Televisão e Nazismo

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Televisão e Nazismo
Televisão e Nazismo
by Waldísio Araújo - Crônicas do Chaos (http://www.waldisio.com)
Imagem de aparelho televisivo cedida por Wikipedia.
Montagem com imagem histórica por Waldisio Araujo.
Felizmente o Fascismo italiano e o Nazismo alemão quase não conheceram a televisão, mas se basearam
no rádio. As vozes de Hitler ou de Mussolini eram escutadas frequentemente entre propagandas, palavras
de ordem, noticiários manipuladores e música clássica (o Jazz era considerado por esses governos "arte
degenerada"). A televisão já existia, é verdade, e as Olimpíadas de Berlin, patrocinadas, hospedadas e
manipuladas por Hitler, foram televisionadas mas para um público muito restrito, pois era algo
demasiadamente caro; de modo que a veiculação em massa de imagens à distância dava-se sobretudo pelo
jornal(imagem estática) e pelo cinema (imagem em movimento), mas a época era mesmo oral, e o rádio
reinava, servindo de modelo inclusive para o desenvolvimento dos primeiros aparelhos de TV. Como
seria de esperar, o Estado nazifascista se apoderou das estações e incentivou ainda mais o uso dos
aparelhos, chegando a facilitar sua aquisição e mesmo a doá-los. De certa forma tais regimes e a Segunda
Guerra Mundial são filhos do rádio e sem este seriam hoje talvez impensáveis.
É que o rádio favorece de certo modo a veiculação do autoritarismo, ou seja, a circulação de mensagens
que pretendam ocupar nosso pensamento com um único significado e sem possibilidade de
questionamento, ao menos no próprio ato de comunicar. Podemos dizer que quanto menos possibilidades
tivermos de, no momento da comunicação, negarmos um sentido único, mais perto estaremos do
autoritarismo e mais distantes de seu oposto, a liberdade de expressão e pensamento. Nesse sentido, peço
licença para usar uns poucos termos técnicos, mas muito fáceis de compreender.
Chama-se simplex um dispositivo de comunicação que só pode transmitir informações num único sentido,
ou seja, apenas pode enviar ou apenas receber a mensagem. O exemplo mais acabado de tal coisa é
justamente o rádio, pelo qual uma estação transmissora que não pode receber mensagens envia estas para
aparelhos receptores que não as podem enviar. Na verdade, o pessoal da estação receptora sequer sabe se
sua mensagem foi recebida, e os indivíduos que a receberam sequer podem comunicar este recebimento e
sua condordância ou não com o conteúdo (exceto por algum outro dispositivo, como o telefone ou
mediante pesquisas de opinião etc.). É então fácil percebermos que, por sua própria natureza, os
dispositivos simplex são os mais rústicos e limitados que existem, motivo pelo qual tendem a estimular
sistemas políticos que visam impor a todos uma visão de mundo, uma interpretação, uma justificativa ou
uma ideologia pretensamente dadas como "naturais", "inquestionáveis", "canônicas", "eternas",
"fundamentais" ou "óbvias".
Por outro lado, temos dispositivos que podem transmitir informações em ambos os sentidos. Eles se
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chamam duplex e permitem que as respostas do receptor se deem quer em tempos diferentes (half-duplex)
quer ao mesmo tempo (full-duplex). Exemplo interessante de dispositivo half-duplex é o aparelho de rádioamador clássico ou o walkie-talkie, em que o emissor monopoliza o envio de suas mensagens por um
certo tempo, após o que dá um sinal de "câmbio" para que o receptor envie sua mensagem de resposta
antes de emitir ele mesmo seu sinal de câmbio, e assim por diante. Já o full-duplex pode ser
exemplificado pelo aparelho telefônico e as redes ethernet, pelas quais a emissão e a resposta podem ser
simultâneas num certo intervalo de tempo. É fácil inferir-se deste parágrafo que os dispositivos duplex,
sobretudo os full-duplex, são os mais apropriados a sistemas verdadeiramente democráticos, em que as
mensagens devem poder estar submetidas ao contraditório, à crítica, à contestação, à retificação, ao
questionamento. Diante disso, embora de uma forma bem genérica (porque a comunicação não é tudo),
podemos relacionar a liberdade dos sistemas de comunicação de massa recentes aos graus de liberdade
permitidos por sociedades que usam predominantemente certo tipo de dispositivo.
E a televisão? Ora, ela insere-se juntamente com o rádio no grupo dos mais rústicos e autoritários
dispositivos de comunicação. Aliás, a TV é ainda mais conformista que o rádio, pois este último pode ser
ouvido por toda a casa enquanto o ouvinte pensa, sente e faz outras coisas, ao passo que a TV
praticamente exige que o usuário se sente ou deite (nossas máximas imagens do termo "comodismo") e
fique atento ao aparelho, a cujas mensagens não tendemos a responder senão mudando para algum dos
poucos canais disponíveis. Bem verdade que as emissoras de TV usam largamente de pesquisas de
opinião para medir o que os espectadores estão achando da programação e para adaptar esta à
conformidade (e conformismo) da maioria dos usuários, mas ainda assim elas submetem tais opiniões
latentes à intepretação que a emissora está sempre a sugerir.
Um exemplo de manipulação seria um noticiário em que se mostram cenas diferentes de uma
manifestação pública: numa tomada um grupo de manifestantes (ou gente disfarçada de manifestantes)
depreda uma vidraça ou põe fogo num automóvel; em outra cena a polícia lança bombas de gás
lacrimogêneo contra a multidão que grita; em outra, um governante afirma a repórteres estar pronto a
"coibir abusos" que comprometam a boa ordem; por todo lado a mesma mensagem lançada a uma
pequena burguesia apavorada em seu eterno temor ao desconhecido; por todo lado a retórica que insinua
que a polícia bate com razão, que o governo apenas defende o cidadão e que os manifestantes ameaçam a
paz pública. Uns espectadores um pouco menos manipulados ainda conseguem esboçar novos
significados, digamos que se indignem com a paralização do trânsito causada pela multidão em pleno
horário de trabalho, mas eles apenas conseguem disfarçar sob sua retórica o pensamento implicitamente
conformista de quem na verdade estaria também reclamando se a manifestação estivesse atrapalhando sua
praia ou barzinho em pleno domingo sem trabalho. O importante aqui é que as sugestões da TV são quase
sempre seguidas porque elas buscam fazer com que os inúmeros sentidos de suas mensagens sejam
resumidos a um só, mesmo que este seja combatido por um ou outro espectador: afinal, dizer "não" a um
sentido de mensagem é apenas uma forma de afirmar a universalidade e imutabilidade da mensagem
como tal, e a TV interativa, que hoje apenas se esboça, não tende a modificar isso.
O século XX foi o século do rádio e da televisão pelo mesmo movimento em que foi o século do
Nazismo, do Fascismo e da Guerra Fria. Ele injetou em nós formas sutis de autoritarismo que só a partir
da crítica de intelectuais como Barthes, Foucault ou Derrida nós conseguimos começar a enxergar por trás
da fumaça que se adensa entre as palavras e as coisas contemporâneas. Hoje o desafio para nós é
justamente o de evitar que as mensagens tenham um único sentido possível, só assim podemos assegurar
que as pessoas sejam livres para expressarem suas concepções e preferências políticas, sexuais,
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científicas, artísticas ou religiosas. Enquanto mantivermos rádio e televisão como origem e critério de
validade de nossas opiniões sobre nós mesmos e sobre os outros o Nazismo e o Fascismo permanecerão
em sua localização mais perversa: dentro de nós.
Nossa maior arma atual contra o autoritarismo latente é a Internet. Claro que os textos, sons e imagens
veiculados por ela estão todos carregados de mensagens cuja validade se pretende tão universal quanto as
veiculadas pela TV ou pelo rádio (podem procurar neste próprio texto nosso, não nos insentaremos de
culpa). Contudo, ao contrário do número ínfimo de canais oferecidos pelo sistema televisivo, a grande
rede possui bilhões de sites que envolvem gêneros tão diversos como o blog, o portal, o fórum, a rede
social... E na maioria deles os canais full-duplex estão abertos como num gigantesco hipertexto que une
entre si as páginas mais díspares, submetendo-as a um turbilhão de opiniões divergentes, efêmeras e
mutantes. Assim, podemos dizer que teoricamente não há interpretação encontrada na Internet que não
esteja relacionada a uma multidão de interpretações que lhe sejam semelhantes, opostas, complementares
ou contraditórias.
Isso quer dizer que qualquer tentativa de limitação dos conteúdos da Internet, seja com que argumento
for, não passará de autoritarismo disfarçado, motivo pelo qual devemos estar permanentemente atentos a
tais manobras. E, acreditem, há projetos de lei aparentemente inofensivos que têm embutidos o efeito de
uma manipulação fascista, a exemplo da proposta de criminalização do uso de falsas personagens (fakes)
sob pretexto "democrático" de combater-se o anonimato das opiniões, o que para nós resvala
subrepticiamente para o direito estatal de vasculhar a vida íntima das pessoas. É importante que a rede
mundial permaneça esse virtualmente infinito hipertexto onde a autoridade ou a autoria, o mando ou o
desmando, a verdade ou a mentira não prevaleçam de forma exclusivista.
Cada clique num link da Internet tende, pois, a reafirmar nossa liberdade. Em contraste, o botão de
volume do aparelho de TV gira no mesmo sentido do Nazismo. Desligá-lo, ainda que simbolicamente, é
muitas vezes um ato de liberdade.
por Waldísio Araújo
www.waldisio.com
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