Heranças do Jornalismo Gonzo: aproximações entre jornalismo e

Transcrição

Heranças do Jornalismo Gonzo: aproximações entre jornalismo e
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE COMUNICAÇÃO E ARTES
HERANÇAS DO JORNALISMO GONZO:
aproximações entre jornalismo e literatura na imprensa
contemporânea
Angélica Maia Amâncio
Gabriel Felipe Martins
Patrícia Vilela Pires
Rafaela Leal de Freitas
Belo Horizonte
2008
Angélica Maia Amâncio
Gabriel Felipe Martins
Patrícia Vilela Pires
Rafaela Leal de Freitas
HERANÇAS DO JORNALISMO
GONZO:
aproximações entre jornalismo e literatura na
imprensa contemporânea
Projeto experimental apresentado ao Centro
de Pesquisas em Comunicação (Cepec) – da
Faculdade de Comunicação de Artes da
Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, como requisito parcial para obtenção
do título de Bacharel em Jornalismo.
Orientador: Mozahir Salomão Bruck
Belo Horizonte
2008
Angélica Maia Amâncio
Gabriel Felipe Martins
Patrícia Vilela Pires
Rafaela Leal de Freitas
HERANÇAS DO JORNALISMO GONZO: aproximações entre jornalismo e
literatura na imprensa contemporânea
Projeto experimental apresentado ao Centro de Pesquisas em Comunicação (Cepec) – da
Faculdade de Comunicação de Artes da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,
como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Jornalismo.
_________________________________________________________
Mozahir Salomão Bruck (orientador) – PUC-MG
_________________________________________________________
José Francisco Braga – PUC-MG
________________________________________________________
Márcio de Vasconcellos Serelle – PUC-MG
A Hunter S. Thompson e a todos aqueles que acreditam
que um outro jornalismo é possível
AGRADECIMENTOS
Ao orientador Mozahir Salomão Bruck por acreditar desde o início na viabilidade e na
pertinência do nosso trabalho, pelas contribuições e pelas balinhas coloridas oferecidas
como café da manhã das quintas-feiras.
E a todos que, de alguma forma, contribuíram para a realização deste projeto
experimental, o nosso muito obrigado.
RESUMO
Este projeto experimental tem como objetivo identificar manifestações atuais que se
aproximam das propostas do Jornalismo Gonzo, idealizado pelo norte-americano Hunter S.
Thompson durante as décadas de 60 e 70 do século passado.
A partir do histórico e da busca dos conceitos acerca do jornalismo literário, de como a
literatura e as técnicas jornalísticas se inter-relacionam, e o ápice do New Journalism na
década de 60, o projeto irá discutir o papel da narrativa jornalística baseada nesta
manifestação e buscar identificar os herdeiros do Jornalismo Gonzo no jornalismo impresso
contemporâneo no Brasil.
Palavras-chave: Narrativas - Jornalismo Literário - Jornalismo Gonzo
ABSTRACT
This experimental project attempts to identify actual demonstrations which relate with the
main purposes of Gonzo Journalism, idealized by north American journalist Hunter S.
Thompson during the 60’s and 70’s of the last century.
Throughout chronological and concept research around literary journalism, and how
literature and reporting techniques are connected, and the New Journalism in its peak
during the 60s, the project will discuss the role of journalistic storytelling based on this
manifestation and observe the heirs of Gonzo Journalism in the contemporary Brazilian
printed media.
Key-words: Storytelling – Literary Journalism - Gonzo Journalism
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
8
1 – LITERATURA E JORNALISMO: PRÁTICAS PERMEÁVEIS
11
1.1 – A presença do literato no jornalismo
1.2 – A ficcionalização do real
14
17
1.3 – Do jornalismo literário ao New Journalism
18
1.4 - Manifestações pára -jornalísticas na mídia impressa brasileira 21
2 – O NEW JOURNALISM
24
2.1 – O nascimento do New Journalism
26
2.2 – Crítica e crise da verdade
28
2.3 – Características do New Journalism
32
2.4 – Principais autores do New Journalism
34
2.5 – New Journalism no Brasil
36
2.6 – Jornalismo Gonzo: O New Journalism levado
ao extremo
40
3- JORNALISMO GONZO
43
3.1 – O Jornalismo Gonzo e o contexto contracultural
44
3.2 – Hunter Thompson: o pai do Gonzo e agente da
contracultura norte-americana
47
3.3 – Características do Jornalismo Gonzo
49
3.4 – Limites entre Jornalismo Gonzo e o jornalismo
convencional
3.4.1 – Aproximações e diferenças
54
56
3.5 – Heranças e herdeiros do Jornalismo Gonzo na
mídia impressa brasileira
57
3.5.1 – Arthur Veríssimo: o Hunter Thompson
brasileiro?
58
4- O ESTILO MAGAZINE
61
4.1 – A revista Trip
64
4.2 – A revista piauí
66
4.3 – A revista Rolling Stone
68
4.4 – Metodologia para as análises
70
5- ANÁLISE DAS MATÉRIAS
73
5.1 – Participação ativa do repórter no acontecimento
73
5.2 – Presença do repórter na narrativa
76
5.3 – Indícios de ficcionalização
79
CONCLUSÃO
81
REFERÊNCIAS
83
INTRODUÇÃO
Durante a década de 60 do século passado, nas redações de jornais e revistas dos
Estados Unidos, o mito da objetividade jornalística era posto em xeque por repórteres
norte-americanos que lançaram mão de textos bem elaborados, longos e ricos em
descrição. Nascia, naquele momento, o chamado New Journalism, uma forma
diferenciada de se fazer jornalismo a partir de textos de cunho literário.
Tom Wolfe, Gay Talese e Truman Capote são alguns exemplos de repórteres
que se aventuraram no New Journalism e se tornaram referência neste estilo de
jornalismo. Subvertendo ainda mais a prática jornalística, Hunter Thompson, repórter
norte-americano, incorpora em seus textos os relatos escritos em primeira pessoa,
misturando ficção e realidade. A peculiaridade da “experiência” de Thompson está na
mudança de lugar do repórter, que, muitas vezes, se torna o personagem principal de sua
própria matéria.
Thompson inaugurava o Jornalismo Gonzo, objeto de estudo deste projeto
experimental. Ao contrário do New Journalism, o Jornalismo Gonzo foi um estilo
praticado de forma solitária por Thompson, visto que, de acordo com algumas
literaturas sobre o assunto, o inventor tenha sido, efetivamente, o único representante.
Entretanto, nada impediu que houvesse manifestações que se aproximassem –
em maior ou menor grau – do Jornalismo Gonzo em outros veículos. No Brasil, as
“manifestações gonzolísticas” estão freqüentes em sites e blogs, como foi o caso da
Irmandade Raoul Duke, uma publicação mensal online voltada para o Jornalismo
Gonzo, criada em 2002 por um grupo de amigos.
O grupo percebeu que, nos últimos meses no Brasil, foram publicadas muitas
matérias que apresentam um viés mais literário. Foram lançadas, recentemente, as
revistas piauí (grafada em letra minúscula) e a versão brasileira da Rolling Stone,
publicações estas que permitem tal estrutura narrativa.
Com a presença de matérias escritas de uma forma diferenciada, esta monografia
tem como objetivo identificar “herdeiros” de Hunter Thompson na imprensa brasileira e
colocar em questão as características básicas do Jornalismo Gonzo dentro dessa nova
tendência no jornalismo literário praticado nos dias de hoje. Para tanto, serão analisadas
seis reportagens, sendo duas publicadas na revista Trip, duas na revista Rolling Stone e
outras duas na revista piauí.
9
Considerado por muitos autores como o representante brasileiro do Jornalismo
Gonzo, Arthur Veríssimo escreve há 22 anos na revista Trip. A escolha de analisar
matérias da revista Rolling Stone se deu pelo fato da matriz norte-americana dessa
publicação ter sido um dos primeiros veículos a investir neste tipo de texto, sendo a
revista que publicou grande parte das reportagens de Hunter Thompson.
Já a revista piauí foi escolhida pelo fato de ser uma publicação relativamente
nova (criada em 2006) que contempla o jornalismo literário, uma modalidade não
explorada pelo jornalismo brasileiro.
Este trabalho está dividido em cinco capítulos, sendo o primeiro dedicado à
relação entre Jornalismo e Literatura, constatando que o nascimento do jornalismo
possui uma natureza literária e que a Literatura também incorporou – e ainda incorpora
– elementos jornalísticos para a sua construção.
Neste capítulo, também será exposto o conceito e as características do chamado
“jornalismo literário”, situando, historicamente, os precursores dessa prática narrativa
dentro do jornalismo, além de discutir como esta prática foi fundamental para o
surgimento do New Journalism, tema do capítulo dois, que pretende contextualizar esta
manifestação e seus seguidores mais notórios.
O Jornalismo Gonzo, objeto deste trabalho, será estudado detalhadamente no
terceiro capítulo, que abordará as peculiaridades do estilo de escrever promovido por
Hunter Thompson.
Como o trabalho propõe analisar matérias publicadas nas três revistas já citadas,
o capítulo 4 é destinado a traçar o histórico e o perfil editorial desses três veículos. É
neste momento que o grupo propõe uma metodologia para análise com o intuito de
identificar “manifestações gonzolísticas” - em menor ou maior grau – no material a ser
proposto.
Das características do Jornalismo Gonzo propostas pelos autores aqui estudados,
o grupo escolheu três para compor os quesitos de análise. Serão contempladas as
seguintes características: participação ativa do repórter no acontecimento, nível da
presença do repórter (utilização da primeira pessoa) e a mistura de realidade e ficção.
As análises das seis matérias, bem como a de seus resultados, poderão ser
conferidas no quinto e último capítulo deste trabalho.
10
Ao considerar o Jornalismo Gonzo, o grupo se deparou com uma escassez de
trabalhos acadêmicos e práticas jornalísticas realizados no Brasil. A referente pesquisa
tem como intuito colaborar com o então incipiente acervo teórico acerca dessa forma de
se fazer jornalismo, além de ser um eventual estimulante para que profissionais possam
incorporar a linguagem gonzo no cotidiano das redações.
Este trabalho poderá ser de interesse à comunidade acadêmica das áreas de
Comunicação Social, Letras e Literatura e aos jornalistas que se interessam em produzir
matérias e reportagens no estilo gonzo. E aos que nunca ouviram falar em “Jornalismo
Gonzo”, espera-se que esse trabalho também possa ser pertinente para a elucidação
acerca deste assunto, até então, pouco explorado.
11
1 - LITERATURA E JORNALISMO: PRÁTICAS PERMEÁVEIS
O literato, muitas vezes, traz da realidade dos jornais inspiração para compor sua
obra de arte. O jornalista, por sua vez, eventualmente, também busca na narrativa
literária uma estrutura para organizar seu texto jornalístico. Embora a Literatura se
institua como arte, ela e o Jornalismo mantêm relação de longa data. Segundo Nilson
Lage (s/d)1, essa afinidade já estaria presente no contexto do Renascimento e da
formação dos Estados Nacionais na Europa, quando as línguas nacionais foram
impostas e difundidas através de mecanismos compulsórios e sistemas escolares. Foi da
estruturação destas línguas presentes na literatura de Luís Vaz de Camões, Miguel de
Cervantes e William Shakespeare que partiu a divulgação das línguas nacionais.
Desta forma, segundo Lage (s/d), os discursos institucionais tiveram que se
modelar a partir da Literatura, inclusive o Jornalismo, que nos seus primeiros anos, seria
caracterizado como “publicismo” e com a função, também, de criticar os ideais
aristocráticos e enaltecer a burguesia. No século XVIII, o jornalismo era praticado por
escritores, que se diziam ser porta-vozes do iluminismo.
As primeiras notícias impressas em língua portuguesa, de acordo com João
Alves das Neves (1990), datam da segunda década do século XVII, sob forma de carta
assinada pelo padre e escritor português Manuel Severino de Faria, assinando com o
pseudônimo de Francisco de Abreu. O primeiro órgão da imprensa portuguesa, A
Gazeta, também foi publicado sob a redação de um escritor, o poeta Manuel Galhegos.
No Brasil, a relação entre esses dois campos não é diferente. O jornalista Hélio
Consolaro2 lembra que, no país, as manifestações literárias do século XVI “estão mais
para o jornalismo que para a literatura”, como, por exemplo, a Carta de Pero Vaz de
Caminha que, apesar de se tratar do “primeiro capítulo dos estudos de Literatura
Brasileira”, na verdade, era uma crônica sobre uma realidade construída, inclusive, a
partir de relatos dos viajantes.
1
Disponível em: http://www.jornalismo.ufsc.br/bancodedados/md-gramatica1.html. Acessado em 26 de
setembro de 2007.
2
CONSOLARO, Hélio. Jornalismo e Literatura: dois irmãos que se rejeitam. Disponível em:
http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=artigos/docs/jornalitera. Acessado em 10 de
setembro de 2007.
12
Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam
arcos nas mãos, e suas setas. Vinham todos rijamente em direção ao batel. E
Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os depuseram.
Mas não pôde deles haver fala nem entendimento que aproveitasse, por o mar
quebrar na costa. Somente arremessou-lhe um barrete vermelho e uma
carapuça de linho que levava na cabeça, e um sombreiro preto. (...)A feição
deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes,
bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de
encobrir ou deixa de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara.
Acerca disso são de grande inocência. (CAMINHA, Pero Vaz, 1963). 3
Segundo Lage (s/d)4, os primeiros periódicos produzidos no Brasil são datados
do Primeiro Império e no Período Regencial, quando o jornalismo tinha características
preponderantemente publicistas. Apenas durante o Segundo Império, esse trabalho
passou a ser visto menos como imprensa oficial do Reino e passou a ser mais praticado
por artistas e os literatos incentivados por mecenas. Neste contexto, o jornalismo era
feito por escritores como Machado de Assis e Raul Pompéia.
Segundo Antônio Olinto (1954), a carta de Pero Vaz de Caminha foi a primeira
reportagem escrita sobre o Brasil, mas o registro jornalístico de maior projeção sobre o
país só viria em 1902, com o livro Os Sertões, de Euclides da Cunha. A obra reuniu
textos sobre a Guerra de Canudos que Euclides da Cunha escrevia para o jornal O
Estado de S. Paulo e continham uma profundidade muito maior do que as coberturas
dos jornais da época, que se referiam ao assunto de forma superficial. (OLINTO, 1954).
Euclides da Cunha se viu diante de milhares de sertanejos, moradores do arraial
de Canudos, seguindo os passos de uma figura lendária que desafiava a República:
Antônio Conselheiro. O escritor percebeu que estava diante não de um exclusivo fato
político, mas de uma história épica, e resolveu transformar seus artigos em um livro que
se tornaria um marco na literatura brasileira. 5
O modo como Euclides da Cunha se aproximou do fenômeno Canudos foi o
de um jornalista de gênio. Observou a terra, estudou a terra. Penetrou no
homem da terra, no fanático comum, tomando, individualmente, e no
fanático, como parte de uma multidão. (...) O grande repórter, que foi
Euclides da Cunha, eternizou a campanha Canudos (OLINTO, 1954, pp.5960).
3
Disponível em: http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/carta.html . Acessado em 04 de março de 2008.
Disponível em: http://www.jornalismo.ufsc.br/bancodedados/md-gramatica1.html. Acessado em 26 de
setembro de 2007.
5
Disponível em: http://www.unesp.br/aci/jornal/204/sertao.php. Acessado em 07 de outubro de 2007.
4
13
A distância que separa a linguagem jornalística da literária pode ser, muitas
vezes, menor do que se imagina. No entendimento de Castro e Galeno (2002), a
fronteira entre jornalismo e literatura está cada vez mais difusa, uma vez que o primeiro
apresenta algumas características do gênero literário.
A literatura é uma forma de amenizar não só o texto jornalístico, como a
própria vida. (...) O jornalismo deve aprender com a literatura a capacidade
narrativa, assim como a literatura pode aprender com o jornalismo a rapidez e
a busca pela objetividade” (CASTRO apud BARCELLOS, 2003) 6.
Para Alceu Amoroso Lima (1969), o território da literatura pode ser dividido em
duas partes: o verso (lírico, épico e dramático) e a prosa (de ficção, de apreciação e de
comunicação) e ambas podem fazer parte do discurso jornalístico.
A literatura em prosa de ficção diz respeito às narrativas da novela, do teatro e
do romance e a prosa de comunicação remete às oratórias e epistolografia. Já a prosa de
apreciação engloba as obras, as pessoas, os acontecimentos. A apreciação de obras pode
ser notada, por exemplo, nas resenhas e críticas de livros e espetáculos culturais, e
exposições de artes. A apreciação de pessoas se dá por meio dos registros biográficos ou
de perfis e a apreciação de acontecimentos diz respeito aos fatos jornalísticos.
Também para Lima (1969), o poético está presente no jornalismo. Enquanto a
literatura em prosa está ligada ao verbal, o lirismo, o épico e o dramático podem
constituir o discurso jornalístico, sobretudo, em códigos não-verbais, como as
fotografias e as ilustrações.
1.1 – A presença do literato no jornalismo
O jornalismo e a literatura se aproximaram mais um do outro a partir do
momento em que a imprensa se tornou uma prática mercantil, a partir da segunda
metade do século XIX, quando as duas técnicas puderam ocupar o mesmo espaço em
um texto. De acordo com Edvaldo Pereira Lima (2004) quando o “texto jornalístico
6
Entrevista de Gustavo de Castro concedida a Paula Barcellos para o jornal Traça On Line - 15/05/2003.
Disponível em: http://www2.metodista.br/unesco/jbcc/jbcc218.htm. Acessado em 13 de novembro de
2007.
14
evolui de notícia para reportagem surge a necessidade de aperfeiçoamento da
mensagem”. (MELLO apud LIMA, 2004) 7.
Para Lima (2004), o fato de os jornais publicarem folhetins e outros textos
literários é um exemplo de como a literatura e a imprensa se confundiam até início do
século XX. A literatura, por sua vez, recicla a forma de escrever e passa a dar mais
relevância a fatos sociais.
Ora, literatura e jornalismo estão tão próximos, tão ligados. O jornalismo
apropria-se das técnicas da literatura e vice-versa. O jornalismo tem dado
maior vivacidade à literatura moderna. Qualquer reportagem bem feita tem
elementos literários” (SCHNAIDERMAN apud LIMA, 2004, p.179).
Segundo Antônio Rangel Bandeira (1990), o jornalismo, que científica e
socialmente pertence ao campo da Comunicação Social, deve ser considerado, também,
um processo lingüístico “através do emprego sistemático e criativo da palavra. Nele, a
palavra é empregada desde a sua forma mais rudimentar - que é a coloquial – até aos
processos mais elaborados da própria criatividade artística” (BANDEIRA, 1990, p.74).
De acordo com Muniz Sodré, “os homens de letra buscavam encontrar no jornal
o que não encontravam no livro: notoriedade, em primeiro lugar; um pouco de dinheiro,
se possível” (SODRÉ apud LIMA, 2004, p.175). De forma visionária, mas também
irônica, Machado de Assis (1986) fez uma proposta convidativa aos escritores de sua
época, ao perceber que o jornal poderia ser um novo espaço de atuação para o “homem
de letras”, considerando a “relevância política e econômica dos jornais” (ASSIS apud
SALOMÃO, 2004) 8. Para o escritor, a migração dos literatos para o jornalismo diário
era uma forma de terem seus trabalhos mais valorizados por se dedicarem à literatura
quotidiana dos jornais. Após essa reflexão, ele entendeu que essa “literatura quotidiana”
não poderia extinguir, e sim, “revolucionar” as letras.
Essa reestruturação discutida por Machado de Assis, ainda no século XIX, não
demorou a ser percebida por outros jornalistas. A ampla dimensão do jornalismo
influenciou, no Brasil, a maneira como os escritores da prosa contemporânea constroem
novas formas de representação espacial e noções de regionalismo. (MARTINS, 2007).
7
LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas ampliadas - o livro reportagem como extensão do jornalismo e da
literatura. 3ª edição. São Paulo: Manole, 2004.
8
Disponível em http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=277JDB001. Acesso em:
22 de agosto de 2007.
15
O jornal é a verdadeira forma da república do pensamento. É a locomotiva
individual em viagem para mundos desconhecidos, é a literatura comum,
universal, altamente democrática, reproduzida todos os dias, levando em si a
frescura das idéias e o fogo das convicções. (ASSIS, 1986, p.945).
Segundo Danton Jobim (1992), jornalismo e literatura se inter-relacionam, sendo
separados por uma linha tênue. “No que ele tem de mais alto e melhor, o jornalismo
toca a literatura” (NEVINS apud JOBIM, 1992, p.45).
É fatal, porém, que o jornalismo universal, onipresente na vida de hoje,
constituindo o grande veículo de informação do homem moderno, impondose avassaladoramente aos espíritos com suas sensações e seus métodos de
capturar e mesmo violentar a atenção do leitor – é fatal que esse instrumento
imprescindível à vida social hodierna exerça a mais profunda influência sobre
todas as formas de atividade literária. (JOBIM, 1992, pp.45-46).
De acordo com o autor, na França e na Inglaterra, nos séculos XVIII e XIX, era
a literatura que exercia influência sobre o jornalismo. Para Jobim, essa tendência sofreu
uma inversão no século XX, passando o jornalismo a influenciar mais os textos
literários e citou, como exemplo desta prática, o jornalista e escritor Ernest Hemingway.
A “influência do jornalismo sobre a literatura é bem maior que a desta sobre aquele, em
que pese a interação inevitável de ambos” (JOBIM, 1992, p.48).
Os processos de redação jornalística, mesmo onde esta chegou a um alto grau
de especialização, como nos EUA, não opõem o jornalismo à literatura.
Clareza, simplicidade e concisão no dizer, objetividade no descrever as coisas
e o comportamento dos homens – serão porventura, qualidades do estilo
jornalístico ou do estilo literário? (JOBIM, 1992, p.53).
Segundo o autor, os estilos se confundem e não existe uma linha de separação
visível entre o mundo jornalístico e o literário. Essa linha tênue marca a diferença de
ângulo em que se posiciona o repórter - voltado para as exigências imediatas e
transitórias do grande público - e o romancista, que escreve sobre temas universais e
permanentes, que nascem da natureza do homem e do mistério da vida.
De acordo com Nilson Lage (s/d)9, o discurso jornalístico é um discurso de
aparência e, portanto, quando tenta abordar essências da realidade, tende a abandonar
“suas características informativas, perde a novidade, recorre ao lugar comum e torna-se
subliteratura”. Segundo Lage (s/d), a literatura é a responsável por revelar verdades
9
Disponível em: http://www.jornalismo.ufsc.br/bancodedados/md-gramatica1.html. Acesso em: 11 de
novembro de 2007.
16
essenciais e, dessa forma, pode-se dizer que uma obra de ficção encerra realidade –
visões pessoais, parciais e essenciais. Para o autor, seguindo as condições industriais nas
quais o jornalismo é produzido, esse percurso se torna inviável.
Segundo Castro e Galeno (2002), a relação entre jornalismo e literatura
possibilita a criação de um diálogo entre esses dois campos que se encontram em
convergência, uma vez que se constituem a partir da mesma matéria-prima: a realidade.
Esses autores vêem no discurso literário uma nova forma de se pensar a prática
jornalística. Segundo eles, as técnicas de narração literária podem “fortalecer o texto
jornalístico assim como as técnicas do jornalismo têm subsidiado cada vez mais a
própria literatura” (CASTRO e GALENO, 2002, p.9).
Carlos Magno Araújo (2002) chama esse tipo de jornalismo de narrativo, pois dá
ao repórter a liberdade de exercer “o seu poder de percepção em torno da qual se insere
o objetivo de sua matéria”, assim como escreviam alguns dos jornalistas das extintas
revistas O Cruzeiro e Realidade, nos anos 60.
Quando falo de narração, trato daquele conjunto de informações e detalhes
que, em geral, costumam estar ao redor da notícia e que serve de aperitivo –
nem por isso dispensável – ao leitor antes de introduzi-lo ao que interessa.
(ARAÚJO, In: CASTRO e GALENO, 2002, p.95).
De acordo com Ronald Weber (1980), o artigo jornalístico serve como fonte
para a polêmica que discute a aproximação entre a literatura e o jornalismo, uma vez
que oferece a oportunidade de inclusão de aspectos da literatura ao texto jornalístico.
Segundo Weber, os jornalistas tentam se aproximar ao máximo de uma descrição
fidedigna ao acontecimento como ele é e os literatos ficcionalizam o fato. O artigo
jornalístico derruba tais limites e propõe que elaborar textos em primeira pessoa e
incluir perspectivas diferentes através de interpretação de fatos.
Já para Octavio Aguilera (1992), tais características que separam o jornalismo e
a literatura, justamente pelas premissas descritas acima, no entanto, aproximam as
práticas quando o ponto de discussão são artigos jornalísticos.
El articulismo, entendido como estilo “ameno” o folletinista (...), frente al
articulismo de pura cepa periodistica (el que genera productos de estilo
editorializante o de solicitación de opinión), contribuye muchísimo a esta
confusión, a esta eterna polémica. (AGUILERA, 1992, p.30).
17
O jornalismo sempre se apropriou de recursos da Literatura para, entre outros
motivos, atrair os leitores. Ao se apropriar de aspectos literários para uma reportagem,
por exemplo, o jornalismo passa a ter a seu favor o uso de técnicas ficcionais para
evidenciar detalhes, cenas e personagens, o que normalmente não caberia num
jornalismo diário.
A literatura oferece ao jornalismo a possibilidade de que a matéria jornalística
não seja exclusivamente técnica, construindo relatos próximos da realidade, através do
aprofundamento dos detalhes que são relatados no texto. Assim, o aspecto mecanicista
sobre o qual o jornalismo é usualmente ambientado é minimizado, dando espaços para
novas construções.
1.2 - A ficcionalização do real
Literatura e jornalismo, a princípio, sustentam papéis e funções diferentes.
Enquanto a literatura apresenta ao leitor não um mundo real, mas uma visão ficcional
sobre ele, o papel do jornalismo é fazer uma construção da realidade, mas sem maiores
intervenções.
Como lembrou Weber (1980), os jornalistas que apostaram nessa narrativa
híbrida foram criticados por tentarem criar para o leitor “efeitos emocionais e artísticos”
com aspirações literárias. Para os literatos, a literatura de não-ficção permanece presa ao
fato, sem a característica artística de uma obra. Já os jornalistas acusaram essa forma de
entretenimento, uma vez que, para eles, ao apropriar dos elementos ficcionais para dar
forma à notícia, o repórter compromete a idoneidade da informação.
Entretanto, há jornalistas que defendem seus colegas que se apropriam da
narrativa literária para escrever seus textos jornalísticos, seja em prol de um jornalismo
mais bem apurado, seja para prender a atenção do leitor a partir de matérias mais bem
agradáveis de serem lidas.
Atualmente, com o advento da Internet, o jornalismo praticado em suporte
eletrônico exige textos mais condensados e, muitas vezes, superficiais. Escrever textos
jornalísticos longos e detalhados, bem ao estilo do jornalismo literário, já não é muito
rentável, visto a restrição do suporte e, também, a falta de tempo do leitor.
18
No entendimento do colunista do jornal O Estado de S. Paulo, Daniel Piza
(2002), o atual jornalismo é constituído por “pílulas informativas”, ou seja, fatos
condensados, pois não há tempo para escrever um texto esteticamente mais confortável
e, também, o leitor não tem mais o hábito de ler literatice.
O jornalismo brasileiro esquece que há vários gêneros (...) além do chamado
hard news e das colunas de opinião (...). Perfis, resenhas, colunas
generalistas, reportagens impressionistas, ensaios curtos. (PIZA, In:
CASTRO e GALENO, 2002, p.135).
Para o colunista, é interessante que haja uma reformulação na produção do texto
jornalístico, a partir da literatura. Ao comparar os jornais brasileiros aos americanos e
europeus, ele lembra que esses últimos trazem leads criativos e sutis até em editorias
mais complicadas como economia e política. Piza (2002) acredita que os jornalistas
brasileiros deveriam perder o medo de “usar palavras menos óbvias” e apostar no uso
do humor, ironia, lirismo, metáforas e trocadilhos no discurso jornalístico.
De acordo com Araújo, existem jornalistas que não têm base literária e, por isso,
não conseguem fazer um texto de quarenta linhas que chame a atenção do leitor. Para o
autor, o elo entre o jornalismo e a literatura é a narração, e os veículos brasileiros,
ultimamente, ignoram uma narrativa bem feita.
1.3 - Do jornalismo literário ao New Journalism
Antônio Olinto (1954) reconhece a possibilidade de a literatura estar presente
nos jornais não somente nos cadernos especiais ou por meio de crônicas e poesias nos
cadernos de Cultura, mas também na própria linguagem da informação jornalística.
“Falo da possibilidade que o gênero jornalístico tem, de ser literatura”. (OLINTO,
1954, p.5).
O jornalismo como forma de Literatura, segundo António Bandeira (1990),
consegue ir além da mera publicação objetiva de dados estatísticos; trata-se de abrir o
caminho para que o jornalista possa transmitir informações subjetivas, tais como a sua
maneira de sentir, pensar e agir diante o fato o qual relata. “O melhor jornalista
(escritor) é o que se aproxima mais da realidade, dos fatos, do espírito da coisa”.
(BANDEIRA, 1990, p.77).
19
Para Felipe Pena (2006), o jornalismo literário é visto como uma outra
possibilidade às regras impostas nas redações. Esta prática propõe a ruptura com as
correntes do lead clássico, por exemplo, com o objetivo de ir além dos acontecimentos
diários para proporcionar novas visões da realidade aos leitores.
Alguns subgêneros em que se pode exercer o jornalismo literário, de acordo com
Pena (2006), são, por exemplo, a crítica literária, o romance-reportagem, o New
Journalism e o Jornalismo Gonzo. De acordo com o autor, o jornalismo literário busca
imprimir perenidade e profundidade aos relatos.
Segundo Denise Casatti (s/d)
10
, o jornalismo literário ou jornalismo narrativo
(como prefere denominá-lo) é “um tipo de jornalismo em que, basicamente, leva-se em
consideração a imersão do repórter na realidade, a precisão de dados e observações, a
busca do ser humano por trás do que se deseja relatar e a elaboração de um texto”
independentemente do veículo em que seja inserido, e que permita que a história seja
contada “por meio de uma voz autoral e de um estilo”.
De acordo com Casatti (s/d), existem muitas matérias que seguem os padrões
tradicionais em que a construção de uma narrativa tornaria mais eficiente a transmissão
das informações para o leitor. Segundo ela, há assuntos que, se fossem melhor
trabalhados, renderiam boas histórias. “Mas isso se o repórter tivesse coragem de ir
além, de usar sua criatividade e de propor uma forma de apuração e escrita diferentes”
(CASATTI, s/d). Para ela, é por meio da abordagem de assuntos capazes de mobilizar o
público e possibilitar uma identificação com os personagens, que a narrativa se torna
mais atraente para o leitor.
Segundo Lima (2004), o jornalismo literário também propicia um aumento na
satisfação do leitor nas matérias de áreas especializadas, além de melhorar a percepção
desse leitor em relação à credibilidade do jornal. “Os jornais que apresentam um
número maior de matérias narrativas são vistos como mais honestos, divertidos,
inteligentes, presentes e mais afinados com os valores dos leitores” (LIMA, 2004) 11.
Ronald Weber (1980) propõe uma discussão ampliada das características que
atestam a favor da aproximação entre jornalismo e literatura, mas também contrapõe
argumentos para a conceituação do jornalismo e da literatura.
10
Disponível em: http://www.textovivo.com.br/denise.htm#info. Acessado em 09 de novembro de 2007.
LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas ampliadas - o livro reportagem como extensão do jornalismo e da
literatura. 3ª edição. São Paulo: Manole, 2004.
11
20
Por volta de 1920, alguns jornalistas americanos sentiram a necessidade de
aprofundar as notícias sobre a guerra, buscando relatos mais humanizados e detalhados
dos acontecimentos. Foi a partir dessa época que surgiram nomes como o
correspondente de guerra Ernest Hemingway (autor de “Adeus às armas”), William
Faulkner, John Steinbeck, entre outros, que, com seus romances realistas, na década de
30, segundo Mozahir Salomão e Márcio Serelle (2007), anteciparam o que, no pósguerra, ganharia ainda mais força: a associação entre uma emergência do real e seu
relato ficcional livre.
Na década de 60, nos Estados Unidos, no contexto da contracultura, muitos
jornalistas se encontravam insatisfeitos com as regras de objetividade do texto
jornalístico. Essa insatisfação foi o estopim para que surgissem adeptos para uma
mudança na prática jornalística, aproximando-a, assim, da literatura. Nascia, naquele
momento, o que ficou conhecido como New Journalism (Novo Jornalismo).
O New Journalism é considerado uma forma diferenciada de prática jornalística
que permite a estrutura narrativa literária em seus textos. Nos Estados Unidos,
principalmente em Nova Iorque, o New Journalism tem seu auge nos anos 60, quando
começou a ser comentado e visto, inclusive com maus olhos, por grupos de jornalistas e
escritores. (WOLFE, 2005).
Segundo Tom Wolfe (2005), havia uma concorrência entre os colunistas e
repórteres que, segundo o autor, se preocupavam mais em dar o “furo” jornalístico e
menos com a estética do texto. Já os colunistas tinham uma rotina cômoda, ou seja, não
saiam da redação para ver o acontecimento e escrever sobre ele. Simplesmente liam os
jornais e expunham suas opiniões a respeito. Isso despertou em alguns jornalistas norteamericanos, como Jimmy Breslin e Gay Talese, uma nova forma de dar ênfase à notícia,
por meio de uma narrativa romanceada.
Surgiu então, como primeiro termo, o romance de não-ficção, o que incomodou
a classe de romancistas, que rotularam esses profissionais de “pára-jornalistas”,
classificação cunhada pelo crítico Dwight MacDonald e entendida por Gay Talese
(2004) como pejorativa.
Segundo Wolfe (2005), esta postura levou à sensação de que os jornalistas
inventavam a matéria, tamanha a riqueza de detalhes que reproduziam diálogos inteiros
e relatavam, inclusive, os pensamentos do entrevistado. “Minha reação instintiva,
21
defensiva, foi achar que o sujeito tinha viajado, como se diz... improvisado, inventado o
diálogo... Nossa, ele talvez tenha criado cenas inteiras, o nojento inescrupuloso...”
(WOLFE, 2005, p.22).
Uma das técnicas mais usadas e discutidas no New Journalism era justamente
essa. Era como se o jornalista entrasse na mente, na vida e nos costumes do
entrevistado. A credibilidade das reportagens foi colocada em xeque, mas a forma de
relatar esses pontos é que chamou a atenção de muitos leitores. O aspecto mecanicista
sobre o qual o jornalismo é usualmente ambientado deixa de existir quando o jornalista
“examina as cabeças das pessoas e escreve sobre isso” (WEBER, 1980).
1.4 - Manifestações pára-jornalísticas na mídia impressa brasileira
No Brasil, paradoxalmente, houve duas situações distintas nos anos 40 e 50 em
relação à prática jornalística. Um se refere à adoção dos padrões tradicionais na
produção das notícias, ou seja, o uso de narrativas em terceira pessoa, lead clássico,
frases diretas. O outro diz respeito ao fato de que o jornalismo brasileiro que não ficou
alheio às inovações narrativas e experimentou vários modelos e formatos que tentaram
fugir desses “padrões técnicos tradicionais” do jornalismo.
Nenhum deles foi tão expressivo nos anos 50 como a revista moderna de Assis
Chateaubriand, Cruzeiro, com suas coloridas páginas e uma proposta diferenciada, a de
modernização em todos os aspectos. A revista, que depois passou a se chamar O
Cruzeiro, não seguia os “padrões rígidos” do jornalismo tradicional, que prega a
neutralidade e objetividade por parte do jornalista. (SERPA, 2006). 12
Mesmo fora dos padrões convencionais, O Cruzeiro chegou a atingir a tiragem
de 800 mil exemplares (ÁLVARES, 2004). Êxito semelhante teve o vespertino paulista
Jornal da Tarde, lançado em 1966, também rompendo com a padronização vigente da
prática jornalística.
A diferença entre esses dois exemplos de publicação e as revistas tradicionais
também estava na forma de abordagem para com uma determinada pauta.
12
Disponível em: http://www.eca.usp.br/pjbr/arquivos/artigos7_b.htm. Acessado em 08 de setembro de
2007.
22
A redação deu ênfase ao lado humano, procurando, em cada reportagem,
enfocar mais os homens e mulheres responsáveis por um determinado
acontecimento do que o fato propriamente dito. Nessa busca pelo humano,
cometeu alguns pecados graves de informação. Como exemplo, Clóvis Rossi
lembra uma experiência que remete diretamente ao clássico gonzo de Hunter
S. Thompson, Medo e delírio em Las Vegas: "Certa vez, dedicou-se largo
espaço a uma corrida de automóveis, falando do público, dos personagens e
do espetáculo, sem informar, entretanto, quem vencera a corrida”
(ÁLVARES, 2004). 13
Outro exemplo brasileiro foi a revista Realidade, que teve como um dos
fundadores o repórter José Hamilton Ribeiro. A revista também apresentava um estilo
inovador e circulou durante as décadas de 60 e 70. De acordo com Eduardo Martins
Vasconcellos14, a “proposta era de criar reportagens que unissem o apuro jornalístico ao
verniz estético da linguagem literária”. A Realidade era considerada a versão
tupiniquim do jornalismo literário e de sua vertente mais famosa, o New Journalism.
As matérias eram livres e não obedeciam as famigeradas regras dos
manuais de redação. Lead, pirâmide invertida – mista ou normal, de modo
algum eram obrigatórias. Nem mesmo a voz verbal era um limite. A
narração poderia variar da primeira para a terceira pessoa, sem que isso
causasse embaraço na leitura. Além disso, o repórter poderia se valer de
monólogos interiores e registros de pensamentos em sua reportagem, tal
qual ocorre na literatura. Enfim, era a liberdade total de escrita em função
do bom jornalismo. (VASCONCELLOS, S/D).15
Segundo Vasconcellos, além de revolucionar a imprensa nacional, a revista foi
um sucesso de vendas. Porém, apesar de ter desenvolvido um estilo diferenciado e
atraente, a censura foi responsável por sua queda no ano de 1976.
Também no Brasil, na década de 90, no jornalismo impresso, uma linguagem
“marginal” esteve presente na revista semanal Bundas, idealizada pelo escritor,
cartunista e ex-Pasquim Ziraldo e publicada pela primeira vez em junho de 1999. A
revista teve apenas 70 edições, deixando de circular em 2000, devido a uma crise
financeira – muitos anunciantes desprezavam a revista por causa de seu nome.
Criada em 1986 por um grupo de surfistas, a revista Trip é uma publicação
destinada aos jovens, sobretudo o público masculino. A Trip aborda diversos temas, tais
como esportes radicais, moda, ensaios fotográficos, música, literatura, viagens ao redor
13
Disponível
em:
http://flashself.blogspot.com/2005/10/23-nova-leva-de-jornalismo-gonzo-no.html.
Acesso em: 04 de abril de 2007.
14
Disponível em: http://www.paralelos.org/out03/000146.html. Acesso em: 12 de novembro de 2007.
15
Disponível em: http://www.paralelos.org/out03/000146.html. Acesso em: 12 de novembro de 2007.
23
do mundo e entrevistas na sessão “Páginas Negras”, uma versão descontraída das
“Páginas Amarelas” da revista semanal Veja. 16
De acordo com informações da própria revista, suas pautas incluem:
esportes não convencionais, entrevistas com pessoas cuja vida e obra servem
de referência de novos padrões, moda diferenciada e verdadeira e não a moda
fantasia das passarelas, viagens e lugares e ambientes pouco conhecidos,
aventuras mais diversas, sensualidade, música, enfim, como costumamos
dizer, qualquer viagem. 17
Um dos mais famosos repórteres da revista é Arthur Veríssimo, que escreve
sobre suas experiências nas viagens que faz pelo mundo. Arthur pratica o chamado
“Jornalismo Gonzo”, um estilo de jornalismo-participativo, criado pelo jornalista
Hunter Thompson.
Outras tentativas de um jornalismo diferenciado passaram a ser exploradas em
2006, quando foram lançadas as primeiras edições das revistas piauí (grafada com letras
minúsculas) e a versão brasileira da Rolling Stone, cuja matriz norte-americana já
contou com Hunter S. Thompson como repórter gonzo.
A piauí foi idealizada pelo cineasta João Moreira Salles e tem como publisher o
editor Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras.18 A revista de Salles apresenta poucas
fotos, muitas ilustrações e artigos longos, muitos deles abusando do humor e da ironia.
16
Disponível em:
http://jbonline.terra.com.br/jb/papel/cadernos/domingo/2001/08/25/jordom20010825004.html. Acesso
em: 04 de março de 2008.
17
Disponível em: http://revistatrip.uol.com.br/home_new/index.php. Acesso em: 17 de outubro de 2007.
18
FILHO, Antônio Gonçalves. Revista piauí é lançada na Flip e circula em outubro. Disponível em:
http://www.estadao.com.br/arteelazer/letras/noticias/2006/ago/14/224.htm. Acesso em: 15 de abril de
2007.
24
2 - O NEW JOURNALISM
Fugir da rotina das técnicas e formatos e fazer um jornalismo mais humanizado e
“quente”, no sentido de acrescentar mais personalidade e pontos de vista na reportagem,
mas sem a pretensão de criar um novo estilo jornalístico ou desafiar o mundo da
literatura. Este era o desejo presente em algumas das redações norte-americanas, na
década de 1960.
Segundo Tom Wolfe (2005), as redações estavam estagnadas naquela época. Os
repórteres repetiam a mesma fórmula para produzirem suas matérias e se preocupavam
demasiadamente em não levar um “furo” jornalístico. A falta de posicionamento do
jornalista e o excesso de neutralidade eram, para o autor, o que mais mediocrizava uma
matéria. Ele não queria discutir objetividade e subjetividade, mas a personalidade e
estilo numa reportagem.
Naquele momento, muitos jornalistas insatisfeitos com o então tipo de prática
jornalística proposto e executado dos Estados Unidos que visava a obediência à
objetividade e à pirâmide invertida, apresentavam novas propostas para se fazer
jornalismo. Danton cita dois caminhos tomados por este grupo de jornalistas: uns se
contentaram em se dedicar à imprensa alternativa, cujas pautas contemplavam assuntos
pouco visados pelos veículos tradicionais, outros foram além, e propuseram uma
mudança mais radical que englobava, também, o jeito de apurar e realizar as matérias.
Gian Danton (2002) chama estas últimas de “propostas discordantes”. Segundo o autor,
“tais propostas colocaram em xeque nossa idéia de imprensa e nos fizeram perguntar o
que realmente caracterizava o jornalismo” (2002). 19
Uma destas “propostas discordantes” citadas por Danton, diz respeito à
manifestação chamada New Journalism, que, segundo o jornalista Allan de Abreu, tinha
como objetivo dar um formato mais imaginativo e lírico ao jornalismo, permitindo que
o repórter pudesse se inserir na narrativa, sem comprometer a realidade ali relatada. “A
perfeita tradução da reportagem como gênero literário seria a essência dessa nova
‘escola’”.20
19
Disponível em: http://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=573 . Acesso em: 20 de
março de 2007.
20
Disponível em: http://www.revistaetcetera.com.br/19/new_journalism/index.html . Acesso em: 28 de
março de 2007.
25
O New Journalism é considerado uma forma diferenciada de prática jornalística
que permite a presença da estrutura narrativa literária em seus textos. A geração de
“novos jornalistas” passou a se utilizar não só das técnicas, das peças de informação,
dos dados, mas da valorização da cena, através de descrições e construções. Segundo
Wolfe (2005), isso não era tarefa fácil, já que era preciso estar com a fonte o tempo
suficiente para observá-la, o que ele chamava de fazer uma “Reportagem por
Saturação”.
O ponto de partida do repórter é invadir a privacidade de alguém, fazer
perguntas que não têm o direito de esperar que sejam respondidas – e, assim
que ele se rebaixou a este ponto, transformar-se num suplicante de
canequinha na mão, esperando que venha a informação ou que alguma coisa
aconteça. (WOLFE, 2005, p.72).
O New Journalism propôs o uso de técnicas da literatura na captação, redação e
edição de reportagens jornalísticas. Além disso, sugeria que o narrador imprimisse uma
participação intensa no ambiente sobre o qual escrevia. A válvula de escape no início
das primeiras manifestações era a oportunidade de apresentar ao leitor uma visão mais
próxima da realidade dos acontecimentos transcritos pelos jornalistas.
O método proposto por essa prática era a observação detalhista e a descrição em
terceira pessoa dos acontecimentos para maior fidedignidade dos fatos descritos. O uso
de pontuações pouco convencionais ao jornalismo, como reticências e exclamações
serviram para estruturar características importantes nessa nova forma de descrever a
realidade.
Para Wolfe (2005), a partir deste momento, começou a surgir a possibilidade de
o jornalismo ser lido como romance, o que criou um “mal-estar” entre jornalistas e
literatos. Estes, por acharem que somente o romance ficcional tem o direito de ser
detalhista e descritivo, e, aqueles, por acreditarem que o jornalismo tinha que oferecer
algo além da rotina diária.
A idéia do chamado New Journalism não era apenas descrever o fato, mas era
mudar “o mais depressa possível para dentro das órbitas oculares das pessoas da
história” (WOLFE, 2005, p.34). Isso para dar a sensação ao leitor de estar dentro da
cabeça dos personagens, através do registro de seus hábitos, gestos, roupas e até
pensamentos.
26
Segundo Lima (2004), o New Journalism começou com as matérias frias e
depois foi ocupando espaços com notícias mais factuais. O autor diz que o estilo
aproveitou o momento de conflito nos conceitos na sociedade americana na década de
60 “mergulhando cada vez mais fundo na realidade em transformação”. Tem-se, então,
uma manifestação polêmica e que dividiu opiniões durante um bom tempo, tanto nas
redações como na comunidade literária.
2.1 - O nascimento do New Journalism
Embora articular literatura e jornalismo não fosse uma experiência nova, já que
o escritor norte-americano Ernest Hemingway já o fazia na década de 1920, foi a partir
da segunda metade da década de 50 que a prática do que seria chamado, na década
seguinte, de New Journalism, passou a ser percebida como uma manifestação.
Foi com o trabalho audacioso de Truman Capote (1924-1984), jornalista norteamericano que acreditava na possibilidade da reportagem ganhar status como arte
literária, tão requintada quanto as prosas como ensaios, contos e novela, que a expressão
“romance de não-ficção” começou a ganhar mais atenção.
Segundo Danton, Capote propôs transformar o jornalismo de celebridades, uma
especialidade considerada a mais vã de todas as formas de jornalismo, em um grande
registro jornalístico. Para tanto, o jornalista resolveu fazer uma entrevista com uma das
maiores estrelas de Hollywood na época, o ator Marlon Brando.
Capote passou uma noite inteira com o ator, em um apartamento no Japão –
Marlon Brando estava filmando o filme “Sayonara” (lançado em 1957), do diretor
Joshua Logan. Na ocasião, Capote não se muniu de gravador ou cadernos de anotações,
acreditando que desta forma, inibiria seu entrevistado. A entrevista foi publicada em
1956, na revista New Yorker e retratava um lado ainda inédito do astro Marlon Brando:
um homem que se sentia incomodado com o sucesso. O ator admitiu que a matéria foi
bastante fiel aos seus relatos, mas ficou aborrecido com Capote por ter publicado suas
confidências. Danton acredita que esta matéria era o que faltava para a consolidação do
New Journalism e de Capote como um dos grandes nomes desta “nova” prática
jornalística.
27
Em 1959, Truman Capote começaria a apurar seu mais famoso relato
jornalístico: o assassinato de uma família em Garden City, no Kansas, Estados Unidos,
onde ficou durante cinco anos e conquistou fontes importantes, tais como policiais e os
próprios assassinos. A reportagem sobre o assassinato foi publicada em capítulos pela
revista New Yorker e depois reunida no livro “A Sangue Frio”, lançado nos Estados
Unidos em 1966.
Nesse período, além de novos jornalistas – novos talentos – surgiram também
diversas publicações no estilo. Assim como a The New Yorker, foram criadas True, Life,
Esquire, The Village Voice, Rolling Stone e jornais como Herald Tribune, Daily News e
mesmo o The New York Times, que publicavam várias matérias do estilo New
Journalism.
“O que está acontecendo?” (Wolfe, 2005, p.22). Essa foi a primeira reação de
Wolfe ao ler a matéria intitulada “Joe Louis: o rei na meia idade”, escrita por Gay
Talese, e publicada na Esquire em 1962. A matéria tratava de um perfil do lutador de
boxe Joe Louis, que se encontrava deprimido com a velhice. Segundo Wolfe, o que
mais lhe chamou atenção neste texto não foi a história da personagem, mas a forma
como a narrativa foi construída. “(...) chamava a atenção no texto escrito por Gay Talese
- era seu começo, com o tom e o clima de um conto, descrevendo uma cena bastante
íntima para o padrão do jornalismo daquela época” (WOLFE, 2005).
“Oi amor!”, falou Joe Louis para a sua esposa, quando a avistou no aeroporto
de Los Angeles, à sua espera.
Ela sorriu, andou em sua direção e estava prestes a se pôr na ponta dos pés
para beijá-lo – mas parou de repente.
“Joe”, disse ela. “Onde está sua gravata?”
“Ah, bem”, disse ele sacudindo os ombros. “Passei a noite inteira fora em
Nova York e não tive tempo...”
“A noite toda!”, interrompeu ela. “Quando você está aqui você só dorme,
dorme, dorme.”
“Amor, disse Joe Louis com um sorriso cansado, “eu sou um velho.”
“É”, disse ela. “Mas quando você vai a Nova York tenta ser jovem
novamente.”
Eles foram andando devagar pelo saguão do aeroporto (...). A sra. Louis, a
terceira mulher do ex-lutador de boxe de 48 anos, sempre vai esperá-lo no
aeroporto quando ele volta de viagens de negócios a Nova York, onde ele é
vice-presidente de uma empresa de relações públicas para negros. (TALESE,
2004, p.460).
Na verdade, este era o início de um movimento que contaminou outros jovens
repórteres, interessados em não apenas retratar as ruas, mas provar que a reportagem
28
poderia ter uma dimensão estética privilegiada.21 Para o autor, se o texto fosse um
pouco mais trabalhado, seria o mesmo que se ler um conto, o que foi confuso de
entender inicialmente. O que se achava é que todo o texto poderia ter sido uma
invenção.
O que me interessava não era simplesmente a descoberta da possibilidade de
escrever não-ficção apurada com técnicas em geral associadas ao romance e
ao conto. Era isso – e mais. Era a descoberta de que é possível na não-ficção,
no jornalismo, usar qualquer recurso literário, dos dialogismos tradicionais
do ensaio ao fluxo de consciência, e usar muitos tipos diferentes ao mesmo
tempo, ou dentro de um espaço relativamente curto... para excitar tanto
intelectual quanto emocionalmente o leitor. (WOLFE, 2005, p.28).
Em 1963, Wolfe investiu nesse novo estilo com o artigo “O aerodinâmico bebê
floco de tangerina cor de caramelo”, publicado na Esquire. Segundo o autor, a intenção
ainda não era alinhar-se à literatura – apesar de ter usado recursos literários como
descrição de cenas e diálogos – mas que a partir desse momento passou a ver uma nova
possibilidade para o jornalismo.
2.2 – Crítica e crise da verdade
Não se pode precisar o início o uso da expressão New Journalism. Para Wolfe,
ela começou a ser usada com mais freqüência a partir de 1966. Segundo ele, nos anos
50 já havia manifestações de um New Journalism, mas que não se firmaram porque o
romance ficcional ainda tentava se impor como unicamente sagrado, ou seja, o único
capaz de despertar emoção no leitor por meio de um texto mais denso. Por isso, Wolfe e
os outros foram chamados de “pára-jornalistas”, por produzirem uma forma bastarda de
jornalismo.
Segundo Wolfe, o status da comunidade literária ficou abalado no sentido de que
os literários, durante todo o século XX, se viam com uma estabilidade quanto à
criatividade, pois acreditavam que só eles poderiam ser criativos e que cabia aos
jornalistas somente relatar um fato observado dentro dos padrões técnicos (quem, o quê,
quando, onde, como e por que). Para a comunidade, os jornalistas não tinham o direito
de entrar na classe.
21
Disponível em: http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=318ASP017 Acesso em:
13 de outubro de 2007.
29
Mas, desde o século XIX, o romance já não se sustentava como sagrado o tempo
todo. “Dois exemplos são os romancistas da época Balzac e Dickens, que iam “para a
rua”, “cavavam” um fato antes de escreverem suas histórias, expressavam no romance a
não-ficção e eram criticados por isso, por tirarem o “mito” da literatura.
A idéia do “mito” na literatura diz respeito ao fato de que o romance tem uma
função espiritual – conhecida como “sagrado ofício do romancista” -, segundo a
comunidade literária, desde a poesia na Inglaterra, nos séculos XVII e XVIII. Isso
significa que a literatura teria, nesse período, uma função não só de arte, mas religiosa
ou filosófica, que trata de assuntos profundos, moralmente sérios e cósmicos. O
romance levaria à alma do homem o sentido da vida. Por isso, o realismo, então, não
seria bem vindo no romance. (WOLFE, 2005).
Wolfe (2005) criticava esta idéia de “consciência mítica” na literatura, pois para
ele, vários livros, ao longo da história, são relatos de fatos reais. “É difícil entender hoje
como, no início, o romance era embebido de realismo – réalisme pour lê réalisme!
(realismo pelo realismo) – tudo isto é fiel à vida! Defoe apresenta Robinson Crusoe
como as memórias verdadeiras de um marinheiro naufragado” (WOLFE, 2005, p.65)
Segundo Nanami Sato (2002) os aspectos literários no jornalismo são os
recursos usados para seduzir o leitor, através da natureza impressionista do relato. Para
ele, o que é considerado componente literário na reportagem são os “aspectos do
conteúdo (humanização do relato, captação cálida do real), cuidados com a forma
(força, clareza, condensação, tensão) e posição face ao real (tensa coexistência dos
pólos da subjetividade e da objetividade.
Para o autor, o papel do repórter é enunciar fatos reais e não narrar fatos
fictícios. O que se esperava então era que as narrativas jornalísticas fossem factuais
“sem remeter ao “era uma vez” da ficção; de sua linguagem, que seja contida nos
arroubos inventivos e inovadores” (SATO, 2002, p.2). Esses também eram motivos para
as discussões sobre o New Journalism.
Assim como outras manifestações ao longo da história, o New Journalism foi
bombardeado por críticas. Wolfe (2005) mostra outros exemplos de como se tentou, e
criou, novas formas de romance, como Henry Fielding, que, quando publicou Joseph
Andrews, em 1742, disse ter inventado o “poema épico cômico em prosa”. Cita também
o início do romance realista na Inglaterra, nos séculos XVIII e XIX.
30
Ambas sofreram duras críticas e foram acusadas de tentarem revolucionar a
literatura. Os principais desafios eram quanto à credibilidade e durabilidade dos estilos.
Os críticos diziam que eles eram meramente de entretenimento, que não tinham valores
a oferecer. O mesmo aconteceu com o New Journalism, que foi chamado por literatos –
e pelos jornalistas que se opunham ao estilo – de impressionista, porque entrava na vida
emocional de seus personagens.
Não tenho nada contra chamarem de “espevitado” e de “enchimento” o Novo
Jornalismo. Se essas acusações são negativas, basta imaginar seus opostos.
Mas não acho que ninguém possa tolerar a acusação de que o Novo
Jornalismo se esquivou da tarefa de avaliar o seu material (WOLFE, 2005,
p.64).
Segundo Talese (2004) o termo “pára-jornalismo” foi uma definição cunhada
pelo crítico Dwight MacDonald, que acreditava que os repórteres adeptos ao estilo
deturpavam os acontecimentos para produzir um efeito mais dramático.
Wolfe (2005) defendeu que o New Journalism não era apenas um documentário,
mas sim, um trabalho de muita pesquisa. É o ponto de vista do narrador de maneira bem
articulada para prender a memória do leitor e chamar sua atenção. Para ele, a
reportagem realmente estilosa era algo com que ninguém sabia lidar, uma vez que
ninguém costumava pensar que a reportagem tinha também uma dimensão estética, que
poderia atrair mais o leitor.
Segundo o autor, o realismo na ficção não é meramente um outro recurso
literário, mas elevou a arte a uma grandeza. “Meu argumento é que o gênio de qualquer
escritor – mais uma vez em ficção e não-ficção – estará seriamente comprometido se ele
não conseguir dominar, ou se ele abandonar as técnicas do realismo”(WOLFE, p.58,
2005).
Talese (2004) não concordava com nenhuma das críticas ao New Journalism,
principalmente no que diz respeito ao fato de se ler uma matéria do New Journalism
como ficção. Para ele, essas matérias buscavam ampliar a verdade e não simplesmente
verificar os fatos e seguir a risca os princípios do jornalismo.
O novo jornalismo permite, na verdade, exige, uma abordagem mais
imaginativa da reportagem, possibilitando ao autor inserir-se na narrativa se
assim o desejar, como fazem muitos escritores, ou assumir o papel de um
observador neutro, como outros preferem, inclusive eu próprio. (TALESE,
2004. p.9)
31
Lima (2004) aponta para o fato de que, apesar das críticas ao estilo, ele se tornou
disciplina no currículo dos estudantes de jornalismo. Nos Estados Unidos, segundo, o
autor, a disciplina tem o nome de “literatura criativa de não-ficção”, criada para
“pesquisar, compreender e ensinar essa modalidade de reportar o mundo
contemporâneo” (LIMA, 2004).
De acordo com Fernando Resende (2002), não seria exagero dizer que narrar um
fato literariamente é um modo jornalístico mais completo e que é um avanço o
jornalismo tradicional, que se abriu a uma reflexão sobre o modo como é feito. Para o
autor, a “verdade jornalística” é uma verdade possível e os personagens e fatos relatados
são parte de uma narrativa, e que mesmo o jornalismo prezando a verdade, esta é só
uma parte de toda a história, ou seja, uma visão do repórter.
Para Gianni Carta (2003) é importante que se tenha um conhecimento prévio do
assunto sobre o qual se vai escrever em uma grande reportagem. O autor é favorável à
publicação dessas matérias inclusive em jornais diários. “Na grande reportagem, ao
contrário do artigo, que só dá notícias, você precisa de uma voz, de ritmo e claro, de
uma boa história. E uma linguagem e estrutura repletas de imaginação. E de imagens”
(CARTA, 2003, p.14).
Mas Talese (2004) apontou a dificuldade de se encontrar reportagens nesse estilo
após os anos áureos do New Jornalism. Ele acredita que a apuração exaustiva, a
criatividade e o tempo demandado para se escrever não são os mesmos de outras épocas
muitas vezes porque o próprio editor não quer ter custos elevados e os jovens repórteres
preferem usar um gravador em vez de trabalhar intensamente a observação dos fatos e
personagens. “Hoje, com uma ou duas entrevistas e algumas horas de gravação, um
jornalista
relativamente
palavras”(TALESE, p.509).
inexperiente
pode
produzir
um
artigo
de
3
mil
32
2.3 - Características do New Journalism
Czarnobai (2003) recorre a Tom Wolfe22 para enumerar as quatro características
fundamentais do New Journalism. As duas primeiras são a construção cena a cena e o
uso de diálogos. De acordo com Wolfe (apud Czarnobai, 2003), essa abordagem
proposta à reportagem implica uma técnica minuciosa de coleta dados e atenção a
detalhes.
O papel do repórter no acontecimento, invariavelmente, não se restringe mais a
testemunha ocular, conferindo, assim, diálogos fidedignos, ambientes bem descritos e
próximos da realidade, recorrendo o mínimo possível à mera narrativa histórica.
Além de contribuir para a riqueza dos detalhes e o aprofundamento do
personagem, a inclusão de diálogos com travessões imprime ao texto maior
flexibilidade e leveza literária, transformando a reportagem num grande conto,
envolvendo mais ainda o leitor.
Uma terceira característica, apontada por Wolfe, diz respeito à construção do
ponto de vista na terceira pessoa. Desta forma, o repórter aloca o leitor dentro do
acontecimento – “eu estava lá” - facilitando sua identificação com o texto, ao oferecê-lo
uma proximidade com a realidade do personagem que uma matéria jornalística na
primeira pessoa não contempla. O repórter era capaz de escrever o pensamento e
sentimentos do seu entrevistado. “A técnica de apresentar cada cena ao leitor por
intermédio dos olhos de um personagem particular, dando ao leitor a sensação de estar
dentro da cabeça do personagem” (WOLFE, 2005, p.54).
De acordo com Wolfe, um dos maiores problemas quanto ao narrador na nãoficção é que este assumia uma posição excessivamente neutra, discreta, numa voz
calma, o que provocava, segundo ele, tédio nos leitores. Ele chama esses jornalistas de
“personalidades apagadas”.
A polêmica em torno desta característica era como um escritor de não-ficção
poderia adotar esse procedimento, descrever o pensamento de outrem, e, segundo o
autor, a resposta seria entrevistar a fonte inclusive sobre seus sentimentos e emoções.
Para Wolfe, a quarta característica é a menos compreendida e se refere às
descrições de hábitos, gestos, mobília, maneira de andar e falar, costumes, entre outros.
22
WOLFE, Tom. El Nuevo Periodismo. Barcelona: Editorial Anagrama, 1976.
33
São os símbolos de status de vida. Segundo o autor, esse recurso não é simplesmente
para florear o texto, mas um recurso literário como qualquer outro que está dentro do
realismo. Isso permite que o leitor compreenda melhor os personagens e seus
comportamentos.
A cooperação do entrevistado ajuda muito na hora de captar todas essas idéias,
de acordo com Talese (2004). O autor sempre procurou seguir discretamente seus
entrevistados atento para qualquer situação reveladora ou reação dele e das pessoas ao
redor. Para ele, se o repórter tem a confiança da fonte é possível fazer uma boa matéria,
fazendo as perguntas certas, na hora certa e, ainda assim, reportar o pensamento do
entrevistado.
Segundo Felipe Pena (2006), o repórter deve ser muito engajado e capaz de fazer
entrevistas em profundidade, precisando passar vários dias com as pessoas sobre as
quais vai escrever. “O detalhamento do ambiente, as expressões faciais, os costumes e
todas as outras descrições só farão sentido se o repórter souber lidar com os símbolos”
(PENA, 2006, p.55).
No New Journalism, a produção de reportagens exigia do repórter uma
investigação profunda sobre os acontecimentos, incluindo uma intensa pesquisa que se
deve fazer para adquirir conhecimento sobre o que vai ser tratado na matéria. A
persistência para se conseguir entrevistas também é um fator determinante para ter
como resultado uma reportagem de qualidade. A partir dessas “regras”, é possível que o
repórter obtenha um novo olhar sobre cada assunto, permitindo fazer uma abordagem
diferente do que é comum na maioria dos veículos de comunicação atuais.
Um outro fator determinante para a produção de uma grande reportagem é o
tempo maior que se tem para apurar e coletar uma gama de informações, que permite ao
repórter analisar melhor os dados que obtém e fazer entrevistas mais completas,
podendo passar ao leitor uma matéria mais interessante.
Segundo Resende (2002), os seguidores do New Journalism, aos quais ele
denomina “artistas de não-ficção”, tinham em suas mãos vários fatos sociais em
emergência e estavam em um campo livre com técnicas que aproximaram a narrativa
literária da realidade.
34
2.4 - Principais autores do New Journalism
Truman Capote (1925-1984) experimentou, ainda na década de 1950, unir a
narrativa ficcional ao texto jornalístico, sendo o percussor do New Journalism da década
de 1960. Capote, ou Truman Streckfus Persons, seu nome verdadeiro, começou na
carreira jornalística como colunista social, mas era um romancista.23
No início dos anos 40, foi contratado pela revista New Yorker, veículo no qual
iria publicar seus principais trabalhos jornalísticos: a entrevista com o astro do cinema,
Marlon Brando e as matérias, divididas em capítulos, sobre o assassinato de uma família
no estado norte-americano do Kansas. Os registros sobre o assassinato foram publicados
no livro A Sangue Frio, em 1966. A obra marcou a vida do autor sendo uma das
referências em romance-reportagem.
Truman Capote abriu as portas para outros novos jornalistas, entre eles Gay
Talese (1932-
), que provocou estranheza ao publicar, em 1962, na Esquire, a história
do lutador de boxe Joe Louis. O estranhamento, por parte dos leitores, deu-se porque
Talese utilizou descrições, relatos de diálogos inteiros, explicações minuciosas para
escrever seu texto, o que seria dispensável do ponto de vista técnico-jornalístico. Uma
linguagem que chegou até a causar dúvidas sobre a veracidade do fato. Os
detalhamentos, para ele, eram como se humanizassem a matéria, transmitindo de forma
mais minuciosa a informação para o leitor. (Wolfe, 2005)
Na década de 60 do século passado, Gay Talese publicou o livro Fama e
Anonimato, um dos ícones do estilo romance-reportagem. Nele, o jornalista faz um
apanhado de matérias sobre Nova York e seus moradores – anônimos e famosos, e em
1980 publicou A mulher do próximo sobre a vida sexual e os valores morais de casais
americanos antes da era da Aids.
“E Embora Fama e anonimato não chegue a pôr em prática tudo que creio ser
possível na não-ficção criativa, com certeza marca a passagem do “velho”
jornalismo que eu praticava no New York Times na década de 50 para o estilo
de reportagem mais livre e mais desafiador que a revista Esquire
aceitava(...)” (Talese, 2004, p. 10)
23
Disponível em: http://biografias.netsaber.com.br/ver_biografia_c_175.html. Acessado em 21 de
outubro de 2007.
35
Outro importante nome do New Journalism foi o de Tom Wolfe. Ele escreveu,
em 1963, na Esquire um artigo que também fugia às regras jornalísticas da época,
baseado em procedimentos das Ciências Sociais - através da observação de
comportamento e costumes - em rascunhos e esboços, as informações que queria,
chegando a um resultado no mínimo inusitado.
Depois deste episódio, o Herald Tribune colocou Wolfe como repórter de
assuntos gerais duas vezes na semana, e nos outros dias produzia um texto com cerca de
1500 palavras para o suplemento dominical do jornal, chamado New York, além de
produzir para a revista Esquire. O jornalista começou, então, a usar o recurso do ponto
de vista. Ele acreditava que, assim, o leitor, via narrador, poderia falar com os
personagens, intimidá-los, sem ficar na simples posição de observador/receptor.
De acordo com Czarnobai (2003), Wolfe experimentou a sensação não de algo
novo em jornalismo, mas que era possível sim usar técnicas do romance para descrever
a realidade. O autor também considera que, para Wolfe e Talese
A principal vantagem de uma imersão tão pronunciada no objeto de suas
reportagens era justamente o de poder oferecer uma descrição objetiva
completa, onde a vida subjetiva e emocional dos personagens fosse um
elemento a ser considerado. (CZARNOBAI, 2003) 24.
No mesmo período, um nome não muito famoso, mas de grande importância, foi
o de Jimmy Breslin, que foi chamado para ser colunista no Herald Tribune, o que
significava um reconhecimento pelo bom desempenho como repórter. Ele já havia
publicado artigos em revistas mais especializadas, como True, Life e Sports Illustred e
escrever em uma revista popular era uma novidade. Breslin simplesmente revolucionou
os jornais com suas colunas, provando que era possível um colunista fazer seu trabalho
como repórter, ir para a rua e apurar um fato, e não simplesmente ler acerca de um
assunto e escrever sua opinião. Isso gerou um “mal-estar” entre jornalistas e literatos,
que não entendiam o objetivo do escritor. Segundo Wolfe, Breslin passava o dia todo
fora do jornal cobrindo um acontecimento. O seu trabalho causou confusão tanto entre
os literatos como entre os jornalistas, pois eles não entendiam o propósito do colunista.
24
Disponível em http://www.qualquer.org/gonzo/monogonzo/monogonzo01.html. Acesso em: 30 de
março de 2007.
36
Dois anos depois de Truman Capote, outro romancista iniciou no trabalho de não
ficção. Norman Mailer escreveu o livro de memórias Os degraus do Pentágono, sobre
uma demonstração antiguerra de que participou. O livro causou impacto jornalístico,
ocupando um número inteiro da Harper´s Magazine.
O livro não chegou a ser tão popular quanto o A Sangue Frio, de Capote, mas
causou um frenesi na comunidade literária, já que Mailer não estava com a reputação
muito boa por causa de dois romances: Um sonho americano (1965) e Por que estamos
no Vietnã? (1967). As pessoas o classificavam como jornalista por isso, mas ele não
gostava e colocou como subtítulo em Os degraus do Pentágono “O romance como
história; a história como romance”. “Ali estava mais um romancista que se voltara para
uma forma distinta de jornalismo, independentemente do nome que se desse a isso, e
não só revitalizara sua reputação, mas chegara a um ponto mais alto do que nunca antes
na vida” (WOLFE, 2005, p.48).
Juliana Bontempo e Ariane Ribeiro (2006) observam que o New Journalism não
era nenhum movimento, não havia manifestos. Houve, nos anos 60, um envolvimento
artístico no meio jornalístico, o que era uma novidade e gerou repercussão suficiente
para impactar o mundo da literatura.
2.5 - New Journalism no Brasil
Dois raros exemplos de uma prática mais aprofundada do jornalismo no Brasil
no início do século XX são Euclides da Cunha e João do Rio, que podem ser
considerados precursores da experimentação no Brasil que funde jornalismo e literatura.
Porém, de acordo com Faro (1999), não se pode dizer que foram iniciantes de uma
tendência que inseria a reportagem na imprensa brasileira, já que não houve
continuidade por parte de outros profissionais nesse estilo, uma vez que nenhum deles
trabalhou de fato em um jornal. Ambos, porém, tiveram sua importância, mesmo que
isolada, para o que seria produzido no país na década de 60.
Euclides da Cunha relatou a guerra de Canudos, em 1902, com um olhar
investigativo e naturalista “do investigador conduzido pela brutalidade do meio
geográfico e pelas características da etnia” (FARO, 1999 p.3). O escritor cobriu o
acontecimento de forma diferente dos grandes veículos da época, com seus interesses
37
intelectuais, já que não era jornalista, e com sensibilidade para perceber a realidade, e
não meramente o oficial, relatando, inclusive, o comportamento dos habitantes do local
e como o conflito poderia ser associado à conjuntura internacional. Seus manuscritos
foram enviados para o jornal O Estado de S. Paulo, que publicou matérias, em
capítulos, numa espécie de folhetim. Logo depois do fim da guerra de Canudos, foi
publicado o livro Os Sertões, uma coletânea desses relatos. Segundo José Salvador Faro
(1999), mesmo que se possa considerar a obra uma aproximação da grande reportagem,
ainda faltava a Euclides da Cunha o “compromisso com a estrutura e com a vocação do
órgão de informação”, ou seja, estar em um veículo. Isso fez com que fosse uma
manifestação isolada.
João do Rio, que era jornalista e escritor, pode ser considerado, segundo Edvaldo
Pereira Lima (2004), o pioneiro ao adotar a profundidade nas matérias que fazia, por
meio de entrevistas longas e detalhistas e coleta de informações que estavam além dos
fatos. Essas características deixaram marcas que serviram de base para o que seria feito
no Brasil em termos de jornalismo literário nos anos 60. Em 1918, começou a trabalhar
no jornal Cidade do Rio e, posteriormente, “se notabilizou como o primeiro homem da
imprensa brasileira a ter o senso da reportagem moderna”
25
. Passou então a publicar
suas grandes reportagens, dentre as quais As religiões no Rio e Momento literário, que
depois foram reunidos em livros. Assim como Euclides da Cunha, não teve seguidores
de seu estilo.
No Brasil, entre o início do século XX e o pós-guerra (1945), há muito pouco de
produção de um jornalismo de profundidade nos veículos. Segundo Faro (1999), um dos
fatores foi a criação do Estado Novo e a prática permanente da censura, que inibiam o
trabalho dos jornalistas. Só a partir da década de 40 é que houve uma produção mais
voltada para a reportagem e, na década de 60, uma produção mais ousada.
Na década de 40 do século passado, os jornais começam a se organizar em
redações, com equipes de profissionais especializadas, num formato de empresa
jornalística. Por isso, segundo Faro (1999), a reportagem passou a ocupar um espaço
maior nas redações, o que não significa que ela não existido anteriormente no Brasil.
Após este momento, a reportagem passou a ocupar um espaço maior, nos anos
50, com a revista O Cruzeiro, que pertencia ao Diário dos Associados, de Assis
25
Disponível em http://www.biblio.com.br/conteudo/PauloBarreto/PauloBarreto.htm. Acesso em: 23 de
outubro de 2007.
38
Chateaubriand. Nomes como Millôr Fernandes, Nelson Rodrigues, Lúcio Cardoso,
Rachel de Queiroz, Alex Viany, Franklin de Oliveira, Joel Silveira, Gilberto Freyre,
José Lins do Rego, David Nasser e Jean Manzon faziam parte da equipe de O Cruzeiro,
que não se pretendia, segundo seu dono, ser contra o governo, mas que permitia a
publicação de reportagens em profundidade sobre temas populares.
Criada em 1938 por Samuel Weiner, a revista Diretrizes também marcou os anos
50. A publicação, cujo objetivo era falar de política em pleno Estado Novo, teve
reportagens importantes como sobre a presença do movimento nazista na colônia alemã
do Rio Grande do Sul; sobre golpes financeiros surgidos com a criação da Companhia
Siderúrgica Nacional; sobre a prospecção de petróleo na Bahia; uma entrevista
sensacionalista com o assassino de Euclides da Cunha; sobre o general Miguel Costa,
que havia dividido com Luiz Carlos Prestes o comando da Coluna em 1926, e outras.
De acordo com Faro (1999), apesar das diferenças políticas e empresariais, as
duas revistas “consolidaram a existência da grande-reportagem na imprensa brasileira”
(FARO, 1999, p.7). Deve-se ressaltar também a importância dos periódicos O Jornal,
Diário Carioca, Correio da Manhã, O Globo, que abriram espaço para reportagens
investigativas.
No período pós-guerra, o crescimento da participação política, as eleições, o
populismo entre outros acontecimentos sociais e políticos no país, oferecem um papel
de destaque para os meios de comunicação com uma intensificação das práticas
jornalísticas. “E nesse conjunto, a simples objetividade da informação se revelava
carente de recursos para que a imprensa pudesse acompanhar o ritmo da vida nacional”
(FARO, p.8). Para Faro (1999), estes elementos fizeram com que surgisse, em 1966, a
revista Realidade.
Inspirada no New Journalism, a revista teve os 250 mil exemplares do primeiro
número esgotado em três dias. Em fevereiro de 1967, tinha uma tiragem de 500 mil
exemplares. Segundo Faro (1999), para publicação da Editora Abril não havia tabus e se
dispunha a discutir sobre o que não era discutido ou se discutia timidamente.
Para Edvaldo Pereira Lima (2004), o sucesso de Realidade se deveu ao fato de o
mercado de revistas, na época, ser favorável às vendas, já que ela se propunha a
produzir textos de profundidade e informativos, que davam ao público uma variedade
39
temática, idéias que vão ao encontro da classe média formada no país neste período:
principalmente de jovens de nível escolar superior.
Realidade é sempre vista como um marco na história da imprensa brasileira e
suas características são apontadas como tendências que deixaram um traço de
qualidade que a produção jornalística não chegaria a repetir depois que a
revista deixou de existir (FARO, p.8).
Faro (1999), em sua análise sobre as reportagens publicadas e temáticas
abordadas pela revista, afirma que esta era transgressora, pois confrontava um universo
conservador da época. Segundo o autor, os textos tinham um apelo narrativo que
chamava a atenção do leitor, o que os transformava em polêmicos e insistentemente
tratados em suas páginas.
Foram abordados temas como estrutura da família, mulher, jovens, sexo, religião
e Igrejas, ciência e medicina, questões da política internacional, problemas da vida
política, econômica e social brasileira, questões urbanas, mídia, vida cultural, mitos da
cultura de massa, consumo, assuntos policiais, tecnologia e educação. Havia também
matérias e secções de outra natureza como crítica musical, crítica teatral, crítica
literária, comentários curtos sobre transformações na mídia.
Realidade, pela linha editorial que adotava, passava a ser um meio de
manifestação de organizações políticas, já que muitos dos seus membros eram
militantes. Faro (1999) analisa que a revista foi a única do segmento no período, que era
informativa e literária, mas lembra que o Jornal da Tarde, em São Paulo, tinha uma
proposta de relatar e descrever os fatos de forma diferenciada, fugindo das formas
objetivas de jornalismo. Segundo o autor, estas duas publicações eram reflexos da vida
sócio-cultural da época. “O discurso da reportagem, em busca da variedade e
complexidade de componentes que compõem o real, com o artifício do ficcional e do
literário, era a narrativa de uma época que os jornalistas que viveram essas experiências
como produtores de cultura souberam captar” (FARO, p.11).
Para Sato (2002), a preocupação com o texto na revista era tão grande que se
criou um cargo até então inexistente na época: o de editor de texto. Segundo o autor, no
início, a revista produzia um número maior de reportagens voltadas para personagens
anônimas, mas que representavam um todo, como aspectos da vida nacional, visões de
mundo, comportamentos, entre outros.
40
Em 1968, a editora Abril apresentou o primeiro exemplar da revista Veja, com a
justificativa, de Vitor Civita, editor da Abril na época, de que o Brasil precisava de um
veículo rápido e objetivo. Os editores achavam que as revistas ilustradas estavam
perdendo espaço e que a proposta editorial de Realidade ia de encontro a linha que os
meios de comunicação estavam assumindo, principalmente com o advento da TV. O
definhamento da Realidade era só uma questão de tempo.
"No caso da revista Realidade, o AI-5, mais que por ação direta, assustou a
Editora Abril. Realidade era então uma forte 'instituição política' (ainda que
pareça incrível) e se abateu sobre ela o peso das discriminações. Muitos itens
da pauta de Realidade, e que eram o seu cardápio preferido (estudantes,
padres, juventude, operários, sexo, D.Helder e os bispos progressistas), foram
proibidos. Com isso - e por mais alguns fatores de ordem interna - aconteceu
a 'segunda morte': toda a equipe se demitiu” (RIBEIRO apud FARO, p.21)
Para Sato (2002), uma tentativa de se produzir uma revista como a Realidade
hoje é complicado, já que, para o autor, o espaço para as grandes reportagens hoje na
mídia impressa são pequenos.
Apesar de Realidade ter-se fixado como uma experiência editorial que pode
ser considerada atemporal, muitos tendem a vê-la como fruto de uma
conjuntura específica. Não seria possível, hoje, uma revista como aquela. A
grande contribuição da revista da editora Abril foi a de definir um estilo que
marca a produção jornalística até hoje. (SATO, 2002, p.06).
Mas, em outubro de 2006, foi lançada, pela editora Abril também, a revista
piauí, idealizada pelos irmãos Walter e Moreira Salles, com reportagens no estilo New
Journalism, crônicas e perfis, o que coloca novamente em questão o estilo que
polemizou tanto a década de 60 e depois a de 70 com o Jornalismo Gonzo.
2.6 - Jornalismo Gonzo: o New Journalism levado ao extremo
O Jornalismo Gonzo, considerado por alguns autores como uma versão mais
radical do New Journalism, foi criado por Hunter S. Thompson. Para escrever seguindo
esse estilo, o autor tinha “um envolvimento pessoal com a ação que estava descrevendo,
sem medir as conseqüências, por mais perigosas que fossem” (PENA, 2006, p.56).
Segundo Pena (2006), Thompson defendia a idéia de que era preciso provocar o
41
entrevistado sem importar a ofensa que fizesse, pois deveria se focar na reação da
pessoa, e quanto mais exagerada fosse, mais interessante seria a reportagem.
“Meu jeito de contar piadas é falar a verdade. Essa é a piada mais engraçada do
mundo” (ALI apud THOMPSON, 2004, p.296). Hunter Thompson descontextualizou
essa simbólica frase dita pelo então boxeador Muhammad Ali para conceituar o estilo
peculiar de jornalismo que criou. “E essa é também a melhor definição de ‘Jornalismo
Gonzo’ que eu já ouvi, para o bem ou para o mal” (THOMPSON, 2004, p.296)
De acordo com Pena (2006), uma definição “mais acadêmica” da prática
jornalística de Thompson seria:
Jornalismo Gonzo consiste no envolvimento profundo e pessoal do autor no
processo da elaboração da matéria. Não se procura um personagem para a
história; o autor é o próprio personagem. Tudo que for narrado é a partir da
visão do jornalista. Irreverência, sarcasmo, exageros e opinião também são
características do Jornalismo Gonzo. Na verdade, a principal característica
dessa vertente é escancarar a questão da impossível isenção jornalística tanto
cobrada, elogiada e sonhada pelos manuais de redação. (PENA, 2006, p.57).
A irreverência e a excentricidade do jornalismo gonzo criaram dúvidas no meio
jornalístico sobre veracidade dos fatos apresentados. Pautado na idéia de que o discurso
da imparcialidade e objetividade é uma farsa, essa vertente do novo jornalismo
pretendeu mostrar ao receptor que existe sim, uma tentativa de controle sobre o que ele
vai pensar. Por isso, descarta qualquer critério de prática jornalística tradicional.
O termo “Gonzo” vem do franco-canadense gonzeaux e significa “absurdo”, em
italiano. A expressão foi usada pela primeira vez pelo repórter Bill Cardoso, em 1970,
ao ler uma matéria de Hunter Thompson, que foi cobrir uma tradicional corrida de
cavalos, nos Estados Unidos, mas, sob efeito do álcool e das drogas, não falou nada
sobre o evento. Em sua matéria, Thompson escreveu sobre os bastidores da corrida,
criticou o modo de vida local, fez duras críticas ao presidente Nixon. Ao ver a pauta da
matéria modificada por Thompson, Bill Cardoso disse: “Não sei o que está fazendo,
mas você mudou tudo. Isso está totalmente gonzo” (MACIE et al., 2005). As atitudes
subversivas e irônicas de Thompson marcaram seu trabalho e sua carreira, definindo o
que é gonzo, “para o bem ou para o mal” - expressão característica de sua literatura
(Thompson, 1984).
42
Também chamado de jornalismo fora-da-lei, jornalismo alternativo e
cubismo literário, o gênero inventado por Thompson tem sua força baseada
na desobediência de padrões e no desrespeito de normas estabelecidas, além
da insistência em quatro grandes temas: sexo, drogas, esporte e política.
(CZARNOBAI, 2003). 17
As peculiaridades do jornalismo gonzo acirram as discussões acerca de sua
natureza, colocando em dúvida se ele pode ser considerado uma vertente do New
Journalism ou apenas mais uma manifestação jornalística, assim como o jornalismo
praticado por Capote, Talese e Wolfe.
43
3 – O JORNALISMO GONZO
O Jornalismo Gonzo, uma prática jornalística peculiar e polêmica, apresenta
características próprias, mas tem suas raízes no New Journalism. Seu criador, o norteamericano Hunter S. Thompson era um jornalista free-lancer que teve seus artigos
publicados em importantes revistas norte-americanas como Playboy, Rolling Stone, San
Francisco Chronicle, Esquire, Sports Illustrated e Vanity Fair, só para citar as
publicações mais famosas.
Mas foi a revista esportiva Scanlan´s Monthly que publicou, em 1970, o que
seria o primeiro artigo gonzo de Hunter Thompson. Ao jornalista, havia sido dada a
missão de fazer a cobertura de uma corrida de cavalos, mas o resultado foi uma
reportagem carregada de duras críticas políticas e sociais e sem nenhuma informação
sobre o evento esportivo em questão.
O Jornalismo Gonzo de Hunter Thompson levou as características do New
Journalism ao extremo. Entre as características desta prática, está o uso da primeira
pessoa na construção da matéria e a participação ativa do repórter dentro do
acontecimento por ele relatado. O Gonzo coloca totalmente em questão o mito da
objetividade jornalística, mas não foi apenas neste âmbito que esta manifestação pôde
ser observada. O Jornalismo Gonzo também propunha questionamentos políticos que
estavam em voga em um contexto no qual o espírito contestador da contracultura estava
presente na juventude norte-americana.
André Julião e Renah Magalhães (2006) explicitam que se o Novo Jornalismo
foi considerado uma revolução no modo de se fazer jornalismo, o gonzo foi bem mais
radical nesse sentido, já que faz uso de técnicas como primeira pessoa, ficção, osmose,
entre outras, enquanto no Novo Jornalismo se adotava a terceira pessoa e opiniões ainda
disfarçadas dos autores. Eles defendem um espaço maior para a prática do jornalismo
gonzo na imprensa, pois consideram esta uma prática do jornalismo contemporâneo.
Neste contexto de contracultura, surgiram, nos anos 60 e 70, o New Journalism e
o Jornalismo Gonzo. Entender os princípios e objetivos daquele momento é
fundamental para uma melhor compreensão das propostas destas manifestações párajornalísticas.
De maneira superficial, como pontua Carlos Alberto Messeder Pereira (1984), o
fenômeno da “contracultura” se caracterizava por sinais como cabelos compridos,
44
consumo de drogas, roupas coloridas, aspectos místicos e um estilo musical - o Rock´n
Roll. Porém, durante a década de 1960, ficou bem claro que aquele movimento ditava
novas tendências não apenas estéticas, mas, também empiricamente.
Hunter Thompson não era um hippie, afinal, sua personalidade violenta e
geniosa ia de encontro aos ideais do flower power (poder da flor) e do peace and love
(paz e amor). Mas, não há como negar que Thompson compartilhava muitos pontos de
vista com os hippies, dentre eles, a crítica aos valores burgueses da sociedade norteamericana da época, o american way of life.
Hunter Thompson também sofrera
influência da literatura beat, ou poesia beat, promovida pelos beatniks, representantes
de um anarquismo romântico que pregavam o antiintelectualismo.
Um dos idealizadores da poesia beat foi Allen Ginsberg, que inspirou também o
movimento flower power. Porém, o principal nome deste manifesto literário foi Jack
Kerouac, que viria influenciar novas “expressões do jornalismo participativo” praticado
a partir da década de 1960 pelo New Journalism, de Tom Wolfe, e pelo Jornalismo
Gonzo, de Hunter S. Thompson.
3.1 - O Jornalismo Gonzo e o contexto contracultural
De acordo com Pereira (1984), a contracultura (expressão “contracultura” foi
batizada por jornalistas norte-americanos da década de 1960) se delineou como um
movimento social de caráter libertário que questionava os valores centrais da cultura
ocidental e que teve a adesão da juventude da classe média urbana.
Segundo o autor, o espírito contestador, libertário e racional proposto pela
contracultura já se anunciava ainda na década de 1950, nos Estados Unidos, com a
geração de poetas e escritores, conhecida como beat genneration, ou geração beat. Um
dos principais nomes desta geração foi do escritor norte-americano Jack Kerouac, um
dos ídolos literários do jornalista gonzo Hunter S. Thompson.
As características da literatura beat compreendem uma maior expressividade dos
textos, uma carga mais pessoal “e uma abordagem extremamente emocional de suas
45
experiências em oposição às literaturas altamente técnicas e intelectuais que então
dominavam o panorama da época”. 26
Jack Kerouac incorporou, ainda, uma perspectiva autobiográfica, trazendo sua
personalidade para dentro de sua literatura e, desta forma, rompendo com a
impessoalidade presente nas narrativas da literatura clássica. Rompimento bastante
similar ao proposto e executado no New Journalism e do Jornalismo Gonzo quanto às
técnicas do jornalismo tradicional.
A geração beat era formada pelos beatniks, que nas palavras de Pereira (1984),
se tratavam de um grupo que encarnava “de modo bastante vigoroso, a rebeldia
marginalizada dos anos 50 nos Estados Unidos” (p.34), que rejeitava o caminho do
intelectualismo. Os beatniks foram os antecessores dos hippies.Tratam-se de “um dos
grupos pioneiros do espírito de contestação da contracultura dos anos 60” (PEREIRA,
1984, p.34).
Segundo Luis Carlos Maciel, que foi colaborador do Pasquim e de outros jornais
undergrounds no começo dos anos 70, a contracultura é um fenômeno não apenas
histórico, como também, um fenômeno que transformou a postura e consciência política
e social da juventude da época. Como ele ressaltou, este fenômeno foi propiciado
devido à doença social chamada “alienação”, no viés marxista, e, no viés freudiano da
psicanálise, chamada “neurose”. E a contracultura seria a cura para tais patologias
sociais. “O doente é o homem condicionado que conhecemos em nossa cultura. Sua
perda básica é a própria liberdade” 27
E essa liberdade, incorporada e entendida no contexto jornalístico, diz respeito
às manifestações ocorridas que se opunham aos formatos da imprensa tradicional, como
é o caso dos jornais undergrounds. No Brasil, o movimento contracultural foi
representado, nas artes, pelos tropicalistas e no jornalismo por aqueles que praticavam a
imprensa alternativa dentro de veículos como Pasquim, Opinião, Pif Paf, dentre outros.
No país, a contracultura coincidiu com um momento bastante turbulento da
História que foi o Regime Militar. O boom da imprensa alternativa aconteceu após o
Ato Institucional Número 5 (o AI-5) ter entrado em vigor, no ano de 1968.
26
Disponível no Caderno Cultural do http://www.pco.org.br/conoticias/ler_materia.php?mat=1288
Acessado em: 24 de fevereiro de 2008.
27
PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. O que é contracultura. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1984.
46
No Brasil, o espírito da contracultura esteve presente em diversas publicações –
jornais e revistas – que se caracterizavam como arte contracultural uma vez que
atuavam à margem dos grandes veículos de comunicação. Tais publicações também iam
ao encontro dos demais veículos devido à liberdade editorial que tinham. Como ressalta
Barbalho (2000), esta liberdade “possibilitou discutir diversos assuntos tidos como tabu
(...): sexualidade, movimentos sociais, arte, ecologia, etc” (p.25).
Nenhuma outra publicação “alternativa” fez tanto sucesso e causou tanta
polêmica como o Pasquim. Criada em 1969, a publicação era dirigida por Millôr
Fernandes e tinha em seu cast importantes nomes do jornalismo brasileiro como
Ziraldo, Jaguar, Fortuna e Claudino.
O Pasquim não era um jornal político, era apenas um jornal debochado, de
contestação, indignado, que queria sair do sufoco, um jornal que não
suportava mais ver outros jornais como a primeira página do Jornal do
Brasil, cheia de insinuações e legenda, com o censor dentro da redação.
(CHINEM, 1995, p.43).
De acordo com Chinem (1995), o Pasquim nasceu em uma época de grande
mudança no quadro cultural do país, de uma “nova geração que fincava suas raízes”,
composta por nomes como Chico Buarque, os Tropicalistas e dos cineastas do chamado
“Cinema Novo”.
Recentemente, voltaram a ser produzidas no Brasil algumas publicações que
podem ser consideradas “marginais”: a já extinta Bundas, capitaneada por ex-jornalistas
do Pasquim, e a revista piauí, criada em 2006. Ambas as revistas estão muito distantes
da proposta do que foi chamado jornalismo gonzo. Mas, assim como o jornalismo de
Hunter Thompson e outros jornalistas da época, essas novas manifestações “bebem da
mesma fonte” para se estabelecerem como práticas (alternativas) jornalísticas,
semelhantes àquelas que datavam do contexto da contracultura e do espírito contestador
que este movimento social suspirava.
47
3.2 - Hunter Thompson: pai do gonzo e agente da contracultura norteamericana
Hunter Stockton Thompson, ou simplesmente Hunter Thompson, nasceu em
1939, na cidade de Louisville, no estado do Kentucky, nos Estados Unidos e se suicidou
em 2005. Como pontua Betânia Macie (2005), Hunter era filho de pais alcoólatras,
Hunter Thompson teve uma infância e adolescência bastante turbulenta: foi uma criança
violenta, que tinha como hábito jogar pedras nas pessoas e durante a adolescência
praticou atos de vandalismos. Aos 15 anos, ficou órfão de pai e viu sua mãe afundar
ainda mais no alcoolismo. Nessa época, Hunter Thompson começa a consumir álcool e
drogas. Aos 17 anos foi preso por assalto e condenado a passar sessenta dias na cadeia e
mais uma temporada na Força Aérea Norte-Americana28.
Assim como as drogas e o álcool, o jornalismo também esteve presente muito
cedo na vida de Hunter Thompson. Ainda jovem, junto com seu amigo Walter Kaegi
Junior, escrevia sobre as batalhas norte-americanas para o Sothern Star jornal do bairro
onde morava. Após cumprir sua pena na Força Aérea, Hunter se mudou para Porto Rico
e começou a escrever para diversos jornais locais. Em 1962, voltou para os Estados
Unidos e passa a residir no Colorado.
No começo da década de 70 do século passado, Hunter Thompson viajou, em
companhia de seu advogado, para o deserto de Nevada para cobrir uma corrida de
motos para a revista esportiva Sports Illustrated. Desvirtuado complemente de sua
pauta, o excêntrico repórter escreveu um artigo analisando profundamente a vida dos
viciados em drogas e em jogos de cassinos de Las Vegas, contrapondo as atitudes
desatinadas desses marginalizados ao ideal de vida almejado pela sociedade norteamericana.
Para realizar a matéria, Hunter Thompson incorporou todo o modo de vida
norte-americano pós-Vietnã – costume bastante criticado por Thompson. Alugou um
conversível vermelho e foi em busca do chamado “Sonho Americano”, ou seja, a caça à
28
MACIE, Betania et al. Jornalismo gonzo. Um programa de rádio. In: Simpósio de Pesquisa em
Comunicação da Região Nordeste-Sipec Nordeste, VII. 2005, Natal. Meio digital.
48
“vida farta, riqueza, poder desmesurado de compra e de venda, prêmio conseguido ao
fim por um self-made-man” 29 .
Estamos indo para Las Vegas atrás do Sonho Americano. (...). É por isso que
alugamos esse carro. É o único modo de fazê-lo. Eu quero ter toda a
experiência necessária (...). Porque essa é uma tarefa ameaçadora, com
toques de extremo perigo pessoal... Diabos, eu esqueci completamente dessa
cerveja; quer uma?” (THOMPSON, 1984, p.10).
A matéria, que deveria trazer informações sobre a corrida de motocicletas,
acabou se transformando em um artigo ácido sobre a sociedade norte-americana.
Rejeitada pela Sports Illustrated, a reportagem de Hunter Thompson foi publicada em
duas edições da revista Rolling Stone, em 1971, assinada por Raoul Duke, pseudônimo
de Thompson. (RANGEL & RIBEIRO, 2006, p.10).
No mesmo ano, o artigo foi editado em formato de livro sob o título de Fear and
Loathing in Las Vegas: A Savage Journey to the Heart of American Dream (a edição
brasileira ganhou a tradução de Las Vegas na Cabeça).
É com este livro que Thompson conquista definitivamente o reconhecimento
popular e o status de estrela tornando-se um dos mais fortes ícones de
contracultura norte-americana no século XX, com direito a ter dois filmes de
Hollywood baseado em seus textos (RANGEL & RIBEIRO, 2006, p.10).
Em 1998, esse livro serviu como base para o roteiro do filme Medo e Delírio
(Fear and Loathing In Las Vegas), dirigido por Terry Gilliam e estrelado pelos atores
Johnny Depp, interpretando Hunter Thompson, e Benicio Del Toro, no papel do
advogado Doctor Gonzo. Como laboratório para compor o personagem, Johnny Depp
passou um mês na casa de Hunter Thompson para incorporar o jeito de andar e de falar,
e um pouco da personalidade do seu personagem (os dois viraram grandes amigos,
inclusive, Depp pagou as despesas do funeral de Hunter).
O livro mais famoso de Thompson foi Hell´s Angels (traduzido no Brasil para
Hell´s Angels – Medo e Delírio Sobre Duas Rodas), adaptação de uma reportagem que
escreveu para a revista Nation, publicada em 1965, sobre um grupo de motoqueiros que
cometiam atos de vandalismo. Para escrever a reportagem, Hunter Thompson conviveu
durante um ano e meio com os motoqueiros, participando, inclusive das atividades
29
Segundo o artigo de Urariano Mota, “O Sonho
http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=756
Americano”,
disponível
em
49
ilegais promovidas pelo grupo, sobretudo, o consumo de drogas. (ÁLVARES, 2004).
Após a frenética década de 1970, Hunter Thompson continuou escrevendo por
muito tempo sobre política para a revista Rolling Stone. Durante os seus últimos anos de
vida, Hunter Thompson se candidatou a xerife no condado de Pitkin, no Colorado e foi
cronista esportivo do canal de televisão ESPN.
3.3 – Características do Jornalismo Gonzo
Para Julião e Magalhães (2006), o Jornalismo Gonzo é uma “personalização”. O
argumento é o fato de que os textos de Thompson representam sua própria
personalidade, já que contêm suas opiniões e visões, com sarcasmo e ironia, sendo
extremamente subjetivo. Para eles, o gonzo é a representação mais sincera do
jornalismo, pois a experiência do repórter, às vezes, vale muito mais que o simples
relato.
O Jornalismo Gonzo levou ao extremo algumas características básicas do New
Journalism. Enquanto que na prática de Tom Wolfe, Gay Talese e Truman Capote as
reportagens eram escritas por narradores observadores, no jornalismo de Hunter S.
Thompson, a narrativa era em primeira pessoa por se tratar da característica
participativa do narrador-repórter.
Segundo Macie et. al., (2005) uma das primeiras características dessa prática
que foi denominada como “filho bastardo do jornalismo” é a captação participativa, ou
seja, uma matéria gonzo deve ser escrita, de preferência, em tempo real ao
acontecimento, evitando-se edições e cortes. Como lembrou André Czarnobai (2002),
algumas matérias e livros de Hunter Thompson se tratavam de transcrições de todo o
material bruto das fitas K7 usadas pelo repórter.
Segundo Czarnobai, essa é uma característica particular do Jornalismo Gonzo,
uma vez que os escritores do New Journalism tomavam bastante cuidado quanto ao
“refino na apuração dos fatos e percepção das sutilezas, o que lhes permitiria o uso de
sofisticadas técnicas narrativas como o uso de monólogos interiores e a descrição de
50
ambientes com juízo de valores em textos de caráter jornalístico” (CZARNOBAI,
2002)30.
Para o autor, Hunter Thompson e seu Jornalismo Gonzo simplificaram os
conceitos e aceleraram o processo de produção da revista. Czarnobai citou como
exemplo o seguinte trecho de uma entrevista concedida por Hunter Thompson, na qual
ele contava como estava deprimido por não ter tempo para datilografar seus rascunhos.
Eu lembro de estar deitado numa banheira no Royalton Hotel, pensando
'Bom, estou acabado, agora. Eu perdi o prazo. Eu não consigo fazer nada.
Minha vida profissional está acabada'. Foi aí que eu comecei a arrancar as
páginas do caderno. Eu havia descoberto recentemente o fax. Foi como
mágica para mim. O artigo sobre o Derby foi para as prensas direto das
páginas do meu caderno. 31
Uma característica típica dos textos do Hunter Thompson é a inserção de suas
lembranças pessoais e alucinações decorrentes ao uso de drogas. Em seguida, um trecho
da matéria Medo e Delírio no Bunker, na qual Thompson faz referência à sua infância,
sendo que alguns dados são “aumentados”, para usar como argumento contra o
presidente Nixon.
Um epitáfio estranho para um ano estranho, e também não preciso ficar
dando explicações. Nunca mais tive um leiteiro depois dos dez anos de idade.
Eu costumava acompanhá-lo em seu itinerário, lá em Louisville. Eu era o
corredor, a mula, e de vez em quanto, o cobrador, quando algum coitado com
a conta do leite atrasada precisava quitar a dívida para não ter que beber água
no café da manhã daquele dia. (THOMPSON, 2004, p.10).
Uso do narrador na primeira pessoa, uma vez que, como já dito, o repórter
participa diretamente do fato noticiado e não apenas como um observador neutro. O
repórter não se limita à função de recolhedor informações e apurá-las. O jornalista
gonzo participa (e, muitas vezes, interfere) diretamente do acontecimento se
transformando em um personagem de sua própria matéria. Julião e Magalhães (2006)
ainda citam Czarnobai para dizer que essa imersão ainda é pouco para definir o gonzo
jornalismo. Ele menciona que o repórter gonzo utiliza a osmose, ou seja, assunto e autor
30
Disponível em http://www.qualquer.org/gonzo/monogonzo/monogonzo01.html. Acesso em: 20 de
novembro de 2007.
31
THOMPSON, Hunter. Songs of the Doomed: More Notes on the Death of the American Dream; The
Gonzo Papers, Vol. 3. New York: Simon and Schuster, 1990.
51
se confundem. Isso faz com que, segundo os autores, a narrativa fique até mais próxima
da realidade, já que não é apenas um relato, e sim, uma experiência.
As matérias de Hunter Thompson costumavam retratar as aventuras do jornalista
nos bastidores dos fatos que ele deveria cobrir.
O dia seguinte foi pesado. Faltando apenas trinta horas para o envio da
matéria, eu ainda não tinha credencial de imprensa, nem – de acordo com o
editor de esportes do Courier – Journal de Louisville – chance alguma de
conhecer uma delas. Para piorar, eu precisava de duas: uma para mim e a
outra para Ralph Steadman, o ilustrador inglês que estava vindo de Londres
para fazer uns desenhos do Derby. Tudo que eu sabia sobre ele era que esta
era a sua primeira visita aos Estados Unidos. (...) Meu plano era pegá-lo no
aeroporto a bordo do imenso Pontiac Ballbuster que eu tinha alugado de um
vendedor de carros usados chamado coronel Quick. (THOMPSON, 2004,
p.21)
Uso de drogas, “ainda que facultativo”. As atitudes do repórter Hunter
Thompson, considerado o pai do jornalismo gonzo, ajudaram a “alimentar” esse mito de
que a prática gonzo, no jornalismo, só pode ser desenvolvida sob o efeito de
alucinógenos. A proposta é expandir a percepção do repórter e viabilizar um relato
autobiográfico da realidade, transcrevendo fatos sob a ótica do repórter como agente
participante do acontecimento.
Terça-feira, 13:30... Baker, Califórnia... Dentro da cervejaria Ballatine,
caindo de bêbado e nervoso. Eu reconheço essa sensação: três ou quatro dias
de bebida, drogas, sol e sem dormir queimaram todas as minhas reservas de
adrenalina (THOMPSON, 1984, p.77).
As drogas tiveram um papel importante durante as décadas de 60 e 70 do século
XX. De acordo com Theodore Roszak (1972), pesquisadores como William James e
Havelock Ellis, no final do século XIX, empreenderam um estudo sobre os agentes
alucinógenos. Os dois pretendiam descobrir se “as possibilidades culturais que
poderiam advir de uma investigação da experiência alucinatória”. (ROSZAK, 1972,
p.162).
Os pesquisadores concluíram que existia uma importância filosófica dos poderes
não-intelectivos (alucinações). Para eles, os indivíduos submetidos a tal experiência
experimentam a vida de uma forma diferente. James, em sua conclusão, afirmou que,
muito provavelmente, o poeta favorito de uma pessoa que bebeu mescal (mescalina)
52
será Wordsworth, pois muitos de seus poemas não poderiam ser “apreciados
plenamente” por alguém que nunca usou o mescal.
William James, um dos fundadores do pragmatismo e da psicologia behaviorista,
como observou Roszak (1972), “estava muito ligado às cerebralizações convencionais
da cosmovisão científica”, porém, acreditava que a racionalidade era apenas mais “um
tipo especial de consciência, enquanto que ao seu redor (...) jazem formas potenciais de
consciência” (JAMES apud ROSZAK, 1972, pp.162-163). 32
Quanto ao uso de drogas, Czarnobai (2002) explica que, mesmo sendo uma de
suas principais características, o Jornalismo Gonzo não deve ser resumido às viagens
alucinatórias do repórter. Segundo ele, “de nada adianta o uso de drogas se o texto não
for redigido em primeira pessoa ou adotar um caráter mais austero, por exemplo”.
Essas características têm como resultado um texto cáustico que descreve cenas
inteiras, diálogos, citações, pontos de vista, descrição de personagens e, inclusive, uso
de onomatopéias e interjeições, discordando do tradicional no jornalismo. (MACIE
et.al., 2005).
A reprodução, na íntegra, de diálogos entre repórter e personagens é um recurso
que permite notar a participação ativa do jornalista na história. Abaixo, segue um trecho
da matéria intitulada O Kentucky Derby é decadente e degenerado33, publicada em 1970
na revista Scanlan's Monthly.
No saguão com ar condicionado, conheci um homem de Houston que disse
que seu nome era sei lá o quê – “mas pode me chamar de Jimbo”. – e que
estava aqui para mandar ver. “To pronto para qualquer coisa, juro por Deus!
(...) “O que cê ta bebendo?” Eu tinha pedido uma marguerita com gelo, mas
ele não queria saber: “A, não... que porra de drinque é esse pra se tomar no
Kentucky Derby?”. (...) “Então”, ele disse, “você tem cara de quem trabalha
com cavalos... tô certo?”. “Não”, respondi. “Sou fotógrafo”.“Ah, é?” Ele
olhou com interesse renovado para a minha bolsa de couro surrada. “É isso
que ce ta levando aí – câmeras? Pra quem você trabalha?” “Playboy”,
respondi. Ele riu. “Pô, você vai tirar fotos do quê? Cavalo pelado? Ha!”
Sacudi a cabeça e não falei nada. Só olhei para ele por um momento,
tentando parecer sério. “Vai ter encrenca por aqui”, eu disse. “Minha pauta é
tirar fotos do tumulto.” “Que tumulto?”Hesitei, remexendo o gelo no meu
drinque. “No local das corridas. No dia do Derby. Os Panteras Negras.”
Olhei para ele de novo. “Você não lê jornal?”.
32
William James, The Varieties of Religious Experience (Nova York: Modern Library, 1936), pp.378379.
33
Esta foi a matéria sobre a cobertura da corrida de cavalos que marcaria o nascimento do Jornalismo
Gonzo.
53
De acordo com Julião e Magalhães, uma das primeiras estudiosas do Jornalismo
Gonzo foi Christine Othitis, que em seu artigo Beginnings and Concept of Gonzo
Journalism34, expõe algumas características dessa prática, com base apenas na obra de
Thompson, pois ela o considera o único autor Gonzo.
Dentre outras, a temática é a primeira característica citada por Othitis e se refere
aos assuntos mais abordados por Hunter Thompson em suas reportagens, como sexo,
violência, drogas, esportes e política.
O que Nixon fará agora? Essa é a pergunta que mantém todos os Sábios de
Washigton pendurados pelas unhas. O próprio ar de Washington está
eletrizado com as vastas implicações de 'Watergate' (THOMPSON, 2004,
p.108).
Bom... muita loucura passou por debaixo de nossas variadas pontes desde
então, e presumo que todos aprendemos muitas coisas. John Dean está na
prisão, Richard Nixon renunciou e foi perdoado pelo sucessor escolhido a
dedo. E meu sentimento pela política nacional é mais ou menos igual ao meu
sentimento pela pesca em alto-mar, por comprar terra em Cozumel ou
qualquer outra coisa onde os perdedores acabam se debatendo na água
dependurados em um anzol pontiagudo (THOMPSON, 2004, p.250).
O uso de citações e epígrafes é a segunda característica apontada pela autora e
esse recurso estilístico é usado para “situar o leitor no clima da narrativa, oferecendo
uma prévia do texto” (JULIÃO e MAGALHÃES, 2006, p.63). Segundo eles, as citações
geralmente são de escritores e pessoas famosa, inclusive do próprio Thompson.
"... ontem o leiteiro me deixou um bilhete. Saia da cidade até o meio dia,
você está indo longe demais, muito rápido. E, além disso, a gente nunca
gostou mesmo de você" (PRINE apud THOMPSON, 2004, p.10)
Abertura de uma matéria de Thompson chamada "Medo e Delírio no
Bunker", publicada no New York Times em 1º de janeiro de 1974.
Outra característica citada por Othitis são as referências que Thompson faz a
figuras públicas e, de acordo com Julião e Magalhães, foi o que popularizou a obra dele
na cultura pop dos Estados Unidos.
The Beginnings and Concept of Gonzo Journalism. The Great Thompson Hunt, 1994.
Disponível em http://www.gonzo.org/articles/lit/esstwo.html. Acesso em: 05 de março de 2008.
34
54
"'MATE O CORPO, E A CABEÇA MORRERÁ'. Por algum motivo, essa
frase aparece no meu bloquinho. Talvez tenha alguma relação com Joe
Frazier. Ele ainda está vivo? Ainda consegue falar? Assisti àquela luta em
Seatle (...). Uma experiência dolorosa em todos os sentidos." (THOMPSON,
2004, p.261).
O jornalismo gonzo coloca em questão os princípios padronizados do jornalismo
convencional como a busca pela objetividade, imparcialidade na apuração, necessidade
de ouvir todos os lados de uma história, de obter falas que os comprovem, entre outros.
Bentele (apud KUNCZIK, 1997)35 cita outras características das técnicas jornalísticas
tradicionais: “informar sem emoções; informar de modo desapaixonado; selecionar
palavras neutras para descrever o contexto; empregar citações diretas; citar fontes
contraditórias; preservar evidências adicionais e estruturar na seqüência apropriada
(designação de importância relativa, localização, etc)” (BENTELE apud KUNCZIK,
1997, p.12).
A diferença entre o Jornalismo Gonzo e o jornalismo literário é que neste há um
distanciamento repórter-fato, ainda que a matéria seja mais aprofundada e apurada. A
narrativa não conta com a participação do jornalista, mas com sua visão, ao passo que
no gonzo, o repórter é o próprio acontecimento.
3.4 – Limites entre o Jornalismo Gonzo e o jornalismo convencional
De acordo com Juarez Bahia (1990), a prática do jornalismo diário e tradicional
sofre ininterruptamente um processo de desenvolvimento desde suas manifestações
mais primárias.
Segundo ele, o jornalismo se baseia em deveres que servem como alicerces para
as “responsabilidades do jornalismo”. Com sua base cimentada na objetividade e
imparcialidade, o fazer jornalismo diário lança mão de características como a
independência, veracidade e exatidão para sua composição.
Para Bahia (1990), “objetividade significa apurar corretamente, ser fidedigno,
registrar várias versões de um acontecimento”. Sob essa ótica, a imparcialidade serve
como ferramenta de manutenção da objetividade proposta por Bahia, ao impelir no
35
BENTELE, G. (1982). Objektivität in den Massenmedien – Versuch einer historischen und
systematischen Begriffsklärung. Em: Bentele, G.; Ruoff R. (Eds). Wie Objektiv sind unsere Medien.
Frankfurt am Main: Fischer Verlag.
55
processo de criação jornalística o dever de se constituir como testemunha ocular da
história a partir da publicação de fatos.
No entanto, de acordo com Bahia (1990), a participação da literatura no
jornalismo para que ele tome vida da maneira que é publicado diariamente é visível.
Mesmo assim, apesar das aproximações entre os dois, o ponto de encontro de
jornalismo e literatura ainda é obscuro.
O jornalismo é uma literatura sob pressão na medida em que o que dele
permanece como literatura resulta de um exercício de criação – ainda que
mais de transpiração do que de invenção, mas nem por isso desprovido de
inspiração – sob a pressão do tempo, a pressão do espaço e a pressão das
circunstâncias. (BAHIA, 1990, p.29).
3.4.1– Aproximações e diferenças
Sob a premissa de uma nova prática de fazer jornalismo, as características
principais do jornalismo gonzo já desenharam os limites por onde sua desassociação da
prática do jornalismo tradicional passa.
A captação participativa caracteriza a primeira diferença entre as práticas, uma
vez que, no campo da captação de dados para contar sua história, os repórteres do
jornalismo tradicional assumem um papel de testemunha ocular para transcrição da
realidade. Para a prática do jornalismo gonzo, o repórter propõe uma participação no
acontecimento, “de modo a serem capazes de entenderem mais a fundo o assunto sobre
o qual pretendiam escrever.” (CZARNOBAI, 2003).
Como disposto anteriormente, o New Journalism, prática que mais influenciou
(e precedeu) o jornalismo gonzo, imprimia em seu modus operandi o acompanhamento
extenso e prolongado dos personagens, tanto quanto uma observação participante do
ambiente em que o acontecimento transcorre.
O jornalismo gonzo, no entanto, se dedica menos à apuração observante e
detalhista e imprime empenho na captação participativa e intensa da situação, numa
tentativa de estabelecer novos caminhos na técnica de transpor a realidade e o que o
personagem realmente sentia através de um texto jornalístico. Isso nos traz para a
segunda característica apresentada por Macie et al. (2005), a dificuldade de distinguir
ficção da realidade.
56
A velocidade que o jornalismo gonzo conseguiu reaver em seu processo de
captação, redação e transcrição da realidade a despeito de suas origens no New
Journalism garantiu sua sobrevivência na imprensa diária, enquanto seu precedente se
resvalou em publicações especificas, como livros-reportagem.
A possibilidade de inserção na imprensa diária facilitou ainda mais a segregação
do jornalismo gonzo em relação ao que era publicado diariamente. Entre suas
características mais evidentes, o uso do narrador na primeira pessoa serviu de limiar
definitivo de separação entre o gonzo e o tradicional.
O instrumento visceral para o jornalismo tradicional e usado de maneira
metódica e detalhista pelo New Journalism – a entrevista – é deixado de lado pelo
jornalismo gonzo para transferir o holofote da matéria do personagem para o próprio
repórter, uma vez que ele é parte ativa do acontecimento. Ele é o agente que descreve a
partir dos seus olhos experiências que ele se submeteu para aproximar o leitor da
realidade de uma maneira que nem o jornalismo tradicional ou o New Journalism se
impeliam a fazer.
De acordo com Czarbonai, essa diferença no foco narrativo do jornalismo gonzo
em comparação com o New Journalism ou o jornalismo tradicional é reflexo da
participação direta do repórter na captação de dados para uma matéria gonzo. O repórter
não está mais restrito a observar os fatos que se desenrolam, mas possui liberação para
ter um papel fundamental na ação. “A captação participativa faz com que a redação seja
necessariamente confessional - ainda que de forma indireta, na voz de uma personagem
fictícia que represente o repórter” (CZARNOBAI, 2003). E sob essa premissa, o
jornalismo gonzo se distancia mais do jornalismo tradicional, onde o narrador na
terceira pessoa é fundamental para que o repórter seja peça invisível e observante na
transcrição acontecimento.
57
3.5 – Heranças e herdeiros do Jornalismo Gonzo na imprensa brasileira
contemporânea
O Brasil não ficou alheio às experimentações literárias no jornalismo impresso
no decorrer do século XX. Alguns jornais brasileiros aderiram a algumas das propostas
do New Journalism e foram responsáveis por importantes reportagens que primaram
pela qualidade da apuração e da narrativa.
Julião e Magalhães (2006) falam sobre como o jornalismo gonzo começou a ser
discutido recentemente no Brasil, em termos acadêmicos, e como ainda são pouco
claros os conceitos sobre o tema para estudos acerca do meio jornalístico. Para os
autores é preciso reconhecer – de preferência conhecer, já que nem mesmo os jornalistas
sabem o que é o jornalismo gonzo – e legitimar um estilo que é produzido há décadas.
Os autores citam o criador da revista Realidade como um jornalista gonzo pelo
fato de, em pelo menos uma reportagem, ter utilizado a osmose. Em uma das edições da
revista, José Hamilton cobriu a guerra do Vietnã, sendo inclusive vítima da guerra. Na
capa, uma foto em que aparece ensangüentado. Em 1968, durante a produção de uma
matéria, ele e o fotógrafo resolveram investigar lugares que seriam mais interessantes
para se fotografar, quando na “Estrada sem Alegria” – Vietnã – o repórter pisou numa
mina. Houve uma explosão e Hamilton perde uma perna. A história virou livro – “O
gosto da guerra” – o relato é como se fosse um diário, todo em primeira pessoa.
“É quarto dia após a bomba e eu ainda não consegui comer. A simples visão
das bandejas, com aqueles bifes pretos feitos de carne em pó e as omeletes
viçosas derramando um caldinho branco, me leva ao vômito. A posição única
já me faz dor às costas e, pior ainda, sempre que tento mover-me, sinto
sangue na cama, que aumenta o meu mau humor”(RIBEIRO, p.39)
Isso fazia parte da chamada “reportagem de vivência”, produzida pela Realidade
na época. Embora hoje muitos jornalistas, principalmente na internet, exercitem seu
lado gonzo, nenhum outro repórter levou tão a sério a escola de Hunter Thompson do
que Arthur Veríssimo, atualmente correspondente internacional da revista Trip.
Na década de 80 do século passado, em São Paulo, Arthur era DJ de boates
estilo “inferninhos”, onde começou a ter contato com grupos alternativos, como punks,
58
clubbers e skin heads. Em entrevista a Gustavo Abdel Massih36, Veríssimo explicou
que, junto com a equipe da Trip, tentou adaptar a linguagem gonzo de uma forma que
pudesse ser atrativo ao público-alvo da revista, os jovens.
Essa adaptação, segundo o jornalista, é uma espécie de antropologia com
entretenimento (MASSIH, 2006). Além de relatar as viagens que faz pelo mundo na
revista Trip, Arthur Veríssimo também assina matérias televisivas no programa
Domingo Espetacular, transmitido pela Rede Record. Veríssimo já foi repórter do
programa Domingo Legal e fez matérias peculiares do extinto Programa do Ratinho,
ambos no SBT.
3.5.1 – Arthur Veríssimo: o Hunter Thompson brasileiro?
Arthur Veríssimo Vieira Mello, nasceu no Rio de Janeiro (RJ) em 10 de
fevereiro de 1959 e exerce, sem formação acadêmica, a profissão de jornalista desde
seus 20 anos de idade. No começo da carreira, escrevia para jornais alternativos de
baixa circulação.
Em 1986, Veríssimo conseguiu seu primeiro emprego fixo como jornalista.
Desde então, é o repórter de viagens da revista Trip. Uma das “missões” de Arthur
Veríssimo é de viajar pelo mundo, no melhor estilo on the road, e registrar
peculiaridades dos locais que visita. Em terras brasileiras, quando não está viajando
para conhecer o país, Arthur Veríssimo produz matérias que, em outro veículo, não
teriam chance de serem publicadas.
Arthur Veríssimo já fez reportagem sobre lavagem intestinal posando para a foto
da matéria abraçado a um balde contendo suas fezes (Fui eu que fiz, revista Trip, edição
153), já produziu uma reportagem investigativa sobre entrevistas de emprego, na qual
foi entrevistado em diversas agências de São Paulo (Procura-se, revista Trip, edição
154) e já se submeteu a uma sessão de regressão para produzir uma matéria sobre o
tema (Arthur regrediu, revista Trip, edição 156).
Segundo definição dada pelo fundador da Trip, Paulo Lima (apud SOUZA,
2004), Arthur Veríssimo trata-se de
36
Disponível em: http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=398DAC006 . Acesso em:
08 de março de 2008.
59
Uma mistura de Hunter Thompson, o lendário repórter investigativo junkie
da Rolling Stone, com o palhaço Bozo, Arthur criou um estilo difícil de
imitar, e despertou até o faro da televisão com alguns dos momentos mais
engraçados e criativos da história da Trip. (apud SOUZA, 2004, p.12).
Os textos de Arthur Veríssimo se assemelham muito aos de Hunter Thompson.
Ambos escrevem em primeira pessoa e se utilizam do humor e da ironia para compor
suas reportagens, como nesta:
Há muito tempo, nesta vida e em outras, tenho conhecido terapeutas, sábios,
charlatões, hipnotizadores, oráculos, espiritua-listas, adivinhos de todos os
tipos e graus. E sabia que em Porto Alegre um terapeuta de ascendência
judaico-russa havia criado um sistema de regressão simples e eficiente, a
psicoterapia reencarnacionista. Farejador oficial da Trip pelo mundo do além,
decidi entrar em contato com o enigmático terapeuta Mauro Kwitko para me
lançar no divã de minhas vidas passadas. Queria enfrentar acontecimentos
adormecidos sob esta carcaça jurássica. Um fluxo estranho me arrastava para
o consultório próximo ao bairro do Bomfim, na capital gaúcha... o que seria?
Uma sessão em que mistérios entrevados no inconsciente aflorariam ou mais
uma enganação do supermercado de esoterismo terapêutico babaca que
infesta a pós-modernidade? (Trecho da matéria Arthur Regrediu, revista Trip,
edição 156). 37
Segundo Damião Santos (2002), as matérias de Veríssimo estão em um espaço
que é jornalístico, pois são publicadas em uma revista, veículo que conta com
características como periodicidade, dead line, entrevistas – mesmo que não nos padrões
convencionais – mas ao mesmo tempo sob uma forma que esbarra nos limites da prática
jornalística, pois se refere a um universo literário, com práticas literárias – como
citações, descrições, entre outras – agindo simultaneamente, portanto, um campo de
representação, que é o da revista, e outro da subjetividade, que é o da autoria.
Veríssimo, então, escreve além do que deveria reportar, ou seja, um mundo de
intensidades que não se resume a uma simples observação dos fatos ao seu redor. Sua
escrita apresenta características que colocam em questão alguns aspectos do jornalismo
como é conhecido na prática diária e tradicional.
37
Disponível no site: http://revistatrip.uol.com.br//156/arthur/01.htm. Acessado dia 24 de novembro de
2007.
60
O visual uniforme e monótono do deserto como moldura intensifica o
patchwork de turbantes, saris, flores, jóias, tatuagens, lixo, vacas, camelos e
adereços que explodem pelas colinas. Um caleidoscópio chapado de visões
desafia meu equilíbrio no caldo grosso da celebração. Os personagens e
cenário parecem pertencer ao clássico As Mil e Uma Noites, adaptadas a um
Freak Show terminal. A lua cheia derrama cachoeiras de ambrósia lunar no
sagrado lago da medieval Pushkar. Representantes das tribos nômades do
Rajastão Gujarat, Harayana, Punjab comercializam seus animais. Cabras,
cavalos e, principalmente, a estrela fulgurante da mega-feira: o camelo (...).
Os pastores (Raikas) fazem igualzinho como seus tatataravóvozinhos,
organizam-se com meses de antecedência, deslocando-se pelo deserto de
Thar. A meta é chegar a tempo no período da Kartik Purina (lua cheia de
novembro), para vender-trocar-comprar e negociar seus amados e fiéis
camelos. Lendas, mitos, parábolas, ciganos, turistada e um mega-parque de
diversões é o espetáculo do circo medieval no Pushkar Fair.
(Arthur Veríssimo, matéria sobre um festival de camelos) 38
Nos textos de Arthur Veríssimo, a exemplo de Hunter Thompson, o repórter
também se refere a um universo literário, através de remissões, citações e na linha que
tange a subjetividade e só é viabilizada pelo veículo que ele utiliza para publicação. A
revista seria o espaço que permite ao jornalista ter maior flexibilidade quanto às regras
do jornalismo, por exemplo, o dead line, que na revista tem um prazo maior que nos
veículos diários.
Segundo Santos (2002), a revista tinha um público inicial formado por surfistas,
mas passou a tratar de outros assuntos ao longo do tempo, sem restrições, inclusive, de
faixa etária, sendo maleável às regras de redação do jornalismo, principalmente em
relação ao tempo e ao espaço.
38
Disponível em: http://viajandao.blogtv.uol.com.br/2006/10/18/-camelagem-festival-de-camelos-23.
Acessado em 17 de abril de 2008.
61
4 - O ESTILO MAGAZINE
Este projeto experimental tem como objetivo identificar manifestações do
Jornalismo Gonzo na mídia impressa brasileira. Para a realização deste trabalho, o
grupo realizou a análise de matérias publicadas nas revistas Trip, Rolling Stone e piauí.
Entretanto, antes de se iniciarmos essa análise, é pertinente, antes, proceder um
registro acerca do histórico das revistas selecionadas e da caracterização do estilo
magazine.
A primeira revista de que se tem informação foi publicada em 1663, na
Alemanha, denominada Erbauliche Monaths-Unterredungen (ou Edificantes Discussões
Mensais). Segundo Marília Scalzo (2004), parecia mais um livro, mas era considerada
revista por conter vários artigos sobre um mesmo assunto – teologia – além de ser
direcionada a um público específico e com a proposta de ser publicada periodicamente.
A partir de então, países como França, Itália e Inglaterra começaram a divulgar
publicações semelhantes. De acordo com Scalzo (2004), mesmo não utilizando o termo
“revista” no nome (que só aconteceria em 1704, na Inglaterra), essas publicações se
propunham a “destinar-se a públicos específicos e a aprofundar os assuntos – mais que
os jornais, menos que os livros” (SCALZO, 2004, p.19).
As revistas assumiram um papel importante nas duas Grandes Guerras, porque
eram as únicas que ofereciam imagens nítidas do que acontecia, indo além dos relatos
de jornais. Após o surgimento de novas tecnologias a partir da década de 50 do século
passado, as revistas tiveram a necessidade de modificar o formato para resistir e
continuar despertando a atenção dos leitores (VILLAS BOAS, 1996).
A revista, portanto, abre maior espaço para o texto jornalístico perante o jornal
diário. Isso se deve a vários fatores. Um deles é o tempo. Com uma periodicidade maior
– o tempo mínimo é de uma semana – a revista permite que o repórter investigue de
maneira aprofundada e ofereça ao leitor informações que ele não teria num jornal diário,
com detalhes tratados de forma mais cuidadosa e descritiva.
Junto a esse fator, tem-se a linguagem diferenciada da revista. O texto, que vai
ocupar mais páginas, exige uma forma menos rígida e mais rebuscada e interessante,
que torna a leitura não só compreensível, mas agradável, onde a reportagem
interpretativa ganha força.
62
Também deve ser considerado o espaço para publicação, maior que o
convencional, o que permite ao repórter informar ao leitor mais do que o que ele vê
todos os dias, de forma sucinta. Além disso, segundo Scalzo (2004), outra peculiaridade
ligada a esse tipo de publicação é que esse veículo toma para si um papel importante na
complementação da educação, relacionando-se com a ciência e a cultura, uma vez que
os jornais diários surgiram ligados a tendências ideológicas e a partidos políticos.
Essas características, segundo Sérgio Villas Boas (1996), fazem com que a
revista concilie técnicas jornalísticas e literárias.
A revista semanal preenche os vazios informativos deixados pelas coberturas
de jornais, rádio e televisão. (...) Com mais tempo para extrapolações
analíticas do fato, as revistas podem produzir textos mais criativos utilizando
recursos estilísticos geralmente incompatíveis com a velocidade do
jornalismo diário. (VILLAS BOAS, 1996, p.9)
Ao contrário do jornal diário, o texto da revista se distingue em muito do
jornalismo diário, ou seja, segue outros padrões incompatíveis com a velocidade e
padronização técnica do jornalismo, tende a oferecer o que está além da informação
cotidiana, fugindo da cobertura comum dos jornais diários, que são imediatistas. O
leitor precisa ser conduzido ao longo da narrativa de forma a ter uma leitura satisfatória,
por isso, a revista admite um caráter mais literário que o jornal, até mesmo na arte
gráfica, que é mais trabalhada.
Segundo Villas Boas (1996), mesmo praticando uma forma mais interpretativa
de jornalismo, a periodicidade ainda é um obstáculo quando se trata de temas que
extrapolam o número de páginas programadas, por exemplo.
Assim, o jornalismo literário e o New Journalism se expandem, começando
pelas revistas – depois surgem os livros-reportagens, que não têm periodicidade e
aprofundam muito mais a reportagem – um maneira de mudar concepções de
jornalismo.
De acordo com Scalzo (2004), a história das revistas no Brasil, assim como a da
imprensa em qualquer lugar do mundo, confunde-se com a história econômica e da
indústria do país. As revistas chegaram ao país junto com a corte portuguesa, no início
do século XIX. Antes desse período, Portugal, como metrópole, proibiu a imprensa no
Brasil.
63
A primeira revista brasileira surgiu em 1812, em Salvador, na Bahia, com o
nome As Variedades ou Ensaios de Literatura, com a proposta de abordar temas sobre
os costumes e valores morais e sociais, resumos de viagens, algumas anedotas, artigos
científicos, entre outros.
Em 1813, no Rio de Janeiro, surgiu a segunda revista publicada no Brasil,
denominada O Patriota e, segundo Scalzo (2004), como o próprio nome indicava,
tratava de assuntos ligados ao país. A partir de 1820 surgem várias revistas segmentadas
por temas, como O Propagador das Ciências Médicas, considerada a primeira revista
especializada.
Muitas publicações sofreram com a falta de recursos e de assinantes e, por isso,
duravam, no máximo, dois anos. Em 1837, houve o lançamento da revista Museu
Universal, que apresentava textos leves e acessíveis, destinada a uma população recémalfabetizada, oferecendo cultura e entretenimento. Segundo Scalzo (2004), além dessas
inovações, a revista trazia ilustrações e, também, com o avanço das técnicas de
impressão, o jornalismo em revista brasileiro encontra um caminho para atrair mais
leitores e conseguir se manter.
Com o aparecimento de A Marmota na Corte, em 1849, tem início a era das
revistas de variedades, que, de acordo com Scalzo (2004), fazem uso freqüente de
ilustrações, textos mais curtos e humor. Henrique Fleuiss, de Semana Ilustrada, é o
responsável pela publicação das primeiras fotos nas revistas brasileiras.
No início do século XX, na chamada belle époque, ocorrem muitas
transformações científicas e tecnológicas, que vão refletir na vida cotidiana. Segundo
Scalzo (2004), as revistas acompanharam essas mudanças e, com as inovações na
indústria gráfica, a parte visual foi implementada e, também, várias publicações foram
lançadas.
A partir da década de 20 do século passado, muitas revistas foram lançadas e
fizeram sucesso como O Cruzeiro, em 1928 e durou até a década de 70; Manchete em
1952, e acabou nos anos 90; Realidade, surgiu em 1966 e durou 10 anos; entre outras
que existem até hoje.
64
4.1.1 – A revista Trip
Criada em 1986 por um grupo de surfistas, a revista Trip compreende um nicho
de publicação voltada ao público jovem formador de opinião do Brasil.
Amigos de longa data, os surfistas Paulo Lima e Fernando Costa Netto (Dandão)
foram convidados por um amigo do Rio de Janeiro para serem representantes
comerciais em São Paulo de uma revista sobre surf e outros esportes.A função deles era
vender publicidade para a revista Visual, uma publicação que tinha os jovens como
público-alvo.
Como lembrou Paulo Lima, naquela época (1981) este público encontrava-se
carente de publicações, uma vez que a revista Pop, a mais bem sucedida do seguimento,
havia encerrado suas atividades.
Entretanto, mesmo em um terreno próspero, os
parceiros do Rio de Janeiro se sentiram desmotivados a continuar com a revista e
perguntaram a Lima se ele não gostaria de dar continuidade ao projeto. A resposta foi
positiva.
Paulo Lima lembra que os anunciantes da revista sugeriram que fossem
publicadas na Visual matérias situadas em São Paulo. Lima soube que haveria um
campeonato de windsurf em São Sebastião (litoral norte de São Paulo) e fez um artigo
sobre a regata - a sua primeira matéria jornalística.
Passados quatro anos, Lima e Netto perceberam que não se identificavam mais
com o produto. Em entrevista a Eugênio Bucci, Lima explicou que “a Trip nasceu da
necessidade de fazer uma coisa mais alinhada com o que a gente acreditava. A gente
gosta de esporte, de pegar onda, mas nenhum de nós quis que isso fosse um limitante”.
(Revista Trip, edição número 95/ novembro de 2001).
Surgia então, em 1986, a revista Trip, sob os cuidados de Paulo Lima, Carlos
Sarli, Fernando Costa Netto e Rafic Farah. A nova revista trazia matérias sobre
esportes, música, comportamento, viagens, entrevistas, moda e ensaios fotográficos de
mulheres. Além disso, também publicava as matérias exóticas de Arthur Veríssimo que
em 1986 debutava no jornalismo através da Trip.
A revista foi batizada por Carlos Lima no momento em que este voltava de uma
viagem a Maresias (praia localizada no litoral norte de São Paulo). De acordo com
Lima, o responsável pelo primeiro projeto gráfico da revista, Rafic Farah, não havia
65
gostado do nome Trip (“viagem”, em inglês), pois não era adepto ao estrangeirismo. No
entanto, dois dias depois, o designer telefone para Lima informando de que havia
gostado da idéia e que tinha criado uma logomarca para a revista.
Santos (2002) divide a estrutura da revista Trip em 18 sessões das quais o grupo
destaca:
- Páginas Negras: Sessão de entrevistas despojadas. O nome da sessão é uma
paródia às “Páginas Amarelas”, da revista semanal Veja.
- Trip Girl: Normalmente é a matéria de capa e contempla um ensaio sensual de
alguma garota.
- Reportagem: Matérias, muitas vezes sobre temas inusitados, assinadas por
repórter e fotógrafo da revista. É nesta sessão que se encontram os trabalhos do repórter
Arthur Veríssimo.
- Perfil: Com certa freqüência, a revista perfila personagens anônimos.
- Esportes: Nascida do surf, a revista Trip não se limita a apenas este esporte,
cobrindo outras atividades desportivas, sobretudo, radicais.
- Mundo Livre: coluna escrita por duas pessoas de perfis distantes: um
presidiário que já cumpre pena há 29 anos e outro é um cineasta que mora fora do país.
- Mídia – Críticas sobre a mídia assinadas pelo o jornalista Carlos Nader.
A revista também apresenta diversas sessões para resenhas de produtos culturais
como músicas e filmes. De acordo com os fundadores da Trip, a revista tem como
utopia “o respeito ao diferente”.
As pessoas não entendem as diferenças. O norte-americano não entende
aquele árabe cheio de pano na cabeça. A gente no Brasil não respeita o
baiano, o pobre, o negro, o japonês, o rico. O mundo está sendo obrigado
agora, de forma desgraçada, a tolerar as diferenças. A utopia da Trip é que as
diferenças sejam entendidas, toleradas em alguns casos e gostadas em outros.
(Paulo Lima, em entrevista a Eugênio Bucci.Trip, edição nº95, novembro de
2001).
Ainda, segundo os idealizadores, o trunfo da revista é o pluralismo de idéias,
algumas bem polêmicas e pouco discutidas em outros veículos. “Uma revista que se
propõe aglutinar os diferentes tem a perspectiva de estar aberta para tudo: para os índios
66
da Nova Guiné que andam com o pinto num cone até o outro que prega a eutanásia e
usa LSD”, elucidou Paulo Lima, na entrevista a Eugênio Bucci.
A revista tende a contemplar em suas capas fotos de mulheres bonitas semi-nuas,
uma vez que os ensaios fotográficos são o carro-chefe da publicação. Porém, às vezes a
revista opta por fazer capas inusitadas, mesmo que a mudança implique em uma
vendagem menor.
Na entrevista, Lima contou sobre a capa da edição número 19, de abril de 2001,
que trazia um rapaz negro, pobre e desdentado na capa. O homem sorria exibindo os
poucos dentes que tinha,cada um com uma incrustação de uma pedra de cor diferente.
“O Farah inventou de pôr moldura vermelha para ficar parecida com a Time.
Um dia chego no escritório, estaciona um caminhão, abrem a porta de trás e cai um
bilhão (sic) de pacotes com aquele negão rindo....Era o encalhe. Parecia que ele estava
rindo da nossa cara”, lamentou Lima.
4.1.2 A revista piauí
Idealizada pelo documentarista João Moreira Salles, a revista piauí oferece hoje
uma alternativa de jornalismo literário no gênero magazine nacional. Sua primeira
edição data outubro de 2006 e, desde então, desponta como formato de informação
diferenciada pela premissa do jornalismo literário em suas matérias.
De acordo com Luiz Rebinski (2006), o primeiro número da revista teve tiragem
de 40 mil exemplares, esgotados rapidamente. A piauí foi inspirada na The New Yorker,
publicação que foi berço de importantes repórteres como Truman Capote, Ernest
Hemingway.
Ainda segundo Rebinski (2006), a piauí nasceu com a missão de ser investir em
grandes reportagens, pouco exploradas pelas demais publicações brasileiras. As pautas
da revista contemplam temas banais do cotidiano que ganham grandiosidade a partir de
textos bem construídos que “vão além do óbvio e da efemeridade do jornalismo diário
que, aliás, nunca tem tempo e espaço para algo mais do que o básico”. (REBINSKI,
2006). 39
39
Disponível em: http://www.rabisco.com.br/87/imagem_nao_e_nada_text_e_tudo.html. Acessado dia 24
de maio de 2008.
67
O nome da revista, ao contrário do possa parecer, nada tem a ver com o estado
localizado no nordeste brasileiro. O sentido do nome ainda é uma incógnita até mesmo
para João Moreira Salles que, simplesmente, acordou um dia com “piauí” em mente e
batizou o seu projeto desta forma (REBINSKI, 2006).
Em entrevista ao programa televisivo da TV Educativa do Brasil (TVE),
Observatório da Imprensa, do dia 02 de outubro de 2007, João Moreira Salles explicou
que a sonoridade da palavra – que contém um ditongo com quatro vogais – foi o ponto
mais marcante para a escolha do nome da publicação.
“É um nome afetivo, é cheio de vogais, a sonoridade é bonita, é bonito quando é
escrito. É um nome pelo qual você pode se afeiçoar. Não tem nenhum sentido. Ele é
insensato, no bom sentido”,
40
defendeu Salles na entrevista concedida ao jornalista
Alberto Dines.
Na ocasião, Salles afirmou que sua revista é mais lenda do que as outras, pois os
repórteres têm mais tempo para apurar e escrever suas matérias e não tem a premência
do factual. “Isso dá para gente uma certa calma. Contrasta um pouco com o que você
encontra nas bancas de jornais do Brasil”, disse o idealizador da revista na entrevista ao
Observatório da Imprensa.
O expediente da revista não apresenta uma divisão hierárquica convencional. Na
entrevista a Alberto Dines, Salles contou que nunca fizera uma reunião de pauta com a
equipe da piauí. O que de fato acontece, segundo explicou, quando algum repórter tem
uma idéia de pauta, procura o editor da revista, Mário Sérgio Conti, para sugerirem a
matéria.
“A revista é pequena, num lance de olhos você vê todo mundo da redação. São 3
salas interligadas, o que facilita muito a conversa, o trânsito de idéias. É um bom lugar
para trabalhar”, elucidou João Moreira Salles.
Rebinski (2006) acredita que a revista surgiu em um momento decisivo para o
jornalismo, quando este experimenta uma crise diante das redações enxutas com textos
que acompanham tal tendência. De acordo com o autor, atualmente é raro encontrar na
imprensa brasileira matérias que ultrapassagem meia página de jornal, assim como faz a
piauí.
40
O resumo deste programa pode ser lido no site da TVE, no seguinte link:
http://www.tvebrasil.com.br/observatorio/arquivo/principal_071002.asp. Acesso em: 24 de maio de 2008.
68
4.1.3. A revista Rolling Stone
A revista Rolling Stone foi fundada em novembro de 1967, em São Francisco,
Califórnia (EUA), por Jann Wenner e Ralph J. Gleason, em meio ao contexto da
contracultura norte-americana. Naquela época, de acordo com Rodrigo Pinto (2006),
quando as revistas em circulação desprezavam o cenário musical vigente, a Rolling
Stone inovou ao permitir a publicação de textos mais longos que extrapolavam os
limites da carreira de artistas e bandas, mostrando a intimidade de seus entrevistados.
Desta forma, segundo Pinto (2006), a Rolling Stone passou a ser reconhecida
pela liberdade de expressão que dava para artistas e jornalistas que usavam o espaço da
revista para falarem de assuntos que eram tabu até aquele momento, como sexo, drogas
e questões políticas.
O cast da publicação era composto pelos nomes que viriam a fazer história no
jornalismo norte-americano: Cameron Crowe, diretor de filmes como Jerry Maguire e
Quase Famosos; Peter Travers, hoje crítico de cinema e música do New York Times,
Lester Bangs, considerado o inventor do termo punk e o jornalista Hunter Thompson, o
pai do Jornalismo Gonzo.
Quando nasceu, a Rolling Stone tinha um viés exclusivamente político. Ela
incorporou o discurso político dos jovens (e “hippies”) da época, o lema “sexo, drogas e
‘rock´n roll’”. Na época, o mundo “assistia” à Guerra do Vietnã e a revista não
poupava críticas ao governo, pedindo a retirada das tropas norte-americanas do país
asiático.
De acordo com João Marcos Prado (2006), em 1976, a sede da revista se
transfere da Califórnia para Nova York e essa mudança se estende também à linha
editorial da revista. O discurso político de anos atrás fora esquecido e, estampando suas
capas, apenas estrelas de cinema.
Seguindo a tendência de mercado, na década de 90, a Rolling Stone mudou
novamente sua linha editorial a fim de conquistar o público adolescente, quando a
publicação passou a focar suas atenções para jovens atores de televisão e as reportagens
sobre sexo e música pop. (PRADO, 2006).
69
Em 2002, segundo informação do Estado de S.Paulo, postada no site do
Observatório da Imprensa41, Jann Wenner contratou um novo editor para a revista, Ed
Needham, da revista britânica FHM para, mais uma vez, reconfigurar a linha editorial
da Rolling Stone. Segundo informação do jornal O Estado de S. Paulo e publicado no
que essa reconfiguração vinha atender a “novo tipo de leitor”.
Segundo a matéria, Wenner disse que em um “mundo saturado com opções da
mídia, muitos editores chegaram à conclusão de que, nas revistas, as palavras já não
vêm mais ao caso”. Segundo ele, os jovens leitores não têm muita paciência para ler
textos longos.
Entretanto, nos últimos anos, após críticas de antigos leitores da revista sobre a
superficialidade jornalística da mesma, a Rolling Stone norte-americana voltou a
publicar análises políticas, econômicas e matérias de comportamento mais
aprofundadas. A revista também voltou a adotar as propostas do New Journalism e
Jornalismo Gonzo.
Em 2004, o candidato à presidência dos Estados Unidos, John Kerry estampou a
capa da revista, que recomendava seus leitores a votarem no democrata. Em 2006, na
edição de maio, a matéria de capa questionava a atuação do presidente George Bush e o
artigo fora creditado a um conceituado historiador naquele país, Sean Wilentz.
(PRADO, 2006).
Assim como nos seus primórdios, quando criticava o governo norte-americano
por promover a Guerra do Vietnã, a Rolling Stone atualmente faz duras críticas à
ocupação das tropas de Bush no Iraque.
Com esses períodos de alternância na linha editorial, a Rolling Stone
caminhou conforme a tendência global. Assim: nos anos 60 era a crítica
ferrenha, posteriormente o encantamento com o mundo pop e atualmente
uma mistura desses dois conceitos. Deve-se dizer que em todas as épocas ela
manteve sua importância como divulgadora cultural. (PRADO, 2006)
Nos Estados Unidos a revista é quinzenal e tem tiragem de 1,5 milhão de
exemplares por mês. A Rolling Stone tem edições em outros países como Inglaterra,
França, Itália, Austrália e China, nas quais metade do conteúdo é constituída de
41
Disponível em: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/asp1906200292.htm . Acessado dia
24 de maio de 2008.
70
matérias traduzidas da revista-matriz. Desde 1998 a revista circula na América Latina.
No Brasil, uma versão pirata da revista já havia sido editada entre 1972 e 1973.
A nova edição brasileira chegou às bancas em outubro de 2006 e segue a
tendência das demais publicações latinas, com conteúdo “local” e matérias da matriz
norte-americana. 42
A editoria responsável pela produção da Rolling Stone brasileira é a Spring
Publicações, que edita a revista de bordo da empresa área Tam (Tam Magazine). Os
sócios da Spring, José Roberto Maluf, ex-executivo da TV Bandeirantes e do SBT e
Miguel Civita, do grupo Abril são os publishers da revista. O editor-chefe da revista é
Ricardo Cruz, ex-editor da Revista da MTV.
4.2 - Metodologia
Como este projeto experimental tem o objetivo de identificar e analisar as
“manifestações gonzolísticas” presentes no jornalismo impresso contemporâneo,
procedemos com a seleção e análise de reportagens publicadas nas revistas piauí,
Rolling Stone e Trip e que apresentaram, pelo menos, algumas das características dentro
dos critérios estabelecidos para esta observação.
Inicialmente, não foi estabelecido limite temporal para consultas das revistas,
uma vez que não se tratam de publicações gonzo, e sim, veículos que permitem uma
maior liberdade na produção de textos, ou seja, estruturas narrativas que se assemelham,
em certos critérios, às características do Jornalismo Gonzo apresentadas pelos autores
estudados para esta pesquisa. Assim, como não há regularidade na publicação deste tipo
de texto, definido por nós como “manifestação gonzolística”, torna-se difícil estabelecer
critério de natureza temporal.
A idéia inicial foi observar o conteúdo das matérias publicadas nos veículos
acima mencionados e perceber semelhanças (ou ressonâncias) das características
descritas como delineadoras do jornalismo gonzo. Ainda contará também com uma
análise sobre o conteúdo das matérias indicadas, visando estabelecer 'graus de gonzo'
em práticas nessas mesmas narrativas.
42
Disponível em: http://oglobo.globo.com/cultura/mat/2006/08/21/285351289.asp. Acesso em: 24 de
maio de2008.
71
As características que serão analisadas nas matérias escolhidas são práticas
atuais que apresentam resquícios da postura gonzo que rebate os princípios
padronizados no jornalismo como a busca pela objetividade, imparcialidade na
apuração, necessidade de ouvir todos os lados de uma história e de obter falas que os
comprovem, entre outros.
Segundo Macie et. al. (2005) as primeiras características dessa prática que foi
tachada de “filho bastardo do jornalismo” são:
a) Captação participativa, ou seja, o repórter não se limita à função de
recolhedor de informações e de apurá-las. O jornalista gonzo participa (e muitas
vezes interfere) diretamente do acontecimento se transformando em um
personagem de sua própria matéria.
b) Dificuldade de discernir ficção da realidade, conseqüência do uso de fatos
irreais como técnica para dramatizar a matéria. “Esta diferença entre ficção,
entretanto, não deve ser revelada pelo autor” (MACIE et.al., 2005).
c) Narrativa em primeira pessoa, uma vez que, como já dito, o repórter participa
diretamente do fato noticiado e não apenas como um observador neutro.
d) Utilização de recursos ficcionais, como descrição de cenas inteiras, diálogos,
citações, pontos de vista, descrição de personagens e, inclusive, uso de
onomatopéias e interjeições, discordando do tradicional no jornalismo.
A partir dessas categorias, elegemos para esse trabalho, os seguintes critérios de
verificação das matérias selecionadas nas revistas Trip, piauí e Rolling Stone:
a) Grau de participação ativa do repórter no acontecimento
b) Nível da presença do repórter
c) Ficção x Realidade
As matérias selecionadas para análise são:
O Cheiro da Pobreza, de Mário Vargas Llosa, revista piauí, fevereiro/2007;
O andarilho, de João Moreira Salles, revista piauí, agosto/2007;
O mal-amado, de Arthur Veríssimo, revista Trip, nº95, novembro/2001;
Vaca loca, de Arthur Veríssimo, revista Trip, nº98, março/ 2008;
Ouro Baiano, de Vladimir Cunha, revista Rolling Stone, nº3, dezembro 2006;
72
O Anjo Pornográfico, de André Maleronka, revista Rolling Stone, nº17,
fevereiro/2008.
Objetiva-se concluir, após as análises, as heranças deixadas pelas
manifestações de Hunter Thompson na prática do jornalismo contemporâneo e
compreender os limites que seus herdeiros brasileiros assumem para a transposição de
suas práticas na forma de textos com influências em diversos níveis do jornalismo
gonzo.
73
5 – ANÁLISE DAS MATÉRIAS
Como explicado no capítulo anterior, para a análise das reportagens
selecionadas, serão contempladas três características básicas do Jornalismo Gonzo:
a) Participação ativa do repórter no acontecimento, percebida pelo conteúdo da
reportagem;
b) Nível da presença do repórter na narrativa;
c) Indícios de ficcionalização.
É importante esclarecer que, nesta análise, pretende-se observar níveis de
influência do estilo gonzo na forma de produção das reportagens e de construção das
narrativas das mesmas.
Deixa-se claro que a intenção da análise é encontrar níveis de influência, não
pretendendo, portanto, identificar matérias e repórteres que lançam mão de todos os
recursos estilísticos desenvolvidos por Hunter Thompson, criador do Jornalismo Gonzo.
5.1 – Participação ativa do repórter no acontecimento
Esta característica diz respeito à “transformação” do repórter em personagem da
sua própria matéria. O fato relatado com a participação do repórter que está lá acontece
intervindo no cenário, como é o caso das matérias do Arthur Veríssimo, publicadas na
revista Trip.
O papel de Arthur na publicação é se aventurar em um dado ambiente e relatar
as experiências vivenciadas. Na reportagem O mal-amado (Trip, edição nº95), Arthur
Veríssimo (ou Arthur Sucupira Veríssimo, como ele assinou essa matéria) tem como
missão se aventurar nas consideradas “piores profissões”. Para tanto, o repórter se
passou por árbitro de futebol, vendedor de enciclopédia, atendente de telemarkting,
vendedor de poesia, fiscal de trânsito e lavador de carros.
74
Era um domingão. Tinha muito sol: “Toca pra várzea”, gritei do carro para a
produção. Havia sido convocado para ser juiz de uma partida de futebol às
margens da sofrível marginal Pinheiros, em SP. O jogo era, na verdade, um
clássico de repercussão nacional no mercado de distribuidores de bebidas:
Adega Machadinho (Broklyn) x Adega Baladino (Campo Limpo). Um
clássico. (Trip, nº95, 2001, p.86).
O início da matéria já anuncia que Arthur Veríssimo será o protagonista de sua
matéria. Em outro momento da matéria, Veríssimo e um vendedor de enciclopédia
batem de porta em porta oferecendo a Barsa. A participação do repórter neste
acontecimento, também é facilmente notada.
Com Jerson ao meu lado, tentei minha primeira venda. Vestindo um modelito
especial para induzir, acionei a campainha de uma escola de crianças. Fomos
recebidos atenciosamente pela diretora. Xavecava o papo gosmento e a
conversa seguia animada, porém me atormentava a expectativa de receber um
“não”.(...) Quinze minutos e duas xícaras de café mais tarde, recebemos um
educado e sonoro NÃO. (Trip, nº95, 2001, p.87).
Outra forma de identificação da forma de participação do repórter no
acontecimento é a transcrição de forma direta de diálogos entre ele e os demais
personagens. Exemplo deste recurso pôde ser visto na matéria, no momento em que
Arthur Veríssimo se passa por lavador de carros e oferece uma limpeza em um
automóvel parado no sinal.
-
Ô, moleque! Sai fora, o carro acabou de ser lavado, pô! – berrava
insanamente o gordinho da Parati, com olhos de sanatório.
Relaxa,meu tio, só estamos dando um realce na fachada da caranga –
exclamei, com um rodinho encardido em punho.
Caralho! Sai fora, parasita! – o gordinho abriu a porta do veículo e saltou pra
cima de mim. (Trip, nº95, 2001, p.89).
Na reportagem Vaca Loca (Trip, edição nº98), Arthur Veríssimo assume outro
personagem para relatar suas experiências na Indonésia. Ao pegar emprestado o
sobrenome do surfista mundialmente famoso Kelly Slater, Veríssimo expõe suas
experiências pelos mares de Bali e faz disso um retrato incomum dos pontos turísticos
da cidade.
Nosso repórter-paneleiro se atira nas águas de Bali, na Indonésia, para
conhecer um dos destinos turísticos mais bombados do planeta e se iniciar na
arte do surf. Entre vacas, gafanhotos e dragões de Komodo, emergiu para
contar a experiência. (Trip, nº98, 2001, p.80)
75
A reportagem de Veríssimo nessa edição da Trip tem aspecto turístico e de
divulgação da Ilha de Bali. Seus pontos de visitação relevantes são evidenciados na
matéria à medida que o jornalista passa por eles. Além disso, lugares e experiências que
fugiriam, normalmente, a uma reportagem de uma revista turística são explicitados na
reportagem a partir de relatos do repórter, imbuídos de sua percepção subjetiva,
transformando-a numa espécie de diário de bordo.
Tostado de sol e com os músculos relaxados, fui investigar uma parada sui
generis, a famosa “kri-kri fight”, a briga de gafanhotos. O povo dizia que o
babado estava há muito extinto. Até que conhecemos um tiozinho bizarro,
que atrás de uma loja de móveis e artesanato tinha uma criação de galos. O
sujeito era aficionado por briga de galo e conhecia um pico onde poderíamos
encontrar o vale-tudo dos gafas. (Trip, nº98, 2001, pp.83-84).
A reportagem Vaca Loca conta com todos os aspectos que uma matéria turística
prevê: divulgação de pontos de visitação, culinária, cultura e preços. Apesar disso, sua
não convencionalidade é explícita porque sua narrativa está sempre subjugada a ótica do
repórter e a informação de como visitar Bali vem acompanhada de como o repórter se
sentiu durante a estadia no país.
Para comprar um recuerdo, as lojas de artesanato balinês estão por todos os
cantos. Um único porém: quase ninguém aceita notas antigas de dólar. Só
pegam as novas de 100, impressas nos anos 90, que levam a cara de Franklin
Roosevelt. À noite, para meter o pé na jaca, o pico é a Double Six, boate na
cara da praia. Altas branquelas australianas que, dizem, adotaram a erótica
moda de depilar o corpinho inteiro. Sem falar nas inglesas, francesas e locais.
A sonzeira vai até de manhã. Vai com fé. (Trip, nº98, 2001, p.85).
O fato relatado nas matérias da Trip não existiria se o repórter Arthur Veríssimo
não se submetesse como personagem principal das mesmas.
Na matéria publicada por Mário Vargas Llosa na revista piauí (edição nº05), de
fevereiro de 2007, também fica evidente a participação do repórter no acontecimento. O
Cheiro da Pobreza começa com um relato de vivência própria do repórter, que vai falar
da situação de países pobres que, em muitas cidades, não têm tratamento sanitário
descente e nem uso correto da água. O primeiro parágrafo já é em primeira pessoa.
Há três anos, durante uma viagem de Lima a Ayacucho por terra, fizemos
uma escala no meio de uma chapada na cordilheira, uma aldeia onde havia
um pequeno posto policial. Pedi licença para o chefe para usar o banheiro. “À
vontade, doutor”, disse ele gentilmente. “O senhor quer defecar ou urinar?”.
Respondi que a primeira alternativa. (piauí, nº05, 2007, p.35)
76
O repórter utiliza desse recurso, que causa um estranhamento pela forma como é
tratado no primeiro parágrafo, para chamar a atenção do leitor quanto ao problema
discutido, mostrando que ele, o repórter, está na situação, passando por todos os
problemas do local. Logo depois, Llosa expõe toda a sua indignação quanto aos dados
de desperdício de água no mundo, por países ricos e a falta de preocupação dos mesmos
com os países pobres.
A lembrança dessa cena me perseguiu sem trégua enquanto, às vezes
tampando o nariz, eu folheava a 422 páginas de um relatório, recentemente
publicado pelas Nações Unidas, intitulado A água para lá da escassez:
poder, pobreza e a crise mundial da água. (piauí, nº05, 2007, p.35)
Toda a matéria segue com dados a respeito do relatório e a opinião do repórter
sobre os fatos, características herdadas do Jornalismo Gonzo.
A reportagem Ouro Baiano, de Vladimir Cunha, veiculada na revista Rolling
Stone de dezembro de 2006, também apresenta aspectos primordiais de separação entre
o jornalismo convencional e o Jornalismo Gonzo, no que diz respeito à presença do
repórter na narrativa. Por vezes, Vladimir lança mão da primeira pessoa para deixar
marcas de sua impressão e sua experiência ao acompanhar a rotina da cantora Ivete
Sangalo.
Enquanto ligo novamente, fico pensando no que pode ter dado errado. Um
ataque de mau humor da diva? Ivete cansada de dar entrevistas? Problemas
na produção? Ingressos encalhados? Vai saber... Estranhos são os caminhos
do show business. (...) Saio em busca de ajuda. Quem salva a minha pele é a
recepcionista do hotel. “O Dito?, pergunta ela, “é ele ali com aquele pessoal.”
(Rolling Stone, nº03, 2006, p.68).
5.2 – Presença do repórter na narrativa
O repórter pode deixar explícita sua presença na matéria sem que,
necessariamente, se transforme em personagem da mesma. O detalhamento da cena,
informações peculiares dignas de uma testemunha ocular e, sobretudo, o uso da
primeira pessoa deixando à mostra a subjetividade do autor, são a natureza desta
característica do Jornalismo Gonzo.
77
Na matéria publicada na revista Rolling Stone (edição nº17), o repórter André
Malenronka usa primeira pessoa numa narrativa em que explicita todos os passos
seguidos por ele na condução da entrevista com Mônica Mattos, “a atual rainha do
pornô brasileiro”, como no trecho:
Os quatros diferentes números de celular que me foram passados por
diferentes profissionais da indústria forma inúteis. Encontrá-la pela primeira
vez foi por acaso, durante a filmagem de uma produção internacional com
atores estrangeiros e atrizes brasileiras (Rolling Stone, nº 17, 2008, p.78).
As descrições do ambiente de entrevista e dos gestos de Mônica são bastante
detalhadas, o que não é uma característica exclusiva do jornalismo gonzo – a forma vem
desde o jornalismo literário – mas há uma opinião do repórter na descrição, ou seja,
juízo de valor, um ponto bastante questionado no gonzo.
A anfitriã ajeita as cadeiras, se senta e abre seu sorriso reto. Então se torna
uma garota roqueira, em sua vestimenta preta, destas que despertam paixões
instantâneas na rua. Aquelas que, na firmeza do olhar, garantem: sou a
gatinha mais incrível do bairro de onde venho, a rainha da minha vila, uma
namoradinha do Brasil. (Rolling Stone, nº17, 2008, p.77).
Embora a matéria tenha apenas características tímidas, não tão explícitas quanto
fazia Thompson no gonzo como uso de drogas, utilização de ficção com realidade, entre
outras, o repórter utiliza de narrativas mais ousadas, o que não acontece no jornalismo
que utiliza de técnicas literárias e que, inclusive, adota certos padrões de escrita a serem
seguidos, um deles é a não interferência na história.
Desta vez, ela não usava a blusinha branca sem sutiã ou short de ficar em
casa. Desta vez, seu marido também não estava. Os cabelos, umedecidos por
um banho recém-tomado, ficaram mais escuros e, sob a iluminação
amarelada, pareciam unir-se à calça de veludo stretch e à camiseta, ambas
pretas. Parecia vestir um hábito. E, como uma freira, Mônica estava
reservada, impenetrável(...). Despedida de seu visual costumeiro – a
maquiagem carregada e os figurinos sexualistas que compõem sua imagem
pública -, ela me recebe no apartamento pequeno. (Rolling Stone, nº17, 2008,
p.77).
As descrições detalhadas transmitem a impressão de que a matéria foi escrita na
mesma hora da entrevista. O repórter faz várias observações sobre o comportamento e
gestos da entrevistada durante o texto, como no gonzo, em que um dos traços de
78
Thompson era escrever sempre o mais imediatamente possível após a entrevista, ou
apuração.
Mônica gosta do que faz. Encolhida em um sofá também preto, na minúscula
sala de seu flat no Centro de São Pulo, após o renitente “não sei o que te
dizer”, a morena toma fôlego e reponde com um sorriso reto: “Eu sou
tranqüila assim porque faço o que gosto, e me sinto bem fazendo”. (Rolling
Stone, nº17, 2008, p.77).
Em O andarilho, publicada, na revista piauí (edição nº11) de agosto de 2007,
João Moreira Salles utiliza a descrição de gestos, comportamentos e ambiente o tempo
todo, numa narrativa sobre a rotina do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, na
Universidade Brown, Estados Unidos. Tem-se a percepção de que o repórter está
presente nas ações, mas não é parte delas.
Fernando Henrique está instalado na sala 218 da Rhodes Suíte, no Thomas J.
Watson Jr Institute for International Studies. É uma sala confortável e
impessoal: bancada para o computador, mesa redonda para reuniões, duas
fileiras de estantes repletas de journals de estudos latino-americanos, dezenas
de exemplares do mesmo número. FHC guarda seus livros, não mais de vinte,
na prateleira sobre o computador, ao alcance da mão. (piauí, nº11, 2007,
p.27)
Salles também transcreve diálogos, como na matéria da Rolling Stone,
parecendo ao leitor que estava escrevendo no mesmo momento em que entrevistava.
Ele se levantou abotoando o terno azul-marinho. Havia trazido dois ternos
para a temporada americana – o outro, de risca de giz -, comprados por 400
dólares cada na liquidação da loja de departamentos Sacks Fifth Avenue
(“Ótimo negócio!”, congratulou-se). (piauí, nº11, 2007, p.27)
A reportagem se estende por cinco longas páginas, sempre com a mesa definição
e ritmo. Há sempre descrições de diálogos e comportamentos, que deixam o leitor
imerso no perfil retratado e fazem com que a narrativa fuja dos padrões técnicos do
jornalismo tradicional e tenha diferenciais que a aproximam do jornalismo gonzo,
mesmo que contenha apenas uma de suas características.
Veríssimo se utiliza muito da primeira pessoa, mas, por várias vezes, recorre ao
discurso indireto, passando a escrever em terceira pessoa, como pode ser visto na
matéria O mal-amado (Trip, edição nº95), quando o repórter encontra-se acompanhado
de adolescentes que lavam os carros.
79
Luiz, 14 anos. David, 12. Rafael, 13. Jefferson, 14, e Elvis, 17. Todo santo
dia pegam o bumba cedinho e só voltam pra São Mateus no final da tarde.
Metade da verba é para ajudar a mãe – o restante é para os sonhos de
consumo. Cada um ganha em média de 15 a 30 reais por dia. Rafael
desabafa: “O que temos mais medo é da polícia, que chega arrepiando e
descendo o cacetete”. Fico chocado com toda essa situação. De repente, pego
os proprietários dos veículos, principalmente as mulheres, olhando
apavorados para mim. Não sei o que pensar dessa experiência. Qual a
solução? (Trip, nº95, 2001, p.89).
Mesmo intercalando sua percepção e participação no evento que ele cobriu para
a reportagem, Vladimir Cunha, em sua reportagem intitulada Ouro Baiano (Rolling
Stone, edição nº 3), abre mão prioritariamente da entrevista como instrumento de
pesquisa e se vale da sua narrativa como participante na história para contar ao leitor o
que se passa dentro da produção de um show da cantora.
A reportagem ainda tende para a descrição minuciosa dos ambientes e detalhes
questionavelmente irrelevantes para a construção da informação, mas que contribuem
para evidenciar através de sua percepção o que uma entrevista convencional não
explicita.
A banda fica no meio, junto com os três cantores de apoio. Na parte interna,
uma despensa do tamanho de um banheiro de avião guarda as bebidas e
comidas destinadas aos músicos, que são devoradas em questão de minutos
assim que a banda pisa no trio. Nada muito complicado. Apenas uma torta de
chocolate, uma tábua de frios, pão integral e alguns croquetes. No chão, dois
coolers recheados de isotônicos, refrigerantes e água. (Rolling Stone, nº03,
2006, p.70).
5.3 – Indícios de ficcionalização
Alguns resquícios da prática gonzo se legitimam pela descrição de situações que
podem não ter existido, se isso contribuir para aumentar o número de informações para
o leitor e conferir maior dramaticidade à cena que está sendo descrita.
No jornalismo gonzo é possível a descrição e inclusão na narrativa de fatos
irreais, seja como recurso estilístico para criar um ritmo mais agradável de leitura, ou,
como no caso de Hunter Thompson, como resultado de uma viagem alucinógena do
jornalista. Os indícios de ficcionalização serão aqui observados, assim como será
analisada a presença deles na reportagem.
Na matéria O mal amado (Trip, edição nº95), esses indícios ficam nítidos nas
fotografias nas quais Arthur Veríssimo e seus entrevistados posam vivendo as situações
80
registradas. A fotografia que abre a matéria mostra Arthur, vestido de árbitro de futebol
e munido de um cartão vermelho, sendo supostamente agredido por um time de futebol.
Na página seguinte, o repórter narra a cena cuja foto ilustra.
Logo antes do apito primal, recebo um recadinho de um dos cartolas do
embate: “Olha, seu Arthur, ser juiz é fácil. Só não pode ser autoritário. Se o
sujeito vacilar, toma tapa e até pipoco. (...) Começa a partida com trilha
sonora de forró ao vivo. (...) Em dado momento, dois adversários se
estranham, começa um bate-boca. Sinto um frio na barriga. Sem pestanejar,
puxo logo o cartão vermelho (...). Foi a minha mancada. Imediatamente,
todos os jogadores partiram para cima da minha pessoa. Tentei apaziguar os
ânimos e berrei alto: “Caramba! Errei de cartão! Era apenas para dar o
amarelo, rapaziada!”. Funcionou e todos começaram a rir. (Trip, nº95, 2001,
p.86).
Neste momento da matéria, cria-se uma certa confusão para o leitor. O jogo foi
encenado para a matéria? Um amistoso entre amigos que está sendo reportado para uma
revista de circulação nacional seria palco para uma briga com o próprio repórter que
escreveria a matéria após o jogo?
Diante destas questões, fica claro que Arthur se utilizou desse recurso para criar
uma situação cômica para sua reportagem. Outro momento em que Arthur narra um
diálogo exagerado é quando o repórter se passa por lavador de carros. Ao abordar um
cliente, o repórter-lavador é repreendido e comenta sobre uma suposta agressão sofrida.
O gordinho partiu para cima. Esquivei o corpo e lancei um olhar cabuloso:
- O Zé Mané! Fica pianinho senão te arrebento! Entra logo no carro, ô fezes
ambulante.
A molecada delirou. Queriam juntar o fofo ali mesmo, mas segurei a bronca.
Analisei, como Freud do asfalto, que o sujeito extrapolava seus problemas
pessoais, sexuais e financeiros fazendo sua catarse e vomitando um monte de
palavrões. (Trip, nº95, 2001, p.89).
Ao contrário das matérias das revistas piauí e Rolling Stone, os textos de
Veríssimo na Trip apresentam indícios de ficcionalização mais explícitos, inclusive nas
fotografias.
81
CONCLUSÃO
O Jornalismo Gonzo é uma prática jornalística peculiar e polêmica e apresenta
características próprias, mas tem suas raízes no New Journalism. Seu criador, o norteamericano Hunter S. Thompson, era um jornalista free-lancer e teve seus artigos
publicados em importantes revistas norte-americanas como Playboy, Rolling Stone,
Esquire, Sports Illustrated, entre outras.
O Jornalismo Gonzo leva algumas características do New Journalism ao
extremo e coloca em questão o mito da objetividade idealizada pelo jornalismo
convencional.
Para a realização deste projeto não encontramos nenhuma publicação impressa
que fosse totalmente produzida seguindo as características dessa prática. Pode-se
atribuir essa escassez de material jornalístico à falta de espaço nas publicações, uma vez
que as reportagens são grandes e, também, pelo fato da produção de uma matéria,
seguindo as características propostas, demandar um tempo maior na apuração das
histórias. Para os donos de veículos impressos, por exemplo, deixar jornalistas se
dedicarem à produção desse tipo de reportagem e dar mais espaço para essas
publicações, torna-se, financeiramente, inviável.
Além disso, com o advento da Internet, o jornalismo vem sendo constituído de
textos cada vez menores e sem apuração devida.
Apesar de enfrentar as barreiras logísticas para ser absorvido pela imprensa
contemporânea, práticas que vislumbram as principais características do Jornalismo
Gonzo ganham espaço em veículos de jornalismo cultural com maior ênfase nos últimos
anos. Conseguimos encontrar revistas mais voltadas para o jornalismo literário e que
apresentam algumas matérias com aspectos do Jornalismo Gonzo, assim como as
produções analisadas neste projeto.
Selecionamos as revistas Trip, piauí e Rolling Stone por apresentarem
reportagens mais direcionadas para o Jornalismo Literário, visando observar as heranças
deixadas por Hunter Thompson na imprensa brasileira contemporânea. Entre as
características do Jornalismo Gonzo, escolhemos três como critérios para análise das
matérias.
82
A primeira característica é a participação ativa do repórter no acontecimento,
percebida pelo conteúdo das reportagens, ou seja, o repórter interfere no cenário e se
torna personagem principal da história. Isso foi observado em matérias nas três
publicações analisadas.
A presença do repórter na narrativa, ou seja, o uso da primeira pessoa para narrar
os fatos, foi a segunda característica escolhida. Ela também pôde ser observada nas três
revistas analisadas: Trip, piauí e Rolling Stone.
No entanto, apenas na revista Trip foi possível observar os indícios de
ficcionalização nas reportagens e foi encontrada apenas na revista Trip. Podemos
considerar como principal herdeiro de Hunter Thompson, no Brasil, o repórter da
revista Trip, Arthur Veríssimo. Ele é o representante que coloca em prática o modo de
produção de uma reportagem gonzo. Ademais, seus textos foram os únicos que
contemplaram todas as três características do Jornalismo Gonzo propostas para as
análises.
O fato de Arthur Veríssimo ser o principal herdeiro (caso não seja o único), não
implica que outros repórteres não lançam mão de certas heranças do Jornalismo Gonzo.
Mesmo
tímidas,
as
características
do
jornalismo
de
Hunter
Thompson,
esporadicamente, são utilizadas em textos jornalísticos.
Apesar de inviáveis mercadologicamente, não há como negar que textos que
trazem tais heranças são sempre bem vistos por jornalistas que ainda acreditam que
escrever matérias convidativas a uma leitura mais prazerosa ainda é possível em um
contexto no qual a prática de leitura de jornais e revistas se torna cada vez menor.
83
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