Rute
Sabedoria
Sofonias
Salmos
1º Livro de Samuel
2º Livro de Samuel
Tobias
Epístola de S. Tiago
1ª Epístola a Timóteo
2ª Epístola a Timóteo
1ª Epístola aos Tessalonicenses
2ª Epístola aos Tessalonicenses
Epístola a Tito
Zacarias
6
APRESENTAÇÃO
Com a intenção de alargar a escolha dos temas de estudo, em
contacto com a Supra Região de França, conseguiu-se obter este
tema, baseando-se num livro de Pierre Debergé que, depois de
traduzido e adaptado, está à disposição de todas as Equipas.
Em Portugal, o livro foi editado pela Paulus Editora, a quem
muito agradecemos ter autorizado a sua adaptação a tema de estudo
que pode servir de leitura complementar a quem quiser ou ser lido
por todos os casais cujas equipas não escolham este tema.
Um tema, cujo título nos deixa perceber que a discussão da
Igreja em matéria de amor e de sexualidade tem sido púdico,
repressivo e longe das aspirações da mulher e do homem de hoje.
Pierre Debergé percorre a Bíblia à procura de uma mensagem
que foi frequentemente deformada ao longo da história, através da
moral judaico cristã, ou utilizada para fins pouco respeitadores do
texto bíblico. Desde os relatos da Criação até às recomendações de
Paulo, em relação às mulheres, nada é esquecido: o pecado original; a
legislação bíblica sobre o casamento; o adultério; a violação; a
homossexualidade...; a atitude de Jesus e de Paulo em relação às
mulheres, ao casamento e ao celibato...ou o magnífico livro do
Cântico dos Cânticos.
Ao longo da leitura, a modernidade e a actualidade da Bíblia
parecem evidentes. Embora tenha sido redigida num mundo muito
distante do nosso, a Bíblia, diz Debergé, contém uma mensagem
capaz de iluminar as questões que se colocam hoje no domínio do
amor e da sexualidade.
Antes de começar a ler, propomos que responda pessoalmente
e por escrito às seguintes perguntas.
1. Qual a imagem da sexualidade que temos nós, pessoalmente?
2. Qual a imagem que parece prevalecer hoje à nossa volta?
7
3. Que palavras associamos à sexualidade? Liberdade?
Frustração? Desvio? Respeito? Perigo? Abertura? Drama?
Tabu?
4. Encontram-se soluções aos problemas de hoje na Bíblia?
5. A noção de sexualidade está claramente definida, não há
confusões sobre ela?
As respostas devem ser guardadas, depois, deve-se ler a
introdução que vai permitir alargar o nosso ponto de vista e ser mais
receptivo ao tema de estudo apresentado.
Os quatro capítulos e o epílogo do livro foram adaptados para
serem tratados em oito reuniões, sendo cada uma composta por:
A. Tema
B. Questões para a Reflexão em Casal e Partilha em Equipa
C. Sugestões para um Dever de se Sentar
D. Texto para a Oração em Equipa
As questões propostas são indicativas e servem para ajudar ao
aprofundamento do texto, em casal e em equipa.
Finalmente, ficaremos muito reconhecidos a todos que
queiram estudar este tema e apresentar no fim do ano as críticas e
sugestões que acharem pertinentes, para se poder proceder às
eventuais correcções ou alterações numa futura edição.
Antecipadamente gratos
A Equipa Supra Regional
Maio de 2004
8
INTRODUÇÃO
A Sexualidade: da “libertação” à repressão
Há pouco menos de vinte anos, M. Kundera escrevia sobre
uma heroína de um dos seus romances: “Ela encara as coisas de
forma demasiado séria, leva tudo para o trágico, não consegue
perceber a leveza e a alegre futilidade do amor físico. Ela
queriaaprender a leveza! Queria que lhe ensinassem a não ser
anacrónica.”1 Anacrónica, Teresa é-o com efeito, em relação ao seu
amigo Tomás que tenta convencê-la que “o amor e o acto do amor
são dois mundos diferentes”.2 Ao contrário de uma cultura reinante
que alimenta a imagem de uma sexualidade leve e liberta, Teresa
sente, claramente contudo, que as relações sexuais estão carregadas
de sentido e que implicam todas as dimensões da pessoa.
O sofrimento de Teresa poderia parecer negligenciável, se ele
não fosse o de muitos homens e mulheres a quem tinham acenado
com o aparecimento de uma sexualidade sem tabus e sem interdições
e que se encontram hoje confrontados com terríveis feridas ou um
regresso trágico da repressão. Enquanto sonhavam com “sexo
divertido, um sexo que fosse um meio de comunicação simpático, um
pouco como a comida3”, o fim dos anos 1990 projectou, com efeito,
na cena pública os dramas que abanaram a opinião pública 4.
«Apercebemo-nos de que um perigo rondava. Nem nas famílias, nem
na escola, nem em qualquer outro sítio se estava ao abrigo de
ignóbeis apetites que aprendemos rapidamente a estigmatizar5”.
Descobrindo no seu seio violências inimagináveis, a sociedade
1
L’insoutenable légèreté de l’être, Gallimard, Paris, 1984, (Editado em português
pela Dom Quixote: A insustentável leveza do ser, 1985).
2
Ibidem.
3
P. Breugnot, in Libération, 13 de Setembro de 1986.
4
Como a do pedófilo Dutroux, durante o Verão de 1996.
5
J.-C. Guillebaud, La tyranie du Plaisir, Paris, 1998.
9
iniciou, então, rapidamente e “de forma policial”, a erradicar a
ameaça. «Pais incestuosos, professores ou padres obcecados,
assassinos, obedecendo às suas pulsões, patrões lúbricos,
tiranizando os seus assalariados: a mesma angústia denunciadora, a
mesma exigência de repressão invadindo os “media”. Em breve, nem
um dia passará sem que um sofrimento escondido, um drama
demasiado tempo abafado no silêncio, ocupe a crónica do primeiro
que chega a um qualquer centro administrativo. (...) Um novo olhar
inquisidor foi lançado sobre o adulto, o esposo, o turista ou o
monitor desportivo. Encontraram-se tónicas inquisidoras para
descrever “roçares” duvidosos, carícias abusivas e estas hediondas
trocas das quais a carne infantil era o ganho6.» A “libertação
sexual” prometida nos anos 70 conduzia, assim, trinta anos mais
tarde, a decepções trágicas sob um fundo de repressão judicial 7.
Se acreditarmos num artigo publicado no jornal Le Monde,
datado de 5 de Dezembro de 2000, a situação não parece de todo ter
melhorado. Denunciando uma sociedade cada vez mais
“consumidora de carne fresca”, ao encher “os ecrãs de cinema, os
estádios, as emissões televisivas e os anúncios publicitários”, A.
Reyes constata que «em todos os domínios e, evidentemente, no da
sexualidade, a nossa sociedade está cada vez mais normativa. (…)
Todas as nossas palavras, todos os nossos gestos são vigiados e
julgados com uma grelha politicamente correcta que rege as
relações humanas e até a relação com o próprio corpo, seguindo
termos cada vez mais rígidos que os tribunais, a partir de agora, se
vêem encarregados de fazer respeitar». Alguns alegrar-se-ão com
isso, sem dúvida. Seria esquecer que esta constatação é acompanhada
por outra, igualmente trágica, já que diz respeito a uma das
6
7
J.C. Guilleband, La Tyranie du Plaisir, Paris, 1998
“Operou-se uma espantosa reviravolta do tempo, escreve D. Salas. A um tempo
imóvel e silencioso do incesto, sucede uma mecânica penal que se deixa ir.
Colocações intempestivas da criança e encarceração do pai reproduzem em
espelho uma violência do Estado, face à violência da indiferenciação. Tudo isto é
talvez inevitável, mas porquê uma tal precipitação?”, Esprit, Dezembro de 1996.
A actualidade recente, em 11 de Abril último, com o suicídio de um professor
suspeito de pedofilia, confirma a pertinência da interrogação.
10
contradições fundamentais da nossa sociedade: Quanto mais os
corpos são considerados mercadorias e os seres humanos
consumidores, mais somos compelidos a sermos saudáveis, gentis,
policiados. Ao mesmo tempo em que as pulsões sexuais são
exploradas como nunca pela máquina comercial, o indivíduo vê
negado o direito de exprimir as suas próprias pulsões. Compreende-se, assim, muito melhor o título deste artigo “O sexo entre a
repressão e a regressão” – e a sua apresentação dispensa qualquer
comentário: “A verdadeira pornografia, hoje, não está aí onde se
julga: situa-se do lado da obscenidade, da ideologia comercial no
jogo das pulsões e das frustrações que ela suscita
permanentemente.”
Enfim, ainda que o ponto de partida da sua análise seja
diferente do artigo precedente, também Monique Sperber fazia notar,
recentemente: “Começa a espalhar-se, hoje, o enjoo diante da
mistificação sexual, esse engano, segundo o qual uma sexualidade
sem mistério, sem inquietação, nem sedução seria um melhor acesso
ao conhecimento de si próprio e do outro. Somos esmagados por
imagens e narrativas mal escritas que nos obrigam constantemente a
ver e insidiosamente a aceitar e reconhecer o valor intrínseco de
uma sexualidade prolífera e afirmativa, onde a capacidade de ser e
de agir é, apenas, uma energia do sexo. O protesto contra esta
mistificação toma uma dupla forma: a abstinência, por um lado, a
afirmação exacerbada, por outro, como se não houvesse outra
solução senão o desaparecimento do desejo ou a sua histeria8.”
Eis alguém que mostra que estamos longe do “optimismo
sexual” dos anos 70. Eis alguém que revela, igualmente, a
complexidade das interrogações e dos comportamentos que dizem
respeito à sexualidade, às relações entre homens e mulheres, às
pulsões sexuais e às interdições. Será somente de hoje?
Evidentemente que não, pois as questões são de sempre e raras são as
obras humanas que escapam às interrogações dos homens nesse
domínio. É por isso que escolhi interrogar a Bíblia. Não para procurar
8
“O Sexo e a vida de uma mulher”, Esprit, Março – Abril de 2001, “Um outro
sexo”.
11
aí soluções às questões de hoje, mas porque o livro é rico de
experiência e de reflexão de crentes que deixaram à humanidade,
incluindo o amor e a sexualidade, um ensinamento que ultrapassa as
meras condições históricas nas quais foi elaborado. Ainda que tenha
sido redigida num mundo muito longínquo do nosso, com modelos
diferentes dos nossos, a Bíblia contém, efectivamente, uma
mensagem susceptível de esclarecer as questões que se colocam,
hoje, em matéria de comportamento sexual. Porque foi
frequentemente deformada, ao longo da história, ou, por vezes,
utilizada para fins menos respeitadores do bíblico, esta mensagem
deve ser redescoberta e estudada por si mesma.
É o que tentaremos fazer, ao longo deste estudo, que abordará,
sucessivamente, as diferentes maneiras como é concebida no Antigo
Testamento a relação com a sexualidade e o amor (capítulo I), os
relatos da criação do homem e da mulher com o episódio do pecado
de Adão e Eva (capítulo II), a atitude de Jesus (capítulo III) e de
Paulo (capítulo IV) em relação às mulheres, ao casamento e ao
celibato. Ao longo da leitura, a modernidade e a actualidade da Bíblia
parecerão evidentes e, espero-o, muitas dúvidas serão levantadas.
Ao longo deste estudo, não esquecerei igualmente esta
reflexão de L. Irigaray: “Cada época, segundo Martin Heidegger,
tem uma coisa para pensar. Uma só. A diferença sexual é a do nosso
tempo.”9 Porquê afirmar que a diferença sexual é a “questão chave”
do nosso tempo? Porque vivemos numa sociedade que não favorece o
reconhecimento da diferenciação sexual e onde é grande o risco que
se confunda igualdade e identidade do homem e mulher. Se fosse
necessário indicar um certo número de fenómenos reveladores de
uma certa realidade, poder-se-ia mencionar 10: a crise de paternidade
que conduz cada vez mais mulheres a desempenharem um duplo
papel, paternal e maternal, um modelo único de êxito social que
acrescenta à fragilização do laço parental o esquartejamento (divisão
cruel) entre certas obrigações profissionais e as suas
9
Éthique de la différence sexuelle, ed. de Minuit, Paris, 1984.
Cf. X. Lacroix, «La différence sexuelle a-t-elle une portée spirituelle?», L’avenir,
c’est l’autre, Cerf, Paris 2000.
10
12
responsabilidades como mães, a normalização da homossexualidade
como uma simples variante da sexualidade, uma educação
indiferenciada cujo facto de ser mista é, com certeza, fonte de
vantagens, mas ajuda pouco os rapazes e raparigas a acolherem a sua
identidade masculina ou feminina, enfim, a ideia de que a diferença
sexual não tem dimensão nem espiritual nem intelectual.
Admitir-se-á que é a face negativa de um processo cuja face
positiva foi sobretudo o colocar em questão os modelos que
ignoravam a diferença mais do que a negavam. Mas reconhecer-se-á
que um equilíbrio justo das relações humanas depende, hoje mais que
nunca, da nossa capacidade de inventar modelos sociais que honrem
a diferenciação sexual, ultrapassando estereótipos que enformam,
ainda demasiado, uma única cultura masculina. Assim, como
escreveu X. Lacroix sobre o lugar das mulheres tanto na sociedade
como na Igreja: “É exactamente porque o feminino é portador de um
tesouro com sentido que seria pena que se alinhasse, pura e
simplesmente, pelo masculino; seja, à velha maneira, pela
subordinação ou, à maneira actual, por imitação. Por isso, claro,
seria lamentável que permanecesse pura e simplesmente, como o foi
frequentemente, separado do masculino11.”
Já, em 1903, R.M. Rilke escrevia um texto que parece hoje
profético:
«A jovem rapariga e a mulher, no seu desenvolvimento
próprio, imitarão, apenas durante um curto espaço de tempo, as
manias e os modos masculinos e exercerão, somente durante um
curto tempo, as profissões dos homens. Uma vez terminados estes
períodos incertos de transição, veremos que as mulheres só caíram
nessas mascaradas, por vezes ridículas, para extirparem da sua
natureza as influências deformadoras do outro sexo. A mulher que
habita uma vida mais espontânea, mais fecunda, mais confiante, é,
sem dúvida, mais madura, mais perto do humano que o homem (...).
11
Cf. X. Lacroix « La différence sexuelle a-t-elle une portée spirituelle ?»
13
Um dia (sinais seguros já o atestam nos países nórdicos), a
jovem rapariga existirá, a mulher existirá. E estas palavras “jovem
rapariga” e “mulher” significarão não só o contrário de macho, mas
qualquer coisa de próprio, valendo por si mesmo, não como um
simples complemento, mas como uma forma completa de vida: a
mulher na sua verdadeira humanidade.”
“Um tal progresso transformará a vida amorosa hoje tão
cheia de erros (...) O amor não será mais o comércio de um homem
com uma mulher, mas o de uma humanidade com outra12.»
12
«Lettres à un jeune poète», Grasset, Paris 1937; publicado em Portugal – R.M.
Rilke, Cartas a um jovem poeta.
14
CAPÍTULO I - O AMOR HUMANO
AO LONGO DA BÍBLIA
1ª REUNIÃO: “O corpo humano e a sexualidade foram confiados
à responsabilidade dos homens, para que eles
participem no poder criador de Deus”
A. TEMA
Descrever a maneira como a Bíblia concebe o amor e a
sexualidade não é coisa fácil, pois a Bíblia fala de pessoas que
viveram em épocas diferentes e evoluíram com o seu tempo.
Diferentes são também, na Bíblia, os géneros literários que evocam o
amor e a sexualidade; e a sua linguagem não é a mesma, conforme se
trate de narrativas, leis, poemas, exortações proféticas ou ditos
proverbiais. Mas trata-se sempre de homens e mulheres que amam,
odeiam, são invadidos por sentimentos de ciúme e de medo, pela
felicidade da fecundidade ou o fantasma da esterilidade, pela
preocupação do futuro da sua família ou do seu povo.
Não há, pois, um “tratado” sobre a sexualidade na Bíblia. O
que, aí, encontramos é o relato de como os homens e as mulheres se
confrontaram com o que é o coração da humanidade: a necessidade
de amar e ser amado. Estes homens e estas mulheres viviam, claro
está, em condições culturais diversas das nossas. Mais ainda: eles
tinham feito uma experiência de um Deus que se tinha revelado e
tinha feito uma Aliança com eles 1. Pois nunca será demasiado afirmar
que a Bíblia não é um código moral, mas, antes de mais, um livro que
fala de Deus. D’Ele, ela transmite a Revelação do Seu Amor infinito
e eterno pela humanidade.
Isto explica, sem dúvida, o facto da sexualidade e do amor
terem na Bíblia um lugar importante. Profundamente associada à
1
Cf. Ex 19-24
15
existência de um povo que se reconhece como “Povo de Deus”, a
sexualidade está aí presente, contudo, de maneira muito diferente da
dos outros povos vizinhos. No Antigo Testamento, sobretudo, ela
inscreve-se no contexto de uma promessa em que Deus tinha
anunciado a Abraão que a sua descendência seria mais numerosa que
os astros do céu2.
Uma sexualidade dessacralizada
É um facto. As interpretações mais arcaicas da sexualidade
coincidem sempre com uma sacralização da sexualidade.
Correspondem a um mundo cultural onde a sexualidade, a
fecundidade e a procriação são, então, tão misteriosas como as
sementes que germinam do solo, a alternância das estações, a chuva
que fecunda a terra, o nascer do dia e o pôr-do-sol, etc. Quer se trate
do sol, da lua, das estrelas ou das tempestades, procuramos dominar
aquilo de que dependemos, sem sermos seus donos. Para isso,
elaboramos cultos em que nos esforçamos por comunicar com as
forças da natureza ou conjurá-las, pois elas são percepcionadas como
temíveis.
Desde a sua chegada a Canaã, no séc. XII antes de Cristo, os
descendentes de Abraão, de Isaac e de Jacob confrontaram-se com
esse paganismo agrícola em que religião e sexualidade estavam
intimamente ligadas. Como muitos outros povos, os cananeus
projectavam-se, efectivamente, num universo celeste povoado por
inúmeras divindades que eles consideravam fiéis depositários da
fecundidade ou da fertilidade. Alguns eram machos outras fêmeas: a
sua acção sobre a natureza ou sobre os seres humanos estava
relacionada com a sua actividade sexual. Representavam-nos com
atributos sexuais, quer se tratasse de imagens fálicas, de touros em
erecção ou grandes seios. Adoravam-nos nos templos, nos lugares
sagrados, onde a sua protecção fosse mais necessária, como nos
2
Cf. Gn 15,5.
16
campos e nas vinhas. Ofereciam-lhes os frutos dos seus campos e dos
seus trabalhos e, por vezes mesmo, os seus filhos. Por eles próprios,
pelos seus gados, pelas suas terras ou pelas suas famílias, tentavam
extorquir-lhes a sua vitalidade, por intermédio de ritos muitas vezes
próximos da magia. Outras vezes, recorriam a prostitutas sagradas.
Principalmente, na altura das festas das estações, os santuários
tornavam-se verdadeiros centros de prostituição, quer sagrada quer
profana.
Chegados à terra de Canaã, os israelitas ficaram naturalmente
impressionados com estes cultos exóticos e excitantes. A lembrança
da Aliança estabelecida com Deus, que os tinha libertado do Egipto,
recordava-lhes, no entanto, que qualquer outro culto lhes estava
interdito: “Eu sou o Senhor, teu Deus, que te fiz sair da terra do
Egipto, da casa da servidão. / Não haverá para ti outros deuses na
minha presença. /Não farás para ti imagem esculpida, (...). Não te
prostrarás diante dessas coisas e não as servirás, porque Eu, o
Senhor, teu Deus, sou um Deus zeloso (...). Não usarás o nome do
Senhor, em vão (...)3.» Mas era grande a tentação de esquecer o que
Deus tinha feito no passado e atribuir a Baal, o deus da tempestade e
da chuva, ou a Astarté, a deusa da fecundidade, os frutos dos campos
ou das vinhas4. Bem depois de Elias5, o profeta Oseias, no séc. VIII
antes de Jesus Cristo, denunciará o perigo para os seus compatriotas
de atribuírem às divindades pagãs o que deviam ao seu Deus e só a
Ele. Comparando o seu povo a uma mulher, correndo atrás dos seus
amantes, pela primeira vez na Bíblia, um profeta aplicará a Deus uma
imagem de um esposo mortificado pelo comportamento da sua
esposa:
«Protestai contra a vossa mãe, protestai. / Ela não é mais a
minha mulher, / nem Eu sou mais o seu marido. / Afaste da sua face
as prostituições e os adultérios de entre os seus seios, / senão deixá-la-ei toda nua, / como no dia do seu nascimento; / torná-la-ei um
3
Cf. Ex 20,1-7.
Cf. Jer 44,15-23.
5
Cf. 1 Rs 18.
4
17
deserto, como terra árida, / e farei que pereça de sede. / (...)/ Por
isso Eu fecharei o seu caminho com espinhos; / erguerei uma sebe
em seu redor, para que ela não encontre atalhos. / Ela perseguirá os
seus amantes, mas não os alcançará; / procurá-los-á, mas não os
encontrará. / Então, ela dirá: “Voltarei ao meu primeiro marido,
/ porque eu era outrora mais feliz do que agora.” / Mas não
reconheceu que era Eu quem lhe dava o trigo, o vinho, e o azeite, / e
lhe prodigalizava a prata e o ouro que ia gastar com Baal6.»
Apresentando Deus como um marido enganado, era grande o
risco desta imagem ser interpretada no sentido dos mitos cananeus
cujas divindades tinham numerosas esposas. Preocupado em lembrar
ao seu povo que Deus o amava como nenhum outro ser humano é
capaz ou sabe amar, o profeta Oseias não hesitava, contudo, em
comparar o Amor de Deus, para com os seus, ao de um marido pela
sua esposa. Ao mesmo tempo, combatendo a ilusão de acreditar que
as divindades dos cananeus tornavam os campos férteis e os rebanhos
fecundos, ele afirmava que se apenas Deus dá a vida, nunca se
comporta como fecundador ou como amante. Porquê? Porque Ele
não é nem macho nem fêmea! Também de todas as representações
humanas habitualmente utilizadas, para descrever as divindades,
Oseias só reterá duas: a de Deus – esposo e a de um Deus – Pai7. Mas
ao despojá-las de qualquer conotação directamente sexual, abrirá
caminho a uma visão particular da sexualidade humana.
Num mundo onde se considerava que a sexualidade pertencia
aos deuses sexualmente diferenciados, impunha-se uma questão
efectivamente: se Deus não é um ser sexuado, como integrar a
sexualidade na vida de um ser humano ou de um povo? A resposta
bíblica era simples: a sexualidade e a fecundidade não são forças
misteriosas que o homem deve captar, assegurando-se da
benevolência das divindades; o corpo e a sexualidade foram
confiados à responsabilidade dos homens, para que eles participem
no poder criador de Deus. Pois uma modificação fundamental é a
6
7
Cf. Os 2,4-10.
Cf. Os 11.
18
operada pela Bíblia: não se participa numa sexualidade divinizada,
mas numa força criadora de Deus; reconhece-se simultaneamente que
nenhuma das forças activas no mundo, incluindo a sexual, pode ser
qualificada de divina, pois, se todas devem a Deus a sua existência, é,
precisamente, na sua qualidade de criaturas. Por esse facto, a
sexualidade não deve ser sacralizada, mas santificada. Aparece,
assim, uma diferença fundamental entre o sagrado e a santidade. Se o
sagrado é exterior à liberdade humana e se é aterrador, a santidade,
passa pela liberdade do homem. Sempre com a sua colaboração, ela é
o expandir da vida divina em todos os aspectos da vida humana.
Mais que outros na Bíblia, os padres lembrarão, no séc. VI
antes de Cristo, esta exigência de viver em conformidade com a
santidade de Deus: «Sede santos para Mim, porque Eu sou o Senhor,
sou santo, e separei-vos dos povos para serdes o Meu povo8.» Com o
risco de dar uma excessiva importância ao culto, estes padres não
cessarão de o repetir: Israel não pode viver como as outras nações.
Porque foi separado dos outros povos para ser sinal da santidade de
Deus, deve tudo fazer para salvaguardar a diferença. Daí a interdição
dos casamentos pagãos, mas também, e sobretudo, as relações que
não respeitam a diferença dos sexos, os laços familiares ou da
natureza com os animais. São, então, interditas as relações
consanguíneas9, a homossexualidade10 e a zoofilia11.
8
Cf. Lv 20,26; cf. Lv 19, 2ss.
Cf. Lv 18, 6-18.
10
São, sobretudo, os textos do Antigo Testamento que condenam a
homossexualidade (Lv18,22; 20,13). Inscrevem-se num contexto cultural
diferente do nosso no qual não se sabia, tal como as ciências humanas no-lo
ensinaram, que podem existir certas pessoas com uma estrutura homossexual,
não escolhida, inata ou, pelo menos, adquirida na primeira infância ou na
adolescência. É por isso que os textos bíblicos devem ser utilizados com
prudência. Não é menos verdade que, na Bíblia, todo o comportamento que
recuse a diferença dos sexos e não assuma, por isso, a dimensão procriadora da
sexualidade, não é conforme ao projecto de Deus sobre a criação. Por este
facto, não é legítimo pôr em pé de igualdade a orientação homossexual e a
orientação heterossexual. Mas isto não equivale a dizer que os homossexuais
não possam fazer na sua própria vida afectiva a experiência da diferença..
11
Cf. Lv 18,23; cf. Ex 22, 18; Dt 27, 21.
9
19
Quererá isto significar, então, que a sexualidade já não era
misteriosa e que não suscitava nenhum temor? Será de esquecer que
os homens e as mulheres do Antigo Testamento sentirão
constantemente uma certa apreensão diante de fenómenos biológicos
que não dominam? De entre eles, os corrimentos de sangue pareciam
inquietá-los, sem dúvida, porque, símbolo fundamental da vida, o
sangue tem qualquer coisa a ver também com a morte. Consequência
disto, durante os períodos menstruais ou em caso de fluxo por
doença, a mulher era considerada impura; e ela tornava impuro todo
aquele que a tocasse12. Um homem que tivesse relações sexuais com
uma mulher durante esse período tornava-se, também ele, impuro13.
Num contexto próximo, ainda que diferente, a mulher que
acabava de dar à luz um filho era impura durante sete dias, catorze
dias se se tratasse de uma rapariga; ela ficava confinada, então, à sua
casa e excluída do santuário durante trinta e três dias no primeiro
caso, setenta no segundo14. Mas todo o derramamento seminal
tornava igualmente o homem impuro, quer este derramamento fosse
voluntário ou por doença15.
Reconheçamo-lo, temos dificuldade em compreender a
significação profunda destas diferentes regras. À falta de explicações
nos textos bíblicos, sem dúvida, será preciso ver aí o relicário de uma
concepção primitiva dos fenómenos sexuais que, pelo seu carácter
misterioso, eram associados a forças temíveis, talvez até a forças
demoníacas. Nada impede, no entanto, de pensar que a esta reacção,
12
Cf. Lv 15, 19-26; cf. Gn 31,33-35. Isso não é exclusivo da Bíblia pois, para
muitos povos, o sangue menstrual passa por ser especialmente impuro. De
notar igualmente que, se “as regras” parecem hoje um fenómeno normal da
existência feminina no seu período fecundo, não o era assim nessa época:
casadas muito pouco tempo depois da puberdade, rapidamente
engravidavam e amamentavam durante dois ou três anos até uma nova
gravidez, tendo muitas mulheres muito poucas “regras”, ao longo da sua
vida. Eis a razão porque nos perguntamos, hoje, se “as regras” não eram
consideradas, por alguns, como o sinal maldito da mulher estéril.
13
Cf. Lv 15,24; cf.18,19;20,18.
14
Cf. Lv 12,1-7.
15
Cf. Lv 15,2-16.
20
de certo modo primária, se seguiram, progressivamente,
interpretações mais elaboradas, essencialmente de ordem teológica.
Por esta razão, certos autores pensam que estes diferentes tipos de
impureza poderiam ter, como explicação, o facto do corrimento
seminal do homem ou menstrual da mulher serem considerados como
uma diminuição da vitalidade humana desejada por Deus16. De forma
diferente, alguns autores defendem que tanto o sangue como o
esperma confundiam, ao escorrer, a fronteira que existe entre a vida e
a morte. Um autor sugeriu mesmo que, se se chegava a dizer que as
relações sexuais os podiam tornar impuros, era porque o homem e a
mulher aboliam então a fronteira que os separava e diferenciava, e
que corriam o risco de formar “num instante um ser híbrido, espécie
de andrógino indiferenciado17”.
De novo, o receio de misturar as fronteiras poderia estar na
origem de uma concepção de impureza que procurava preservar quer
o domínio de Deus quer o domínio dos homens. Por esse facto, a
tomada de consciência dos fenómenos que acompanham o ritmo
biológico de cada sexo, assim como o dom da vida, não tinha outro
objectivo senão o de honrar não só a diferença sexual que garante a
ordem ao mundo, mas também a diferença radical que distingue o
homem de Deus. Face ao mistério do nascimento e da vida, é-nos
lembrado que tudo o que diz respeito à vida, directamente ou
indirectamente, é sagrado. Simultaneamente, não era esquecido que
se eles dão a vida, os seres humanos não são os seus donos. Reside aí,
aliás, toda a ambiguidade da sexualidade que, uma vez
dessacralizada, é reconhecida pelo que ela é: uma realidade boa e
temível ao mesmo tempo. Boa, porque ela é necessária à
sobrevivência dos grupos humanos e porque permite aos homens
participarem na obra criadora de Deus; temível e perigosa, porque
pode ser idolatrada e pôr em perigo a coesão dos grupos que se supõe
ela servir.
16
A. Tsitrone, «Sexe et mariage dans la tradition juive » in M. Bernos, Sexualité et
religions, Cerf, Paris, 1988.
17
E. Fuchus, «Le désir et la tendresse», Labor et fides, Genebra, 1979.
21
Numerosas narrativas bíblicas reflectem esta ambivalência da
sexualidade. São um convite a desconfiar de todo o “angelismo” em
matéria de sexualidade. Mostram também que a “dessacralização”
da sexualidade não se realizará sem mal18. Mas isso não é de ontem...
Sexualidade, fecundidade, violência
Digamo-lo de imediato, na Bíblia, a fecundidade é uma
dimensão essencial à sexualidade. Isso não tem nada de
extraordinário; numa época em que a mortalidade infantil era
considerável e em que as mulheres que morriam na sequência das
suas gravidezes eram numerosas, a fecundidade era uma das
condições fundamentais do futuro da família, do clã ou do povo.
Garantia da sobrevivência do grupo, ela era particularmente
procurada e desejada. O estatuto da mulher também dependia disso,
visto que a maternidade assegurava à mulher reconhecimento social.
Da fecundidade, podia também depender, pelo menos à
primeira vista, o amor do marido pela sua esposa. Vemo-lo na
reflexão de Lia, exclamando por ocasião do nascimento do seu filho
Rúben: “O Senhor olhou para a minha humilhação; agora serei
amada pelo meu marido19.” Infelizmente para ela, tudo deixa supor
que isso não será suficiente, visto que, pelo nascimento do seu
terceiro filho, Lia exclamará de novo: “Agora, meu marido prender-se-á a mim, porque já lhe dei três filhos20.” Na realidade, sabemos
que não era Lia que Jacob amava, mas Raquel, porque ela “era
18
Com efeito, esta “dessacralização” era o contrário da tendência natural,
sobretudo num universo politeísta. A religião popular, e mesmo o culto oficial
celebrado pelos reis, deslizarão frequentemente num sincretismo onde o Deus de
Israel será revestido dos traços do Baal cananeu. O culto do veado de ouro, com
as orgias que o acompanhavam, será um dos sinais flagrantes (Ex 32; 1Rs. 12,2830). Uma outra manifestação disso será a prostituição sagrada da qual nos dizem
que no tempo do rei Josias (VII a.C.) ainda estava presente no Templo de
Jerusalém (2 Rs 23,4-9).
19
Cf. Gn 29, 32.
20
Cf. Gn 29, 34.
22
esbelta e de belo rosto 21”. Embora fosse preciosa, a fecundidade não
era, pois, necessariamente um critério de amor.
Um outro episódio bíblico confirma-o. Trata-se de Ana, a
futura mãe de Samuel:
“Havia em Ramataim um homem de Suf, nas montanhas de
Efraim, chamado Elcana, filho de Jeroam, e neto de Eliu, filho de
Toú, e do clã de Suf, de Efraim. Tinha duas mulheres, uma chamada
Ana e outra Penina. Esta tinha filhos: Ana, porém, não tinha
nenhum. Todos os anos, este homem subia da sua cidade a Silo, para
adorar o Senhor do universo e oferecer-lhe um sacrifício. Aí se
encontravam os dois filhos de Eli, Hofni e Fineias, sacerdotes do
Senhor. Cada vez que Elcana oferecia um sacrifício, dava a porção
correspondente à sua mulher Penina, bem como aos seus filhos e
filhas. Mas dava uma porção dupla a Ana, porque a amava mais,
embora o Senhor a tivesse tornado estéril. Além disso, sua rival
afligia-a duramente, humilhando-a, por o Senhor a ter feito estéril.
Isto repetia-se todos os anos, quando Ana subia ao templo do
Senhor; Penina zombava dela22.”
Além das humilhações de que Ana era vítima, além do rumor
público que a arrasava, reter-se-á deste texto que, apesar da sua
esterilidade, Ana era amada por Elcana. É o sinal de que a mulher
não é reduzida aqui à sua capacidade de gerar e que a fecundidade,
como vimos, não condiciona o amor. Também a Ana, que se pôs a
chorar e que recusava comer, Elcana retorquirá depois: “Ana, porque
choras? Porque não comes? Porque estás triste? Não valho para ti
tanto como dez filhos23?”
Deste texto, como do episódio precedente, reter-se-á
igualmente que uma certa forma de poligamia era então admitida.
Mas se, nos textos mais antigos, ela era essencialmente prática de
21
Cf. Gn 29, 17.
Cf. 1 Sm 1, 1-7.
23
Cf. 1 Sm 1,8.
22
23
algumas pessoas ricas e poderosas, na época da monarquia, ela será
exercida por certos reis como Salomão a quem se atribuirão
“setecentas esposas de sangue nobre e trezentas concubinas24”. Estes
“casamentos” tinham, manifestamente, um carácter político, pois
serviam para assegurar alianças com os chefes ou os povos vizinhos.
Também é verdade que as mulheres aparecem aí como objectos a
quem se faz a corte, que são oferecidas ou de quem se servem.
Significativa, a este propósito, é a história trágica de Mical que foi
dada uma primeira vez a David, depois é-lhe retirada para ser dada a
outro. Apesar do amor deste último, ela é restituída a David, mas
cúmulo da infelicidade, ela será estéril25.
Sempre em relação à esterilidade, sempre também face à
necessidade de assegurar a sobrevivência do grupo, o direito
alfandegário do Médio Oriente previa que se pudesse dar
descendência por intermédio de servas ou escravas. Disto se trata
várias vezes na Bíblia, mas o exemplo mais célebre é o de Sarai que,
porque era estéril, proporá à sua serva Agar dormir com Abraão, o
que não acontecerá, aliás, sem consequências nefastas para esta
última26.
Diferentemente, uma lei confirma o elo mais alto estabelecido
entre sexualidade e posteridade. Conhecida com o nome de Lei do
Levirato27, esta lei estipulava que se dois irmãos permanecessem
juntos e se um dos dois morresse sem filho varão, a sua viúva não
podia voltar a casar fora da família. O seu cunhado devia então tomá-la como esposa “e fazer em relação a ela o seu dever de cunhado”.
O primeiro filho que ela poria no mundo perpetuaria, assim, o nome
do irmão defunto, para que o seu nome não fosse apagado de Israel.
Esta prática visava tanto perpetuar a linhagem masculina como evitar
24
Cf. 1 Rs 11,3.
Cf. 1 Sm 18, 20-21.26; 19,11-17; 25,44; 2 Sm. 3,13-16; 6,16-23.
26
Cf. Gn 16,1-6; cf. 21,8-21. O Código Hammourabi (séc. XVIII a.C.) evoca o
caso da escrava de uma mulher estéril, dada ao seu marido: “... Se depois esta
mulher se igualar à sua ama, porque deu à luz, a ama não poderá dá-la em troca
de dinheiro; impor-lhe-à a marca dos escravos e ela ficará como sua escrava”.
27
Dt 25,5-10.
25
24
a alienação das terras para outras tribos 28. Recusar-se a tal prática era
atrair a desonra sobre si e sobre a sua família.
Um episódio bíblico particularmente espantoso tem por
enquadramento esta lei. Diz respeito a Tamar, uma filha de Jacob29.
Tamar enviuvou e Onan, o irmão mais novo do seu marido, tinha a
obrigação de casar com ela. Como ele não queria partilhar os seus
bens com um filho que representaria o ramo mais velho da família,
“quando se aproximava da mulher de seu irmão, derramava no chão
o sémen, a fim de não dar descendência a seu irmão30.” Isto,
evidentemente, só podia desagradar a Deus, que lhe deu a morte!
Seria por medo desta “devoradora de homens” que já tinha
levado à morte dois dos seus filhos? O facto é que Judá afastou
Tamar para casa do seu pai. Oficialmente, tratava-se de esperar que
Chelá, o terceiro filho de Judá, atingisse a idade de casar. Era, na
realidade, um estratagema para afastar Tamar para sempre. Isto
desprezava a tenacidade de Tamar, que se disfarçou de prostituta e,
na estrada de Timna, seduziu o seu sogro Judá, pedindo-lhe uma
dádiva em jeito de remuneração. Judá veio a saber que a sua nora
estava grávida e quis queimá-la viva, mas, recordando a dádiva que
lhe havia feito, reconheceu que Tamar, assegurando uma
descendência ao seu marido defunto, fora mais justa do que ele que
lhe tinha recusado dar o seu filho Chelá. Prostituta por dever, Tamar
tornar-se-á ascendente do Rei David. Mateus cita-a na genealogia de
Jesus31.
Prosseguindo a leitura do livro do Génesis, poder-nos-íamos
escandalizar perante as filhas de Lot que levaram o pai a beber
demais e dormiram com ele, para lhe assegurar descendência 32 ou
28
Cf. Nm 36,2-9; cf. Lv 25.
Cf. Gn 38.
30
Cf. Gn 38,9.Este episódio serviu frequentemente para sustentar “laboriosamente”
o carácter ilícito do “onanismo”. Tal significa esquecer que este episódio tem
por contexto a lei do levirato e que o pecado de Onan advém de ele querer
escapar à obrigação legal de assegurar ao seu irmão defunto a posteridade que
este tinha o direito de esperar.
31
Cf. Mt 1,3.
32
Cf. Gn 19,30-38.
29
25
perante Rúben, aproveitando-se da ausência de seu pai Jacob para
dormir com Bila, sua concubina33. No plano inverso, poder-nos-íamos maravilhar com a rectidão de José, recusando deixar-se
seduzir pela esposa de Potifar, seu amo, depois não se revoltando
contra ela, quando esta o caluniou para que o pusessem na prisão34. O
facto desta história poder evocar cautelas posteriores de certos livros
bíblicos contra o perigo das mulheres estrangeiras convida-nos a uma
certa prudência. É o sinal de que a maior parte dos relatos
mencionados até ao momento não são para ser lidos à letra e
respondem a critérios teológicos que não dominamos sempre. Não é
menos verdade que são o reflexo de um mundo, onde a procriação era
um aspecto essencial da sexualidade e da sobrevivência de um clã, de
uma tribo ou de um povo35. Nesse contexto, a poligamia, a Lei do
levirato e, por vezes mesmo, as relações sexuais no seio de uma
mesma parentela36 eram, se necessário, realidades admitidas e
reconhecidas, sobretudo quando garantiam o futuro e a integridade da
família.
Ressalta também destes relatos que a mulher podia ser um
objecto de troca ou um bem de posse que se entregava no momento
de escapar a um perigo, como quando Abraão fez Sarai passar por
sua irmã e a lançou nas mãos do Faraó do Egipto37. Quererá isto dizer
que não havia lugar para os sentimentos e a afeição? Claro que não,
pois, como já foi mencionado, o amor está presente em numerosas
narrativas bíblicas, quer se trate do amor de Isaac por Rebeca 38, do de
33
Cf. Gn 35,22.
Cf. Gn 39.
35
Com efeito, nestes relatos que acabamos de mencionar, são as mulheres que
parecem particularmente angustiadas porque não têm filhos. Lembremo-nos das
rivalidades entre Sarai e Agar, Raquel e Lia, Penina e Ana. Não esqueçamos
também esta injunção de Raquel dirigida a Jacob «Dá-me filhos ou morro» (Gn
30,1).
36
É muitas vezes o caso nas narrativas dos Patriarcas, narrativas que cortam com a
legislação ulterior que interditará, como vimos, este tipo de relações (cf. Lv 18,
6ss.).
37
Cf. Gn 12, 10-20; cf. 26, 6-14.
38
Cf. Gn 24.
34
26
Jacob por Raquel ou do de Elcana por Ana. Muito interessante é,
aliás, esta recomendação que, mesmo se posterior, traduz uma
preocupação louvável, ainda que pouco realizável: “Quando um
homem tiver casado recentemente, não irá ao serviço militar e não
lhe será imposto nenhum trabalho penoso; ficará livre em sua casa,
durante um ano, para fazer feliz a mulher com quem casou39.”
Isto não deve fazer-nos esquecer que estamos longe do
romantismo moderno e das suas aspirações, visto que é sempre o
interesse da família que está em primeiro lugar. Porque também
tinham consciência de que a sexualidade é perigosa, pois ela pode
ocasionar comportamentos que colocam em perigo o futuro e a
coesão de qualquer grupo humano, estabelecer-se-ão regras e
interdições de forma a canalizar as pulsões sexuais e a assegurar a
integridade do povo. De entre elas, figurava a maior de todas: “Não
cometerás adultério40”. Mas não dizia respeito da mesma forma ao
homem e à mulher, pois a mulher cometia adultério, entregando-se a
outro homem sem ser o seu marido, fosse casado ou não, já o
homem, só era considerado adúltero se dormisse com uma mulher
casada41.
Como compreender esta diferença de apreciação?
Constatando que, no Antigo Testamento, o adultério é mais um crime
contra o direito de posse do marido (baal ou senhor) que contra a
castidade. A prova está no facto de que, se num caso, os dois
cúmplices deviam ser apedrejados imediatamente à porta da cidade 42,
no caso de um adultério cometido, por exemplo, com uma “escrava,
39
Cf. Dt 24,5.
Cf. Ex 20,14; Dt 5,18.
41
Literalmente: «não coabitarás com a mulher do teu concidadão» (Lv 18,20).
42
Cf. Dt 22, 22-23. Na verdade, não temos nenhum exemplo na Bíblia da aplicação
desta sentença. Isto é tanto mais espantoso, pois este crime, a julgar pela
insistência com a qual os legisladores, os profetas e os sábios se preocupavam
com ele, devia ser frequente. É preciso reparar igualmente que a lei não era a
mesma se o adultério tinha lugar no campo ou na cidade (Dt 22,25). Enfim,
quando o adultério não ficava provado, mas o marido, “levado pelo ciúme”,
ficava com suspeitas, a mulher era submetida ao julgamento de Deus. Tinham
lugar, então, dois processos (Nm 5, 11-31).
40
27
concubina de outro homem, e não resgatada nem libertada”, bastava
que o homem desse uma simples indemnização ou oferecesse um
sacrifício reparador43.
Num domínio assaz próximo daquele que acabamos de
evocar, é preciso mencionar a regulamentação que dizia respeito a
certos casos de violação ou de seduções nem sempre plenamente
consentidas. Assim, quando um homem tinha seduzido uma jovem
virgem que não era noiva, e tinha dormido com ela, devia casar com
ela, mas depois entregar uma espécie de compensação pelos serviços
que a rapariga fazia à sua família antes do casamento 44. Se o pai da
jovem recusava conceder-lha, devia pagar em dinheiro o equivalente
do mohar em uso para as virgens. Isto é tanto mais compreensível
que, logo que uma rapariga perdia a sua virgindade, ela perdia
metade do seu valor, já que o mohar pago para a adquirir seria menos
elevado45. De qualquer maneira, este género de diferendo não se
regulava sempre facilmente e a violação podia dar lugar a vinganças
terríveis, tal como é relatado a propósito de Dina, uma filha de
Jacob46. Correndo o risco de me alongar, permitam-me contar este
episódio, pois é rico em ensinamentos!
Dina tinha saído para se encontrar com as raparigas da terra
que habitava. Encontrou Siquém, o governador do país, que «tendo-a
visto, raptou-a e apoderou-se dela, violentando-a.» Tendo-se
43
Cf. Lv 19,20.
Cf. Dt 22,28 (cf. Ex 22,15-16) : “Quando um homem encontrar uma donzela
virgem que não esteja noiva e, violentando-a, dormir com ela, se forem
surpreendidos, o homem que dormiu com ela dará ao pai da donzela cinquenta
siclos de prata, e ela tornar-se-á sua mulher, porque abusou dela. Não poderá
repudiá--la em toda a sua vida”.
45
Cf. Dt 22,13-21 aborda o caso no qual uma mulher casada era acusada pelo seu
esposo de não ser virgem no momento do casamento. Que fazer então? Seu pai e
sua mãe apresentavam, diante dos anciãos da cidade, as vestes portadoras dos
“sinais de virgindade”. O marido, condenado a uma multa de cem siclos de
prata, era, então, privado do direito de repudiar a sua esposa (Dt 22,19). Mas se a
acusação era justificada, a mulher era apedrejada pelos habitantes da cidade,
diante da porta da casa de seu pai, pois ela tinha desonrado a sua casa pela sua
má conduta.
46
Cf. Gn 34.
44
28
apaixonado por ela, quis pedi-la em casamento, o que os filhos de
Jacob aceitaram, com uma condição: que Siquém e o seu povo
fossem circuncidados.
Siquém conseguiu convencer os seus compatriotas, “… todo o
varão foi circuncidado, entre os cidadãos da cidade47.” Mas foi
então que sofreram as consequências desta operação, “… dois dos
filhos de Jacob, Simeão e Levi, irmãos de Dina, tomaram cada um a
sua espada, marcharam resolutamente sobre a cidade e mataram
todos os varões. Passaram a fio da espada Hamor e Siquém, seu
filho, levaram Dina da casa de Siquém e retiraram-se48.” Não
contentes com tudo isto, os outros filhos de Jacob levaram a cabo a
pilhagem, apossando-se do gado miúdo e graúdo, dos jumentos, das
riquezas, das crianças e das mulheres. Isto era suficientemente grave
para que Jacob, seu pai, se inquietasse com as consequências do que
eles acabavam de fazer. Por resposta deles só teve esta afirmação:
“Devíamos agradecer-lhes por tratarem a nossa irmã como uma
prostituta49.”
Esta ligação de Simeão e de Levi à sua irmã, que não queriam
ver acabar entre as mãos do seu violador, é, à primeira vista,
louvável. Devemos, porém, interrogarmo-nos sobre as verdadeiras
razões da sua recusa de uma solução que, regularizando a situação,
teria reconhecido o amor de Siquém e de Dina.
Temos a impressão, efectivamente, que não é o facto da sua
irmã ter sido vítima de violência que lhes causava problemas, mas
que ela tenha uma relação sexual com um estrangeiro! Assim, numa
sociedade onde era fundamental preservar a integridade do clã,
evitando simultaneamente que as filhas-mães se encontrassem sem
recursos, Simeão e Levi consideravam, claramente, que a salvaguarda
da pureza da família justificava sanções mais violentas, até a guerra.
E isto, com o risco de ver a sua irmã – a quem parece nunca terem
perguntado opinião! – acabar só e magoada.
47
Cf. Gn 34, 24.
Cf. Gn 34,25-26.
49
Cf. Gn 34,31.
48
29
Bastante mais tarde, de regresso do exílio, Esdras e Neemias
interditarão os casamentos com as pessoas que vivem na Judeia, mas
não pertencentes à comunidade “ortodoxa” dos descendentes dos
exilados50. Esta interdição dizia respeito, claramente, a uma parte da
população que, com certas condições como a circuncisão, era
favorável aos casamentos inter-étnicos. Uma vez mais, a obsessão da
pureza – e não da fecundidade – dividirá, então, os defensores de
uma atitude conciliadora e os defensores de uma atitude
intransigente. É um outro aspecto da sexualidade. Como Dina e como
todos aqueles que tinham sido vítimas da violência de Simeão e Levi,
a ideologia da pureza fará novas vítimas! Mas quem ousará dizer que
esta questão já não tem actualidade?
Um outro relato podia ser aqui citado, o de Tamar e Amnon51.
Com efeito, evoca, como nenhum outro, a força da ambiguidade do
desejo humano que levará Amnom a violar aquela que o tornava
doente de amor. Pior ainda, uma vez cometida a violação, Amnom
sentirá, em relação àquela que julgava amar, uma “aversão mais
violenta do que o amor que antes lhe tivera”. Não esqueceremos esta
triste constatação, quando tirarmos conclusões deste rápido percurso
bíblico. Por agora, precisamos de passar a uma outra etapa de
reflexão bíblica, bem diversa, sobre numerosos pontos do que já
abordámos até ao momento que coincide com a penetração do
Helenismo na Palestina, por volta do séc. IV antes de Cristo.
50
51
Cf. Esd 9-10.
Cf. 2 Sm13,1-22.
30
B. QUESTÕES PARA A REFLEXÃO EM CASAL E PARTILHA EM
EQUIPA
Apresentamos, seguidamente, um conjunto de questões para
ajudar a reflexão ao longo do mês e posterior debate em equipa:
1. “A Bíblia não é o código da moral”...então como defini-la.?
2. A importância do meio cultural: Em que difere ele na nossa
cultura actual? E das passadas?








Que revela Elias em (1Rs 18,20-39)?
E Oseias em (Os 2,4-10)?
Qual é a razão da cólera do Senhor (Jr 44,15-23)?
O que é que muda com a novidade anunciada em Os 11?
Que dizem os Levitas (Lv 18,6-18; 22; 20,13)?
Porque é tão importante a fecundidade? O que é que
determina o papel da mulher?
O que é que justifica a poligamia?
Que imagem se tem, então, da mulher? Mikal; Lei do
Levirato52, Tamar (Gn 38) e Dina (Gn 34)
C – SUGESTÕES PARA UM DEVER DE SE SENTAR
Comecemos o dever de se sentar com a leitura do texto de
meditação (Oseías), após o qual se deve fazer uma oração partilhada,
criando um clima de interiorização e de acolhimento ao outro, o que
vai facilitar o diálogo em casal.
52
Levirato (do latim levir, “cunhado”). Perscrevia que, se um homem casado,
morresse sem ter filhos, o seu irmão deveria desposar a “cunhada viúva”.
31
Em seguida leiam as pistas, façam um certo silêncio e só
depois iniciem o diálogo:
De que forma, na nossa vida sexual, nos apercebemos desta
participação na força criadora de Deus?
De que forma reagimos face à importância, quase sagrada,
dada à sexualidade na nossa sociedade?
Como podemos alertar os nossos filhos para as diferentes
dimensões da sexualidade?
D – TEXTO PARA A ORAÇÃO EM EQUIPA
“Vinde! Voltemos para o Senhor! Ele feriu-nos ,Ele nos
curará; Ele fez a ferida, Ele fará o penso. Dar-nos-á de novo a vida
em dois dias, ao terceiro dia nos levantará, e viveremos na sua
presença. Esforcemo-nos por conhecer o Senhor; iminente, como a
aurora, está a sua vinda; Ele virá para nós como a chuva, como a
chuva da Primavera que irriga a terra.”
E Deus perguntou: “Que posso fazer por ti, ó Efraim? Que
posso fazer por ti, ó Judá? O vosso amor é fugidio como a nuvem da
manhã, como o orvalho matutino que logo se dissipa. Por isso os
castiguei duramente pelos profetas,, e os matei pelas palavras da
minha boca. Porque Eu quero o amor e não os sacrifícios, o
conhecimento de Deus, mais que os holocaustos.”
Os 6,1-6
32
CAPÍTULO I - O AMOR HUMANO
AO LONGO DA BÍBLIA
2ª REUNIÃO: “Sara e Tobias tornar-se-ão [...] a imagem do casal
ideal, plenamente fiel ao projecto de Deus revelado
nos textos da Criação”
A. TEMA
Entre a desconfiança e o desprezo
Ninguém o negará, o Helenismo marcou uma etapa
importante da história da Humanidade. Pela primeira vez, povos e
cidades encontraram-se, efectivamente, reunidos numa civilização
que queria englobar o mundo inteiro numa mesma cultura. O culto do
corpo também aí era bastante importante, sendo os ginásios
verdadeiras escolas onde se cultivava o espírito, cuidando em
simultâneo do corpo para torná-lo belo e forte1. À sua maneira, os
artistas esforçavam-se também por valorizar corpos bem feitos e bem
proporcionados. A nudez era, na verdade, rigorosa, mas sem que
predominassem os órgãos sexuais, como era o caso noutras
civilizações. Tudo era submetido ao cânon das proporções e da
beleza. Com muita frequência, o culto do corpo humano conduzia um
ou outro para atracções e para práticas que, sem serem
verdadeiramente homossexuais, eram de natureza homofila.
Ao lado deste culto da beleza corporal e do erotismo,
desenvolveu-se, contudo, uma certa desconfiança em relação ao
corpo que era considerado como uma prisão da qual a alma devia ser
libertada. Mas isso não é de admirar, pois o desprezo pelo corpo e a
sua exaltação excessiva podiam conduzir a práticas idênticas e à
1
São escolas deste estilo que, no ano 167 a.C., Antíoco Epifânio queria instalar em
Jerusalém. Para aí serem introduzidos, judeus grecófilos apressaram-se, então, a
abolir a circuncisão (1 Mac 1.14-15)!
33
mesma procura do prazer. Em sentido contrário, certos grupos
esforçavam-se por se libertarem da prisão corporal, lutando contra as
paixões e os desejos ou entregando-se à vida do espírito. Estes
reflexos de desconfiança ou de hostilidade em relação ao corpo
conduziam a uma ascese sexual que podia chegar a uma abstinência
total. Com frequência, esta atitude era acompanhada de uma certa
idealização da virgindade, consequência, por vezes, de um evidente
desprezo pela mulher.
Devido à sua religião revelada, mas também devido à sua
situação geográfica, Israel resistirá, com mais força do que outros
povos, aos assaltos do Helenismo. Muitos reis estrangeiros, Antíoco
IV Epifânio particularmente, procurarão introduzi-lo pela força. Mas,
como podemos ver nos dois livros dos Macabeus, esta violência
tornará a resistência dos judeus ainda mais acesa. Quererá isto dizer
que o Helenismo não exercerá nenhuma influência no Judaísmo?
Claro que não. Além do aparecimento de um certo desprezo pela
sexualidade, é talvez sob a sua influência que as mulheres
desaparecerão da vida pública e do culto. Podemo-nos perguntar
também se não é preciso procurar alguns traços de Helenismo na
escolha do celibato no limiar da era cristã, por algumas correntes
judaicas. No que nos diz respeito, sem que o possamos afirmar com
toda a segurança, é preciso reconhecer que a corrente de sapiência,
que se desenvolverá a partir do séc. IV antes de Cristo, caracterizar-se-á, apesar do que se possa dizer, por uma real desconfiança em
relação às mulheres e à sexualidade.
Pela primeira vez, na Bíblia, o autor do Eclesiastes afirmará
que a mulher pode ser uma armadilha e que ela é, então, má. “Eu
considero que mais amargo do que a morte / é encontrar uma mulher
que é uma armadilha, / cujo coração é uma rede, e cujas mãos são
cadeias. / Aquele que é agradável a Deus fugirá dela, / mas o
pecador será apanhado por ela 2.” Fornecendo uma justificação
religiosa para um anti-feminismo ansioso por se desenvolver, Ben
Sira, o Sábio, irá ainda mais longe: “Foi pela mulher que começou o
2
Cf. Ecl 7,26.
34
pecado, / e é por causa dela que todos morreremos3.” Fazendo
recair, assim, sobre a mulher o peso do pecado original, Ben Sira
alimentará uma verdadeira mitologia da mulher-flagelo, como se
pode ver na passagem seguinte, de que se dirá, por vezes, para
desculpar o autor, que ele evoca uma mulher má. Mas ninguém se
deixa levar.
“Qualquer ferida, menos a ferida do coração!
Qualquer maldade, mas não a maldade da mulher!
Qualquer aflição, mas não a aflição causada pelo ódio!
Qualquer vingança, mas não a vingança do inimigo!
Não há veneno pior que o da serpente,
e não há cólera pior do que a dum inimigo!
Será preferível viver com um leão ou com um dragão,
do que viver com uma mulher perversa.
A malícia da mulher transforma-lhe as feições,
torna-lhe o rosto como o de um urso. (...)
Toda a malícia é leve, comparada com a malícia da mulher;
que a sorte dos pecadores caia sobre ela!4”
Igualmente surpreendentes são as palavras de Ben Sira
dizendo que ter uma filha é um tormento para um pai: “Uma filha é
para seu pai uma oculta preocupação, / o cuidado dela tira-lhe o
sono; / receia que passe a flor da sua idade sem se casar, / ou que,
casada, se torne odiosa para o seu marido; / receia que seja
manchada na sua virgindade, / e que apareça grávida na casa
paterna; / ou que, casada, seja infiel ao marido, / ou que permaneça
estéril5.” Na sequência deste último conselho: “Exerce severa
vigilância sobre a filha audaciosa, / para que não te exponha ao
escárnio dos teus inimigos, / à detracção da cidade e ao ludíbrio da
3
Cf. Sir 25,24. Este mesmo autor lembrará os deveres dos filhos para com os seus
pais (Sir 3,1-16) e retratará um quadro encantador da felicidade conjugal (26,1-4)
e da esposa perfeita (26,13-18).
4
Cf. Sir 25,13-17,19.
5
Cf. Sir 42, 9-10.
35
plebe, / e te envergonhe diante da multidão do povo!6” Numa outra
passagem, Ben Sira aconselha os seus discípulos a escolherem uma
boa esposa7 ou a desconfiarem como da peste da beleza de certas
mulheres8. Antes de mais: inculca-lhes o medo de se deixarem levar
pela paixão carnal e convida-os a pedir ao Senhor para não caírem
sob o domínio da inveja: “Senhor, Pai e Deus da minha vida, / não
me dês olhos altivos, / e afasta de mim a concupiscência. Não se
apodere de mim o apetite sensual e a luxúria, / e não me entregues à
mercê do desejo impudico9.” Salomão, ele próprio, é, aliás, criticado
por lhes ter sucumbido. “Entregaste-te ao amor das mulheres / e
deste-lhes poder sobre o teu corpo. / E maculaste a tua glória, /
profanaste a tua descendência, / atraindo, assim, a ira sobre os teus
filhos / e o castigo sobre a tua loucura10.”
No limiar da era cristã, o autor do livro da Sabedoria chegará
a afirmar: “Feliz a estéril imaculada, que não manchou o seu leito; /
terá a sua recompensa no dia do juízo. / Feliz também o eunuco que
não praticou o mal/ nem teve maus pensamentos contra o Senhor 11.”
Quer se trate da esposa estéril que se restringe ao seu casamento
legítimo ou daquele que é impotente por doença ou acidente, para o
autor do livro, a sua virtude vale mais, por isso, que filhos e filhas; a
sua fecundidade, de uma outra ordem porque espiritual, aparecerá no
além. Daí em diante, só conta, então, a sabedoria que é preciso pedir
na oração, seguindo o exemplo de Salomão que reconheceu nela a
esposa ideal:
“Eu a amei e busquei desde a minha juventude, / procurei
tomá-la por esposa e enamorei-me da sua formosura. (...) Por isso,
resolvi tomá-la por companheira da minha vida, / sabendo que ela
será para mim conselheira do bem e consolação nas preocupações e
6
Cf. Sir 42,11.
Cf. Sir 36,26-31.
8
Cf. Sir 9,8; 25,21.
9
Cf. Sir 23,4-6.
10
Cf. Sir 47,19-20.
11
Cf. Sb 3, 13-14.
7
36
nas tristezas. (...) Reflectindo eu sobre estas coisas e meditando em
meu coração/ que a imortalidade está em união com a sabedoria, /
que na sua amizade existe um nobre prazer, / que na obra das suas
mãos há uma riqueza inesgotável, / que há inteligência na
assiduidade da sua companhia/ e serenidade no diálogo com ela, ia
por toda a parte procurando possuí-la12.”
A figura de Salomão aparece, aqui, bem distante da do
primeiro livro dos Reis. De todos os dons recebidos por Salomão, um
só falta com efeito: a mulher como esposa. E o único casamento, a
que aspira Salomão, é com a Sabedoria amada por Deus. Será isso
um convite à castidade? Sem necessariamente menosprezar o
casamento, o autor insinua-o de forma discreta ao mesmo tempo que
denuncia as desordens da vida moral que ele considera como sendo
uma consequência do desconhecimento de Deus: “Por toda a parte
andam misturados/ sangue e crime, roubo e fraude, corrupção,
deslealdade, revolta e perjúrio, / confusão de valores, esquecimento
da gratidão/ impureza das almas, perversão sexual, / desordem dos
casamentos, adultérios e imoralidades13.”
Devemos reter-nos aqui? Claro que não, pois seria esquecer
outros textos, redigidos na sua maior parte em grego, talvez em
reacção aos textos já evocados. Todos propõem retratos de mulheres
heroínas: Ester, que salva o seu povo, depois de ter desposado um rei
pagão seduzido pela sua beleza; Judite, uma viúva sem filhos, que
salva igualmente o seu povo, matando um general do exército que ela
tinha seduzido e embebedado a seguir; Susana, vítima de dois velhos
lúbricos, que recusa, pondo em risco a sua vida, entregar-se ao
adultério e vê a sua inocência reconhecida 14; uma mãe de sete filhos
que não quer utilizar a sua afeição maternal para fins contrários à lei
e entrega a Deus o dom que lhe fizera dos seus filhos, encorajando-os
a suportarem os suplícios15.
12
Cf. Sb 8, 2.9.17-18.
Cf. Sb 14,25-26.
14
Cf. Dn 13.
15
Cf. 2 Mc 7.
13
37
Excepto talvez este último texto, os relatos são romances
edificantes. Cada um, à sua maneira, exalta a mulher ideal cujas
qualidades religiosas, a virtude e, mais ainda, a força de carácter são
sublinhadas. Mas se há lugar para a sexualidade em cada um destes
relatos é sempre o autodomínio que é valorizado.
Particularmente interessante é, a este propósito, o livro de
Tobias que, normalmente, é situado no século II antes de Cristo. Ele
evoca a união carnal tal como ela é querida por Deus. Tudo começa,
no entanto, de maneira trágica com os sete primeiros maridos de Sara
que morrem antes de se unirem a ela.
Face a esta situação, cuja causa não se compreende, mas o
rumor público imputa-lhe a responsabilidade16, Sara é, então, tentada
pelo suicídio. Preocupada em não entristecer o seu velho pai, ela
afasta essa tentação e suplica a Deus a morte: “Tu sabes, Senhor, que
estou pura de toda a mácula contraída com algum homem e que
nunca manchei o meu nome nem o do meu pai nesta terra do meu
cativeiro. Sou filha única do meu pai. Ele não tem outro descendente
que possa constituir herdeiro, nem tem parente próximo ou
companheiro da mesma tribo, para o qual eu me deva guardar como
esposa. Morreram-me já sete maridos; para quê, pois, me serve a
vida? Se, porém, não ma quiseres tirar, Senhor, escuta-me, na minha
angústia 17.”
Evidentemente que o Senhor ouvirá a prece de Sara. Quanto à
questão de saber porque morreram os sete maridos de Sara,
saberemos muito mais tarde que terá sido um poder demoníaco que
procurava destruir o casal que queriam constituir com Sara.
S. Jerónimo, na Vulgata, proporá uma outra explicação bem diversa:
os sete esposos de Sara desconheciam Deus, eles não tinham
16
17
Cf. Tb 3,8-9.
Cf. Tb 3,14-15. A Vulgata alongará esta oração: “Sabes, Senhor, que nunca
desejei um homem e que guardei a minha alma pura de todo o desejo carnal.
Nunca participei em orgias e nunca partilhei a companhia dos amantes do
deboche. Foi temendo-Te, e de acordo com a minha inclinação, que consenti em
escolher um marido. Ora, ou eu não fui digna deles, ou talvez não foram eles
dignos de mim, porque talvez Tu me tivesses reservado para um outro homem.”
38
compreendido que o desejo carnal saciado sem Deus conduz à
morte18. Também não será tanto o cheiro do fígado de peixe que fará
fugir o demónio que tinha causado a morte dos sete primeiros
maridos de Sara19, mas a oração comum de Tobias e de Sara, antes de
se unirem. Através dessa oração, reconhecerão que não é o desejo
carnal que os atraiu um ao outro, mas o acolhimento do desígnio de
Deus. Tomando como base as narrativas do Génesis, Tobias, que se
tinha deixado convencer a casar com Sara, implorará a misericórdia
divina nestes termos:
“Bendito sejas, Deus dos nossos pais, e bendito seja o Teu
nome, por todas as gerações; louvem-Te os céus e todas as Tuas
criaturas, por todos os séculos. Tu criaste Adão e deste-lhe Eva, sua
esposa, como amparo valioso, e de ambos procedeu a linhagem dos
homens. Com efeito, disseste: Não é bom que o homem esteja só;
façamos-lhe uma auxiliar semelhante a ele. Agora, Senhor, Tu bem
sabes que não é com paixão depravada que agora tomo por esposa a
minha irmã, mas é com intenção pura. Permite, pois, que eu e ela
encontremos misericórdia e cheguemos juntos à velhice20.”
18
Cf. Tb 6,16-17, reinterpretado por S.Jerónimo que introduzirá uma verdadeira
espiritualidade conjugal: “Escuta-me: vou mostrar-te aqueles sobre os quais o
demónio impera. São aqueles que entendem o casamento de tal maneira que
excluem Deus do seu espírito e se abandonam à sua paixão como cavalo e
jumento despidos de inteligência: sobre esses, o demónio tem poder.”
19
Cf. Tb 6,17; 8,2-3. Na sequência desta recomendação de Rafael a Tobias: “Mas
tu, quando a (Sara) tomares, uma vez no teu quarto, guarda continência com ela
durante três dias e não te ocupes de mais nada a não ser de orar com ela. Nessa
noite, o demónio será posto em fuga pelo fígado do peixe. Na segunda noite, vós
sereis admitidos na companhia dos santos patriarcas. Na terceira noite, obterás a
bênção para que vos nasçam filhos com boa saúde. Uma vez passada a terceira
noite, tu tomarás a virgem com o temor de Deus, guiado pelo amor dos filhos
mais que pela paixão, para que tenhas sobre os teus filhos a bênção prometida à
descendência de Abraão.”
20
Cf. Tb 8,5-7.
39
E o autor do livro acrescenta: “e ambos responderam ao
mesmo tempo: “Ámen, Ámen!” Depois, deitaram-se para passar a
noite21.”
Enviada a verificar se Tobias não estava morto, uma jovem
serva encontrá-lo-á, de manhãzinha, profundamente adormecido. O
pai de Sara dará, então, graças a Deus e, ao mesmo tempo, mandará
rapidamente fechar o túmulo que já tinha mandado abrir. Durante
duas semanas de festa, celebrar-se-á o feliz acontecimento22. Mas não
será esquecido o que se tinha passado. Ao longo dos séculos, Sara e
Tobias tornar-se-ão mesmo a imagem do casal ideal, integralmente
fiel ao projecto de Deus revelado nos relatos da criação. De entre as
virtudes que lhes são reconhecidas figuram, principalmente, o
respeito pelo outro, o autodomínio, o amor mútuo e o dom de si. Do
seu exemplo reteremos igualmente a convicção de que o equilíbrio do
casal exige uma verdadeira ascese, intimamente ligada à oração.
Pode-se dizer que uma certa compreensão cristã virá a
desenvolver-se na linha desta concepção judaica bem definida.
E o Cântico dos Cânticos?
É preciso começar por reler as páginas da Bíblia que temos
percorrido para salientar quer a sua diversidade quer a distância
cultural que nos separa do mundo e das épocas em que foram
escritas.
Num contexto em que as mulheres eram valorizadas porque
delas dependia a sobrevivência do clã e a preservação da sua pureza,
21
Cf. Tb 8,8. Tobias e Sara rezam para que a sua ligação com Deus confira à sua
união carnal o seu sentido profundo e verdadeiro. Como veremos, é exactamente
o inverso da cena de Gn 3, onde a ruptura com Deus conduz a uma tensão
irremediável entre os dois sexos. No centro da oração de Tobias e Sara figura
uma referência implícita ao primeiro relato da criação (alusão às crianças) e
explicita o segundo relato da criação (citação de Gn 2,18).
22
Cf. Tb 8,13 ss.
40
compreende-se que a fecundidade e o dever de assegurar uma
descendência ou uma posteridade se sobreponham ao amor, pelo
menos a um primeiro olhar. Raros são, aliás, de entre os textos
bíblicos explorados até agora, aqueles que evocam de forma explícita
um sentimento que só há pouco tempo associamos à sexualidade23.
Por oposição ao amor, chegou a afirmar-se, por vezes, que a
rivalidade era uma das características fundamentais da relação
homem-mulher no Antigo Testamento: “rivalidade subterrânea entre
o poder legal e o poder vital, entre os direitos sociais e as visitações
misteriosas da fecundidade, entre uma dominação masculina pública
e uma supremacia feminina secreta, pois se só o homem legaliza, só
a mulher concebe24.” Excluídos da esfera da fecundidade, os homens
do Antigo Testamento teriam, por isso, reagido, monopolizando a
esfera da legalidade, como se vê, por exemplo, com o adultério que
eles consideravam essencialmente como um roubo da propriedade.
Condenável em si mesmo, era-o também, é verdade, porque criava o
risco de um bastardo se infiltrar na linhagem legítima. Este medo
poderia explicar a forma totalmente diferente como são julgados os
desvios sexuais no caso do homem e no caso da mulher.
Esta repartição dos papéis dos homens e das mulheres, bem
como dos seus direitos e dos seus deveres, não deveria, no entanto,
esconder o essencial que é a incontestável valorização da sexualidade
pela tradição bíblica. Apresentada como um factor de humanização e
de santificação, a sexualidade aparece na Bíblia como algo essencial
à vida dos homens. Ela permite, especialmente à pessoa humana,
confrontar-se com a realidade estruturante dos seus limites. Face às
leis e às proibições que garantem e estruturam a vida social, o ser
23
Ainda que tenhamos tendência a esquecê-lo, os historiadores e os sociólogos
recordam-no-lo com frequência: o amor só se tornou o valor central do
casamento a partir do século XVIII. Até então, o amor não antecedia o casamento
e as razões para se casar eram, antes de mais, a procriação e o acompanhamento.
A uma grande reserva sentimental correspondia, ao que parece também, um
erotismo muito sumário (M. Bozon, La famille, l’état des savoirs, La Découverte,
Paris, 1992).
24
A. Dumas, «Similitude et diversité des sexes dans le plan de Dieu», Études
Théologiques et Religieuses, 1965, pp. 97-108.
41
humano reconhece que ele não é nem o seu próprio começo, nem o
seu próprio fim, nem um ser completo desacompanhado do outro.
Assim, no centro da própria experiência do amor, o homem e a
mulher aprendem a não fazer da sexualidade apenas um instrumento
de prazer ou de procura egoísta, pois a Bíblia não cessa de o repetir: a
sexualidade pode também conduzir à violência assassina e a todo o
tipo de desordens25. A sexualidade é, por isso, uma realidade
ambígua.
Ao mesmo tempo, os homens e as mulheres da Bíblia
lembram-se que a sua capacidade de procriar se inscreve no quadro
de uma promessa feita a Abraão e à sua descendência 26. Dando a
vida, eles moldam-se à vontade de Deus e participam no seu poder
criador.
Fruto da bênção divina, a procriação é mesmo o sinal de Deus
que cria e dá a vida27. É por isso que a esterilidade é muitas vezes
entendida na Bíblia como uma maldição, até mesmo como um
castigo28.
Curiosamente, no entanto, a esterilidade é o ponto comum às
figuras femininas mais importantes da Bíblia: estéril, Sara esperou
até aos noventa anos para dar um filho a Abraão; estéril, Rebeca;
estéril, Raquel com ciúmes da sua irmã Lia, de uma fecundidade
insolente; estéril, a mãe do Juiz Sansão; estéril, Ana, a futura mãe do
profeta Samuel, humilhada pelas afrontas repetidas de Penina, sua
rival. Estéreis, todas estas mulheres darão à luz, contudo, em
condições excepcionais29. E a criança que elas já não esperavam terá
mesmo, na maior parte dos casos, um destino absolutamente
excepcional.
25
Além dos textos citados acima, pode ler-se Jz 19-21.
Cf. Gn 12,1-5; 17,2-8.
27
Cf. Gn 1,27-28.
28
Cf. Gn 20,18. Da mesma forma, o celibato parece contrariar o projecto de Deus.
Aliás, é só muito mais tarde que ele será adoptado por certos grupos religiosos,
principalmente por razões culturais. Outro exemplo conhecido é Jeremias a quem
Deus ordenou que observasse o celibato. Mas isso será um sinal de morte (Jer
16,1ss).
29
cf. Gn 17,17; 18,10-15.
26
42
São a marca de que estes nascimentos não se inscrevem na
história normal dos homens, mas na de Deus, que pôs os olhos
naquelas que sofriam, para fazer delas um exemplo admirável da Sua
Providência. Como nenhum outro, o canto de Ana, mãe de Samuel,
traduz o reconhecimento desta mãe e a sua admiração diante da
grandeza do Amor de Deus:
“Ninguém é santo como o Senhor.
Não há outro Deus fora de Ti,
Ninguém é tão forte como o nosso Deus.(...)
Os saciados tiveram que ganhar o pão
e os famintos foram saciados.
Até a estéril foi mãe de sete filhos
E a mulher que os tinha numerosos ficou estéril.
O Senhor é que dá a morte e a vida,
leva à habitação dos mortos e tira de lá.
O Senhor despoja e enriquece,
humilha e exalta.
Levanta do pó o mendigo e tira da imundície o pobre
para os sentar com os príncipes e ocupar um trono de glória;
Porque são do SENHOR as colunas da terra e sobre elas
assentou o mundo.
Ele dirige os passos dos seus santos,
mas os ímpios perecerão nas trevas,
porque homem algum vencerá pela sua própria força30.”
No entanto, logo após o desmame, Ana separar-se-á de
Samuel para o colocar ao serviço do Deus no santuário de Silo. Ela
que não tinha vivido senão para o desejo de ter este filho “cedê-lo-á”
a Deus31! De forma igualmente surpreendente, víramos Deus
reclamar a Abraão o filho que Ele lhe tinha dado: é o famoso
30
31
Cf. 1 Sm 2,2.5-9.
Cf. 1 Sm 1,27-28.
43
episódio do sacrifício de Isaac 32. Seria necessário, aliás, falar da
prova de Abraão, pois é exactamente disso que se trata: Abraão
saberá separar-se do seu filho único, dom de Deus, para escolher o
Deus que oferece? Compreenderá que, para acolher Deus em plena
liberdade e verdade, é preciso, por vezes, aceitar morrer ou perder
aquilo que Ele deu? Esta experiência de desprendimento era
crucificante, mas o que Deus queria era que Abraão O acolhesse em
plena liberdade pelo que Ele é e não simplesmente pelo que Ele lhe
tinha dado. Assim, Abraão poderia compreender que pôr no mundo
um filho é consentir, antes de mais, que a vida não pertence àquele
que a transmite, antes ela é-lhe confiada como uma promessa e um
dom. Logo, o dom de Deus está sempre em primeiro lugar. É, sem
dúvida, por isso que, na Bíblia, a procriação “natural” não basta para
assegurar a continuidade da promessa divina. Deste modo não é
Ismael, o filho natural de Abraão, que receberá a promessa divina,
mas Isaac, o filho da graça33.
Neste quadro destoa, contudo, um livro bíblico, o Cântico
dos Cânticos. Deus nunca aí é referido34 e os seus heróis não têm
nome. De que fala este livro? Do amor, somente do amor, não
aparecendo, sequer, a perspectiva da fecundidade carnal. Amante e
desejosa de ser amada, a jovem mostra-se activa, viva e ansiosa. Ela
procura e espera aquele que ama; ela vibra com o anúncio da sua
chegada. Ele maravilha-se diante daquela beleza que lhe faz perder o
sentido:
“Ele: quão formosos são teus pés / nas sandálias, ó princesa!
/ As curvas dos teus quadris / parecem colares, obra de mãos de
artista. / O teu umbigo é uma taça redonda. / (...) / O teu ventre é
monte de trigo, / todo cercado de lírios. / Os teus seios são dois
filhotes / gémeos de uma gazela; / o teu pescoço, uma torre de
marfim; / os teus olhos, as piscinas de Hesbon, / junto às portas de
32
Cf. Gn 22.
Cf. Gn 17,15-21. Aliás, será Jacob o mais novo que será escolhido em vez de
Esaú, o mais velho e o preferido de Isaac (Gn 27).
34
Excepto, de passagem e de forma breve, em Ct 8,6.
33
44
Bat-Rabin; / o teu nariz é como a torre do Líbano, / de vigia voltada
para Damasco. / A tua cabeça ergue-se como o Carmelo / e os teus
cabelos são como púrpura; / trazem um rei cativo dos teus laços.
/ Como és bela, como és desejável, / meu amor, com tais
delícias! / Esse teu porte é semelhante à palmeira, os teus seios são
os seus cachos. / Pensei: “Vou subir à palmeira, / vou colher dos
seus frutos. / Sejam os teus seios / como cachos de uvas, / e o hálito
da tua boca, perfume de maçãs. / A tua boca bebe o melhor vinho35.”
Tudo, no Cântico dos Cânticos, respira a alegria, a prazer e a
beleza do amor “forte como a morte36”. Nada é demasiado belo para
transmitir o encantamento de dois amantes, cada um deles
encontrando a sua felicidade no outro. A criação inteira parece
chamada para cantar com eles a alegria de ser amado. Mas eis que
nos momentos mais propícios para celebrar a presença mútua e a
plenitude do encontro, o bem amado esconde-se da sua bem amada
que começa, então, a procurá-lo: “Fui abrir a porta ao meu amado /
e o meu amado já tinha desaparecido. / Fora de mim, corro atrás das
suas palavras; / procuro e não o encontro, / chamo e não me
responde37.” Mais espantoso ainda este magnífico canto de amor que
termina com um convite à fuga: “Corre, meu amado! Sê como um
gamo / ou um filhote de gazela, / pelos montes perfumados38.”
Porquê este convite à fuga? Eles tinham cessado de se
procurar e de se desejar, eles tinham ultrapassado todos os obstáculos
que os impediam, ao que parece, de dar livre curso ao seu amor, e eis
que tudo acaba com um afastamento e uma distância desejados. Será
que a bem amada já não ama o bem amado? Claro que não. É mesmo
o contrário. Enquanto, no princípio, ela exclamava “o meu amado é
para mim e eu para ele39”, ela descobriu depois que, em todo o amor
plenamente vivido, deve permanecer o espaço de uma distância. Ela
35
Cf. Ct 7,2-10.
Cf. Ct 8,6.
37
Cf. Ct 5,6.
38
Cf. Ct 8,14.
39
Cf. Ct 2,16.
36
45
compreendeu também que o amor autenticamente partilhado não
pode abolir uma necessária solidão, pois a distância e a solidão são as
condições de um amor autêntico que não pretende uma fusão. Para
tanto é preciso aceitar que o outro escapa ao controlo que era possível
exercer sobre ele, ou, mais simplesmente, à ideia que se construía
dele. Ele deve ser amado na sua singularidade e na sua distância, que
pode ser feita de fraquezas. Ele não é meu, eu não sou dele, nós
somos totalmente um do outro, na aceitação de uma dinâmica que
convida cada um a despojar-se dos seus sonhos e dos seus poderes
para acolher e dar40.
Esta é uma das grandes lições da Bíblia que repete
frequentemente que o amor autêntico não se constrói fora da
diferença e da distância mantidas. Quando esquecemos isso, ele pode
tornar-se uma tirania que destrói a relação, destruindo o outro. Em
suma – e é exactamente isso que desvendarão os relatos do Génesis
que vamos agora abordar –, negar a solidão e a diferença é “ocupar o
lugar cimeiro que é o de Deus, é proibir a entrada na verdade da
experiência do amor pelo outro como outro, isto é, como pessoa
criada à imagem de Deus41”. A sexualidade é, claramente, neste
sentido, um dos lugares onde se exprime a dimensão divina da
existência. Ainda que na Bíblia ela nunca seja entendida como um
40
Contrariamente ao livro do Génesis (3,16), o desejo não é aqui ocasião para uma
maldição orientada para o domínio do homem sobre a mulher, mas ocasião do
encontro perfeito e da paz. É verdade que desde “O meu amado é para mim e eu
para ele» (Ct 2,16) até «Eu pertenço ao meu amado e o seu desejo impele-o para
mim» (Ct 7,11), a bem amada fez um longo caminho onde lhe foi necessário
reconhecer: «Eu sou para o meu amado e o meu amado é para mim” (Ct 6,3).
Nós estamos aqui no centro do amor autêntico: cada um dos amantes encontra a
sua riqueza no outro, e não em si mesmo. Cada um quer ser fonte de prazer do
outro; cada um só conhece o prazer, tornando-se fonte de prazer para o outro. É
neste movimento que morre uma sexualidade que só vê o outro como objecto ao
serviço do seu próprio prazer. Mas sem que, necessariamente, morra o desejo! Se
ele permanece forte, pelo amor (cf. Ct 8,6), ele ganha em verdade, pois que se
reconhece que a satisfação do seu desejo surge da satisfação do desejo do outro e
que a sua felicidade só pode nascer da felicidade do outro.
41
A. M. Pelletier, « Vu du jardin du Cantique des cantiques, l’homme et la
femme » in Foie et Vie, Cahiers bibliques 39, Set 2000.
46
pecado, a sexualidade é também o lugar onde se pode sentir de
maneira trágica, até na carne, aquilo que se passa quando não somos
capazes de acolher a alteridade ou quando a recusamos, porque
vemos aí uma ameaça a destruir, uma limitação do desejo que
julgamos insuportável.
B. QUESTÕES PARA A REFLEXÃO EM CASAL
E PARTILHA EM EQUIPA
Apresentamos, seguidamente, um conjunto de questões para
ajudar a reflexão ao longo do mês e posterior debate em equipa:
1. A importância do Helenismo
 Imagem do corpo: deve ser desprezada ou exaltada?
 Influência do helenismo sobre o judaísmo: desconfiança
quanto à mulher? Desconfiança quanto à sexualidade?
2. Ben Sira, Salomão, Tobias:
 Que nos dizem da mulher? Da fecundidade?
Da esterilidade?
 Lugar de amor, falando do sentimento amoroso da
Bíblia
3. Os dois grandes tempos do Cântico dos Cânticos
Quais são as condições para um amor autêntico?
47
C. SUGESTÕES PARA UM DEVER DE SE SENTAR
Depois de uma leitura em comum do Cântico dos Cânticos
podemos fazer uma partilha sobre as seguintes questões:
O que é que eu encontro de único no meu cônjuge?
Em que é que somos radicalmente diferentes?
Aceito com alegria que ele(ela) seja diferente de mim?
Como o vivemos?
D. TEXTO PARA A ORAÇÃO EM EQUIPA
Quando foram para o seu quarto, Tobias disse à Esposa:
“Sara, levanta-te, vamos orar a Deus hoje, amanhã e depois.
Durante estas três noites, estaremos somente unidos a Deus e só
passada a terceira noite consumaremos a nossa união. Descendemos
dum povo de santos e não nos podemos unir como pagãos que
desconhecem a Deus”. Levantaram-se ambos e puseram-se a orar
com fervor. Pediam a Deus a Sua protecção. Tobias dizia: “Senhor,
Deus de nossos pais, louvem-Te os céus e a terra, assim como o mar,
as fontes, os rios e todas as criaturas. Tu criaste Adão do barro da
terra, e deste-lhe Eva como esposa. Agora, Senhor, Tu bem sabes: se
tomo por esposa esta filha de Israel, não é para satisfazer as minhas
paixões, mas só com o desejo de fundar uma família que louvará o
Teu nome por todos os séculos.
Tb 8,1-9
48
CAPÍTULO II – OS RELATOS DA CRIAÇÃO
(Gn 1-3)
3ª REUNIÃO: “O homem e a mulher apresentam-se um ao outro,
na sua diferença e sedução. A obra divina está
completa. Tudo está em harmonia. A criação é
bela.”
A. TEMA
Quem se interessa pela maneira como a Bíblia evoca as
relações homem-mulher, dificilmente pode esquecer-se dos três
primeiros capítulos do livro do Génesis. Situados no início da Bíblia,
estes capítulos evocam, sob a forma de dois relatos, a criação do
mundo. Fazem-no em termos que estão afastados do nosso
pensamento científico mas que, apesar disso, encerram um sentido
pleno de actualidade. De entre os mais conhecidos da Bíblia, estes
textos desempenharam um papel importante na compreensão das
relações humanas, mas as leituras que deles foram feitas
contribuíram, por vezes, para alimentar uma imagem ambígua e falsa
da mulher.
No primeiro relato, ficamos a saber que o homem e a mulher
foram criados à imagem e semelhança de Deus: eles são o culminar
da Criação. No segundo relato, a mulher, apresentada como uma
ajuda indispensável ao homem, suscita a admiração de Adão. Mas da
admiração ao drama do pecado, houve apenas um passo rapidamente
dado. A relação harmoniosa do homem com a mulher foi substituída,
então, por relações de inveja e de domínio.
No espaço de três capítulos é tudo dito: a semelhança, o
encantamento, a provação da relação. Mas devemos à inteligência do
último autor do Pentateuco1 ter feito preceder o relato da “queda de
1
O Pentateuco é constituído pelos cinco primeiros livros da Bíblia: Génesis,
Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio. A sua redacção repartiu-se por
vários séculos, provavelmente do século X ao século IV antes de Cristo.
49
Adão e Eva”, ainda que mais antigo que o da criação em sete dias.
Antes de evocar o drama da ruptura quer entre o ser humano e Deus,
quer entre o homem e a mulher, desejava, sem dúvida, afirmar, antes
de mais, o aspecto absolutamente positivo da Criação. Antes de falar
do homem e do seu pecado, ele desejava que, de forma alguma, fosse
esquecido que o ser humano fora criado “homem e mulher à imagem
e semelhança de Deus”. Na opinião de Deus estava tudo muito bem!
Homem e mulher Ele os criou
Habitualmente situa-se a redacção do primeiro relato da
criação , durante o exílio na Babilónia, no século VI antes de Cristo.
Com a tomada de Jerusalém, em 587, Israel tinha perdido a sua terra,
o seu rei e o seu templo. Exilados na Babilónia, os autores deste
relato teriam, por isso, tido suficientes razões para duvidar do seu
Deus e, sem dúvida, também da vida. Num magnífico poema
litúrgico, eles afirmam, pelo contrário, que o mundo é belo: ele é
fruto da Palavra de Deus. Assim, por seis vezes, um mesmo refrão
pontua as diferentes criações: “e Deus viu que isso era bom”. O
sexto dia, último dos dias da criação, é, de longe, o mais
desenvolvido. É o dia em que Deus criou a Humanidade, “o ser
humano”, no sentido geral do termo:
«Depois, Deus disse: “Façamos o ser humano à nossa
imagem, à nossa semelhança, para que domine sobre os peixes do
mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos e sobre todos
os répteis que rastejam pela terra”. Deus criou o ser humano à Sua
imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher.
Abençoando-os, Deus disse-lhes: “Crescei e multiplicai-vos, enchei e
dominai a terra. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do
céu e sobre todos os animais que se movem na terra”. Deus disse
ainda: “Também vos dou todas as ervas com semente que existem à
superfície da terra, assim como todas as árvores de fruto com
2
2
Cf. Gn 1,1-2, 4a.
50
semente, para que vos sirvam de alimento. E a todos os animais da
terra, a todas as aves dos céus e a todos os seres vivos que existem e
se movem sobre a terra, igualmente dou por alimento toda a erva
verde que a terra produzir”. E assim aconteceu. Deus, vendo toda a
Sua obra, considerou-a muito boa. Assim, surgiu a tarde e, em
seguida, a manhã: foi o sexto dia3.»
Neste relato, nada é dito sobre o processo da formação do ser
humano nem sobre a sua composição. Intervém apenas com uma
tomada de decisão: “Façamos o ser humano à nossa imagem, à
nossa semelhança, para que domine sobre os peixes do mar, sobre as
aves do céu, sobre os animais domésticos e sobre todos os répteis
que rastejam pela terra.” Esta decisão é seguida de um triplo: “Deus
(Ele) criou”:
Deus criou o ser humano (há‟adam) à Sua imagem,
à imagem de Deus, Ele os criou;
homem (zakar) e mulher (neqebah) Ele os criou.
Expoente das criaturas de Deus, o ser humano caracteriza-se
aqui por uma semelhança que não partilha com o resto da criação: ele
foi criado à imagem de Deus. Considerando que a palavra “imagem”
pode designar na Bíblia uma estátua, uma escultura ou mesmo um
ídolo4, sabendo principalmente que nesse tempo a imagem
representava a pessoa que ela reproduzia, tudo leva a supor que o ser
humano, tal como é apresentado aqui, tem por vocação ser o
representante de Deus. Afirmar isso é reconhecer a proximidade que
3
4
Cf. Gn 1,26-31.
Cf. 1 Sm 6,5; Nm 33,52; 2 Rs 11,18, Am 5,26; etc. Sem dúvida, não se pode opor
apressadamente as duas palavras “imagem” e “semelhança”, pois a expressão
hebraica “à sua imagem e semelhança” indica mais uma complementaridade do
que uma diferença ou uma oposição. Por vezes vimos na posição erecta do ser
humano, nas suas faculdades intelectuais e espirituais ou, ainda, no seu domínio
sobre a criação, os sinais da imagem e da semelhança divina inscritas no mais
profundo do seu ser. São apenas interpretações restritivas, essas, pois é a
capacidade de relação do ser humano, sobretudo com Deus, que é essencial aqui.
51
une o ser humano e o seu Criador, mas não é esquecer a distância que
os separa, pois a imagem não é idêntica ao seu modelo e não pode ser
confundida com ele. Em suma, se o ser humano não é Deus, de entre
todas as criaturas a que Deus deu existência, ele é o único capaz de
uma relação particular com Ele.
A este aspecto junta-se outro: imagem de Deus, o ser humano
é-o na sua própria diferenciação sexual. É o que declara o autor deste
relato num resumo espantoso. Jogando entre o singular e o plural,
reconhece que a imagem de Deus é inscrita na humanidade pela
separação que faz surgir entre o homem e a mulher: “À imagem de
Deus, Ele o criou, macho e fêmea5.” Desde a sua criação, a
humanidade traz inscrita em si própria, simultaneamente, uma
unidade e uma diferença que situa cada sexo numa necessária relação
com o outro. Consequentemente, para ser plenamente imagem(s) e
semelhança(s) de Deus, homem e mulher devem aceitar a unidade
que precede a sua distinção e a diferença que os faz ser um com o
outro e um para o outro.
Esse é o fundamento da dignidade comum do homem e da
mulher: um como o outro foram criados à imagem de Deus. Una, a
Humanidade só o pode ser, aceitando o masculino e o feminino que a
constituem. Recusá-lo, ou prejudicar a qualidade da relação homem-mulher, é atingir a imagem de Deus inscrita no coração do ser
humano.
Isso é tanto mais espantoso que a Bíblia não cessa de afirmar
que Deus não é nem “macho” nem “fêmea”. É mesmo uma das
características marcantes do pensamento bíblico que se diferencia,
assim, das correntes religiosas do seu tempo com as suas divindades
sexuadas. Mas, ao declarar que o homem e a mulher, na sua
diferenciação sexual, são imagem (s) e semelhança (s) de um Deus
que não é macho nem fêmea, a Bíblia reconhece que, se a
sexualidade não pertence ao ser de Deus, ela é uma componente
essencial do seu projecto para a criação. Além disso: a sexualidade é
o espelho de uma realidade que existe em Deus, mas que só
5
Estes substantivos são utilizados indistintamente para os seres humanos e para os
animais: Gn 6,19; 7,3; 34,25; Ex 13,12; Lv 3,1-6; 27,4-7; Nm 3,40.43; 31,17; etc.
52
compreendemos imperfeitamente. Descobrindo, progressivamente, a
natureza do Deus que fizera Aliança com eles, os homens e as
mulheres do Antigo Testamento compreenderão, efectivamente, que
só a beleza do amor humano pode abrir a humanidade ao mistério do
ser profundo de Deus. Mas serão necessários séculos para que se
apreenda que o Deus da Bíblia é unicamente Amor e que, no Seu ser
trinitário, Ele é comunhão de três Pessoas que só existem, dando-Se.
Espelho do próprio ser de Deus, a sexualidade é-o também e
principalmente quando, dando a vida, o homem e a mulher fazem, da
sua diferença reconhecida e aceite, o lugar do acolhimento e do
nascimento do outro. Neste sentido, se ele não é em si próprio a única
finalidade da sexualidade, o dom da vida é a expressão mais perfeita
da relação do homem e da mulher que se abrem plenamente à
fecundidade do seu amor e da sua diferença. É, claramente, o que
aparece na narrativa da Criação onde, imediatamente depois de ter
sido criado o ser humano na sua dualidade masculina e feminina,
Deus abençoa aqueles que acaba de criar e diz-lhes: “Crescei e
multiplicai-vos, enchei e dominai a terra. Dominai sobre os peixes do
mar, sobre as aves do céu e sobre os animais que se movem na
terra.”
É a primeira vez que Deus Se dirige assim a uma das suas
criaturas, que é o ser humano. A palavra divina é precedida por uma
bênção6, sinal da bondade de Deus em relação ao homem e à mulher.
Esta bênção diz respeito à fecundidade, à prosperidade e à dominação
da terra. Comporta cinco imperativos que se dirigem em plena
igualdade ao homem e à mulher. Fruto da bênção divina, a
fecundidade, à qual homens e mulheres são chamados
conjuntamente, está por isso presente como um dom de Deus. Isso
reveste uma importância especial se nos lembrarmos que este relato
foi redigido no contexto do Exílio. Assim, a um povo que fazia a
experiência da esterilidade 7 e que tinha boas razões para temer o seu
futuro, era dito “Crescei e multiplicai-vos”. Esta aposta audaciosa
6
Já havia uma bênção em relação aos animais, mas dizia apenas respeito à
fecundidade (Gn 1,22).
7
Cf. Is 54,1-4.
53
num futuro de felicidade ecoava como um apelo a colocar a
esperança em Deus e a crer na fecundidade, que é devolvida ao
homem até nas situações de aparente esterilidade.
No seguimento dos Patriarcas, ao longo da sua história, o
Povo de Deus viverá desta esperança; e transmitir-se-á
cuidadosamente a bênção divina de pais a filhos. Confrontados com a
provação da esterilidade, os homens e as mulheres da Bíblia
descobrirão igualmente que podem aí existir outras fecundidades
além das carnais. Lutando com as exigências de sobrevivência e de
descendência naturais a todo o povo, compreenderão que, para que
ela seja verdadeiramente o fruto da bênção divina, a procriação deve
ser a expressão de uma relação entre dois seres que, na aceitação da
sua diferença, se abrem ao que é maior do que eles. Ultrapassando a
simples genitalidade, o dom da vida dá, então, todo o seu sentido à
sexualidade.
À fecundidade acrescenta-se uma outra bênção: “Crescei e
multiplicai-vos, enchei e dominai a terra. Dominai sobre os peixes do
mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se movem
na terra.” Associado à imagem de Deus inscrita no coração de todo o
ser humano, o domínio do homem não se estende por isso nem ao
céu, nem ao tempo, nem aos outros homens. Ele não pode ser
exercido de qualquer forma, já que o ser humano, na sua forma de
dominar, implica a sua dualidade de homem e de mulher criados “à
imagem e semelhança de Deus8”. Assim, da mesma maneira que nem
o homem nem a mulher podem pretender ser, apenas um deles, a
imagem e semelhança de Deus, eles também não podem pretender
8
“Simultaneamente, esclarece-se o verdadeiro sentido do domínio que o homem é
chamado a exercer sobre a terra e os animais. Este domínio exclui toda a relação
violenta, toda a agressão, toda a vontade de destruição. À imagem de Deus, o
homem deve ser um mestre em doçura. Ele é este mestre de doçura, quando
controla a sua própria animalidade, quando se torna ele próprio criador de
unidade e de harmonia entre os seres, quando faz seu, no respeito e no amor, o
grande desígnio da vida do Criador. Vemos o erro grosseiro de numerosas
interpretações que leram no texto bíblico o poder do homem sem aí lerem a
doçura divina” (E. Leclerc, Le Soleil se lève sur Assise, Desclée de Brouwer,
Paris, 1999).
54
exercer sozinhos o poder. É um poder que eles devem saber exercer
juntos, como já foi sugerido no versículo 26 que, ao singular “o
homem” opunha o plural “dominam”: “Façamos o ser humano à
nossa imagem e à nossa semelhança, para que eles dominem...”
A distinção é importante: se ele reconhece que Deus deu ao
ser humano uma tarefa de domínio sobre o que criou, o autor deste
relato afirma sobretudo que esta tarefa diz respeito à humanidade no
seu todo, na sua diferença constitutiva de homem e de mulher, o que
se opõe a toda a forma de tomada do poder por parte dos homens.
Mas para que o acesso das mulheres ao poder seja totalmente
respeitado, será preciso que as mulheres não copiem os mecanismos
masculinos e que exerçam o poder com a sensibilidade e os carismas
que lhes são próprios, senão a complementaridade desejada por Deus
entre o homem e a mulher não se pode realizar. Não é menos verdade
que a sexualidade, tal como o exercício do poder, é uma realidade
positiva. Vemo-lo bem nesta asserção que o escritor bíblico atribui ao
próprio Deus: “Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito
boa.”
Este escritor sabia, no entanto, que estas realidades são
ambíguas e que, para serem boas, é preciso que elas sejam vividas no
respeito pelo desígnio do Criador. A isso ele acrescentaria aliás uma
regra fundamental, ainda que raramente compreendida: a sexualidade
e o exercício do poder devem ser regulados pelo sétimo dia, o dia do
sabbat. É o momento de repouso deste relato que apresenta Deus,
parando e contemplando o que acabara de criar 9. À imagem de Deus,
o ser humano deve também parar. Isso tornar-se-á mesmo um
mandamento: “Trabalharás durante seis dias e farás todo o teu
trabalho. Mas o sétimo dia é o sábado consagrado ao Senhor, teu
Deus. Não farás trabalho algum, tu, o teu filho e a tua filha, o teu
servo e a tua serva, os teus animais, o estrangeiro, que está dentro
das tuas portas. Porque em seis dias o Senhor fez os céus e a terra, o
mar e tudo o que está neles, mas descansou no sétimo dia10.”
9
Cf. Gn 2, 2-3.
Cf. Ex 20,9-11.
10
55
Porquê este mandamento? Porque, ao parar, o ser humano
pode repousar, distanciar-se, julgar. Parando, ele lembra-se,
principalmente, que não é a medida de todas as coisas, mas apenas a
imagem d’Aquele a quem pertence o universo e tudo o que nele
habita.
Cumprindo esta condição, o ser humano não se deixa cair na
armadilha do seu próprio poder; ele reconhece que a sua obra é
limitada e que só tem valor se for fecundada pelo encontro de Deus.
Parando e consagrando-se a Deus, o ser humano reconhece também
que, para ser verdadeiramente criadora, a sexualidade deve ser
precedida pela Palavra criadora de Deus11. É, sem dúvida, por isso
que, na tradição judaica, o sabbat é o dia em que é desejável
conceber um filho. Reconhecendo que não tem em si próprio a sua
origem, o ser humano participa deste modo na santidade deste dia
único.
A admiração de Adão
O segundo relato da Criação é mais antigo que o precedente.
Diferentemente deste, o ser humano é aí apresentado na sua
fragilidade. É um homem que se interroga: Porque é que o trabalho é
penoso? Porque é que a relação homem-mulher é marcada
simultaneamente pela atracção e pelo conflito? Porquê o ódio?
Porquê a violência, que pode ir até ao homicídio? Tudo começa pela
descrição do universo onde o ser humano vai fazer a sua aparição:
“Quando o Senhor Deus fez a terra e os céus, ainda não
havia arbusto algum pelos campos, nem sequer uma planta
germinara ainda, porque o Senhor Deus ainda não tinha feito chover
sobre a terra, e não havia homem para a cultivar, mas da terra
brotava uma nascente que regava toda a superfície12.”
11
12
Isto é válido também a propósito do exercício do poder.
Cf. Gn 2,4-6.
56
Tudo convoca aqui a vinda do homem, pois, sem ele, qualquer
coisa parece faltar à Criação. De acordo com Rashi, um comentador
judeu do séc. II, é porque não havia homem para trabalhar o solo, que
o Senhor não tinha feito cair a chuva. Ainda na sua opinião, é graças
ao “vapor” que subia da terra que Deus pode tornar a terra húmida e
proceder à formação do homem.
É assim, efectivamente, que a criação do ser humano é aqui
contada:
“O Senhor Deus formou o homem (adam) do pó da terra
(afar min-ha adamah) e insuflou--lhe pelas narinas o sopro da vida
(nishmat hayiim) e o homem transformou-se num ser vivo. Depois, o
Senhor Deus plantou um jardim no Éden, ao oriente, e nele colocou
o homem que tinha formado13.”
Esta cena evoca Deus a “modelar” o ser humano, como um
oleiro dá forma a um vaso 14. A imagem poderia parecer infantil. Ela
encerra, com efeito, uma verdade fundamental: o ser humano foi
modelado por Deus a partir da terra, mais exactamente “do pó da
terra”. De certa maneira, ele é, por isso, o fruto da terra, mas não o
seu filho, pois que foi criado por Deus e habitado pelo “sopro da
vida” que procede de Deus15. O ser humano aparece, assim, na sua
fragilidade, pois só as mãos e o sopro de Deus são capazes de dar
coesão e vida àquilo que é efémero, frágil e disperso. Mas ele aparece
também na sua grandeza. Colocado no jardim do Éden “para o
cultivar e, também, para o guardar16”, pressente-se, com efeito, que
ele é destinado a uma comunhão especial com Deus. Para tanto, o
homem deverá aceitar a sua condição de criatura, respeitando a
13
Cf. Gn 2,7-8.
Cf. Is 29, 16. O texto joga com a ambiguidade da palavra “Adão”, pois ela parece
evocar aqui o ser humano em geral, fora de qualquer diferenciação sexual.
Alguns versículos mais à frente, ele evocará o homem, maravilhando-se diante da
mulher que Deus lhe apresenta (Gn 2,23).
15
A morte não é mais que o regresso ao pó, a desintegração (Gn 3,19).
16
Cf. Gn 2,15.
14
57
proibição divina de comer (o fruto) “da árvore do conhecimento do
bem e do mal17”.
Segue-se uma nova etapa. Até aqui Deus agia, agora Ele fala.
Parece mesmo reflectir em voz alta: “Não é conveniente que o
homem esteja só; vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele18.” Pela
primeira vez, aparece na Bíblia a expressão “não é conveniente”.
Surge uma falha, uma falha que nem o trabalho nem mesmo a
presença de Deus parecem poder preencher 19. Deus decide, então, dar
ao homem “uma auxiliar semelhante a ele”: será a mulher.
Porque não se terá tido sempre em conta a palavra hebraica
utilizada aqui, terá sido colocada a mulher numa posição de quase
servidão ou de subordinação em relação ao homem; foi entendido
que o seu papel é ajudar o homem. Sabe-se hoje que a palavra
hebraica, que foi traduzida por “auxiliar”, designa na Bíblia a
intervenção de Deus, vindo em socorro do Seu povo ou de um
homem que enfrenta um perigo ameaçador da sua vida 20. A
consequência é evidente: longe de ser acantonada num papel
subalterno, a mulher é apresentada como tendo uma vocação
salvífica. De que vai ela salvar o homem? Do seu isolamento mortal e
estéril sobre si próprio.
Sobre a mulher, o texto hebreu diz igualmente que ela será
«ezer kenegdo», isto é, uma “auxiliar lado a lado ou contra”. A
expressão pode causar estranheza. É sinal que o ser humano não o é
verdadeiramente, senão no face a face com um outro que não ele
próprio, numa relação de reciprocidade em que a ajuda pode tomar a
17
Cf. Gn 2,17. Esta expressão não designa apenas em hebreu a capacidade humana
de determinar o que é o bem ou o mal, ela evoca o domínio do homem sobre a
criação.
18
Cf. Gn 2,18.
19
O mal de que sofre o homem criado por Deus chama-se “solidão”. No
pensamento bíblico estar só não é uma coisa boa. Ecle 4,7-12 exprime-o
maravilhosamente e se é pedido, como nós vimos, a Jeremias não ter mulher (Jer
16,1-9), esta ordem não tem sentido como um sinal do julgamento de Deus que
se vai abater sobre o seu povo, pois é um julgamento de morte!
20
Cf. Ex 18,4; Dt 33,7.26-29; Sl 33(32),20; 115(113b), 9.11; 121(120),2;
124(123),8; 146(145),5; etc.
58
forma de uma resistência. Evocando o papel da mulher, mas, sem
dúvida, podendo-se alargar o comentário a cada um dos participantes
do casal humano, France Quéré escreve: “Convidada a não ser nem
a serva nem a inimiga do homem, a mulher será outra via do
pensamento, aquela que acrescenta, sugere, corrige, recusa,
inquieta, interdita ao ser solitário fixar-se nas suas certezas
apressadas ou deixar-se ir sem resistência no seu delírio. Para
pensar de forma acertada, é necessária esta polifonia. A razão de um
outro que sabe dizer sim e não e delibera entre o sim e o não. Deus
disse: a humanidade começou sendo dois21.” Quem o contestará? É
nesta tensão entre a ajuda que um representa para o outro – e que
pode ser uma “ajuda contra” –, que reside a possibilidade da relação
entre o homem e a mulher, mas também a fragilidade que ameaça
esta relação.
Um rápido regresso ao texto bíblico poderia dar a impressão
de que Deus tinha, em primeiro lugar, remediado a solidão do homem
ao criar os animais. Com efeito nada disso é dito, mas unicamente
que Deus apresentou ao homem os animais que tinha acabado de
criar para que ele lhes desse um nome, o que é uma maneira de
reconhecer a autoridade do ser humano sobre o mundo animal. Os
comentários rabínicos deixaram, no entanto, subentender que o
homem tinha tomado consciência da sua solidão, quando deparou
com os pares animais que desfilavam diante dele. É o caso deste
comentário de Rashi: “No momento em que Deus trouxe os animais e
os apresentou em pares de macho e fêmea, o homem diz: cada um
tem a sua companheira e eu não.”
Por vezes, imaginou-se também que os animais acoplavam
diante do homem, revelando-lhe, assim, um certo modo de
sexualidade. Se tal fosse o caso, reconhecendo que ele ainda não
21
Fr. Quéré, Le sel et le vent, Bayard éditions/ Centurion, Paris, 1995, p. 245. A
forma como a literatura rabínica interpretará este versículo mostra bem que a
alteridade homem-mulher implica um aspecto conflitual. Gn Rabbah escreve
efectivamente: “Se o homem merece, ela é-lhe um ajuda, se não, ela está contra
ele”; e Rashi comenta: “Na medida em que um homem se mostra digno, ela será
para ele uma ajuda; se ele não se mostra digno, ela estará contra ele para o
combater”.
59
tinha encontrado “uma auxiliar semelhante a ele 22”, o redactor do
relato teria podido mostrar que o acasalamento era incapaz de
preencher a solidão do homem, sugerindo assim que a união do
homem e da mulher ultrapassa a mera dimensão genital, pois ela tem,
antes de mais, em vista a comunhão das pessoas23.
Claro que são simples hipóteses. Com a profundidade que o
caracteriza, Paul Beauchamp abre uma pista de reflexão, não sem
consequências para o nosso tema: “O leitor deve estar ciente que a
diferença entre cada homem e o animal é tarefa duma vida inteira e
duma vida inteira para cada vida: nós só atingimos o estatuto de
homem, desprendendo-nos da animalidade que existe em nós. E é só
quando o homem não se confundir com a sua animalidade que
poderá fazer face ao outro da sua espécie, a mulher. Esta verdade,
menos banal, está contudo no cerne da mensagem24.”
Algumas páginas antes, P. Beauchamp tinha escrito: “Nomear
é, de cada vez, para Adão uma forma de se desprender.”
Voltando ao texto bíblico, constatamos que, depois de ter
apresentado os animais ao homem para que ele lhes dê um nome,
Deus vai tentar uma coisa diferente. Até ao momento, com efeito,
tudo o que tinha criado tinha a sua origem na terra, visto que foi dela
que tirou todos os seres vivos, modelando-os. Nada disso aconteceu
com a mulher. Tudo começa com um torpor no qual Deus mergulha o
homem25:
“Então o Senhor Deus fez cair sobre o homem um sono
profundo e, enquanto ele dormia, tirou-lhe uma das suas costelas,
22
Cf. Gn 2,20.
É possível que exista aqui um ponto polémico contra a bestialidade, interdita pela
lei de Moisés (Ex 22,18; Dt 27,21;Lv.18,23).
24
P. Beauchamp, L’un et l’autre Testament, 2 Accomplir les écritures, Seuil, Paris,
1990.
25
O torpor (tardemah) que se apodera do homem aparece na Bíblia noutras
ocasiões, sendo o caso mais frequente, quando Deus se prepara para cumprir uma
acção poderosa e decisiva (cf. Gn 15,12). É sempre sinal de uma acção divina
particularmente importante (1 Sm 26,12; Jb 4,13; 33,15; Is 29,10,etc.).
23
60
cujo lugar preencheu de carne. Da costela que retirara do homem, o
Senhor Deus fez a mulher e conduziu-a até ao homem.
Então, o homem exclamou: “Esta é, realmente, osso dos meus
ossos e carne da minha carne. Chamar-se-á mulher, visto ter sido
tirada do homem!” Por esse motivo, o homem deixará o pai e a mãe
para se unir à sua mulher e os dois serão uma só carne 26.”
Neste relato impõe-se uma primeira constatação: a mulher não
foi “tirada” da terra ou da poeira da terra, como tinha sido no caso do
homem e dos animais. Ela foi “tirada” do próprio homem. Ela foi
mesmo “construída”, diz o texto hebraico, com a substância do corpo
do homem. Mas ela foi edificada fora dele27; é preciso lembrarmonos disso. Uma segunda constatação se impõe: na presença da mulher
que Deus lhe apresenta, o homem fala: é a primeira palavra humana.
Que seja face à mulher que o ser humano tenha descoberto o uso da
palavra, não é um facto neutro. Pois, se alguns versículos mais acima,
ele atribuía os nomes aos animais, quando é colocado na presença da
mulher é que se ouve a voz humana. Embora não se possa ainda falar
de diálogo, face à mulher, um “eu”, pela primeira vez, se põe a falar;
e a sua palavra é de admiração e gratidão.
Constatando o íntimo parentesco e a origem comum que ele
tem com aquela que Deus acaba de lhe apresentar, o homem exclama:
“osso dos meus ossos e carne da minha carne28. Chamar-se-á
mulher, visto ter sido tirada do homem.” Adão, o indiferenciado, o
anónimo, tornou-se então o homem “ish” face à mulher “ishah”.
Neste jogo de palavras “ish-ishah”, o texto hebraico traduz
simultaneamente a semelhança e a diferenciação que caracterizam o
homem e a mulher, mas sem que apareça nenhuma ideia de
26
Cf. Gn 2,21-24.
“A mulher não é um bocado do homem. Depois de ser retirado (o bocado), há
uma construção. Ela é edificada fora dele” (M. Balmary, Le sacrifice interdit,
Grasset, Paris, 1986).
28
Na Bíblia, a expressão “Ossos dos meus ossos, carne da minha carne” traduz,
habitualmente, um parentesco entre as pessoas da mesma linhagem (cf. Gn
29,14).
27
61
subordinação da mulher ao homem29. Pelo contrário, tudo aponta
para a igualdade entre o homem e a mulher. Esta igualdade
caracteriza-se, ao mesmo tempo, por uma unidade indissolúvel e uma
distinção irredutível que impede que se confunda igualdade com
uniformidade. Ainda que eles sejam os mesmos ossos e a mesma
carne, o homem e a mulher são, com efeito, dois seres distintos.
Ainda que partilhem uma mesma carne, visto que o homem se pode
reconhecer na mulher e a mulher no homem, eles terão duas maneiras
distintas de habitar nessa carne.
Insistindo neste ponto, o autor do relato sabia, por
experiência, que a similitude e a alteridade estão no centro da relação
homem-mulher. Sabia também que se o homem “ish” e a mulher
“ishah” são feitos um para o outro, são o resultado de dois actos
criadores diferentes. Devemos, por isso, deduzir que eles não são só a
metade de um todo, mas cada um sujeito de corpo inteiro, o que leva
o filósofo E. Levinas a afirmar: “Se a mulher completa o homem, ela
não o completa como uma parte completa um outro num todo, mas,
por assim dizer, como duas partes que se completam30.”
Esta observação está, de facto, feita no tom dos relatos da
criação do homem e da mulher. O autor bíblico evoca, efectivamente,
o sono misterioso no qual Deus mergulha o ser humano, como que
para significar que a criação da mulher – dom de Deus – permanecerá
para o homem um mistério do qual só Deus conhece o segredo. Mas
se o sono esconde para sempre ao homem a origem da mulher,
conservando-a no mistério de Deus, sabemos bem que assim o é
também para o homem, cuja origem é mantida no mesmo mistério.
Estranhamente, contudo, da admiração e do encantamento, o texto
bíblico conduz o homem à obrigação de deixar o seu meio familiar
29
Frequentemente, considerou-se a anterioridade da criação do homem em relação
à mulher, ou o facto de ele ter fornecido, de alguma forma, a matéria-prima, um
sinal da superioridade do homem em relação à mulher. Ora, isso é esquecer que,
na Bíblia, a superioridade e a dominação do homem em relação à mulher são
entendidas como consequência do pecado (Gn 3,16).
30
E. Levinas, Difficile liberté, Albin Michel, Paris, 1976, p. 56 apud X. Lacroix, Le
corps de chair. Les dimensions éthique, esthétique et spirituelle de l’amour, Cerf,
Paris, 1992.
62
para ir em direcção àquela que acaba de conhecer. Assim, sem
transição, o autor deste relato acrescenta: “Por esse motivo, o homem
deixará o pai e a mãe, para se unir à sua mulher; e os dois serão
uma só carne31.”
Esta necessidade imposta ao homem que acaba de conhecer a
mulher, à primeira vista, é surpreendente32. Ela encerra, na realidade,
uma verdade inscrita na ordem da Criação: para ser total e verdadeiro
o encontro do homem e da mulher necessita de um corte, da saída da
sua condição filial. Porque implica uma relação que visa a fazer-se
um só com a mulher, por isso uma única história, o homem deve
assumir o risco de “se separar” do seu meio ou da sua história
familiar. Se se sabe, hoje, graças às ciências humanas, que, por mais
necessária que seja, esta separação nunca é fácil, é interessante notar
que os comentários rabínicos tinham já consciência disso. Diziam-no
nas suas palavras, afirmando que um homem só atinge a verdadeira
união com a sua mulher na medida em que deixa fisicamente e
geograficamente “a casa onde dormem os seus pais 33”. Contudo, o
homem e a mulher continuarão a ser dois, pois não pode haver
comunhão onde a diferença não for reconhecida, acolhida e mantida.
31
Cf. Gn 2,24. Aqui não se deve tomar a palavra “carne” no único sentido de união
sexual. Designa, antes, a unidade do casal em todas as suas dimensões. «Unidade
de dois seres corporais em toda a dimensão que pode assumir a ligação entre um
homem e uma mulher. A união carnal, claro que não é excluída, mas não é o que
se visa em primeiro lugar» (M Gilbert, “Uma só carne”, Nouvelle Revue
Théologique, 1978).
32
A urgência deste abandono é sentida com uma tal força que o texto não hesita em
inverter um costume em uso na sociedade de então, visto que era habitualmente a
mulher que deixava os seus pais, para ir viver com a família do seu marido. Isso
não faz mais que sublinhar o ensinamento desta passagem bíblica: ser homem
/ser mulher não consiste apenas em ser “nascido de um pai e de uma mãe”, mas
em ocupar o seu lugar na construção da humanidade, com as suas capacidades
próprias, sexuais ou outras. Deste desenvolvimento necessário à construção
humana, o casamento, fundado na diferença sexual, é um dos sinais mais
importantes.
33
Associou-se muitas vezes esta obrigação (Gn 2,24) aos interditos sexuais (Lv 18,
6ss.) que dizem respeito a diferentes tipos de incesto. Cf. J. Einsenberg, A.
Abecassis, Et Dieu créa Ève, À Bible Ouverte II, Albin Michel, Paris, 1979.
63
Sabia-se já que a necessária articulação da diferença homem-mulher tinha por base o facto de nem o homem nem a mulher
constituírem, por si próprios, o todo da humanidade. Aprendemos
aqui que, se ela supõe a alteridade, a comunhão entre o homem e a
mulher necessita que, enriquecendo-a com as suas diferenças, eles
tenham o desejo de “se ligarem” um ao outro, por isso, de se unirem
numa aliança indefectível porque única. Pois tal é o sentido profundo
do verbo “ligar” que caracteriza aqui o laço entre homem e mulher:
ele eleva a sua união ao nível do sinal da Aliança divina.
Uma vez feita esta afirmação, o relato da criação acaba com a
menção do homem e da mulher vivendo na serenidade e não sentindo
nenhuma vergonha diante da sua nudez: “Estavam ambos nus, tanto o
homem como a mulher, mas não sentiam vergonha34.”
A vulnerabilidade da nudez35 transforma-se aqui num
sentimento de presença mútua desprovida de qualquer perturbação. O
homem e a mulher expõem-se um ao outro na sua diferença e na sua
mútua sedução. A obra divina está completa. Tudo é harmonioso. A
criação é bela. Pondo de lado a “nomeação” dos animais, o homem
ficou passivo, objecto das solicitações sucessivas do seu criador.
Resta-lhe traçar um caminho, fazer opções e enfrentar a prova. Será
esse o assunto da segunda parte do relato.
34
35
Cf. Gn 2,25.
Em Israel, a nudez era um sinal de pobreza, de vergonha e de impotência. As
vestes eram, pelo contrário, um sinal de prosperidade, de riqueza, de felicidade.
64
B. QUESTÕES PARA A REFLEXÃO EM CASAL
E PARTILHA EM EQUIPA
Apresentamos seguidamente um conjunto de questões para
ajudar a reflexão ao longo do mês e posterior debate em equipa:









As três etapas da descoberta do Humano
O que é que permite aproximar “o mistério do ser profundo
de Deus”?
1ª bênção: fecundidade, que fecundidade?
2ª bênção: domínio, que domínio? Quais as modalidades?
Qual a importância do Sabbat?
A fragilidade do homem – Vocação da mulher? Vocações
diferentes?
Que significa para nós o emprego destes três nomes: Adão,
Ish e Ishad?
Qual o significado do sono profundo de Adão na altura da
criação de Eva?
Que significa, para nós, o valor da alteridade (diferença)?
C. SUGESTÕES PARA UM DEVER DE SE SENTAR
Comecemos o dever de se sentar com aleitura do texto de
meditação, após o qual devem fazer uma oração partilhada, criando
um clima de interiorização e de acolhimento ao outro, o que vai
facilitar o diálogo em casal. Em seguida, leiam as pistas, façam um
certo silêncio e só depois iniciem o dálogo:
Vivemos, no nosso casal, a admiração de Adão perante
Eva? E o recíproco...?
Sabemos, na nossa vida sexual, encontrar o valor da nudez
original?
65
Aceito mostrar toda a minha pobreza. Sei escolher esse
presente maravilhoso que é o outro e que se revela, diante
dos meus olhos, tal como é?
Quais são os diferentes sentidos da fecundidade no nosso
casal?
D. TEXTO PARA A ORAÇÃO EM EQUIPA
«Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem, à nossa
semelhança, para que domine sobre os peixes do mar, sobre as aves
do céu e sobre todos os animais que se movem na terra.”
Deus criou o homem à Sua Imagem
Criou-o à Imagem de Deus
Ele os criou homem e mulher
Abençoando-os, Deus disse-lhes: “Crescei e multiplicai-vos,
enchei e dominai a terra. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as
aves do céu e sobre todos os animais que se movem na terra. Deus
disse ainda: “Também vos dou todas as plantas com semente que
existem à superfície da terra, assim como todas as árvores de fruto
com semente, para que vos sirvam de alimento. E a todos os animais
da terra, a todas as aves do céu e a todos os seres vivos que sobre a
terra existem e se movem, igualmente dou por alimento toda a erva
verde que a terra produzir.” E assim aconteceu. Deus vendo toda a
sua obra, considerou-a muito boa. Assim surgiu a tarde e, em
seguida, a manhã: foi o sexto dia.»
Gn 1,26-31
66
CAPÍTULO II – OS RELATOS DA CRIAÇÃO
(Gn 1-3)
4ª REUNIÃO: “Porque é difícil de gerir e de dominar, a
sexualidade é um dos domínios essenciais à
existência onde se constrói e se verifica a qualidade
da relação consigo próprio, com os outros e com
Deus”
A. TEMA
O reino da inveja e do domínio
Com o capítulo 3 do Génesis, eis-nos mergulhados num clima
bem diferente. Uma nova personagem aparece: a serpente.
Desempenhará um papel importante, visto que será a ela, em parte,
que se atribuirá o drama da humanidade. Criada por Deus, a serpente
não é, no entanto, unicamente mais uma criatura, mas “o mais astuto
de todos os animais selvagens que o Senhor Deus fizera.”
«A serpente era o mais astuto de todos os animais selvagens
que o Senhor Deus fizera; e disse à mulher: “É verdade ter-vos Deus
proibido de comer o fruto da árvore do jardim?” A mulher
respondeu-lhe: “Podemos comer o fruto das árvores do jardim; mas
quanto ao fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse:
“Nunca o deveis comer, nem sequer tocar nele, pois, se o fizerdes,
morrereis.” A serpente retorquiu à mulher: “Não, não morrereis;
porque Deus sabe que, no dia em que o comerdes, abrir-se-ão os
vossos olhos e sereis como Deus; ficareis a conhecer o bem e o mal.”
Vendo a mulher que o fruto da árvore devia ser bom para
comer, pois era de atraente aspecto e precioso para esclarecer a
inteligência, agarrou do fruto, comeu, deu dele também a seu
marido, que estava junto dela, e ele também comeu.
67
Então, abriram-se os olhos aos dois e, reconhecendo que
estavam nus, coseram folhas de figueira umas às outras e colocaram-nas como se fossem cinturas, à volta dos rins.
Ouviram, então, a voz do Senhor Deus, que percorria o
jardim pela brisa da tarde e disse ao homem: “Onde estás?” Ele
respondeu: “Ouvi a Tua voz no jardim e, cheio de medo, escondi-me
porque estou nu.” O Senhor Deus perguntou: “ Quem te disse que
estás nu? Comeste, porventura, da árvore da qual te proibi comer?”
O homem respondeu: “ Foi a mulher que trouxeste para junto de
mim que me ofereceu da árvore e eu comi.” O Senhor Deus
perguntou à mulher: “ Por que fizeste isso?” A mulher respondeu: “
A serpente enganou-me e eu comi.»1
Pensou-se encontrar nas entrelinhas deste relato traços
sexuais. Afirmou-se, por exemplo, que a serpente estava associada
aos cultos de fecundidade e que a mastigação do fruto proibido
evocava um acto mágico destinado a despertar a sexualidade. Obtido
sem o consentimento de Deus, o uso da sexualidade esconder-se-ia
mesmo por detrás do “conhecimento do que é bom e mau”; e os
partidários desta teoria evocam o despertar da vergonha e do
sentimento do pudor que intervêm imediatamente, após o homem e a
mulher terem comido o fruto proibido.
Esta pesquisa de um possível fundo escondido dos símbolos
utilizados também tem o seu interesse, mas não deve fazer esquecer
que a falta inerente ao relato no seu todo é a transgressão de uma
ordem, aliás de uma proibição imposta por Deus, interdição que não
tem nada a ver com uma qualquer conotação sexual. Que tenha aqui a
forma de uma interdição alimentar também não é determinante, pois
o objecto da tentação visa menos o fruto “bom para comer, pois era
de atraente aspecto e precioso para esclarecer a inteligência 2”, mas
sobre o desejo de “ser(eis) como Deus3”. Tal é, com efeito, a
1
Cf. Gn 3, 1-13.
Cf. Gn 3,6.
3
Cf. Gn 3,5.
2
68
admirável natureza da falta cometida descrita neste relato: consiste
em recusar ser criado, fundado num outro, fora de si.
O relato começa com a serpente cuja astúcia consiste em
silenciar os dons de Deus. Ela sabe que o dom de Deus precedeu a
interdição de comer da árvore do conhecimento do bem e do mal:
“Podes comer do fruto de todas as árvores do jardim; mas não comas
o da árvore do conhecimento do bem e do mal4.” Mas ela não disse
nada. Pior, ela introduz a dúvida sobre as intenções divinas, faz surgir
a miragem de uma autonomia que Deus parece temer: “Deus sabe que,
no dia em que o comerdes, abrir-se-ão os vossos olhos e sereis como
Deus, ficando a conhecer o bem e o mal5.” Levando a mulher a
duvidar da verdade da palavra de Deus, a serpente perverte o sentido
da proibição: de limite criador, torna-a expressão de um poder divino
ciumento e abusador6. O homem e a mulher duvidam então de Deus; já
não aceitam a situação que lhes é oferecida. Eles cedem à palavra da
serpente. Ultrapassando a proibição, eles libertam-se da relação que
fundamentava a sua identidade e assegurava a sua existência, mas é
para se darem conta que foram enganados. Esperando atingir o
conhecimento que os elevaria ao nível de Deus, descobriram que eram
miseráveis: “Então, abriram-se os olhos aos dois e, reconhecendo que
estavam nus, coseram folhas de figueira umas às outras e colocaramnas como se fossem cinturas, à volta dos rins7.”
A menção à nudez, neste ponto do relato, contrasta
evidentemente com aquela que concluía o relato antecedente:
“Estavam ambos nus, tanto o homem como a mulher, mas não
sentiam vergonha8.” Alguma coisa mudou, portanto. O sentimento de
vergonha que o homem e a mulher sentem um diante do outro é o
indício de uma inocência perdida, de um embaraço que se criou entre
eles. Não se trata de vergonha sexual, mas da perda da harmonia
4
Cf. Gn 2,16-17.
Cf. Gn 3,4-5.
6
G. Balmary, Le sacrifice interdit, Freud et la Bible, Paris, 1986: «A interdição já
não é entendida como uma fronteira, linha única entre um ser e um outro; é um
território proibido pelo divino (...) para sua exclusiva posse».
7
Cf. Gn 3,7.
8
Cf. Gn 2,25.
5
69
inicial. O conhecimento prometido pela serpente deveria ter tornado
o homem e a mulher iguais a Deus; na verdade, ele condenou-os à
incapacidade de se olharem. Incapazes de manter a visão que têm um
do outro, o homem e a mulher cobrem-se de parras9.
Compreenderemos, pela continuação, que se tornaram
igualmente incapazes de aguentar o olhar de Deus. Têm medo d’Ele;
escondem-se10.A fuga deles atesta que vai longe o tempo em que se
alegravam com a presença do seu Criador!
Ruptura entre o homem e Deus, o pecado introduz também uma
ruptura entre o homem e a mulher. Mal o pecado foi cometido, o homem
“dessolidariza-se” efectivamente da mulher, a quem acusa ao mesmo
tempo que acusa Deus. É a primeira acusação: “Foi a mulher que
trouxeste para junto de mim que me ofereceu da árvore e eu comi11.” A
mulher, por sua vez, acusará a serpente, que também declina toda a
responsabilidade. Mas o resultado está lá: o homem e a mulher
colocaram-se em oposição12. É, sem dúvida, o sinal de que se esforça por
eliminar Deus e que o pecado visa igualmente destruir a imagem de Deus
que está no homem. No seguimento do relato, vemos as consequências da
9
Cf. Gn 3,7. É conhecida a bela interpretação de Rashi: «Eles tinham um só
mandamento de Deus, e ignoraram-no (...) Antes estavam nus, agora estão
desnudados» (citado in M.Balmary, op. cit.).
10
Cf. Gn 3,8.
11
Cf. Gn 3,12. Faz-se notar que o texto, a propósito da mulher, já não evoca a
auxiliar, mas mais prosaicamente “a mulher que trouxeste para junto de mim”.
Quanto ao facto de saber por que é a mulher que aparece aqui em primeiro lugar
e não o homem, note-se este comentário de Anne – Marie Pelletier: «O texto não
atribui uma culpabilidade maior a Eva, mas sublinha o que é um dado da
experiência, esta presença privilegiada da mulher no lugar onde se liga
fisicamente a solidariedade das gerações entre elas. É o mistério, através da
transmissão da vida, da transmissão simultânea de um dom e de uma fraqueza
que é apontado no texto. (...) O velho livro do Génesis vem lembrar, talvez, no
momento oportuno, nas nossas sociedades tecnicistas, a realidade deste laço que
coloca a mulher, de um modo singular, próxima da origem e que determina
também a sua responsabilidade própria, uma maneira específica de se reconhecer
responsável pelo outro» in “Le signe de la femme”, Nouvelle Revue
Théologique, 113, Setembro – Outubro 1991.
12
A relação de “auxiliar” não existe, por isso, entre os dois; “há somente o sercontra, um ao contrário do outro”.
70
ruptura com Deus. Estão presentes sob a forma de maldições. Dizem
respeito tanto à relação dos homens com o mundo animal como com a sua
ligação à terra. O carácter penoso do trabalho faz parte disso:
«Então o Senhor Deus disse à serpente:
– “Por teres feito isto, serás maldita /entre todos os animais
domésticos /e entre os animais selvagens. Rastejarás sobre o teu
ventre /e alimentar-te-ás de terra todos os dias da tua vida. /Farei
reinar a inimizade entre ti e a mulher, /entre a tua descendência e a
dela. /Esta esmagar-te-á a cabeça e tu tentarás mordê-la no
calcanhar.”
Depois disse à mulher:
–“ Aumentarei os sofrimentos da tua gravidez, /entre dores
darás à luz os filhos. /Procurarás apaixonadamente o teu marido, /
mas ele te dominará.”
A seguir, disse ao homem:
– “Porque atendeste à voz da tua mulher/ e comeste o fruto
da árvore, / a respeito da qual Eu te tinha ordenado: „Não comas
dela‟, / maldita seja a terra por tua causa./ E dela só arrancarás
alimento /à custa de penoso trabalho, todos os dias da tua vida. /
Produzir-te-á espinhos e abrolhos /e comerás erva dos campos. /
Comerás o pão com o suor do teu rosto, / até que voltes à terra de
onde foste tirado; / porque tu és pó e ao pó voltarás13.»
Utilizando a linguagem da maldição, o autor deste relato
procurava responder aos grandes enigmas da existência humana que
são o carácter penoso do trabalho, os sofrimentos da gravidez, ou a
impossibilidade de viver a fraternidade. Estas questões eram as de um
homem que vivia em condições diferentes das nossas. A estas
questões, ele responde que o pecado, entendido como ruptura com
Deus, está na origem dos sofrimentos que tornam a existência humana
tão dura e difícil. Assim se compreende, por exemplo, que a gravidez,
que traz a alegria da vida, seja precedida pelo sofrimento, quando não
13
Cf. Gn 3,14-19.
71
é a causa de dramas como a morte da criança ou da mãe14. Será, por
isso, necessário ver aí uma maldição que se abateu sobre a mulher?
Claro que não. Para o autor deste relato, a única preocupação é a de
explicar a razão pela qual, num mundo que Deus quis belo e onde Ele
quer que os homens sejam felizes, existe o sofrimento.
Entre as consequências da ruptura com Deus, figura
igualmente a perversão das relações entre homem e mulher:
“Procurarás apaixonadamente o teu marido, /mas ele te
dominará15.” Isto deve ser necessariamente sublinhado, pois
serviram-se desta passagem muitas vezes para justificar, como tendo
sido desejada por Deus, a subordinação da mulher. Ora, este texto
sustenta precisamente o contrário: o domínio do homem sobre a
mulher é uma consequência do pecado. É, no entanto, a experiência
de todos os tempos: aproveitando-se da sua força, o homem domina a
mulher, submete-a a seu belo prazer, bate-lhe, viola-a, etc. Quando a
sua primeira reacção devia ser, à imagem de Adão, maravilhar-se
com a mulher e sentir alegria e gratidão na sua presença16, o homem
deixa-se apanhar na armadilha da sua “força” e o poder arrebata-o de
forma tão trágica que o comportamento da mulher em relação ao
homem se degrada por inveja.
Inveja e vontade de dominar insinuam-se, então, entre o
homem e a mulher. A sua relação, feita de admiração, de
reciprocidade e de atenção mútua, torna-se irremediavelmente
marcada pela falha da divisão e da rivalidade. A sexualidade, que é o
lugar por excelência de comunicação e de amor, torna-se, assim,
lugar de antagonismo, de posse, de dominação e de violência 17. Isto
não tem nada de extraordinário, na verdade, pois é sabido desde
sempre que a sexualidade pode revelar, por vezes de forma
dramática, a violência inscrita no coração do ser humano. Porque é
14
Cf. Gn 3,16. Notamos que a mulher, no conjunto desta passagem, é remetida para
um papel de mãe e não de esposa.
15
Cf. Gn 3,16.
16
Cf. Gn 2,23.
17
Em Gn 2,24, a mulher suscitava o ímpeto do homem. Aqui, é ela que se sente
impelida para o marido e que sente um desejo nunca satisfeito.
72
difícil de gerir e de dominar, a sexualidade é um dos domínios
essenciais à existência onde se constrói e se verifica a qualidade da
relação consigo próprio, com os outros e com Deus.
Poderíamos ficar por aqui, nesta observação, simultaneamente,
lúcida e trágica. Não é assim, porém. O relato termina com uma nota
de esperança: “Adão pôs à sua mulher o nome de Eva, porque ela seria
mãe todos os viventes. O Senhor Deus fez a Adão e à sua mulher
túnicas de peles e vestiu-os18.”
Enquanto o homem e a mulher se tinham escondido de Deus e
procuravam proteger-se da sua nudez com folhas, Deus veio em seu
socorro e coseu as túnicas de pele com as quais os revestiu. A
imagem é bela e sugestiva: Deus cobre a vergonha do homem e da
mulher e, por isso, sem dúvida, também o seu sentimento de
culpabilidade ou o seu pecado. Porque viu a fragilidade daqueles que
tinha criado, protege-os e restabelece a relação que eles tinham
rompido, quebrando uma interdição que lhes tinha sido imposta.
Deus permanece fiel à Sua criação, mas a relação entre o homem e o
seu Criador ficou para sempre perturbada. Perdida a natureza do seu
ser, por ter acedido a uma forma de conhecimento do bem e do mal
para o qual não estava preparado, o ser humano «deverá estar
protegido da eternização desta situação pervertida, não tendo mais
acesso à árvore da vida19.» É por isso que Deus o expulsa do jardim
do Éden. Mais do que uma manobra punitiva, tudo leva a crer que é
aqui também um sinal da previdência divina.
Anteriormente, o homem tinha atribuído “à sua mulher o
nome de Eva, porque ela seria mãe de todos os viventes20”. Pela
segunda vez, Adão tinha, pois, dado um nome à mulher. Da primeira
vez, ele tinha-o feito a partir do seu próprio nome. Aqui dá-lhe um
outro nome21 “Eva, a viva22”. Agora acrescenta: “porque ela seria
18
Cf. Gn 3,20-21.
M.Pelletier, Lectures Bibliques. Aux sources de la culture occidentale, NathanUniversité Cerf, Paris, 1973, Cf. Gn 3,22-24.
20
Cf. Gn 3,20.
21
“Ishah” porque retirado de “ish”, in Gn 2,23.
22
“Hawwah”, que se explica por derivar da mesma raiz de “vida”, “viver”.
19
73
mãe de todos os viventes23”. É a primeira vez que aparece o nome de
Eva. Ecoa como um apelo à vida; simboliza em si mesmo toda a
esperança que Adão põe na mulher. Apesar do drama da ruptura com
Deus e da sentença de morte pronunciada mais acima, Adão
reconhece que, graças a Eva, o futuro está aberto à vida e não à
morte. Anteriormente, a maldição contra a serpente tinha concluído
com o anúncio de hostilidade perpétua entre ela e a mulher: “Farei
reinar a inimizade entre ti e a mulher, /entre a tua descendência e a
dela/ e tu tentarás mordê-la no calcanhar24.” No centro de um drama
que parecia sem solução e sem saída, uma esperança nasce: a
descendência da mulher esmagará a cabeça da serpente, raiz do mal25.
A continuação do relato conduz-nos numa direcção totalmente
diferente. A inveja e o domínio que tinham estragado a ligação entre
o homem e a mulher estender-se-ão a todas as relações vitais nas
quais a humanidade se tinha envolvido 26. Imediatamente depois do
relato, a história de Abel e Caim manifestará, com efeito, que o laço
entre irmãos é atingido. Este primeiro homicídio da história, o
homicídio de um irmão 27, revelará também que a relação do homem
com ele próprio é perturbada, visto que o seu coração encerra
movimentos que já não controla. Segue-se o canto de Lamec28. É o
canto da lei do mais forte, da violência gratuita. Usando a vingança
desmedida sem qualquer escrúpulo, Lamec conclui a escalada da
violência oriunda da ruptura do homem com Deus.
23
Para a Vulgata, o seu nome é Vita e, para as versões gregas antigas de Áquila e
Symnaque, ela é “aquela que gera a vida”.
24
Cf. Gn 3,15.
25
A descendência da serpente mal tocará o calcanhar da mulher, uma parte do
corpo que não é vital!
26
Para nós, modernos, o amor é um assunto pessoal, aliás intimista; só diz respeito
às pessoas que se amam e, quando muito, à sua família próxima. Diferentemente,
nas civilizações antigas, acreditava-se que o amor entre um homem e uma mulher
podia ter efeitos, ultrapassando largamente o clã restrito da família ou da tribo. À
imagem dos astros ou de certas potências cósmicas, considerava-se que o amor,
na sua dimensão de desejo, podia mesmo afectar o meio ambiente e que era uma
força destruidora ou regeneradora do cosmos.
27
Cf. Gn 4,1-16.
28
Cf. Gn 4,23-24.
74
No momento em que não estava em questão o domínio do homem
sobre o homem, só se trata de guerras, rivalidades e violências. Nenhuma
realidade humana escapa a isso; todos os domínios da vida se encontram
infestados de violência. Mesmo o laço com os animais se vem a
deteriorar, pois, no fim do Dilúvio, a anterior dominação pacífica do
homem sobre os animais transformar--se-á em violência e o homem
poderá, de futuro, comer carne animal29. Como vimos no capítulo
precedente, regulamentações institucionais esforçar-se-ão por enquadrar
estas diferentes formas de violência, mas como isso aparece na história da
monarquia30 e mesmo do sacerdócio, elas tornar-se-ão fontes de violência
e injustiça.
Contudo, como afirma a tradição bíblica, esta situação não é
conforme à ordem da Criação. Representa um estado ferido da
humanidade à espera de uma “recriação” que só pode vir de Deus.
Elogio da diferença
Os mitos antigos, contemporâneos do livro do Génesis,
consideravam a Criação sem interesse particular pela relação homem-mulher. Os textos bíblicos fazem disso o cerne dos seus relatos. Menos
ocupados a tentar reconstituir as origens perdidas do que a revelar o
sentido profundo do acto criador de Deus, descrevem as relações
fundamentais que fundam a Humanidade: relação com a terra, com os
animais, com a interdição, com o outro, com Deus, etc. Por oposição a
certos mitos antigos, a diferença não é aí considerada como uma perda31,
mas como um benefício. Só ela permite a emergência da identidade, ao
mesmo tempo que salva a comunhão do perigo da fusão.
29
Cf. Gn 9,2-4. Mas os profetas não cessarão de o repetir e de o anunciar: a criação
não pode ser destinada à dominação de uma espécie por outra. Todas as criaturas
de Deus são chamadas a formar uma unidade na paz e no amor (cf. Is 11,5-9).
30
1 Sm 8,4-22; 1 Rs 12.
31
Para estes mitos, a condição sexual do homem e da mulher era considerada como
sendo uma consequência de um castigo divino. Porque os homens, então unidos,
tinham tentado subir até ao céu para vencer os deuses. Cf. Platão, O Banquete).
75
Através das imagens de uma modernidade espantosa, os
relatos da Criação descrevem o homem e a mulher criados um para o
outro e concebidos um para o outro, visto que a mulher – o texto diz
“construída” a partir do homem – é também aquela da qual o homem
nasce. Imagem (s) e semelhança (s) de Deus, o homem e a mulher
reconhecem-se, assim, numa origem comum que os liga ao Criador
do qual têm identidade e a unidade, pois a sua unidade é um dom e,
ao mesmo tempo, uma conquista.
Ela é um dom, porque, dada por Deus, precede o reconhecimento
da diferença. Ela é uma conquista, porque só existe no reconhecimento
desta diferença e no acolhimento do desígnio de Deus. Atenção, contudo!
Não há nos textos bíblicos saudades de uma unidade perdida, mas
abertura a um futuro onde “os dois serão uma só carne”. Mas serão
sempre dois! É, por isso, que, à imagem de um estado perdido, se prefere
a de uma tensão que, desde sempre, habita a humanidade: tensão entre
uma comunhão que lhe foi dada e que ela deve, no entanto, conquistar.
Desta comunhão, a Bíblia não cessa, aliás, de revelar a dimensão
espiritual. A relação homem-mulher torna-se, então, sinal do ser de Deus
que não é solidão, mas diálogo no mistério do seu Ser Trinitário. Mas é
preciso, para isso, que o homem e a mulher aprendam a reconhecer que
não são a sua própria origem, pois vêm de Deus.
Estas são, contudo, as grandes tentações da Humanidade: recusar
a diferença que constitui o homem e a mulher na sua dignidade de
imagem e semelhança de Deus e procurar ser, pelos seus próprios meios,
o que somos por dom de Deus32. Grande é, então, o risco de, recusando
Deus33, acabarmos por recusar o irmão. É o drama do Jardim do Éden
32
Ainda que estejamos conscientes disso é, porém, quase naturalmente que
continuamos, por vezes, a procurar naquele que julgamos amar uma réplica ou
um ideal de si próprio; e muitos comportamentos sexuais são formas desviadas
de evitar o encontro do outro naquilo que ele é realmente, isto é, na diferença.
33
Uma característica do pecado nos relatos da Criação é a recusa da diferença com
Deus. Como vimos, esta recusa tem, como consequência, a dificuldade de
assumir a diferença entre homem e mulher, entre o mundo dos humanos e o
mundo animal. Os relatos da criação mostram, assim, que existe uma estreita
relação entre a negação da origem e a recusa ou a dificuldade de acolher o
presente.
76
com as suas trágicas consequências. É o drama de todas as recusas
que levam a que o medo e a violência substituam o encantamento e o
reconhecimento. Do Jardim do Éden ao Cântico dos Cânticos se
desenha, então, o difícil caminho, onde aprendemos a despojarmonos do nosso narcisismo ou do nosso egoísmo, dos nossos medos, dos
nossos sonhos de poder, para nos darmos plenamente àquele que
reconhecemos na sua beleza e na sua diferença.
B. QUESTÕES PARA A REFLEXÃO EM CASAL
E PARTILHA EM EQUIPA
Apresentamos seguidamente, um conjunto de questões para
ajudar a reflexão ao longo do mês e posterior debate em equipa:







Em que consiste o erro?
A ruptura entre o humano e Deus leva a uma outra ruptura?
Qual?
Paradoxo da sexualidade?
Papel do Criador perante a fragilidade humana?
Em que é que nos baseamos para dizer que a mulher é a
“esperança” do homem?
Recriação? O que é que nos promete?
A relação homem/mulher é sinal da relação trinitáriaq.
Qualo a condição?
C. SUGESTÕES PARA UM DEVER DE SE SENTAR
Depois da leitura do texto de meditação e da oração partilhada
sobre o mesmo, façam um pequeno silêncio e só depois iniciem o
diálogo:
Que entendemos por fusão no casal?
Fomos tentados ou somos tentados por um amor fusão?
Em que circunstâncias? Em que domínios? Que autonomias
dispomos um em relação ao outro?
77
Como reagimos perante esta tentação contemporânea de
refúgio na diferença homem/mulher?
Como transmitir aos nossos filhos este valor essencial da
diferença entre homem/mulher?
D. TEXTO PARA A ORAÇÃO EM EQUIPA
«Ouviram, então a voz do Senhor Deus, que percorria o
jardim à frescura do dia, e o homem e a sua mulher logo se
esconderam do Senhor Deus, por entre o arvoredo do jardim. Mas o
Senhor Deus chamou o homem e disse-lhe: “onde estás?”. Ele
respondeu: Ouvi a Tua voz no jardim e, cheio de medo, escondi-me
porque estou nu. O Senhor Deus perguntou: “Quem te disse que
estás nu? Comeste, porventura, da árvore da qual te proibi
comer?”O homem respondeu: “Foi a mulher que trouxeste para
junto de mim que me ofereceu da árvore e eu comi.” O Senhor Deus
perguntou à mulher: “Porque fizeste isso?” A mulher respondeu:
“A serpente enganou-me e eu comi.”
Então, o Senhor Deus disse à serpente: “Por teres feito isto,
serás maldita entre todos os animais domésticos e entre os animais
selvagens. Rastejarás sobre o teu ventre, alimentar-te-ás de terra,
todos os dias da tua vida. Farei reinar a inimizade entre ti e a
mulher, entre a tua descendência e a dela: a descendência dela
esmagar-te-á a cabeça e tu tentarás mordê-la no calcanhar”. O
Senhor Deus disse, depois, à mulher: “Aumentarei os sofrimentos da
tua gravidez, entre dores darás à luz os filhos. Procurarás
apaixonadamente o teu marido, mas ele te dominará.”
A seguir, disse ao homem : “Porque atendeste à voz da tua
mulher e comeste o fruto da árvore proibido: maldita seja a terra por
tua causa e dela só arrancarás alimento à custa de penoso trabalho,
todos os dias da tua vida. Produzir-te-á espinhos e abrolhos e
comerás a erva dos campos. Comerás o pão com o suor do teu rosto,
até que voltes à terra de onde foste tirado; porque tu és pó e ao pó
voltarás.»
Gn 3,8-19
78
CAPÍTULO III - JESUS, MENSAGEIRO DO
AMOR
5ª REUNIÃO:“Porque Ele conhecia as injustiças das quais elas
eram vitimas, Jesus restabelecia ao mesmo tempo as
mulheres como parceiras de corpo inteiro no interior
do casal. Ele proclamava uma nova relação entre o
homem e a mulher baseada na unidade de
comunhão e de amor.”
A. TEMA
Não é fácil saber qual era o estatuto exacto da mulher no
tempo de Jesus, pois muitas informações foram-nos transmitidas por
textos rabínicos posteriores. Parece, não obstante, que, se a acção do
homem é então pública, o lugar da mulher é em casa, ocupando-se
dos filhos de tenra idade, a cuidar da educação das raparigas, ou
ocupando-se com tarefas domésticas, a tecer a lã na Judeia ou o linho
na Galileia1. Quando tem de sair, a mulher traz um véu que lhe
assegura o completo anonimato. Se inicia uma conversa ou se pede
uma informação, devem responder-lhe o mais brevemente possível.
As regras de cortesia proíbem aos homens de se encontrarem a sós
com uma mulher e, até em certos casos, de a saudar. É uma vergonha,
afinal, para um escriba ou um mestre da Lei falar com uma mulher.
Nas comunidades judaicas que se encontram fora da
Palestina, as mulheres vivem, por vezes, como reclusas. O texto de
Fílon de Alexandria, que evoca o comportamento dos judeus numa
cidade helénica, é particularmente esclarecedor: “Mercados,
conselhos, tribunais, procissões festivas, agrupamentos, resumindo,
1
Há textos onde se prevê, aliás, a quantidade mínima que uma mulher deve fiar ou
tecer por semana, mas esta quantidade diminui, se ela estiver a aleitar uma
criança com menos de dois anos.
79
toda a vida pública com as suas discussões e os seus negócios, em
tempo de paz e de guerra, é feita para os homens, sendo conveniente
às mulheres ficarem em casa e viverem retiradas. As jovens
raparigas devem permanecer nas divisões recuadas, fixando-se como
limite a porta de comunicação (com as divisões dos homens); e as
mulheres casadas têm, como limite, a porta do pátio2.”
Muitas provas testemunham que esta reclusão da mulher era
corrente noutras cidades além de Alexandria. Na prática, contudo, as
mulheres não podiam levar uma vida totalmente retirada, a não ser
raramente, como no caso das mulheres de um nível social mais
elevado. Quanto às mulheres do campo, iam buscar água ao
fontanário público, trabalhavam com o seu marido e os seus filhos
nos campos, vendiam azeitonas à porta de suas casas, mantinham
pequenos comércios... Nada indica, igualmente, que as mulheres
observassem aí, de forma tão estrita como nas cidades, o costume de
cobrirem a cabeça. Uma mulher, contudo, não devia estar sozinha nos
campos e não era comum, mesmo no campo, que um homem
conversasse com uma mulher estrangeira.
Estas observações deveriam realçar a originalidade de Jesus
quer em relação às mulheres quer em relação às leis e às práticas que
autorizavam ou preconizavam o seu repúdio. Sempre neste contexto,
lembraremos que, no templo de Jerusalém, os homens e as mulheres
estavam repartidos em pisos diferentes. De forma semelhante, as
mulheres estavam separadas dos homens nas sinagogas onde lhes era
interdito assegurar o serviço da leitura ou presidir à oração. Por fim,
as mulheres nunca eram admitidas como testemunhas diante dum
tribunal. Eram mesmo excluídas de uma certa maneira do Torah que
elas não estudavam.
Tudo isto está bem resumido nesta oração judaica, embora
mais recente, mas que traduz uma realidade antiga: “Agradeço-te, ó
Deus, não me teres feito pagão, nem mulher, nem escravo.”
2
J.Jeremias, « Jérusalem au temps de Jésus», Cerf, Paris, 1976, p. 473.
80
Jesus e as mulheres
Desde o início das suas prédicas até às horas sombrias da
Cruz, Jesus estará sempre acompanhado por um grupo de mulheres.
Sabendo que, na época, nenhum rabi, nenhum “mestre” digno desse
nome, teria aceitado essa companhia, não é difícil imaginar qual
podia ser a reacção dos adversários de Jesus. E, para mais, as
mulheres que O seguiam, não eram as “ideais”. Elas constituíam um
grupo bem díspar, como vemos nesta passagem do Evangelho de
Lucas: “Acompanhavam-n‟O os doze e algumas mulheres que
tinham sido curadas de espíritos malignos e de enfermidades: Maria,
chamada Madalena, da qual tinham saído sete demónios; Joana,
mulher de Cusa, administrador de Herodes; Susana e muitas outras,
que os serviam com os seus bens3.” Correndo o risco da repetição,
observe-se que este grupo, constituído, entre outros, por antigas
doentes de passado duvidoso, devia suscitar numerosos comentários.
Uma coisa é certa, a sua presença ao lado de Jesus não devia
contribuir para Lhe assegurar uma boa reputação.
Seria bom saber também qual seria a atitude dos doze,
relativamente a isso. No contexto cultural que era o deles, tudo faz
supor que, aos seus olhos, pensariam que eles, sim, eram os
verdadeiros discípulos de Jesus e que estas mulheres não deviam
contar muito. E, contudo, numa daquelas reviravoltas das quais o
Evangelho tem o segredo, enquanto que eles fugirão no momento da
prisão de Jesus4, são elas que encontramos aos pés da cruz. Fiéis até
às horas mais trágicas da morte de Jesus e do Seu passamento, elas
serão as primeiras a vê-l’O ressuscitado ou a beneficiar do anúncio da
Sua ressurreição. Serão, igualmente, as primeiras encarregadas de
levar a mensagem pascal aos onze, antes que eles se tornem
testemunhas autorizadas da Ressurreição 5.
Qualquer que seja a simbologia teológica ligada ao número
“doze”, o facto de Jesus escolher doze homens para serem Suas
3
Cf. Lc 8,2-3.
Cf. Mc 15,40; Mt 27, 55-56; Lc 23, 55-56.
5
Cf. Mt 28,7-10; Lc 24,9-10; Jo 20,17-18.
4
81
testemunhas e Seus enviados compreendia-se muito bem numa
sociedade onde as mulheres não podiam pregar em público – muito
menos nas sinagogas –, e onde o seu testemunho não era recebido.
Mas estas razões sociológicas e teológicas não nos autorizam a
considerar como secundária a presença das mulheres nos momentos
cruciais da vida e do ministério de Jesus. Com efeito, quando os
homens já não estão presentes, são elas, apenas elas, que assistem ao
devir do mundo novo que nasce da morte e da ressurreição de Jesus.
É o sinal de que as mulheres têm um lugar único e especial nos
Evangelhos, que muitas vezes foi esquecido.
Desde a mais antiga confissão de fé cristã6, será relegado para
segundo plano o testemunho das mulheres e hierarquizamos a ordem
das testemunhas: Pedro, em primeiro lugar, depois os outros
discípulos. É verdade que o passado tumultuoso de Maria Madalena
não ajudava aqueles que quisessem apoiar-se no seu testemunho para
afirmar que Cristo estava mesmo ressuscitado! Mas isso não basta,
com certeza, para explicar que tenha sido minimizado o papel que,
então, as mulheres desempenharam.
O respeito e a simpatia de Jesus para com as mulheres
aparecem igualmente em numerosas parábolas, onde Jesus evoca a
vida quotidiana das mulheres do Seu tempo. Através da diversidade
das suas idades e das suas actividades, estas mulheres ilustram
diferentes aspectos do reino de Deus ou da vida do discípulo de
Cristo: a mulher que dá à luz7, a viúva que acaba por ganhar a sua
causa junto de um juiz iníquo 8, a mulher que amassa o fermento9,
aquela que procura o dracma que acaba de perder 10, a mulher que
remenda11 e as virgens que estão vigilantes com o azeite12. À sua
maneira, cada uma destas parábolas manifesta a atenção de Jesus em
relação às mulheres que se aproximam d’Ele.
6
Cf. 1Cor 15,5-8.
Cf. Jo 16,20-22.
8
Cf. Lc 18,1-8.
9
Cf. Lc 13,20-21.
10
Cf. Lc 15,8-10.
11
Cf. Mc 2,21.
12
CF. Mt 15,1-13.
7
82
Contudo, quando Marta repreende Jesus por não intervir junto
de Maria para que a ajude, Jesus responde de maneira espantosa:
“Marta, Marta, andas inquieta e perturbada com muitas coisas, mas
uma só é necessária. Maria escolheu a melhor parte, que não lhe
será tirada13.” Muitas vezes mal compreendida, esta resposta mostra
que Jesus recusava que a mulher fosse encerrada no único papel de
serva, mas que Ele convidava “à melhor parte”, isto é, à escuta da
Palavra. Mais do que se crê, reconhecendo a Maria o estatuto de
discípulo, Jesus libertava, assim, a mulher das exigências culturais e
dos limites sociológicos do Seu tempo.
No Evangelho, numerosas são também as mulheres que Jesus
dá como exemplo: uma viúva que, diferentemente dos notáveis,
oferece daquilo que lhe é necessário para o serviço do templo 14,
Maria, cuja prodigalidade contrasta com a frieza e a avareza de
Judas15, ou, ainda, uma pagã que pedia a Jesus para salvar a sua
filha 16. Jesus tinha, contudo, começado por repreendê-la,
respondendo-lhe secamente: “Não fui enviado senão às ovelhas
perdidas da casa de Israel.” Mas a mulher tinha insistido e suplicado
a Jesus para vir em seu auxílio. Tocado no mais profundo de Si
mesmo, Jesus teve de reconhecer a fé desta mulher: “Ó mulher,
grande é a tua fé! Faça-se como desejas.” Bem antes da hora, esta
pagã tinha, pois, compreendido a verdadeira identidade de Jesus. De
forma semelhante, no tempo de João Baptista, as prostitutas tinham-se mostrado mais receptivas à sua mensagem que as autoridades
religiosas de então17.
Elogiando a fé desta mulher pagã, Jesus abria, assim, um
espaço, nunca reconhecido até então aos pagãos. Mas tinha sido
preciso que, por sua insistência e pela sua fé, esta mulher Lhe tivesse
dado a perceber que a Sua missão também se dirigia aos pagãos? É
uma questão. Se fosse esse o caso, seria sinal de que as mulheres
13
Cf.Lc 10,41-42.
Cf. Mc 12,41-44.
15
Cf. Jo 12,1-8.
16
Cf. Mt 15,21-28.
17
Cf. Mt 21,31-32.
14
83
tinham permitido a Jesus abrir--Se à natureza e às exigências da Sua
missão. Não podemos deixar de invocar aqui o papel essencial
desempenhado por Maria, aquando do episódio das bodas de
Caná18!...
Jesus e a moral sexual do Seu tempo
O mundo em que vivia Jesus não era isento de desvios sexuais
ou de comportamentos repreensíveis, segundo a lei judaica. No seu
tempo, já João Baptista tinha intervido junto de Herodes Antipas para
lhe criticar o ter casado com a mulher do seu irmão; isto custara-lhe a
vida19. Talvez Jesus conhecesse este acontecimento, como devia
conhecer, pelo menos dos boatos públicos, os comportamentos
sexuais de certos funcionário reais, os abusos dos oficiais e dos
soldados romanos, os costumes duvidosos dos Seus compatriotas.
Poder-se-ia esperar, então, que Jesus denunciasse com veemência tais
práticas.
Na realidade tal não aconteceu. Jesus mostra mesmo uma
admirável discrição em relação à vida sexual. Reservando as Suas
condenações para aqueles que se julgavam acima da Lei de Moisés,
anuncia mesmo aos habitantes de Cafarnaum, indiferentes aos Seus
ensinamentos e aos Seus milagres, que, no dia do Julgamento final,
haverá menos rigor para Sodoma – tristemente célebre, contudo – que
para a sua cidade20. Para estupefacção de todos, Jesus adopta
igualmente em relação às mulheres rejeitadas e pecadoras ou, pelo
menos, julgadas como tal, uma atitude que não deixa de estar ligada à
Boa Nova que Ele veio trazer. Caracteriza-se, entre outras, pela
recusa de sacralizar as maldições da lei judaica nas quais se fechavam
as mulheres. Vários episódios dos Evangelhos poderiam ser aqui
mencionados. Reteremos apenas quatro; são quatro encontros com
Cristo.
18
Cf. Jo 2,1-12.
Cf. Mc 6,17-18.
20
Cf. Mt 11,23-24.
19
84
O primeiro encontro coloca em cena uma mulher que sofria
de hemorragias há doze anos. Tendo gastado tudo o que possuía com
os médicos que não lhe tinham trazido nenhumas melhoras, ela
queria tocar na franja do manto de Jesus, pois dizia: “Se ao menos
tocar nem que seja nas Suas vestes, ficarei curada21.” Segundo a lei
judaica, um tal acto teria tornado Jesus impuro, pois os objectos ou as
pessoas que estavam em contacto com uma mulher que sofria perdas
de sangue ficavam conspurcados22. As mulheres vítimas de tal tipo de
doença eram mesmo afastadas de toda a vida social e religiosa; eram
“intocáveis”. Ora que faz Jesus? Não só aceita que esta mulher
infrinja a lei, tocando-Lhe, clandestinamente, como, depois de a ter
chamado, chega até a reconhecer-lhe a fé: “Filha, a tua fé salvou-te;
vai em paz e sê curada do teu mal.”
Abolindo o que era um verdadeiro tabu sexual, Jesus
manifestava a Sua independência em relação às observações rituais
que eram, para numerosas mulheres, fonte de humilhações trágicas e
mesmo de rejeição. Noutra passagem, Jesus relembrará que a
verdadeira fonte de impureza não é o que entra ou sai do corpo do
homem, mas do seu coração23.
O segundo encontro aparece no Evangelho de Lucas 24. Jesus
foi convidado para ir a casa de um fariseu; acaba de se sentar à mesa
no momento em que aparece uma mulher. Trazendo um frasco de
perfume em alabastro e ajoelhando-se aos pés de Jesus, banha-Lhe os
pés com lágrimas. Enxuga-os com os seus cabelos, cobre-os depois
com beijos e unge-os de perfume. Surpreendido, o fariseu espanta-se
por Jesus não saber quem é aquela mulher. Uma pecadora, dito de
outra forma, uma prostituta, “cortesã de luxo para burgueses ou
rapariga de baixo nível para soldados romanos25.” Chega a duvidar
que Jesus seja, na verdade, um profeta, pois se tal fosse o caso, Ele
saberia quem era essa mulher e não Se teria deixado tocar por ela.
21
Cf. Mc 5, 28; cf. 5,25-34.
Cf. Lv 15,25-30.
23
Cf. Mc 7,14-23.
24
Cf. Lc 7,36-50.
25
P. Grelot, «Dans les angoisses l’espérance», Enquête Biblique, Paris, Seuil.
22
85
Adivinhando os seus pensamentos, Jesus conta-lhe uma parábola: é a
história de um credor que tinha dois devedores. Um devia-lhe
quinhentos denários, o outro cinquenta; não tendo como lhe pagar, o
credor perdoou-lhes a dívida.
Contada esta parábola, Jesus pergunta ao fariseu qual dos dois
devedores, na sua opinião, amará mais o credor. A resposta foi:
“Aquele a quem perdoou mais, creio eu”. Jesus critica, então, o
fariseu por não O ter acolhido bem, enquanto que a pecadora se
comportou como Ele, Jesus, poderia ter esperado do Seu hospedeiro.
Jesus conclui então: “Por isso digo-te que lhe são perdoados os seus
muitos pecados, porque muito amou; mas àquele a quem pouco se
perdoa pouco ama”. A narrativa acaba, perdoando os pecados da
mulher. Os convivas, esses, perguntavam-se quem era aquele homem
que até perdoava os pecados.
Não dispensando a imaginação, voltemos com J. Guillet sobre
o que se passou: “Esta mulher, toda a cidade a conhecia, é uma
pecadora. Quando passa, os olhos acendem-se de inveja ou desviam-se, escandalizados. Esta mulher, que só é olhada para desejar ou
para condenar, Jesus vê-a colocar a Seus pés tudo o que utilizava tão
bem para seduzir, as suas lágrimas, os seus cabelos, o seu perfume.
A este gesto profundamente feminino, Cristo é sensível e não esconde
a Sua emoção e admiração, mas transmite imediatamente o segredo
milagroso da pureza. Já não há aqui uma mulher feita para seduzir,
nem um homem triunfante, orgulhoso por exibir a sua vitória. Há o
coração perdido que, de repente, soube ir até à plenitude do amor e
um coração suficientemente casto para saber reconhecê-lo, atingi-lo
e libertá-lo26.”
Eis o que conta neste episódio: a profunda liberdade de Jesus
que, apesar das regras e das conveniências, reconhecia a dignidade
desta mulher. Enquanto os que O acompanhavam, duvidavam que
Ele fosse um verdadeiro profeta, Jesus sabe reconhecer igualmente na
atenção e nos gestos desta pecadora o amor profundo e sincero que a
habita. Mas, ao mesmo tempo que Ele a liberta da sua história ou do
26
J.Guillet, « La chasteté de Jésus», Jésus – Christ dans notre monde, Desclée de
Brouwer/Bellarmin, Paris.
86
peso com que a sociedade a rejeitava, Jesus liberta esta mulher de
sentimentos que poderiam querer encerrá-la numa ligação demasiado
estreita Àquele que a tinha tocado com a Sua mensagem e gestos de
amor. Ele não Se aproveita da sua fraqueza, não a prende a Ele,
permite-lhe ser plenamente ela própria, no acolhimento do Amor de
Deus que redime dos pecados. As suas palavras ecoam ainda com
mais força: “A tua fé te salvou. Vai em paz.”
O terceiro encontro está entre os mais célebres do Evangelho:
é o de Jesus com a Samaritana no poço de Jacob27. Tudo se opunha a
este encontro: em primeiro lugar, o facto de os judeus não
conviverem com os samaritanos que eles consideravam “impuros”;
depois, a lei que interditava que se falasse com uma mulher sem a
presença do marido; por fim, as regras que teriam exigido que Jesus
não pedisse água a uma samaritana, visto que essa água – vinda de
uma pessoa considerada “impura” – torná-l’O-ia impuro!
Duplamente desprezada por causa da sua raça e dos
comportamentos, é, por isso, absolutamente natural que a samaritana
se espante, quando Jesus lhe pede de beber: “Como é que Tu, sendo
judeu, me pedes de beber a mim que sou samaritana?” A este
espanto, junta-se o dos discípulos não compreenderem que Jesus Se
relacione com uma mulher. Não podem saber, é verdade, que,
desafiando estas interdições, Jesus tem unicamente um objectivo:
permitir a esta mulher repor a verdade com ela própria. Ajudando-a,
sem a condenar, a confessar o que ela vive: “Disseste bem: não tenho
marido, pois tiveste cinco e o que tens agora não é teu marido. Nisto
falaste verdade”, Jesus permitirá igualmente a esta mulher acolher o
dom de Deus que restabelece cada um na sua dignidade e na sua
verdade. No mesmo momento, a Samaritana poderá reconhecer a
verdadeira identidade d’Aquele que lhe tinha inicialmente pedido de
beber, para que ela possa depois saciar-se na fonte do Seu amor:
“Vinde ver um homem que me disse tudo o que eu fiz! Não será Ele o
Messias?”
27
Cf. Jo 4, 1-42.
87
Missionária do dom de Deus, a samaritana será uma das
primeiras mulheres a testemunhar Cristo. Mas ela não será, sem
dúvida, a única a fazer esta experiência da liberdade d’Aquele que
não cessará de lutar com todas as formas de exclusão, sobretudo
quando elas têm por origem o desprezo em que, frequentemente, o
poder masculino encerra as mulheres. O encontro de Jesus com a
mulher adúltera é disso exemplo. Subjacente a este episódio,
desenha-se a contestação daqueles que criticavam Jesus por ser
demasiado laxista em relação aos costumes de certas mulheres.
«Então, os doutores da Lei e os fariseus trouxeram-Lhe certa
mulher apanhada em adultério, colocaram-na no meio e disseram-Lhe: “Mestre, esta mulher foi apanhada a pecar em flagrante
adultério. Moisés, na Lei, mandou-nos matar à pedrada tais
mulheres. E Tu que dizes?”
Faziam-Lhe esta pergunta para O fazerem cair numa
armadilha e terem de que O acusar. Mas Jesus, inclinando-Se para o
chão, pôs-Se a escrever com o dedo na terra.
Como insistissem em interrogá-l‟O, ergueu-Se e disse-lhes:
“Quem de vós estiver sem pecado, atire-lhe a primeira pedra!” E,
inclinando-Se novamente para o chão, continuou a escrever na terra.
Ao ouvirem isto, foram saindo um a um, a começar pelos mais
velhos, e ficou só Jesus e a mulher que estava no meio deles.
Então, Jesus ergueu-Se e perguntou-lhe: “Mulher, onde estão
eles? Ninguém te condenou?” Ela respondeu: “Ninguém, Senhor”.
Disse-lhe Jesus: “Também Eu não te condeno. Vai e de agora em
diante não tornes a pecar28.»
Pedindo-Lhe para tomar posição em relação ao adultério, os
escribas e os fariseus estendem a armadilha a Jesus: se Ele infringir a
Lei de Moisés, fica desconsiderado aos olhos dos que a defendem; se
Ele preconizar a pena de morte imposta pela lei29, arrisca-Se a perder
a influência que exerce sobre aqueles que são atraídos pela Sua
28
29
Cf. Jo 8,3-11.
Cf. Dt 22,22ss.
88
mensagem. Dará Ele razão à lei ou tornar-Se-á cúmplice do pecado
cometido? Como sempre, Jesus desarma a armadilha que Lhe é
montada. Recusando deixar-Se fechar no dilema – condenar ou
absolver – recusa igualmente limitar-Se unicamente ao domínio da
sexualidade e obriga os Seus interlocutores a interrogarem-se sobre a
sua situação diante de Deus: “Quem de vós estiver sem pecado, atire-lhe a primeira pedra.” Uma tal invectiva só podia colocá-los numa
posição difícil: qual dentre eles, com efeito, assumiria a
responsabilidade de se declarar abertamente “sem pecado”?
Daí a recusa deles bem compreensível: “Ao ouvirem isto,
foram saindo um a um, a começar pelos mais velhos, e ficou só Jesus
e a mulher que estava no meio deles.”
Quer isto dizer, necessariamente, que Jesus não reconhecia o
pecado da mulher que Lhe tinham trazido? Não, claro, já que Ele a
convida no fim a “de agora em diante não tornes a pecar.” Mas, sem
dúvida, queria denunciar a hipocrisia dos homens que afirmavam que
só havia adultério, quando se dormia com a mulher de outro30. Noutra
ocasião, Jesus mostrar-Se-á mesmo mais exigente que a Lei de
Moisés, visto que Ele perseguirá o adultério até aos olhares e desejos:
«Ouvistes o que foi dito: “Não cometerás adultério”. Eu, porém,
digo-vos que todo aquele que olhar para uma mulher, desejando-a,
já cometeu adultério com ela no coração 31.» Alargando, assim, o
campo da reflexão em matéria sexual, Jesus lembrava que a
qualidade do olhar que se dá ao outro é mais importante do que a
observância da lei que pode dar lugar a mentiras.
Esta chamada de atenção correspondia à preocupação de
Jesus de sair de uma visão demasiado estreita da moral. Manifestava
igualmente, assim, uma notável compreensão da condição humana.
Capaz de sentimentos fortíssimos, ao mesmo tempo que estava ao
serviço de uma mensagem da qual não estavam excluídas, nem a
30
Poder-se-ia, aliás, colocar a questão por que razão, neste relato, só é posta em
causa a mulher, pois, se foi apanhada em “flagrante delito de adultério”, é
porque se encontrava um homem com ela.
31
Cf. Mt 5,27-28.
89
ternura em relação aos pecadores, nem a cólera ao encontrar aqueles
que deturpavam a lei em seu proveito, Jesus tinha uma única
preocupação: avaliar as situações humanas à luz do desígnio de Deus,
o único critério que conta. Isto ressalta, sobretudo, nos Seus
ensinamentos em relação ao casamento. Como nos encontros
precedentes, vemos Jesus, ao mesmo tempo, denunciar a hipocrisia
de certas interpretações da lei e proclamar a graça de Deus sempre
oferecida.
Jesus e o casamento
Se é verdade que Jesus Se pronunciou pouco em relação à
sexualidade enquanto tal, já não é, assim, em relação ao casamento.
Uma passagem do Evangelho aborda mesmo a questão sobre a
indissolubilidade dos laços do casamento. Eis como o apresenta
Mateus:
«Alguns fariseus, para O experimentarem, aproximaram-se
d‟Ele e disseram-Lhe: “É permitido a um homem divorciar-se da sua
mulher por qualquer motivo?” Ele respondeu: “Não lestes que o
Criador, desde o princípio, fê-los homem e mulher, e disse: Por isso,
o homem deixará o pai e a mãe e se unirá à sua mulher, e serão os
dois um só? Portanto, já não são dois, mas um só. Pois bem, o que
Deus uniu não o separe o homem.”
Eles, porém, objectaram: “Então, porque é que Moisés
preceituou dar-lhe carta de divórcio ao repudiá-la?” Respondeu
Jesus: “Por causa da dureza do vosso coração, Moisés permitiu que
repudiásseis as vossas mulheres; mas, ao princípio, não foi assim.
Ora Eu digo-vos: “Se alguém se divorciar da sua mulher – excepto
em caso de união ilegal – e casar com outra, comete adultério32.»
32
Cf. Mt 19,3-9. Diferentemente dos relatos equivalentes de Marcos e Lucas, o
texto de Mateus comporta um certo número de notas que a tradição foi
acrescentando. Informam-nos sobre o pensamento das primeiras comunidades
cristãs.
90
Sublinhe-se, em primeiro lugar, que, ainda aqui, os fariseus
querem “montar uma armadilha” a Jesus e que a questão colocada
não diz respeito ao divórcio, no sentido moderno do termo, mas ao
repúdio. Este era determinado pela Lei de Moisés que previa que um
casamento consumado podia ser rompido se o marido descobrisse
“alguma coisa que causava vergonha” naquela com quem tinha
casado33. O sentido desta expressão era suficientemente amplo para
dar lugar a inúmeras interpretações, todas em benefício do marido e
só ele podia ter a iniciativa do repúdio. A escola rabínica de
Schammai, por exemplo, concebia a autorização de repudiar a sua
mulher de forma estrita e restritiva, isto é, só em caso de adultério.
A escola d’Hillel dava uma interpretação mais lata: podia ser
repudiada uma mulher que tivesse saído de casa dela com a cabeça
descoberta e os cabelos soltos, que se tivesse mostrado na rua com os
braços e os ombros nus ou que tivesse sido vista a falar com um
homem. Comer, beber, dar de mamar ao filho na rua ou deixar
queimar a comida podiam ser motivos de repúdio. Para Rabbi Aqiba,
bastava ver uma mulher mais bonita que a sua, para que se pudesse
repudiar a sua esposa34!
Tomando partido a favor de uma ou de outra destas
interpretações, Jesus teria ficado preso a uma compreensão legalista
do casamento. Recusando entrar na problemática em que os fariseus
O queriam encerrar, Ele reenvia, por isso, os Seus interlocutores para
o projecto de Deus; cita para isso dois versículos do livro do Génesis.
Começando por evocar o primeiro relato da Criação, Jesus põe em
evidência, primeiro, a diferenciação sexual que, em si mesma e por
ela mesma, foi desejada por Deus: “Ele os criou varão e fêmea35”.
33
Cf. Dt 24,1.
H.Cousin, «Le monde dans lequel vivait Jésus», Paris Cerf 1999. No seu tempo,
o profeta Malaquias tinha, no entanto, prevenido os seus compatriotas: “Por
conseguinte, tende cuidado convosco, e que ninguém atraiçoe a mulher da sua
juventude. Porque Eu odeio o divórcio, diz o Senhor, o Deus de Israel, e que
alguém cubra de injustiças as suas vestes, diz o Senhor do universo. Portanto,
tende cuidado convosco e não cometais essa traição.” (Mal 2,1-16).
35
NT: Neste ponto seguimos a tradução da Bíblia das Edições Paulinas, para que a
ideia do autor fizesse sentido, e não a da versão da Bíblia Sagrada da Difusora
34
91
Citando, a seguir, o segundo relato da Criação, Jesus passa de
um qualificativo sexual – varão/fêmea – para um qualificativo
antropológico – homem/mulher – “Por esse motivo, o homem
deixará o pai e a mãe, para se unir à sua mulher e os dois serão uma
só carne.” A união conjugal é, assim, apresentada sob diferentes
aspectos – sexual, relacional e social – que, juntos, fundamentam a
necessidade de deixar a segurança do meio familiar para constituir
uma nova unidade que nada poderá separar. Tal é a conclusão de
Jesus: “Pois bem, o que Deus uniu não o separe o homem.”
Um ponto aqui é importante: “O que Deus uniu.” Como em
nenhuma outra passagem, Jesus afirma, com efeito, que a união
conjugal não depende unicamente da vontade dos cônjuges, nem
sequer do reconhecimento social, mas do acto “gracioso” pelo qual
Deus fez Um aqueles que eram dois. Como fundamento da relação
que une o homem e a mulher, união na qual a sexualidade é o sinal e
o lugar, existe, portanto, o Amor criador de Deus, amor que o casal
humano é chamado a significar em todos os momentos da sua
existência. Em consequência disso, ninguém pode decidir que uma
união conjugal pode ser rompida, pois ninguém pode separar aqueles
que a graça de Deus uniu.
Como compreender então que Moisés tenha permitido, em
certos casos, repudiar a sua mulher? Esta é a questão que os fariseus
se apressam a colocar a Jesus. Como resposta, Jesus afirma que isso é
consequência da “dureza do coração do homem36” e que a
autorização legal derivada de Moisés não está conforme à ordem
“normal” das coisas, pois “ao princípio, não foi assim”. Numa época
que não era exactamente a mesma em que tinha sido legalizado o
repúdio, esta chamada de atenção era importante. Efectivamente, se a
carta de repúdio defendia, então, os direitos das mulheres repudiadas,
pois permitia-lhes voltarem a casar-se e evitava-lhes serem reduzidas
à mendicidade ou à prostituição, tornou-se no tempo de Jesus, pelo
Bíblica que é “Ele os criou homem e mulher” e que não permite o jogo de
palavras.
36
“Sklerokardia”: palavra grega que evoca o coração que endurece e se fecha à
vida. Trata-se, por isso, mais de uma rigidez que de uma maldade.
92
menos para aqueles que tinham meios financeiros, uma maneira
rebuscada de praticar a poligamia disfarçada. Ora, é esta hipocrisia
que Jesus denuncia, convidando os fariseus a respeitarem o
fundamento da Lei de Moisés.
Porque Ele conhecia as injustiças de que elas eram vítimas,
Jesus restabelecia ao mesmo tempo as mulheres como parceiras de
corpo inteiro no interior do casal37. Ele proclamava uma nova relação
entre o homem e a mulher baseada na unidade de comunhão e de
amor. Mais ainda: Ele lembrava que a ruptura do laço conjugal não é
inocente e que nenhuma casuística pode justificar levar ao fracasso,
voluntariamente, a vontade de Deus.
Mostrando-Se mais exigente que Moisés, Jesus corria, no
entanto, o risco de ser mal interpretada a natureza da Sua mensagem,
reduzida a um legalismo percebido como ainda mais duro e mais
severo que o primeiro. Entendida como uma nova lei, mais radical
que a primeira, a ordem de nunca separar o que Deus uniu poderia
mesmo dar a impressão de que o coração de Deus era mais duro que
o do homem. Seria esquecer o que Jesus acabava de afirmar a
propósito da união conjugal que obtém, em primeiro lugar, a sua
realidade da graça de Deus. Mensageiro da graça divina, Jesus não
podia, com efeito, ser o mensageiro de um Deus tirânico e sem
piedade. Pelo contrário, face àqueles que, por causa da dureza do
coração humano, tinham autorizado o repúdio, Jesus ensinava que é
preciso nunca fechar o coração à graça de Deus e, consequentemente,
nunca desesperar do amor. Mais, Ele afirmava que a
indissolubilidade é uma promessa inscrita no coração da união
conjugal ao mesmo tempo que é uma dimensão essencial à maneira
pela qual Deus Se liga aos homens: para sempre. Os Seus detractores
só tinham que relembrar os grandes acontecimentos da história do
Seu povo para se convencerem disso 38. Eles que conhecem as
37
O ensinamento de Jesus não dispensava a mulher de obrigações semelhantes às
do homem. Tal como o homem, ela não podia, por isso, romper o laço conjugal.
38
Lembremos aqui o ensinamento dos profetas onde a fidelidade de Deus é sempre
mais forte que as numerosas infidelidades “adultérios” do Seu povo. Não é
indiferente que a Bíblia use com frequência as realidades do matrimónio para
93
Escrituras deviam saber de igual forma que a vontade de Deus é
inseparável da lei e da graça. Mas, se a graça precede sempre a lei, a
lei indica como viver sob a graça de Deus.
Longe de interditar o repúdio como um legislador que tivesse
reforçado as exigências da lei, Jesus mostrava, assim, que o repúdio,
tal como era praticado no Seu tempo, era, em todo o caso e quaisquer
que fossem as incidências legais, o sinal do fracasso de viver,
segundo o desígnio de Deus e sob a Sua graça. Também, contra a
interpretação tradicional, Ele não hesitava em repudiar o adultério:
“Eu digo-vos: Se alguém se divorciar da sua mulher – excepto em
caso de união ilegal – e casar com outra, comete adultério.39” Esta
afirmação visava, contudo, aqueles que se serviam do repúdio para
justificar legalmente as suas práticas adúlteras. Mas, mais do que
isso, tratava-se para Jesus de defender a promessa e a esperança que
residem nos laços do matrimónio.
Infelizmente, íamos esquecer rapidamente a mensagem de
esperança que se encontrava no coração do ensinamento de Jesus
sobre a indissolubilidade dos laços do casamento. Veríamos aí apenas
mais uma lei e a interpretação jurídica venceria sobre o anúncio da
promessa divina. Mas como podemos espantarmo-nos, se foi assim
que os próprios discípulos reagiram ao ensinamento de Jesus?
Considerando as Suas palavras demasiado duras, recusando, sem
dúvida também, verem-se desapossados dos seus privilégios
masculinos, tinham exclamado: “Se é essa a situação do homem
perante a mulher, não é conveniente casar-se.40”
Esta reacção mostrava bem que eles tomavam Jesus por um
novo legislador, mais rigoroso que os precedentes, fazendo do
casamento uma prisão aterradora. De maneira surpreendente, Jesus
tinha então respondido aos seus discípulos, evocando uma realidade
igualmente espantosa: o celibato.
ilustrar o Amor de Deus pelo Seu povo e para mostrar que a infidelidade do povo
nunca prevalece à fidelidade de Deus, que recria incessantemente a graça da
aliança. Eis o que faz luz sobre o sentido profundo da união conjugal.
39
Cf. também Mt 5,32; Mc 10,11-12; Lc 16,18.
40
Cf. Mt 19, 10.
94
B. QUESTÕES PARA A REFLEXÃO EM CASAL
E PARTILHA EM EQUIPA
Apresentamos seguidamente, um conjunto de questões para
ajudar a reflexão ao longo do mês e posterior debate em equipa:

Qual o nosso conhecimento a respeito da condição da
mulher no tempo de Jesus Cristo?

Em que é que Jesus é “original” na sua atitude perante a
mulher ? Quais as consequências para Ele?

O papel das mulheres em relação ao dos apóstolos, e a
Jesus, o seu lugar nos Evangelhos? Quais as parábolas que
nos podem esclarecer?

Jesus exprimiu princípios claros no que respeita à moral
sexual?

Que nos mostram os 4 encontros de Jesus com as mulheres?
Sobre a pureza do rito e a autenticidade da fé?
Sobre o acolhimento apesar (ou graças a) das nossas
faltas e sobre a qualidade de um amor verdadeiro
despojado de qualquer sedução?
Sobre a graça da verdade em relação a nós mesmos?
Sobre a nossa maneira de olhar o outro?

Porque se mostra Jesus crítico em relação às leis sobre o
matrimónio? Em que se mostra Ele mais exigente que
Moisés? Onde está, para Ele, a grandeza do matrimónio?
95
C. SUGESTÕES PARA UM DEVER DE SE SENTAR
Depois da leitura do texto de meditação e da oração partilhada
sobre o mesmo, façam um pequeno silêncio e só depois iniciem o
diálogo:
Voltar a ler o encontro de Jesus com a Samaritana sobre a
rejeição de Jesus a todas as formas de exclusão,
principalmente no que se refere à mulher.
Na nossa vida de casal, de família, de igreja, em cada um de
nós, estamos de acordo com o lugar da “mulher” ?
Como reagimos quando, por exemplo, através dos nossos
filhos, vamos ao encontro de pessoas de outras categorias
sociais ou étnicas que não partilham os nossos valores?
Que acolhimento fazemos aos excluídos da sociedade?
Quem são, para nós, os excluídos?
D. TEXTO PARA A ORAÇÃO EM EQUIPA
«Os escribas e os fariseus trouxeram-lhe certa mulher apanhada
em adultério, colocaram-na no meio e disseram a Jesus: “Mestre, esta
mulher foi apanhada a pecar em flagrante adultério. Moisés, na Lei,
mandou-nos lapidar tais mulheres. E Tu que dizes?”
Faziam-lhe esta pergunta para o fazerem cair numa armadilha e
terem de o acusar. Mas Jesus, inclinando-se para o chão, pôs-se a
escrever com o dedo na terra. Como insistissem em interrogá-lo, ergueuse e disse-lhes: “Quem de vós estiver sem pecado atire-lhe a primeira
pedra!” E inclinando-se novamente para o chão, continuou a escrever na
terra. Ao ouvirem isto, foram saindo um a um, a começar pelos mais
velhos. E Jesus ficou só com a mulher.
Então, Jesus ergueu-se e perguntou-lhe: “Mulher, onde estão
eles? Ninguém te condenou?” Ela respondeu: “Ninguém, Senhor.”
Disse--lhe Jesus: “Também Eu não te condeno. Vai e de agora em diante
não tornes a pecar.»
Jo 8,3-11
96
CAPÍTULO III - JESUS, MENSAGEIRO DO
AMOR
6ª REUNIÃO: “Para o cristão, a castidade é [...] uma das formas
de participar no mistério da Eucarístia.
Comungando a carne e o sangue de Cristo, o
cristão sabe, com efeito, que a sua relação com a
carne, com a sua e com a do outro, nunca mais
será a mesma.”
A. TEMA
Jesus e o celibato
Como vimos, na reunião anterior, o mundo judaico em que
vivia Jesus exaltava a fecundidade. Os contemporâneos e os
compatriotas de Jesus consideravam-na como uma bênção de Deus e
um meio privilegiado de realizar as promessas divinas. É por isso que
o casamento era uma obrigação absoluta. A recusa de gerar era
mesmo considerada como um pecado contra a vida e equivalente a
um homicídio 1. Contudo, ao longo dos séculos, homens e mulheres
do Antigo Testamento tinham compreendido que a realização das
promessas divinas dependia, da fidelidade de Israel à Aliança do que
da simples fecundidade carnal, mas a escolha de uma vida celibatária
permanecia marginal. Porém, se, no Antigo Testamento, só Jeremias
1
“Um homem não casado não era verdadeiramente um homem” escreve R.Eléazar;
e R.Yacob acrescenta: É como se ele diminuísse a imagem de Deus, pois está
escrito: “Façamos o ser humano à nossa imagem, à nossa semelhança...”, o que
é imediatamente seguido de “Crescei e multiplicai-vos” (cf. H. Cousin, Le
monde où vivait Jésus, op.cit).
97
tinha sido levado a ter uma vida de celibato, anunciando assim o
drama que ameaçava o seu povo2, no limiar da era cristã, grupos
religiosos tinham começado a escolher o celibato. De entre os mais
conhecidos, havia os Terapeutas de Alexandria ou certos membros da
comunidade dos Essénios cujas motivações eram, na maior parte, da
ordem do culto. Foi, sem dúvida, o caso de João Baptista que os
Evangelhos apresentam como tendo como única missão – por isso, de
outra fecundidade – preparar os caminhos do Senhor. Neste contexto,
o exemplo de Jesus reveste, contudo, uma importância única.
Mesmo se nunca é dito, de forma explícita, excepto talvez na
passagem que vamos abordar, que Jesus tenha escolhido o celibato,
tudo o que sabemos d’Ele apresenta-O como um celibatário que vive
para Seu Pai e para os Seus irmãos e que não conhece nem lar, nem
casa. Ele que conhecerá tudo e assumirá tudo da vida dos homens,
excepto o pecado, não conhecerá a alegria das núpcias nem a
paternidade carnal, “não que Ele os tenha desprezado ou condenado,
mas a Sua missão chamava-O a outra forma de presença junto de
nós: a de um homem cuja vida e relações seriam todas orientadas
para o Pai e para os irmãos3.” No Seu seguimento, alguns dos Seus
discípulos escolherão também o celibato. É a eles, ao que parece, que
faz alusão o ensinamento que Mateus põe na boca de Jesus,
imediatamente depois da reacção dos apóstolos que não
compreendiam o que Ele acabava de dizer em relação ao casamento:
Respondeu-lhes Jesus: “ Nem todos compreendem esta
linguagem, mas apenas aqueles a quem isso é dado. Há eunucos que
nasceram, assim, do seio materno, há os que se tornaram eunucos
pela interferência dos homens e há aqueles que se fizeram eunucos a
2
3
Cf. Jer. 16,1-4.
M. Rondet, «Le Célibat évangélique dans un monde mixte», Desclée de
Brouwer/Bellarmin, Paris, 1978.
98
si mesmos, por amor do Reino do céu. Quem puder compreender,
compreenda4.
Este ensinamento sobre o celibato coloca bastantes
problemas. Em primeiro lugar, porque é único; depois, porque
Mateus é o único a inseri-lo aqui, o que nos leva a duvidar que esteja
no lugar correcto. Se está, compreende-se mal, com efeito, que
Marcos e Lucas o tenham omitido. Se não está, só o podemos
associar a um episódio da vida de Jesus, desconhecido pelos
Evangelhos. Certos autores imaginaram, por isso, que questionado,
um dia, sobre o Seu celibato, talvez mesmo apelidado de eunuco
como O trataram noutras ocasiões de guloso, bêbado ou de
publicano, Jesus teria replicado e justificado o Seu celibato,
referindo-Se ao reino de Deus. Recolhendo esta palavra cujo contexto
primitivo desconhecia, Mateus tê-la-ia colocado na sequência do
ensinamento sobre a indissolubilidade dos laços do casamento, não
só como uma lembrança da atitude pessoal de Jesus, mas também
como justificação daqueles que, de entre os Seus discípulos, tinham
escolhido no Seu seguimento o celibato.
Significará isto que Mateus queria relativizar o ensinamento
de Jesus sobre o casamento e a Sua ligação com o desígnio de Deus 5?
4
Cf. Mt 19,11-12. Só Mateus relata estas palavras, mas a sua estranheza parece ser
uma garantia de autenticidade; pois não se vê como Mateus poderia inventar um
ensinamento que cortasse tão claramente com a tradição judaica.
5
É a impressão com que poderíamos ficar depois da leitura do Evangelho de Lucas.
Com efeito, o convite de Jesus a renunciar a si próprio para O seguir toma, em
Lucas, uma forma tão radical que, no número das realidades que o discípulo de
Cristo deve “odiar”, figura o amor da sua esposa: «Se alguém vem ter comigo e
não me tem mais amor que ao seu pai, à sua mãe, à sua esposa, aos seus filhos,
aos seus irmãos, às suas irmãs e até à própria vida, não pode ser Meu discípulo»
(Lc 14,26; cf. Tob., nota K). Um pouco mais adiante, Lucas é igualmente o único
a referir o amor da sua mulher entre os elementos aos quais é preciso renunciar
“por causa do Reino de Deus” (Lc18,29). Por fim, aquando do debate entre Jesus
e os saduceus sobre a ressurreição, Lucas utiliza uma fórmula que poderia deixar
entender que, para ser julgado digno da ressurreição, é preciso não ter tomado
mulher nem marido: “Nesta vida, os homens e as mulheres casam-se, mas
aqueles que forem julgados dignos da vida futura e da ressurreição dos mortos
99
Não, como noutra passagem não queria impor a todos os homens a
condição de eunuco. Mas, ao mesmo tempo que iluminava o Seu
comportamento, a resposta de Jesus punha em evidência o facto do
celibato ter o seu lugar no desígnio de Deus. Distinguindo o drama
daqueles que nasceram impotentes ou que foram castrados pelos
homens, da escolha daqueles que “não se casam, sejam homens ou
mulheres: são semelhantes a anjos e, sendo filhos da ressurreição,
são filhos de Deus”, Jesus revelava também o segredo do Seu
celibato. Ele permanecera celibatário “por causa do Reino de Deus”,
isto é, para Se consagrar totalmente ao serviço de Seu Pai e
manifestar a Sua ternura e a Sua misericórdia para com os homens,
Seus irmãos. Numerosos são, aliás, os episódios dos Evangelhos que
traduzem esta escolha radical de Jesus ao mesmo tempo que revelam
a novidade do Seu ensinamento sobre a família ou sobre a
sexualidade6.
No número das passagens dos Evangelhos que esclarecem a
atitude de Jesus tanto a respeito da família como sobre o Seu celibato,
figura aquela da Sua fuga para Jerusalém e a busca angustiada de
Seus pais7. Qualquer que seja o fundamento histórico deste episódio,
o ensinamento que se pode retirar é simples: para o evangelista
Lucas, antes mesmo que o baptismo seja o sinal de uma missão em
vista da qual Jesus devia deixar tudo, Ele tinha consciência, desde a
mais tenra idade, de pertencer a Seu Pai de uma maneira única. A
Seus pais, que tinham ficado inquietos com o Seu desaparecimento,
também Ele Se tinha justificado, respondendo: “Não sabíeis que
devia estar em casa do Meu Pai?” Aos pais, Jesus tinha, por isso,
deixado entrar no Seu segredo, mesmo que não pudessem
não se casam, (...)” (20,34-35). Poder-se-ia, por isso, pensar que o casamento
era, para Lucas, um obstáculo à vida cristã. Seria esquecer que a sua
apresentação reflecte a sensibilidade das comunidades cristãs do final do
primeiro século que se encontravam simultaneamente confrontadas com a
imoralidade do mundo helenístico e a influência de certas tradições ascéticas.
6
Isto poderia explicar o facto de Mateus ter apresentado numa mesma súmula os
ensinamentos de Jesus sobre o casamento e o celibato.
7
Cf. Lc 2,41-52.
100
compreender o que Ele lhes dizia, meditando Maria longamente
nestas palavras desconcertantes. De forma espantosa, Jesus tinha,
contudo, retomado depois o caminho de Nazaré com Maria e José; e
aí tinha-lhes sido submisso: “Depois desceu com eles, voltou para
Nazaré e era-lhes submisso. Sua mãe guardava todas estas coisas no
seu coração. E Jesus crescia em sabedoria, em estatura e em graça,
diante de Deus e dos homens.”
Desde o início do Seu ministério, Jesus deverá mais uma vez
enfrentar a inquietação dos Seus parentes que se perguntam se “Ele
tem Belzebu8.” Algum tempo mais tarde, àqueles que O informavam
sobre a presença da Sua mãe e dos Seus irmãos, Ele responderá:
“Quem são minha mãe e meus irmãos?” E percorrendo com o olhar
os que estavam sentados à Sua volta, disse: “ Aí estão minha mãe e
meus irmãos. Aquele que fizer a vontade de Deus, esse é que é meu
irmão, minha irmã e minha mãe9.” Será necessário falar aqui de uma
ruptura com a família? Sem dúvida, mas ficar por aí seria não
alcançar a dimensão exacta deste acontecimento que ultrapassa uma
simples ruptura sociológica ou afectiva. O que faz aqui Jesus,
efectivamente, é afirmar, por um lado, que Ele dá o primeiro lugar à
missão pela qual foi enviado e anunciar, por outro, a chegada de uma
família nova onde “Aquele que fizer a vontade de Deus, esse é Seu
irmão, Sua irmã, Sua mãe10.”
Assim, alargando o campo da sua família, Jesus propunha aos
Seus discípulos constituírem com Ele uma família universal, em que
o laço que os uniria seria suficientemente forte para fazer alargar os
da sua família natural, mas suficientemente íntimo também para que
eles sejam realmente seus irmãos e irmãs. Desta nova família, Ele
seria o centro, mas não a origem, pois só o Pai dos Céus pode gerar
irmãos e irmãs do Filho único que Ele é. Esclarece-se, então, uma
8
Cf. Mc 3,21.
Cf. Mc 3, 31-35.
10
Cf. igualmente Lc 11,27-28.
9
101
outra palavra de Jesus: «E, na terra, a ninguém chameis “Pai”,
porque um só é vosso “Pai”: aquele que está no Céu11.»
Através desta recomendação, Jesus não queria destruir os
laços parentais; numerosos episódios da Sua vida manifestam, pelo
contrário, a qualidade da Sua atenção às realidades familiares, como
quando O vemos indignar-Se diante daqueles que se aproveitavam de
certas interpretações da lei para não sustentarem os seus pais, na sua
velhice12. Mas Jesus lembrava que toda a paternidade humana e
espiritual deve conduzir a Seu Pai e convidava aqueles a quem
chamamos “pai” a viverem a sua paternidade à luz d’Aquele de
quem recebemos toda a paternidade. Da mesma forma que Ele tinha
proposto aos Seus discípulos um outro tipo de família, Jesus
afirmava, por isso, que, por mais importante que seja, a paternidade
humana não é um absoluto e deve estar subordinada às exigências do
Reino de Deus. Como? Abrindo-se ao Amor universal de Deus que
contraria o fechar-se sobre si mesmo ou o estreitamento de laços
afectivos que não permitem ao amor desabrochar.
As palavras de Jesus ecoam, consequentemente, como um
chamamento a libertar-se do que os laços familiares podem
comportar de restritivo e de egoísta. Estas palavras indicavam
também que, para ser autêntico e fecundo, o amor da família deve
abrir-se ao que é maior. Ao pedir a cada um dos Seus discípulos “Se
alguém vem ter coMigo e não Me tem mais amor que ao seu pai, à
sua mãe, à sua esposa, aos seus filhos, aos seus irmãos, às suas
irmãs e até à sua própria vida 13”, Jesus indicava-lhes o caminho que
lhes permitiria purificar os seus laços familiares e amar em toda a
verdade: seguir a Sua escola, abrindo-se ao anúncio de um Amor que
encontra a sua realização para além da história e dos laços familiares
tais como os conhecemos.
11
Cf. Mt 23,9.
Cf. Mc 7,11-13; cf. também em relação à atenção de Jesus quanto às realidades
pessoais: Jo 2,1-12;Mc 1, 29-31; 5,21-24;36-43,Lc 7, 11-17,etc.
13
Cf. Lc 14,26.
12
102
Um episódio da vida de Jesus é aqui particularmente
elucidativo14. Trata-se de uma discussão onde, para pôr a ridículo a
ideia da ressurreição, os saduceus tinham submetido a Jesus o caso de
uma mulher sucessivamente casada, segundo a lei do levirato, com
sete irmãos. À questão: “Na ressurreição, de qual deles será ela
mulher, porque os sete a tiveram por mulher?”, Jesus tinha
respondido: “Quando ressuscitarem de entre os mortos, nem eles se
casarão, nem elas serão dadas em casamento, mas serão como anjos
do Céu.” Jesus queria dizer com isso que a ressurreição comportaria
como consequência o desaparecimento dos sexos? Nada nos permite
afirmá-lo, mas, através do Seu ensinamento, Ele lembrava que a
genitalidade está ligada à nossa condição de mortais. Com efeito,
uma vez ressuscitados, nós já não teremos necessidade de gerar, visto
que não estaremos submetidos à morte e viveremos plenamente a
Vida de Deus.
Distinguindo este mundo, onde a união carnal tem o seu
lugar, e o mundo da ressurreição, onde não haverá mais procriação, já
que não haverá mais morte, Jesus anunciava então um novo tipo de
relações. Mas o fim da genitalidade não significa necessariamente o
desaparecimento da sexualidade, e o fim de um certo tipo de laços
afectivos não significava que o que eles representavam, em matéria
de amor, de dom de si, de fidelidade e de fecundidade, seria excluído
do mundo da Ressurreição. Teríamos dificuldade em perceber,
efectivamente, que o amor dos esposos, compreendido como sinal
por excelência do Amor de Deus, não tenha lugar no mundo da
Ressurreição. É por isso que podemos imaginar que, tudo o que tenha
contribuído para a construção da pessoa humana e da fraternidade
dos homens, tanto no domínio do amor como no da sexualidade,
subsista no mundo da Ressurreição, mas para além das nossas
categorias espácio-temporais. Se a vida depois da ressurreição não é
um simples prolongamento da vida terrestre, podemos, naturalmente,
pensar que viveremos plenamente, em Deus, a comunhão da qual a
relação conjugal é a figura, na realização da família universal,
daqueles que se reconhecem filhos de Deus, por isso, irmãos.
14
Cf. Mc 12,18-27.
103
Esta é a novidade da mensagem evangélica traduzida pelo
celibato de Jesus: antes de ser esposo ou esposa, pai ou mãe, o ser
humano só existe verdadeiramente no reconhecimento da sua
identidade de filho em relação a Deus e de irmão em relação aos
outros seres humanos.
Falando do Seu celibato, Jesus tinha, contudo, reconhecido
que este estado de vida escapava à compreensão humana e que Ele o
tinha recebido como um dom em vista do serviço do Reino. Não era,
portanto, por menosprezo da sexualidade que Ele o tinha escolhido,
mas por fidelidade à Sua missão que O chamava a um outro estado de
vida: o de um homem, de um Filho, com a vida e a afectividade
totalmente orientadas para o Pai e para os irmãos. De forma diversa,
segundo as suas vocações específicas, esposos e celibatários “por
amor do Reino do Céu” teriam no futuro de traduzir essa dupla
vocação: os primeiros, como sinais de amor de Cristo que deu a Sua
vida; os segundos, como sinais do carácter transitório da história e do
carácter definitivo do Amor de Deus, que não quere ver nenhum dos
Seus filhos esquecido ou rejeitado.
Nunca ouviremos, porém, Jesus proclamar a superioridade do
celibato sobre o casamento. Nunca O veremos também estabelecer a
distinção, entre os Seus discípulos, entre aqueles que eram casados,
como Pedro, e aqueles que não o eram, como também a missão que
lhes confiará não dependerá da escolha do celibato. Para Jesus, como
para os autores do Novo Testamento, casamento e celibato são dois
estados de vida subordinados ao Reino e santificados por referência
ao Reino. Eles são, portanto, escolhidos, em função do chamamento
que assume modalidades diferentes para cada um. Eles remetem para
o mistério das vocações pessoais, mas com uma só exigência, quer se
seja chamado ao celibato quer ao casamento: abrir-se à fecundidade
do amor verdadeiro que exclui qualquer forma de isolamento, de
egoísmo ou de exclusão.
Nesta condição, o casamento e o celibato participam
igualmente no acto de oferenda de Cristo, entregando-Se por amor
104
pela Humanidade, na fidelidade a Seu Pai. Por obra da graça
redentora que curou a ferida natural que atingia a sexualidade, como
todos os aspectos da existência, o casamento e o celibato tornam-se
mesmo, diferentemente mas de forma complementar, lugares de
santificação. Tanto um como outro reenviam à graça de Deus que
torna possível o Amor total e sem limites. Infelizmente, ao longo dos
séculos, a perspectiva evangélica será muitas vezes deturpada: e um
menosprezo crescente da sexualidade conduzirá a uma excessiva
exaltação da virgindade. Reconhecer-se-á à sexualidade o único
mérito de assegurar a sobrevivência da espécie humana e afirmar-se-á
da virgindade que ela aproxima do mundo celeste. Resumindo, para
atingir a perfeição, é preciso libertar-se da sexualidade15. Como
compreendemos, isso não corresponde à riqueza da mensagem
evangélica.
A graça da castidade
Alguns ficarão surpreendidos que terminemos assim o
capítulo sobre Jesus. Isto advém do facto da palavra “castidade” ser
muitas vezes mal compreendida, frequentemente de forma negativa.
Enquanto se confunde vulgarmente com a abstenção de relações
sexuais, ela “diz respeito à humanização da sexualidade (...).
Positivamente, significa unir, submeter o desejo ou o acto sexual ao
projecto da pessoa16.” Ora evocar a castidade de Jesus como uma
graça a pedir é reconhecer, em primeiro lugar, que nunca houve nele
15
16
E. Fuchs, «Le désir et la tendresse», Labor et Fides, Genebra, 1979.
G. Durand, Sexualité et foi. Síntese de teologia moral. Cerf/Fides, 1983, “A
etimologia da palavra “casto” é, a este respeito, muito elucidativa: castus é o
antónimo de incastus (incestuoso). Do ponto de vista moral, tomando plenamente
em conta o humano, a castidade seria, por isso, o que permitiria ao sujeito viver a
sua sexualidade de tal maneira que construísse as suas relações com os outros e
com o cosmos no reconhecimento das diferenças radicais que o estruturam. A
castidade é, então, no domínio da sexualidade, recusa do poder, da
indiferenciação, do enclausuramento no imaginário”, X Thévenot, Repères
ethiques pour un monde nouveau, Salvator, Mulhouse, 1989.
105
fobia em relação à sexualidade, nem ascetismo crispado ou de
inconsciência demagógica. Mais do que ninguém, Jesus parecia, pelo
contrário, perfeitamente consciente do que está em jogo nas questões
profundas da sexualidade e das suas consequências nas relações
humanas.
Mas evocar a castidade de Jesus é sobretudo reconhecer que,
porque Ele era totalmente dedicado a Seu Pai e a Seus irmãos, de
modo a que cada um pudesse ser completamente ele próprio, Jesus
nunca Se apropriou daqueles que o Seu amor tinha tocado. Sempre
lhes abriu o caminho da liberdade ao mesmo tempo que os conduziu
a Seu Pai. Liberto de toda a inveja ou de qualquer sentimento de
dominação, Jesus ama os Seus discípulos, com uma amizade
profunda e viril, como Ele amou, de forma terna e afectuosa, os
homens e mulheres que vieram ao Seu encontro. Não escondeu uma
ou outra preferência17 e sofreu cruelmente ao separar-Se daqueles que
tinha escolhido ou que O tinham acompanhado. Por fim, porque sabia
que “Ninguém tem maior amor do que quem dá a vida pelos seus
amigos18”, Ele irá até ao limite do amor, abrindo assim à humanidade
o caminho do verdadeiro amor.
Algumas horas antes, Ele tinha-Se dado aos Seus discípulos
“sob a forma mais humilde que existe: o pão e o vinho19”. Tudo o
que, dia após dia, tinha dado aos Seus, de atenção desinteressada e de
dedicação incondicional, tudo o que fazia o Seu ser, a Sua carne e o
Seu sangue, Ele tinha-lhes dado assim, para que no futuro aqueles
que se alimentassem da Sua carne e do Seu sangue pudessem amar
como Ele os tinha amado20. Modelo e alimento de amor, Jesus
revelaria, assim, a profundidade do Amor trinitário onde cada uma
das Pessoas divinas só existe, dando-se. Retomando uma imagem
17
Cf. Jo 13,23; 19,26; 20,2.8;21,7.20.
Cf. Jo 15,13.
19
J.Guillet, «Jésus-Christ dans notre monde», op. cit.
20
“A questão decisiva, quanto à sexualidade, não se coloca a partir da moral, mas a
partir da Eucaristia. E ela centra-se nisto: O que é o amor? Não é um assunto de
legislação e de limites; é a verdade do ser que está em causa; e não a partir desta
ou daquela ideia ou princípio, mas deste Corpo que é alimento” (M.Bellet, La
chose la plus étrange, Desclée de Brouwer, Paris, 1999).
18
106
bíblica bem conhecida, não se hesitaria a ver n’Ele o Esposo, vindo
selar com o Seu sangue as núpcias eternas, para que o amor humano
se torne verdadeiro sinal do Amor de Deus 21.Ele que não tinha
conhecido a alegria das núpcias, nem a paternidade carnal, tornar-Se-á o novo Adão, esposo da nova Eva.
Porque sabia como nenhum outro o que é o Amor, Jesus fará
prova igualmente de uma grande misericórdia e de uma grande
ternura em relação àqueles que conheciam o fracasso ou as
dificuldades no plano conjugal22. Muito severo relativamente àqueles
que se aproveitavam da promessa de Deus em proveito próprio, ele
seria cheio de atenções para com aqueles cujas provas da vida
conjugal tinham conduzido, por vezes, ao desespero. Ele sabia que,
mais que outros, eles tinham necessidade de serem libertados da
culpa a que os condenava o legalismo dos seus compatriotas e do
desespero de nunca mais poderem acreditar no amor. A esses Jesus
lembrará que a promessa de Deus habita os mais desafortunados.
Mesmo na provação e no fracasso, é preciso nunca duvidar da
promessa divina ligada à existência do casal. Pois é mesmo disso que
se trata: de uma Promessa ligada à ordem da Criação e de uma
Esperança enraizada na prédica d’Aquele que veio lembrar que nada
é impossível a Deus. É, aliás, assim que Jesus conclui o conjunto do
ensinamento onde se encontra o Seu apelo a viver a
indissolubilidade: “Aos homens é impossível, mas a Deus tudo é
possível23.”
21
Cf. Jo 3,29; Mt 9,15. Do princípio ao fim, o livro do Apocalipse une igualmente
a visão do Cordeiro imolado em sacrifício (5,6) e a da noiva purificada pelo
sangue, a nova Jerusalém, a Igreja santa (19,7; 21,9). De forma diversa, o autor
da Carta aos Efésios lembra que Cristo amou a Igreja como um homem ama a
sua esposa, e que Se “entregou por ela” (Ef 5,25ss). A tradição cristã não cessará
de contemplar estas imagens e de explorar o seu sentido, para aprofundar o
mistério da união dos esposos em Cristo ou o da virgindade consagrada ao
Senhor.
22
Cf. Lc 7,36-50; Jo 8,1-11, etc.
23
Cf. Mt 19,26; cf.X.Lacroix, L’Avenir, c’est l’autre, op.cit.
107
Há um outro aspecto da castidade. Porque nós aceitamos não
ser donos da nossa vida, aprendemos a não desesperar da graça de
Deus e a nunca fechar a porta ao perdão ou à reconciliação possíveis.
Ora, mais que outras realidades, o casamento é o lugar onde o
homem e a mulher podem fazer essa experiência. Mas, mais que
qualquer outro domínio da vida humana, é também o lugar onde a
dificuldade – e por vezes mesmo a recusa – de acreditar na graça
criadora do amor de Deus pode ser mais trágica e mais dolorosa. Ser
casto é, então, abrir-se a um futuro de amor e de perdão que tudo
parece tornar impossível.
Há quem mostre que a castidade diz respeito à forma de viver
a sua história como a construção dos seus sentimentos, pois “não é
casta uma amizade ou um amor que se constrói de modo a absorver
o outro; não é casta uma vida que procura fugir de todo o prazer24,
não é casta uma vida sexual que recusa a alteridade do tempo, não
tolerando as demoras da evolução do outro e de si próprio ou
evitando todo o compromisso; não é casta uma paternidade que
utiliza a criança para saturar o desejo, etc.25.”
Por fim, para o cristão, a castidade é, principalmente, uma das
formas de participar na Eucaristia. Comungando a carne e o sangue
de Cristo, o cristão sabe, com efeito, que a sua relação com a carne
nunca mais será a mesma. No seguimento d’Aquele que Se entregou
totalmente, ele sabe também que não há outra vocação senão a de se
entregar e se deixar purificar pelo Amor de Deus, para que, por sua
vez, Ele se torne para cada um dos seus irmãos pão e alimento 26.
24
“Efectivamente, este, na medida em que faz perder momentaneamente o domínio
da vontade, é lembrança do não poder do sujeito” (X.Thévenot, op.cit).
25
Ibid.
26
X.Lacroix, Le corps de chair, op. cit. “Acrescentemos que se a adesão eucarística
enriquece e confirma o valor da união carnal, ela vem também “recolocá-la no
seu lugar”, incitando a não sobrevalorizar a sua importância. Ao encontro de
certas absolutizações do coito ou exaltações românticas da relação amorosa, é
preciso saber dar lugar à consciência dos limites da união carnal e ter a audácia
de afirmar que a comunhão eucarística é ainda mais forte, mais real mesmo,
atingindo os corações e os corpos no seu centro mais íntimo. Ainda mais forte aí
108
B. QUESTÕES PARA A REFLEXÃO EM CASAL
E PARTILHA EM EQUIPA
Apresentamos seguidamente, um conjunto de questões para
ajudar a reflexão ao longo do mês e posterior debate em equipa:




É o celibato um estado superior ao matrimónio?
Que complementaridades vemos entre o celibato
consagrado e o matrimónio?
O que há neles de comum? Como podem ser lugares de
uma mesma graça ?
A castidade: Estamos esclarecidos sobre o significado desta
palavra?
De que forma ela humaniza a sexualidade?
Como favorece o perdão?
Como pode ela levar a uma maior comunhão e amor?
C. SUGESTÕES PARA UM DEVER DE SE SENTAR
Depois da leitura do texto de meditação e da oração partilhada
sobre o mesmo, façam um pequeno silêncio e só depois iniciem o
diálogo:
Que imagem temos da castidade? Que lugar ocupa na nossa
vida de casal?
é a comunhão não só com Cristo, mas dos membros de Cristo entre eles. O
orgasmo não é clímax das relações humanas. O ponto mais alto da união
interpessoal é a comunhão n’Aquele que salva as nossas uniões humanas dos
seus limites e das suas ambiguidades.”
109
Castidade e perdão: já experimentámos a presença de Cristo
no nosso casal ou, pelo contrário sentimo-nos
abandonados? Em que circunstâncias?
Castidade e Eucaristia : vivemos a nossa vida de casal como
uma Eucaristia, quer dizer como um dom total de si próprio
e do outro, como uma acção de graças?
D. TEXTO PARA A ORAÇÃO EM EQUIPA
«Seguiam com Ele grandes multidões, e Jesus voltando-se
para elas disse-lhes:
“Se alguém vem ter comigo e não me tem mais amor que ao
seu pai, à sua mãe, à sua esposa, aos seus filhos, aos seus irmãos, às
suas irmãs e até à própria vida, não pode ser meu discípulo. Quem
não tomar a sua cruz para me seguir não pode ser meu discípulo.”»
Lc 14,25-2
110
CAPÍTULO IV. PAULO,O INCOMPREENDIDO
7ª REUNIÃO: “O poder do Ressuscitado dá (ao homem e à
mulher) a força para vencer o pecado que
ensombra todo o amor e perverte as relações mais
nobres, até mesmo com o próprio corpo.”
A. TEMA
A acreditar no que se diz habitualmente dele, Paulo teria tido
uma visão extremamente negativa da sexualidade. Entusiástico
partidário do celibato e da continência, teria contribuído bastante para
desvalorizar a sexualidade, ponto de vista, digamo-lo de imediato, que é
mais frequente nos seus comentadores do que no seu. Para dar conta das
grandes linhas do pensamento de Paulo, vamos então percorrer as
principais passagens das cartas onde ele aborda estes assuntos.
Ao longo do nosso percurso, não esqueceremos os casais e as
mulheres que ocupam nas cartas de Paulo um lugar importante:
pensemos em Priscila e Áquila, um casal que trabalhou com Paulo
em Coríntio e Éfeso, e que ele designou como “colaboradores em
Jesus Cristo1”. Não esqueçamos Evódia e Sintique que trabalharam
em Filipos2, ou Febe, que Paulo apresenta como “diaconisa” na
igreja de Cêncreas. 3
De Júnia e Andrónico, Paulo diz igualmente que são
“apóstolos notáveis4”, acrescenta que pertenceram a Cristo antes
dele, enquanto reconhece a Maria, Trifena, Trifosa e Pérside que “se
afadigaram pelo Senhor5.”
1
Cf. Rm 16,3.
Cf. Fl 4,2.
3
Cf. Rm 16, 1-2.
4
Cf. Rm 16,7.
5
Cf. Rom 16,6. 12.
2
111
Enfim diferentes!
A reputação anti-feminista de Paulo já não é preciso construí-la. Ela tornou-se, com o tempo, uma evidência. Considerado
responsável por ter imposto às mulheres a obrigação do silêncio nas
assembleias6, ou de as ter sujeitado aos homens 7, Paulo é acusado de
ter posto fim aos avanços “feministas” do Evangelho! Na realidade,
as coisas não são tão simples. Assim, na Carta aos Gálatas, onde ele
responde aos cristãos que defendiam um retorno à Lei, Paulo
proclama a abolição de todas as desqualificações de ordem étnica,
religiosa ou sociológica admitidas no seu tempo. Ele escreve então
aos seus leitores: “É que todos vós sois filhos de Deus em Cristo
Jesus, mediante a fé; pois todos os que fostes baptizados em Cristo
revestistes-vos de Cristo mediante a fé. Não há judeu nem grego, não
há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus 8.”
Sem dúvida, não medimos a novidade desta afirmação de
Paulo que punha fim aos privilégios religiosos do Judeu, políticos
do “cidadão” e sociais do “homem”. Pois, face à Lei de Moisés, o
Judeu gozava de um estatuto diferente do pagão, o cidadão do
escravo, o homem do da mulher. Temos como ilustração esta
oração que alguns judeus pronunciam ainda hoje: “Bendito seja
Aquele que não me fez goy (pagão), nem mulher, nem ignorante 9,
pois os goyim são nada diante de Ti, porque a mulher não suporta
observar os mandamentos, porque os ignorantes não temem
pecar”. Encontramos uma tripla bênção parecida em Diógenes
Laerco, um historiador grego do século III A. C. Mas trata-se,
aqui, de agradecer a Fortuna: “Em primeiro lugar nasci humano e
não animal; depois nasci homem e não mulher; em terceiro lugar,
nasci grego e não bárbaro.”
6
Cf. 1Cor 14,34 ss.
Cf. Ef 5,25 ss.
8
Cf. Gl 3, 26-28; seria necessário, na realidade, traduzir: “nem varão nem fêmea”,
alusão evidente ao Génesis 1,27.
9
No Talmude da Babilónia: escravo.
7
112
Eis o que mostra bem onde reside a novidade da reflexão de
Paulo e a sua importância: por causa do que ele realiza no coração
humano, o baptismo abole os privilégios e os papéis atribuídos pela
religião e pela sociedade. Enquanto que a humanidade antiga,
submetida ao domínio do pecado, estava cindida em grupos
antagónicos, a humanidade salva caracteriza-se, por isso, por uma
perfeita igualdade de direitos entre os homens e as mulheres. Pelo
Seu sangue vertido na cruz, Cristo pôs fim, efectivamente, à ruptura
original que tinha conduzido à dominação do homem sobre a mulher
e à sua alienação mútua10.
Mas a abolição das relações de força não implica um
nivelamento das diferenças ou uma supressão da alteridade. É mesmo
o contrário, pois se as consequências do pecado que pesavam sobre o
homem e a mulher – faziam da diferença uma concorrência – foram
potencialmente elevadas, é para que o homem e a mulher possam
finalmente existir pelo seu consentimento na diferença reconhecida11.
Em Jesus Cristo, não só a diferença entre o homem e a mulher não é
apagada, como até é restaurada para que o homem e a mulher voltem
a ser juntos o sinal privilegiado da forma como Deus ama.
Quererá isto dizer que o homem e a mulher estão protegidos
contra o risco da inveja e da vontade de dominar? Claro que não, mas
o poder do Ressuscitado dá-lhes o poder de resistir ao pecado que
ensombra qualquer amor e perverte as relações mais nobres, até
mesmo com o próprio corpo. É este tema que Paulo aborda na 1ª
carta aos Coríntios.
10
11
Cf. Gn 3,16.
O que Paulo não diz nesta passagem da Carta aos Gálatas, a história encarregarse-á de lho fazer dizer. Efectivamente, numa sociedade pouco dada à
miscigenação social e religiosa, muitas dificuldades surgirão rapidamente e Paulo
terá de intervir para tratar das questões práticas como o uso do véu (1 Cor 11, 216) ou da intervenção das mulheres nas celebrações (14,34-36). São
essencialmente estas duas intervenções, aliás, que valerão a Paulo ser apelidado
de misógino. Reconhecer-se-á, então, a natureza pastoral das regras que ele
preconizava. Esquecer-se-á, sobretudo, que uma teologia da diferença atravessa o
conjunto da obra de Paulo, “teologia da identidade contra a fusão, do separado
contra o indiferenciado, teologia da alteridade contra um nivelamento
igualitarista” (A. Marguerat).
113
O Corpo reencontrado
Dois perigos ameaçavam os cristãos de Corinto: a imoralidade
e o ascetismo. Existia mesmo a expressão – “viver à maneira
coríntia” (Korinthiazein) – que evocava a libertinagem reinante na
cidade de Corinto. Os opositores deste modo de vida defendiam um
ascetismo rigoroso, desconfiando da vida sexual que julgavam pouco
compatível com a santidade necessária aos discípulos de Cristo.
Outros cristãos julgavam, pelo contrário, que o corpo, comparado
com as realidades espirituais, não tem nenhum valor, que é perecível
e que, por isso, se pode usá-lo com toda a liberdade. É a este segundo
grupo que Paulo se dirige no capítulo 6, da 1ª Carta aos Coríntios.
Numa passagem que diz respeito essencialmente à frequência das
prostitutas, convida os seus leitores a não confundirem libertinagem
com desprezo pelo corpo. Ele relembra que o acto sexual
compromete a pessoa no seu todo e que o corpo do homem não pode
ser reduzido ao estado de simples instrumento12.
«Tudo me é permitido”, mas nem tudo é conveniente. “Tudo
me é permitido”, mas eu não me farei escravo de nada.
Os alimentos são para o ventre, e o ventre para os alimentos,
e Deus destruirá tanto aquele como estes. Mas o corpo não é para a
impureza, mas para o Senhor, e o Senhor para o corpo. E Deus, que
ressuscitou o Senhor, há-de ressuscitar-nos também a nós, pelo seu
poder.
Não sabeis que os vossos corpos são membros de Cristo? Iria
eu, então, tomar os membros de Cristo para fazer deles membros de
uma prostituta? Por certo, não! Ou não sabeis que aquele que se
junta a uma prostituta, torna-se com ela num só corpo? Pois, como
diz a Escritura: “ Serão os dois uma só carne. Mas quem se une ao
Senhor, forma com Ele um só espírito. Fugi da impureza. Qualquer
outro pecado que o homem cometa é exterior ao seu corpo, mas
quem se entrega à impureza, peca contra o seu próprio corpo.
12
Anteriormente, Paulo tinha já convidado os cristãos de Tessalónica a usarem a
sexualidade “com santidade e respeito, sem se deixarem levar pela paixão como
as nações que não conhecem Deus” (1Tes 4, 3-5).
114
Não sabeis que o vosso corpo é o templo do Espírito Santo,
que habita em vós, porque o recebestes de Deus, e que vós já não vos
pertenceis? Fostes comprados por um alto preço! Glorificai, pois, a
Deus no vosso corpo13.»
Esta passagem começa por um adágio que certos cristãos de
Corinto deviam utilizar para justificar a sua conduta: “Tudo me é
permitido”. Sustentando que o crente é livre de tudo fazer, porque ele
está acima das contingências materiais, ou que o que é corporal é
desprezível porque só conta o espírito, estes cristãos apoiavam-se
provavelmente numa compreensão errónea do ensino de Paulo,
quanto ao tema da liberdade cristã. Ora que faz Paulo? Admite a
fórmula dos Coríntios: “Tudo me é permitido”; depois corrige com
duas restrições das quais precisa o sentido: “Mas nem tudo é
conveniente; mas eu não me farei escravo de nada.”
A primeira restrição deve ser interpretada à luz de outra
passagem onde Paulo afasta qualquer interpretação individualista da
liberdade para ensinar que a verdadeira liberdade está ao serviço da
edificação da comunidade 14. A segunda restrição devemos aproximá-la do final da argumentação de Paulo: “Comprados por alto preço”,
pois o cristão não deve cair em nenhuma escravatura, nem da lei,
nem do pecado, nem de quem quer que seja. De que valeria uma
liberdade que conduzisse por fim a uma escravatura do deboche?
Segue-se um desenvolvimento em que Paulo opera uma
distinção entre o ventre para onde vão os alimentos que são perecíveis e
o corpo que não se pode reduzir a um mero instrumento. Para Paulo, que
defende a unidade da pessoa humana, o homem tem, por isso, não só um
corpo, mas um corpo pelo qual entra em relação consigo mesmo e com
os outros. Por este facto, aquele que usa o seu corpo como um
instrumento engana-se; é especialmente o caso daqueles que pensam não
comprometer a totalidade da sua pessoa, quando frequentam prostitutas.
Uma distinção fundamental aparece, assim, entre o corpo que se reduz à
aparência exterior ou ao funcionamento genital, e o corpo que se
reconhece como sinal de uma presença, em último caso, misteriosa.
13
14
Cf. 1 Cor 6, 12-20.
Cf. 1 Cor 10, 23-24.
115
Para traduzir esta diferença, Paulo distingue o “corpo para o
deboche” e “corpo para o Senhor”. No primeiro caso, o corpo é
instrumentalizado. No segundo caso, torna-se lugar de uma relação e
de uma presença por causa da qual se reconhece que o que dá sentido
ao corpo não nos pertence. É o que Paulo explica, quando, após ter
escrito aos Coríntios que eles são, pelo seu corpo, “membros de
Cristo”, acrescenta: «Não sabeis que o vosso corpo é o templo do
Espírito Santo, que habita em vós, porque o recebestes de Deus, e
que vós já não vos pertenceis?»
Na ilusão de crer que seria inconsequente comprometer o seu
corpo numa relação sexual que seria puramente carnal, Paulo
acrescenta aqui um elemento de outra dimensão: “templo do Espírito
Santo”, o corpo é habitado pela presença divina que deve revelar ao
mesmo tempo que deve aprender a reconhecer. Eis porque a
sexualidade não pode ser reduzida a uma simples função biológica
como a alimentação. Eis a razão pela qual também o deboche é, em
primeiro lugar, um pecado contra o corpo, pois atinge a dignidade do
corpo ao não reconhecer que ele é feito para o Senhor, por isso
prometido à Ressurreição.
Compreendemos agora que não há em Paulo desprezo pela
sexualidade, mas recusa de uma “sexualidade instrumentalizada15.”
Ora negando o corpo como presença divina é, em última análise, o
Senhor que é recusado; ora Ele é Aquele que permite a relação com o
seu próprio corpo ou com o corpo do outro. Considerando que a
verdadeira liberdade é a de colocar-se ao serviço do único Senhor que
pode tornar livre, Paulo pode então concluir: “Glorificai, pois, a
Deus no vosso próprio corpo.” Como? Deixando o Espírito de Cristo
e a Sua obra desenvolver-se em todos os aspectos da existência
humana para que cada um cresça em liberdade e em amor. É o que
Paulo exprime na sua Carta aos Gálatas: “Estou crucificado com
Cristo. Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim.
15
E.Fuchs, «Le désir et la tendresse», op. Cit..
116
Matrimónio ou celibato?
Por oposição àqueles que conduziam uma vida de deboche e
defendiam uma vida sexual liberta de todas as limitações, outros
membros da comunidade de Corinto consideravam que decorria da
Fé renunciar a qualquer tipo de vida sexual. Alguns deles encararam
mesmo, ao que parece, separar-se do seu cônjuge para adoptar o
celibato. Pensavam, assim, manifestar melhor a sua pertença a Cristo.
Este assunto, bem como o da abstinência sexual ou outras questões
práticas, foi objecto de uma carta que tinham enviado a Paulo onde
eles o interrogavam: Como preparar-se para a vinda do Senhor
quando se é casado, celibatário, noivo ou viúvo? Como viver a sua
sexualidade, quando tomamos consciência de estarmos prometidos a
uma outra vida e a laços diferentes daqueles que conhecemos?
A estas questões, Paulo responde no capítulo 7 da 1ª Carta aos
Coríntios,lançando-se num tratado sobre a família ou sobre a
sexualidade; e as suas respostas têm um carácter essencialmente
pastoral. Esclarecendo o que vivemos, talvez descubramos aí uma
outra maneira de abordar o pensamento de Paulo. Constatando que a
sua visão da sexualidade e do casamento não se compreende
realmente senão à luz da sua fé na Ressurreição e da sua espera do
regresso de Cristo, deveríamos, sem dúvida, rever certos preconceitos
quanto ao famoso desprezo de Paulo perante a sexualidade.
“Mas a respeito do que me escrevestes, penso que seria bom
para o homem abster-se da mulher. Todavia, para evitar o perigo da
incontinência, que cada homem tenha a sua mulher e cada mulher o
seu marido. O marido cumpra o seu dever conjugal para com a sua
esposa, e a sua esposa faça o mesmo para com o seu marido. A
esposa não pode dispor do seu próprio corpo, mas sim o marido; do
mesmo modo, o marido não pode dispor do seu próprio corpo, mas
sim a esposa. Não vos recuseis um ao outro, a não ser de mútuo
acordo e por algum tempo, para vos dedicardes à oração; depois,
voltai de novo um para o outro, para que Satanás não vos tente
devido à vossa incapacidade de autodomínio. Digo isto como
concessão e não como ordem. Desejaria que todos os homens fossem
117
como eu, mas cada um recebe de Deus o seu próprio carisma, um de
uma maneira, outro de outra16.”
Esta passagem é particularmente representativa da maneira
como Paulo reage, como pastor, às questões que lhe são colocadas.
Àqueles que o haviam interrogado sobre o bem fundado na
abstinência sexual, Paulo começa por responder que ela é um ideal
que ele se esforça por praticar e que gostaria que todos a
praticassem. Mas sabe bem que este ideal não é fácil de viver;
necessita uma graça, um dom especial de Deus. De mais a mais, a
busca do melhor pode prejudicar, por vezes, o bem real que é o
casamento. Também, após ter afirmado que “...seria bom para o
homem abster-se da mulher”, Paulo acrescenta: “Todavia, para
evitar o perigo da incontinência, que cada homem tenha a sua
mulher e cada mulher o seu marido.
Persuadido que a abstinência é em si preferível, Paulo faz aqui
prova de grande sabedoria pastoral, pois ele sabe que se o homem e a
mulher não encontram a plenitude no seu uso legítimo do casamento,
arriscam-se a procurarem-na na frequência das prostitutas ou, ainda,
de qualquer outra maneira. Paulo formula, assim, uma regra pastoral
muito simples mas fundamental: nunca se deve fazer prevaler de
maneira absoluta um princípio, mas é preciso sempre mostrar-se
atento ao que é possível viver. Isto é tanto mais importante sobretudo
no domínio da sexualidade, segundo o adágio bem conhecido de
Pascal, “Quem se quer passar por anjo, faz-se animal17.”
Àqueles que estão casados, Paulo lembra depois os direitos e
os deveres recíprocos dos cônjuges pois, no casal, cada um pertence
ao outro e não pode, por isso, só, decidir romper a união sexual.
Paulo tem consciência de que um ascetismo não reflectido, não
consentido pelos dois cônjuges pode conduzir ao deboche. É por isso
que ele não hesita em fazer da relação mútua, no interior do casal, o
primeiro critério de discernimento em matéria de abstinência sexual:
16
17
Cf. 1 Cor 7, 1-7.
Referência a uma frase de Pascal “L’homme n’est ni ange ni bête, et le malheur
veut que qui veut faire l’ange fait la bête». O Homem não é nem anjo nem besta
e, por infelicidade, quem se quer passar por anjo mostra-se animal (N.T.).
118
“Não vos recuseis um ao outro, a não ser de mútuo acordo e
por algum tempo, para vos dedicardes à oração; depois, voltai de
novo um para o outro, para que Satanás não vos tente devido à vossa
incapacidade de autodomínio18.”
Encontramos aqui a prudência de Paulo em relação a perigosas
pesquisas místicas que poderiam conduzir um dos cônjuges a procurar
noutro sítio o que não encontra no casal. Mas esta prudência é
acompanhada de um ensinamento radicalmente novo: “A esposa não
pode dispor do seu próprio corpo, mas sim o marido; do mesmo modo,
o marido não pode dispor do seu próprio corpo, mas sim a esposa19.”
Face à lei judaica em que a mulher pertencia ao homem, e não o homem
à mulher, Paulo afirma então que os laços conjugais são lugares maiores
onde, na dependência mútua, se experimenta a pertença de um ao outro.
Em resumo, no interior do casal uma perfeita simetria de direitos e de
deveres deve existir entre o homem e a mulher.
Seguem-se uma série de questões concretas. Paulo aborda-as,
fundamentando-se numa tese que dá colorido ao seu raciocínio: “...mas
cada um recebe de Deus o seu próprio carisma, um de uma maneira
(seja o casamento), outro de outra (seja o celibato)20.” Como Jesus,
Paulo considera, por isso, que o casamento e o celibato são um dom, um
carisma de Deus21. É a razão pela qual ele aconselha aos membros não
casados da comunidade a permanecerem no seu estado: “Aos solteiros e
às viúvas digo que é bom para eles ficarem como eu22. Mas, se não
podem guardar continência, casem-se; pois é melhor casar-se do que
ficar abrasado23.” Eis outro exemplo do realismo de Paulo que
aconselha àquele que não pode permanecer no celibato para não se
obstinar, como se o celibato representasse uma via superior. Quanto
àqueles que veriam no casamento, tal como é aconselhado aqui, um mal
18
Cf. 1 Cor 7,5.
Cf. 1 Cor 7,4.
20
Cf. 1 Cor 7,7.
21
Passamos aqui do plano natural, onde o pensamento judaico se situava ainda,
fazendo do celibato uma infelicidade e do casamento uma obrigação, no plano
vocacional.
22
Cf. 1 Cor 7,8.
23
Cf. 1 Cor 7,9.
19
119
menor para os cristãos que não têm a força de permanecerem na
continência e no celibato, que não esqueçam o que Paulo acaba de
escrever sobre o tema da diversidade dos dons de Deus!
O sinal de que Paulo não despreza, de forma alguma, o
casamento aparece precisamente no versículo seguinte onde se refere
ao ensinamento de Jesus: “Aos que já estão casados, ordeno, não eu,
mas o Senhor, que a mulher não se separe do marido; se, porém, está
separada, não se case de novo, ou então, reconcilie-se com o
marido; e o marido não repudie a sua mulher24.”Ao encontro
daqueles que esperavam mais liberdade em relação ao repúdio, Paulo
opõe aqui uma recusa categórica que afirma vir do Senhor.
Paralelamente, àqueles que se tinham separado do seu cônjuge ou o
tivessem desejado fazer – com efeito, Paulo fala principalmente para
as mulheres e é extremamente discreto em relação aos homens –,
propõe apenas duas soluções: ou permanecer sem se casar, ou
reconciliar-se. Isto é declarar implicitamente que os laços do
casamento são indissolúveis, e que só podem ser rompidos pela
morte. Neste caso, Paulo não vê, aliás, impedimento a que o cônjuge
sobrevivo se volte a casar. Simplesmente, como escreverá mais
adiante, pede ao segundo marido – pois trata-se sempre de mulheres!
– que “seja no Senhor”25.
Há, ainda, o caso dos casamentos onde um dos cônjuges se
converteu e recebeu o baptismo, enquanto o outro permaneceu não
crente. Na opinião de Paulo, se a mulher ou o marido não crente
consentem em continuar a viver com aquele que se tornou crente, o
cônjuge não pode repudiar aquele que permaneceu pagão. No caso
inverso, se o cônjuge não cristão recusa continuar a viver com a sua
esposa ou o seu esposo cristão, este último não deve fazer nada para
impedir a separação. É o famoso “privilégio Paulino26”:
“Se algum irmão tem uma esposa não crente e esta consente
em habitar com ele, não a repudie. E, se alguma mulher tem um
marido não crente e este consente em habitar com ela, não o repudie.
24
Cf. 1 Cor 7, 10-11.
Cf. 1 Cor 7, 39.
26
Cf. 1 Cor 7, 15-16.
25
120
Pois o marido não crente é santificado pela mulher, e a mulher não
crente é santificada pelo marido; de outro modo, os vossos filhos
seriam impuros, quando na realidade são santos. Mas se o não
crente quiser separar-se, que se separe, porque, em tais
circunstâncias, nem o irmão nem a irmã estão vinculados. Deus
chamou-vos para viverdes em paz. Com efeito, ó mulher, sabes se
podes salvar o teu marido? E tu, ó marido, sabes se podes salvar a
tua mulher27?”
Uma vez mais, Paulo faz, por isso, prova de um grande realismo.
Desconfiando de uma espiritualidade demasiado heróica, convida o
membro cristão do casal a respeitar a liberdade do cônjuge. Ao mesmo
tempo, ele não esquece que é “para viver em paz”28 que Deus nos
“chamou”. Em poucas palavras, a ninguém é pedido o impossível! Neste
contexto, uma dimensão do casamento aparece, contudo, pela primeira
vez: a santificação. Pela graça do baptismo, o casamento torna-se, com
efeito, lugar da santificação mútua dos esposos, e mesmo a santificação
do cônjuge não crente pelo cônjuge crente.
Segue-se uma exortação onde, por três vezes, Paulo
recomenda aos Coríntios para permanecerem no estado de vida que
tinham antes de se tornarem cristãos: “continue cada um a viver na
condição que o Senhor lhe atribuiu e em que29 se encontrava quando
foi chamado.” Situada no centro deste raciocínio, esta recomendação
visava aqueles que, no seguimento da sua adesão a Cristo, fossem
tentados, como já vimos, a mudar de vida para perseguirem um ideal
de vida mais ascético. À sua maneira, Paulo lembra que o essencial
da vida cristã não reside em escolhas extraordinárias, mas na maneira
de viver o melhor possível a sua situação presente. Quer se seja
27
Cf. 1Cor 7,12-16. Para compreender melhor esta observação de Paulo sobre os
filhos, é preciso não esquecer que a santidade tem aqui uma dimensão social. Ao
escrever “de outro modo, os vossos filhos seriam impuros, quando na realidade
são santos”, Paulo quer dizer que, graças ao seu laço com um membro de
Cristo, os filhos pertencem de uma certa maneira ao povo daqueles que foram
resgatados por Cristo.
28
Cf. 1 Cor 7,15.
29
Cf. 1 Cor 7,17.20.24.
121
casado ou não, é na nossa condição, livremente assumida, que
devemos esforçarmo-nos para realizar a nossa vocação.
A isto junta-se o facto de que a preocupação com a sua esposa
ou com o seu marido torna necessariamente o homem e a mulher
casados menos disponíveis que os celibatários. É o que Paulo
desenvolve seguidamente numa passagem onde se vê bem as suas
preferências: “Eu quisera que estivésseis livres de preocupações.
Quem não tem esposa, cuida das coisas do Senhor, como há-de
agradar ao Senhor. Mas aquele que tem esposa, cuida das coisas do
mundo, como há-de agradar à mulher e fica dividido. Também a
mulher não casada, tal como a virgem, cuida das coisas do Senhor,
para ser santa de corpo e de espírito. Mas a mulher casada cuida
das coisas do mundo, como há-de agradar ao marido30.”
Para Paulo, com efeito, o celibato só é desejável, porque permite
consagrar-se totalmente ao Senhor, a única coisa que importa.
Abordando depois a questão dos noivos, Paulo lembra o que
tinha afirmado anteriormente: “Permaneça cada um na condição em
que se encontrava, quando foi chamado31.” Uma vez mais, Paulo insiste
igualmente para que nenhuma limitação, nem exterior nem interior, se
exerça sobre aquele que se questiona sobre o que há-de fazer:
“Se alguém, cheio de vitalidade, receia faltar ao respeito à
sua noiva e pensa que as coisas devem seguir o seu curso, faça o que
lhe parecer melhor. Não peca; que se casem. Mas se alguém tomou a
firme resolução no seu coração, sem constrangimento e no pleno uso
da sua vontade, e resolve no seu foro íntimo respeitar a sua noiva,
fará bem. Portanto, aquele que desposa a sua noiva faz bem; e quem
a não desposa ainda faz melhor32.”
Posto de lado o facto de Paulo devolver cada um à sua
liberdade, posto de lado o facto também de ele frisar que não se peca
casando – mesmo se “quem não desposa ainda faz melhor”, pois não
30
1 Cor 7,32-34.
Cf. 1 Cor 7,20.
32
Cf. 1 Cor 7,36-38.
31
122
estará partilhado entre a preocupação dos assuntos do Senhor e os do
mundo –, observar-se-á o lugar determinante que ocupa o coração na
decisão de manter o celibato. É, sem dúvida, sinal que uma tal
resolução não pode ser motivada por simples considerações exteriores,
mas deve apoiar-se num discernimento para o qual o conhecimento de
si mesmo e a experiência espiritual devem concorrer.
Falta tratar a situação dos viúvos e das viúvas: Poderão eles
voltar a casar ou não? Nada o impede, cabendo a cada um discernir
onde o conduz a sua próprio vocação. Porém para Paulo – mas trata-se de uma opinião pessoal –, a viuvez é preferível a um novo
casamento: “A mulher permanece ligada ao seu marido enquanto ele
viver. Se, porém, o marido vier a falecer, fica livre para se casar com
quem quiser, contanto que seja no Senhor. Todavia, na minha
opinião, será mais feliz, se permanecer como está. Julgo que também
eu tenho o Espírito de Deus33.”
Que concluir desta leitura do capítulo 7 da 1ª Carta aos
Coríntios? Que não é legítimo, como foi feito frequentemente,
procurar aí em primeiro lugar um ensinamento sobre os valores
respectivos do casamento e do celibato. Efectivamente, como vimos,
o ensinamento de Paulo caracteriza-se essencialmente pela sabedoria
espiritual e pastoral, bem como pelo facto de, salvo indicação em
contrário, Paulo aconselhar a não mudar de estado de vida 34. Isto
explica-se pelo facto de, preocupado como estava em preparar os
seus leitores para o regresso de Cristo, Paulo só ter um objectivo:
convidar cada um a discernir o que “convinha mais” à sua vocação e
lhe permitiria estar ligado “ao Senhor, sem partilha”.
Compreendemos, então, que Paulo tenha podido considerar o
celibato como um bem a procurar e a perseguir. Porquê? Porque
aquele que o escolhia se encontrava livre das preocupações do mundo
ou das inquietações que são inerentes ao estado de casado, e que
podia, por esse facto, consagrar-se totalmente ao Senhor. A esta
questão de ordem prática juntava-se outra de ordem teológica: o
celibato escolhido significava a transcendência do Reino de Deus
33
34
Cf. 1 Cor 7,39-40.
Cf. 1 Cor 7,8.17.20.24.27.
123
relativamente ao mundo que passa35. No concreto, portanto, é ao
conjunto das situações humanas que Paulo estenderá esta perspectiva
escatológica: casados, viúvos, celibatários, escravos, homens livres,
ricos ou pobres, todos, porque sabem que este mundo virá a
desaparecer, devem habitá-lo, como se eles verdadeiramente não
fossem deste mundo. Cidadãos do mundo, eles são cidadãos do céu.
Enquanto o pensamento judaico fazia do casamento uma
obrigação e considerava o celibato como uma infelicidade, Paulo dava,
deste modo, pleno direito ao celibato, à virgindade, à continência. Mas
não tinha necessariamente uma visão negativa do casamento. Podemonos perguntar se foi o não tomar a sério a união conjugal que o
conduziu a defender o celibato, como uma consequência do que ele
tinha dito sobre a pertença mútua dos esposos e dos deveres
recíprocos. Pois se os esposos se pertencem mutuamente, como
poderão eles estar disponíveis para o serviço do Senhor?
Lamentaremos que Paulo não tenha dito de forma mais
explícita que, ao amar o seu cônjuge ou os seus filhos, os esposos
amavam o Senhor, e que nunca é por amar alguém que nos
desviamos do Senhor, mas por amá-Lo mal (um outro autor, o da
Carta aos Efésios, desenvolverá este aspecto). E se considerava que o
celibato era um ideal, Paulo sabia também que era um dom de Deus e
que teria sido um erro exigi-lo a todos. Eis o que mostra que não há
em Paulo desvalorização da sexualidade, mas um chamamento para
cada um discernir a sua verdadeira vocação, acolhendo a novidade da
urgência escatológica, com as suas inevitáveis rupturas.
A “submissão” das mulheres
Excelente exemplo da forma como a tradição paulina
prosseguiu a obra teológica e ética de Paulo, a carta aos Efésios
caracteriza-se por um laço que ele estabelece entre união conjugal e a
união de Cristo e da Igreja. A união do homem e da mulher no
35
Cf. 1 Cor 7,29-31.
124
casamento é aí apresentada, com efeito, como o sinal por excelência
da união de Cristo e da Igreja. Ao mesmo tempo, a unidade de amor
entre Cristo e a Igreja está presente como o modelo dos laços
conjugais, E, contudo, não há passagem na Bíblia que tenha suscitado
mais incompreensões que o famoso “Submetei-vos uns aos outros
(…): as mulheres aos seus maridos” que introduz esta passagem36:
«Submetei-vos uns aos outros, no respeito que tendes a
Cristo: as mulheres, aos seus maridos como ao Senhor, porque o
marido é a cabeça da mulher, como também Cristo é a cabeça da
Igreja – Ele, o salvador do Corpo. Ora, como a Igreja se submete a
Cristo, assim as mulheres, aos maridos, em tudo.
Maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo amou a
Igreja e Se entregou por ela, para a santificar, purificando-a, no
banho da água, pela palavra. Ele quis apresentá-la esplêndida, como
Igreja sem mancha nem ruga, nem coisa alguma semelhante, mas
santa e imaculada. Assim devem também os maridos amar as suas
próprias mulheres, como o seu próprio corpo. Quem ama a sua
mulher, ama-se a si mesmo. De facto, ninguém jamais odiou o seu
próprio corpo; pelo contrário, alimenta-o e cuida dele, como Cristo
faz à Igreja; porque nós somos membros do seu Corpo.
“Por isso, o homem deixará o pai e a mãe, unir-se-á à sua
mulher e serão os dois uma só carne”. Grande é este mistério, mas
eu interpreto-o em relação a Cristo e à Igreja. De qualquer modo,
também vós: cada um ame a sua mulher como a si mesmo; e a
mulher respeite o seu marido 37.»
Uma primeira constatação impõe-se: três versículos somente
consagrados aos deveres femininos, enquanto são sete os que dizem
respeito aos deveres dos homens. Esta desproporção causa espanto.
Significará que, mais que as mulheres, os maridos tinham
necessidade de serem instruídos sobre os seus deveres matrimoniais?
36
É verdade que a submissão a que a mulher é convidada não é mais que uma
especificação à submissão a que todos, na Igreja, são convidados, homens e
mulheres (“Submetei-vos uns aos outros, no respeito que tendes a Cristo” Ef
5,21).
37
Cf. Ef 5,21-33.
125
A questão merece ser colocada, mas uma coisa é certa: o autor desta
passagem parece primeiramente dirigir-se aos homens. É por isso
que, de uma forma astuciosa, ele começa por lembrar às mulheres
que devem submeter-se aos maridos. Porquê? Porque uma prédica
que tivesse proclamado o fim da submissão da mulher não teria sido
escutada pelos homens! Ao enunciar, em primeiro lugar, o que era
admitido por todos, o autor desta passagem sabia que não chocaria
ninguém e que o seu auditório, conquistado, escutaria a continuação.
Ora é aí que tudo muda: deixando de lado as prerrogativas
masculinas, o autor apenas se dirige aos maridos, centrando-se nas
suas obrigações muito mais exigentes, ao que parece, do que das suas
esposas:
“Maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo amou a
Igreja e Se entregou por ela, para a santificar, purificando-a, no
banho da água, pela palavra. Ele quis apresentá-la esplêndida, como
Igreja sem mancha nem ruga, nem coisa alguma semelhante, mas
santa e imaculada. Assim devem também os maridos amar as suas
próprias mulheres, como o seu próprio corpo. Quem ama sua
mulher, ama-se a si mesmo. De facto, ninguém jamais odiou o seu
próprio corpo; pelo contrário, alimenta-o e cuida dele, como Cristo
faz à Igreja; porque nós somos membros do seu corpo38.”
Eis onde reside a novidade do Evangelho: os maridos devem
entregar-se às suas mulheres como Cristo Se entregou pela
Igreja39.Se ele não contesta, à primeira vista, uma situação cultural
onde uma posição de autoridade era reconhecida ao homem, o autor
desta carta mostra que o primado do homem se torna em Cristo um
primado de amor, em oposição aos abusos a que a sua situação de
chefe conduzia os maridos. O amor, a exemplo de Cristo, torna-se
fundamento de exigência para os maridos se darem totalmente às
suas mulheres.
38
39
Ef 5, 25-28.
A imagem é bela, mas tem os seus limites: identificar sem “nuances” o marido a
Cristo e a mulher à Igreja poderia conduzir, efectivamente, a pedir à mulher que
adorasse o seu marido! É bem o sinal que se trata apenas de uma imagem. Da
mesma forma, o marido não é o salvador da sua mulher; só Cristo é o salvador.
126
Não sem uma nota de humor, mas com uma grande
pertinência, France Queré comenta, assim, esta cena: “Aqueles que
não tinham compreendido o vocabulário apostólico abriram os
olhos; o homem deve proteger a sua mulher, embelezá-la, torná-la
pura, visar o seu crescimento e a sua felicidade, imitar, numa
palavra, o modelo do perfeito Cristo. Tal empresa implica esquecer-se das ambições e dos prazeres pessoais, assim como a renúncia a si
próprio. O poder que conferem tais deveres leva a apagar-se o
poder, em conformidade com a cruz de Cristo. De igual modo, o puro
amor: ele ama não como a si mesmo, mas mais que a si mesmo. Os
deveres prevalecem sobre os direitos, e os dois são conduzidos pela
inquietação de amar. A palavra “submissão” dirigida à mulher
conserva espinhas vivas? Guardá-las-ia, se a mulher se submetesse a
um ser que não estivesse ele mesmo submetido. Mas não é assim. O
homem inclina-se diante duma lei imperiosa tornada mais leve pela
ternura. Assim, a submissão feminina torna-se uma liberdade – a de
amar como se é amado40.”
Ao afirmar que a relação entre o homem e a mulher já não pode
ser determinada pelos reflexos de superioridade, mas por uma atitude de
desapossamento e de abandono, ao convidar as mulheres a respeitarem
igualmente os seus maridos, o autor desta carta elevava o casamento ao
nível do sacramento do amor de Cristo pela Igreja. Ao mesmo tempo,
anunciava que a natureza real da união conjugal nos é revelada pelo acto
de oferenda a Cristo que, entregando-Se pela humanidade, manifestou a
profundidade e a grandeza do Amor de Deus. Mais do que ninguém, o
autor desta carta sabia, todavia, que nesta ordem nova instaurada por
Cristo cada membro do casal teria que vencer a sua própria tentação. Para
a mulher, convidada a respeitar o seu esposo, tratar-se-ia de não simular
uma falsa submissão e de não jogar com o seu marido, dominando-o na
realidade! Quanto ao marido, atingido nas suas prerrogativas masculinas,
ser-lhe-ia necessário aprender a desconfiar dos seus reflexos de domínio.
Uma tal transformação das relações humanas exigia a conversão de um e
de outro. Ela implicava um reconhecimento mútuo, que nenhum dos dois,
no seio do casal, procurasse alienar o outro ou confiscá-lo.
40
Fr. Quéré, « Sagesse et folie selon saint Paul » in Homme et femme,
l’insaisissable différence, dir. X. Lacroix, Cerf, Paris, 1993.
127
Num contexto cultural muito diferente do nosso, onde os
domínios respectivos do homem e da mulher eram muito mais definidos
do que o são hoje, era, pois, pedido às mulheres, dominadoras em casa,
para não abusarem do poder natural que lhes conferia a guarda da casa.
Aos homens, habituados aos costumes da cidade era-lhes pedido para
amar a mulher, unicamente a ela, aprendendo também a amar o mundo.
Como se adivinha através deste comentário de Fr. Quéré, estas
recomendações, de certo modo, não envelheceram:
«Quer seja comerciante, artesão, soldado, ou retórico, o homem
deve enfrentar a força das coisas ou dos outros e vencê-la. É-lhe
necessário confrontar-se com as necessidades exteriores com a espada, o
ancinho e a palavra, o cálculo, qualquer que seja a arte (...) Por isso,
quando volta para casa, não é preciso despojá-lo da sua identidade tão
duramente adquirida, honra forjada com as suas mãos no fundo tão
pouco seguras (...). Que a mulher reverencie o seu marido. O conselho é
de grande alcance. Em casa, submetida a uma jurisdição diferente da
cidade, todas as glórias empalidecem. Não há um grande homem para o
seu camareiro, diz uma frase célebre41. Na sua casa o guerreiro está sem
armas, torna-se modesto organismo incomodado pela fome, pelo sono e
pelo desejo. Cada um aparece no seu estado natural. A esposa, se for
necessário, presta-se ao desmantelamento do prestígio. Ela é a
companheira mais próxima; o seu príncipe, ela vê-o de pijama. Quão
fácil de humilhar, ou cedendo a um atrevido costume típico das
mulheres, ao que parece, lançar-lhe uns remoques barulhentos!»
O conselho de Paulo é este: conservai-lhe a dignidade, não
esqueçais na intimidade o papel de que a cidade o investiu. Não
piseis esta imagem que faz o homem e que, no entanto, não é ele,
pois trata-se unicamente de uma imagem. Respeitai a sua fragilidade,
lembrai-vos que o seu universo tem necessidade deste apoio (...).
A mulher vive na esfera familiar, exclusivamente. Esta esfera
é totalmente diferente. Amor, ternura, atenção, paciência são, aí,
regras normais. Ela não procura conquistar; ela mantém a vida. Ela
faz os seres, e não provém de um mundo concorrencial. Não há
adversários debaixo do seu tecto, mas seres bem-queridos que, pelo
41
Com o sentido do ditado português: “Santos de casa não fazem milagres”.
128
contrário, ela quer que cresçam, mesmo que seja pelo preço do seu
apagamento, e que modela segundo a regra interior do ser de cada
um... A sobrevivência ficaria comprometida se ela não assegurasse
vigilantemente e eficazmente os serviços que exige a obra familiar.
Mas educar não é dirigir. É preciso sempre um amor infinito, que faz
a melhor persuasão.
É, pois, pedido ao homem para não violentar este mundo de
sentimentos e de paciência, fazendo um uso desmesurado da sua
autoridade e da sua força. “Amar a sua mulher” quer dizer entrar no
mundo do amor, sem o estragar, sem lhe impor as maneiras rudes da
“ágora42”, às quais não sobreviveria o sentimento delicado.
Em casa, é bom abraçar a gratuidade, a dedicação, o dom sem
limite de si, com o pensamento constante da felicidade do outro. A
jurisdição política não tem aqui nenhuma pertinência. Família e cidade
formam duas categorias diversas. Homem e mulher encarnam--nas. A
sua intimidade pressupõe adaptações delicadas e recíprocas43.”
Reencontramos aqui o coração do pensamento de Paulo e da
sua teologia da alteridade. Pois se o autor desta passagem devolve o
marido e a mulher aos seus respectivos deveres, é para sublinhar a
necessária complementaridade das suas naturezas, dos seus mundos e
das suas funções. Contra o perigo dos nivelamentos igualitaristas, ele
reconhece efectivamente a especificidade do homem e da mulher, ao
mesmo tempo que afirma que o homem e a mulher não podem existir
independentemente um do outro e que da comunhão reencontrada
depende a harmonia do mundo.
Já na 1ª carta aos Coríntios, Paulo tinha afirmado: “Todavia nem
a mulher é separável do homem, nem o homem da mulher, diante do
Senhor. Pois se a mulher foi tirada do homem, o homem nasce da mulher
e tudo provém de Deus.”44 Ao afirmar que não há mulher sem homem,
nem homem sem mulher, Paulo reconhecia, por isso, que eles são um
para o outro e um do outro, melhor, eles adquiriram a sua unidade do
próprio Deus. Prolongando o pensamento de Paulo, o autor da Carta aos
Efésios afirma que, porque eles são membros do corpo de Cristo, o corpo
42
Por referência ao grego, no sentido de coração da cidade.
Ibidem.
44
Cf. 1 Cor 11,11-12.
43
129
do homem e da mulher são um só e mesmo corpo: “Assim devem também
os maridos amar as suas mulheres, como o seu próprio corpo. Quem ama
a sua mulher, ama-se a si mesmo. De facto, ninguém jamais odiou o seu
próprio corpo; pelo contrário, alimenta-o e cuida dele, como Cristo faz à
Igreja, porque nós somos membros do seu corpo.”
Membros do corpo de Cristo, o homem e a mulher só existem,
por isso, se postos em relação um com outro, no reconhecimento que
pertencem, diferentemente mas inseparavelmente, ao mesmo Corpo.
Tal é, sem dúvida, o clímax da revelação bíblica a propósito da
grandeza e profundidade das relações entre o homem e a mulher. Mas
não basta dizer que nem um nem outro podem pretender bastarem-se
a si próprios, visto que cada um tem necessidade do outro no qual se
completa. É preciso aceitar para isso entrar no próprio mistério da
morte e da ressurreição de Cristo. Realista, Paulo não tinha ilusões
sobre a condição dos homens e das mulheres, e também não concebia
a vida conjugal como um idílio espiritual onde nós escaparíamos ao
pecado e às invejas. Ele sabia que, mais do que noutro domínio da
existência, a necessidade de morrer para si mesmo, para viver em
Cristo e tomar parte na Sua Ressurreição, impõe-se no casamento; e
isto, em virtude do baptismo que ilumina todos os aspectos da vida
cristã45. Isso é sempre actual.
Uma aliança a reconstruir sem cessar
Com esta tela de fundo de uma comunhão reencontrada, e
sempre a reconstruir, aparece o duplo combate que atravessa o
conjunto dos livros bíblicos. Ele incide simultaneamente sobre uma
semelhança a acolher e uma diferença a reconhecer. Semelhantes, o
homem e a mulher são-no efectivamente porque, juntos, são imagem
e semelhança de Deus e membros do Corpo de Cristo. Diferentes,
eles são-no, porque encarnam diversamente esta identidade que lhes é
comum. Mas para acolher a semelhança e a diferença que os habita, é
preciso que o homem e a mulher ultrapassem a constante tentação do
domínio mútuo.
45
Cf. Rm.6,1-14.
130
Certos textos do Novo Testamento não serão infelizmente
estranhos a esta tentação e uma leitura tendenciosa dos relatos da
Criação conduzirá à ruptura da comunhão reencontrada entre o homem
e a mulher, ruptura que se caracteriza pela marginalização das
mulheres. Significativo deste tipo de leitura, há a passagem da 1ª carta
a Timóteo que é atribuída geralmente a um “discípulo”(!) de Paulo:
“A mulher receba a instrução em silêncio, com toda a
submissão. Não permito à mulher que ensine, nem que exerça
domínio sobre o homem, mas que se mantenha em silêncio. Porque
primeiro foi formado Adão, depois Eva. E não foi Adão que foi
seduzido, mas a mulher que, deixando-se seduzir, incorreu na
transgressão. Contudo, será salva pela sua maternidade, desde que
persevere na fé, no amor e na santidade, com recato46.”
Do relato da criação, o autor deste texto crê poder retirar a
conclusão da posição definitivamente secundária da mulher em
relação ao homem. Ao mesmo tempo, se é reconhecida como
secundária na ordem da criação, a mulher é apresentada como
primeira na ordem do pecado! Isto não está evidentemente de acordo
com os relatos do Génesis, aliás como também em relação ao
conjunto da obra de Paulo e, ainda menos, de Cristo. Ao longo da
história, será elaborada, todavia, uma antropologia que pretenderá
estabelecer a realidade de uma diferença constitutiva da natureza
entre o homem e a mulher. Insistir-se-á sobre o facto de o homem se
caracterizar pela sua capacidade de agir, de transformar, de fazer e a
mulher pela sua capacidade de amar, de acompanhar e de se
abandonar. Apresentar-se-á, assim, como revelado um modelo de
homem que assume quase todos os papéis de representação, de
46
Cf. 1 Tim 2, 11-15. Muito depressa, as comunidades adoptaram igualmente um
certo número de “códigos domésticos” herdados tanto do estoicismo como do
judaísmo helenístico. Os deveres dos habitantes de uma mesma casa estavam aí
consignados, de modo ternário, na submissão da mulher ao marido, das crianças
aos pais e dos escravos aos seus senhores (Col 3, 18-4,1; Ef 5, 21-6,9); 1 Ped
(2,13-3,7). Pode-se pensar que, fazendo da submissão da mulher ao homem –
mesmo se acrescentarmos “no Senhor” – um dos critérios da vida cristã, estes
códigos contribuirão para uma certa marginalização das mulheres no seio da vida
das comunidades cristãs.
131
autoridade e de poder; e evitar-se-á perguntar se esta diferenciação do
papel dos sexos não é tributo da sociedade que o tinha elaborado,
uma sociedade terrivelmente marcada pela predominância dos
homens. De uma situação histórica contingente, deduzir-se-á um
modelo divino, por isso, imóvel. Será depois imposto a situações ou a
épocas diferentes.
À luz das condições sociais, humanas e eclesiais actuais, este
modelo deve ser verificado. Mas, sem dúvida, será necessário
começar por favorecer o reconhecimento mútuo entre homens e
mulheres. Como? Educando simultaneamente a similitude e a
diferença; evitando que seja confundida demasiado depressa
dignidade comum e identidade comum, elaborando parcerias e
colaborações que respeitem a maneira como cada sexo encarna
diferentemente o universal do humano. Pode ser o lugar de muitas
alegrias e realizações a parceria homem-mulher, mas pode ser,
igualmente, o lugar de muitos sofrimentos e frustrações.
Uma palavra bíblica traduz melhor que qualquer outra o que
envolve de dificuldades o trabalho de reconhecimento: a Aliança.
Tal é, efectivamente, a vocação bíblica do homem e da mulher
chamados a concluir juntos uma aliança que seja realmente sinal da
Aliança divina.
B. QUESTÕES PARA A REFLEXÃO EM CASAL
E PARTILHA EM EQUIPA
Apresentamos seguidamente, um conjunto de questões para
ajudar a reflexão ao longo do mês e posterior debate em equipa:



Tem, Paulo, uma visão depreciativa da sexualidade?
Que lugar ocupam os casais e as mulheres nas suas cartas?
S. Paulo apresenta o baptismo como uma forma de pôr fim
aos privilégios e às diferenças?
132










Não terá a humanidade sexualizada qualquer coisa a
revelar-nos?
Qual e a reacção de Paulo perante os dois comportamentos
opostos da comunidade de Corinto no que respeita à vida
sexual?
O corpo: desprezível? Admirável? Em quê?
Se a sexualidade é uma simples função biológica, que pode
ela oferecer ao outro?
O lugar do homem e da mulher no casal: quem é de quem?
Donde vêm a vocação para o celibato e a vocação para o
matrimónio? Como vivê-las?
O amor do homem pela sua mulher – Amor de Cristo pela
Sua Igreja: Analogias? Diferenças?
A Carta aos Efésios, no pensamento de Paulo, apresenta a
mulher “escrava”, como tantas vezes se diz?
Comunhão do homem e da mulher: redutor para um ou para
o outro? Factor de crescimento?
Projecto de vida do casal: uma aliança a construir,
sacramento da Aliança. Debruçamo-nos sobre esse assunto
suficientemente?
C. SUGESTÕES PARA UM DEVER DE SE SENTAR
“Tudo me é permitido mas nem tudo é conveniente” (1 Co 6,12).
Façamos uma revisão da nossa vida sexual à luz destas
palavras de S. Paulo.
Somos escravos dos nossos desejos?
Que Regra de Vida tomámos para este assunto?
133
D. TEXTO PARA A ORAÇÃO EM EQUIPA
«Submetei-vos uns aos outros, no respeito que tendes a
Cristo. As mulheres sejam submissas aos seus maridos, como ao
Senhor, pois o marido é a cabeça da mulher, como Cristo é a Cabeça
da Igreja, Seu Corpo, do qual Ele é o Salvador. E, como a Igreja está
sujeita a Cristo, assim também as mulheres se devem submeter em
tudo aos seus maridos.
Maridos, amai as vossas mulheres como também Cristo amou
a Igreja, e por ela Se entregou, para a santificar, purificando-a no
baptismo da água pela palavra da vida, para a apresentar a Si
mesmo como Igreja gloriosa sem mancha nem ruga, nem qualquer
coisa semelhante, mas santa e imaculada.
Assim, os maridos devem amar as suas mulheres, como aos
seus próprios corpos. Aquele que ama a sua mulher, ama-se a si
mesmo. Porque ninguém jamais aborreceu a sua própria carne; pelo
contrário, nutre-a e cuida dela como também Cristo o faz à Sua
igreja, pois somos membros do Seu corpo. Como diz as Escrituras:
“Por isso o homem deixará pai e mãe, ligar-se-á à mulher e
passarão os dois a ser uma só carne”. É grande este mistério; digo,
porém, em relação a Cristo e à Igreja.
Pelo que vos diz respeito, ame também, cada um de vós, sua mulher
como a si mesmo, e a mulher respeite o seu marido.»
Ef 5,21-33
134
EPÍLOGO - SE CONHECESSES O DOM DE DEUS
8ª REUNIÃO: “A criança nasce graças aos dois e é então que as
suas carnes se tornam numa só.”
A. TEMA
Os limites deste livro não nos permitem prosseguir a nossa
busca para além da Bíblia. Outros o fizeram, denunciando
especialmente um certo número de preconceitos como aquele que
queria que o “cristianismo, que não tolera a sexualidade senão como
um mal menor necessário à reprodução, (tenha) circunscrito o corpo
desprezado num halo de vergonha e de culpabilidade1.” Nos seus
estudos, eles mostraram que os primeiros cristãos tinham tido
posições diversas sobre a sexualidade, e para a maioria, mais
moderadas do que se imagina habitualmente2. Eles mostraram
também que a chamada “moral judaico-cristã” tinha há muito tempo
sido, sobretudo, uma moral de tipo estóica ou, em certos aspectos, de
tipo platónica3. Mas é forçoso admiti-lo: porque tinha esquecido a sua
inspiração bíblica, a “moral cristã” nem sempre honrou a
Encarnação que é, todavia, o seu coração4.
Felizmente, durante o último século, o relançamento de estudos
bíblicos e a criação de movimentos de espiritualidade conjugal voltaram
a dar o seu lugar à sexualidade e permitiram ao cristianismo reencontrar
a sua seiva inicial.
Relendo a Bíblia, como o fizemos, apercebemo-nos, efectivamente, que os
textos bíblicos estavam perfeitamente de acordo com as ciências humanas que
consideram a sexualidade como uma dimensão fundamental do ser
1
G. Tordjam, «Réalités et problèmes de la vie sexuelle», Hachette, Paris,1981.
M. Rouche, «Christianisme et sexualité » in Alliance nº 9-10, Agosto 1980.
3
P. Brown, «Le renoncement de la chair», Gallimard, Paris, 1995.
4
Esta afirmação, que alguns julgarão, sem dúvida, demasiado severa, deve ser lida
à luz desta outra afirmação: «O cristianismo não é culpado de ter recusado a
sexualidade, mas talvez de ter, pelo contrário, procurado por todos os meios,
incluindo os repressivos, dar-lhe o seu sentido ético» (E. Fuchus, op. cit.).
2
135
humano. Basta reler os dois relatos da Criação para nos
convencermos disso mesmo 5: a sexualidade é uma componente
essencial do homem e da mulher criados por Deus. Ultrapassando a
mera função reprodutora, impregna o todo da pessoa humana e marca
a sua maneira de se situar na sociedade. Como todas as obras divinas,
a sexualidade, que não se deve sacralizar, é por isso boa; ela é uma
promessa de felicidade. Dom do amor de Deus, a sexualidade permite
igualmente ao homem e à mulher participarem no Seu poder criador.
Pelo seu dinamismo de abertura ao outro, de comunhão e de
fecundidade, ela contribui para a realização da pessoa e para a
construção do Reino de Deus.
Mas a esta constatação, fundamental, junta-se uma outra: a
sexualidade pode ser lugar de auto-satisfação ou de exploração do
outro. Tanto por causa do prazer que provoca em si e encerra no
absoluto do instante, como devido à vontade de domínio que,
subtilmente, pode servir-se do sexo para dominar o outro ou
apropriar-se dele6, a sexualidade é, por isso, uma realidade ambígua,
complexa e conflitual. Isto não quer dizer que em si ela seja má – e
ainda menos pecaminosa –, mas a sexualidade reflecte a realidade do
ser humano, com as suas sombras e as suas luzes. Mais que qualquer
outro domínio da existência humana, ela reporta o homem e a mulher
às suas histórias mais profundas; ela é um mistério que é preciso
aprender a decifrar e a controlar.
Sobre este ponto, a Bíblia coloca, de sobreaviso, os seus leitores
contra uma desvalorização da sexualidade que poderia levar a uma
banalização excessiva da sua concretização. Pois o sexo não é uma
“coisa” que se possa utilizar impunemente. Implica realizações pessoais
e colectivas demasiado importantes para que não se esqueça igualmente
a violência que contém. Também, muito antes de Freud, os homens e as
mulheres do Antigo Testamento tinham compreendido que as pulsões
sexuais devem ser reguladas por interdições e preceitos éticos. Porque
sabiam que, sem isso, não há sã regulação da vida sexual, tinham
elaborado leis que garantiam a coesão do Povo de Deus ao mesmo
tempo que lembravam aos seus membros que só a referência a Deus
5
6
Textos aos quais o próprio Jesus faz alusão (Mt 19, 4-6).
Cf. 2 Sm 13,1-22.
136
pode preencher a falta inscrita no coração de cada ser humano. É o
famoso: “Sede santos, porque Eu, o Senhor vosso Deus, sou santo7.”
Neste contexto, os homens e as mulheres da Bíblia nunca
cessarão de afirmar também que o corpo do ser humano é santo.
Devido a durante demasiado tempo o ter considerado um troféu ou
um limite que era preciso ultrapassar, a reflexão comum – e não
apenas a cristã – só há pouco tempo reconheceu a dignidade do corpo
humano. Ora, mais do que qualquer outra realidade, o corpo do
homem revela o carácter único do ser humano ao mesmo tempo que
permite o encontro do outro até ao dom da vida8.
Particularmente bela é uma expressão que acompanha a
interdição das relações sexuais com os parentes próximos: “Nenhum de
vós se aproximará de uma parente próxima, para lhe descobrir a
nudez9.” Porquê esta interdição? Porque “a nudez do corpo é a sua
glória e, a este título, não pode ser exibida, mas apenas revelada10.”
Aparece, assim, a importância do respeito pelo corpo e a necessidade de
educar para um certo pudor, não por ser preciso ter “vergonha” do seu
corpo ou do corpo do outro – é mesmo o contrário – mas, porque a
nudez revela a grandeza da pessoa humana, a profundidade espiritual da
pessoa humana e a profundidade espiritual da sexualidade.
Não é menos verdade que o corpo tem a sua vida própria e as
suas pulsões; e o seu surgimento pode desconcertar. Isso não impedirá o
apóstolo Paulo de declarar que o corpo está habitado pela presença de
Deus e que não pode ser desprezado ou utilizado de qualquer forma,
visto que está prometido à Ressurreição11. Anteriormente, durante o
ministério público, Jesus tinha lembrado que não é o corpo a fonte do
pecado, mas o coração do homem, isto é, o ser humano no que tem de
mais íntimo12.
7
Cf. Lv 19,2.
É por isso que não é legítimo modificar radicalmente a natureza sexual de alguém.
Para a Bíblia, o ser humano não é proprietário do seu corpo e da sua existência
mas somente “administrador”.
9
Cf. Lv 18, 6ss.
10
P.Beauchamp, «D’une montagne à l’autre». La loi de Dieu, Seuil, Paris, 1999.
11
Cf. 1 Cor 6,13-20.
12
Cf. Mt 15,11. 17-19.
8
137
Talvez o tenhamos esquecido, mas na história do cristianismo
desconfiar-se-á frequentemente do corpo e, muito especialmente, do
prazer sexual. Na Bíblia, o Cântico dos Cânticos exalta, porém, a
dimensão erótica do amor, indo de encontro assim à antropologia
contemporânea que reconhece que o prazer é uma das condições para
a realização humana. Vivido num quadro de amor, o prazer faz
efectivamente do diálogo dos corpos uma das formas mais
conseguidas do diálogo amoroso, posto que é no estreitamento e no
dom dos corpos que se completa a entrega total de si sem a qual não
pode haver abertura à vida13.
Mas sabemos bem que o prazer é ambíguo e que pode
reactivar as pulsões mais arcaicas. Sem ser exaltado por si próprio,
ainda menos explorado, o prazer sexual deve, pois, ser colocado no
seu justo lugar. Para isso, duas derivas a evitar: a da recusa de
qualquer tipo de prazer e a da busca desenfreada do prazer. A
primeira causará espanto talvez, mas parte de uma evidência: o prazer
obriga cada um a reconhecer a sua dependência, visto que ter prazer é
perder o seu domínio e é ter prazer pelo outro. Por este facto, a recusa
do prazer pode ser sinal da recusa de depender do outro ou de
renunciar ao seu próprio poder. No caso inverso, porque procura um
sentimento efémero, mas real, de plenitude, o prazer pode dar a
impressão de escapar à condição humana. O perigo de querer
preencher a falta, acumulando prazeres e reduzindo o parceiro ao
estado de objecto ou de instrumento de gozo do prazer, pode, então,
ser grande.
É o contrário do Cântico dos Cânticos e do seu magnífico
ensinamento sobre a solidão e a distância que são as dimensões
essenciais do amor.
Como não abordar, finalmente, o tema da procriação, tanto
mais que mais de vinte séculos de história cristã privilegiaram de
forma evidente, é verdade, a dimensão procriadora da sexualidade!
Ora, ainda que reconheçam a importância da procriação, os relatos
bíblicos não esquecem nunca a comunhão que funda a vida do casal e
13
Lembremo-nos aqui daquela bela observação de Rashi: «A criança nasce graças
aos dois e é então que as suas carnes se tornam numa só», citado por J.Eisenberg,
Et Dieu créa Ève, op. cit., 1979.
138
dá plenamente sentido ao dom da vida. Assim, embora, no primeiro
relato da Criação, a sexualidade pudesse parecer objectivada só para
a procriação14, no segundo relato – o mais antigo – só aparece a
comunhão a construir entre o homem e a mulher, com as suas
rupturas e separações daí decorrentes15.
De forma geral, o conjunto dos textos bíblicos é atravessado
por esta dupla dimensão da sexualidade. Desenha-se mesmo uma
tensão entre uma corrente que elogia a fecundidade ou considera a
esterilidade como uma maldição divina, e uma corrente que se abrirá
progressivamente a um outro tipo de fecundidade que não a
posteridade carnal, reconhecendo que não é o número de filhos que
conta, mas a fidelidade à promessa de Deus. Serão tanto mais
honrados os valores de diálogo, de comunhão e amor que
fundamentam o exercício da sexualidade.
Lembremo-nos igualmente de quantos casais são dados como
exemplo ao longo de toda a Bíblia. Ora, não é a sua fecundidade que é,
em primeiro lugar, evidenciada, mas o seu amor. Estes casais têm nome:
Isaac e Rebeca, Jacob e Raquel, Elcana e Ana. Aliás, há a expressão
“conhecer a sua mulher” que, na Bíblia, designa as relações conjugais,
com toda a riqueza do verbo “conhecer”, na língua hebraica16.
Este uso é tanto mais significativo que, quando um patriarca
se uniu à serva da sua mulher, para ter descendência, os textos
bíblicos não empregam “conheceu” a sua serva, mas que “foi” em
direcção à sua serva. Reconhece-se, assim, a diferença de densidade e
de riqueza que existe entre um uso da sexualidade cuja única
finalidade é a procriação e um uso da sexualidade que se inscreve
numa comunhão de amor. Enfim, quando os profetas Oseias,
Jeremias, Ezequiel e Isaías comparam a atitude de Deus em relação a
Israel com o amor conjugal, nunca é a dimensão procriadora do amor
que é, em primeiro lugar, sublinhada, mas antes a sua dimensão de
intimidade, de ternura, de compaixão e de indefectibilidade.
Não é desprezar a procriação, mas admitir que as fecundidades
do amor são mais vastas que as do único dom da vida; principalmente
14
Cf. Gn 1,28.
Cf. Gn 2,18.23-24.
16
Cf. Gn 4,1.17.25,etc.
15
139
como é, por vezes, o caso hoje, quando um filho se torna um valor de
refúgio do casal ou o meio de ocultar os seus problemas. Sabe-se, aliás,
quanto pode ser pesado, até insuportável, para uma criança ou
adolescente, ser aquele que assegura a felicidade dos seus pais! Ora a
Bíblia não cessa de o repetir, dar a vida a uma criança é aceitar que ele
escapa, cedo ou tarde, de uma maneira ou outra, ao desejo que se possa
sentir por ele ao concebê-lo.
Neste domínio, como nos outros domínios da vida, ecoam as
palavras de Cristo e o seu convite para não absolutizar nenhum laço
afectivo, conjugal ou de amizade. Já o vimos, porém, ao pedir que
todos os laços afectivos sejam examinados à luz do Reino de Deus,
como os desejos ou as recusas de filhos17. Jesus não negava a
importância essencial da família, como também não relativizava o
que tinha ensinado sobre o carácter indissolúvel dos laços do
casamento. Mas, ao ensinar que a família é segunda – o que não quer
dizer secundária – em relação às outras exigências do Reino de Deus,
Jesus punha de sobreaviso os seus compatriotas contra o perigo do
isolamento ou do egoísmo que ameaça toda a família humana.
Através da Sua escolha do celibato, não por menosprezo da
sexualidade, mas por fidelidade à Sua missão, Jesus lembrava, aliás,
que, antes de ser esposo ou esposa, o ser humano se define em
primeiro lugar como filho de Deus e irmão universal. É a razão pela
qual toda a família humana deve permanecer aberta à família
universal dos filhos de Deus que ela prefigura no que tem de mais
belo; e isto, apesar dos seus limites objectivos.
Tocamos aqui um dos aspectos mais originais do pensamento
bíblico, quanto mais não seja pela complementaridade que aí
encontramos entre casamento e celibato, complementaridade que
apenas se compreende porque a sexualidade é fundamentalmente
vista na Bíblia como uma das realidades maiores da existência onde,
na sua similitude e na sua diferença, o homem e a mulher se
reconhecem “imagem e semelhança de Deus”. Sinal visível de que a
pessoa humana é constitutivamente um ser em relação, a sexualidade
17
Certos controlos totais da fecundidade podem esconder, por exemplo, uma
vontade de ser o dono da sua existência e uma incapacidade de acolher a parte
desconhecida que acompanha necessariamente o filho a quem daremos a vida.
140
é, com efeito, um dos lugares onde se manifesta mais a identidade do
homem e da mulher, criados à imagem d’Aquele que, no Seu ser
trinitário, é unicamente Amor, pois Ele é Relação. Mas, falando no
sentido estrito, não é o casal que é a imagem de Deus, pois isso faria
dos celibatários seres humanos “incompletos”, mas a pessoa humana,
enquanto ser sexuado e ser em relação.
Todavia, descobrindo que são chamados menos para se
completarem do que para se revelarem um pelo outro, o homem e a
mulher que se amam tornam-se um para o outro e um pelo outro
ocasião de se abrirem ao Amor que os ultrapassa. Por este facto, se ele
permite compreender quem é Deus, o amor humano permite também
abrir-se à presença da sexualidade e viver dela. Vivida na fidelidade e
indissolubilidade dos laços conjugais que revelam a verdadeira
natureza do Amor de Deus, a sexualidade, longe de ser um relicário da
animalidade, torna-se, então, uma verdadeira experiência espiritual.
Ainda que isso não seja sempre compreendido, o celibato,
também ele, pode revelar um dos aspectos essenciais do Amor de
Deus. Diversamente do amor conjugal, manifesta efectivamente a
universalidade do Amor de Deus. Pois Deus ama todos os humanos, de
todas as raças, culturas e épocas ao mesmo tempo que ama cada um
com um amor particular e único. Ora, se os laços do casamento, pela
sua unicidade e singularidade, traduzem o carácter único e particular
do Amor de Deus, o celibato escolhido por Deus manifesta que este
Amor é para todos os seres humanos, sem excepção. Juntos, casais e
religiosos, testemunham por isso o Amor de Deus, tal como Ele Se
revelou em Jesus Cristo, na sua dupla dimensão singular e universal.
Do amor conjugal, os religiosos recebem um convite a amar
de maneira concreta e total; daqueles que por vocação escolheram o
celibato, os casais recebem a exigência de se abrirem aos outros, não
fechando nunca as portas aos mais pobres ou não se desligando das
realidades sociais, económicas e políticas do mundo. Pois se o perigo,
para os casais, é o de se fecharem nos limites de um amor exclusivo,
vivido, por vezes mesmo, como um refúgio, o perigo, para os
religiosos, é o de verem o seu amor “dissolver-se numa filantropia
sem rosto que não reconhece ninguém18”.
18
M.Rondet, Le Célibat évangélique dans un monde mixte, op. cit.
141
Falta ainda referir, e é um dos grandes ensinamentos do Novo
Testamento, que, por mais bela e importante que seja, a sexualidade
não é o todo de uma pessoa humana. Mais exactamente, a maneira
como vivemos a nossa sexualidade é destinada a desaparecer. Por
isso, o celibato é também um sinal. Não, por desprezo da
sexualidade, mas como anúncio do mundo que há-de vir onde, uma
vez ressuscitados, amaremos em Deus e como Deus, isto é, de forma
simultaneamente única e universal.
Para já – e é por isso que a Bíblia não se apresenta como um
“tratado” de sexualidade – cabe a cada um tentar vivê-la o melhor
possível. Pois a sexualidade é uma realidade em devir, capaz de
regressão, de fixação ou de progressão; e a sua regulação é uma
tarefa de todos os dias.
Se acreditarmos na Bíblia, esta tarefa inscreve-se ao mesmo
tempo sobre um fundo de pecado e da necessária separação ou
“renúncia”. É, com efeito, sinal do pecado, a sexualidade que é
desviada dos seus fins, seja porque o amor permanece no estádio
egoísta, rebaixando o parceiro a uma função – a de um simples
instrumento de prazer – seja porque não há lugar para qualquer
fecundidade de nenhum tipo. No sentido inverso, é fonte de
desenvolvimento a sexualidade que recusa instalar-se, num mundo
em fusão, indiferenciado ou que ultrapasse o narcisismo que impede
reconhecer o desejo do outro. Enfim, é construtivo o amor que se
constrói na duração, através dos insucessos e dos sucessos, pois, é
preciso lembrá-lo, na Bíblia o que torna o amor do homem e da
mulher sinal do Amor de Deus não é a sua constância no sucesso,
mas a sua permanência, apesar da infidelidade de um dos parceiros
ou das dificuldades inerentes à vida.
O que quer que seja, Deus toma-nos aqui onde estamos, tal
como somos. Com o poder da Sua graça, nós devemos ter em conta,
de forma lúcida, e por vezes corajosa, as nossas riquezas, os nossos
limites, as nossas inclinações ou as nossas estruturas afectivas. Só a
tomada a sério desta realidade permite, com efeito, o encontro do
outro e o despertar de um amor verdadeiro. Só a tomada a sério da
sua própria hereditariedade, da sua própria história, da sua própria
educação e das escolhas que se fizeram naquele ou noutro momento
da sua vida, permite igualmente aceder a uma verdadeira liberdade.
142
Nesta condição, a sexualidade pode tornar-se um caminho de
salvação – para não dizer um “itinerário pascal” – onde aprendemos
sem cessar a converter o seu desejo e a ternura; o desejo, porque ele
tende a fazer do outro o meio de satisfazer as suas necessidades, a
ternura, porque ela pode tornar-se asfixiante e revelar-se tão
possessiva e egoísta como o desejo. Lembremo-nos então que amar,
para Cristo, é mesmo, ao amar-se a si mesmo, morrer para si e viver
para e pelo acolhimento do outro.
Enfim, para cada um, a Boa Nova trazida por Jesus Cristo é
sempre a mesma: no coração dos seus limites, dos seus fracassos, das
suas disfunções e das suas dificuldades em amar, há sempre lugar
para a misericórdia e para o Amor de Deus. É por isso que o
Evangelho, longe de encerrar na desesperança, abre a cada um o
futuro. Este futuro comporta um só e único mandamento: “Amarás
ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma,
com todas as tuas forças e com todo o teu entendimento, e ao teu
próximo como a ti mesmo19”, mas este mandamento é precedido pelo
dom do Amor de Deus sem o qual nós não podemos amar: “Nós
amamos, porque Ele nos amou primeiro20.»
Assim, como aquando do encontro entre Jesus e a Samaritana,
é no centro da história que encontramos esta palavra eterna: “Se
conhecesses o dom de Deus...21”.
B. QUESTÕES PARA A REFLEXÃO EM CASAL
E PARTILHA EM EQUIPA
Seria interessante retomar, agora, as respostas guardadas no
princípio do ano, na introdução do tema, assim como a sua
conclusão.
A sexualidade é um factor importante para o ser humano? Uma
oportunidade de se relacionar com o outro, sem dificuldades
nem perigos?
19
Cf. Lc 10,27.
Cf. 1 Jo 4,19; cf 4,10.
21
Cf. Jo 4, 10.
20
143
A fecundidade resume-se somente à procriação?
Que nos dizem sobre isso os casais Isaac e Rebeca, Jacob e
Raquel, Elcana e Ana? Que significado tem a expressão bíblica
“conhecer a sua mulher” e o “ir” em direcção à sua serva?
É o casal a única imagem de Deus-Relação? Não é a pessoa,
ela mesma, um ser em relação?
“Amar, para Cristo, é amar-se a si mesmo, morrer para si e viver
para e por acolher o outro”…Pierre Debergé,


Casais, que esperais vós dos celibatários?
Celibatários, que esperais vós dos casais?
C. SUGESTÕES PARA UM DEVER DE SE SENTAR
Analisemos o nosso ano à luz deste tema:
Que ensinamentos e que riquezas tiramos deste aprofundamento
da Palavra?
Que descobrimos ou compreendemos melhor um do outro?
Que regra de vida adoptar para os próximos meses?
Porque não ler e viver em casal “Homem e mulher Ele os
criou”, excelente tema das Equipas de Nossa Senhora?
144
D. TEXTO PARA A ORAÇÃO EM EQUIPA
«Tendo o Senhor sabido que os fariseus ouviram dizer que
Ele fazia e baptizava mais discípulos do que João – se bem que Jesus
não baptizava, mas sim os Seus discípulos -, deixou a Judeia e partiu
de novo para a Galileia.
Tinha de passar por Samaria. Chegou, pois, a uma cidade de
Samaria chamada Sicar, perto das terras que Jacob tinha dado a seu
filho José, onde estava o poço de Jacob. Fatigado da caminhada,
Jesus sentou-Se, à vontade, à beira do poço. Era por volta da hora
sexta. Chegou uma mulher da Samaria para tirar água e Jesus disse-lhe: “Dá-Me de beber”, pois os Seus discípulos tinham ido à cidade
comprar alimentos. A samaritana respondeu-Lhe: “Como é que Tu,
sendo judeu, me pedes de beber a mim, que sou uma mulher
samaritana?” – É que os judeus não se dão com os samaritanos.
Jesus respondeu-lhe: “Se conhecesses o dom de Deus e Quem é
Aquele que te diz: „Dá-me de beber‟ tu é que Lhe terias pedido, e Ele
dar-te-ia uma água viva”. “Senhor, disse ela, nem sequer tens um
balde e o poço é fundo; de onde Te vem, pois, essa água viva? Serás
Tu maior que o nosso pai Jacob, que nos deu este poço do qual ele
mesmo bebeu, assim como os seus filhos e os seus rebanhos”? Jesus
retorquiu: “Quem bebe desta água voltará a ter sede; mas quem
beber da água que Eu lhe der jamais terá sede, porque a água que
Eu lhe der tornar-se-á nele uma nascente de água a jorrar para a
vida eterna”. “Senhor, suplicou a mulher, dá-me essa água, para
que eu não sinta mais sede e não tenha de vir aqui tirá-la”.
Jesus disse-lhe: “Vai chamar o teu marido e volta cá”. “Não
tenho marido”, respondeu a mulher. Jesus replicou: “Disseste bem:
„Não tenho marido‟, pois tiveste cinco maridos e aquele que agora
tens não é teu; quanto a isso falaste verdade”. Disse-lhe a mulher:
“Senhor, vejo que és profeta. Os nossos pais adoraram neste monte e
vós dizeis que é em Jerusalém que se deve adorar”. Jesus disse-lhe:
“Acredita-Me, mulher, vai chegar a hora em que nem neste monte,
nem em Jerusalém, adorareis o Pai. Vós adorais o que não
conheceis, nós adoramos o que conhecemos, porque a salvação vem
145
dos judeus. Mas vai chegar a hora e já chegou, em que os
verdadeiros adoradores hão-de adorar o Pai em espírito e verdade,
pois são esses os adoradores que o Pai deseja. Deus é espírito, e os
Seus adoradores em espírito e verdade é que O devem adorar”.
A mulher retorquiu: “Sei que o Messias (que se chama
Cristo) está para vir, e que, quando vier, tudo nos dará a conhecer”.
Jesus disse-lhe: “Sou Eu, que falo contigo””. Nisto, chegaram os
discípulos e ficaram admirados por Ele estar a falar com uma
mulher; nenhum deles, porém, Lhe disse: “Que pretendes?” ou
“Porque falas com ela?”
A mulher, então, deixando a bilha foi à cidade e disse aos homens:
“Vinde ver um homem que me disse tudo quanto fiz. Não será Ele o
Messias?” Eles saíram da cidade e foram ter com Jesus.
Entretanto, os discípulos insistiram com Ele, dizendo: “Come,
Rabbi”. Mas Ele respondeu-lhes: “Tenho um alimento para comer,
que vós não conheceis”. Os discípulos diziam entre si: “Acaso Lhe
trouxe alguém de comer?” Disse-lhe Jesus: “O Meu alimento é fazer
a vontade d‟Aquele que Me enviou e realizar a Sua obra.
Não dizeis vós que dentro de quatro meses chegará o tempo
da ceifa? Pois bem, Eu digo-vos: Erguei os olhos e vede: Os campos
estão brancos para a ceifa. O ceifeiro já recebe o salário e recolhe o
fruto para a vida eterna, de modo que o semeador se alegra
juntamente com o ceifeiro. Pois nisto se verifica o ditado: Um é o
que semeia e outro é o que ceifa. Enviei-vos a ceifar o que vós não
trabalhastes; outros trabalharam e vós aproveitais-vos do seu
trabalho”.
Muitos samaritanos daquela cidade acreditaram n‟Ele por
causa da palavra da mulher que testemunhava: “Ele disse-me tudo o
que eu fiz”. Por isso, quando foram ter com Jesus pediram-lhe que
ficasse com eles; e ficou lá dois dias. Ao ouvi-Lo, muitos mais
acreditaram; e diziam à mulher: “Já não é por causa das tuas
palavras, que acreditamos; nós próprios ouvimos e sabemos que Ele
é realmente o Salvador do mundo».
Jo 4,1-42
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