Will Mampian – O Advogado e o Querubim

Transcrição

Will Mampian – O Advogado e o Querubim
1
O Advogado
e o Querubim
Tudo começa quando
uma série de mortes acontecem
em um grande hospital. Alguém suspeita que crimes estão ocorrendo, e um policial
passa a investigá-los; inicialmente as provas dos supostos
crimes apontam para um médico idoso que sempre teve ótima reputação.
A narrativa leva o leitor
a partir do interior desse hospital, passando pelos porões da
ditadura militar, por seções de
interrogatório e julgamento no
tribunal do júri, e faz com que
acompanhe os personagens até
os mais surpreendentes nichos
de corrupção política.
2
É um romance carregado de suspense, além de toques
de magia e espiritualidade, que
forçam o leitor a pensar se realmente tudo se acaba com a
morte. Será que realmente existe algo mais importante e duradouro que nos espera no
meio da intensa luz do outro
lado da vida? Existe realmente
um anjo que nos guarda e
guia?
Will Mampian é advogado e mora com a família em
São Paulo.
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O ADVOGADO
E O QUERUBIM
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Will
Mampian
O ADVOGADO
E O QUERUBIM
São Paulo - 2000
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Copyright © 2000 by Willian Mampian
Revisão: Veridiana Maenaka
Projeto Gráfico, Capa: Celso Ricardo Lima de Souza
Diagramação: Know-How Editoração Eletrônica Ltda.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Mampian, Will
O Advogado e o querubim / Will Mampian. –
Guarulhos, SP : W. Mampian, 2000.
1. Romance brasileiro I. Título.
00-2533
CDD-869.935
Índices para catálogo sistemático:
1 . Romances : Século 20 : Literatura brasileira
869.935
2. Século 20 : Romances : Literatura brasileira
869.935
ISBN -
São Paulo
2000
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Com a minha voz clamei ao Senhor,
Ele ouviu-me desde o Seu Santo monte.
(Salmos 3-4)
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Agradecimentos
Em primeiro lugar, agradeço à Deus, que me deu a luz
necessária para que pudesse escrever; depois à Cida, minha
mulher, e aos meus filhos, Alex e Yuri, que de alguma maneira
cederam-me o tempo em que eu devia lhes fazer a companhia
de marido e pai, propiciando-me as horas de trabalho em
frente ao computador. Ainda, pela formidável motivação
pessoal, agradeço ao meu querido amigo Agostinho Halter,
que sempre me impulsionou, fazendo com que eu pudesse
acreditar no meu grande sonho.
O autor
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Por tratar-se de uma obra de ficção, todos os seus
personagens e fatos também são fictícios.
Qualquer semelhança destes com a vida real
será mera coincidência!
O autor
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Um
Santília Blanc estava deitada ali naquele leito fazia menos de
três horas, e pelo menos duas amáveis enfermeiras já haviam passado para medica-lá e conversar um pouco, sempre tentando consolála em vista de seu infortúnio. Tanto a primeira enfermeira quanto a
outra que veio logo em seguida eram pessoas decididamente amantes da profissão, e muito afetuosas. Além do medicamento que lhe
ministravam por ordem médica, possuíam algo de angelical em sua
conversa com os pacientes considerados terminais. Podia-se dizer
que também ministravam o medicamento para suas almas.
Santília estava no fim. Não possuía mais do que alguns poucos
fios de cabelo na cabeça alva. A quimioterapia sempre foi impiedosa
com a aparência das pessoas que necessitam se sujeitar a ela. Também não possuía mais do que algumas semanas de vida. Não sabia
quantas, mas já sentia que eram poucas. Bem poucas.
O conta-gotas do frasco de soro estava preso com um esparadrapo em seu braço esquerdo magro e cheio de pelancas. Isto dificultava um pouco seus movimentos, mas assim que as luzes do corredor
e da enfermaria foram reduzidas à metade para estimular o sono dos
pacientes, a velha enferma sentiu necessidade de se levantar e sentar um pouco à beira da cama. Depois de juntar toda a força que
restava de seu frágil corpo, conseguiu apoiar o braço livre sobre o
colchão para sentar-se lentamente, tendo de permanecer apoiada
segurando no estandarte do soro.
Enquanto os outros pacientes dormiam, Santília passou a refletir por alguns instantes no que havia sido sua vida.
Não havia sido fácil. Nunca havia sido fácil, porém jamais
desistiu. E agora, deveria desistir? Deveria entregar-se à morte
certa e iminente? Não lhe restava sequer alguma esperança?
Quantas pessoas conheceu que haviam tido câncer e que haviam
sobrevivido por muito tempo ou até mesmo se curado? Nenhuma.
Esta foi a resposta que sua memória imediatamente lhe trouxe.
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Mas ela não poderia ser a primeira? Sim, poderia! Sua vida não
fora fácil, mas jamais desistira diante das diversas dificuldades, e
certamente não iria desistir agora por causa da doença. Ela poderia ser a primeira a se recuperar, e não iria mesmo desistir da vida
assim tão facilmente.
Passou um pouco mais de trinta minutos sentada, pensando
estas coisas, quando ouviu a porta do elevador se abrir no fim do
corredor. Mais depressa do que havia se levantado, voltou a se deitar.
Se a pegassem sentada, as enfermeiras antes extremamente cordiais
poderiam sentir-se obrigadas a lhe passar uma repreensão. Haviam
lhe recomendado repouso absoluto
Deitou-se, puxou o lençol para cima até a altura do peito e
fechou os olhos, fingindo estar dormindo.
Ouviu os passos que se aproximavam pelo corredor e percebeu que pararam em frente à porta do seu quarto. Imaginou que em
vez das enfermeiras poderia ser outra pessoa qualquer, conferindo o
número de uma prancheta com a pequena placa de identificação pregada à porta.
A porta se abriu, com as dobradiças rangendo suavemente, e
depois voltou a se fechar. Ouviu quando a fechadura foi trancada por
dentro, mas continuou com os olhos fechados.
Depois de ouvir três passos lentos que foram dados pela pessoa que entrara, como se estivesse conferindo o leito a que deveria
se dirigir, a idosa resolveu abrir calmamente os olhos, fingindo que
estava acordando naquele instante.
Seus olhos não quiseram aceitar o que viam como se fosse
algo normal. Aquela pessoa vestida de médico havia errado de quarto com certeza. O uniforme verde era de obstetra, porém ali não
havia nenhuma gestante e não havia razão para que ele mantivesse o
rosto encoberto com aquela máscara cirúrgica. Na realidade não conseguia distinguir se era homem ou mulher. Mas com certeza a pessoa
parada em pé à sua frente e olhando fixamente para ela havia errado
de enfermaria, e ela iria alertá-la.
Pôde notar que seus olhos claramente a espreitavam como se
fosse um predador acuando sua presa.
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Santília Blanc não viu cigarro algum nas mãos da figura parada
agora do lado de seu leito, mas um cheiro forte de tabaco atravessou
a máscara , invadiu suas narinas e lhe embrulhou o frágil estômago.
Sentiu um frio de pavor percorrer-lhe todo o corpo, mas mesmo assim seus lábios esbranquiçados e manchados por cicatrizes de
velhas herpes se abriram lentamente para falar com a pessoa. Neste
instante, seus olhos também se abriram um pouco mais, a tempo de
vê-la retirar do bolso do guarda-pó uma seringa com uma solução
qualquer em seu interior.
Balbuciando perguntou:
– Espere! M...Mas....quem é você?
– Sou o médico do turno da noite! Seu médico! Tenha calma
que já acabaremos.
A idosa estranhou a voz, que também não se definia entre feminina e masculina, e respondeu:
– Não! Essa voz! Você não é meu médico! E a roupa dos
médicos daqui são brancas. Essas roupas são de parteiro!
Santília Blanc sentiu-se apavorada e não sabia como explicar,
mas queria dizer que aquela pessoa usava roupas de obstetra.
– Não são não. Acalme-se para que eu possa injetar o seu
medicamento. Vou colocá-lo junto com o soro.
– Não! Eu não quero! Espere que eu vou chamar a enfermeira! Se ela confirmar eu deixo! Tira essa agulha de perto de mim!
– Acalme-se já falei. A senhora não vai chamar ninguém.
Santília se agitou e deu um tapa na mão da pessoa que dizia ser
seu médico, fazendo com que a seringa caísse no chão e embaixo da
cama. Ela abaixou-se para pegar a seringa, e quando se levantou
teve tempo de ver a idosa tentando desesperadamente sentar-se para
tocar a campainha acima da cabeça.
Procurando fazê-la ficar quieta, fechou a mão direita e desferiu um soco forte o suficiente para que a paciente se detivesse. Enquanto Santília ainda se debatia, a estranha figura subiu sobre a cama
mantendo-a por baixo de si como se a estivesse cavalgando pelo
abdome. Os frágeis braços ficaram se debatendo um pouco em vão,
enquanto o suposto médico retirou de outro bolso um frasco que dizia
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ser o medicamento, e aumentou o volume dentro da seringa, dobrando a dose inicial.
Os olhos antes acabanados da idosa Santília Blanc se esbugalharam em nítido desespero, vendo aquela pessoa injetar apressadamente no tubo de soro todo o conteúdo da seringa.
Em seguida, sua visão foi se turvando, e tudo à sua volta passou
a acontecer em câmara lenta. Parecia que a pessoa demorara horas
andando pelo quarto, depois que desceu de cima dela. Quis segurá-la,
mas seus braços não se moveram. Não mais lhe obedeciam. Quis gritar, mas sua voz não saiu. Lentamente a pessoa saiu caminhando na
direção da porta. Estava fugindo, até que se tornou nada mais do que
um vulto. Neste instante Santília só conseguiu ver muito vagamente
seu avental esvoaçando para trás até desaparecer por completo.
Tudo se escureceu repentinamente num minuto que mais pareceu uma eternidade, e depois voltou a brilhar novamente com uma
intensidade que a paciente jamais havia visto. Outra silhueta de forma humana surgiu em meio à intensa claridade, que, ofuscando a
vista da idosa, não deixava que pudesse ver de quem se tratava. Suas
vestes eram brancas e seu andar era mais silencioso do que o normal. Pensou que poderia ser o médico verdadeiro, mas não conseguia ter certeza se era a mesma pessoa de avental verde que voltava.
Pensou que suas vistas podiam estar enganando-a devido ao medicamento injetado no frasco de soro. Novamente tentou gritar e se mover mas não conseguiu. Não conseguiu nem mesmo ouvir o bip contínuo do monitor cardíaco que ressoava, fazendo os pacientes mais
próximos acordarem, além de colocar em polvorosa todas as enfermeiras de plantão.
As enfermeiras entraram correndo no quarto de Santília Blanc,
e, segundos depois, retornaram novamente correndo pelo corredor
para chamar o médico plantonista.
Quando o médico entrou, encostou-se na beirada da cama,
colocou o estetoscópio no peito da enferma desfalecida e constatou
que nada mais podiam fazer. Procurou uma caneta em um dos bolsos
do guarda-pó branco que vestia, fez uma anotação na ficha presa à
cama e depois saiu andando calmamente, avisando as enfermeiras
que iria fazer o relatório logo mais.
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*
Dois dias depois , logo pela manhã, a recepcionista do Monsenhor
Vasquez respondeu ao cumprimento do amável doutor, cujos cabelos
finos e brancos desde há muito tempo estavam rareando no alto da
cabeça, com a mesma cortesia ele havia se dirigido a ela.
O médico aproximou-se do balcão, esticou o braço por cima do
mesmo depois de encostar bem a barriga e inclinou-se para pegar
das mãos da moça a prancheta com a lista dos pacientes.
Com uma caneta de tinta vermelha, fez uma pequena marca
na frente de somente um dos nomes; agradeceu ainda amavelmente
à moça sorridente e devolveu-lhe a prancheta.
Depois disso, saiu andando calmamente na direção do elevador, que o conduziria às enfermarias, onde começaria a primeira visita de medicação do dia .
Por todas as pessoas que passava pelo caminho, o médico distribuía sorrisos e cumprimentos e era tratado da mesma forma.
Enquanto esperava o elevador chegar ao seu andar, levantou
sutilmente a manga de seu avental alvo como a neve e, consultando o
mostrador luminoso de seu relógio de pulso, notou que eram sete e
trinta da manhã; estava dentro do horário.
Em vinte e cinco anos de atendimento junto a pacientes terminais internados tanto no Hospital Geral Monsenhor Vasquez em
Guarulhos como em outros hospitais, ou ainda no período em que morou na Argentina, jamais se atrasara para o atendimento dos enfermos.
Simplesmente achava que esses tipos de pacientes mereciam
um atendimento muito especial, pelo fato de estarem na maioria das
vezes conscientes de que seu bem maior, ou seja, sua vida, estava
sendo despojada deles, e quase sempre de uma forma muito dolorosa. Mantinha um contato extremamente próximo com os pacientes,
até seus últimos minutos de vida, sempre que possível.
Chamava-se Fritzen von Keitel, mas era carinhosamente chamado por todos no hospital, e por alguns fora dele, de doutor “Fritz”.
Com sessenta e oito anos de idade e quarenta de sacerdócio
na medicina, sempre atuara como clínico geral, especializando-se em
psicologia médica e medicina humanitária, no exterior.
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Quando o elevador chegou, conduziu o esguio corpo para dentro, através dos passos largos dados pelas longas e também esguias
pernas.
Sem dificuldades, uma pasta era abraçada pelos braços cruzados rente ao tórax e abdome, justamente por não apresentar nenhum
vestígio de gordura no seu tronco. O mesmo não se poderia dizer da
maioria dos homens de sua idade.
No décimo andar, o elevador parou; o médico esperou que a
porta se abrisse, e à sua frente surgiu um conjunto de pequenas placas azuis de acrílico, coladas na parede.
Sem levantar a cabeça para olhar, ele seguiu na direção da que
indicava “ setor de geriatria”.
Chegou ao quarto do leito número 102, e o mesmo já estava
com a porta aberta, pois as enfermeiras do plantão já haviam passado
aplicando parte da medicação da manhã.
Ali havia somente uma paciente. Ninguém mais o esperava
dentro daquelas quatro paredes. O doutor Fritzen consultou a prancheta e conferiu com a ficha presa em um dos lados do leito, confirmando o nome da paciente: Beatriz Del Picollo.
Era uma senhora idosa, cujos cabelos alvos haviam sido cruelmente raspados por uma máquina, dando lugar a um emaranhado de
minúsculos tubos que vinham do alto de um pedestal de ferro, deixando escorrer e penetrar nas finas e secas veias de sua cabeça, através
das agulhas, o medicamento que praticamente de nada mais estava
lhe adiantando; nem ao menos lhe aliviava as dores atrozes que a
atacavam de minuto a minuto.
O Doutor Fritzen entrou andando mansamente, mas foi imediatamente percebido pela paciente no canto do quarto. A mesma dirigiu-lhe um olhar melancólico, e assim que o médico se aproximou da
beirada do leito, juntou as últimas reservas de energia de que podia
dispor, segurou a mão do médico e deixou transparecer, por debaixo
do tubo de oxigênio que lhe cobria a face esbranquiçada, um sorriso
de agradecimento.
O médico achou que ela queria lhe dizer alguma coisa e virou
a face para ouvir o que dizia, usando o ouvido são. O outro utilizava
um aparelho contra surdez. Em seguida, como não ouviu nem mes20
mo o mais leve sussurro, enfiou a mão no bolso direito do avental,
procurando uma seringa com o medicamento; o bolso direito estava
vazio. Procurou novamente, desta vez tateando o bolso esquerdo, e
a seringa estava lá.
“Estranho, tenho certeza de que a deixei no outro bolso, nunca
misturo a seringa de medicamentos com as canetas ou qualquer outra coisa!”, pensou.
Pegou a seringa e preparou o medicamento, depois beijou gentilmente a testa da paciente. Em seguida, depois de soltar suas mãos
das delas por alguns segundos, inseriu a seringa com o medicamento
no pequeno tubo plástico e injetou; tornou a guardar a seringa no
bolso e voltou a segurar a mão da velha senhora com toda a força.
Lentamente as mãos de Beatriz foram se afrouxando, perdendo
as forças, e alguns segundos depois seus olhos se fecharam, demonstrando claramente que a dor que a atormentava estava passando.
O médico ficou ainda mais alguns minutos pensando no fato de
já há algumas outras vezes ter encontrado a seringa com medicamentos no bolso que considerava errado, ou seja, misturada com suas
canetas e outras coisas. Chegou a imaginar que alguém poderia estar
mexendo em seu armário quando não estava por perto. Depois, achou
que poderia estar enganado, não queria julgar ninguém precipitadamente, por isso não deu grande importância ao assunto.
“Eu mesmo devo ter me enganado!”, pensou.
Repentinamente um forte odor nauseabundo encheu o ambiente,
mostrando que naquele instante o cérebro da mulher deixara de controlar suas funções fisiológicas.
No exato momento em que a linha do monitor do eletrocardiograma tornou-se uma reta e seu bip intermitente passou a um
silvo contínuo, a aparente tranqüilidade do ambiente transformou-se
em completa correria. O doutor Fritzen acionou a campainha que
instantaneamente alertou as enfermeiras, enquanto iniciou os preparativos, mostrando claramente que iria tentar uma ressuscitação.
A enfermeira Cecília Bacan apareceu correndo na porta do
quarto e encontrou o médico em pé ao lado do leito da paciente, como
se estivesse aplicando-lhe uma massagem cardíaca. Depois que a
viu, o médico estendeu-lhe o braço com a mão espalmada para a
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frente e balançou a cabeça, como se quisesse dizer que não adiantaria que fizessem mais nada por ela, além do que já havia sido feito.
Dentro de algumas horas, ele próprio iria redigir o laudo médico, atestando a causa mortis.
Não seria necessário que se fizesse a autópsia, pois ele mesmo
a havia tratado desde o dia em que fora internada, e tinha seu histórico médico completo.
*
O rapaz havia acabado de se casar, e precisava muito daquele
dinheiro.
Olhou dentro do envelope que lhe haviam entregado e novamente sentiu-se satisfeito com a quantia, depois de olhar para um
lado e outro, vendo se ninguém o observava.
Era o arquivista do Monsenhor Vasquez . Concluiu consigo
mesmo que não estava fazendo nada de tão errado assim. O homem
que o havia procurado estava simplesmente querendo tomar conhecimento da ficha profissional de Fritzen Von Keitel, um dos principais
médicos do hospital.
O arquivista chegou a pensar que provavelmente pretendiam
fazer alguma boa oferta ao doutor Fritz e por isso queriam tomar
conhecimento de seu currículo profissional.
“No final, vai até me agradecer!”, pensou.
Tudo começara quando Clecir Marotti, a filha de uma falecida
paciente do doutor Fritzen, procurou o escritório daquele homem, que
agora procurava o arquivista. A mulher havia contratado seus serviços
de detetive particular para investigar o passado desse “tal doutor Fritz”.
Foi assim que se referiu a ele para o detetive.
Antes de se dirigir à policia, a mulher queria fazer uma triagem
dos lugares onde o médico havia atuado. Queria contatar, se fosse
possível, parentes de outras pacientes idosas e doentes terminais que
haviam falecido depois que tiveram qualquer contato com o médico.
Queria muito certificar-se do que suspeitava, pois não tinha intenção
de acusá-lo injustamente.
Cento e vinte dias de trabalho árduo do detetive, e pelo menos
uma viagem ao exterior, mais precisamente a hospitais da Argentina,
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foram pagos com algumas dezenas de milhares de reais, metade como
adiantamento e a outra parte no término do trabalho. Ao arquivista,
perto de uma dezena de milhares de reais, que foram entregues de
uma só vez pelo próprio detetive.
O dossiê de Fritzen von Keitel estava pronto.
Quando teve certeza de que nenhum detalhe havia sido desprezado e omitido, o detetive telefonou à mulher pedindo que se
encontrasse com ele no estacionamento de um grande shopping em
Guarulhos. Entregou-lhe então uma pasta de elástico contendo uma
centena de folhas datilografadas e outras tantas folhas com xerox
de documentos, mais algumas fotos já quase amareladas. O detetive pegou o restante do dinheiro e entregou à mulher novamente um
cartão de visitas feito em um programa qualquer de computador
com a impressão fora de esquadro, no qual podia-se ler acima do
nome e telefone, no papel salmão, as letras brancas que diziam
“Detetive Profissional – investigações internacionais etc...”; agradeceu e foi embora montado em uma velha motocicleta barulhenta
e fumacenta.
Sem descer do carro, um Ômega da General Motors, a mulher
conferiu superficialmente a documentação dentro da pasta, depois
que entregou o pagamento ao rapaz, e também partiu dali.
*
Era uma segunda-feira, e o primeiro Distrito Policial de Guarulhos estava apinhado de pessoas. O delegado plantonista era o doutor Natanael Guzman; na verdade, ele não era doutor coisa nenhuma,
era somente bacharel em Direito formado pela PUC de São Paulo e
não havia feito doutorado em canto algum; nem ele, nem a maioria
dos delegados de polícia, mas esta era uma certa prerrogativa do
cargo; ser chamado de doutor. Se não o chamassem, para ele também não fazia diferença. Isto não iria acrescentar nenhuma cifra em
seu magro soldo mensal.
O mostrador do velho relógio na parede em frente à sua mesa
confirmava que já se passavam cinco minutos das oito horas da noite,
quando o telefone tocou. Em um dos cantos da sala, um rádio tocava
sonoramente Brothers in arms.
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O delegado colocou um cigarro que acabara de acender em
um cinzeiro à sua frente, abaixou bem o volume do rádio, retirou o
telefone do gancho e atendeu a chamada:
– Alô! Primeiro distrito policial, boa noite!
Do outro lado da ligação, alguém respondeu; era a voz de uma
mulher.
– Boa noite! Quem está falando?
– É o delegado plantonista do primeiro distrito policial de
Guarulhos! Em que posso servi-la?
Um breve silêncio na linha mostrou que a pessoa do outro lado
titubeava em falar, por isso Guzman tornou a perguntar:
– Alô! Ainda está aí?
– S...Sim! É que... não sei se é com o senhor mesmo que eu
devo falar!
– Diga o que se passa! Se for assunto de polícia, nós tentaremos
resolver para você! Precisa de ajuda? Está com algum problema?
– Não necessariamente! É que eu tenho suspeitas de que
alguém está matando pessoas, mas são somente suspeitas; não posso
provar nada agora. Aliás, não sei nem o que devo fazer!
– Bem, minha senhora; saiba que não precisa se identificar.
Mas o que exatamente está acontecendo? A senhora presenciou alguém cometendo um crime? É alguém armado? Diga onde é que nós
mandaremos uma viatura imediatamente!
– Não! Não é aqui! É no hospital! Um médico!
O doutor Natanael não estava entendendo muita coisa daquela
conversa, mas pela forma com que a mulher falava com ele, pressentiu que aquilo não era somente mais um trote. Algo sério poderia
realmente estar acontecendo, por isso achou melhor convidar a mulher para se dirigir ao distrito policial, se quisesse.
Começou a falar ao mesmo tempo em que estendeu a mão
para tornar a pegar o cigarro no cinzeiro, e percebeu que somente
uma bituca deixava subir um fio de fumaça azulada evolando na direção do teto.
“Qualquer hora eu ainda abandono esta porcaria!”, pensou
consigo mesmo, enquanto desistia de pegá-lo.
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– Olha! Se o que está me dizendo é sério, acho melhor a
senhora vir até aqui e se explicar melhor. Tenho certeza de que assim
poderemos nos entender!
O policial percebeu imediatamente a repulsa da mulher por
ambientes como aquele, pela forma com que lhe respondeu:
– Delegacia! Eu? Ai, meu Deus do céu! Nunca estive em um
lugar desses, cheio de bandidos!
O delegado respondeu seco:
– Tudo bem, senhora. Tem bandidos, sim, mas também tem
policiais, gente honesta trabalhando a noite toda! Pode vir, que lhe
garanto que não haverá problemas!
– Tenho que ir mesmo? Tenho que levar meu advogado? Tem
que ser agora?
– Se quiser! Se quiser vir, se quiser trazer seu advogado, se
quiser vir agora!
Antes que a mulher desligasse o telefone, o delegado Natanael
Guzman ouviu novamente ela clamar a Deus, depois de dizer simplesmente “está bem”.
Tinha certeza de que não era um trote, mas também achou que
seria difícil aquela mulher aparecer por ali aquela noite ainda. Mesmo
assim, ficou pensando no que acabara de ouvir e se arrependeu de
não ter perguntado a ela no mesmo instante de qual hospital estaria
falando, e quem ela achava que estava matando as pessoas. Sempre
seria um ponto de partida, mesmo que não levasse a nada. Julgou que
seria melhor assim, que não levasse a nada, que fossem somente
suspeitas da mulher e que ninguém estivesse matando as pessoas
como ela havia sugerido.
Mas não era.
Realmente pacientes estavam morrendo, e alguém as estava
matando; mas até o momento, nem a polícia nem qualquer pessoa do
Hospital Geral Monsenhor Vasquez sabia de nada.
Isto era o que o assassino estava imaginando enquanto dirigia
um veículo na direção de sua casa pelas ruas escuras da região, como
se fosse um gato se esgueirando noite adentro depois de ter feito
mais uma presa qualquer. Porém, alguém já estava suspeitando dele,
e ele não sabia; aliás, ninguém ainda tinha idéia de quem era a pessoa
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que suspeitava e que havia ligado para o doutor Natanael Guzman na
delegacia.
O delegado terminou seu plantão às sete horas da terça-feira e
saiu caminhando com um cigarro aceso pendurado na boca , indo na
direção do estacionamento para pegar o carro e ir para casa.
Havia passado o resto da noite na expectativa da mulher que
havia lhe telefonado vir ou não até o distrito policial. Ela não ligou
mais, tampouco apareceu.
“Provavelmente estará insegura!”, pensou enquanto caminhava. “Poderá vir outra hora, aí então vamos esclarecer tudo de uma
vez por todas!”
*
Os voluntários da Irmandade de Nossa Senhora das Dores
haviam recolhido a velha negra de debaixo do viaduto Aricanduva,
depois que alguns transeuntes anônimos os chamaram. Estava desmaiada e jogada em cima de um papelão que havia sido a caixa de
alguma geladeira de última geração. Era uma senhora muito idosa e
com a aparência de sofrimentos estampada pelo corpo todo. O serviço de resgate do Corpo de Bombeiros de São Paulo também foi acionado, mas quando chegaram para retirá-la a perua da Irmandade já
havia levado a mulher.
Quatro hospitais foram consultados em vão a respeito de vaga
para internar a moribunda, mas somente o Monsenhor Vasquez, em
Guarulhos, resolveu aceitar.
O SUDs pagaria a conta? Quem sabe? Isso naquele momento
não importava. Felizmente a filosofia do Hospital Geral Monsenhor
Vasquez era a de que a vida humana seguramente estava em primeiro lugar.
A negra não tinha parentes, tampouco qualquer pertence, a
não ser as roupas esfarrapadas que usava e a velha e amassada
carteira de trabalho cujo último registro datava de pelo menos vinte
anos atrás.
Seu quadro clínico de internação constatou que estava com
uma anemia profunda, uma infecção generalizada pelo abdome, e,
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quando voltou a si, murmurava constantemente que estava com uma
tremenda dor de cabeça havia dias.
Depois do primeiro atendimento, suas velhas roupas foram parar
no incinerador, e, depois do banho ajudado pelas enfermeiras, uma
camisola de brim azul com a marca do hospital pintada de branco lhe
foi cedida para vestir .
O leito 102 da geriatria havia sido desocupado depois do óbito
de sua última ocupante, e a velha negra foi levada para lá.
Não havia mais ninguém no quarto.
No instante em que as enfermeiras deixaram a paciente ela
ainda estava falando muito fracamente e sorrindo também de maneira muito leve para as pessoas que a atendiam.
Quando o resultado dos principais exames clínicos chegaram
às mãos da enfermeira-chefe, ela constatou que a paciente, além de
todas as outras complicações, possuía um tumor no cérebro. Com
certeza lhe restavam poucos dias de vida.
A mulher foi medicada, e as enfermeiras saíram pela primeira
vez, deixando-a sozinha no quarto. Assim que a porta se fechou, imediatamente ela fechou os olhos como se fosse adormecer. Voltou a
abri-los minutos depois, chamando o doutor Fritzen em voz alta e
insistente, o que fez as mulheres voltarem correndo.
A enfermeira-chefe foi a primeira a entrar, e foi logo perguntando:
– A senhora está bem? Porque chama o doutor Fritz?
– Doutor Fritz! Doutor Fritz! Eu quero que me chamem o
doutor Fritz! Só ele pode me dar o alívio de que eu preciso! Foi o que
um anjo acabou de me dizer, por isso insisto que me chamem o doutor
Fritz!
– Mas ele não está no plantão do hospital hoje senhora! Por
que insiste em chamá-lo? Por acaso o conhece? E que história de
anjo é essa?
A velha negra continuava a falar e balbuciar de maneira muito
débil, usando todas as forças que ainda lhe restavam, até que extenuada
se calou definitivamente.
– Doutor Fritz! Doutor F...
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As enfermeiras estranhavam, mas se decidiram a chamar o
médico.
– Temos que avisar o doutor ! Ele tem que saber o que está
acontecendo!
Quem assim sugeriu foi a enfermeira-chefe que havia entrado
primeiro no quarto; em seguida as duas saíram para avisar o médico
plantonista, que não demorou para entrar e se aproximar da negra no
leito 102, para saber o que estava acontecendo.
*
O doutor Fritzen von Keitel não se incomodou nem um pouco
por não consultar o relógio para saber as horas, pois aquele dia era
folga sua. Todos no hospital que consultavam a escala de serviço dos
médicos sabiam disso. Por isso não se importava. Mas aquela história daquela paciente que ele nem sequer conhecia — e que nem ao
menos a tinha visto chegar ao hospital—, dizendo que um anjo teria
dito a ela que deveria chamá-lo, o deixou intrigado a ponto de se
apressar pela via marginal do rio Pinheiros e depois pela via marginal
do rio Tietê. Quando conseguiu se livrar do trânsito congestionado
das marginais, rapidamente tomou a rodovia Presidente Dutra, e minutos depois estava parando o Honda Civic no estacionamento do
Monsenhor Vasquez.
Como sempre, dirigiu-se à recepcionista cumprimentando-a com
a cortesia sincera de que somente ele conseguia dispor.
– Boa tarde!
– Boa tarde, doutor! O doutor Márcio está medicando, mas
mandou lhe falar que a paciente é essa aqui, a do leito cento e dois.
A moça fez aparecer na tela do monitor do microcomputador
a relação dos pacientes e imprimiu a ficha médica da paciente de que
falavam.
O médico levantou a mão direita, enfiando os dedos pelos escassos e brancos cabelos que formavam a rala franja, e passou a ler
atenciosamente a ficha médica por alguns instantes.
A recepcionista fitou-o discretamente, olhando por cima dos
aros dos delicados óculos que usava, e percebeu quando o doutor
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Fritzen mudou radicalmente a expressão da face, torcendo o nariz
em sinal de preocupação.
Quando o médico repentinamente se virou na direção da moça
e estendeu-lhe o braço para devolver a ficha da paciente do leito 102,
ela desviou também rapidamente o olhar e fingiu estar lendo alguma
coisa em cima da escrivaninha atrás do balcão.
– Dona Natalina de Jesus. – murmurou o médico. Depois
agradeceu à moça por ter lje fornecido a ficha médica: – tome. Muito
obrigado!
– Não, doutor! Pode ficar com a ficha! É para o senhor ! Uma
cópia!
A recepcionista lhe devolveu o papel enquanto lhe dava as
explicações que julgou necessárias.
Novamente o doutor Fritzen agradeceu a pegou o papel das
mãos da moça. Colocou dentro da pasta que carregava com mais
alguns papéis e medicamentos e saiu andando lentamente, com passos firmes, na direção do elevador.
Quando ouviu a campainha anunciar que o elevador havia chegado ao andar térreo, preparou-se para entrar assim que abrisse a
porta. Estava mais ansioso do que antes. Quando entrou no elevador
vazio, percebeu que a luz do subsolo anunciava que lá alguém também havia chamado o elevador.
O doutor teria de ir até o décimo andar, agora estava com uma
certa pressa motivada pela ansiedade, e a mulher encarregada da
limpeza do piso de todos os andares levou quase três minutos para
colocar seus baldes juntamente com as vassouras os rodos e a
enceradeira dentro do veículo vertical. Segurando a pasta embaixo
de um dos braços e deixando a outra mão livre, o médico pôde fazer
uso dela para ajudar a atrapalhada mulher com a enceradeira.
A campainha do décimo andar tocou, uma minúscula lâmpada
se acendeu e o doutor Fritzen sentiu um imenso alívio.
A faxineira iria continuar até o décimo segundo andar.
Quando a porta do elevador se abriu, o médico não olhou para
as placas de acrílico azul pregadas na parede à frente da saída, pois
já sabia onde era o leito 102.
29
Saiu caminhando na direção do quarto pelo corredor, quando
viu que uma outra pessoa, que mais parecia um vulto branco, saiu
apressadamente pela porta de entrada do quarto, olhou fixamente na
sua direção e desapareceu pelos fundo do corredor.
Lá não havia nenhuma outra porta, mas naquele momento o
doutor Fritzen von Keitel não se deu conta do fato.
Entrou no quarto a tempo de ver a enfermeira do plantão conferir a temperatura da paciente.
– Está com febre?
– Não, senhor! Mas continua desacordada, e de vez em quando com uma espécie de delírio! Está o tempo todo com aquela mão
fechada como se fosse dar um murro em alguém. Já tentamos muito
abrir seus dedos , mas ficamos temerosos de quebrá-los com o esforço! Conhece ela?
– Tenho certeza de que não! Quem estava aqui com vocês?
– Ninguém, doutor!
O médico estranhou a resposta negativa e reiterou a pergunta
de outra forma.
– Nem o doutor Márcio?
– Não mesmo! Já estou aqui sozinha com os pacientes nesse
andar há várias horas, e o senhor bem sabe que este horário eu fico
mesmo sozinha, doutor!
– Está bem. Agora me deixe aqui sozinho com a paciente.
Vou ver o que posso fazer por ela, e tentar descobrir por que me
chama, se nem ao menos nos conhecemos um ao outro.
A enfermeira apanhou sua bandeja com os medicamentos dos
outros pacientes que se encontravam pelo restante do andar e saiu
andando na direção da porta, deixando aparecer um andar muito sensual por baixo do fino tecido de sua roupa branca. Os largos e sensuais
quadris tomaram a atenção do casto doutor por alguns segundos pelo
menos.
“Nunca havia traído Inga”, é o que dizia a todos os que lhe
perguntavam sobre casos extraconjugais.
Quando virou-se para a velha negra, ela novamente estava
com os olhos bem abertos e olhava com extrema simpatia para ele.
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Era um olhar vivo, mas muito diferente do olhar de um ser humano
que estivesse gozando de sua absoluta normalidade física e mental.
O médico sorriu também na direção dela, intrigado com aquela
expressão, que era como a de alguém que havia encontrado um velho
conhecido há muito desaparecido.
O doutor novamente consultou os exames da velha negra,
constatando que realmente o quadro era irreversível, e segurou por
alguns segundos uma das mãos da enferma, que ainda se mantinha
fechada. Nesse momento ela abriu os dedos suavemente e deixou
escorrer para as mãos do médico um bilhete, assinado por ela mesma, como se quisesse dar um autógrafo de lembrança ao médico.
Ele não o leu naquele momento, mas minutos depois viu que
era um salmo: “Com a minha voz clamei ao Senhor, Ele ouviu-me
desde o Seu Santo monte.” (Salmos 3. 4).
Depois de afastar amavelmente a mão da negra e colocar o
bilhete em um dos bolsos , o médico passou a afagar-lhe os ásperos
mas agora limpos e encarapinhados cabelos brancos .
A mulher continuou lhe sorrindo com um olhar melancólico e
percebeu quando o doutor retirou do bolso de seu guarda-pó a seringa com algum tipo de medicamento. Levantou a seringa e mostrou
para ela. A mulher de novo apertou fortemente uma das mãos do
médico e, assentindo com a cabeça, sorriu, fechando os olhos em
seguida para não mais abri-los.
Instantes depois que o medicamento se misturou ao soro no
pequeno tubo transparente que descia até uma das veias da mulher, o
osciloscópio passou a representar o gráfico cardíaco em linha reta, e
mais uma vez seu bip passou de intermitente a contínuo.
O doutor Fritzen von Keitel esperou alguns segundos enquanto
olhava para o aparelho, e certificando-se realmente do ocorrido, rapidamente tocou a campainha chamando a enfermeira do plantão. Assim que a mulher surgiu na porta, viu o médico em pé ao lado do leito
como se tentasse reanimar a paciente; aproximou-se mas percebeu
que não adiantava querer fazer mais nada, portanto calou-se antes de
começar a dizer qualquer coisa.
Queria dizer, mas não disse. O homem era o médico responsável e com certeza iria retrucar com ela.
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Mas no fundo sabia que aquilo não era para ter acontecido
naquele instante. Não com aquela paciente. Seu quadro era sério,
mas não grave o bastante para entrar em óbito repentinamente. Bem!
Mas como poderia ter certeza? Ela não era médica! Assim concluiu
o que pensava e permaneceu calada.
*
Coincidentemente, o pager do doutor Fritzen tocou, quase no
mesmo momento em que o pager de Natanael Guzman o fez despertar de um sono intranqüilo e cheio de sobressaltos.
Os dois doutores estavam de folga nesse dia. O primeiro estava prestes a usufruir a folga extra mensal a que os médicos do
Monsenhor Vasquez tinham direito.
O segundo acabara de sair do plantão policial e passara a manhã toda dormindo. Esticou o braço e virou o relógio de cabeceira na
sua direção; eram 13h30. Aproveitou para apanhar o pager, viu que
era da delegacia e que o estavam chamando.
O doutor Fritzen von Keitel, no exato momento em que ouviu o
sinal da chamada, empurrava um carrinho nos corredores de uma
das lojas do Hipermercado Pazzani & Pazzani, no bairro do Morumbi,
e teve menos dificuldades tanto para consultar o horário quanto para
atender. Bem à sua frente, em uma das pilastras de sustentação da
loja, um relógio digital marcava 13h31; no mostrador digital do pager
confirmou o número do telefone do Hospital e a mensagem: “Ligar
imediatamente”.
O delegado Natanael Guzman colocou o pager de volta em
cima do criado-mudo, abaixou a cabeça o suficiente para achar os
chinelos embaixo da cama e os calçou. Levantou-se vagarosamente
e pegou o maço de Benson &Hedges mentolado em cima de uma
cômoda, em busca de um cigarro. Percebeu que o maço estava vazio, amassou-o e jogou no cesto de lixo situado no canto de uma
parede. Depois saiu meio cambaleando e sonolento até o banheiro,
onde escovou os dentes e fez um gargarejo, ao mesmo tempo em que
tomava uma rápida ducha para melhor despertar e reanimar o corpo.
Desceu até a sala e colocou o telefone de volta no gancho,
depois de também ligar o telefone celular. Em seguida foi até a cozi32
nha, preparou um copo de leite frio batido no liqüidificador, ligou a
torradeira para preparar duas torradas e fez o desjejum àquela hora
da tarde mesmo.
Considerou que estava pronto.
Agora iria ligar para a delegacia e verificar qual a urgência de
terem lhe procurado em casa no seu dia de folga magra. Se fosse na
folga gorda não se importaria muito; mas na folga magra, quando
havia acabado de sair do serviço, teria de ser algo de muito importante para sair de casa e ir até lá.
O telefone do distrito policial chamou até cair a ligação e ninguém atendeu. O delegado Guzman tentou novamente, e depois da
quarta chamada alguém atendeu:
– Alô! Primeiro distrito policial! Em que podemos servi-lo?
– Eu é que quero saber! Por que me tiraram da cama no meu
primeiro dia de folga? Não faz mais do que seis horas que eu deixei a
delegacia!
Antes que Guzman pudesse se identificar, seu interlocutor lhe
perguntou em tom de surpresa:
– Mas quem está falando?
– Aqui é Guzman! Doutor Natanael Guzman! Porque demoraram para atender o telefone?
– Ah! Sim, doutor! Desculpe-me, é uma ocorrência! Estou
praticamente sozinha no telefone e na recepção! Fui eu que liguei
para o senhor! Mais uma vez me desculpe por tê-lo incomodado em
sua folga!
Quem estava falando do distrito policial era a agente policial
Marta de Oliveira. Martinha para os amigos mais íntimos.
– Martinha? Porque me chamou?
– É uma mulher, doutor. Ela ligou procurando o senhor, dizendo que era urgente, caso de vida ou morte, e não quis falar com mais
ninguém a respeito do assunto.
– Que assunto?
– Ela não disse. Falou que o senhor já sabe do que se trata e
insistiu em falar somente com o senhor!
33
– Qual é o nome dela?
– Também não disse!
– Você atende um telefonema e não anota o nome da pessoa
que ligou?
– Doutor, me desculpe! Eu perguntei, mas ela não quis falar.
Ela não é obrigada.
– Tem razão. Ela lhe falou se tornará a ligar? Você falou para
ela se dirigir até aí? O que mais ela disse?
– Não vai retornar a ligação hoje, tampouco vai vir até aqui.
Informei a ela que o senhor só estará aqui na quarta-feira, e ela prometeu que vai se esforçar para comparecer quando o senhor estiver.
– Nada mais?
– Ah! O hospital!
– Que hospital?
– Ela falou no hospital! Disse que o problema é no Hospital
Geral Monsenhor Vasquez, mas não disse mais nada e desligou em
seguida.
– Está bem Martinha! Se é só isso, obrigado!
Enquanto Guzman acabava de falar com a agente policial, o
doutor Fritzen guardava as compras no porta-malas do Civic azul
marinho no estacionamento e se preparava para ir até um telefone
público ali mesmo, de onde ligaria para o Monsenhor Vasquez.
O telefone celular? Havia deixado em casa como em tantas
outras vezes, e desligado.
O telefone não chamou mais do que duas vezes, e a telefonista
atendeu polidamente:
– Hospital Geral Monsenhor Vasquez, telefonista Lenize de
Souza, boa tarde! Em que podemos ajudá-lo?
– Boa tarde! Aqui é o doutor Fritzen!
– Doutor! Como está? Temos um recado do médico do plantão para o senhor.
– E o que é?
– Ele não nos disse! Somente pediu para entrarmos em contato com o senhor e solicitar que retornasse a ligação.
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– E ele está por aí? Estou em um telefone público e quase sem
unidades no cartão.
– Não. No momento ele não está, mas vou anunciá-lo pelo
sistema de som. Espere! Ele está vindo para cá!
No instante em que o médico de plantão caminhava pelo corredor do hospital na direção da recepção, o doutor Fritzen ouvia o
sinal da última unidade do cartão magnético se esgotando, e no mostrador digital do aparelho apareceu escrito: “Zero unidades”.
Imediatamente a telefonista se levantou um pouco da cadeira
em que estava sentada e acenou com um das mãos ao médico, dizendo que o doutor Fritzen estava na linha.
O médico plantonista, doutor Márcio Fiordecisto, levantou a
cabeça e correu na direção do telefone com passos curtos e rápidos,
evitando fazer alarme.
Quando pegou o gancho para atender, o doutor Fritzen percebeu e se adiantou:
– É Fritzen! Não tenho mais unidades no cartão, por isso vou
ligar a cobrar! Fique aí mesmo!
Menos de um minutos depois, o telefone voltou a chamar, e o
médico plantonista pegou-o antes da telefonista.
– Alô! É o doutor Fritz?
– Não! Eu só quero uma informação! Vocês fazem parto
particular?
– Sim , fazemos; mas você de vir até aqui para obter os detalhes! Não passamos nada por telefone!
A mulher agradecia ao médico a informação, e o doutor Fritzen
mais uma vez tentava conseguir completar a ligação a cobrar.
O doutor Márcio Fiordecisto mais uma vez atendeu assim que
o telefone chamou, e depois que falou alô, ninguém lhe respondeu,
mas uma música de computador ficou tocando em seu ouvido por
alguns segundo, seguida de uma mensagem também de um computador. Quando acabou, ouviu a voz do doutor Fritzen do outro lado:
– Alô! Aqui é Fritzen von Keitel. Quem está falando?
– É o doutor Márcio Fiordecisto. Boa tarde, doutor Keitel!
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– Boa tarde! Estou retornando a sua ligação.
– Eu sei. Obrigado, e me desculpe de lhe incomodar em sua
folga!
– Não se desculpe! Nós médicos só teremos folga de verdade
a partir do dia em que não existir em mais pessoas enfermas no mundo. Temos de estar preparados para isso, você bem sabe!
– É verdade!
O doutor Fritzen von Keitel era pelo menos quarenta anos mais
velho do que o doutor Márcio Fiordecisto, que acabara de fazer sua
residência ali mesmo no Monsenhor Vasquez. Fritzen sentia que sua
obrigação para com os médicos novos não se resumia em transmitir
conhecimentos profissionais, mas, além desses, sentia-se obrigado a
lhes transmitir algum conhecimento e experiência de vida.
Alguns dos novatos não gostavam muito de suas idéias; achavam-no muito socialista e humanitário demais; preferiam sonhar com
os lucros da profissão, entendendo que o ônus da saúde pública era
somente do governo, e não deles também. Felizmente eram poucos
os que pensavam assim.
O doutor Márcio, de certa forma, fora um discípulo de Fritzen
von Keitel e ainda o considerava seu mentor
– Enfim, qual é o problema, Márcio? Porque me ligou?
– Senhor, temos uma paciente na geriatria que insiste em lhe
ver! Diz querer muito que o senhor a examine e se recusa até a
tomar banho com as enfermeiras!
– Quem é ela?
– É uma paciente terminal. A do leito 102. Temo que ela não
resista até amanhã, e achei que seria meu dever lhe avisar do ocorrido, senhor.
– Fez bem! Mas porque a ela insiste que seja eu seu médico?
– Não entendo, senhor! Desde ontem que ela fala sem parar
que um anjo apareceu para ela, e lhe disse que o senhor poderia
aliviar-lhe a dor!
– Um anjo? Você realmente ouviu ela dizer que um anjo me
recomendou? Qual é o quadro clínico dela?
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Márcio aproveitou-se do fato de estar na recepção e demorouse alguns instantes para responder, enquanto acendia um cigarro e
dava uma longa tragada enchendo os pulmões e soltando em seguida
a fumaça pelo nariz.
– É um tumor no encéfalo, doutor. O quadro é irreversível!
– Aí está a explicação! Ela deve estar delirando. Estes casos
são assim mesmo, e com certeza alguém deve ter dado meu nome
para ela.
O médico do plantão hospitalar insistiu, demonstrando que queria
que o doutor Fritzen fosse ver a paciente:
– Mas, doutor, ela chegou aqui ontem, e o senhor não teve
nenhum contato com ela! É por isso que eu lhe liguei. Eu entenderia
se ela o conhecesse, e acharia também como o senhor que seria caso
de delírios. Mas ela garante que não o conhece, nunca o viu na vida,
e que foi mesmo um anjo que lhe apareceu e lhe disse algumas coisas
a respeito do senhor.
– Está bem. Vá até ela e lhe diga que logo estarei aí para
atendê-la e medicá-la. Ah e veja se larga esta porcaria!
– Ótimo. Vou dizer agora mesmo; obrigado, doutor. Vou tentar!
Márcio não entendeu como, mas de qualquer forma o outro médico havia notado que o colega estava fumando naquele momento.
O doutor Fritzen von Keitel ficara tão pensativo a respeito do
caso que desligou sem tempo de ouvir o médico do plantão lhe agradecer. Por um momento arrependeu-se de ter repreendido o jovem
médico no que se referia ao cigarro, pois ele mesmo, no passado,
durante muito tempo havia se deliciado com autênticos charutos
cubanos.
Ainda os tinha em casa, e de vez em quando não resistia à
tentação de umas boas baforadas.
Mais do que depressa deu partida no Honda e se dirigiu para
casa, onde deixaria as compras e avisaria Inga, a mulher, que talvez
viesse tarde para o jantar.
Estaria no hospital. Ela sabia, era seu sacerdócio. Depois dela,
o que ele mais amava na vida era sua profissão e seus pacientes.
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Dois
Havia acabado de cair uma chuva das mais fortes para a época, e o velho e barulhento relógio de pêndulo preso à parede da agência funerária marcava dez horas da noite com seus dois velhos ponteiros. O outro minúsculo e delicado ponteiro marcador dos segundos
não se movia mais há muito tempo.
Acima da porta, uma placa pendurada exibia o nome do lugar:
Funerária Euclides Borges.
Como se pressentisse algo estranho, um cão preso em um quintal
que fazia divisa com os fundos da loja latia sem parar.
A pessoa dentro do carro estacionado do outro lado da avenida
aguardou até que um último cliente que estava lá dentro saiu, deixando o funcionário praticamente sozinho. Não se podia ver mais ninguém com ele, mas quem conhecesse o dono do lugar saberia que ele
ainda não havia se retirado para casa, pois seu carro continuava estacionado na frente do estabelecimento. Certa disto, a pessoa que espreitava desceu do carro, esmagou no chão com a sola do sapato a
ponta de um charuto que mastigou o tempo todo em um dos cantos da
boca e avançou decididamente para o outro lado da rua, em direção à
porta de entrada do lugar. Era loura, alta, aparentemente muito forte,
cuja idade não se podia precisar, tendo em vista a maneira como
escondia o rosto, e com os cabelos amarrados atrás da nuca como se
formassem um rabo de cavalo.
A porta de vidro estava trancada, e a figura estranha que usava um avental de hospital já todo molhado pela chuva anterior teve de
bater com os nós dos dedos na porta para chamar a atenção do funcionário parado atrás do balcão. O moço levantou a cabeça e assim
que a viu virou-se para trás e voltou andando para destrancar a porta.
Assim que o rapaz abriu um pouco e se preparou para perguntar o que o suposto cliente desejava, este entrou empurrando sem ao
menos cumprimentá-lo ou pedir licença.
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– Onde está o Euclides?
– Calma! No momento ele não está! Quem é você?
O rapaz ficou falando sozinho enquanto a pessoa avançou e
entrou sem avisar por uma porta um pouco escondida que levava a
outra sala nos fundos da funerária. Quando passou para o lado de
dentro, o proprietário do lugar já a aguardava sentado em uma mesa
de escritório, com uma das mãos em cima e a outra empunhando
uma pistola sobre os joelhos.
Ao contrário da pessoa estranha que havia invadido o estabelecimento, o proprietário mostrava bem a idade, aparentando ter aproximadamente uns sessenta anos a cor da pele deixava claro ter sangue latino, possuindo cabelos muito pretos e uma saliência enorme no
abdome que não lhe deixava fechar a camisa completamente, mesmo que se esforçasse.
Minutos antes a pessoa ainda se encontrava na frente da loja
do lado de fora, e Euclides já estava acompanhando seus movimentos pelo monitor do circuito fechado de televisão. Fingindo estar surpreso, assim que a pessoa estranha entrou Euclides se adiantou:
– O que está fazendo aqui? Eu não disse que não aparecesse
por aqui em hipótese alguma? Quer melar toda a coisa?
– Estou lhe procurando há três dias e não consigo encontrá-lo.
Deixo recados em sua secretária eletrônica e você não me retorna.
Por acaso está fugindo de mim? Vai me dizer que está sem grana?
Com a última encomenda que lhe arranjei, já passa de cinco mil o que
me deve. Acho que chegou a hora de acertarmos as nossas contas.
Euclides, que anteriormente havia se mostrado superior e imperativo, agora respondia com muito mais suavidade, diante da expressão de ira da visita inesperada.
– Calma! Porque todo este nervoso? Eu sei que lhe devo, mas
você tem de compreender! As coisas não andam nada boas neste
ramo. Caso contrário acha que eu iria recorrer a expedientes deste
tipo com você para fazer movimentar o negócio?
– Eu quero meu dinheiro! Não vim atrás de conversa! Se você
tem problemas, eu também tenhos os meus, e as pessoas estão me
apertando.
– Quem está lhe apertando? E por quê?
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– Isto é problema meu. Não se envolva. E fique sabendo que
foi minha última encomenda para você. Me pague e não conte mais
comigo para este tipo de trabalho.
– O que está dizendo? Vai me deixar na mão agora? Vai pular
fora do barco e me deixar falando?
– É o que eu disse. Não conte mais comigo. Passe o meu
dinheiro que vou sumir da sua frente.
– Está bem. Supondo que você não faça mais nenhum trabalho
para mim, onde acha que eu vou arranjar cinco mil reais a essa hora?
– Cinco mil e duzentos reais, para ser exato.
– Que seja! Eu não tenho essa quantia guardada aqui comigo.
– Isso é problema seu. Tem o seu cartão de banco com você;
não tem?
– É claro. Mas mesmo que rodássemos todos os caixas eletrônicos da cidade, não conseguiríamos retirar essa quantia. Passaria
muito do limite autorizado.
– E o que sugere, então? Eu vim buscar o que você me deve!
E acredite: não vou embora com as mãos abanando desta vez!
Novamente a figura loura se mostrava cada vez mais
neurastênica, enquanto andava gesticulando pela sala de um lado a
outro. Enfiou uma das mãos dentro de um dos bolsos do casaco e
retirou um charuto vagabundo.
Quando abriu o casaco, Euclides percebeu que a pessoa portava uma arma por baixo do guarda-pó e temeu, pois com certeza não
iria lhe dar trégua, saindo calmamente dali sem que se resolvesse a
situação, de uma forma ou outra.
Lembrou-se da fábrica. No cofre da fábrica de urnas. Lá deveria ter o dinheiro de que precisava para pagá-la e acalmá-la. Sabia
que alguém, homem ou mulher, alterado daquela forma, era capaz de
qualquer coisa. Pensou em acertar tudo o que devia e deixar que se
fosse, e aí não teria mais problemas.
– Estou esperando que me responda! Onde está meu dinheiro? Como vai me pagar?
– Na fábrica. Terá de esperar até que eu vá buscá-lo.
– Que fábrica? De que fábrica está falando? Não vou esperar
mais. Vou aonde você for.
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– Você é que sabe. Se quiser vir, vamos no seu carro, então.
Tenho algum dinheiro guardado no cofre da fábrica de urnas. Vamos
lá, eu pego e te dou, e você desaparece da minha frente como disse.
Está bom assim?
– Se você me pagar o que deve, estará bom de qualquer forma.
– Então está bom. Procure se acalmar. Vou terminar de arrumar algumas coisas aqui e já saímos. Onde está seu carro?
– Está aí na frente. Do outro lado da rua.
O proprietário da funerária percebeu, enquanto terminava de
guardar alguns papéis, que a figura loura havia acabado de estender
uma fina camada de uma droga qualquer em cima de sua mesa e
aspirava tudo de uma só vez freneticamente, deixando o charuto de
lado por um instante. Pensou em dizer que não queria saber daquilo
ali dentro, e que aquela droga ainda iria matá-la, mas resolveu se
calar. Afinal não era um problema seu, e talvez fosse aquela a razão
de tanto nervosismo.
Terminaram e saíram pela porta da frente, com a pessoa seguindo Euclides bem de perto. Quando passaram pela recepção,
Euclides fez questão de deixar claro ao funcionário que estava saindo
juntamente com ela para algum lugar, mas não disse que era para a
fábrica. O rapaz olhou e, apesar de alguns minutos antes ter ouvido a
gritaria no interior da sala, achou que pareciam amigos.
*
O carro rodou por cerca de vinte minutos na direção norte de
Guarulhos, sempre com a pessoa loura ao volante e fumando o charuto. Euclides ia tenso com uma pasta de couro apertada entre os
joelhos, sentado no banco de passageiros. Já havia engasgado e tossido uma dúzia de vezes devido à fumaça presa dentro do carro com
os vidros fechados.
A pessoa percebeu que o asfalto já ia se acabar e começou a
reduzir a velocidade, quando o passageiro lhe indicou com uma das
mãos que virasse à direita e logo em seguida saísse da estrada, entrando no atalho em meio ao mato que os levaria ao galpão velho e
mal conservado onde funcionava a fábrica de caixões funerários.
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À primeira vista parecia ser uma velha fábrica abandonada.
Mas ali, durante o dia, pelo menos seis funcionários martelavam tábuas
e pregos na montagem das urnas funerárias.
Os dois desceram e caminharam até o fundo do lugar, pisando
no barro. Em seguida, depois de destrancar dois grandes cadeados e
retirar as correntes, Euclides destrancou a porta principal. Ele entrou
e a pessoa entrou atrás. Euclides girou um interruptor, e uma luz se
acendeu num buraco rente ao chão logo à frente dos dois, por onde
descia uma escada até o porão. Outra porta foi destrancada, e os
dois entraram numa sala onde ficava o velho e enferrujado cofre em
um dos cantos. Euclides parou à frente do cofre e pôs-se a abri-lo,
sempre encobrindo-o, como se estivesse impedindo que a pessoa ainda muito nervosa tivesse condições de identificar o segredo. Ela retirou a arma da cintura e colocou atrás das costas, no exato momento
em que Euclides colocava em cima da mesa empoeirada um saco de
papel com alguns maços de cédulas.
– Aqui está.
– Quanto tem aí?
– O suficiente para você pegar e cair fora. Confira!
– Não! Confira você que eu fico olhando.
Euclides passou a contar as notas enquanto falava:
– Não confia em mim?
– Talvez sim, talvez não.
– O que quer dizer com isso? Aqui está. Quatro mil e quinhentos reais, mais setecentos que eu tenho aqui na bolsa.
Euclides se abaixou um pouco para abrir a bolsa, quando a
figura o advertiu de arma em punho, apontando diretamente para seu
rosto:
– Espere! Veja o que vai tirar daí. Não estou de brincadeira
aqui não!
– Jesus Cristo! Você só pode ter enlouquecido! O que está
pretendendo com isso?
– Só estou me garantindo. Mais nada. Pensando bem, estou
mesmo cogitando a possibilidade de ter que matá-lo!
43
– Mas por quê? Não estou lhe pagando? É mais dinheiro que
quer?
– Não. Estou garantindo que não vai sair daqui e bater com a
língua nos dentes ao primeiro que te apertar. Além do mais, você já
sabe que tenho outros clientes para o negócio. Não preciso mais de
você.
Euclides, apavorado, sentiu um forte tremor lhe abalar os joelhos, enquanto suava pela testa e pelo pescoço e com a mão trêmula
tentava alcançar a arma dentro da pasta a poucos centímetros. A
figura estranha percebeu e gritou:
– Não! Não faça isso! Não precipite as coisas!
O silêncio daquele lugar, dado o adiantado da hora, era até
aquele momento rompido unicamente pelo vento que fazia algumas
folhas de zinco que haviam se desprendido do teto do galpão baterem. De repente, um pequeno estalido, como se fosse de um gatilho
de arma sendo puxado, soou bem à frente do ouvido esquerdo de
Euclides. Seus lábios se abriram para gritar e seu grito foi abafado
pelo estampido do disparo.
– Pelo amor de Deus! Não faz isso! Não!!!!
O grito de desespero provocado pelo estertor da dor na face
misturou-se ao baque surdo do corpo de Euclides batendo sobre a
mesa e em seguida caindo ao chão, enquanto o cheiro de pólvora se
espalhava pelo ar.
Segundos depois, nem o dinheiro, nem a pessoa estranha e
tampouco o carro estavam mais ali.
Somente o corpo de Euclides gelava caído ao chão, esperando
até que começassem a chegar pela manhã os funcionários da fábrica.
44
Três
O jovem estudante olhou para um dos lados enquanto tentava
correr para longe da turba em gritaria, e viu um dos soldados que
vinha montado num cavalo cair pesadamente ao chão junto com o
animal. O quadrúpede não conseguiu controlar as patas depois que
começou a pisotear a grande quantidade de bolas de gude que desciam rua abaixo, estatelou-se.
O moço quis rir, quando então repentinamente tudo escureceu
para ele, e também caiu com o rosto batendo forte no asfalto; o cacetete
de borracha do outro soldado que havia chegado pelo lado oposto lhe
acertara a nuca tão violentamente que o fez desmaiar.
Mal conseguia respirar quando abriu os olhos; estava jogado
em um dos cantos da cela junto com mais umas duas dezenas de
pessoas, todos estudantes de um curso ou outro na Universidade de
São Paulo. De sua turma, do último ano de medicina, não havia ninguém naquela cela.
Quando conseguiu levantar-se do chão com muito sacrifício,
escutou os guardas que vinham caminhando no corredor e gritando
que se preparassem em fila indiana para saírem. Sentiu falta de alguma coisa e percebeu que sua carteira de estudante havia desaparecido do bolso.
Um a um os estudantes foram saindo do edifício próximo à
Estação da Luz, e ao passarem por uma mesa próxima da porta
tiveram de recitar ao homem sentado do outro lado os nomes e
números de matrícula, além do endereço completo, que seria confirmado posteriormente.
Nenhum dos que haviam sido presos naquela tarde queria saber
de mentir. O ano era 1965, os militares estavam no poder havia quatro
anos e a repressão aos oposicionistas do governo estava aumentando a
cada dia. Com certeza, aquele que ocultasse seus verdadeiros dados
seria procurado posteriormente através da universidade, e as coisas
para ele não iriam terminar como dessa vez, com certeza.
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O estudante louro e magro já se contorcia de fome e dor na
barriga, devido aos maus-tratos que recebera dos soldados, quando
conseguiu alcançar a rua.
Era madrugada.
Apesar desse incidente, o rapaz conseguiu se formar com louvor e continuou a fazer parte da vida política de porões juntamente
com mais alguns companheiros dos tempos de escola.
O general Emílio Garrastazu Médici nesta época era o presidente do país, e todos os partidos políticos considerados de esquerda
se viram obrigados a permanecer na mais completa clandestinidade.
Nesta época, já quase cinco anos mais velho, o antes estudante e desta feita um jovem médico continuou a freqüentar as reuniões
do partido em um velho casarão da alameda Tutóia, situado bem no
meio do quarteirão. Fazia-o quando não estava atendendo no plantão
hospitalar, ou mesmo quando era solicitado pelo partido na saída do
expediente, à noite.
Pelo menos duas vezes por semana saía para almoçar, e depois de andar alguns quarteirões para longe da Santa Casa de Misericórdia, entrava em um pequeno restaurante de um português conhecido como Alfredo de Carvalho e Silva e combinava com ele o
horário da próxima reunião; o comerciante estava participando das
reuniões fazia não mais do que dois anos, mas os líderes do partido já
haviam achado que poderiam confiar nele para mandar e receber os
recados e informações que interessassem a todos. O homem era
casado, possuía um casal de filhos, e a garota já estava com nove
anos freqüentando, a terceira série escolar em uma escola estadual
na Vila Maria, onde moravam .
Uma noite a garota ouviu a mãe reclamar do pai que não chegava logo, e quando esta caiu em si já havia se referido às reuniões
secretas do grupo como a causa de sua solidão.
Se queria sair com as crianças e o marido, ou mesmo se queria
deixar as crianças com a irmã por algumas horas e sair sozinha com
o marido não podia, por causa das reuniões.
“Não sei porque seu pai se mete com política e essas reuniões!
Sabe que é proibido! Qualquer dia desses vai acabar indo preso”, foi
46
o que disse em frente aos garotos, e foi o que selou o destino da
maioria dos freqüentadores noturnos da velha casa da alameda Tutóia.
A garota foi à escola, a amável professora lhe indagou sobre
alguns assuntos como fazia com a classe toda, e apesar das recomendações dos pais, a menina falou com a professora do porquê de
estar sempre triste e pensativa na sala de aula.
– O papai quase não fica conosco! A mamãe se chateia muito
e fica nervosa! Às vezes fica muito triste!
– Pobre coitada! E porque o papai não fica com vocês? O que
ele tanto faz?
– São os amigos! Alguns encontram com ele no restaurante, e
eles saem junto para se reunirem!
A doce garotinha não imaginava o que estava fazendo; pensou
mesmo que a professora iria fazer algumas recomendações ao pai a
respeito da atenção à família em uma das reuniões de pais e mestres.
A partir desse dia a professora não tocou mais no assunto com a
menina, seu pai continuou chegando muito tarde em casa em alguns dias
determinados, e seu restaurante passou a ser vigiado desde que abria até
a hora em que fechava por agentes do governo sem que ele percebesse.
Certo dia o comerciante Alfredo Silva percebeu algo estranho
em dois fregueses, e sem saber por que, desconfiou que poderiam ser
da polícia. Pela última vez chamou alguns dos companheiros e os
alertou, o que fez com que resolvessem que não se reuniriam por
alguns dias, nem se encontrariam no restaurante de Alfredo.
Pouco a pouco os agentes pararam de freqüentar o restaurante também.
Como de costume, antes de iniciar seu plantão, o jovem médico sempre passava no restaurante para tomar seu café matinal, e
discretamente conseguia do português as informações que desejava
sem despertar suspeita no mais astuto olheiro que por ali estivesse.
“Esteja aqui hoje à noite; iremos nos reunir na Tutóia.” O bilhete com essas palavras quase grudou no fundo da xícara de café que
foi servida ao médico; discretamente o apanhou e amassou entre os
dedos para ler depois. Acabou de tomar o café, pagou, acendeu um
fino charuto cubano, deu uma baforada boa, agradeceu e saiu.
*
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Faltavam pouco mais de dez minutos para as onze horas da
noite de acordo com o relógio de pulso de um dos companheiros de
Fritzen, quando este e mais algumas das pessoas que estavam reunidas ali ouviram o bater de várias portas de automóveis na rua.
Alguns se levantaram e fizeram menção de sair pela frente,
mas desistiram quando viram a quantidade de soldados que estavam
distribuídos por toda a extensão da rua.
Um muro baixo separava a casa da propriedade que fazia fundos e dava saída para a outra rua. Fritzen correu para lá e, com a
agilidade de seu corpo delgado e seus quase dois metros de altura,
saltou para o outro lado com extrema facilidade. Nem sequer se preocupou se havia algum cão de guarda ou não.
“Não poderá haver cão de guarda pior do que esses que estão
aí fora!”, pensou.
Outros três amigos o seguiram um pouco atrás, já perseguidos
por um grupo de soldados que gritavam.
Fritzen ouviu quatro disparos e depois mais quatro; estava chegando ao portão de saída quando resolveu olhar para trás e ver se
seus colegas teriam conseguido. Não estavam mais lá. Quando virou-se novamente para frente, com um dos pés já alcançando a calçada e prestes a desaparecer dentro da escuridão, sentiu a forte pancada que lhe atingiu o rosto em cheio. A coronha de um fuzil lhe
bateu um pouco acima do nariz com tamanha violência que o fez
desmaiar. Depois disto, nem mesmo a pancada do rosto, que bateu de
encontro à calçada, foi suficiente para que voltasse a si.
A primeira imagem que conseguiu distinguir depois de um bom
tempo desacordado nunca conseguiu se lembrar e nem precisar quanto
tempo durou foi a de uma outra pessoa, talvez um homem, vestido todo
de branco e parado em pé ao seu lado. A pessoa parecia imersa em
uma espécie de névoa, e assim permaneceu por mais de uma hora.
Fritzen era médico, portanto sabia que a pancada que havia
recebido, e que doía muito, havia afetado de qualquer forma seu nervo ótico. O homem aproximou-se de onde estava deitado e aplicoulhe em um dos braços uma injeção.
Fritzen desmaiou novamente.
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Quando voltou a si não estava mais deitado naquele leito, e o
homem de branco não estava mais ao seu lado, mas seus olhos ainda
estavam imersos em névoa.
Estava sentado, e suas nádegas doíam muito.
Sentiu-se incomodado, e tentou levar uma das mãos aos olhos;
esforçou-se em vão, e percebeu que os braços estavam atados com
uma corda de náilon na cadeira que estava sentado, passando bem
por baixo do assento. Sentiu dormência nas mãos, por isso concluiu
que deveria estar naquela posição há muito tempo. As pernas estavam da mesma forma, atadas junto com as pernas da cadeira, bem
abaixo das canelas. Conseguiu virar a cabeça para um dos lados, e
percebeu, não muito nitidamente, uma outra pessoa nas mesmas condições a cerca de uns oito metros de distância.
Somente um luz muito fraca em uma das paredes sujas iluminava o local. Não havia nem uma janela. De vez em quando Fritzen
percebia a lâmpada piscando e enfraquecendo até quase se apagar, e
depois voltava outra vez com sua intensidade máxima. Várias vezes
teve a impressão de ouvir gritos, mas não tinha certeza. Além da
forte dor de cabeça, seu estômago também doía, não sabia se pela
fome que sentia ou devido à sua acidez exagerada.
Sentiu um pouco de vontade de fumar, e percebeu que precisava falar com alguém, senão poderia cair outra vez no torpor e não
queria que isso acontecesse. Tentou puxar conversa com a pessoa
presa na cadeira ao lado, mas percebeu que ela não havia levantado
a cabeça, mesmo que debilmente, em nenhum momento. Deu alguns
gritos, que foram até a parede oposta e voltaram.
As horas haviam passado, e suas vistas já haviam clareado um
pouco mais. A lâmpada próxima ao teto continuava a piscar até quase
se apagar. Não sabia se era noite ou dia, mas sentia que já estava ali
preso fazia mais de doze horas e não havia aparecido ninguém. A
pessoa amarrada à outra cadeira ainda não havia levantado a cabeça.
“Não é possível alguém ficar desacordado assim por tanto tempo! Deve estar morto!”, pensou.
Estava acabando de ter estes pensamentos, quando ouviu batidas
em uma das paredes à frente, envolta em escuridão, pois a fraca luz não
conseguia sequer atravessar a sala e alcançá-la para iluminá-la.
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Depois do barulho de um ferrolho, uma porta se abriu, e dois
homens entraram. Suas cabeças estavam cobertas por um capuz, e
um deles carregava uma marmita que rapidamente espalhou o cheiro
de comida pelo lugar. Assim que entraram e fecharam novamente a
porta, os dois homens se limitaram a passar bem perto de Fritzen, e
olharam para ele; quando se aproximaram da outra pessoa, provavelmente para fazer a mesma coisa, o que não carregava nada mais do
que uma caneca de água na mão exclamou:
– Esse cara está morto!
– Será possível? Joga a água no rosto dele!
Falavam como se quisessem que Fritzen ouvisse e entendesse;
com certeza queriam aterrorizá-lo ao máximo. O barulho da água
batendo no rosto da pessoa moribunda e caindo em seguida ao chão
serviu para dar mais sede à boca de Fritzen, já quase sem saliva
alguma para lhe umedecer os lábios e a garganta.
Os homens continuaram a exclamar:
– Está morto mesmo!
– Vamos avisar ao comandante e tirá-lo daqui!
Quando passaram perto de Fritzen, quase tocando a ponta de
seu sapato com as pernas, ele percebeu que os homens usavam o
uniforme do exército. Nunca soube o porquê. Não era homem muito
violento, mas sentiu-se tentado a derrubar um dos homens fazendo-o
tropeçar, porém desistiu. Sabia que isso não iria melhorar em nada
sua situação.
Os soldados saíram, passando com a marmita exalando o cheiro da comida bem perto de seu rosto, mas tornaram a levá-la embora.
O ferrolho foi novamente trancado, e as horas continuaram a passar
sem que mais ninguém aparecesse.
O cansaço da falta de mobilidade já estava dominando Fritzen,
quando então o sono começou a bater, como se estivesse insistindo
em pegá-lo. Tentava ficar acordado, mas toda tentativa foi em vão.
Quando sua cabeça finalmente cedeu e caiu para frente, sentiu que o
corpo da pessoa amarrado na cadeira ao lado já começava a exalar o
cheiro da morte.
Algum tempo depois, o odor da carne humana em início de
putrefação novamente lhe invadiu as narinas, indo fixar-se no fundo
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de seus pulmões, no exato momento em que um dos homens fardados
à sua frente lhe jogou meio balde de água no rosto.
Depois de aspirar profundamente sem querer aquela mistura
de água e ar fétido, olhou para frente levantando a cabeça debilmente e viu, parado e em pé, o homem que havia lhe jogado a água na
face; percebeu imediatamente que aquele não era nenhum dos outros dois que haviam estado ali antes.
Estava sem o capuz, usava óculos escuros e boné bico de pato.
Uma forte lâmpada foi acesa um pouco acima da cabeça de Fritzen,
e o soldado fez questão de voltá-la diretamente na direção de seus
olhos. Quando virou para o lado tentando se esquivar da luz, antes de
tomar uma forte bofetada no rosto, teve tempo de ver que a outra
cadeira estava vazia.
O soldado agarrou-o pela franja encharcada com a mão que não
segurava a lâmpada e fez com que se voltasse diretamente para ele.
Fritzen estava com os olhos fechados, o que havia feito instintivamente,
quando a luz se apagou de repente, e por poucos instantes. Com a
pouca claridade que vinha da fraca lâmpada na parede, pôde perceber
as enormes orelhas do soldado, um rapaz bem mais jovem do que ele,
aparentemente, ostentando uma grande cicatriz em forma de cruz em
uma de suas faces e uma pequena estrela bordada em cada um de
seus ombros no uniforme; ambas as estrelas possuíam uma cor prateada. Lembrou-se dos tempos em que adorava folhear um velho manual
militar de seu pai. Tinha quase certeza de que eram insígnias de aspirante a oficial, ou segundo-tenente, e o homem não estava nem um
pouco preocupado em dissimulá-las. Isso era mau sinal.
Pelo visto, eles tinham certeza de que Fritzen não iria sair dali
vivo para falar com ninguém e tampouco iria reconhecê-los no futuro.
Imaginava estas coisas, enquanto o soldado, que segurava um
cachimbo aceso, entre uma baforada e outra gritava frases e perguntas atropeladas umas às outras, que para Fritzen faziam pouco ou
nenhum sentido.
Entendeu que o homem por várias vezes lhe perguntou quem
era, o que estava fazendo naquela casa àquela hora da noite, se não
sabia que reuniões de qualquer natureza estavam proibidas, quem
eram seus companheiros e onde se poderia encontrá-los .
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Quando simplesmente respondia que era médico na Santa Casa
de Misericórdia, e que havia entrado ali somente para saber do que se
tratava aquela “festa”, a convite de um paciente, e que não conhecia as
outras pessoas, o oficial urrava de raiva e o esbofeteava violentamente
chamando-o de mentiroso, terrorista e comunista maldito. Em seguida
gritava: “Vai morrer! Ordinário!” E batia mais violentamente.
Pelo menos por cinco vezes Fritzen perdera os sentidos, e era
obrigado novamente a voltar a si com o jato de água que lhe atingia
diretamente o rosto e o nariz, quase fazendo com que se afogasse.
Continuou apanhando por horas a fio, que para ele pareciam
intermináveis. Em um dado momento seu rosto estava completamente deformado, mais parecendo um amontoado de carnes disformes, e
a dor lhe atingia desde os pés até a raiz do mais fino cabelo da cabeça. Continuou apanhando enquanto permanecia acordado, mas não
respondeu nenhuma das perguntas que eram feitas pelo soldado, ou
por qualquer um dos outros que estavam um pouco mais atrás.
O oficial já havia saído para almoçar, havia saído para tomar
café e havia saído para jantar enquanto outros se encarregavam de
manter Fritzen acordado de qualquer forma, quanto mais dolorosa
melhor.
Depois de horas apanhando, seus lábios não conseguiam pronunciar uma palavra sequer que fosse inteligível. Nesse momento,
fez duas coisas. Primeiro prometeu a Deus que, se saísse vivo daquele lugar, jamais iria deixar qualquer ser humano sofrer na sua presença se pudesse evitar. Depois tentou pronunciar algumas palavras,
dizendo ao homem que iria confessar o que quisesse, mas que não o
torturasse mais. O oficial não entendeu, e encarou como mais uma
negativa, respondendo:
– Esse maldito não vai falar nada mesmo! Também não consegue ao menos balbuciar!
O militar vociferava impropérios e amaldiçoava Fritzen ao
mesmo tempo.
Fritzen percebeu, com um dos olhos que ainda estava um pouco aberto, que o homem prendeu o cachimbo à boca com os dentes,
depois levou a mão direita ao coldre preso à cintura e retirou a pistola
preta, parecendo ser uma Beretta calibre 45.
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Começou a se debater e espernear o máximo que podia e quando tentava exprimir seu pavor através dos poucos e roucos ruídos
que lhe atravessavam a garganta e o céu da boca, o homem brandiu
a arma na frente de seu rosto ensangüentado e aproximou-a de uma
de suas têmporas.
Enquanto Fritzen fechava os olhos e implorava a Deus por
piedade, em pensamento, um cheiro de chocolate lhe invadiu as narinas. Ouviu o estampido bem próximo a um dos ouvidos, e no instante
seguinte a cadeira em que estava amarrado tombou violentamente
para um dos lados fazendo com que sua cabaça se precipitasse na
direção do chão úmido e frio. O ouvido próximo de onde foi efetuado
o disparo deixou escapar de seu interior um pequeno fio de sangue; o
tímpano havia sido rompido. Com o outro ouvido Fritzen conseguiu
ouvir os outros dois disparos que foram efetuados na direção de seu
tórax.
Tudo se escureceu, e nem mesmo dor ele sentiu mais a partir
daquele instante.
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Quatro
Na quinta-feira bem cedo, um pouco antes das sete horas da
manhã, o delegado Natanael Guzman já estava no primeiro distrito
policial para iniciar seu turno de serviço no plantão.
Esperava que a misteriosa mulher que antes havia lhe telefonado, e que também no dia seguinte havia telefonado para a turma do
outro plantão, resolvesse dar as caras por lá.
Foi entrando e cumprimentando a todos pelo caminho, e depois
que subiu os três lances de escada, parou em frente à mesa da telefonista e lhe perguntou se já tinham alguma novidade para o início do
plantão.
Como a resposta que recebeu foi negativa, tratou de se dirigir
para sua sala, onde, como se fosse um ritual, começou a arrumar as
coisas que haviam ficado em desordem desde o término do último dia
de trabalho.
Depois sentou-se, acendeu um cigarro e ficou aguardando.
Até a hora do almoço o telefone tocou mais de uma dúzia de
vezes, e ele atendeu sempre esperando que fosse a mulher misteriosa. Em nenhuma das vezes sua ansiedade e expectativa foram satisfeitas. Eram somente ocorrências normais e rotineiras como qualquer uma de qualquer delegacia ou distrito policial de bairro.
Guzman olhava a tela do seu microcomputador, concentrado
mais precisamente num requerimento que iria fazer ao Ministério
Público acerca de um outro inquérito, quando percebeu, pelo marcador
de horas e minutos digital do canto inferior direito da tela, que sua
hora de almoço já estava se passando. Gostava de sair para almoçar
exatamente ao meio-dia, e já haviam se passado quase dez minutos
da hora.
Afastou tudo o que estava à sua frente, acionou a senha de
segurança de seu trabalho no computador e saiu trancando a porta da
sala em seguida.
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Passou pela recepcionista enquanto ela conversava com dois
senhores engravatados que haviam acabado de chegar acompanhando uma senhora, e assim que pôs o pé no primeiro degrau dos cinco
lances de escada, fazendo menção de descer, sua atenção foi chamada pela policial:
– Doutor! Doutor Guzman! Espere um pouco por favor!
O rosto da mulher lembrava a pele de um maracujá mais do
que maduro e já murcho. Como se quisesse escondê-lo, usava um
par de lentes grossas como o fundo de uma garrafa, presa em uma
armação de plástico toda ensebada pelos toques de seus dedos hora
limpos hora sujos tão velhos quanto ela, mas isto somente piorava sua
aparência. Perto do nariz, uma fita adesiva toda encardida tentava
manter as duas extremidades da armação unidas. Atrás das orelhas,
uma corrente de latão meio enferrujada em alguns pontos e esverdeada
pelo excesso de oxidação em outros evitava que a armação caísse ao
chão toda vez que a mulher se agachava para apanhar algo que caía
de suas mãos já trêmulas.
– Pois não, dona Cândida! Estou indo almoçar! Qual é a urgência de me chamar agora?
– São esses senhores! São advogados, e essa é dona Clecir ....Clecir
do quê?
A telefonista desviou a atenção de Guzman por um segundo
para saber o nome completo da mulher.
– Clecir Marotti! M-A-R-O-T-T-I.
– Clecir Maloti, senhor! É a que lhe telefonou o outro dia
sobre o hospital. Lembra-se?
A mulher se empertigou, irritada, e corrigiu a velha telefonista:
– É Marotti! Com dois no final, e não Maloti ou seja lá o que
for que falou.
Detestava que alguém o pronunciava errado e não se esforçava o mínimo para acertar.
O delegado Guzman continuou descendo as escadas com um cigarro aceso entre os dedos, ao mesmo tempo que respondia à telefonista.
– Mesmo assim, peça para fazerem o favor de me aguardar.
Você falou hospital!?
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Guzman sobressaltou-se quando em sua mente ressoou a palavra hospital, e jogou o cigarro no cesto de areia. Virou-se começando a voltar e subindo os cinco degraus do primeiro lance da escada
que já havia descido.
Quando terminou de subir e alcançou o nível em que se situava
a mesa da telefonista e as pessoas que o aguardavam, caminhou na
direção delas com a mão estendida para cumprimentá-las, e a mulher
completou falando sobre qual era o hospital a que a recepcionista
havia se referido.
– Monsenhor Vasquez! Hospital Monsenhor Vasquez! Esse é
o hospital de que lhe falei no outro dia à noite! Está lembrado, doutor?
– Sim, estou. Eu sou Natanael Guzman, o delegado de plantão. Gostariam de me acompanhar até minha sala, por favor? Dois
sanduíches e um refrigerante médio, dona Cândida! Posso pedir para
trazer para mim?
Guzman praticamente implorou para a velha, de uma maneira
tão pueril que ela abriu-se toda em gentilezas na presença dos visitantes.
– Pois não, doutor! Com muito prazer!
A telefonista neste momento fez questão de enfatizar a palavra “doutor” quando se dirigiu a Guzman. Demonstrou claramente
ter ficado ressentida pelo chefe, depois que ouviu a forma com que
os dois advogados se dirigiram a ele fazendo questão de se intitularem
“somos os doutores fulano de tal e sicrano de tal”.
“Pelo jeito do mais jovem deve ser ainda um estagiário e já se
diz doutor!”
A mulher pensou isto enquanto se levantava para ir buscar o
lanche, medindo os dois cavalheiros de alto a baixo. Eles não perceberam, ou fingiram não perceber, o olhar que só faltou esfarrapá-los
ali mesmo. Um era o advogado e o outro era o estagiário num pequeno e poeirento escritório montado na periferia de Guarulhos, e se
prestavam a abraçar qualquer causa por menor que fosse seu valor.
Mais uma vez o delegado teve de insistir para que os visitantes
o acompanhassem. Haviam se distraído com o diálogo entre ele e a
recepcionista.
– Por favor, venham comigo até minha sala!
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Depois disso, Natanael Guzman saiu andando na frente, o que
fez com que as pessoas se vissem obrigadas a segui-lo.
Enquanto os advogados carregavam suas pastas, sua cliente
mantinha bem firme embaixo de um dos braços uma surrada pasta de
elástico quase estourando.
Guzman inseriu a chave na pequenina abertura da fechadura,
e depois de um pequeno estalo a porta se abriu para dentro. A mulher
sentou-se na cadeira que foi puxada para ela pelo próprio Natanael
Guzman, e o advogado sentou-se na outra; o estagiário, como não
tivesse outra opção, ficou em pé em um dos cantos da sala.
O delegado fingiu estar arrumando algumas coisas em cima de
sua mesa, depois foi até o arquivo atrás de si, abriu a gaveta e apanhou uma pasta qualquer lá de dentro. Abriu, deu um olhada em seu
interior por alguns segundos e voltou a colocá-la no lugar. Gostava
sempre de se mostrar uma pessoa atuante perante desconhecidos.
Quando se voltou para os presentes, foi logo perguntando e
sugerindo:
– Então, vamos ao que nos interessa?
– Com prazer! O senhor sabe, eu sou uma pessoa de bem,
nunca fiz mal a ninguém, nunca nem mesmo pisei numa delegacia, e
agora estou aqui com este problema nas mãos par....
Guzman não conhecia a mulher, e ela já havia começado a falar
“o senhor sabe”. Com isso concluiu que ela estava divagando, um pouco longe do assunto que realmente interessava. Resolveu abortar a
frase antes que ela a terminasse e tomar a direção da conversa.
– Está bem, senhora! Me perdoe, mas eu quero falar sobre o
hospital. Sobre o que a senhora disse com relação a alguém estar
matando pessoas.
Os advogados até o momento não haviam se manifestado ainda. Na realidade estavam ali mais para dar segurança à mulher do
que para qualquer outra coisa. Não havia nem mesmo necessidade
formal no sentido jurídico de nenhum deles estar ali, pois a notitia
criminis tratava de crimes de homicídio, e não era necessário representação nem requerimento de ninguém que não fosse a autoridade
policial para se instaurar um inquérito. A própria notícia bastava para
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Natanael Guzman dar início ao inquérito policial, se encontrasse o
menor fundamento.
Fundamentos havia de sobra. Aliás havia provas. Provas essas conseguidas de muitas formas, sendo que algumas poderiam mesmo
ser utilizadas em juízo pela sua lisura. O mesmo não se poderia dizer
de outras. Felizmente eram a minoria entre elas.
Clecir Marotti falou por cerca de trinta minutos, e instintivamente passou a pasta para o outro lado da mesa, fazendo com que
parasse nas mãos de Guzman. Enquanto continuava a falar, o delegado examinava superficialmente cada uma das folhas de papel que
retirava da pilha dentro da pasta de elástico surrada, e colocava-as
em outra pasta ao lado, com o timbre da Secretaria da Segurança
Pública do Estado de São Paulo e o logotipo da Policia Civil.
Guzman parou por uns instantes, acendeu um cigarro, ofereceu aos presentes, que agradeceram, e falou:
– Eu ainda vou abandonar isto! E este cartão? O que faz aqui?
– Ah, sim! Achei que seria interessante dizer para o senhor,
que uma pessoa me abordou fora do hospital, e me entregou este
cartão. O que é incrível é o fato de que eu havia acabado de saber do
óbito de minha mãe fazia somente alguns minutos. Por isso entendi,
pela forma com que me abordou, que essa pessoa já sabia do ocorrido há mais tempo.
– E utilizou seus serviços?
– Não. Resolvemos que não nos serviria.
– Está bem, dona Clecir. Deixou seus dados com a recepcionista? Ela tem seu endereço e telefone?
– Não, não deixei. Mas o que vai fazer a respeito?
– Não se preocupe, pois isto é trabalho nosso. Acredite, vamos investigar a fundo. Deixe seu telefone e endereço comigo mesmo, que, se precisarmos, o que certamente irá acontecer, nós a chamaremos de novo.
Enquanto falava, o delegado mantinha entre os dedos de uma
das mãos o cigarro e uma caneta apoiada sobre uma folha em branco, enquanto olhava fixamente para o rosto indignado da mulher.
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– Mas é só isso mesmo? Achei que iríamos todos pegar uma
viatura e ir com os policiais até o hospital para prender o criminoso!
Que eu teria de me esconder para que ele não me reconhecesse
depois!
– Espere! A coisa não é bem assim, senhora Clecir! – Falou
um dos advogados, no exato momento em que o delegado Natanael
Guzman começava a se perguntar qual a razão da mulher tê-lo trazido ali, e provavelmente estar lhe pagando honorários, se o mesmo
não falava nada, nem ao menos para orientá-la.
– E como é então, doutor!? Creio então que o senhor poderá
muito bem me explicar melhor esta situação, já que não tem dito nada
até agora!
O homem sorriu levemente e, ignorando as críticas a ele
dirigidas, respondeu o que a mulher queria saber:
– Se estiverem presentes os requisitos que autorizem um pedido de prisão preventiva, tenho certeza de que é o que o delegado irá
fazer imediatamente. Não é mesmo doutor?
O delegado, que estava um pouco distraído, voltou-se rapidamente para o advogado e sua cliente e confirmou, mais com intenção
de acalmar os ânimos dentro da sala do que realmente de responder
a alguma coisa. De uma forma ou de outra ele iria trabalhar no caso
independentemente do que alguém mais falasse.
– Com certeza! Já estou pensando nisso agora mesmo!
Depois que respondeu demonstrando segurança, o policial voltou a fixar os olhos na papelada em cima da mesa.
– O seu lanche, doutor!
Todos se viraram para ver a velha do rosto enrugado entrar
segurando uma pequena bandeja e colocá-la em cima da mesa do
delegado, num dos cantos vazios.
– Bem, depois de tudo que já lhes disse, se não têm mais
nenhuma dúvida, peço-lhes licença. Estão servidos? – Guzman ofereceu educadamente, enquanto levava uma das metades de um dos
lanches à boca.
– Não, muito obrigado, e bom apetite!
60
Depois de responderem em uníssono, e enquanto saíam da
sala, o advogado fez questão de retirar de um dos bolsos do paletó,
cuja gola já se mostrava corroída pelo uso sem descanso, um cartão
de visitas com o seu nome, telefone e endereço do escritório.
Com a boca cheia e sem poder falar, Guzman acenou com a
cabeça para que o advogado colocasse o cartão em cima da mesa à
sua frente.
Quando saíram, deixaram a porta da sala aberta.
*
Guzman ficou olhando para o grande diamante à sua frente, e
ficou imaginando que brilho não teria uma pedra daquelas proporções. “Se tivesse uma dessas”, pensou, “jamais teria de enfrentar
estes plantões horríveis e mandaria o chefe às favas na primeira
oportunidade”.
Mas não possuía nenhuma pedra preciosa, e tinha de trabalhar
e agüentar seu chefe mesmo quando estivesse mal humorado.
O diamante estava estampado na capa do grande livro negro
em cima da mesa de Guzman.
E para ele não deixava de ser uma jóia; era uma jóia jurídica.
Do outro lado da mesa, o cigarro queimava sozinho em um
cinzeiro.
Voltou a se ocupar da pasta na qual estavam os papéis que
Clecir Marotti havia lhe trazido, ao mesmo tempo em que pensava e
decidia por onde deveria começar a investigar. Ali havia indícios mais
do que suficientes para ele se convencer do crime e da responsabilidade do médico acusado, mas não era o suficiente sob o ponto de
vista legal e processual. Um inquérito que se consubstanciasse somente naquele material não lograria êxito com certeza, e os promotores iriam requerer novas diligências, sem sombra de dúvida.
Mais uma razão para cumprir as diligências policiais juntamente com sua equipe.
Guzman pensou em requerer a prisão preventiva do doutor
Fritzen von Keitel. Pegou o livro negro à sua frente e passou a procurar alguns artigos nos quais talvez pudesse fundamentar seu pedido.
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O homem estava no Brasil fazia mais de dez anos, morando
em residência própria, mas no passado já havia se exilado no exterior.
Pelo que constava dos papéis que a mulher lhe trouxera, ainda possuía uma casa na Argentina.
Enquanto revirava os papéis, Guzman encontrou o nome do
detetive que havia feito a investigação em torno do médico e anotou
seu nome e telefone em uma caderneta de bolso.
Futuramente, e em um momento oportuno, se necessário iria
ouvi-lo também.
Menos de uma hora depois que a mulher, o advogado e o estagiário abandonaram a sala do delegado Natanael Guzman, sua equipe
de investigadores já havia se reunido com ele e se aprontava para
sair em diligência rumo ao Hospital Geral Monsenhor Vasquez.
Não deveriam em hipótese alguma alertar o médico. Tinham
instruções para fazer levantamentos a respeito do número de pacientes que haviam falecido nos últimos tempos e que tinham passado
pelas mãos do doutor Fritzen, além de saber qual fora seu diagnóstico
e causa da morte.
Guzman foi até a porta de sua sala e chamou o escrivão que se
encontrava na sala ao lado.
Quando o policial entrou, ordenou-lhe que redigisse uma representação requerendo a prisão preventiva do médico, alegando que tal
pedido era para que se pudesse assegurar a aplicação da lei penal, como dizia a lei.
O fato de ter também residência em outro país poderia indicar
facilidade em se furtar à aplicação da lei, ou mesmo dificultar o andamento da instrução criminal.
Por isso, assim que a equipe de investigadores apresentasse as
provas que Guzman estava querendo, ele mesmo iria despachar a
representação requerendo a prisão preventiva de Fritzen von Keitel.
62
Cinco
O caminhão com o emblema do exército pintado nas portas
rodava chacoalhando entre os buracos e pedras da pequena e deserta estrada indo na direção de Perus, enquanto a tarde estava dando
lugar para a noite que chegava com ar mais ameaçador do que de
costume. O cabo que dirigia o veículo sentado ao lado do sargento
teve de acender os faróis trinta minutos depois que o mostrador de
seu relógio de pulso marcou seis horas da tarde. A partir de então já
era noite escura.
Um raio atravessou os céus pela parte de trás do veículo e
iluminou-o, mostrando em seu interior dois soldados sentados um de
cada lado da carroceria, segurando seus fuzis, e, estendidos no chão,
dois corpos, um enxadão e uma pá. Um dos cadáveres estava envolto em um grande e preto saco plástico, pois já estava rígido e cheirando mal. O outro estava simplesmente coberto por uma lona, e nu da
cintura para cima. Em um dos lados da cabeça, aparecia o orifício de
entrada de um projétil calibre 45, e, no tórax , outros dois.
Estavam prestes a deixar aquela estrada e entrar em um caminho mais estreito ainda, quando os raios e trovões tornaram-se muito
mais freqüentes e intensos. Era evidente que a tempestade não iria
demorar, e os soldados sabiam disto.
Era uma região sem habitações por perto, com somente algumas pequenas propriedades rurais dispersas de um lado e outro. O
cabo parou o jipão ao lado de algumas moitas de bananeiras quando o
sargento determinou, e os dois soldados saltaram também sob as ordens do comandante.
A estrada estava limpa e sem rastros de animais ou veículos.
Provavelmente não passava ninguém por ali havia muito tempo. Isso
foi o que pensou o sargento.
“Não precisaremos nos afundar muito no mato nesse lugar
ermo!”, continuou pensando.
63
– Aqui está bom! Peguem todas as ferramentas e vamos nos
apressar com o serviço, pois vem chuva pesada por aí!
– Se a chuva pesada nos pegar, vai ficar difícil sairmos daqui!
– O problema não é esse! É certo que sairemos pois esse
veículo é equipado para lama! Mas temos que acabar logo com isso,
pois é serviço sujo demais para um dia só!
– Então vamos cavar, senão não acabaremos nunca!
Trabalho de sapa é trabalho de soldado, bem por isso o sargento não pegou nas ferramentas. O cabo e os dois recrutas retiraram os
corpos do caminhão, e colocaram-nos próximo do lugar onde iniciaram as covas. Cerca de quarenta minutos depois, o buraco no chão
estava quase pronto. Caberia perfeitamente um corpo mas não os
dois. Foi quando o vento começou a açoitar fortemente as árvores
próximas, e as primeiras gotas da chuva torrencial que se prometia
começaram a cair.
“Se uma dessa árvores cair, pode bloquear a estrada!”, pensou
o sargento.
– Rápido! Está bom assim, joguem logo eles aí dentro e encham de terra! Temos de sair daqui o quanto antes!
Sem questionar, os soldados obedeceram, e perceberam que
um dos corpos, aquele que ainda não estava exalando o odor cadavérico, não iria ficar completamente coberto pela terra.
O homem no comando ordenou que colocassem algumas folhas de bananeiras por cima e completassem com terra. Os recrutas
calados obedeceram.
A água da chuva caía aos vagalhões e em torrentes, e o vento
ainda açoitava o caminhão com violência quando o grupo miliciano se
afastou do mórbido local com destino ao quartel, deixando ali os dois
corpos mal enterrados.
*
Acredita-se que por volta de seis graus centígrados, talvez um
pouco menos, seja a temperatura da água da chuva quando toca o
solo; não chega a dez graus.
64
Aquela gota não era diferente das outras! Ela desceu das nuvens perdendo calor intensamente, tocou o solo quase gélida, como
todas as outras, e também como as outras gotas desceu por entre a
terra e alguns restos de raízes, e escorrendo por cima de uma folha
de bananeira arrancada havia algumas horas, até voltar a penetrar
mais fundo no chão.
Até aí tudo havia sido normal como em qualquer outra chuva.
Porém, a situação passou a ficar diferente quando a gota tocou
uma superfície que lhe parecia ser a pele de um ser humano, que,
diferente da pele que as outras gotas tocavam nos jazigos de um
cemitério, não estava completamente fria, mas ainda possuía calor.
Não estava propriamente quente, mas possuía calor.
“Estranho! Muito estranho! Ainda está morna!”
Isso é o que pensaria uma gota de chuva estranhando o fato,
se pudesse mesmo pensar.
E foi desta forma mesmo, cheio de lama e um pouco morno,
que o rapaz encontrou aquele corpo ainda com um resto de vida que
se esvaía aos poucos logo que amanheceu, e o sol surgiu por trás de
algumas poucas nuvens no céu.
O moço disse aos outros que havia visto um vulto naquela direção, que parecia com uma pessoa no meio do mato. Estranhou porque resplandecia muito, mas mesmo assim tinha certeza de que ele
havia lhe feito sinal para que o seguisse. Quando chegou perto do
lugar em que achou ter visto a pessoa, ela já tinha desaparecido, e
então encontrou o homem enterrado.
Mas era uma novilha . Era uma novilha que tencionava encontrar, e não o corpo de alguém com a metade da cintura para cima
coberto com uma folha de bananeira que havia sido arrastada pelo
vento um pouco para o lado. O rapaz pisaria em cima se a folha
estivesse no lugar em que fora colocada no meio da noite . Pensou
em fugir correndo dali e não contar nada a ninguém, mas não resistiu;
chamou o pai e lhe contou.
O sitiante, um senhor com cerca de sessenta anos, veio ver
juntamente com mais dois de seus filhos, mais velhos do que o primeiro que havia encontrado o corpo meio enterrado.
65
Os quatro chegaram à beira da cova, olharam matando a curiosidade e combinaram que não falariam nada a ninguém. Quando se
viraram e começaram a andar para trás, o velho ouviu um murmúrio.
Parou e mandou que fizessem silêncio. Mais um murmúrio foi ouvido
e depois outro, que pareceu um gemido, e o velho sitiante e seus
filhos tiveram certeza de que havia vindo do corpo na cova.
Todos os quatro titubearam em tocar o corpo, mas um dos
rapazes mais velhos venceu a dúvida e tocou-lhe a face no lado mais
limpo.
– Está quente papai! Parece que ainda está vivo!
– Está brincando, menino! Com isso não se brinca!
– Não estou brincando! Veja o senhor mesmo! Toque nele!
Tenho certeza de que se não estivesse vivo a chuva o teria esfriado
muito mais do que parece!
O homem aproximou a mão e meio duvidoso tocou a face pelo
mesmo lado que o filho havia tocado, no exato momento em que o
homem na cova voltou a gemer e murmurar algo insistentemente,
como se tivesse fazendo uso das últimas reservas de energia presentes naquele pouco calor que de seu corpo emanava.
Quando retiraram o homem para fora do buraco imundo, os
matutos não perceberam o outro corpo que estava coberto por terra,
mas sentiram o cheiro. Pensaram em desistir, pois chegaram a pensar que poderia ser do corpo que carregavam. À medida que se distanciaram, porém o cheiro fétido foi diminuindo até desaparecer.
Dois dias depois, os olhos do homem que fora retirado da
cova voltaram a se abrir, e o que ele viu à sua frente de uma forma
um tanto envolta em névoa foi a figura de uma pessoa vestida de
branco. Era um homem que lhe perguntou seu nome, mas não lhe
disse como ele fora encontrado, temendo que ele entrasse novamente em choque.
– Sou médico! Meu nome é Fritzen von Keitel, sou filiado ao
Partido Comunista Brasileiro, nos reunimos lá mesmo na alameda
Tutóia, meus amigos....
Fritzen balbuciava e falava freneticamente, como se aquelas
palavras fossem a chave de sua salvação, que iriam livrá-lo de qualquer sofrimento.
66
– Calma! Por favor, acalme-se! Por que está dizendo estas
coisas? – indagou-lhe o homem de branco à sua frente, segurando-o
pelos braços que agitava febrilmente.
– Sou médico! Meu nome é Fritzen von Keitel, sou filiado ao
Part....
– Desculpe-me, mas o senhor acabou de passar por cirurgias
sérias e não podemos correr o risco de outro choque! Terá de dormir
um pouco mais!
Enquanto falava tentando explicar sua atitude, o médico que
havia atendido Fritzen von Keitel lhe injetou alguns mililitros de sedativo; isto o faria dormir pelos próximos cinqüenta minutos pelo
menos.
A bala no crânio havia feito um trajeto por fora do osso da
caixa craniana, indo parar na nuca, entre o osso e a pele. Os dois
projéteis que haviam atingido o tórax tinham passado entre órgãos
vitais até saírem pelo outro lado, mas não haviam feito grandes estragos no interior do corpo, fora a intensa perda de sangue.
Algumas semanas internado e alguns litros de sangue depois,
junto com soro e medicamentos, foram o suficiente para que o doutor
Fritzen recebesse alta, voltasse a procurar sua família clandestinamente e com ela se exilasse na Argentina até 1986.
Mesmo no exterior, ele jamais deixou de exercer a medicina da
forma em que se sentia muito bem e que achava mais humana e
menos sofrida para seus pacientes.
67
68
Seis
Em menos de uma semana, a equipe de Natanael Guzman conseguiu reunir material suficiente para se iniciar o inquérito contra o
médico. O delegado, temendo que o doutor Fritzen von Keitel desaparecesse depois que viesse a tomar conhecimento da acusação contra
ele imputada, representou no sentido de requerer a prisão preventiva
do mesmo, e o juiz despachou denegando o pedido, alegando que não
havia fundamentos suficientes que justificassem a decretação de tal
medida.
“O fato de o médico ter residência fora do país não representa objetivamente intenção de fuga”, assim o magistrado pensou ao
despachar.
Realmente, quem o conhecia, sabia que o doutor Fritzen não
iria fugir. Seu caráter certamente iria fazer com que enfrentasse os
fatos, seja lá o que viesse a lhe suceder depois.
Era costume seu aproximar-se do balcão da recepção no hospital
e, antes de examinar a prancheta com a lista de pacientes, saber se
havia correspondências pessoais. Quando chegou, a recepcionista
Lenize adiantou-se e entregou em suas mãos uma folha dobrada e
grampeada, na qual em um dos lados podia se ver o timbre da Polícia
Civil. A mulher fingiu não se interessar, mas ficou olhando com o
canto dos olhos para ver se percebia algo diferente na expressão do
doutor Fritzen, quando abrisse o papel. Como sempre fazia , o médico
enfiou a correspondência em um dos bolsos do avental branco decidindo que iria lê-la em sua sala. Em seguida examinou a lista dos
pacientes e, concluindo que ainda teria mais de quarenta minutos até
a visita rotineira de exame nos mesmos, dirigiu-se para sua pequena
sala à direita, no fundo do corredor à frente do balcão.
A correspondência era uma intimação policial.
Assim que começou a ler, a primeira coisa que sentiu foi um
aperto no estômago. Havia muito tempo não sentia aquilo, como
também havia muito tempo não se via envolvido com a polícia. Fi69
cou imaginando qual a razão de estar sendo intimado. Não havia
sido testemunha de nenhum fato que considerasse relevante. Realmente não fazia idéia do motivo pelo qual estava sendo chamado.
Olhou a data, e verificou que era para o dia seguinte; felizmente era
para depois do almoço, e a delegacia não ficava muito distante do
hospital.
Na delegacia, o delegado Natanael Guzman esperava a chegada do médico, pois este havia lhe telefonado do hospital avisando
que estaria se apresentando dentro de poucos minutos. Enquanto isto,
relaxava olhando os peixes nadarem de um lado para outro dentro de
um aquário que havia sido instalado no dia anterior, ao lado do arquivo. Haviam lhe dito que aquilo era terapêutico e que relaxava nos
momentos de maior tensão.
“Realmente é relaxante!”, pensou.
Guzman ouviu de sua sala a conversa em frente à mesa da
telefonista idosa e colocou a cabeça um pouco para fora para ver
quem era, e do que poderia se tratar.
O homem alto e magro que falava com a velha do rosto enrugado deixou claro tratar-se de um médico, pois estava todo vestido de
branco. Guzman o chamou:
– O senhor é o médico? É o doutor Fritzen von...
– Von Keitel! Sim, sou eu!
– Por aqui, por favor! Fui eu quem o chamou para que viesse.
Temos um assunto importante para tratar.
O doutor Fritzen ficou imaginando que o assunto deveria ser
mesmo muito importante para o delegado; para ele não fazia a menor
diferença, pois ainda não sabia sequer do que se tratava. Em seguida
virou-se e saiu caminhando vagarosamente até a porta da sala do
delegado.
Guzman mantinha um cigarro aceso entre os dedos e levantou
a cabeça quando o homem parou em frente a sua porta.
– Entre, por favor.
– Em que posso servi-lo doutor...?
– Guzman. Natanael Guzman. Por favor, não se apresse! Mas
não tem mesmo idéia do motivo pelo qual estou lhe intimando?
70
O delegado Guzman começou a interrogar Fritzen, porém sem
deixar de ser gentil com ele. Levou o cigarro à boca e ficou esperando a resposta.
– Realmente não tenho mesmo a mínima idéia, doutor.
– Vai precisar de um advogado. Talvez não agora, mas com
certeza irá precisar de um!
Então Guzman deu uma tragada profunda no cigarro e foi direto ao assunto. Chegou mesmo a temer qualquer reação por parte do
médico. Não que estivesse exatamente pensando que o homem pudesse ser violento. Era um velho, e Guzman temia, sim, pelo seu estado emocional. Achou que ele pudesse vir a sofrer qualquer abalo
momentâneo, por isso esperou alguns minutos antes de continuar a
falar.
Até aquele momento não fazia idéia de quem era aquela pessoa,
e o que já havia passado na vida. Por isso se impressionou pelo fato de
o homem não mostrar grande espanto, indagando simplesmente:
– O que disse? Pode repetir com mais clareza, por favor?
Guzman pigarreou como se estivesse limpando a garganta,
colocou o cigarro no cinzeiro e cruzou as mãos com os braços esticados sobre a mesa. Depois repetiu:
– O senhor vai precisar de um advogado, mas não será necessariamente agora. Mas com certeza vai precisar mesmo, pois temos
aqui acusações contra a sua pessoa consideradas muito graves sob o
ponto de vista da lei.
– Se importa em me dizer por que precisarei de um advogado?
E estou sendo acusado pelo quê?
– Vou ser bem claro. O senhor está sendo acusado, por enquanto, do homicídio de pelo menos duas pessoas idosas que eram
pacientes suas. Resta-nos saber se não há mais nada de que ainda
não tomamos conhecimento. Por isso ainda estamos investigando.
Fritzen afastou um pouco o rosto, tentando se desviar de um fio
de fumaça que insistia em lhe entrar nas narinas, enquanto retrucava:
– Mas o senhor bem já disse! Eram minhas pacientes e provavelmente estavam sujeitas ao risco de morrer! Afinal, todos estamos!
71
Guzman fingiu não perceber que a fumaça estava incomodando o
homem, levantou-se da cadeira, colocou uma pitada de ração no aquário
para os peixes continuarem nadando atrás e depois continuou falando:
– É por isso que estamos lhe ouvindo, para apurar os fatos através do inquérito. Posteriormente, poderá ser ou não ser processado.
– Mas que provas já tem contra mim? Creio que já deve estar
legalmente embasado de alguma forma para me intimar deste jeito!
– Bem poucas, mas o suficiente para o que estamos fazendo. Já pedimos a exumação de pelo menos duas das pessoas que
julgamos terem sido mortas pelo senhor. Bem, antes que eu me
esqueça, daqui para frente, tudo que o senhor disser será colocado
nos autos, e não deverá se ausentar das comarcas em que reside e
trabalha sem nos comunicar. Será melhor que o faça a mim pessoalmente, se puder.
Natanael Guzman estendeu a mão para apanhar o cigarro, mas
percebeu que havia se acabado sozinho no cinzeiro. Amassou-o ali
mesmo e ficou olhando fixamente para o médico, percebendo que a
face do mesmo chegou a empalidecer-se em um determinado momento, mas voltou à coloração normal logo em seguida.
O interrogatório durou cerca de duas horas e meia, e enquanto
o delegado repetia as perguntas que havia feito anteriormente, um
escrivão digitava tudo no computador com absoluta precisão.
Guzman achou que o homem iria solicitar a presença de um
advogado desde o início do interrogatório, mas tal fato não ocorreu. O
médico pediu licença para telefonar e falar com a esposa, Inga Steif
Keitel, somente para avisar que iria demorar-se um pouco para chegar
em casa. Inga tinha problemas com o velho e cansado coração, por
isso Fritzen não queria lhe causar preocupações desnecessárias.
O delegado assentiu, e ele levantou-se de onde estava sentado
e caminhou para fora no corredor, próximo a uma grande janela de
ventilação.
Uma vez sozinho, o delegado Guzman olhou para o aquário e
percebeu que um cação médio, como que por milagre, havia conseguido pegar, e estava acabando de engolir, um dos minúsculos e brilhantes neons.
72
– Se continuar assim, vou tirar você daí, seu danado!
O delegado resmungava falando com o peixe, enquanto pensava que o vendedor o havia enganado ao lhe vender duas espécies de
animais que não poderiam conviver pacificamente dentro do mesmo
aquário.
Minutos depois o doutor Fritzen estava de volta. O delegado
voltou a se sentar em sua cadeira e percebeu que os olhos do médico
haviam lacrimejado enquanto falava com a mulher, mas não disse
nada a respeito.
Fritzen von Keitel sempre soube que aquele dia, uma hora ou
outra iria chegar. Não iria conseguir controlar uma situação daquelas
por muito tempo. Uma hora ou outra algo sairia errado, e a situação
se complicaria, como de fato se complicou.
Suas preces foram sempre no sentido de que o final de seus
dias chegasse antes da punição da lei dos homens. Seu coração o
fazia sentir que tudo o que havia feito fora por pura compaixão, e por
isso preferia enfrentar a Lei Divina à lei dos homens. Mas isto ainda
não havia acontecido, e agora ele estava ali, à mercê da lei dos homens, e não adiantava querer se esquivar, pois não tinha dúvidas de
que eles iriam chegar à conclusão, pelas circunstâncias como ocorreram, de que ele fora o responsável direto por aquelas mortes. Não
iria fugir, pois não se sentia um criminoso. Além do que, já estava um
pouco velho para certos tipos de aventuras.
O interrogatório continuou e, mais alguns minutos depois, o
médico pediu licença ao delegado para que parasse de falar. Levou
ambas as mãos às têmporas e comprimiu-as com os olhos fechados.
Guzman percebeu que novamente o homem empalidecera, e sentiu
um certo remorso por antes ter fumado na sua presença.
– O senhor está bem? Quer alguma coisa para tomar? Foi a
fumaça do cigarro? Espero que me desculpe!
– Não é nada. Já melhora É só uma dor de cabeça que tem
me tomado ultimamente. Por favor, pode me trazer um copo com um
pouco de água? Preciso tomar alguns comprimidos, e um deles é o
que se pode dizer de exageradamente grande!
O delegado, assentindo, levantou-se, apanhou um copo de plástico próximo ao bebedouro e serviu o médico com a água. Ficou olhan73
do-o apanhar de dentro da pasta de couro alguns pequenos comprimidos brancos, parecidos com medicamentos homeopáticos, e colocar
três de uma só vez dentro da boca e depois engoli-los com a água. Em
seguida outro do tamanho de uma moeda de cinco centavos desceu
garganta abaixo, empurrado pelo restante da água do copo.
Pelo menos três vezes as mesmas perguntas haviam sido feitas ao médico, e o delegado Natanel Guzman já se dava por satisfeito
até aquele momento. Compadeceu-se do velho e resolveu deixá-lo ir
embora. Se fosse necessário esclarecer algum outro ponto novo a
respeito dos dois inquéritos, voltaria a chamá-lo. Resolveu que iria
determinar mais algumas diligências para sua equipe, e depois que o
recesso forense terminasse, mandaria os autos para o promotor.
Quis fumar, enfiou a mão no bolso do paletó e percebeu que o
maço estava em cima de um armário. Pegou-o, acendeu outro cigarro e voltou a se sentar atrás de sua mesa.
Não percebeu, mas o cação já estava com outro pequeno peixe atravessado na boca.
*
Cleber Petrus Papadopoulos chegou ao escritório mais cedo
do que de costume; tencionava tirar uns dois dias de folga, por isso se
propôs a adiantar os processos mais urgentes o máximo que pudesse.
Quando entrou, avisou a secretária que não queria ser incomodado
de forma alguma. É claro que nesses casos sempre existem as exceções. Ele ainda não imaginava, mas Fritzen von Keitel era uma dessas exceções.
O médico saiu do elevador no décimo andar do edifício e, depois de se certificar com a recepcionista para que lado deveria seguir
até a sala do advogado Cleber Petrus Papadopoulos, agradeceu com
um largo sorriso e saiu caminhando calmamente na direção indicada.
Dois andares do edifício faziam parte da bem-sucedida sociedade de advogados. As duas salas que Petrus ocupava juntamente
com a secretária ficavam no final do corredor.
Lígia levantou a cabeça quando o homem todo de branco surgiu repentinamente, parando na frente da porta, e ficou olhando para
ela sem dizer nada.
74
– Pois não! O que o senhor deseja?
– É a sala do doutor Cleber Petrus Papadopoulos, o advogado?
– Sim, ele mesmo. E o senhor quem é?
– Sou um cliente... Cliente do pai dele. Preciso falar com ele
urgentemente!
A moça sabia que não, mas mesmo assim perguntou:
– O senhor tem hora marcada?
– Não, mas tenho de falar com ele assim mesmo!
O doutor Fritzen fez questão de deixar claro à moça que tinha
necessidade de ver o advogado o quanto antes.
– Bem, posso tentar anunciá-lo, mas não tenho certeza de que
ele vai poder atendê-lo nesse momento. Tem certeza de que não
agendou horário nenhum? Seria bem melhor assim.
Lígia queria realmente se certificar antes de incomodar o
chefe.
– Não. Não agendei horário nenhum, pois eu também não
esperava ter de vir aqui, e o assunto é urgente. Por favor, fale em
meu nome, no qual talvez ele se lembre, e tenho certeza de que me
atenderá!
Fritzen von Keitel confiava no antigo relacionamento profissional
que havia tido com o pai do jovem Petrus, por isso insistiu.
A moça retirou o fone do gancho e digitou dois números que
fizeram o aparelho em cima da mesa de Petrus tocar dois toques
muito breves. Segundos depois, o doutor Fritzen percebeu que a face
dela tornou-se bem mais rubra, mas lentamente foi voltando à coloração normal depois que falou o nome dele no telefone e deu algumas
breves explicações. Depois disso levantou-se da cadeira e caminhou
na direção da porta da sala do advogado Petrus, abrindo-a e fazendo
sinal para que médico entrasse.
– Por favor, entre! Ele vai atendê-lo.
O médico percorreu os olhos rapidamente de um canto a outro
da sala e encontrou o advogado sentado atrás de uma enorme mesa
com tampo de vidro escuro. Estava localizada em um dos cantos da
sala.
75
As passadas de Fritzen eram lentas e calmas, e o carpete macio do chão fazia com que seus passos nem sequer fossem ouvidos
por ele mesmo.
Aproximou-se do advogado, estendeu-lhe a mão em que um
dos dedos ostentava o anel de ouro com o símbolo da medicina e
cumprimentando-o foi logo dizendo:
– Creio que não se lembra muito de mim! Pelo menos não
pessoalmente!
Cleber já havia se posto de pé atrás da mesa, e depois de trocar um luxuoso cachimbo de porcelana branca de mãos, retribuiu ao
cumprimento enquanto respondia:
– Isso mesmo! Não pessoalmente, mas lembro-me de que o
seu nome foi muito discutido no escritório e em casa, em épocas
passadas.
O médico assentiu balançando a cabeça, concordando com o
que o advogado falava. O advogado, agora com trinta e oito anos,
devia ser um garoto na época a que estava se referindo, mas por
certo se lembrava muito bem de alguns detalhes. Depois de estender
a mão e cumprimentar Fritzen, levantou o queixo demonstrando controle da situação e perguntou sem rodeios:
– Bem, mas o que podemos fazer pelo senhor agora?
O doutor Fritzen esboçou um sorriso meio sem graça e respondeu depois de um breve suspiro:
– São problemas! Fique certo disso!
Cleber levou o cachimbo à boca, puxou o ar para dentro e
deixou escapar uma nuvem de fumaça azulada cheirando a baunilha.
Depois prosseguiu:
– Problemas são a especialidade de qualquer advogado. Mas,
quanto aos seus, do que se trata?
– Creio que estou sendo processado. Estou sendo processado por homicídio e preciso de seus serviços. O Departamento de
Homicídios de Guarulhos iniciou dois inquéritos de uma só vez contra mim.
Cleber fingiu espantar-se com o que acabara de ouvir e
perguntou:
76
– Homicídios? O senhor? Como pode ser uma coisa dessas?
Parece-me perfeitamente uma pessoa calma e controlada!
– No trabalho! Não se esqueça de que sou médico, e algumas
vezes os pacientes de um médico morrem!
– Bem, nesse caso a coisa não me parece ser tão séria assim.
– Não no meu caso! No meu caso a coisa é séria! Creio que
não terei muito para onde correr!
– Sinto muito, mas não estou entendendo o que está querendo
me dizer!
– Precisamos de tempo para que eu lhe explique, mas antes
quero lhe perguntar algo. O que pensa a respeito do procedimento da
eutanásia em pacientes terminais?
O advogado tragou mais uma vez o cachimbo depois que tornou a acendê-lo e ficou pensando por alguns segundos, enquanto segurava o queixo com uma das mãos e mantinha o cotovelo apoiado
na beirada da mesa.
Deixou escapar uma espécie de murmúrio e depois, calmamente, respondeu:
– É claro que o que eu penso não terá relevância no caso, pois
aqui no Brasil eutanásia ainda é crime. Não é legal.
– Entendo. Mas é sua opinião pessoal que eu quero ouvir
agora!
– Então, vejamos. Eu creio que uma pessoa que é doente
terminal e que está sofrendo sem chances de cura tem o livre arbítrio
para decidir se quer continuar sofrendo à espera de um milagre ou
não. Além do que, mesmo que não esteja lúcida a ponto de escolher,
penso que uma vida vegetativa, em que qualquer um dos órgãos fundamentais do corpo, como o cérebro, já esteja completamente
lesionado, em situação irreversível, não é algo que se possa dizer que
é justo para com ninguém.
– É mais ou menos o que eu também penso, mas o legislador
ainda não pensa assim, e por isso eu estou sendo processado por me
imputarem estes crimes.
– Bem, nesse caso, posso dizer que sua situação é séria. Em
que pé está? A justiça já tem um processo formulado contra o se77
nhor? O senhor praticou a eutanásia em algum de seus pacientes
terminais? Como se declara?
– Em primeiro lugar, me declaro inocente. Jamais quis matar
alguém. Nem mesmo o pior dos meus inimigos. Em segundo, creio
que ainda não há processo, mas não tardará. Por enquanto somente
fui interrogado na delegacia de polícia. Quanto ao fato de ter praticado a eutanásia, acredito que de certa forma a coisa aconteceu. Mas
mesmo assim, ainda insisto que eu não sou um criminoso na justa
acepção da palavra!
– Sabe quais as chances que o delegado tem de provar algo
contra o senhor? Como é o nome do delegado? Que provas o senhor
tem para embasar sua declaração de inocência?
– Gostaria que o senhor não me fizesse tantas perguntas de
uma só vez. A esta altura dos acontecimentos, estou meio perdido
quanto a tudo isto. Quanto ao delegado , creio que seu nome é Natanael
Guzman, do setor de homicídios. Foram essas palavras que eu vi
escritas na porta de sua sala. Acredito que em breve ele poderá vir
com tudo para cima de mim, pois disse que já requereu a exumação
do corpo de pelo menos uma das pacientes.
Outra puxada no cachimbo, mais uma nuvem de fumaça de
tom azulado que evolou na direção do teto, e Cleber perguntou:
– Já tem o número de algum inquérito? Pelo que me disse,
com certeza serão dois.
– Não. Não tenho número algum até o momento.
– Bem, isso não importa. Quando chegar o momento vou falar
com o delegado, e assim teremos um ponto de partida. A princípio
teremos dificuldades em apresentar testemunhas, que será como tentaremos fazer prova de sua inocência. Teremos de arrolar as enfermeiras e recepcionistas que o conhecem, mas tenho certeza de que o
promotor também as arrolará para a acusação.
– Para mim está bom assim. Antes que eu me esqueça: quais
são seus honorários?
– Para irmos até o final do processo?
– Sim, é claro! Até onde o processo parar!
– Se formos trabalhar no caso desde a instrução processual
até o veredicto, já que esse é um procedimento de Tribunal de Júri,
78
vai lhe custar perto de 60 mil reais, fora as custas. Se em algum ponto
houver a suspensão do processo, ou se este não se iniciar por qualquer motivo, voltaremos a acertar as coisas.
– É claro que vai trabalhar. E como lhe pago esta quantia?
– É costume do escritório que o cliente deixe pelo menos a
metade no início, e o restante no final do contrato.
O advogado respondeu prontamente, esperando que o médico
não concordasse com os termos, como grande parte dos clientes.
Ao contrário, o doutor Fritzen assentiu em todos os detalhes,
balançando calmamente a cabeça em sinal de aprovação. Achou que
não tinha para onde correr, e pensava para si mesmo que ninguém
além dele tinha culpa em nada daquilo.
Confiou desde o primeiro instante naquele jovem advogado,
talvez por ser a cópia fiel do pai, mas uns quarenta anos mais jovem.
Não disse nada, mas sabia que seria difícil qualquer tentativa no sentido de inocentá-lo. Também, não era o que esperava desde que entrou naquela sala. Antes de se despedir do advogado, deixou o contrato assinado, uma procuração com amplos poderes e um cheque no
valor de vinte e cinco mil reais, que poderia ser descontado de imediato
se Cleber Petrus assim o quisesse.
O advogado agradeceu depois de apanhar o cheque e trocou
novamente o cachimbo de mãos na hora de cumprimentar o médico e
acompanhá-lo até a porta.
79
80
Sete
O delegado Natanael Guzman reuniu sua equipe dentro da apertada sala no Departamento de Homicídios. Enquanto falava com os
policiais, segurava em uma das mãos a autorização judicial para a
exumação de três corpos sepultados, todos em épocas diferentes e
não muito distantes uma da outra. Resolveu que não iriam esperar o
médico-legista. Haviam combinado de se encontrar no cemitério
Campo Santo de Guarulhos. Se o legista se demorasse, ligaria para
ele de seu telefone celular.
Queria conseguir com isso descobrir o menor vestígio de crime
nos corpos. Para isso, todos teriam de estar com pelo menos alguma
parte suficientemente conservada para a análise do médico-legista.
Dirigiram-se para o primeiro cemitério, saindo do departamento assim que Guzman terminou de falar com os homens.
Minutos depois que chegaram, os policiais viram o médicolegista chegar e dirigiram-se com ele para a recepção, com as ordens
de exumação de três corpos. Ali estavam sepultados os corpos de
Beatriz Del Picollo, Santília Blanc e Natalina de Jesus. Anatolle
Marotti, a paciente cuja filha havia feito a denúncia na delegacia, não
estava ali no único cemitério público da cidade. A família de comerciantes considerados de classe média possuía jazigo perpétuo em um
cemitério particular também em Guarulhos.
Assim que ocorreu a liberação e os funcionários do local deram início ao trabalho, Natanael Guzman acendeu um cigarro e, depois de uma longa tragada, ficou observando a expressão no rosto do
médico japonês enquanto o corpo ia sendo descoberto. O doutor Celso Mioto fez uma careta de reprovação, balançou a cabeça para os
lados e mandou que voltassem a sepultar o corpo, alegando que o
fato de estar completamente em estado esquelético não dava a mínima condição de exame pericial em seus órgãos vitais; estes não mais
existiam.
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O segundo corpo exumado, o de uma mulher negra, fez com
que um ar de satisfação profissional surgisse na face do policial. O
médico-legista também deixou transparecer uma expressão de satisfação, o que fez com que seus minúsculos olhos orientais se abrissem
quase ao máximo. Com um enorme sacrifício, os três funcionários do
cemitério conseguiram colocar o cadáver dentro do caixão de zinco
para ser transportado até a sala onde se efetuava a necropsia.
Depois que o corpo foi colocado em cima da mesa gelada do
Instituto Médico Legal, uma parte de suas vísceras que ainda não
havia se decomposto completamente foi retirada com sucesso e colocada dentro de uma embalagem de vidro com um líquido transparente em seu interior. Era a parte que ainda mantinha uma melhor
consistência, retirada de uma massa gelatinosa dentro do abdome. O
delegado imaginou que aquilo devia ter sido um velho fígado encharcado
pelo álcool em outros tempos.
Enquanto o funcionário vestido com um guarda-pó azul escarafunchava o interior do corpo, Natanael Guzman mantinha a máscara
que lhe tampava a face e o nariz, e além disso comprimia um lenço
embebido levemente em álcool sobre ela, tentando disfarçar o odor
da morte que se espalhava por todo o ambiente. Um cigarro queimou-se todo entre os dedos de uma de suas mãos, sem que Guzman
tivesse dado ao menos uma tragada no mesmo.
Jogou-o no cesto de lixo depois de apagá-lo completamente. Sem retirar a proteção, virou o rosto para o doutor Celso Mioto
e, notando que o médico legista se protegia da mesma forma,
perguntou-lhe:
– Conseguiremos algo somente com isso?
– Creio que sim. Ainda é um pouco cedo para tirarmos qualquer conclusão, que pode ser considerada apressada, mas é muito
provável que sim. Conseguiremos!
Depois, com assentimento do médico e por determinação do
delegado Natanael Guzman, o corpo da velha negra voltou para o
silêncio do descanso eterno sob a terra.
Em seguida o grupo saiu andando na direção de outro túmulo
não muito distante do da velha negra, e o resultado foi praticamente o
mesmo. Após o exame médico legal efetuado horas depois, traços da
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substância tóxica em quantidade suficiente para matar um animal de
grande porte foram encontrado nas vísceras deste terceiro corpo
exumado.
Guzman deu por terminados os trabalhos no Campo Santo, e
os três carros que compunham a comitiva seguiram praticamente
juntos para o Cemitério Parque da Eternidade, onde iriam exumar e
examinar o quarto corpo, o de Anatolle Marotti.
O portão permanecia constantemente aberto, por isso entraram direto e estacionaram os carros à direita da portaria do cemitério. Natanael Guzman foi o primeiro a descer, e saiu caminhando
enquanto ajustava a calça que estava um pouco folgada na cintura,
ajustando também a arma pendurada no coldre sob o braço e escondida por baixo do paletó. O médico japonês e os outros simplesmente se limitaram a segui-lo até o balcão da recepção do cemitério particular.
O delegado Guzman mantinha nas mãos a ordem judicial e
esperava que o pessoal da administração pudesse ser complacente
com horário, depois que verificou o relógio sob a manga do paletó e
percebeu que se tratava de horário de almoço. Bateu com a palma da
mão esquerda no pino de um sinete de metal colocado em cima do
balcão e mesmo assim ninguém os atendeu.
Mostrou-se um pouco irritado, e saiu passando a mão energicamente sobre os cabelos no alto da cabeça, enquanto fazia sinal
pedindo aos outros que o aguardassem por alguns instantes. Acendeu um cigarro e foi andando na direção dos jazigos que se iniciavam
a partir de uma pequena ravina à sua frente.
Do outro lado da vereda ladrilhada com pedras brutas, e logo
que começava o grande paço com os jazigos enterrados sob a grama,
um senhor que parecia ser o jardineiro trabalhava lentamente com
um chapéu de palha na cabeça, aparentemente arrancando ervas
daninhas do meio das poucas flores que adornavam o lugar.
O homem não percebeu quando Guzman se aproximou e somente levantou a cabeça depois que o delegado falou:
– Senhor?!
– Ah, sim! Pode falar! O que deseja?
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– Onde está todo mundo?
– Estão todos aí! Não está vendo? Aquele ali mesmo chegou
ontem. Tem uns aqui que já devem ter uns vinte anos ou mais. Qual
especificamente o senhor procura?
O velho falava calmamente enquanto mastigava a ponta de
capim no canto da boca e apontava para todos os lados mostrando os
números nas pequenas plaquetas rentes ao chão. Natanael Guzman
achou a situação muito hilária e quis rir, mas conteve-se. Estava mais
indignado do que bem humorado. Deu outra tragada no cigarro e
perguntou novamente, explicando melhor:
– Não são exatamente destes que eu estou falando!
– De quais então?
– Daqueles ali! Da administração!
O delegado virou-se para o lado de onde havia vindo e apontou
para a porta.
– Bem lá não há ninguém nesse momento! Estão em horário
de almoço!
– Sabe dizer quando voltam?
– Espere um momento.
O jardineiro enfiou uma das mãos completamente sujas de terra em um dos apertados bolsos dianteiros da surrada calça de brim,
deixando claro a Natanael Guzman que iria apanhar um relógio.
Guzman se adiantou e informou as horas para o homem, que o ignorou e continuou tentando puxar o velho relógio de corrente do bolso.
Quando o jardineiro se certificou das horas, respondeu ao policial que
em menos de quinze minutos estariam todos ali, e, sem tornar a levantar a cabeça, agachou-se e continuou a arrancar o mato do meio
da grama.
Natanael Guzman jogou a ponta do cigarro fora, agradeceu ao
homem e tratou de correr logo dali para se livrar da perene garoa que
começou a cair levemente sobre o gramado. Ainda teve tempo de
ouvir o velho responder ao agradecimento.
O japonês mantinha-se em pé do lado de fora da porta, alheio
à conversa, com um semblante sereno que era peculiar ao sangue
oriental.
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– É horario de almoço, doutor.
– Eu imaginava! Vamos esperar mais quanto tempo até que
nos atendam?
– Quinze minutos! Agora uns dez talvez. E essa garoa agora?
– Devem ter alguma cobertura de lona por aqui!
– Podem alegar que está ocupada!
– Eles que se virem! Se não cobrirem o local, nós não precisaremos ir lá. Eu só quero o corpo deitado em cima de um local apropriado
para o exame e mais nada! Poderemos examinar aqui mesmo?
– Certamente que não! Terá de ser levado ao Campo Santo!
É o local apropriado mais perto que temos!
– Ainda assim, está bom para mim.
Natanael Guzman voltou para dentro da sala, e o médico permaneceu do lado de fora.
Um funcionário se aproximou do balcão, e assim que o delegado lhe
exibiu o distintivo e a ordem judicial, pediu um momento e retornou para o
interior, aproximando-se de outro funcionário sentado atrás de uma mesa
abarrotada de folhas de jornais esparramadas, em completa desordem.
O homem segurava um cigarro entre os dedos, cujas unhas
estavam bem mais amareladas pela nicotina do que as outras, e continuou ignorando as pessoas do lado de fora do balcão. O rapaz tornou a lhe falar, e somente depois que entendeu o que ele lhe disse, é
que levantou a cabeça, olhando para o delegado Guzman, e arrastou
com certa pressa a cadeira para trás, tentando sair dali.
Aproximou-se do balcão enquanto soltava uma nuvem de fumaça pelo caminho, pegou o papel das mãos de Guzman e depois de
uma rápida leitura se manifestou:
– Um momento por favor.
O delegado assentiu.
– Pois não.
O homem então exclamou espantado:
– Três anos!!!!
– O que disse?
– Faz três anos que esse corpo está sepultado! É um milagre se
conseguirmos encontrar algo que não seja somente ossos secos e sujos.
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O homem explicou o que tentava dizer, depois que consultou um
livro mais ou menos do tamanho de uma pasta de elástico, que estava
guardado em um arquivo apropriado. Em seguida chamou quatro funcionários do lado de fora e determinou-lhes que levassem a cobertura
de lona para o local do sepulcro onde seria exumado o corpo.
Aproximadamente uma hora depois os restos do caixão e do
corpo eram retirados da gaveta de alvenaria enterrada e colocados
em cima do monte de terra do lado de fora.
Todos mantinham a boca e o nariz bem protegidos enquanto os
pedaços da urna misturados com cal eram separados.
O homem da administração do cemitério permaneceu imóvel e
com uma expressão de espanto estampada no rosto, depois do que viu.
– É realmente um milagre da natureza!
– O quê?
– Este corpo! Mais de 50% ainda bem conservado! Deveria
ter se desfeito há muito tempo!
– Isto já aconteceu antes. Pode ter sido efeito da cal colocada
dentro da gaveta.
O delegado Natanael Guzman tentou explicar os fatos científicos juntamente com o médico, enquanto observavam os funcionários
afastarem com uma espécie de ferramenta o pó branco que estava
grudado ao corpo.
Quanto ao que o médico e o delegado diziam, eles simplesmente ignoraram.
– Irão levá-la?
– Sim. Coloquem-na no caixão de zinco, por favor.
Todo o procedimento da perícia médica adotado não diferiu em
nada do que havia sido feito com o corpo da velha negra.
Tudo foi concluído em questão de poucas horas, e o corpo de
Anatolle Marotti voltou para seu jazigo sem um pedaço de uma de
suas vísceras, que foi encaminhado para perícias mais apuradas, as
quais serviriam para um posterior laudo de intoxicação que o médico
iria emitir.
Era o que faltava para o delegado Natanael Guzman concluir pelo
menos um inquérito policial no qual estava indiciando Fritzen von Keitel.
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Oito
Verdadeira repulsa!
Foi o que o promotor de justiça Halph Ian Mijiag sentiu quando
começou a ler uma a uma as folhas do inquérito policial que havia
chegado à sua mesa pela manhã. Não soube por que, mas associou
aquele homem acusado ao criminoso de guerra nazista Joseph
Mengelle, cujas histórias macabras havia ouvido algumas vezes, contadas por seu pai e sua mãe. Talvez pelo fato de os dois homens
serem médicos, e responsáveis por zelar pela vida humana, ao invés
de subtraí-las das pessoas covardemente.
Mas era um profissional. Um profissional do Direito, e como
tal deveria proceder. Resolveu que deixaria qualquer sentimento emocional de lado e voltaria a analisar os autos do inquérito com a máxima frieza que conseguisse, talvez mais tarde.
Se fosse necessário, como sempre fazia, entraria com sua jornada de trabalho um pouco noite adentro para aliviar o volume de
trabalho que se empilhava em cima da pequena mesa no canto do
apertado gabinete.
Compondo a modesta mobília, além de sua abarrotada mesa,
uma outra mais à frente reservada à funcionária que ali trabalhava –
uma estudante do quarto ano da faculdade de Direito – uma estante
de madeira entulhada de livros jurídicos e mais dois arquivos de aço
já um tanto velhos dividiam o exíguo espaço.
Um suave apito em forma de trinado fez com que Ian olhasse
seu relógio de pulso em cima da mesa e percebesse já ser vinte e
duas horas. Quase três horas haviam se passado desde que o expediente no fórum havia se encerrado, e a denúncia contra o médico já
estava concluída. O processo todo aparentemente seria simples. Tratava-se de uma denúncia bem fundamentada, e não haveria como o
juiz não acatá-la com as evidências plenamente incriminadoras ali
reunidas.
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O delegado Natanael Guzman o havia procurado dizendo que
eram até o momento dois homicídios. O médico ainda não havia confessado nenhum deles formalmente, mas confirmava que havia tratado das pacientes mortas por um bom período. Um outro caso ele
negava com veemência, dizendo que não teve sequer tempo de
examiná-la direito, mas também haviam sido encontrado traços de
curare no sangue dessa outra vítima. Com relação ao outro corpo
que também fora exumado, o delegado ainda não havia conseguido
provar a relação da morte com a atuação do médico, justamente por
falta de ter o que examinar na ossada já um tanto seca.
Quanto às mortes em que o médico não confessava o crime
mas também não negava a responsabilidade pelo ocorrido, não havia
dado explicações convincentes acerca dos fatos relacionados com a
profissão.
Nos dois casos em particular que o promotor Ian tinha nas
mãos, Fritzen von Keitel não iria poder alegar que essas pacientes
terminais tinham maior probabilidade de morrer do que viver.
Certo de que estava promovendo a justiça, o promotor concluiu que o médico havia reduzido das pacientes a possibilidade de
alguma sobrevida, sabe lá Deus em quanto tempo. Contudo, somente
um inquérito policial havia lhe sido enviado e tido como pronto por
Natanel Guzman. Era com base nele que o promotor já estava denunciando o doutor Fritzen von Keitel.
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Nove
Três enfermeiras foram chamadas a depor como testemunhas
na delegacia, além da recepcionista do Hospital Geral Monsenhor
Vasquez.
Uma das enfermeiras não pertencia ao quadro do Monsenhor
Vasquez e já havia se aposentado há muito tempo; estava agora com
idade perto de setenta anos e não se lembrava de muita coisa. Havia
trabalhado com o médico Fritzen von Keitel, dissera, em outro hospital nos tempos de sua mocidade, e fez questão de enfatizar ao delegado que aquele homem não seria capaz de fazer nada daquilo pelo
que o estavam acusando.
A recepcionista do Monsenhor Vasquez também pensava da
mesma forma, mas não disse nada. Simplesmente se limitou a responder às perguntas que lhe foram dirigidas por Natanael Guzman.
*
Cleber Petrus Papadopoulos chegou acompanhando Fritzen von
Keitel, tendo que se esquivar de alguns jornalistas curiosos que estavam na frente do edifício do fórum. Seria a primeira audiência marcada
para a oitiva das testemunhas, e Cleber não conseguia imaginar como
aqueles repórteres sabiam quem ele era naquele momento, e quem
era seu cliente.
Em um determinado momento um dos repórteres que estavam
na aglomeração se aproximou, e Cleber temeu pela integridade de
seu cliente, além da sua própria, pensando que poderia ser alguém
infiltrado que sabia do caso e se interessava por vingança naquele
instante.
O jornalista somente queria falar:
– Eu o conheço! Não é o doutor Cleber Petrus? Lembro-me
de quando defendeu o capitão do exército que havia matado um prefeito no interior! E agora? Quem é seu cliente?
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O homenzinho falava mais do que qualquer um dos outros que
se aproximaram, e Cleber julgou que a melhor estratégia para aquele
momento seria não lhe responder nada concretamente. Deu uma
puxada forte no cachimbo, virou a cabeça para um dos lados para
soltar a fumaça aromatizada e falou:
– Bem! Eu sou esse advogado que o senhor está dizendo, sim.
Quanto ao caso passado a que se referiu, creio que deve ter acompanhado seu desfecho, e será desnecessário dizer qualquer coisa. Quanto
a quem é o meu cliente agora, reservo-me o direito de não falar, e
certamente você ficará sabendo de tudo em um futuro próximo.
Com os braços esticados e levantados segurando seus respectivos microfones, gravadores em miniatura e telefones celulares, os
demais jornalistas se acotovelavam tentando fazer a qualquer preço
sua matéria.
O advogado Cleber os deixou assim, e sem mais nenhuma palavra entrou no edifício protegido pelos guardas da PM que se postaram à porta.
Olhou a placa à frente para se certificar onde seria feita a audiência e subiu para o segundo andar depois de apagar o cachimbo.
Fritzen von Keitel acompanhou o advogado sempre calado e,
quando terminaram de subir e pararam na frente da sala de audiências,
reconheceu prontamente algumas senhoras que conversavam sentadas no banco do lado de fora.
– Jamais estive tão nervosa em minha vida.
– Eu também. Desde que essa coisa começou, e que fui chamada na delegacia pela primeira vez, estou dormindo à base de calmantes sempre que se aproxima qualquer dessas datas. Você acredita que o doutor Fritz realmente tenha feito estas coisas?
– Para ser sincera, realmente não acredito. É incrível que uma
pessoa em sua idade se veja envolvida em um caso de tamanho
escândalo.
Cecília Bacan conversava com uma outra enfermeira, sua colega de serviço. A recepcionista permanecia calada, sentada ao lado
das duas na fileira de bancos colocados no corredor do fórum. Na
primeira fileira, uma senhora, já um tanto idosa, também permanecia
calada enquanto aguardava para ser chamada.
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As duas jovens enfermeiras viraram a cabeça ao mesmo tempo na direção do homem de terno bem alinhado e sapatos muito brilhantes, com uma pasta em uma das mãos, que se aproximou, falou
alguma coisa à oficial sentada atrás da mesa e voltou-se para ficar de
pé encostado à parede. “Daqui a quinze minutos! Já está quase na
hora, doutor!”, isto foi o que ouviram a mulher lhe dizer, depois que
esticou o pescoço para consultar o relógio no interior da sala de
audiências. Também em pé, ao lado do homem de terno alinhado,
viram o doutor Fritzen von Keitel, que antes havia permanecido aguardando um pouco atrás. Repararam que ele agora estava vestido sem
o habitual guarda-pó branco. Largos sorrisos e cumprimentos foram
dirigidos a ele pelas três funcionárias do Monsenhor Vasquez, e ele
lhes retribuiu com um leve aceno de cabeça.
A oficial entrou na sala depois que foi chamada por alguém de
seu interior e voltou com uma folha de papel nas mãos. Depois que
leu, confirmando o nome, apregoou:
– Fritzen von Fritz... É isso?
– Não. É Keitel. Fritzen von Keitel.
O advogado Cleber se limitou a responder que o nome estava
correto e entrou com o médico na sala. Mostrou a Fritzen onde
deveria se sentar e ocupou a cadeira o lado depois que cumprimentou ao juiz. O promotor Halph Ian Mijiag, sentado em outra cadeira
próxima, levantou a cabeça e cumprimentou Cleber sem se dirigir a
Fritzen. Depois que a oficial apregoou novamente do lado de fora, a
enfermeira Cecília Bacan adentrou a sala e sentou-se na cadeira
que sobrava desocupada.
O juiz demorou-se alguns instantes lendo algo em cima de sua
mesa e depois levantou a cabeça, dizendo:
– O senhor é médico? É o doutor Fritzen von Keitel?
– Sim.
– O senhor tem ciência de que está sendo processado por
homicídio contra sua paciente, a senhora Anatolle Marotti?
– Sim.
– Tem advogado constituído?
– Sim. Está ao meu lado.
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Fritzen apontou o doutor Cleber Petrus Papadopoulos, e o juiz,
que já o conhecia, aproveitou para cumprimentá-lo cordialmente, estendendo-lhe a mão. Cleber retribuiu o cumprimento e o juiz continuou falando, dirigindo-se a Fritzen.
– Hoje trata-se da audiência para que sejam ouvidas as testemunhas, portanto o senhor não deverá se manifestar, a não ser que
eu lhe dirija a palavra.
– Sim.
Fritzen von Keitel limitava-se a assentir falando baixo e balançando a cabeça para a frente, enquanto o juiz lhe falava. Depois o
magistrado virou-se para a enfermeira e lhe falou:
– Diga seu nome e profissão, por favor.
– Cecília Bacan, enfermeira do Monsenhor Vasquez .
– Queira repetir onde trabalha.
– Enfermaria do Hospital Geral Monsenhor Vasquez.
Em seguida o juiz determinou que Cecília declinasse sua idade
e endereço, se era parente ou não de alguém no interior da sala, e
admoestou-a de que estava sendo compromissada como testemunha. Deveria se ater à estrita e mais completa verdade.
– Conhece este homem?
– Sim. Conheço.
– Como é o nome dele?
– Doutor Bonm. Ou melhor, doutor Fritzen von Keitel.
– Em vista disto que está nos dizendo, conte-nos exatamente o
que ocorreu no seu plantão do dia 17 de setembro de 1998, por volta de...
O juiz se deteve enquanto baixou a cabeça para ler e confirmar o horário da morte de Anatolle Marotti na certidão de óbito anexa ao processo. Depois continuou:
– ... por volta de dezoito horas e dez minutos.
Cecília relatou ao juiz e aos demais presentes exatamente o
que se lembrava daquela insólita noite. Terminou dizendo que havia
encontrado o médico em pé ao lado da paciente que jazia no leito, e
ele lhe dizia que não poderiam fazer mais nada. Ela, a paciente, já
havia partido para o descanso eterno. Foi o que dissera.
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Depois, o juiz continuou:
– Em algum momento a senhora viu este homem injetar qualquer medicamento na vítima?
– Como assim? Por diversas vezes ele medicou os pacientes.
– Eu digo no momento em que a senhora entrou no quarto. Notou
se ele fazia menção de estar aplicando ou ter aplicado algo na paciente?
– Não, senhor!
– Nem tampouco observou ou encontrou posteriormente frascos ou mesmo seringas em qualquer canto do quarto onde havia estado a vítima?
– Algumas vezes, nós mesmo jogamos as seringas num cesto
de lixo lacrado próprio para esse fim. Mas que eu saiba, em nenhum
momento ou em qualquer lugar dentro do quarto foram encontrados
qualquer seringa ou frasco.
– Que a senhora saiba! Está certo. Alguma pergunta, senhor
promotor?
– Gostaria que ela nos dissesse quem faz a medicação nas
pacientes, inclusive injeções.
– Ela já nos disso isto, doutor! Mas se insiste... Então, senhora
Cecília?
– Nós mesmas. As enfermeiras. Raramente os médicos ministram os medicamentos, mas como já lhes disse antes, às vezes
eles o fazem.
– Ótimo. Mais alguma pergunta, senhor promotor?
– Qual o intervalo de visitas do médico às pacientes, e se por
acaso o doutor Fritzen esteve visitando a paciente, ou melhor, a vítima, entre estes intervalos alguma vez.
– Senhora?
– Regularmente o médico visitas os pacientes a cada duas
horas, e conforme o caso até de hora em hora. Quanto às visitas nos
intervalos, não me recordo.
– Não se recorda ou não viu?
– Jamais vi o doutor Fritzen visitar pacientes em intervalos
menores do que eu já disse sem antes assinar a ficha.
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– E especificamente quanto a Anatolle Marotti, a vítima?
– Não. Nunca lhe fez visitas fora do horário previsto.
– Está bem. Mais alguma pergunta, doutor Halph?
– Não, excelência! É tudo por enquanto. Obrigado.
– Senhor defensor?
Cleber fez menção de acender o cachimbo, depois desistiu.
Simplesmente, como se fosse um hábito, continuou segurando-o
dentro da mão fechada em concha. Havia acompanhado as perguntas e respostas atentamente e anotou tudo. Não adiantaria nada
perguntar algo que levasse por aquela mesma linha, portanto resolveu entrar pelo caminho do relacionamento pessoal do médico
com todas as demais pessoas ao seu redor, inclusive pacientes.
Em uma outra ocasião, já havia orientado as testemunhas para
que jamais afirmassem em juízo serem amigas íntimas de Fritzen
von Keitel, mesmo que o fossem. Cleber sabia que isto era difícil
de ser provado.
– Gostaria de saber como era o relacionamento do médico
com todos os pacientes, mesmo os que não eram considerados terminais, se era ou se já havia sido rancoroso e agido com brutalidade
com qualquer um deles, além das demais pessoas que se relacionavam com ele no dia-a-dia do Monsenhor Vasquez.
Depois que repetiu palavra por palavra o que o advogado Cleber
havia perguntado, o juiz interpelou a testemunha novamente:
– Então, senhora Cecília; o que tem a dizer?
– O doutor Fritz sempre foi cordial e generoso com todos.
Jamais se exaltou com qualquer um, ou mesmo com aqueles pacientes considerados impertinentes devido à idade. Sua atitude sempre
foi a mais serena possível.
– Nunca o viu nervoso ou reclamando de qualquer paciente?
Por exemplo da vítima? Pense um pouco!
– Não. Nunca!
– Doutor?
– Sem mais perguntas, meritíssimo!
– Doutor Halph?
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– Sem mais perguntas, excelência!
– Ótimo! Então, creio que por hoje é só.
A enfermeira Cecília foi ouvida pelo juiz e pelas demais pessoas
presentes na sala de audiências por mais alguns minutos, e quando
terminou foi dispensada. Em seguida todos tiveram de assinar uma
cópia do depoimento que havia sido transcrito através da impressora
do computador que estava sobre a mesa .
A outra enfermeira e a recepcionista do hospital foram também ouvidas por período aproximadamente igual.
A outra enfermeira, a idosa, foi dispensada logo em seguida
por uma funcionária, sem que fosse necessário seu depoimento.
Não gostou nem um pouco, ao que reagiu com extrema indignação:
– Isto não pode acontecer! Isto é discriminação! É porque sou
uma velha? Ou será que é porque sabem que a minha opinião inocentará o doutor Fritzen dessas bobagens de que o estão acusando?
– Não, minha senhora. É porque o seu depoimento não é relevante para esse processo. A senhora não teve contato com a vítima!
– Meu depoimento não é relevante? Deixe-me entrar aí que
eu vou falar com esse juizinho!!! Ele não passa de um fedelho!!! Tem
idade para ser meu neto e terá que me ouvir!!!
– Calma, senhora! Não disse que a senhora não será ouvida,
mas que será ouvida em um outro dia.
Quando a recepcionista do fórum resolveu que deveria chamar o meirinho para tentar conter a mulher irada, esta já havia se
levantado e irrompido para dentro da sala de audiências.
A mulher já estava muito abalada, e sua voz quase não saiu
quando perguntou a Cleber quem era o juiz. Ele já ia lhe dizer que o
juiz já havia se retirado da sala, quando dois dos policiais ali presentes
a pegaram de uma forma até que amável pelo braços para depois a
ampararem até a saída do fórum. Em seguida, entregaram-lhe um
papel dispensando-a da audiência.
No momento em que os policiais a tocaram dentro da sala, o
doutor Fritzen fez menção de que iria levantar-se para ajudá-la, mas
a mão de Cleber o segurou o suficiente para que não se levantasse da
cadeira mais do que um palmo e voltasse a sentar.
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– Aquela mulher!
– O que tem ela?
– Preciso falar com ela! Eu a conheço! O que ela faz aqui?
– Deve ser uma das testemunhas! Acalme-se! Fique sentado!
Terá tempo suficiente depois que sairmos daqui.
Lá fora, os policiais somente ouviram-na dizer que iria tomar
as providências que julgasse necessárias, e que aquilo não iria ficar
assim. Limitaram-se a ouvir tudo calados e deixá-la ir embora.
“É só uma velha! Está muito estressada”, comentaram depois.
*
O delegado Natanael Guzman estava em casa sentado à frente da televisão para ver o telejornal noturno, e jamais imaginou que a
próxima reportagem anunciada pelo âncora da emissora iria enfurecêlo daquela forma.
Antes do intervalo comercial, o repórter apresentador mostrou
o rosto de Fritzen von Keitel através de uma fotografia de mais de
vinte anos.
Guzman afastou-se da frente da televisão e caminhou até a
janela, onde passou a admirar o brilho de algumas estrelas e a luz
branca da lua, que entre pesadas nuvens que haviam se formado
repentinamente banhava gratuitamente a pequena varanda. Terminou de fumar o cigarro que mantinha preso entre os lábios e foi até a
geladeira, onde apanhou uma lata de cerveja.
Quando voltou para ocupar seu lugar no sofá, ouviu o que o
apresentador do programa falava, dizendo a todo o mundo que pudesse ouvi-lo o que bem queria a respeito do “médico assassino”.
De onde estava sentado, olhou através da janela de vidro da
sala de estar e pôde ver ao longe as descargas elétricas que rasgavam o céu escuro de um lado a outro. A tempestade estava chegando cada vez mais perto, e o barulho dos trovões era ensurdecedor.
Guzman virou o último gole de cerveja na boca e colocou a lata
em cima da mesa de centro. Quando o noticiário acabou, levantou-se
do sofá, abaixou o volume do aparelho de televisão e foi até o telefone. Achou que tinha de falar com o doutor Fritzen o quanto antes.
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Tudo havia corrido perfeitamente bem durante todos os meses
que haviam se passado com a investigação e preparação do inquérito
policial. Mas agora, quando a coisa começava a se transformar no
verdadeiro processo criminal, o assunto vazara para a imprensa, e os
repórteres histéricos, mais do que depressa, em busca de exclusividade e furo de reportagem, atacavam por todos os lados como se
fossem famintas hienas sobre uma já moribunda vítima.
O telefone chamou até cair a linha, e ninguém na casa do doutor Fritzen von Keitel atendeu. A segurança do médico ainda era
responsabilidade de Natanael Guzman, e ele passou a temer por ela,
devido às pessoas fanáticas que sempre apareciam em casos como
esses. O delegado tentou mais duas vezes e depois retornou para a
frente do aparelho de televisão. Sentou-se no sofá e, com o controle
remoto, levantou novamente o volume e passou a sintonizar em outros canais para verificar se o assunto também já havia chegado a
eles. Depois de uma rápida passada em mais outros dois telejornais,
franziu a testa em sinal de grande preocupação e deixou-se cair para
trás, apoiando a cabeça no encosto. Concluiu que teria de encontrar
o médico o mais rápido possível e procurar escondê-lo de alguma
forma. O caso havia tomado proporções de nível nacional, e provavelmente também internacional.
Acendeu outro cigarro, deu outra boa tragada e deixou os pensamentos fluírem juntamente com a nuvem de fumaça que o envolvia.
Era o “médico assassino”, era o “Mengelle dos anos noventa”,
nas tevês do mundo todo!
Guzman estava imaginando que quando se tratava de conquistar audiência a imprensa não costumava ter piedade de ninguém.
Estavam cumprindo perfeitamente o papel de juiz , júri e carrasco
naquele momento. Alguns o noticiavam simplesmente como “médico
psicopata”, outros diziam não se ter idéia da quantidade enorme de
vítimas que ele teria feito, outros o chamavam ainda de “Mengelle
brasileiro”. Com certeza o caso iria ocupar os maiores espaços dos
programas jornalísticos por um bom tempo.
Uma pequena argola formada pela fumaça que lhe saía das
narinas subiu, e Guzman sorriu achando interessante. Quando queria,
dificilmente conseguia aquilo.
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“Tenho mesmo que largar isto!”, pensou enquanto ainda sorria.
Natanael Guzman tinha certeza de que no dia seguinte, ou mesmo a partir daquela madrugada, a frente do hospital estaria tomada
por uma multidão de repórteres, fanáticos e outras pessoas que estariam interessadas pelo caso. Provavelmente a frente da delegacia
também iria estar da mesma forma. Se descobrissem o endereço do
médico a coisa iria se complicar.
“Tomara que ele e a mulher não estejam dormindo sozinhos
em casa já a esta hora!”, pensou o delegado.
No exato momento em que Guzman viu pela primeira vez a
reportagem na televisão e se propôs a telefonar para o médico, este
também acabara de ver o mesmo canal, e instantaneamente deduziu
tudo da mesma forma que o policial. Alertou a mulher que não iriam
atender o telefone a partir daquele instante. Iriam se aprontar o mais
rápido que pudessem e desaparecer para qualquer lugar.
O idoso casal pegou algumas mudas de roupa e dirigiu-se rapidamente à garagem para apanhar o carro.
Num lampejo, a forte dor de cabeça fez com que Fritzen se
lembrasse dos remédios e voltasse para apanhá-los dentro do armário do banheiro. Apanhou a agenda com os telefones mais importantes, incluindo o do delegado Natanael Guzman e o do advogado Petrus.
Depois, fecharam toda a casa e partiram.
Fritzen tinha ordens expressas do delegado de que não deveria
sair das comarcas de São Paulo e Guarulhos, mas não tinha outra
solução naquele momento. Tomou as marginais andando normalmente e se dirigiu ao norte para uma casa de campo às margens da represa de Igaratá, que haviam comprado para descanso de fim de semana e quando quisessem fugir do estresse da grande cidade. Era um
dos poucos lugares onde poderiam conseguir uma boa dose de privacidade e sossego longe de vizinhos e de pessoas curiosas. Levou o
telefone celular, pois na chácara ainda não havia sido instalado telefone fixo residencial. Seria melhor assim. Sem telefone e sem telefonemas que os viessem importunar!
Natanael Guzman andava de um lado para outro dentro de
casa, à procura de um pequeno caderno, no qual mantinha o número
do telefone celular do doutor Fritzen von Keitel.
98
Se o médico não estivesse em casa, ou se estivesse dormindo,
o aparelho celular poderia estar próximo dele. Guzman ainda torcia
para que não tivesse deixado o caderno com os números de telefones
trancado em sua sala na delegacia, o que era muito provável. Não
queria ir até lá naquele momento de maneira alguma. De repente
lembrou-se de que deveria haver uma chave extra de sua sala na
delegacia, para emergências. E esta era uma emergência sob seu
ponto de vista. Telefonou para a delegacia, e depois de alguns minutos conseguiu falar com seu colega, o delegado de plantão. O homem
não demorou mais do que quinze minutos para encontrar a chave
extra, entrar na sala de Guzman, abrir a gaveta de sua mesa e encontrar o caderno. Enquanto ele falava o número do telefone celular,
Guzman o anotava em um pedaço de papel qualquer próximo de si.
Recomendou ao delegado que depois que trancasse a sala guardasse
a cópia da chave com ele mesmo, e não abrisse a porta para mais
ninguém. Ninguém mais, em absoluto, poderia tomar conhecimento
daquele número de telefone que ele lhe havia passado.
O doutor Fritzen rodava de certa forma tranqüilo com o carro
pela rodovia Presidente Dutra, já bem próximo do município de Arujá,
quando o telefone celular tocou, jogado em cima do banco de trás do
carro.
Ainda estava chovendo bastante, e a visibilidade era pouca.
Vez por outra, um relâmpago seguido por um trovão clareava a pista
toda à frente. Por várias vezes o médico pôde perceber que dirigia
com um par de rodas do carro quase fora da pista. O telefone continuou tocando, e mesmo assim ele não atendeu para não desviar a
atenção da estrada. Não queria parar no acostamento àquela hora.
Temia ladrões que podiam estar à espreita.
Natanael Guzman ouviu a voz de mulher que atendeu do outro
lado da linha e respondeu:
– Aqui é o delegado Natanael Guzman. Quem está falando?
Guzman percebeu quando a voz feminina perguntou a alguém
se poderia atender aquele homem que dizia ser o delegado. O médico
assentiu, e ela continuou falando.
– É Inga! Inga Steif Keitel, a esposa do doutor Bonm.
– Ele está aí?
99
– Sim, mas está dirigindo no momento.
– Por favor! Ele pode me atender?
A linha ficou silenciosa por alguns instantes, e o médico disse à
mulher que iria encostar o carro para atender a Guzman.
– Espere que ele vai atendê-lo!
– Está bem, obrigado.
A rouca voz do médico ecoou do outro lado.
– Alô! É o delegado Natanael Guzman mesmo que está falando?
– Sim, sou eu mesmo! Precisamos conversar. Onde o senhor
está?
– Só posso lhe dizer que agora estou me sentindo um pouco
mais seguro depois de toda essa confusão que a televisão armou!
Mas como posso ter certeza de que é o senhor Natanael Guzman que
está falando?
– Ora! Por favor, pare com isso! Afinal fui eu que lhe servi a
água para que tomasse o remédio da primeira vez que o interroguei
na delegacia, e também fui eu que o alertei a respeito de não poder se
ausentar da comarca. Agora, compreenda que no momento estou
fazendo o papel de seu melhor amigo, tentando proteger sua integridade física. Portanto, o melhor que tem a fazer é me dizer para onde
está indo, que lhe garanto que não falarei a ninguém! Caso contrário,
deverei pedir novamente sua prisão preventiva, doutor! Para onde
está indo? Não pretende fugir, pretende?
– É claro que não! Estou indo para Igaratá. É uma chácara à
beira da represa que mantenho quando quero ficar longe de tudo e de
todos.
Guzman acendeu um cigarro que apanhou do maço em cima
de um aparador e perguntou:
– Como faço para chegar até aí?
– Pretende vir hoje?
– Bem... acho que não. Mas tenho de saber como encontrálo, se for preciso.
– Então, confie em mim. Não vou fugir. Quando achar que
deve vir até aqui, me ligue que nos encontraremos em algum ponto
aqui mesmo na cidade.
100
– Assim está melhor. Acredite. Eu vou lhe telefonar, mas não
saia daí para canto nenhum e procure não falar com ninguém, a não
ser com seu advogado. Exceto, é claro, se também não confiar nele.
O médico respondeu que talvez confiasse, mas não iria informar ainda ao advogado de onde iria estar. Ligaria para ele no dia
seguinte, principalmente para saber o que deveria fazer dali por diante. Também iria telefonar para seu médico, mas nem mesmo a ele iria
revelar o local em que se encontrava.
Já havia passado do meio da noite, e o céu escuro de vez em
quando voltava a clarear com mais relâmpagos, que prenunciavam
uma nova tempestade.
Entre uma nuvem e outra que passava, uma faixa branca formada pela luz intensa do luar iluminava a estrada seca à frente do
carro, pois ali ainda não havia chovido.
O doutor Fritzen esperava que não chovesse logo, apesar dos
prenúncios, pelo menos não antes de se encontrar em segurança na
casa da chácara. Para chegar até lá, deveriam percorrer ainda um
longo caminho em estradas de terras sempre mal conservadas. Com o
jipe não haveria problemas dessa natureza, mas o veículo encontravase bem guardado na garagem da casa na chácara e não iria servir de
nada naquele momento, pelo menos até que chegassem com o Honda.
*
Estava uma temperatura agradavelmente amena quando Fritzen
von Keitel caminhou até a janela envidraçada da sala, a qual dava
para um frondoso bosque de pinheiros formado ravina acima, cujas
árvores ele mesmo havia plantado e acompanhado crescer durante
os anos. Gostava sempre de passear entre suas veredas e ouvir o
barulho do vento que passava corcoveando e assobiando entre seus
galhos. Fora isto e o cantar dos pássaros, o silêncio era singelo e
hipnotizante.
Fritzen acabou de virar na boca o resto de chá da xícara e se
pôs a caminhar na direção da porta.
A lufada de ar fresco que recebeu quando a abriu, fez com que
levasse a mão ao rosto para protegê-lo, mas mesmo assim teve cer101
teza de que tinha visto alguém que caminhava entre as árvores do
bosque não muito distante. A pessoa estava toda de branco, e olhava
firme na sua direção. Fritzen firmou a vista um pouco para ver se a
reconhecia, quis se lembrar, pois parecia que já a havia visto, mas não
tinha certeza de onde. O sol surgia lentamente por trás do topo da
ravina, bem na direção da figura. Resolveu sair e ver quem era e o
que estava fazendo ali.
Fritzen andava um pouco, e de vez em quando abaixava o rosto para ver onde estava pisando; quando levantava a cabeça percebia que a pessoa, que agora não passava de um vulto resplandecente,
não estava mais no lugar anterior. Num dado momento enquanto caminhava, achou que o tinha visto no pé de um dos grandes pinheiros,
mas quando abaixou a cabeça por apenas dois segundos e tornou a
levantar, a figura já estava sentada em um de seus galhos a mais de
dez metros de altura e brilhando como o sol. Chegou um pouco mais
perto, e percebeu que o vulto lhe sorriu e desapareceu. Só então é
que Fritzen se lembrou de onde já o tinha visto, ou pelo menos era
alguém muito parecido com ele. O reconheceu do hospital, quando
achou que o mesmo saía do quarto de Natalina de Jesus e desaparecera no final do corredor.
Esperou mais alguns instantes para ver se a figura aparecia
outra vez, mas foi em vão. Achou que poderia ser alguma espécie de
alucinação por causa de alguns dos medicamentos que estava sendo
obrigado a tomar ultimamente e resolveu esquecer o assunto. Voltou
andando lentamente na direção da casa e lembrou-se de que queria
fazer uma ligação. Inga estava distraída atrás da casa, mexendo em
alguns vasos de flores, e foi despertada de seus pensamentos com os
fortes braços de Fritzen, que lhe envolveram o corpo, e um terno
beijo que então o marido lhe deu.
A mulher lhe sorriu meigamente e ele entrou, deixando-a sozinha com as flores, e o coração exuberante de alegria. Sempre o amara muito e não suportava a idéia de perdê-lo algum dia.
“Prefiro morrer primeiro, se não pudermos ir os dois ao mesmo
tempo!”, assim pensava, e dizia de vez em quando para si mesma e
para as outras pessoas.
*
102
Mal o dia amanheceu e o telefone celular do advogado Cleber
Petrus Papadopoulos tocou em cima da escrivaninha em sua casa.
Não dormira bem. Todo o escândalo que a imprensa não tivera muito
trabalho para fazer em torno do caso do médico o havia deixado
preocupado e tenso. Foram mais de dezesseis tentativas de encontrar o homem. O número do telefone celular do médico havia ficado
trancado no escritório dentro de uma pasta de arquivo.
Quanto ao telefone de sua residência, havia conseguido em
uma velha pasta de seu pai guardada em casa por acaso.
Petrus era solteiro e morava sozinho. Estava com trinta e oito
anos, era alto, com estatura beirando um metro e noventa e dois centímetros e o corpo peludo até a altura do pescoço, bem atlético.
Apesar do porte parecido com o dos lutadores de luta grecoromana, e de não lhe faltar em pretendentes, ainda não havia resolvido se casar.
Levantou-se lentamente da cama, parecendo ser um dos gigantes dos clássicos e lendários filmes de cinema, saiu caminhando e
parou por um instante em frente ao espelho pendurado na parede
próxima da porta, onde ajeitou como de hábito a franja dos cabelos
escuros e meio encaracolados que combinanvam com o negrume dos
olhos muito vivos. Pegou o aparelho celular em cima de um aparador
e atendeu depois de pigarrear:
– Alô!
– Petrus? Doutor Petrus? Aqui é o doutor Fritzen!
– Fritzen? Onde está? Estive lhe procurando praticamente até
o meio da noite! É claro que já deve estar sabendo das notícias a seu
respeito!
– Sim ! É claro que eu sei. Foi exatamente por isso que o
senhor não conseguiu me encontrar.
– Onde está agora?
– Estou em casa. Acho que estou seguro aqui.
– Em casa? Você por acaso enlouqueceu de vez? A imprensa
o está caçando como um cão que caça uma raposa e você me diz
tranqüilamente que está em casa?
103
O advogado de Fritzen von Keitel havia colocado um tom de
hostilidade e repreensão na voz. Podia-se dizer que estava até com
uma certa raiva da falta de cuidado de seu cliente.
– Acalme-se. Talvez eu não tenha me expressado com clareza. Eu não estou exatamente em casa. Estou em outra casa, um
pouco distante de Guarulhos, onde ficarei seguro por um bom tempo.
– Onde fica? Eu tenho de saber! Posso precisar vê-lo com
urgência!
O doutor Fritzen fez a mesma pergunta que havia feito ao delegado na noite anterior:
– Vai vir para cá agora?
– Bem... Creio que no momento não há necessidade. Mas
precisamos manter contato. Acredito que seu interrogatório será dentro
das próximas semanas.
– Está bem. Creio mesmo que temos de nos encontrar antes
disso, pois quero que me acompanhe ao meu médico. Preciso apanhar
o resultado de alguns exames, e quero que você esteja por perto.
– Médico? Que médico é esse? Você nunca me disse que
estava indo ao médico regularmente. É importante que eu saiba de
tudo, pois podemos utilizar qualquer coisa e qualquer argumento válido para influenciar um possível tribunal do júri!
Fritzen limpou a garganta, pigarreando, e falou:
– É um especialista em oncologia.
– Oncologia? Suspeita que esteja com câncer?
– Ainda não sabemos. Como disse, é só uma suspeita.
– Então está bem. Mas, de qualquer forma, mantenha o celular sempre à mão, para que eu possa encontrá-lo.
O advogado desligou o aparelho e não voltou a se deitar mais.
Foi para o banheiro, tomou uma ducha enquanto fazia a higiene matutina e se preparou para sair para o escritório. Sabia que iria enfrentar,
pelos próximos dias, uma multidão de repórteres fazendo perguntas e
mais perguntas por onde quer que andasse.
“Nada a declarar!”, iria falar com firmeza e bom tom para que
todos ao redor pudessem ouvi-lo.
104
Enquanto tomava o banho havia treinado algumas dezenas de
vezes essa frase, até que conseguiu pronunciá-la quase que automaticamente. Não era a primeira vez e provavelmente não seria a última que iria precisar agir dessa forma, mas com aquelas pessoas sedentas de notícias sempre parecia ser a primeira vez. Por mais que
um advogado fosse experimentado nessa situação, sempre aparecia
um jornalista qualquer, talvez algum recém-formado, que se propunha a tirar qualquer pessoa do sério com perguntas óbvias e idiotas.
Petrus não poderia saber até onde o sangue grego que corria
em suas veias poderia agüentar sem que explodisse num acesso de
ira para cima de um deles. Esperava sinceramente que nunca viesse
a saber disso.
Aprontou-se, apanhou o cachimbo em cima de uma escrivaninha, acendeu-o, fechou a casa e saiu.
105
106
Dez
Era um tanto cedo, mas pelo menos duas pessoas já ocupavam
o gabinete do juiz responsável pela instrução do processo iniciado
contra o doutor Fritzen, quando o advogado Cleber Petrus Papadopoulos se aproximou da porta e entrou. Não era o juiz Malton que
despachava. Sinal de problemas.
Corria um boato pelos corredores do fórum de que a indulgência com qualquer pessoa era uma exceção na conduta daquele magistrado de olhar frio e penetrante sentado atrás da mesa.
Petrus olhou para um dos cantos da sala e sentou-se em uma
das cadeiras depois que pediu licença a Sua Excelência. O homem
nem sequer levantou a cabeça para responder. A porta estava totalmente aberta, portanto Cleber concluiu que aquela não era nenhuma
audiência revestida pelo segredo de justiça.
Quando o juiz terminou a audiência com as outras pessoas,
levantou a cabeça e mandou o advogado do médico se aproximar,
depois que o cumprimentou com certa cortesia. Cleber respondeu ao
cumprimento estendendo a mão para o juiz apertar e dirigiu seu pedido ao togado sem muitas formalidades.
Estava solicitando que se providenciasse, para as próximas vezes em que fosse necessária a presença do médico no fórum, um reforço policial extra, pois temia pela integridade física de seu cliente. O
juiz assentiu, balançando a cabeça em sinal de afirmação, e pediu um
minuto para o advogado enquanto apanhava o telefone em cima de sua
mesa. Determinou à telefonista que fizesse uma ligação direta com o
comandante do Décimo Quinto Batalhão da Polícia Militar em
Guarulhos. Depois de alguns minutos um coronel atendeu apressadamente a ligação, quando soube de quem se tratava. O juiz lhe requisitou
oito policiais armados, para estarem a postos na porta do fórum de
Guarulhos prontamente e sempre que solicitados. Depois agradeceu.
– Pronto, doutor. Está feito. É só isso?
– Sinceramente, sim. Só tenho de lhe agradecer.
107
– Por nada. Este é nosso dever. Meu e seu. A integridade
física do réu, no caso o seu cliente, sempre foi e sempre será nosso
dever.
O advogado Cleber Petrus agradeceu ao juiz novamente, acendeu o cachimbo branco com detalhes dourados na fornilha e saiu do
fórum com destino ao seu escritório, onde iria esmiuçar novamente o
caso, além de estudar um pouco mais os passos que deveria percorrer na estratégia de defesa.
A realidade nua e crua era que não havia muito o que fazer no
que se referia a inocentar o médico com relação ao fato de as pacientes
terem falecido. Isso era inerente à profissão, e sempre podia acontecer com qualquer médico. O problema é que nos dois corpos em que
fora efetuada a perícia médica haviam vestígios de curare.
Essa era uma substância havia muito tempo usada por pigmeus, em guerra com outras tribos da África, os quais embebiam
nela as pontas de suas lanças; uma vez ferida, a pessoa vitimada
tinha morte rápida e indolor provocada pelo veneno, assim que este
era inserido em sua corrente sangüínea .
Enquanto dirigia rumo ao escritório, o advogado pensava se
não seria uma boa saída orientar o médico para que negasse a autoria
dos crimes, uma vez que existiam as provas do homicídio, que era o
curare no sangue das vítimas. Porém, não existiam provas cabais de
autoria além do possível depoimento das enfermeiras que foram arroladas como testemunhas, e que seriam usadas pela acusação. Lembrava que, por mais de uma vez, o doutor Fritzen von Keitel havia se
negado a se declarar inocente. Sabia que como já havia feito anteriormente no distrito policial, o médico iria assumir o fato de ter sido o
responsável pelo tratamento de duas das vítimas. Não pelo crime,
mas sim pelo tratamento.
Cleber não chegou a tocar no assunto referente ao curare com o
médico, pois tinha certeza de que o mesmo tinha conhecimento de que
a substância letal seria descoberta em caso de um exame médico legal.
Ainda, quanto a uma terceira vítima que também estavam lhe
imputando, esta Fritzen negava veementemente, dizendo que não havia
tido tempo sequer de examiná-la. Quando chegou à enfermaria, a
mesma já estava sem pulso, dissera na oportunidade.
108
Cleber havia ouvido com absoluta atenção quando o médico
lhe relatara sua história, e depois releu tudo por várias vezes, e com
mais atenção ainda.
Mesmo assim, ainda iria se debruçar sobre o caso por muitas
horas mais.
O advogado chegou ao seu escritório depois de enfrentar o
trânsito intenso da avenida Paulista e desceu com o Renaut que dirigia até o subsolo do edifício, estacionando em uma vaga de garagem
reservada para ele.
Encostou o carro, pegou a pasta cor de vinho de pelica e trancou
o veículo acionando o alarme; depois saiu andando na direção do elevador. Em seu interior, em um dos cantos da moderna estrutura de aço
inoxidável, tocou com o dedo o número doze que se acendeu em seguida no pequeno painel digital. Um silvo leve emitido de algum sintetizador
eletrônico anunciou que havia chegado. Foram vinte segundos de percurso direto para cima sem parada. Uma parede de vidro surgiu à sua
frente assim que a porta do elevador se abriu. Letras douradas com o
seu nome e os dos demais sócios ostentavam-se bem à frente, presas à
parede. Trazia a chave da porta na mão, mas assim que a recepcionista
o viu se aproximar, mais do que depressa acionou o botão embaixo da
mesa que lhe abriu automaticamente a porta.
Entrou, cumprimentou-a e agradeceu:
– Bom dia! Muito obrigado.
– Bom dia, doutor.
– Pode me trazer café?
– Um café? Açúcar ou adoçante, senhor?
– Não. O bule. Açúcar. Não quero que me interrompam dentro das próximas três horas. Seja lá quem for, peça que espere aqui,
ou volte outra hora. Vou estudar o caso do médico. O interrogatório
deve ser marcado para breve. Talvez até o final dessa semana.
– Sim, senhor!
Cleber entrou na sala luxuosa, cujas paredes haviam sido forradas de mogno ainda no tempo de seu pai. Dois minutos depois, a
recepcionista entrou com o bule de café, depois que se fez anunciar
batendo com os nós dos dedos na porta. Uma mesa com tampo de
109
vidro fumê muito espesso suportava em cima um aparelho de telefone réplica fiel de algum modelo do início do século; além disso, mantinha também um conjunto de abridor de envelopes, caneta, lapiseira
e um relógio de mesa todo banhando em ouro. Nada de gavetas. O
advogado tocou em um minúsculo botão em uma de suas quatro hastes de sustentação, e um quadrado se abriu para cima bem no centro
da mesa, exibindo um monitor de cristal líquido e um teclado de computador personalizado combinando com a mesa.
Cleber passou a digitar alguns textos; depois, passava minutos
seguidos lendo e relendo tudo, consultando jurisprudências e a farta
literatura jurídica constante da biblioteca na parede atrás de si. Nenhum precedente. Pelo menos na história jurídica brasileira, não havia nenhum precedente.
Depois de uma hora de exaustivo trabalho e consultas, Cleber
Petrus esticou-se um pouco na cadeira de couro, e logo em seguida
pôs-se em pé para esticar os nervos e relaxar. Acendeu o cachimbo
que já havia se apagado há algum tempo, foi até onde estava o bule
de café e murmurou consigo mesmo, depois de fazer evolar uma
densa fumaça azul e aromatizada por todo o ambiente: “Que loucura!
Qualquer dia desses eu ainda me arrebento!”
“Loucura? Como não pensei nisso antes? É isso! Acho que
essa pode ser a saída ! Insanidade mental temporária!” O pensamento lhe veio à tona na memória, como se fosse um balde de água
refrigerando um braseiro.
Deu outra puxada no cachimbo e voltou-se de onde estava,
andando apressadamente na direção da luxuosa mesa. Retirou o aparelho telefônico do gancho fazendo o disco girar com a ponta do dedo
indicador, iniciando uma ligação.
*
Quem o visse não poderia imaginar, muito menos acreditar.
Praticamente às vésperas de um interrogatório em um processo criminal, o doutor Fritzen von Keitel relaxava pescando no meio da represa.
Mantinha-se em pé no fundo do bote que balançava ao sabor
das pequenas marolas, que vez por outra batiam na pequena amurada
110
com força e respingavam em sua face. Havia enrolado a linha do
caniço umas cinco vezes ou mais para trocar a isca. Os oito exemplares de ótimo porte se reviravam dentro do punçá na água quando
o telefone celular tocou.
Neste exato momento, distraíra-se com um casal de frangos
d’água que beliscavam algo no meio de uma moita de capim plantado
em uma das margens, e não notou que a ponta de sua vara de náilon
arqueou por várias vezes, e o telefone também teve de tocar pelo
menos umas quatro.
Colocou a vara apoiada sobre o banco do bote e sentou-se em
cima dela para firmá-la enquanto atendia o telefone.
– Alô!
– Quem está falando?
– É o doutor Fritzen.
– Aqui é Petrus. Precisamos conversar !
– Pode ser por telefone mesmo?
– Creio que sim. O assunto é polêmico, mas não tomará muito
tempo.
– E de que se trata? É sobre minha audiência, claro.
– Sim. É sobre sua audiência, mas sobretudo a respeito de sua
defesa.
– O que está pensando?
– Vou direto ao assunto. Preciso saber o que você realmente
pensa. O que acha de alegarmos insanidade temporária?
Como sabia que seu cliente iria pensar e refletir por alguns
segundos pelo menos, Cleber acendeu novamente o cachimbo e levou-o à boca, preparando-se para puxar a fumaça.
Tinha razão. Um longo instante de silêncio mostrou que o assunto havia pegado o seu cliente completamente desprevenido.
Fritzen jamais havia pensado nisso, e não gostou do que ouviu.
Não pelo fato de poder ser chamado de louco amanhã ou depois pela
imprensa sensacionalista, mas porque resolvera assumir a coisa como
se fosse idealismo. Acreditava sinceramente que o que havia feito
não era crime. Havia libertado aquelas pacientes. Não as havia exe111
cutado friamente como alguns queriam mostrar ao mundo. Ninguém,
a não ser ele mesmo, havia visto a expressão de felicidade e alívio no
rosto delas.
Segundos depois respondeu secamente:
– Não! De jeito nenhum. Não quero que vá por esse caminho!
– Foi o que pensei. Mas insisto em lhe dizer que seria a melhor
saída que temos no momento, na estratégia de sua defesa.
– Melhor saída? Ser declarado louco, insano, e ser trancafiado
em um hospício pelo resto da vida? E em que condições? Só Deus
sabe. Definitivamente não quero, doutor. Tem de ser de outra forma.
Um breve silêncio demonstrou que Cleber estava absorvendo
a resposta de Fritzen. Deu outra puxada na fumaça do cachimbo,
refletiu no que ia dizer e falou:
– Então o senhor vai assumir os crimes?
– Não cometi crimes. O que eu lhe contei, não considero como
crime algum. E não é o mesmo que disse na delegacia, e não será o
que vou dizer nunca, nem durante o interrogatório perante o juiz.
Fritzen respondeu com irritação, e Cleber teve de afastar o
fone do ouvido para evitar o incômodo. Depois, tentando amainar o
tom da conversa, perguntou em forma de sugestão:
– E o que espera que eu faça, então?
– Isso é problema seu. Mas experimente dizer que eles não
têm nenhuma prova concreta contra minha pessoa em que possam
se firmar!
– Eles têm as testemunhas que viram que o senhor foi o último
a estar ao lado das vítimas antes de elas falecerem! Não acompanhou as declarações delas?
– Palavras! Elas me viram dar atendimento às pacientes, mas
não me viram matar ninguém, nem contribuir de qualquer forma para
que isso ocorresse. Não viram nada absolutamente, por isso terão de
mentir, se quiserem voltar atrás e falar que me viram fazendo algo
desse tipo. Mas eu creio que nenhuma delas ousará se comprometer
com um falso testemunho.
Cleber deu outra puxada no cachimbo, soltou a fumaça e falou
novamente depois de refletir:
112
– Bem, então se você quiser aliviar um pouco a situação, porque não tenta fazer um acordo com a promotoria pública dizendo
onde e de quem conseguiu a droga.
– Onde consegui a droga? Ora! Foi no hospital! Onde mais
iria conseguir? Lá temos um estoque daquilo.
– Um estoque de curare no hospital? O que fazem com isso lá?
– Curare? Quem falou em curare? Não é disso que eu estou
falando, e jamais toquei nisso! Em momento algum aproximei esta
droga letal de meus pacientes.
Fritzen von Keitel exaltou-se, quase a ponto de fazer o barco
virar no meio da represa. Tinha estado em pé equilibrando-se em seu
fundo até aquele momento, depois resolveu se sentar para terminar o
assunto com o advogado.
Cleber foi pego completamente de surpresa com a resposta,
pois tinha quase certeza de que Fritzen tinha conhecimento do curare.
Colocou o cachimbo de lado e indagou falando claramente:
– O que está dizendo, doutor Fritzen!? Que não usou curare?
Não injetou curare em nenhum de seus pacientes terminais?
– Exatamente! Nunca usei curare! Nem mesmo toquei em
curare durante toda minha vida!
– Mas foi curare que eles encontraram nos corpos exumados!
É o que consta nos autos! Se não foi isto, o que você usou então?
– Usei o anestésico! Morfina! Às vezes dolantina, às vezes
fentanil ou qualquer uma outra variação da morfina! Talvez tenha
exagerado nas doses, mas sempre tive o intuito de aliviar as dores
das pacientes. Tudo que fiz foi movido por pura compaixão a elas.
Cleber imaginou que com esta informação as coisas poderiam
ficar muito melhores do que estavam. Se Fritzen dizia nunca ter usado curare, então quem teria injetado aquilo nas pacientes que morreram? Se o cliente pudesse provar que somente havia injetado o entorpecente que dizia, poderia se safar da acusação de homicídio.
– Tem como provar o que está me dizendo?
– Não sei como. Mas tenho todas as embalagens vazias e
seringas utilizadas para cada paciente guardadas e etiquetadas com
as datas. Não é suvenir. Simplesmente achei que deveria guardá-las.
113
– E os outros casos? Os casos que ocorreram na Argentina?
E outros aqui mesmo no Brasil que conseguiram levantar? Em tantos
outros que ocorreu o óbito de seus pacientes?
– Também não provam nada. É mera especulação. E não é o
caso nesse processo.
– Mas um júri não funciona assim, doutor Fritzen . O promotor
apresentará suas provas; são circunstanciais, mas mesmo assim fará
o que puder e mais um pouco em plenário para convencer os sete
jurados de que o senhor é culpado e deverá ser jogado em uma cela
qualquer para o resto de sua vida. Tentará qualificar o crime de todas
as formas que puder e pedirá a mais alta pena, tenha certeza!
– Desculpe-me, mas é para isso que lhe pago. Para me defender e fazer com que a tese dele venha ao chão.
Cleber fez alguns instantes de silêncio, e quando o médico o
interpelou pelo telefone, falou que estava pensando um pouco, depois
respondeu:
– Dessa forma, a coisa fica diferente. Terá de me dar essas
embalagens em segredo para que eu as apresente em juízo como
parte das provas de sua defesa. Posso saber onde estão?
– Estão aqui mesmo na chácara. Sempre as guardei aqui.
– Estou indo agora mesmo até aí. Assim que chegar em Igaratá,
vou ligar para que me encontre com os frascos. Mas traga todos. Até
mais tarde então.
O médico respondeu ao cumprimento do advogado e teve tempo de ouvi-lo murmurar algo parecido como “Deus nos ajude”, antes
que desligasse o telefone. Em seguida recolheu a linha, enrolando o
molinete. Depois de verificar que a maior parte da isca havia sido
surrupiada pelos lambaris, resolveu remar até a margem e ir para
casa ao encontro da mulher Inga.
Já não estava mais tão relaxado como havia estado antes de o
telefone celular tocar.
114
Onze
Os funcionários no galpão onde funcionava a fábrica de urnas
funerárias terminaram de preparar os pedidos que haviam sido encomendados e passaram o resto da manhã esperando que alguém da
loja funerária lhes telefonasse. Até a hora do almoço ninguém ligou, e
tampouco Euclides apareceu para inspecionar a produção como de
costume.
Um dos funcionários, o encarregado da turma, achou por bem,
e para o desagrado dos outros que estavam gostando do descanso
não programado, ligar para a loja funerária e procurar saber o que
estava acontecendo.
Desceu pela escada que dava para a sala do patrão no subsolo e parou próximo ao aparelho de telefone na pequena ante-sala.
Outros dois desceram com ele.
Enquanto o encarregado falava com o rapaz da funerária, os
outros notaram que seu semblante foi ficando um pouco diferente,
como que indignado, até que desligou.
– Estranho! Falaram que saiu de lá desde anteontem à noite e
não voltou até agora!
– Quem falou?
– O rapaz que trabalha na recepção.
Neste instante, um dos rapazes olhou na direção da porta do
escritório e exclamou espantado:
– Ei! Olhe a porta do escritório! É estranho, pois o patrão
nunca a deixa aberta.
Assim que os outros ouviram o homem gritar enquanto apontava com o indicador na direção da porta entreaberta, o encarregado
saiu andando lentamente naquela direção, seguido pelos outros dois.
Empurrou a porta vagarosamente com o bico do sapato, até
que se abriu o suficiente para que pudessem passar.
115
Ninguém se manifestou além da conta, mas todos se espantaram com o que viram à frente.
A escrivaninha do chefe estava toda desarrumada, o cofre
estava aberto, e um dos armários de aço próximos da mesa mostrava
um amassado na lateral, como se tivesse tomado uma forte pancada
com algo do tamanho de uma bola de futebol.
No chão, perceberam que alguém havia limpado o que parecia
ter sido antes uma enorme poça de sangue, e deixara jogada uma
ponta de charuto barato toda molhada e mordida.
Sem tocar em absolutamente nada com as mãos desprotegidas,
os três recuaram, prendendo o fôlego quase sem respirar até a antesala. Não puderam evitar de pisar um pouco em cima da mancha de
sangue mal limpa e misturada com terra que provavelmente havia
sido carregada por algum par de sapatos desde o pátio externo.
– Temos que avisar a polícia! Alguma coisa não muito boa
aconteceu aqui com certeza! Não toquem em nada!
O encarregado falava, esperando que a opinião dos outros dois
fosse unanimemente contrária, mas somente um deles é que respondeu:
– Será que não temos outra saída? Eles vão suspeitar de nós
de imediato!
– Isso é inevitável. Mas não devemos nada. Por acaso você deve?
O homem se empertigou de repente e respondeu:
– É claro que não! Que pergunta absurda é esta?
Novamente o encarregado dos funcionários apanhou o telefone
e efetuou uma ligação para a funerária. Avisou o rapaz de que iria
chamar a polícia relatar tudo, inclusive o que ele havia lhe dito a respeito da noite em que o patrão saiu da loja acompanhado do outro homem.
Quando saiu da fábrica, tentando respirar um pouco, encontrou um dos funcionários que o acompanhara agachado junto ao pé
de uma parede e pálido como um boneco de cera. O rapaz, demonstrando estar apavorado, fumava um cigarro apressadamente. O chefe encarou-o por alguns segundos, pensou algo, depois balançou a
cabeça tentando desfazer o pensamento e saiu de perto.
*
116
O doutor Fritzen von Keitel não se lembrava de mais ninguém
que houvesse conseguido escapar com vida da fatídica noite de 1968.
Nunca mais vira ninguém. Nem mesmo a bela Larissa Karmov.
Haviam tido um filho, muito antes de ele se casar com a jovem
Inga.
Fritzen nunca soube do garoto, não chegou ao menos a conhecêlo depois, e não soubera sequer da gravidez pois ela lhe ocultara.
Acabaram com o romance por ela achar que não ia dar certo a atividade política clandestina conciliada com a família, mas nunca admitira isto a Fritzen.
Naquela noite minutos antes da prisão, quando então já estava
casado, recordava-se somente de tê-la visto sumir sozinha no meio
da confusão. Nunca mais a vira, tampouco o pequeno garoto que de
vez em quando era visto rapidamente em sua companhia .
Na época, vendo o garoto, Fritzen chegou a pensar por várias
vezes que se tivesse tido um filho com Larissa abandonaria tudo e se
casaria com ela. Mas também nunca lhe dissera isto.
Agora ela havia surgido repentinamente, aparecendo ali no
fórum como se tivesse vindo do nada. Tinha absoluta certeza de que
era ela mesmo. Reconheceu sua voz um tanto desgastada pelo tempo quando entrou na sala de audiências, mas não pôde fazer nada.
Depois de muitos anos seria o primeiro contato, e de uma forma um
tanto dolorosa para os dois. Quis se levantar para falar com ela, ou
fazer qualquer coisa em favor dela, mas foi impedido pelo advogado
Cleber. Nem ao menos sabia que ela havia sido arrolada como testemunha no seu processo. Achou que era pura coincidência, obra do
destino, ela ter surgido exatamente naquele momento, bem ali. O advogado lhe disse depois que poderia ser uma das testemunhas.
Fritzen resolveu que tentaria encontrá-la novamente, de qualquer jeito.
*
Natanel Guzman já estava no local onde lhe disseram pelo telefone haver uma grande mancha parecida com sangue. Enquanto
olhava tudo e examinava minuciosamente, segurava um cigarro aceso entre os dedos. A fumaça subia fazendo cobrinhas até o teto um
117
tanto baixo e se acumulava ao redor da fraca lâmpada que ansiava
por iluminar o local úmido e embolorado.
Cerca de uma hora antes, o delegado havia passado na funerária para conversar com o garoto da recepção e constatou, depois de
retirar de um dos bolsos o cartão que lhe havia sido entregue por
Clecir Marotti, que aquela loja tratava-se do mesmo local identificado
no cartão. O rapaz disse que o patrão estava desaparecido havia
mais de trinta e seis horas.
Enquanto os peritos examinavam e fotografavam o local,
Natanael Guzman se agachou e apanhou do assoalho velho um pouco de terra, juntamente com uma ponta de charuto, e colocou tudo
dentro de um pequeno saco plástico. “É terra lá de fora! Do pátio!”,
pensou. Ele próprio se encarregaria depois de levar o material até os
peritos para a análise.
Chamou um dos funcionários da fábrica, e um dos policiais que
o acompanhavam, e saiu, procurando por mais pistas, como se fosse
um cão sabujo farejando. Alguma coisa lhe dizia que quem quer que
tivesse carregado o corpo de alguém dali de dentro não teria levado
para longe. Havia muito mato por perto, o suficiente para esconder
um exército, e não somente um corpo. Por isso o suposto criminoso
ou criminosa não iria se dar ao trabalho de ir muito longe.
A tarde já havia caído bastante e, pelo fato de os dias serem
curtos nessa época do ano, já estava escurecendo. Um relâmpago
rasgando o céu no horizonte, mas não muito longe, prenunciava chuva dentro das próximas horas, talvez.
Assim que saiu do galpão, alisou os cabelos que lhe caíam sobre a testa e percebeu, olhando para o chão, que havia uma dúzia de
marcas de sapatos ali. Porém, algumas poucas um tanto mais profundas iam no sentido dos fundos do velho edifício, na direção da mata
próxima.
Presumiu que as mais profundas que se afastavam eram de
alguém que carregava um peso maior do que o seu, possivelmente
um corpo.
Deu uma última tragada no cigarro, jogou a ponta fora e virouse para o policial que o acompanhava, ordenando:
– Vá até a viatura e traga uma lanterna, por favor.
118
Depois perguntou ao funcionário:
– O que tem lá atrás? Tem algum cão de guarda?
– Não, senhor. Somente os fundos da fábrica, e sem a cerca.
O resto é tudo mato.
O policial, que já voltara, aproximou-se e entregou uma lanterna já acesa nas mãos do delegado Natanel Guzman, que a apagou em
seguida para economizar pilhas até que chegassem à beira do mato
mais denso.
Continuou seguindo sua intuição, depois que as pegadas haviam
desaparecido, mas uma espécie de trilha feita com o mato amassado
lhe indicava por onde deveria caminhar.
O pequeno grupo caminhou cerca de 200 metros no meio do
mato já um pouco molhado por uma leve chuva de minutos antes, com
uma dificuldade que fazia parecer que haviam sido dois quilômetros.
Desde criança sempre ouviu os mais velhos dizerem que a
água puxava a energia das pilhas das lanternas, e era o que estava
parecendo naquele momento. A lanterna já pouco clareava, fazendo
com que tudo ficasse quase completamente às escuras à frente do
grupo. Guzman passou a palma de uma das mãos na testa e percebeu
que começavam a pingar as primeiras gotas de uma nova chuva.
Repentinamente, chegaram a uma pequena clareira, e o pé de Guzman
afundou no solo lamacento até o meio da canela, parando em algo um
tanto macio abaixo da superfície.
Esboçou um grito de susto, mas sufocou-o, soltando apenas
uma exclamação e um impropério:
– Porra! Isto aqui está afundando!
O policial que vinha um pouco mais atrás segurou-o instintivamente por um dos braços e ajudou-o a retirar a perna do barro. Seu
coração batia em ritmo muito mais acelerado do que o normal, e seu
cérebro lhe transmitia o horror da descoberta através dos nervos,
pois sabia que havia pisado em algum cadáver enterrado. Poderia ser
algum animal morto. Mas tinha quase certeza de que era o corpo do
dono da funerária que estavam procurando.
A chuva já caía em torrentes a esta altura dos acontecimentos,
e o vento fazia com que galhos pequenos das árvores próximas caís119
sem bem perto deles. Mesmo assim, resolveu que deveriam cavar
naquele local para se certificarem de que realmente era o homem
enterrado ali.
O funcionário da fábrica prontificou-se a arrumar as ferramentas para ajudar a cavar.
Provavelmente o que estivesse enterrado ali não estaria a mais
de trinta centímetros. Teriam cuidado, e não muito trabalho.
Alguém já havia providenciado outra lanterna, que estava um
pouco melhor do que a primeira. Guzman segurava-a com uma das
mãos, e com a outra segurava o paletó sobre a cabeça na tentativa de
impedir que a chuva e os galhos o açoitassem. Pensou em acender
outro cigarro, mas desistiu logo por causa da chuva.
O funcionário da fábrica foi quem gritou, quando as primeiras
pás de terra retiradas começaram a liberar o corpo:
– É ele! Não é um cachorro, não! É gente!
– Cuidado, então! Retirem a terra com cuidado para não voltar a desmoronar tudo. Assim que liberar um pouco mais, tentaremos
retirá-lo daí.
As primeiras partes do corpo que surgiram um pouco mais
limpas da lama mostraram uma coloração branca esverdeada, e sua
face já dava sinais de decomposição, mostrando um grande número
de vermes que entravam e saiam de seus orifícios.
Os vermes o haviam atacado não tanto pelo tempo em que
estava ali enterrado, mas muito mais pelo fato de que perto do local
devia haver algum chiqueiro de porcos, pelo que se podia ouvir. Isto
fazia com que o solo de suas proximidades se tornasse propício à
proliferação de qualquer tipo de vermes.
– Tenham cuidado! O corpo pode se desmanchar, e teremos
que recolher tudo!
Guzman falava abafado, pois a mão que antes segurava o paletó sobre a cabeça agora tapava-lhe a boca com o mesmo. Provavelmente a pá do funcionário havia ferido o abdome do cadáver, pois
o cheiro nauseabundo que subiu da cova, acompanhado por uma espécie de vapor, era muito forte. Todos se afastaram um pouco, dando
alguns passos para trás, e o policial correu até onde estava a viatura
120
para trazer alguns pares de luvas cirúrgicas que eram utilizadas em
ocorrências que envolviam sangramentos .
Quando retornou, a lanterna de Natanael Guzman iluminava o
rosto deformado, já em início de putrefação, e o funcionário já havia
confirmado. Era mesmo Euclides Borges, seu patrão. Um orifício
perto de um dos ouvidos ainda deixava escorrer uma mistura de fluidos esbranquiçada que já não era mais o sangue puro. Guzman teve
a impressão de que o cérebro do homem estava se desmanchando e
saindo por ali, onde antes havia entrado um projétil qualquer.
Afastou-se dali, e a primeira coisa que fez foi acender um cigarro e tragar profundamente a fumaça, expelindo-a pelas narinas
depois.
“Realmente não posso ficar sem isso!”, pensou enquanto olhava para o cigarro preso entre os dedos.
Um dos policiais foi designado para ficar ali mesmo, no meio do
mato, guardando o corpo, enquanto esperava o carro de cadáveres.
Era uma tarefa nada agradável, e Guzman sentiu-se satisfeito
por não ser ele o obrigado a ficar ali sozinho no meio da noite.
Seria difícil dizer a que hora o rabecão iria chegar para levar o
corpo. Poderia mesmo levar horas noite adentro.
121
122
Doze
Larissa Karmov assistia aos jornais de todas as emissoras, e
seu estômago revirava de raiva. Havia sido traída. Não era nada
daquilo que deveriam colocar no ar. “Fritz” era um bom e amável
homem. Não era aquele monstro que estavam dizendo. Teria de encontrar uma forma de ajudá-lo. Sua mente trabalhava sem deixar que
dormisse, até que se lembrou de que conhecia alguém a que talvez
pudesse recorrer.
Gostava de pensar que o filho Igor não imaginava jamais que
aquele homem era seu pai e, mesmo se soubesse, estava morando na
Suíça, e não iria sentir muito de perto o sofrimento do velho.
Era o que estava pensando, enquanto passava as páginas de
sua agenda telefônica, sentada na beirada da cama. Encontrou o número do telefone exatamente quando o cuco na parede bateu três
badaladas. Achou melhor não ligar àquela hora . Pensou que não
seria muito bom pelo fato de ser uma mulher idosa, além do que
Arthur Nimitz poderia não gostar.
Foi até a cozinha, abriu a geladeira e pegou um pouco de leite.
Depois esquentou e tomou um copo açucarado. Retornou para o quarto e voltou a se deitar, puxando o acolchoado para cima de si até a
altura do peito. O corpo tornou a se aquecer, e ela se sentiu bem mais
confortável e relaxada.
Tentaria pregar os olhos e dormir o restante da madrugada
para refazer-se do cansaço de quase uma noite toda acordada.
*
O rapaz levantou-se bem cedo, um pouco mais do que de costume, e foi para a loja.
Assim que entrou, pegou uma folha de papel em branco e escreveu com um pincel atômico: “Fechado por luto”. Em seguida colocou quatro pedaços de fita adesiva no verso do papel e o colou do
lado de fora da porta.
123
Poderia parecer engraçado. Quem visse poderia achar que se
tratava de alguma piada. Uma funerária fechada por luto! Mas infelizmente não era uma piada. O patrão do rapaz se havia ido, e com
ele talvez seu emprego.
Quando terminou de colocar o cartaz avisando do luto, dirigiuse para a delegacia, onde iria se encontrar com o delegado Natanael
Guzman.
Na mesma noite em que fora encontrado, o corpo de Euclides
foi trasladado para o necrotério do Campo Santo; em seguida, saiu
fechado numa urna lacrada para o crematório de Vila Alpina.
Provavelmente os serviços funerários se encerrariam naquela
tarde mesmo.
O rapaz não iria poder comparecer; estaria na delegacia,
provavelmente enrolado com uma porção de perguntas, das quais
esperava poder responder satisfatoriamente pelo menos a metade.
Quando passou pela recepcionista velha e enrugada, ela levantou os olhos que garimpavam o fundo de uma pequena vasilha de
doce de banana; com uma mão a segurava e com a outra raspava o
fundo com uma pequena colher de plástico.
A mulher, levantando o quanto podia o queixo, ouviu o rapaz
perguntar onde ficava a sala do delegado e, como se apontasse com
a grande verruga pregada sobre o nariz, indicou a direção.
O moço caminhou até a porta, pediu licença e entrou. O delegado, que segurava em uma das mãos o telefone e com a outra mão
brandia um cigarro aceso preso entre os dedos, mandou que se sentasse e aguardasse um instante. A cada elevação da voz ao telefone,
Guzman gesticulava com o cigarro espalhando cinza por toda a mesa.
O moço julgou que o policial devia estar nervoso com alguém
do outro lado da linha, e conseqüentemente isto o deixou bastante
apreensivo.
Natanael Guzman desligou e, depois de dar mais uma tragada
no cigarro, perguntou sorrindo se o jovem queria tomar alguma coisa,
talvez água, ao que o rapaz agradeceu. Em seguida, iniciou a conversa perguntando seu nome completo e lhe pedindo que relatasse tudo
o que lembrava referente ao dia em que o patrão desaparecera da
124
loja funerária. Neste momento impunha um tom inquisidor na voz,
mas não mais ameaçador, como antes havia parecido ao rapaz.
Gostava de deixar muito à vontade as pessoas que tinham alguma coisa a lhe dizer, pois assim evitaria qualquer bloqueio que viesse a provocar um possível esquecimento.
Detestava quando alguém lhe dizia : “Deu branco doutor! Eu
não me lembro disto que está me perguntando!” Fez um inocente comentário sobre o aquário e esperou que o jovem começasse a falar.
O rapaz começou a lhe relatar o que lembrava, deixando transparecer que já estava se sentindo um pouco mais à vontade.
– Tudo correu normal durante o dia inteiro, até a hora em que
aquele homem entrou pela porta adentro.
– Você já o havia visto ali alguma outra vez?
– Sim. Pelo menos uma vez há um tempo.
– Quanto tempo?
– Não sei. Talvez um ano ou mais.
Guzman deu outra profunda tragada no cigarro e escreveu alguma coisa numa folha de papel que estava em cima da mesa, depois
continuou:
– E como ele era?
– Era alto, magro e possuía uma cabeleira loura e comprida.
Podia-se ver por baixo alguns fios de cabelo branco. Talvez estivesse
usando uma peruca amarrada em forma de rabo de cavalo.
– Era velho? Era novo? Lembra-se bem deste detalhe?
– Não. Seu rosto sempre esteve bem protegido de uma forma
ou outra. Usava óculos escuros mesmo à noite, e a gola do casaco
estava sempre levantada. Não sei precisar se era jovem ou velho.
Guzman jogou o cigarro fora, numa caixa com areia em um
dos cantos da sala, anotou algo novamente na folha de papel e voltou a perguntar:
– Ouviu eles conversarem?
– Sim. Estiveram conversando lá dentro por um bom tempo.
O louro às vezes gritava muito alto. Por diversas vezes cheguei a
pensar que estivessem brigando, até que saíram juntos de lá.
125
– Nenhum dos dois lhe fez qualquer comentário no momento
em que saíam da loja?
– O Euclides me olhou de uma forma que achei que queria me
dizer algo, mas ficou só nisso. Não disse nada, e a partir daí não o vi mais.
O rapaz não tinha mais do que dezessete anos, e sua fragilidade emocional estava evidenciada pelas lágrimas que corriam sutilmente pelo canto dos olhos. Passou a manga da blusa pelo rosto,
tentando limpá-las, e Natanael Guzman decidiu que iria parar de
questioná-lo depois de alguns minutos mais somente.
– Só mais um detalhe. Acha que poderá reconhecê-lo se o vir
de novo?
– Com certeza. Mas não quero me defrontar com ele nunca mais!
Outra anotação, e Guzman falou, finalmente tranqüilizando o
moço:
– Fique tranqüilo. Se for preciso arrumamos um jeito para que
ele não possa vê-lo. Pode ir. Está dispensado por agora.
O moço agradeceu, pediu para ir até o banheiro onde lavou o
rosto e tomou um pouco de água fazendo um concha com as mãos
sob a torneira do lavatório. Depois acenou para a recepcionista
enrugada e foi embora.
Natanael Guzman ficou parado, como se pensasse algo, sentado
na cadeira com os cotovelos apoiados sobre a mesa, segurando o queixo. Pensou na descrição do homem louro que o rapaz lhe dera e a
fisionomia do doutor Fritzen lhe surgiu imediatamente à mente. Balançou a cabeça e pensou: “Impossível! Tem de ser coincidência!”
Continuou pensando e tentando raciocinar, e se questionava
como poderia ser a ligação de Fritzen com Euclides.
“E se houvesse uma ligação, por que o mataria depois?”, pensou,
O cartão de visita que Clecir Marotti havia lhe entregado estava em cima da mesa à sua frente, e ele olhava fixamente para ele,
como se quisesse retirar alguma informação escondida de dentro do
mesmo com a mente.
Lembrou-se de vários casos de que já tinha tido conhecimento, a
respeito de pessoas que vitimavam propositadamente pacientes hospitalares e mantinham uma espécie de convênio ilegal com lojas funerárias.
126
Mas este não era em absoluto o perfil de Fritzen von Keitel e,
ademais, tinha conhecimento de que ele era financeiramente privilegiado e não precisaria recorrer a expedientes daquela natureza para
ter mais dinheiro. Era o que sabia. Porém, ainda não sabia se o médico poderia estar quebrado ou não. Poderia ter dívidas! Poderia ser
um jogador compulsivo e estar devendo dinheiro para alguém!
Natanael Guzman pensava estas coisas, e a cada assalto de
idéias balançava freneticamente a cabeça, não querendo aceitar tal
possibilidade. Mas teria de investigar, passando por todas as linhas
hipotéticas. Sabia disso perfeitamente.
No instante em que acabava de acender outro cigarro e pensava nas inúmeras possibilidades em torno do caso, o telefone sobre a
mesa tocou e Guzman atendeu:
– Alô!
– É o delegado Natanael Guzman?
– Sim, sou eu mesmo. Quem está falando?
– Por enquanto não quero dizer meu nome. Só quero lhe relatar algo.
– Então continue falando. Importa-se de me dizer de que se trata?
– Vi o caso do médico na televisão!
Calmamente Guzman tragou o cigarro e, depois de soltar a
fumaça, falou:
– Sim. E daí? Muita gente viu. A televisão é para isso, não é?
– Daí que minha irmã está internada no Monsenhor Vasquez
para retirar uma pedra da vesícula, e estou temendo por ela!
– Não acha que está se precipitando um pouco, senhor?
– É ... Talvez esteja mesmo me precipitando, doutor.
O delegado então percebeu tratar-se de uma mulher, corou a
face e perguntou:
– Se pensa assim, então por que me ligou, senhora?
Um breve silêncio se fez na ligação telefônica, e depois a mulher continuou:
– Não teria ligado se não fosse por algo que me aconteceu
ontem logo que ia saindo da visita! Uma pessoa se aproximou de
127
mim, fez algumas perguntas so3bre minha irmã e descaradamente
me entregou um cartão de funerária dizendo que eu poderia usá-lo se
fosse precisar do serviço. Quis realmente ter podido estrangulá-la
naquele momento, mas limitei-me a lhe dizer que minha irmã não iria
morrer, que seu caso era simples. Depois ela se desculpou de todas
as formas possíveis no momento e foi embora.
– A senhora devolveu-lhe o cartão?
– Não. Esta mesma pessoa quis tomá-lo de mim, mas em
seguida apareceu o guarda da segurança do hospital, ela se apavorou
e eu consegui despistá-la.
– Está ótimo. Ainda tem o cartão com você?
– Sim. Estou com ele aqui na minha bolsa!
Natanael Guzman pediu que a mulher pegasse o cartão de dentro da bolsa e o lesse para ele. Não era um cartão igual ao que estava
em cima da mesa.
“Mas é claro! Isto não tem lógica alguma!” O tirocínio policial
do delegado falou mais alto neste momento. Concluiu que se alguém
estava fazendo o que ele pensava, não iria fazer mais com a funerária de Euclides. Iria fazer com outra que mantivesse o mesmo esquema corrupto.
Minutos depois, ainda pelo telefone, pediu que a mulher lhe
trouxesse o cartão o mais rápido possível, e que fizesse a gentileza de
comparecer à delegacia para terem uma conversa. “Teremos um
bate-papo!”, foi o que falou. A mulher disse que viria em seguida,
mas Guzman duvidava. Provavelmente era como tantas outras pessoas não gostavam de delegacias, tanto que não se identificou.
– Essa pessoa! Era homem ou mulher?
A mulher já havia desligado o telefone, e o bip intermitente
ficou ressoando no ouvido de Guzman.
“Tudo está começando a fazer sentido! Só preciso identificar
quem está oferecendo os serviços funerários para ter certeza!” , foi
o que pensou quando se levantou e saiu de sua sala para se reunir
com o chefe, o delegado titular.
Cerca de quarenta minutos depois da conversa pelo telefone,
Natanel Guzman pisava o último degrau da escadaria principal na
128
direção da rua com um cigarro fumegando preso aos lábios, quando o
chão tremeu sob seus pés.
Ouviu o barulho ensurdecedor da explosão, e quando pensou
em virar para trás para ver de onde vinha o estrondoso barulho, seu
corpo girou mais impulsionado pelo golpe no meio das costas, do que
pela força das próprias pernas.
Quando caiu batendo pesadamente na calçada, Guzman percebeu em fração de segundos que suas pernas não estavam mais
com ele. Ou pelo menos não mais as sentia. Antes de desfalecer de
uma vez, pôde ver os quatro indivíduos armados de fuzis e metralhadoras sumirem por entre a poeira provocada pela queda de uma das
paredes da delegacia e saírem minutos depois com um dos presos
mais bem guardados do local. Em seguida, seus olhos se fecharam
completamente e não mais se abriram.
Assim que as primeiras pessoas começaram a se aproximar
do local da explosão, entre os policiais alguns curiosos talvez com
intenção de ajudar em algo, verificaram que apesar dos estragos somente duas das vítimas eram fatais.
Entre elas, uma mulher que segurava entre os dedos um cartão
de visitas de uma funerária.
129
130
Treze
Fritzen von Keitel era declaradamente contra a automedicação,
por isso, quando o envelope com o resultado de uma tomografia
computadorizada de seu crânio lhe chegou às mãos, apesar da curiosidade que lhe tomou, manteve-o fechado para que posteriormente
viesse a ser aberto pelo seu médico. Dirigiu-se à clínica particular do
médico que o tratava, não muito longe do Monsenhor Vasquez, e
ficou aguardando na sala de espera, até que ele o chamasse .
A recepcionista, uma morena sensual de um andar mais sensual ainda, assim que recebeu o doutor Fritzen tomou-lhe delicadamente o envelope das mãos. Logo que soube do que se tratava, voltou balançando suavemente os quadris na direção da porta do consultório, onde provavelmente estaria o médico.
Fritzen não conseguiu desviar os olhos das nádegas torneadas
da moça, cuja minúscula calcinha transparecia por baixo do fino tecido branco de sua apertada calça comprida.
Depois que a moça desapareceu pela porta adentro, passou a
se distrair com as velhas revistas e um jornal do dia que estavam
sobre a mesa em um dos cantos da sala.
Estava lendo na primeira página do jornal a notícia que relatava a explosão na delegacia, que havia vitimado fatalmente o delegado
Natanael Guzman. Não teve tempo de ler completamente a notícia,
pois uma paciente acabara de sair do consultório, e a recepcionista o
chamou para que entrasse, deixando-o a sós com o médico.
A porta foi fechada atrás dele, e Fritzen percebeu imediatamente que o neurologista já havia lido o laudo de seu exame e mantinha uma expressão tensa e preocupada, olhando para os papéis sobre a mesa à sua frente.
O homem se dirigiu a ele levantando rapidamente a cabeça e disse:
– Por favor, doutor Fritzen. Sente-se aí e fique à vontade.
– Obrigado.
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Fritzen sentou-se na cadeira bem à frente do médico e, depois
de estender a mão cumprimentando-o, aguardou até que ele terminasse de ler a conclusão do relatório. Quando o homem terminou,
Fritzen falou meio sorridente:
– Então! como estou de cabeça?
O médico abafou um sorriso, achando interessante a expressão de Fritzen, e respondeu:
– Bem. Creio que, de certa forma, nós médicos temos uma
vantagem em relação às outras pessoas, quando se trata de encarar
certas situações. E o senhor, em especial, por tratar na maior parte
de sua vida de pacientes em situações delicadas, presumo eu, deve
saber encarar estas coisas com mais frieza ainda.
– Aonde o senhor que chegar? Saiba que este rodeio de médicos nunca foi o meu forte. Pode parar com o suspense, por favor.
– Sua situação é delicada demais. Por acaso trabalha muito
perto de algum aparelho de raio X?
– Entendo aonde quer chegar! Tenho câncer. Não é mesmo?
E é grave?
– Sim...
O neurologista aguardou alguns segundos, esperando alguma
reação do colega médico, e depois continuou falando:
– Realmente é grave, tanto que vou providenciar sua internação
imediatamente! Terá q...
O médico iria dizer que o doutor Fritzen teria de se submeter a
uma cirurgia o mais rápido possível, quando foi interpelado por Fritzen
e não conseguiu concluir a frase.
– Quanto tempo mais eu tenho?
– Tem de ser operado com urgência!
– De vida! Quanto tempo de vida ainda me resta?
– Difícil saber, doutor. Só posso afirmar que seu caso é muito
grave. Há quanto tempo tem sentido dores de cabeça?
– Há muito tempo. Desde que recebi uma bala no crânio há
alguns anos atrás.
O médico neurologista arregalou os olhos numa expressão de
espanto e não quis acreditar no que acabara de ouvir. Havia notado
132
aquelas marcas nítidas na imagem fotográfica do crânio de Fritzen
von Keitel, mas não quis lhe perguntar diretamente o que havia sido
aquilo. Agora sabia. Uma bala!
Pegou novamente as chapas radiográficas e falou:
– Mas como foi isso? Pelo que vejo aqui é praticamente um
milagre que ainda esteja vivo!
Sem saber por que, subitamente Fritzen teve vontade de
fumar.
– Tem um cigarro?
– Sim. aqui está.
O neurologista lhe estendeu um maço de Carlton, e depois perguntou novamente:
– E então? Como foi isso?
Fritzen deu uma tragada no cigarro recém-aceso, tossiu bastante e depois respondeu, enquanto o abandonava dentro de um cinzeiro próximo:
– São lembranças da ditadura militar. E não queira saber como
foi esse milagre. É uma longa história. Estive dado como morto e
enterrado por várias horas.
– Isso só nos preocupa mais! Terá mesmo de ser operado
com urgência! Vou marcar sua internação para amanhã depois do
meio-dia.
– Não!
– Como assim, não? Você pode morrer de uma hora para
outra!
– Doutor Plínio, por favor olhe bem para mim!
Fritzen estendeu os braços e pegou o colega pelos ombros enquanto continuava falando:
– Acha mesmo que isso agora me fará realmente alguma
diferença? Acha mesmo?
– Isso não quer dizer que está desistindo da vida a essa altura!
Está?
O homem praticamente esbravejou perguntando, e Fritzen o
soltou, respondendo mansamente:
133
– Não. É que na verdade tenho alguns compromisso que serão inadiáveis para os próximos dias. E depois de tudo o que já passei,
isso não me assusta mais. Passe-me por favor a receita dos analgésicos que eu lhe fico muito grato.
O médico fez menção de perguntar à Fritzen von Keitel quais
compromissos eram tão importantes a ponto de precederem a uma
cirurgia tão melindrosa quanto aquela, mas não perguntou.
Afinal, já sabia de tudo a respeito do processo que corria contra o colega na justiça. A todo o momento a imprensa estava tocando
no assunto, por todas as formas.
Fritzen agradeceu, disse-lhe que assim que pudesse marcaria
com ele a tal cirurgia. Iria continuar com os paliativos no combate à
dor. Levantou-se e saiu depois de se despedir do médico e da recepcionista, que lhe retribuiu amavelmente o sorriso.
O neurologista acendeu um cigarro e ficou fumando, pensando
em tudo o que vira e ouvira ali.
*
Arthur Nimitz recebeu o telefonema, e quando Larissa começou a lhe falar, imediatamente lembrou-se dela. Haviam estudado
durante parte da infância no mesmo colégio, mas não era disso que
Arthur estava se recordando especificamente.
Recordava-se de que estivera por mais de cinco meses internado no hospital onde Larissa Karmov era a enfermeira-chefe, e
ambos desenvolveram um relacionamento muito intenso na época. A
mulher fora de vital importância na elevação de seu moral, depois de
um acidente que fez com que tivesse de se submeter a uma certa
amputação.
Ela o fez entender e aceitar que aquilo fora um desígnio do
destino, e que ele não deixaria jamais de ser um homem por causa do
ocorrido.
A mulher era uma boa e sensível alma.
Na época, o ocorrido tendeu a se transformar em um boato,
mas devido à influência que Arthur Nimitz exercia junto aos órgãos
da imprensa em geral, nunca foi noticiada uma palavra sequer. Ne134
nhum outro jornalista se atreveu a explorar o assunto através da mídia.
Se o fizesse, com certeza teria sua carreira profissional encerrada a
partir de então.
Arthur passou anos afastado da televisão, do rádio ou de qualquer outro meio de imprensa, somente desfrutando da farta quantia
de dólares que havia conseguido acumular até a época do acidente.
Depois de muitos anos afastado, apesar de sempre estar nos
bastidores, voltara ostensivamente a ditar as regras do jogo que compõe a imprensa brasileira. Tornara-se um guru da imprensa, por assim dizer. Um consultor de mídia, ou um conselheiro jornalístico, se
preferissem chamá-lo assim.
Se Arthur dissesse que seria uma boa idéia anunciar a venda
de lotes na lua, todos os órgãos da imprensa iriam querer fazê-lo, pois
isso com certeza lhes renderia altos índices de audiência, os jornais e
revistas venderiam muito mais exemplares do que estavam habituados, etc.
Atualmente não mantinha qualquer vínculo com quem quer que
fosse. Seu escritório particular ficava no alto do edifício no número
112 da avenida Paulista, com uma enorme janela envidraçada que lhe
proporcionava a vista de todo o lado norte da cidade.
Acima de seu andar, ficava o heliporto, com uma biruta um
pouco surrada sempre balançando e indicando a direção do vento e
uma luz vermelha piscante que jamais se apagava.
Arthur Nimitz rolou o charuto de um lado para outro da gorda
e arredondada boca e atendeu a ligação.
Assim que pegou o gancho do telefone, teve de se acomodar
sentando rapidamente na cadeira, fazendo com que ela se abaixasse
até o batente da mola, sob os seus 150 quilos ou mais um pouco.
Quando do outro lado da linha a pessoa lhe disse que queria
falar com ele e que se chamava Larissa, suas lembranças mais profundas afluíram imediatamente e seu coração deu um sobressalto
dentro do peito. Tirou o charuto da boca e segundos depois respondeu um pouco ofegante:
– Larissa!? A enfermeira Larissa?
– Sim. Eu mesma!
135
Tentou colocar um certo controle na voz.
– Que satisfação! Sinceramente senti muito sua falta um dia
desses passados. Como está?
– Eu estou muito bem. E você? Como está?
– Estou melhor agora! Mas o que fez com que se preocupasse
em me ligar?
– Na realidade são problemas. Sinto ter de ligar para você
numa situação dessas, mas não tenho mais ninguém a quem recorrer.
Estou com um sério problema, e mais uma vez peço que me desculpe, mas acho que só você pode me ajudar.
Arthur colocou novamente o charuto na boca, tornou a acendêlo e perguntou com extrema amabilidade:
– E de que se trata? É de dinheiro que precisa?
– Não. Não é dinheiro. Antes fosse!
Arthur não compreendia, e ficou pensando o que poderia ser
pior do que a falta de dinheiro. Por uns instantes pareceu que havia
se esquecido dos seus problemas passados, os quais não haviam sido
falta de dinheiro.
Achou que seria melhor se conversassem pessoalmente.
– Estou entendendo que não quer falar pelo telefone. Prefere
que nos encontremos em algum lugar para que possamos conversar
pessoalmente?
– Acredito que será melhor mesmo. Além do mais, sentirei
muito prazer em passar algum tempo na sua companhia. Tenho certeza de que seu astral deve estar muito melhor do que no passado.
Neste instante, Larissa sentiu que havia cometido um deslize,
pois não achava boa idéia relembrar alguém de qualquer fato amargo
do passado.
Esperou que Arthur Nimitz lhe respondesse, mas torceu cruzando os dedos, rezando para que ele não tivesse tido tempo de assimilar a lembrança e trazer à tona os velhos dissabores.
Arthur deu uma puxada forte na fumaça do charuto, fazendo
com que subissem, uma atrás da outra, pequenas argolas azuladas,
que se desfaziam próximo ao teto. Depois respondeu:
136
– Você mesma disse. É passado! Já passou. A esta altura da
vida, nossos valores mudam, e problemas antigos passam a não ter
mais importância alguma. Mas, enfim, quando nos encontraremos?
– Você é quem decide, quando e onde.
– Creio que o assunto para você deve ser urgente. Que tal
hoje à noite? Você aparece aqui no escritório e vamos daqui para
qualquer lugar aonde queira ir.
– Sendo assim, então está bem. Nos encontramos por volta de
dezenove horas aí na porta de saída do edifício. Vou tentar não me atrasar.
Arthur Nimitz desligou o telefone, pensativo e ao mesmo tempo apreensivo. A partir daquele momento, seu dia passou a se revestir de muita expectativa e ansiedade. Com certeza, no passado Larissa
Karmov poderia ter feito parte de sua vida completamente. Porém o
destino não quis assim. Conheceu-a somente por causa do acidente,
e graças a ela obteve o dom de olhar para dentro das pessoas e
enxergar coisas muito mais duradouras do que o sexo.
Eram coisas que podiam fazer as pessoas tão completas para
um relacionamento quanto ele próprio.
Aprendera a conviver com suas limitações, e a amar e ser
amado também com elas. Apesar delas, ainda podia dizer que seus
setenta e um anos haviam sido muito bem vividos.
Enquanto pensava bateu mais uma vez a cinza do charuto no
cinzeiro e depois tragou levemente, soltando pouca fumaça.
*
O garção puxou uma cadeira e depois a outra. Arthur Nimitz
sentou-se de lado para a janela, e Larissa ocupou a cadeira oposta
também de lado, de forma que os dois mantinham os rostos iluminados
por uma luz de intensidade não muito forte, porém de uma claridade
mais intensa do que a penumbra preferida pelos amantes jovens.
Arthur perguntou se Larissa não se incomodava, e acendeu
um charuto de um aroma muito leve.
Do alto do edifício Itália, a cidade de São Paulo parecia um
grande presépio todo iluminado e piscante. Cartazes de propaganda
cheios de neon davam o tom do romantismo noturno da cidade.
137
Arthur Nimitz ficou ouvindo enquanto ela falava, e percebeu
que a voz da mulher havia muito tempo deixara de ser suave e doce;
mantinha agora um som muito mais grave e rouco, mas ainda tão
serena como havia sido no passado.
Assim que ambos pediram uma bebida doce e de baixo teor
alcoólico, apenas o suficiente para relaxarem um pouco, Arthur resolveu que era hora de saber do que se tratava o problema de Larissa
e lhe perguntou:
– Bem, já que viemos aqui para falarmos de você, importa-se
de me dizer logo o que tanto a aflige?
– Esperei tanto por esse momento, e agora que estamos aqui
me vejo encabulada. Não sei se devo lhe falar ou não. Talvez ftenha
sido um erro ter ligado para falar sobre isso. Acho que lhe telefonei
movida pelo calor da emoção, e sinto que errei. Me desculpe. Me
sinto ridícula fazendo papel de adolescente tola, e acho que devemos
ir embora. Afinal, o que você deve estar pensando de mim? Eu sou
uma velha, e você deve pensar que estou aqui atrás de algum
assanhamento qualquer .
Larissa fez menção de se levantar, mas Arthur estendeu o braço gordo e cheio de cabelos brancos e segurou sua mão apertada
sobre a mesa, mantendo o charuto entre os dedos enquanto dizia:
– Não é nada disso. Por favor, permaneça sentada e acalmese. Não estou pensando nada, e não saberei o que lhe dizer, se você
não me disser logo o que a fez me procurar.
– Está bem. Mas promete que não me verá como se fosse
uma velha assanhada?
Arthur soltou seus braços, levou o charuto à boca e falou antes
de soltar a fumaça:
– Já prometi.
– É sobre um amigo. Preciso que o ajude.
– Que tipo de ajuda precisa?
– Preciso que use de sua influência junto à imprensa para pelo
menos fazer com que o esqueçam, se não puderem mudar as coisas
em torno dele.
138
– Até aí, acredito que não será algo difícil de se conseguir.
Mas preciso saber quem é a pessoa, pelo menos.
– Tenho certeza que já sabe. É um velho amigo chamado Fritzen
von Keitel. Tem estado em todos os tipos de jornais ultimamente.
– O médico? O dos pacientes terminais? perguntou Arthur
Nimitz, olhando espantado para Larissa, enquanto pensava consigo
mesmo sobre o que faria uma mulher como ela se interessar tanto
por alguém que estava sendo escrachado pela imprensa, como aquele
homem.
Uma certa pontada de ciúme apertou-lhe o peito, mas ele a
abafou.
Larissa ficou alguns instantes aguardando um não categórico
como resposta, esperando que Arthur lhe dissesse que jamais usaria
sua influência para favorecer um assassino como aquele. Era o que
toda a imprensa estava dizendo no momento.
Porém, depois de alguns segundos e mais um pouco de fumaça que Arthur soltou por um dos cantos da boca, ele simplesmente
perguntou:
– Por que espera que eu o ajude? E por que se interessa tanto
por ele?
– Porque eu acredito sinceramente que ele é inocente, já que
o conheço muito bem, desde muito tempo. Assim como também
conheço você.
O jornalista passou então a compreender a razão de tanta preocupação. Aliás, pensou que já deveria saber desde o início, pois
somente uma pessoa humana e leal como aquela mulher poderia se
preocupar e tentar mover o mundo em favor de alguém que amava
de uma forma ou outra. Poderia ser até amor fraterno. Mas era amor
o que ela sentia pelo médico assassino.
Esticou-se um pouco para trás na cadeira para relaxar, soltou
mais uma leve nuvem de fumaça do charuto e continuou falando:
– Tem algo mais que eu deva saber? Sei que não é de minha
conta, confio em você, mas acho que tem algum motivo a mais que
faz você brigar assim por ele.
139
– Desculpe, mas você mesmo disse que não é de sua conta e
que confia em mim. Só posso lhe dizer que ele é inocente sem sombra de dúvidas, e que preciso que o ajude.
Novamente Arthur tocou carinhosamente o braço de Larissa,
enquanto tentava fazê-la entender que deveria lhe dizer algo mais
sobre o homem para que pudesse interceder por ele.
– Amor! Desculpe-me chamá-la assim! Mas tem de entender
que minha reputação estará em jogo. Qualquer coisa mais que me
disser será um segredo nosso, mas tem de me dizer exatamente porque se preocupa tanto com ele assim. Também tem de confiar em
mim.
– Posso até lhe dizer algo mais, mas isso não irá ajudar em
nada. Ao contrário, só irá me colocar como suspeita para lhe dizer
que ele é inocente.
– Tente dizer para saber. Aliás, já lhe disse que acredito em
você. Se diz que ele é inocente, para mim ele já é inocente.
– Eu tenho um filho dele!
Arthur Nimitz balançou rapidamente a cabeça e aguçou os
ouvidos como se não tivesse entendido, enquanto colocava o charuto
com a ponta acesa dentro de um cinzeiro.
– Como? O que foi que disse?
– É isso mesmo! Eu tive um romance com ele há muitos anos,
durante um bom tempo, e tivemos um filho, mas ele não tem conhecimento disto. É por isso que lhe digo que o conheço muito bem.
Outra vez a mesma pontada de ciúme tocou o peito de Arthur
Nimitz por dentro, e ele achou que não lhe interessava saber de mais
nada a respeito do passado da mulher e do médico. Resolveu que se
deixasse as coisas como estavam e se limitasse a fazer o que Larissa
lhe pedia no momento se magoaria muito menos e conquistaria com
certeza alguns pontos a mais com ela.
– Está bem. Vou ver o que posso fazer. Só lhe digo que sinto
inveja desse homem por ter uma pessoa tão obstinada a defendê-lo
como você. Gostaria muito que você estivesse do meu lado dessa
forma, e que pudéssemos nos encontrar mais vezes, mas não para
discutirmos assuntos dessa natureza. Gostaria de ter outra oportuni140
dade com você como um homem e uma mulher comuns. Não sei se
me fiz entender!
Larissa tornou-se rubra como um pimentão. Achou que certamente Arthur sabia que ela estava vivendo sozinha, por isso lhe dissera aquelas coisas. Dessa vez foi ela quem segurou carinhosamente
a gorda mão dele dentro de suas mãos, que se estenderam sobre a
mesa, e lhe respondeu:
– E muito bem por sinal. Mas quem lhe disse que você não me
tem de seu lado? E claro, podemos sair outras vezes, mas não para
falar de problemas!
Ao mesmo tempo os dois empurraram os pratos, demonstrando que haviam acabado de jantar.
Para Larissa assunto principal já havia sido resolvido, e o assunto secundário e mais importante para Arthur também já estava
acertado. Disse a Larissa que faria tudo o que pudesse para ajudar
Fritzen von Keitel, e que iria lhe telefonar muito em breve para voltarem a se ver. O garção trouxe a conta, Arthur colocou dentro da
caderneta uma nota de cem reais e saiu com Larissa depois de puxar
sua cadeira para que ela se levantasse. Deixou a ponta do charuto
terminando de queimar sozinha dentro do cinzeiro e saiu acompanhando a mulher.
Quando saíram para a calçada, a noite havia esfriado bastante,
e o vento forte esvoaçava os ralos cabelos de Larissa.
Arthur envolveu-a com o braço enquanto o carro não chegava
e ajudou-a a colocar um cachecol em torno do pescoço.
Prometeu que a levaria para casa de carro.
“Apesar de tudo, foi uma noite muito agradável!”, pensou.
141
142
Quatorze
Quatro dias se passaram sem que a imprensa escrita ou
televisionada tocasse mais no assunto Fritzen von Keitel. Ninguém
entendeu. Tampouco Cleber Papadopoulos.
Ninguém ainda havia lhe falado sobre Arthur Nimitz. Colocou o
cachimbo aceso de lado por uns instantes e pegou o telefone celular.
Ligou para Fritzen em sua casa de campo em Igaratá, para
avisá-lo de que dentro de dois dias seria seu interrogatório.
O médico atendeu e depois perguntou:
– Cleber! Tem visto os jornais?
– Sim. Diariamente.
– Acho que se esqueceram de mim.
– Pode ter certeza de que não esqueceram. Só estão lhe dando
uma pequena trégua. Lembra-se da princesa Diana e do namorado
Dode al Fayedd? Lembra-se dos paparazzi? Pois é! Eles são todos
iguais. Em qualquer parte do mundo. São sedentos por notícias clamorosas, e fecham o cerco até lhe arrancarem tudo o que lhe pertence.
Algumas vezes inclusive a sua vida, como foi o caso da princesa.
– O que quer dizer com isso?
Cleber voltou a pegar o cachimbo, levou-o à boca e, depois de
soltar a fumaça, respondeu:
– Que no dia de seu interrogatório, com certeza algumas dezenas de jornalistas estarão na porta do fórum para o sugarem.
– E o que pretende fazer a respeito?
– Seu interrogatório será depois de amanhã. Já tomei algumas
providências quanto ao reforço da segurança policial. Verei se consigo que entremos pelo estacionamento nos fundos.
– Onde eu o encontro?
– Esteja em meu escritório pela manhã logo depois das dez.
Partiremos daqui todos juntos.
143
– Está bem. Combinamos assim.
Fritzen pensou em dizer ao advogado Cleber o que havia ficado sabendo a respeito de sua própria saúde, mas resolveu que seria
melhor falarem a respeito disso em ocasião mais oportuna.
144
Quinze
Durante os últimos dois dias que se passaram, o advogado esteve falando com o doutor Fritzen von Keitel pelo menos uma meia
dúzia de vezes.
Fritzen achou que já era hora de lhe informar de sua enfermidade, e então lhe falou a respeito. Cleber esforçou-se o máximo para
assimilar a notícia sem grande espanto, mas teve de se sentar rapidamente na poltrona mais próxima para não cair de qualquer jeito no
chão. Ficou estupefato. Pensou em pedir o adiamento do interrogatório e o conseqüente adiamento do julgamento no plenário do júri, se
seu cliente fosse pronunciado, mas Fritzen o fizera jurar e prometer
que não iria fazer nada disso.
O advogado não compreendeu, mas acatou a determinação do
cliente. Este já havia dito que o tiraria do caso se assim não fizesse.
“Defesa técnica”, pensou. A defesa técnica tem de prevalecer sobre a vontade do cliente, se for para eu próprio bem. Isso foi o
que aprendera durante os anos de estudo, mas na prática não era
bem assim. O pedido de Fritzen havia sido bem claro. Se não fizesse
da forma que estava querendo, poderia se retirar do caso. Fora mais
uma ordem do que um pedido.
O advogado decidiu fazendo uma simples analogia, a de que
deveria deixar o barco descer correnteza abaixo sem interferir.
Mas pelo menos conseguiu que Fritzen autorizasse que o fato
fosse relatado para os jurados no caso de irem a plenário. Poderia
muito bem amolecer o coração dos sete juízes leigos comuns do povo
com a notícia da enfermidade.
*
Fritzen pegou as embalagens vazias de morfina em um armário trancado e saiu com a mulher Inga rumo ao escritório do advogado Cleber Petrus Papadopoulos.
145
O trânsito na rodovia Dutra estava livre, e minutos depois o
carro do doutor Fritzen passava por Guarulhos. O médico olhou para
a direita sobre a cabeça da esposa e viu o edifício do Monsenhor
Vasquez ostentando sua imponência no alto da cidade. Já fazia dias
que não aparecia por lá. Devido à repercussão do caso, muito a contragosto seu, a diretoria o havia licenciado por tempo indeterminado. Aliás, os diretores lhe disseram que se não quisesse mais voltar ao trabalho lhe pagariam todos os direitos e lhe recompensariam ainda mais
pelo tempo de serviços prestados. Poderia se aposentar e viver o resto
da vida da melhor forma que quisesse com os recursos que já tinha.
Agora estava imaginando que talvez um outro tipo de descanso estivesse para ele bem mais perto do que a aposentadoria. Percebeu que Inga também havia se virado para o hospital e seus olhos
lacrimejavam. Sem se desviar do trânsito, e segurando o volante com
apenas uma das mãos, envolveu o pescoço dela com o braço livre e
chamou-a para perto de si; assim que ela estava bem próxima beijoulhe carinhosamente a face e a testa sem se preocupar com suas
lágrimas, que lhe molharam os lábios.
– Tudo vai dar certo. Assim que essa história terminar, vou
fazer a cirurgia, me aposentar, e passaremos a viver o resto de nossas vidas bem longe de tudo e de todos.
– Não acredito nisso.
– Que eu vou me aposentar?
– Não. Não acredito que tudo vai acabar da forma que está
dizendo. Sinto que estão me tirando você de uma forma ou outra.
Antes temia pela cadeia. Agora a doença. Quando você era jovem,
foram os militares, e agora tudo isto. Acho que estaremos sempre
fugindo, de uma forma ou outra.
– Às vezes me pergunto se não lhe causei infelicidade. Sempre sou eu que estou lhe trazendo tristezas.
– Não estou dizendo isto. Eu quis você desde o início. Sabia de
tudo, e sempre fomos muito felizes. Só que sinto que esta luta toda já
está me cansando.
– Sem luta não há vitória. Não foi isto que passamos a vida
toda dizendo para os mais jovens?
– Sim, foi.
146
– Então tenha calma e relaxe. Tudo vai acabar bem. Estamos
juntos nisso. Não estamos?
– É claro que estamos. Sempre!
– Sim! Sempre estaremos!
Fritzen beijou a face de Inga mais uma vez, e ela passou sem
cerimônia a manga da blusa no rosto para enxugar o restante das
lágrimas que haviam descido.
*
Cleber Petrus passou com o carro uma vez, e depois outra, lentamente diante do fórum, e não notou nada que fosse considerado diferente
dos dias normais. Procurou jornalistas, mas não viu nenhum. Chegou a
pensar que realmente o seu cliente tinha razão: haviam se esquecido dele.
Depois que contornou o quarteirão pela segunda vez, procurou
um lugar onde houvesse uma vaga para estacionar e saíram andando
a pé até a entrada principal do fórum. Sem a imprensa, não haveria
necessidade de entrarem pelos fundos. Fritzen ostentava um terno
azul-escuro, e no rosto óculos diferentes dos habituais. Tudo por recomendação do advogado Cleber.
Quem o visse jamais iria imaginar que não era somente outro
advogado, mas sim um médico.
Policiais em número superior ao de todos os dias se mantinham
postados lado a lado na porta de entrada e, no fundo, outros dois
também vigiavam da mesma forma a porta. Tinham recomendações
de não falar com ninguém a respeito do que estavam fazendo ali, e
não barrar ninguém, a não ser que fosse estritamente necessário.
O advogado e o cliente, acompanhado da mulher, avançaram
pela escada até o segundo andar do edifício principal, onde ficava o
gabinete do juiz que iria interrogar Fritzen von Keitel.
O médico ficou um pouco mais para trás, encostado na parede
em frente à porta da sala de audiências ao lado de Inga, e Cleber foi
até a oficial sentada atrás da velha e surrada escrivaninha para se
anunciar e também ao cliente.
Retirou o luxuoso cachimbo branco que estava preso pelos
dentes e falou:
147
– Vim acompanhar um cliente para a audiência das quatorze
horas. Pode confirmar, por favor?
A mulher olhou incisivamente para Cleber Petrus Papadopoulos
e abaixou a cabeça para confirmar na lista que mantinha segura sobre a mesa. Correu o dedo indicador de um lado para outro sobre a
folha e disse falando no mesmo tom que lhe falara o advogado:
– Fritzen von Fritz...
– Keitel. Não é Fritz. É Keitel.
– Já podem entrar e aguardar. O juiz já deve estar entrando na
sala.
O advogado Cleber agradeceu e, mantendo o cachimbo apagado, voltou-se para o casal e acenou com a mão para que se
aproximassem.
Com exceção das testemunhas, todas as pessoas dentro da
sala eram as mesmas das outras audiências. O representante do Ministério Público acenou com a cabeça para o advogado, cumprimentando-o, mas não olhou para Fritzen von Keitel. Desde o primeiro
momento em que os dois se defrontaram, o promotor Halph Ian Mijiag
deixou nítido o desprezo que sentia pelo médico.
Inga permaneceu sentada em uma cadeira afastada da mesa e
encostada na parede da porta.
No mesmo instante que todos se sentaram, o juiz também entrou, ocupando seu lugar, e tudo começou.
– O senhor é o doutor Fritzen von Keitel? Está acompanhado
de seu defensor?
Fritzen balançou a cabeça afirmativamente, e o juiz mandou
que falasse.
– Sim, senhor.
– Sim, senhor, o quê? É o doutor Fritzen, ou está acompanhado de seu defensor?
– Os dois, excelência! Sou Fritzen von Keitel, médico, e este é
meu advogado, o doutor Cleber...
O juiz interrompeu-o bruscamente estendendo a mão na sua
direção, e não deixou que terminasse a frase que concluiria o nome
do advogado.
148
– Sei quem ele é.
Cleber Petrus passou a se sentir preocupado com a forma que
o juiz começava a conduzir o interrogatório, bem mais áspera do que
quando tiveram as audiências com as testemunhas.
Olhou para seu cliente preocupando-se em não demonstrar insegurança e percebeu o suor que começara a escorrer-lhe pela testa.
Passou a temer pelo estado de saúde de Fritzen, chegando mesmo a
pensar que ele não iria agüentar meia hora de interrogatório se continuasse daquele jeito.
Repentinamente , quando o juiz recomeçou a falar, a dureza
em sua voz já havia se amainado um pouco, e Cleber Petrus tranqüilizou-se um pouco mais.
Na qualidade de advogado criminalista, estava acostumado com
todo tipo de conduta de diferentes magistrados e devia compreender
que aquilo era estratégia. Mas aquele juiz em especial lhe causava
um certo temor reverencial. Não era para ser assim, mas sempre
acontecia.
– Por favor. Queremos que o senhor compreenda que deverá
sempre responder as perguntas que lhe fizermos em alto e bom tom,
para que todos na sala possam ouvi-las.
– Sim, senhor!
– Tem consciência de que neste processo está sendo acusado
de homicídio doloso contra a pessoa de Anatolle Maroti?
– Sim, senhor. Sei disso.
– Então, queremos que o senhor nos conte o que exatamente
aconteceu na noite de...
O juiz parou de falar instantaneamente e consultou de novo os
autos do processo em cima de sua mesa para confirmar a data, depois concluiu. Cleber achou que parecia um ritual. O magistrado parecia nunca se lembrar de datas sem que precisasse consultar os
autos.
Fritzen von Keitel respondeu em seguida, repetindo passo a
passo durante vários minutos tudo o que havia acontecido, sem ser
interrompido por ninguém. Somente quando terminou de falar é que o
juiz levantou a cabeça e voltou a questioná-lo.
149
– Então, partindo do ponto em que o senhor parou é que as
coisas ruins aconteceram?
– Desculpe-me, excelência, mas não estou entendendo.
– Daí que a mulher morreu? Quero dizer, que o senhor de
certa forma se declara o responsável pela morte de sua paciente?
– Não, senhor! Eu não disse isto!
– Como não? O senhor acabou de nos dizer que exatamente
depois que injetou a droga em sua paciente ela entrou em óbito!
– Isso foi o que eu disse. Mas não quero dizer que injetei a
droga para que a matasse.
– O senhor diz para esse juízo que injetou curare em sua paciente, e não era para matá-la?
– Jamais injetei curare em meus pacientes, e jamais assumi
isto perante este juízo, excelência! Além do que o senhor também
não me perguntou em nenhum momento o que foi que eu injetei!
O advogado não pôde deixar de se sentir orgulhoso pela forma
com que o seu cliente havia dirigido o interrogatório, que mais parecia
um diálogo naquele instante. Porém, seu orgulho se transformou imediatamente em preocupação a partir do instante em que o magistrado
repreendeu Fritzen verbalmente.
– Somente responda o que eu lhe perguntar, por favor! Atenhase às perguntas, senão mando prendê-lo imediatamente por desacato!
Cleber perguntou-se se o juiz podia fazer aquilo. Em seguida
respondeu para si mesmo que podia perfeitamente, pois Fritzen não
era advogado, e portanto tinha de medir suas palavras!
– Sim, senhor. Me desculpe!
– Se o senhor não injetou o curare, como foi encontrada esta
substância no sangue de sua paciente? O que injetou, então?
– Não tenho a menor idéia de como o curare foi injetado nela.
Mas não foi o que eu usei em nenhuma ocasião. Sou médico, e meu
trabalho é aliviar meus pacientes de seus problemas, mas não matei
ninguém. Confesso que num caso antigo cheguei a pensar numa possibilidade dessas, mas tudo não passou de mera e simples cogitação.
Embora eu espere sinceramente que, se eu chegar a um estágio de
150
definhamento físico desses, alguma alma bondosa me alivie das dores da maneira que melhor encontrar.
– Novamente o senhor está se desviando das perguntas, doutor Fritzen von Keitel! Então diga-nos o que o senhor usou para aliviar sua paciente de seu sofrimento? E se eu entendi bem, o senhor
gostaria que alguém se utilizasse da prática da eutanásia para o aliviar de futuros possíveis sofrimentos? É defensor dessa prática?
– Sim. No meu caso , gostaria. Não diria que sou um defensor
entusiasta, mas penso no assunto com a maior seriedade. Finalmente,
quanto ao que usei, foi morfina. Mais precisamente no caso de Anatolle
Marotti usei fentanil.
O advogado percebeu que, além do escrevente que digitava
tudo nos teclados do computador ao lado do juiz, o promotor Ian
também anotava praticamente palavra por palavra. Sem querer,
deixou escapar um balançar de cabeça, reprovando o que Fritzen
havia feito.
“Declarar que é defensor da eutanásia, neste caso, é suicídio!”, pensou.
– Como o senhor pode provar isto que estás nos dizendo? que
em vez do curare aplicou simplesmente a morfina?
– Sinceramente, não sei se o que temos em mãos irá provar
minha inocência quanto à morte de Anatolle. Se dentro da seringa
que eu usei havia curare, não fui eu quem colocou. Estava crente que
estava aplicando o fentanil. Tenho as embalagens vazias, e o relatório
do dia, em que eu fiz meu inventário particular de aplicações, com o
número e lote das embalagens.
O juiz pediu que as apresentasse perante o juízo. Cleber Petrus
imediatamente abriu a bolsa e entregou as embalagens ao magistrado, que olhou e passou ao promotor para que as examinasse e fez
consignar nos autos a apresentação das mesmas.
Enquanto as provas eram examinadas, Cleber olhou de soslaio
para trás e percebeu que Inga não estava mais sentada na cadeira
perto da porta.
Depois disso, questionamentos foram dirigidos a Fritzen durante
pouco mais de meia-hora, e após encerrdado o procedimento
151
inquisitório, tanto o magistrado como Fritzen von Keitel assinaram o
extrato que havia sido imprimido.
Cleber se levantou depois que tudo se encerrou formalmente e
conduziu seu cliente para fora. A palidez na face de Fritzen era nítida
quando saiu da sala, momento em que um policial fardado se aproximou dos dois e pegou-o firmemente pelo braço enquanto dizia:
– O senhor terá de que me acompanhar! Por favor!
Fritzen não entendeu o que acontecia, e continuou andando
depois que olhou firmemente na direção de Cleber, praticamente ignorando a mão do policial que o segurava energicamente pelo braço.
Cleber também não entendeu, deixou falando sozinho o promotor
Halph Ian Mijiag, que iria lhe dizer algo, e avançou mais energicamente ainda na direção do policial para saber do que se tratava.
– O que se passa? Para onde pensa que o vai levar?
– Para a mulher! A senhora que estava lá dentro passou mal.
Creio que não está nada bem. Vou levá-lo a ela! Foi o que me pediu!
– E onde ela está?
Fritzen havia conseguido se desvencilhar do policial e perguntou desesperado pela esposa Inga, temendo que algo estivesse lhe
acontecendo justamente naquele momento delicado em que um precisava tanto do outro.
– Está lá embaixo no térreo, com a oficial.
Os dois homens desceram quase correndo os degraus da escada, e assim que tocaram com os pés o pavimento térreo, uma mulher vestindo um colete azul com o emblema do poder judiciário em
um dos lados do peito veio encontrá-los dizendo:
– A mulher não está nada bem.
– Onde ela está?
– Levaram-na para o hospital aqui ao lado mesmo.
– É a Santa Casa!
Cleber acabou de falar e saiu na frente de Fritzen von Keitel,
quase o conduzindo pela mão até chegarem ao hospital, ao lado do
edifício do fórum. Na recepção, assim que se identificaram, a moça
fez questão de conduzi-los até uma das enfermarias e apresentou-os
152
ao médico que estava cuidando de Inga. O homem de branco percebeu a ansiedade dos outros dois e imediatamente reconheceu Fritzen.
Procurou acalmá-lo dizendo que Inga estava sedada naquela momento, mas fora de perigo. Seu coração cansado havia lhe pregado
uma peça, mas agora estava bem. Somente dormia um pouco. Depois que conseguiu tranqüilizar o doutor Fritzen, o jovem médico aproximou-se dele e lhe disse que estava do seu lado e sempre achara
que a imprensa estava exagerando no assunto.
Afinal, os médicos não eram santos milagreiros e nem detinham qualquer poder para evitar que seus pacientes morressem,
concluiu.
Fritzen se limitou a agradecer. Tocando em seu ombro, afastou-o amavelmente para o lado e pediu licença para entrar na enfermaria e ver a mulher, enquanto o advogado permaneceu do lado de
fora do hospital com o cachimbo aceso.
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Dezesseis
Cleber tomou conhecimento de que o juiz que havia presidido a
instrução processual havia sido substituído por outro, e este resolveu
que deveria interrogar o réu novamente, para se certificar de que
deveria pronunciá-lo ao júri ou não.
A data do novo interrogatório fora marcada para quase cinco meses
depois do último, bem próxima do recesso forense de final de ano.
Inga Steif faleceu depois de mais dois enfartes, a menos de
vinte dias do novo interrogatório de Fritzen von Keitel.
Neste curto espaço de tempo o médico definhou sobremaneira, e a doença que o acompanhava sem dar trégua aproveitou-se de
sua debilidade, fazendo com que viesse a parecer ter pelo menos dez
anos a mais do que realmente tinha.
Cleber Petrus estava acompanhando bem de perto tudo o que
vinha passando seu cliente, e chegou mesmo a postular junto ao novo
magistrado, sem que Fritzen soubesse, um adiamento do novo interrogatório, temendo que o médico não agüentasse a pressão de mais
um procedimento inquisitório.
O juiz indeferiu o pedido.
Por outro lado, o magistrado propôs que, se fosse necessário, o
interrogatório seria feito em outro local que não o fórum, mas Fritzen
von Keitel se negou, e fez questão de que tudo fosse feito normalmente, como se nada estivesse lhe acontecendo.
A chegada ao fórum no dia da audiência correu perfeitamente,
como da última vez, sem o pessoal da imprensa dar qualquer sinal de
vida.
O advogado e o cliente entraram no edifício, subirem as escadas para o pavimento superior e aproximaram-se da porta da sala de
audiências. Subitamente o doutor Fritzen estacou, com os olhos arregalados na direção do interior da sala como se estivesse vendo alguma assombração.
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Parecendo estar meio engasgado, e tentando falar rapidamente, o médico esticou o braço para o lado e colocou a mão no peito de
Cleber Petrus, impedindo-o também de entrar, enquanto dizia:
– Espere! Não sei se devo entrar aí!
Cleber Petrus, sem entender nada do que estava acontecendo,
agora também um pouco assustado, perguntou-lhe:
– O que houve? Resolveu que quer ser ouvido em outro lugar?
Se for esse o problema, ainda temos tempo de requerer ao juiz.
– Não! Não é isso!... É exatamente o juiz!
Fritzen agora falava de forma débil e, assustada, e não conseguia se fazer claro para Cleber. Seu corpo foi tomado de um tremor
fora do comum, e o advogado chegou mesmo a pensar que seu cliente começava a ter problemas com suas faculdades mentais e estava
convulsionando devido ao tumor no cérebro.
Percebera que os intervalos para Fritzen tomar os medicamentos haviam se reduzido muito, assim como triplicara a quantidade que
ingeria. Por isso, Cleber chegou a pensar também que essa podia ser
a verdadeira causa dos supostos delírios.
Fez o médico soltar de seu braço abrindo-lhe os dedos calmamente e perguntou:
– O que tem o juiz? Eu lhe avisei que o outro havia sido substituído.
Ainda tremendo muito, Fritzen tentou explicar:
– Eu o conheço! Esse homem é mau!
– Você gostaria de me explicar melhor? Temos de ser rápidos,
pois está quase na hora. Mau ou não, ele não pode fazer nada contra
você que não seja em cumprimento da lei. Se é seu inimigo, poderá
rejeitá-lo alegando que seja suspeito. Se não for esse o problema,
teremos de entrar, pois já estamos mesmo atrasados!
Fritzen procurou acalmar-se.
– De qualquer forma, a história é longa e complicada. Vamos
entrar assim mesmo, e depois que acabarmos eu lhe contarei tudo nos
mínimos detalhes, isto é, se ele deixar que eu saia daí sem problemas.
Cleber sabia que legalmente não iriam ter problemas com o
juiz. Assim, tocou levemente num dos ombros de Fritzen von Keitel e
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o conduziu para dentro da sala, enquanto o acalmava falando como
se o fizesse a um garoto inocente.
– Pode ter certeza de que deixará. Então vamos.
O novo interrogatório não durou mais do que vinte minutos, e
pelo menos duas vezes Fritzen von Keitel teve de pedir licença para
ingerir algum tipo de medicamento. O juiz praticamente repetira tudo
o que o magistrado anterior havia perguntado, colocando uma ou duas
indagações a mais, e nem sequer levantou a cabeça para olhar para o
rosto de Fritzen von Keitel.
Cleber percebeu a atitude do magistrado e teve certeza consigo mesmo, de que o homem não conhecia ou pelo menos nunca havia
se defrontado com seu cliente.
“O pobre Fritzen deve estar mesmo delirando”, pensou.
Depois que a sessão inquisitória terminou, o advogado quis saber o que estava se passando com seu cliente. Já estavam no carro a
caminho do escritório, quando Cleber lhe perguntou:
– Escute, Pelo que eu pude observar, tive a impressão de que
o homem nem sequer olhou para você, tampouco demonstrou qualquer sinal de conhecê-lo. Quer me falar da longa história agora?
Solícito e assentindo prontamente, o médico comentou:
– É típico dele! Em mais de trinta anos não mudou nada. Não
consegue olhar nos olhos das pessoas que de uma forma ou outra
sempre está levando para o sacrifício. Jamais pude esquecer aquelas
orelhas enormes e aquela cicatriz em forma de cruz na sua face
esquerda.
Cleber acendeu o cachimbo enquanto pensava no que Fritzen
lhe dizia, tentando assimilar toda a situação.
– Então você quer me dizer que realmente conhece aquele
homem há muito tempo, e que ele é seu inimigo mas não o reconheceu ali sentado à sua frente?
Fritzen desceu um pouco o vidro de seu lado para deixar sair a
fumaça e respondeu:
– Malton! Tenente Malton! Era assim que o tratavam. Pude
ouvir seu nome quando o chamaram antes que fechasse uma porta
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em uma certa ocasião, deixando-me trancado lá naquele lugar, amarrado e na companhia de um cadáver.
– Santo Deus! Isto é uma das coisas mais graves que estou
ouvindo em toda a minha vida, em se tratando de um julgamento!
Você jura que isso que está me dizendo é verdade?
Cleber Petrus empalideceu, e Fritzen von Keitel relatou sua
história durante todo o trajeto até o escritório. Assim que chegaram,
parou de falar por uns instantes até que estivessem na tranqüilidade
da sala do advogado.
Cleber não precisou dizer à secretária que só deveria ser chamado depois que o cliente fosse embora.
Fritzen relatou a Cleber toda a história em minúcias, até o dia
em que foi desenterrado pelos camponeses e que, depois de tratado,
se exilou no exterior.
Cleber, ainda pasmado com a história, insistiu que Fritzen deveria alegar a suspeição do juiz. Temia que se tudo fosse realmente
verdade o magistrado não viesse a agir com total imparcialidade no
caso. Mais uma vez Fritzen não aceitou, dizendo que de nada iria
adiantar tal expediente, pois o outro juiz que porventura viesse a atuar
no caso com certeza estaria sabendo de todos os motivos pelo qual a
suspeição fora argüida. Além do mais, para ele as coisas não poderiam
ficar piores do que já estavam. Tudo o que se passara fora somente
um trauma antigo, e agora estava resolvido a esquecê-lo.
Cleber Petrus deu uma puxada forte no cachimbo, soltou uma
densa nuvem de fumaça aromática e murmurou que Fritzen parecia
uma velha mula, mas não deixou que ele ouvisse.
– Como quiser, então! – o advogado assentiu, arrematando a
conversa desta forma, e chamou a secretária para lhe perguntar se
havia algum cliente para as próximas horas.
Fritzen von Keitel levantou-se vagarosamente, despediu-se e
saiu para pegar o carro na garagem do edifício.
Cleber, que possuía duas vagas exatamente para servir aos
seus clientes, ficou olhando o homem ir embora, pensando se realmente seria uma boa idéia deixá-lo dirigir naquelas condições. Pensou em impedi-lo, mas sabia que de nada iria adiantar.
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Ficou imaginando que em toda sua carreira como advogado
jamais havia conhecido cliente com tamanha teimosia. Pensou ainda
em deixar o caso por diversas vezes, mas sentia que algo além do
dinheiro o ligava a Fritzen e não conseguiria deixá-lo sozinho exatamente no momento em que mais estava precisando das pessoas que
o cercavam.
Enquanto o médico saía, Cleber continuou fumando o cachimbo e olhando para o calendário próximo da mesa. Faltavam poucos
dias para o recesso forense, e como estava com todos os processos e
audiências praticamente em dia, iria fazer o que vinha fazendo já há
algum tempo.
As férias no pantanal sempre lhe foram ótimas para que pudesse fazer reflexões e recompor as energias perdidas em meio a
tantos processos .
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Dezessete
Larissa Karmov soube do ocorrido e esteve no velório de Inga
Steif, mas muito rapidamente.
Aproximara-se do doutor Fritzen para lhe desejar as condolências, e quando ele a viu, imediatamente disse que precisava lhe falar.
Queria saber o que estava fazendo no fórum da última vez que a vira.
O homem estava amargurado, mas mesmo assim achou que tinha
muito o que conversar com aquela mulher.
– Meu telefone está na lista! – Ela lhe dissera então.
– Na lista telefônica? – Fritzen lhe interrogou em seguida.
– Na lista dos presentes – ela lhe respondeu, e saiu logo depois
sem dar oportunidade a mais conversas ali naquele local de pesar.
*
O relógio de pêndulo na parede soou oito badaladas, e Larissa, que
havia acabado de sair do banho enrolada num robe cor-de-rosa com
minúsculas flores amarelas, ouviu também o telefone tocar na sala.
Seu apartamento ficava no oitavo andar de um velho edifício
no bairro das Perdizes, e era bem amplo e aconchegante. Larissa
passou pelo vestíbulo e dirigiu-se até a sala onde ficava o telefone em
cima de uma mesa de canto, enquanto algumas gotas de água que
haviam ficado em seu corpo molhavam o tapete deixando um rastro.
Deixou seu corpo relaxado pela água morna afundar na poltrona forrada de couro e apanhou o fone do gancho.
– Alô!
Do outro lado alguém perguntou:
– É Larissa? Larissa Karmov?
– Pode ser que sim e pode ser que não. Quem está falando?
Imediatamente Fritzen reconheceu a voz da mulher, cujo corpo, outrora bem mais jovem, já lhe pertencera. Relembrou por uns
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instantes aqueles agradáveis momentos, mas agora não era para nada
daquilo que estava lhe telefonando.
Procurara-a novamente porque sentia que algo bem mais forte
do que podia imaginar o ligava àquela mulher, e precisava lhe falar.
Além disto, tinha algo muito especial a recomendar a alguém, e ela
em um determinado momento lhe pareceu a pessoa mais adequada
para a tarefa.
– Não está reconhecendo minha voz? Fritzen! Sou eu, Fritzen!
A mulher pronunciou algo como se fosse uma exclamação do
outro lado, e Fritzen ficou imaginando se era de contentamento ou de
preocupação.
– Não gostou que eu tenha lhe telefonado?
– Como não? É claro que gostei, mas simplesmente não acreditei que você fosse mesmo ligar. Depois de tantos anos!
– Sim. Foram muitos anos, mas não tivemos outra escolha.
Pensei que você nem estivesse viva! A propósito, você está de saída? Esperava poder ir vê-la agora mesmo. Tenho mesmo algo muito
importante a lhe dizer.
Larissa respondeu que não iria sair, e que estaria esperando
por ele para o jantar. Depois que lhe passou o endereço, desligou e
passou a esperar com grande ansiedade. Iria se aprontar o melhor
que pudesse. Pensou em colocar uma roupa que sabia que Fritzen
gostava, depois desistiu.
“Bobagem”, pensou. “Os tempos são outros agora, e talvez ele
nem tenha mais interesse por mim como mulher.”
Apesar de seus mais de sessenta anos, Larissa ainda conservava um corpo rígido e com linhas suaves o suficiente para despertar
a libido de um homem como Fritzen.
Mas, depois que o vira de perto no velório da esposa, Larissa
não pôde ter certeza se ele ainda pensava nessas coisas. Pareceulhe muito debilitado e doente.
Tinha acabado de se vestir quando o telefone tocou novamente. “O homem deve ter mudado de idéia, e não virá mais!”, pensou.
Já ia perguntar o que se passava pensando que era Fritzen ao
telefone, quando percebeu que a voz era diferente.
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Arthur Nimitz estava ligando pensando em convidá-la para
saírem e relaxarem um pouco. Larissa lhe respondeu que não poderia pelo menos naquela noite pois esperava por alguém em casa. Arthur
não se interessou em saber quem era por puro cavalheirismo e educação, mas sentiu que era o médico que ela aguardava. Não sabia
por que, mas sentia que era ele. Mesmo assim, insistiu com Larissa
se poderiam marcar para o dia seguinte, e ela respondeu-lhe que sim.
Afinal, depois dos favores que ele lhe fizera junto à imprensa, ela
ainda não tinha tido oportunidade de agradecer-lhe.
Nove horas da noite.
O relógio terminou de badalar, e a campainha tocou. Larissa
olhou pelo olho mágico e somente conseguiu vislumbrar um pouco do
ralo cabelo branco de Fritzen, pois a luz do corredor estava apagada.
Abriu a porta, o homem entrou, e os dois se abraçaram por longos
minutos, num abraço mais fraterno do que de qualquer outra natureza.
Fritzen sentiu naquele instante que Larissa deixou os olhos
lacrimejarem sobre seu ombro e não se importou. Depois do que
haviam passado em outra época, e depois de tanto tempo sem se
verem, poderia muito bem deixá-la chorar sobre seu ombro. A mulher fez com que terminasse de entrar e depois o chamou para a sala,
onde se sentaram.
– Espero que esteja faminto, pois eu estou e muito.
– Não sinto muita fome.
– Quer jantar logo?
– Sim. Depois, creio que temos muito a conversar.
Na mesa enorme da sala de jantar, duas velas esculpidas e
presas em dois lindos candelabros enfeitavam o local e criavam um
clima de sobriedade no ambiente.
Larissa julgou que Fritzen ainda tinha o hábito de fumar seus
velhos charutos cubanos depois que ele acendeu um, mas não sabia
por que ele tossia tanto. Fritzen tentara impressioná-la com o antigo
hábito, mas não tinha certeza se estava conseguindo.
Quase sem trocar palavras, os dois jantaram. Depois que terminaram, a mulher o chamou para a sala de estar, onde então poderiam
relaxar e dizer um ao outro tudo o que sentiam necessidade.
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Fritzen começou a conversar, divagando sobre coisas gostosas
e boas que haviam passado juntos, aproveitando-se do tom romântico
de uma réstia de luar que invadia a sala pela enorme e antiga janela
envidraçada, mas sem ir direto ao assunto pelo qual realmente viera.
Quando parou por uns instantes, Larissa lhe perguntou:
– Mas por que realmente veio me ver?
Sem saber se deveria tocar no assunto, embromou falando:
– Gostei muito mesmo de reencontrá-la!
– Também senti um alívio enorme no dia em que vi seu nome
nos jornais, por saber que estava vivo. Foi uma espécie de ódio e
alegria ao mesmo tempo.
– Sabe que não tivemos culpa dos acontecimentos.
– Você está certo. Mas felizmente isto é passado. Agora, seja
para o que for, estamos aqui e vivos. Mas, tenho certeza que não foi
para isso que me procurou. Gostaria que me dissesse logo de que se
trata, pois também tenho algo a lhe dizer. Só não tenho certeza se
devo, mas ultimamente algo tem me feito sentir que tenho de lhe
falar. Se não falar agora, talvez não tenha outra oportunidade.
O médico enfiou a mão em um dos bolsos e retirou algo que
entregou à mulher enquanto falava:
– Preciso de um favor muito especial de você. Quero que
guarde este envelope para mim e só o abra se por qualquer motivo eu
ficar desprovido de minhas faculdades mentais ou de meu livre-arbítrio. Se isto acontecer, quero que o abra e prometa que tomará as
providências certas.
– De que está falando?
Larissa já havia percebido que Fritzen não estava nada bem de
saúde, pois deixara praticamente todo o jantar e literalmente o havia
substituído por alguns comprimidos. Além do que não mais tocara no
charuto.
– Pode parecer ironia do destino, mas tenho uma enfermidade
terminal.
– Você está me dizendo que morrerá de uma hora para outra?
– Todos morreremos de uma hora para outra, Larissa. Mas o
que me assusta é o sofrimento provocado pela dor. Temo muito mais
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a possibilidade de sofrer em coma por tempo indeterminado do que a
morte!
– O que você tem? O que faz com que pense que esteja tão
mal assim?
– Câncer! Tenho um câncer me atormentando bem aqui!
Fritzen apontou com o dedo indicador direito e bateu levemente sobre a própria fronte. Percebeu que novamente dois fios de lágrimas desceram pelo canto dos olhos da mulher e escorreram até o
queixo pingando e secando sobre sua camisa. Larissa passou um
lenço sobre o rosto e perguntou:
– Bem, e o que espera que eu faça com relação a isso? O que
o faz pensar que eu realmente posso ajudá-lo?
O envelope era balançado energicamente em uma de suas mãos,
enquanto Larissa começou a chorar, quase amaldiçoando o destino.
Por que somente naquele momento, Fritzen havia voltado para ela?
– Já lhe disse que saberá o que fazer. Porém, se eu morrer
logo, não precisará nem abri-lo. Pode jogar no lixo do jeito que está.
A mulher desmanchava-se em lágrimas e não falou nada mais
a respeito do assunto. Virou-se para trás, e enquanto apanhava uma
bolsa para colocar o envelope dentro, ouviu Fritzen lhe indagar com
curiosidade, tentando amainar a dolorosa conversa:
– E você? O que tem a me dizer? Espero que seja algo melhor
do que conversamos até agora.
– Agora, não sei mesmo se devo lhe dizer ou não. Se eu falar,
poderei chocá-lo; se não falar, acho que poderei estar sendo injusta
com você.
– Do que está falando? Agora é você que está me deixando
confuso.
– Ainda se lembra da última vez que fizemos amor?
– É claro! Como poderia me esquecer? Você era a mulher da
minha vida! Mas aonde quer chegar com esta pergunta?
– Aquilo deu fruto!
Fritzen parou um pouco sem falar nem respirar, enquanto olhava fixamente para o rosto de Larissa, tentando assimilar o que ouvira.
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– O que você está querendo dizer com “deu fruto”? Filho!?
Você quer dizer que teve um filho meu? Onde ele está?
Praticamente sem ouvir a enxurrada de perguntas, ela falou:
– Nós temos um filho.
– E onde ele está? Vamos, diga logo!
Fritzen não queria demonstrar irritação, mas mesmo assim
falava energicamente, à procura de uma resposta por parte de Larissa.
– Já é um homem! Há muito que ele não mora mais comigo.
Foi estudar no exterior e ficou por lá mesmo. Mas está bem e não
sabe que você é o pai dele. Ou pelo menos não sabe que está vivo.
Achei que tivesse sido morto pelos militares da ditadura, e foi isso
que eu lhe disse durante a vida toda.
– E agora? Por acaso falou para ele que me encontrou? Que
estou vivo?
– Não! Não falei, e devido às circunstâncias do momento,
para seu bem e o dele, acho que não devo falar agora. Talvez fale
depois que tudo isso passar, depois que, tenho certeza, você for inocentado dessas acusações.
Fritzen achou que Larissa estava agindo corretamente. Não
havia razão para preocupar o filho com um homem que ele nem sequer conhecera, que ela dizia ser seu pai, e que agora era escrachado
pela imprensa como um criminoso frio e cruel.
– Então, se é assim que pensa, acho que está certa. Mas
gostaria muito mesmo de vê-lo! Saiu ao pai?
– Tenho uma foto bem recente dele em algum lugar por aqui.
Você vai ver com seus próprios olhos.
Larissa levantou-se da poltrona e abriu a gaveta de uma escrivaninha em um dos cantos da sala. Quando estendeu a fotografia
para Fritzen von Keitel, ficou bem próxima dele esperando sua reação. Era como se estivesse vendo sua própria pessoa trinta e tantos
anos mais jovem. Foi a impressão que Fritzen teve.
– Tem alguma dúvida de que seja seu filho?
– Não tenho dúvidas de que seja meu filho! Estou realmente
pensando se não sou eu mesmo parado aí! E o que ele faz para viver?
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– É médico. Como você, ele é médico.
– Meu Deus!
Fritzen não conseguiu exprimir mais do que esta exclamação.
Ficou parado por alguns instantes, balançando a cabeça em sinal de
espanto, enquanto apertava os lábios até que tomaram uma coloração esbranquiçada. Depois da surpresa, mais uma vez fez Larissa
prometer que cuidaria do envelope caso fosse preciso, despediu-se
dela abraçando-a mais demoradamente do que quando chegara e
saiu.
Depois que saiu, no fundo do coração lhe sobrou uma certeza
de que seja lá qual fosse o seu destino dali por diante, sua raiz haveria
de ficar no mundo para certamente continuar sua missão. Não tivera
filhos com Inga, mas Deus o presenteara no passado, e nem sabia.
Enquanto dirigia, Fritzen levantou a cabeça um pouco acima
do capô do carro, viu um grande Papai-Noel luminoso cujo trenó era
puxado por duas renas gigantes, no alto de um edifício, e ficou pensando que talvez aquele fosse o melhor presente de Natal que tivesse
recebido em toda sua vida.
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Dezoito
O juiz Jonas Malton estava mergulhado até o meio das coxas
perto da margem do rio, e mais uma vez se esforçava para lançar o
anzol de seu caniço o mais longe que conseguisse. Depois, prendeu a
vara entre as pernas e tornou a acender o cachimbo que se apagara.
Fumos molhados tinham um bom aroma, mas faziam com que o cachimbo se apagasse constantemente.
Era sua segunda vez em férias no pantanal norte do Mato Grosso, e apesar de não ser um exímio pescador, havia conseguido bom
divertimento ali. Uma caixa grande de isopor com gelo dentro mantinha sempre frescos três belos exemplares de pintados recém-pescados em seu interior.
Suas férias estavam coincidindo com o recesso forense. Isto o
deixava de certa forma tranqüilo, pois assim não corria o risco de
voltar e encontrar sua velha mesa abarrotada de novos processos.
Achava que qualquer um que fosse o seu substituto nunca trabalhava
no mesmo ritmo a que estava acostumado.
O sol já estava se escondendo por trás das grandes árvores do outro
lado do rio, prenunciando o fim da tarde e a chegada da noite silenciosa.
O juiz se distraiu quando o grasnar de um casal de tucanos lhe
chamou a atenção enquanto voava um pouco acima de onde estava,
de uma copa de árvore a outra, e não percebeu que a linha do caniço
havia sido arrastada por um bom trecho rio abaixo, e depois se afrouxara novamente.
Pela terceira vez em menos de três horas se viu obrigado a
apanhar na mochila o repelente de mosquitos e passar nos braços e
parte da cabeça, perto das orelhas. Nem mesmo a fumaça do cachimbo era capaz de repeli-los.
Sentiu que já estava chegando a hora de retornar à pousada.
Inês Malton, sua mulher, o aguardava. Adorava os passeios
com o marido, mas não gostava nem um pouco da beira de rios ou
lagos. Tinha muito medo de cobras e outros bichos.
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O lugar se chamava Porto Cercado, uma pequena cidade que
não possuía mais do que dez mil habitantes, onde o rio Cuiabá oferecia um dos melhores lugares para pescar ou se divertir de qualquer
outra forma.
Cerca de cinqüenta pessoas estavam hospedadas na pousada,
que apesar de rústica era muito mais aconchegante do que parecia.
Fora toda construída com toras de madeira, e sua cobertura era feita
com as folhas de alguma palmeira gigante da região; depois de muito
bem acomodadas sobre as varas, as folhas recebiam um tratamento
químico especial, que impedia seu rápido apodrecimento e evitava
que a água das fortes chuvas características da região atravessassem, caindo no interior da pousada.
De onde estava parado, o juiz Malton conseguia ver a grande
fachada da pousada que ostentava uma enorme e, alta varanda, chegando mesmo a ultrapassar a copa de algumas árvores menores.
Mesmo assim, teria de caminhar pelo menos uns trezentos metros
até chegar.
Lá, um bom banho quente o aguardava, além de um delicioso
ensopado de peixe no jantar, e a convidativa cama que com certeza,
faria com que pudesse recuperar as energias gastas durante o dia.
Mas antes disso, tinha Inês Malton. A jovem mulher Inês
Malton. Estava com seus cinqüenta e dois anos completos, pelo menos seis a menos do que o juiz, e era bastante jovem e vigorosa. O juiz
também era muito jovem e vigoroso, tendo em vista sua idade.
Orgulhava-se de se conservar sempre ativo, principalmente no
que dizia respeito às horas de amor com a mulher Inês.
Um bom e relaxante banho, seguido da refeição leve que faria
algumas horas antes de se acomodarem de uma vez no quarto, iria se
encarregar de repor seu entusiasmo mais ainda.
Gostava de mostrar e dizer a todos que era correligionário dos
que entendiam que o sexo fazia muito bem para o coração.
Sentiu pelo menos dois puxões a mais na linha antes de começar a arrumar as coisas para se retirar para a pousada, e mais duas
piranhas foram jogadas de volta para a água. Não iria levá-las. Não
gostava de piranhas. Apreciava um bom caldo, mas desta vez, não
queria levá-las ainda.
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Já havia resolvido que a partir desta última vez que viesse a
recolher a linha iria embora. Feito isto, e depois de jogar o peixe
carnívoro e dentuço de volta, começou a guardar seus petrechos.
Fechou a pequena banqueta de náilon com estrutura de ferro e
prendeu-a ao lado da caixa de isopor. Enrolou as linhadas e guardouas na caixa junto com os anzóis. Depois, com ambas as mãos carregadas, virou 360 graus em torno de si para se certificar de que não
estava ficando nada para trás.
Certo disso, passou a se dirigir para a pousada.
Era um estreito caminho todo de cascalho e areia, ladeado por
mato em suas duas margens. Caminhava lentamente por ele, e alguns minutos depois já estava andando sobre o grande paço gramado
que era toda a frente do casarão.
De longe avistou Inês sentada na varanda, furtando a claridade
de um enorme lampião pendurado nas toras atrás de uma cadeira de
vime, aparentemente lendo um livro. Quando o viu se aproximar, a
mulher colocou o livro calmamente em cima de um aparador próximo e
desceu cuidadosamente os três degraus de madeira que saíam da varanda, caminhando na direção do marido para ajudá-lo com as tralhas.
O juiz Malton parou, colocou as coisas no chão, acendeu novamente o cachimbo e ficou esperando até que ela chegasse.
– Espere querido! Vou ajudá-lo!
– Tudo bem, mas já estou quase chegando!
– Fez boa pescaria?
– Me diverti bastante. Mas gostaria muito que você estivesse
ao meu lado! Seria ainda mais divertido!
A mulher se empertigou um pouco e se justificou dizendo:
– Sinto muito amor, mas você sabe que eu tenho muito medo
de bichos!
– Poderemos perfeitamente dar um jeito nisso! Se você quiser ir
amanhã, escolheremos um lugar limpo e com mais pessoas, onde poderemos ficar despreocupados. Afinal, nem sempre são os lugares mais
escondidos e que se faz a melhor ceva que dão os melhores peixes!
– Vou pensar nisso. Prometo que pensarei nisso esta noite –
falou Inês enquanto já subia os degraus carregando também algumas
coisas, aliviando a carga do juiz.
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Depois que guardou os peixes em uma geladeira apropriada, o
juiz colocou os petrechos todos dentro de um armário alugado exatamente para esta finalidade e aproximou-se mansamente da mulher.
Tirou o cachimbo da boca, deu-lhe um doce beijo nos lábios e
caminhou para desfrutar da refrescante ducha que tanto ansiava.
*
“Aquele parece ser o juiz Malton!”
O advogado Cleber Petrus Papadopoulos não acreditava, mas
tinha quase certeza de que aquele homenzinho à distância com roupas e botinas rústicas de couros que o faziam lembrar o caipira Jeca
Tatu, e que chegara fumando um cachimbo e se sentara junto com
uma mulher à beira da água, era o juiz que iria presidir o tribunal do
júri no caso de Fritzen von Keitel.
Petrus conhecia o homem há bastante tempo, o suficiente para
saber que ele já deveria ter sido promovido para o Tribunal de Justiça
de São Paulo. Porém alguma coisa no passado do homem estava impedindo isso, levando a crer que ele jamais iria passar de juiz de Comarca.
Praticamente ninguém antes sabia do que se tratava, mas agora, depois do que o médico Fritzen von Keitel lhe contara, Petrus sentia que
era detentor desse segredo provavelmente com exclusividade.
Pensou em se aproximar do homem para conversar, mas achou
que o fato de o juiz associá-lo com seu trabalho no fórum poderia
aborrecê-lo. Isso não era uma boa idéia. Aliás, era até mesmo injusto, pois quem tirava férias queria esquecer o trabalho. Achou que
talvez somente o cumprimentasse, e mais nada. Mas provavelmente
o homem se lembraria dele, pois haviam estado juntos no plenário do
júri por várias vezes, e certamente iriam estar de novo no caso do
médico.
Petrus gostava dele, pois o achava um bom juiz. De uma forma
ou outra sempre procurou aplicar a justiça da maneira que tinha de
ser. De uma forma justa .
Em alguns casos, até havia levado a fama de ter sido condescendente demais, mas nunca extrapolou os limites que a lei reservara
ao seu cargo.
172
Se Fritzen não lhe tivesse contado toda aquela história jamais
iria imaginar que aquele homem seria capaz de fazer coisas como
aquelas.
O advogado estava acompanhado de mais dois amigos, um
médico e um comerciante, todos distraídos, cada um com seu caniço
dentro da água, e não poderiam conversar entre si devido à distância.
Por isso, nem ao menos pôde compartilhar com alguém a descoberta,
por assim dizer.
Procurou esquecer o assunto e voltou a prestar a máxima atenção à sua vara de náilon, que mantinha balançando um pequeno sinete
de metal preso à ponta.
Petrus consultou o relógio de pulso e constatou já passar das
treze horas. Deu mais uma puxada no cachimbo, fazendo o tabaco
aceso chiar dentro da fornilha, e voltou a se concentrar na ponta da
vara com o sinete.
O sol estava quente, e o céu parcialmente encoberto por densas nuvens que provavelmente haviam se originado da forte chuva da
noite anterior. Com certeza, ao cair da tarde, novas trovoadas iriam
se precipitar sobre o pantanal.
A água havia ficado bastante turva, e isso era bom para fisgar
algumas espécies de peixes.
Completamente entretido com a pescaria, não percebeu quando o juiz se levantou de onde havia passado várias horas e passou a
caminhar com a mulher em sua direção. No instante em que levantou
a cabeça, depois de escutar os passos na relva, percebeu que o homem já estava a aproximadamente uns três passos dele, mas não
olhava fixamente em sua direção.
Somente quando já ia passando direto é que o juiz olhou rapidamente para o pescador e desviou em seguida o olhar. Depois voltou
rapidamente a cabeça na mesma direção e fixou os olhos nele por
alguns instantes, indagando, como não querendo acreditar no que via
à sua frente.
– Petrus? Doutor Cleber Petrus Papadopoulos? É o senhor
mesmo?
– Sim! Sou eu! Juiz Malton, não é?
173
O advogado tirou o cachimbo da boca e perguntou apontando
educadamente com o indicador em riste na direção do homem, como
se já não soubesse quem ele era.
– Exato! Mas que coincidência! O que faz por aqui? É claro,
deve estar aproveitando também suas férias, creio!
– Todo ano venho para cá, isso há pelos menos uns cinco!
– Mas quando o senhor chegou, Excelência?
Depois que perguntou, voltou a colocar o cachimbo na boca,
prendendo-o entre os dentes.
O juiz também retirou da boca seu cachimbo, que já se apagara, e respondeu fazendo em seguida as apresentações entre Cleber e
a mulher Inês:
– Há três semanas. Mas não me chame assim por aqui. Chameme de Malton! Esse é um advogado amigo, e essa é Inês, minha mulher.
– Muito prazer em conhecê-la, senhora! Obrigado por permitir que eu o chame de Malton. Afinal, tem pego muito peixe desde
que chegou?
O advogado sentiu-se lisonjeado pela oportunidade que o juiz
tinha lhe dado de tratá-lo de igual para igual e resolveu tornar o assunto um pouco mais íntimo.
– Tenho me divertido o bastante. Agora vou dar umas voltas
aqui e ali. Gosto mesmo de caminhar um pouco, e vou aproveitar
enquanto ainda estou por aqui.
– Espere! Fique mais um pouco! Por que não tenta por aqui?
Quem sabe não nos dá um pouco de sorte?
– Até que não é má idéia. Vou prender a vara aqui mesmo e já
volto!
O juiz olhou para a mulher, que aparentando se sentir bem mais
segura com mais gente por perto assentiu balançando a cabeça.
Em seguida, lançou o anzol uns dez metros à frente. O barulho
da chumbada na água fez com que pelo menos dois enormes peixes
saltassem acima da superfície, um pouco distante de onde estavam.
Os dois acenderam cada um seus respectivos cachimbos, e as
fumaças aromáticas se fundiram entre si subindo sempre na direção
das pesadas nuvens de chuva que passavam.
174
O juiz saiu caminhando e se despediu brevemente de Cleber.
Quando este se virou para responder, viu que algo já estava
arrastando a linha do homem para longe da margem.
– Ei Ju... Malton, volte! Sua linhada! Alguma coisa a está
puxando!
Petrus por mais de uma vez, viu a vara de náilon do juiz
envergar-se quase até tocar a água com a ponta e voltar a subir.
Por sorte o juiz a havia deixado presa em seu suporte metálico
enterrado no chão e muito bem amarrada em um arbusto próximo.
Não fosse isso, quem quer que seja que a estivesse puxando de dentro do rio a teria arrastado para bem longe.
Já havia se afastado um pouco, então parou repentinamente e
soltou a mão da mulher que lhe prendia o braço. Instintivamente partiu e correu o mais que pôde até vencer os quase quarenta metros
que o distanciavam de suas coisas.
Chegou e segurou firmemente a vara com as duas mãos. Sentou-se comodamente na banqueta e preparou-se para lutar, pois sentia que o que fisgara era algo razoavelmente grande.
Cerca de trinta minutos já haviam se passado desde que o juiz
começara a içar a presa para a margem, e só então, depois de ir de
um lado a outro e puxar vigorosamente a linha a ponto de quase
quebrá-la, é que o animal começava a dar sinais de cansaço.
O juiz também. O advogado Petrus estava em pé ao seu lado,
agora junto com senhora Inês, e observava o homem molhar-se todo
com o suor, enquanto a mulher lhe enxugava a face com um lenço.
Quando, com a ajuda de Petrus, o juiz Malton conseguiu prender
o peixe pela cabeça com uma espécie de corda usada em varais, deixando-o dentro da água em um local raso, é que perceberam que se
tratava de um dourado de mais de meio metro da cabeça ao rabo. Não
era muito grande, mas era forte demais para um pescador amador.
– Caramba! Pensei que não iríamos conseguir! Agora acho
que podemos relaxar um pouco!
O juiz falava ainda bastante ofegante, enquanto ajeitava os
poucos cabelos restantes depois de tirar o chapéu, e procurava se
sentar.
175
Levou o cachimbo à boca, acendeu, e Petrus lhe perguntou:
– Valeu a diversão?
– Sem dúvida! Nunca briguei tanto assim em toda a minha
vida de pescador! Foi o meu primeiro desse porte!
O juiz ironizou quando se dizia um pescador, e depois que Inês
lançou-lhe um olhar de certa forma repreensivo e limpou a garganta
pigarreando, todos riram se descontraindo ainda mais.
Cleber aproveitou um breve momento em que ficaram separados das outras pessoas somente ele e o juiz, e decidiu que deveria lhe
falar sobre o assunto que lhe fervia na cabeça.
– Malton! Podemos conversar à sós por uns instantes?
O homem olhou para Cleber, e respondeu prontamente:
– Sim! O que é?
Cleber deteve-se alguns segundos para puxar a fumaça do
cachimbo e depois de soltá-la, respondeu:
– Desculpe-me! Tenho aqui comigo um assunto que está me
atormentando desde que cheguei. Quero que não pense que vim aqui
para lhe falar sobre isso. Esse é um caso em particular muito especial,
e quero que me ouça como amigo e não como juiz.
– Pode falar. Não faço grandes objeções a tratar de assuntos
de trabalho quando estou de férias. Aliás, eu até mesmo gosto! É o
caso do médico, não é?
– Como soube?
– Sempre soube, e imaginei que ele iria lhe falar de qualquer
forma. Eu o conheço há muito tempo. Foi nos tempos da ditadura
militar. Águas passadas para mim, que quero esquecer, e espero que
Deus me perdoe por todo o mal que eu causei a tantas pessoas.
Fiquei feliz por tê-lo visto chegar na sala de audiências. O reconheci
de imediato, assim como ele me reconheceu e o chamou para fora
antes de começarmos. Ele quer me declarar suspeito? Por que então
já não o fez?
– É o contrário! Ele não quer! Eu pensei que se falasse com
você, talvez pensasse sobre o assunto...
– Não, Cleber, tenha calma. Se o réu não me quer suspeito, eu
não vejo por que me declarar; além do que, já lhe falei que para mim
176
os fatos acontecidos são águas passadas. Posso lhe dar minha palavra de honra que não levarei nenhuma vírgula do que se passou para
o caso. Agirei com a máxima isenção de ressentimentos ou qualquer
coisa que o valha.
– Sendo assim, só me resta me conformar e lhe agradecer por
ter me escutado.
– Não tem por que me agradecer. Eu é que lhe agradeço por
ter ajudado para que eu me divertisse um bocado com esses bichos
aqui.
Ao contrário de Cleber Petrus, que ficaria por ali mais uns oito
dias, o juiz Malton teria de partir no dia seguinte pela manhã, pois
suas férias já estavam terminando. Iria até Poconé, onde pegaria um
pequeno avião fretado até Cuiabá; um vôo noturno da Vasp para São
Paulo se encarregaria de levá-lo para casa com a mulher.
Mais tarde, já passada a euforia do dourado fisgado pelo juiz
Malton, Cleber Petrus também havia prosseguido sua pescaria, mas
dessa vez um pouco mais distante do lugar onde antes estavam, resguardando a privacidade do magistrado e mulher.
O juiz olhou na direção de onde os três se situavam antes e não
viu mais ninguém. Olhou para o rosto de Inês e percebeu que estava
tensa. A tarde já havia chegado, e, pela formação das nuvens sobre
eles, concluiu que poderiam tomar chuva antes de chegarem à pousada. Desde que fisgara o dourado, mais três ou quatro piranhas foram jogadas com muito cuidado de volta na água, e nada mais do que
algumas dezenas de bons puxões na ponta do caniço foi percebido.
Resolveu que estava na hora de dizer adeus ao rio Cuiabá e
aos seus peixes e voltar para a pousada.
Enquanto o juiz terminava de enrolar a linha da última vara,
Inês ajudava a arrumar os petrechos, e os primeiros pingos de chuva
começaram a cair.
O enorme jacarandá do outro lado do rio sentiu a fúria da descarga elétrica que atingiu sua copa, fazendo com que o casal se apressasse.
Subir a pequena ravina quando seca já era um tanto difícil, e
naquele momento a dificuldade do casal passou a ser maior ainda
devido à torrente de água que caía. O juiz e a mulher conseguiram
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enfim alcançar o topo, e sob a densa chuva começaram a caminhar
apressadamente pelo caminho de cascalho. Quando avistaram a aconchegante e seca varanda, novas forças os tomaram, e os dois saíram
andando mais apressadamente ainda, quase correndo, até alcançarem seu interior.
O juiz parou por uns segundos e, depois de colocar as coisas no
chão molhado, colocou as mãos na altura das cadeiras e fez as costas
estralarem. Inês sentou-se no banco de vime próximo e ficou olhando
o marido acender novamente o cachimbo depois de enchê-lo com
tabaco seco.
Pouco mais de uma hora depois que chegaram com as roupas
molhadas grudadas no corpo, já tinham tomado um bom banho quente, vestido roupas limpas e secas e aguardavam a hora do jantar,
para, em seguida a um bom papo com quem estivesse interessado, se
recolherem para dormir.
As malas, com exceção de algumas poucas coisas que haviam
sido deixadas do lado de fora, já estavam prontas.
Depois do jantar veio o café forte, o bom bate-papo e o esperado e merecido repouso, com todos sentindo o agradável aroma do
mato molhado pela chuva, que invadiu e perfumou todo o interior da
pousada.
178
Dezenove
Exatamente às treze horas e trinta minutos, a oficial judiciária
abriu a porta do salão do plenário do júri para que as pessoas que
estavam do lado de fora pudessem entrar. Tanto as que iriam ser
sorteadas como qualquer curioso que por ali estivesse poderiam entrar e se sentar em qualquer das fileiras de poltronas existentes.
Alguns minutos antes que o juiz, o promotor, o advogado e o
réu entrassem por uma porta nos fundos do plenário, situada ao
lado da porta da sala secreta, o meirinho abriu a pequena cancela
que dava entrada para o local em que se dariam os debates na
tentativa de convencer os jurados, para que as pessoas inscritas
para o sorteio dos sete entrassem e se dirigissem à mesa onde iriam
dar seus nomes.
Depois disto, um a um todos foram voltando e se sentando nas
poltronas colocadas do lado de fora da cancela .
Embora ostentando imponência, o salão do tribunal já demonstrava traços de velhice, com a extremidade das cortinas corroídas
pelas traças e parte do assoalho esburacado por cupins. Qualquer um
poderia entrar e sair ali, durante qualquer sessão plenária. Era bem
amplo, com várias fileiras de poltronas de um e de outro, e com um
largo corredor no meio.
Larissa Karmov sentou-se bem no fundo e permaneceu com a
cabeça abaixada, coberta com um lenço e usando óculos de sol.
Percebeu que, em dado momento, a porta atrás da cortina se
abriu, e Cleber Petrus entrou acompanhando Fritzen, que se sentou
de costas para o público espectador. Em seguida pela mesma porta
passou um homem, vestido com uma beca de filete vermelho nas
bordas, que ela julgou ser o promotor Halph Ian Mijiag, seguido por
um outro homem, que talvez fosse seu secretário. Quatro policiais
fardados permaneceram como estavam, em pé em pontos separados
do salão.
179
Quando o juiz apontou por último na mesma porta por onde
todos haviam saído, uma campainha estridente soou, dando sinal de
que todos os presentes deveriam ficar de pé para receberem respeitosamente o representante do cargo milenar, cuja função no decorrer dos tempos sempre foi a de dizer e mostrar o direito das
partes litigantes.
Estava iniciado o ritual da justiça que selaria a sorte de Fritzen
von Keitel.
Depois de outro sinal igual, todos voltaram a se sentar. Larissa
retirou os óculos e o chapéu, e com os dedos cruzados começou a
efetuar uma prece sem que ninguém pudesse ouvi-la .
Seguiu-se um breve comentário do juiz, depois que a oficial de
justiça andou até a porta, e como uma louca pôs-se a apregoar para
ninguém em particular e, ao mesmo tempo, para todos que a pudessem escutar.
Cleber caminhou para a mesa que se situava à direita da mesa
do juiz, e o promotor sentou-se no local apropriado do lado direito, um
pouco mais abaixo do lugar onde o magistrado estava sentado.
O volumoso processo permaneceu todo o tempo à frente do
juiz Malton.
Cleber e o promotor faziam algumas anotações esperando que
o juiz iniciasse a seleção dos sete jurados.
A primeira pessoa que foi chamada, tanto Cleber quanto Halph
manifestaram-se positivamente sobre sua atuação como jurado.
A segunda, Cleber aceitou balançando afirmativamente a cabeça quando o juiz se dirigiu a ele, mas Halph recusou. “O senhor
está dispensado!”, dissera-lhe o juiz. O homem saiu com cara de
quem tivesse sido rejeitado, e meio sem graça foi se colocar ao fundo
bem próximo de Larissa Karmov.
Da terceira até a sexta pessoa chamada, depois que o juiz por
mais três vezes enfiou a mão pelo buraco da urna, tanto o advogado
Cleber quanto o promotor não se opuseram a elas.
O sétimo. O sétimo e último jurado. Este deu trabalho, e por
pouco não tirou a paciência do juiz Jonas Malton. Era um médico, e
quando foi chamado, Cleber aceitou prontamente, mas o promotor o
180
dispensou. Depois, foi sorteada uma senhora que Cleber identificou
rapidamente como alguém que pudesse haver tido algum tipo de problema com médicos, por isso a dispensou, mas o promotor a havia
aceitado. Por fim, quando foi sorteado um rapaz que tanto para o
promotor quanto para o advogado pareceu ser um completo alienado,
estes o aceitaram.
Todos já estavam acomodados em seus lugares, quando deu-se
início à sessão com o discurso do promotor, que iniciou sua saudação.
Bradava e gesticulava de um lado a outro do plenário, sempre
com os braços e as mãos estendidas paralelamente na direção de
quem falava.
– Senhores presentes, a todos eu saúdo! Saúdo sua Excelência, o meritíssimo juiz Jonas Malton, por mais uma vez estar na presidência desse egrégio tribunal, tenho certeza, imbuído pelo maior e
melhor senso de justiça! Saúdo ainda o senhor defensor, mas reitero
principalmente aos senhores minha saudação! Sim, aos senhores, pessoas comuns do povo deste lugar que foram escolhidas para fazer
valer a justiça hoje neste plenário. Mais uma vez serão alertados de
que se sentirem alguma condição ou situação que os impeça de continuar sentados aí como jurados, deverão decliná-la imediatamente.
Aqui está, senhores, uma cópia dos autos, que poderá ser passada de
um para outro através dos senhores e senhoras, durante todo o tempo
em que estiverem sentados aí. Porém, a partir do momento que se
dirigirem para aquela sala secreta, será em definitivo para decidirem
a sorte desse homem sentado aqui, com aparência inofensiva, mas
que não deu a mesma oportunidade aos pacientes que vitimou. Ele
alega inocência, mas não conseguiu convencer ninguém de que não
foi ele quem administrou o veneno fatal nas referidas vítimas. Não há
muito o que dizer aqui, senhores jurados, que já não esteja amplamente corroborado com as provas do processo. Aí nesse volume estão
todas as evidências conclusivas de que ele é um homicida e deve ser
tratado dessa maneira pela justiça.
O promotor continuou falando por cerca de mais hora e meia, e
Cleber sentiu nos sete jurados um ar de condenação e repulsa, toda vez
que era dito que as vítimas não tiveram escolha e que o médico simplesmente quisera brincar de Deus. Não tivera a menor compaixão.
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“Compaixão!”, pensou o advogado logo que começou a discursar. No pior das hipóteses, se os jurados entendessem que deveriam
considerar seu cliente culpado, poderia tentar fazer com que concluíssem que o mesmo cometera tais atos por compaixão e piedade diante do sofrimento de pessoas para as quais, segundo sua vasta experiência profissional, não existia a menor possibilidade de se reverter favoravelmente o quadro clínico. Bateu nesta tecla durante todo o
tempo que lhe era reservado para a defesa.
Não fosse a interferência do doutor Fritzen von Keitel, a mulher, Anatolle Maroti, iria sofrer e definhar até o último instante de
sua existência, num verdadeiro interlúdio de dor e agonia.
A conduta pregressa, o senso de moral e companheirismo do
médico foram trazidos à tona a todo instante possível.
Pretéritas ações de caridade foram relembradas, e quase duas
horas depois, as sete fisionomias, antes carrancudas, começaram a se
mostrar um pouco mais condescendentes perante os motivos que supostamente levaram o médico àquela conduta.. Cleber Petrus sentiu
então que era o momento de arrematar com estratégia seu discurso.
– Portanto, senhores integrantes do corpo de jurados, aí está.
O doutor Fritzen, aqui um réu, mas sempre um médico conceituado
junto à comunidade da medicina, inclusive a comunidade internacional, é de fato uma pessoa inocente e imbuída do mais alto senso de
humanidade existente. Ele confessou, sim, ter aplicado o fentanil na
vítima, mas nunca confessou ter injetado o curare encontrado em seu
sangue. Porém é evidente que não conseguiu nos explicar como o
veneno foi parar no corpo da mulher. Mas conseguiu de uma forma
indireta deixar demonstrado que tudo o que fez foi movido por pura
compaixão diante do sofrimento de Anatolle Maroti. Agora cabe aos
senhores julgar. Este homem, cujo passado foi dedicado a ações de
caridade e bondade, e agora já idoso, doente e debilitado, é realmente
um criminoso? Devemos ser cruéis com ele? Concluirão pela graça
de Deus, e também movidos pelo sentimento de misericórdia que
Jesus Cristo nos deixou como exemplo quando padecia na cruz ao
lado daquele ladrão, que devemos também inocentar hoje o médico
doutor Fritzen von Keitel dessa absurda acusação de homicídio.
*
182
Depois que apareceu o juiz, um a um os sete jurados foram
saindo da sala secreta, onde já haviam respondido os quesitos formulados. O advogado e o promotor saíram por último.
O magistrado determinou que o escrivão escrevesse em termo
especial o resultado das respostas que foram dadas a todos os quesitos. Em seguida todos os jurados assinaram acompanhados do magistrado que presidira a votação.
A sentença lavrada acabara de considerar Fritzen von Keitel
culpado por homicídio em sua forma culposa.
No instante em que a sentença foi proferida e prolatada publicamente pelo magistrado, o advogado Cleber Petrus Papadopoulos
sentiu uma imensa exultação de ânimo lhe tomar o peito. Não era o
que esperava, mas mesmo assim era algo bem mais brando do que o
promotor queria; além do que ainda poderia apelar ao Tribunal de
Justiça se Fritzen assim o quisesse.
Olhou para o lado e percebeu que o promotor estava aparentemente irritado e apertava os lábios em sinal de contrariedade depois
que acabara de conversar com o assistente.
Dividir com o cliente a alegria da grande vantagem, quase considerada uma vitória, era o que Cleber mais gostava de fazer depois
de uma sessão. Voltou-se então na direção de Fritzen e tocou-lhe o
braço para chamar a atenção. O homem não respondeu e continuou
como estava, com a cabeça inclinada para um dos lados, como se
estivesse olhando por baixo da mesa do juiz Jonas Malton.
Novamente Cleber lhe tocou o ombro, desta vez um pouco
mais forte.
Então, como se não tivesse presenciado nada do que ocorrera
ali, Fritzen desabou inerte no solo, fazendo com que o baque surdo de
seu rosto indo de encontro ao assoalho fosse ouvido até mesmo pelas
pessoas que estavam no corredor do lado de fora do salão do júri.
183
184
Vinte
Dois novos policiais passaram a trabalhar no caso que o delegado Natanael Guzman investigava, desde o dia em que havia sido
vítima da explosão na delegacia. Os documentos referentes ao caso
que estavam guardados em sua sala foram todos reunidos em uma
só pasta, inclusive os cartões de visita com a propaganda das lojas
funerárias.
Celso Ferreguti e Antônio Souza já haviam trabalhado com
Guzman fazia algum tempo, e estavam mais ou menos inteirados sobre o caso. Reiniciaram tudo partindo de um novo interrogatório com
o rapaz que trabalhava na agência funerária de Euclides, que supostamente fora assassinado pela mesma pessoa que agora tentavam
identificar.
A loja funerária continuava funcionando sob supervisão da família, que resolvera levar o negócio em frente dando parte da sociedade ao rapaz.
Os policiais sabiam que seria fácil encontrá-lo sempre que fosse necessário.
Um número além do normal de féretros havia sido encomendados às duas agências funerárias, todos oriundos de pessoas falecidas no Monsenhor Vasquez.
Mas, assim que Euclides morreu, a outra loja funerária, cujo
cartão de visitas havia sido retirado das mãos da mulher que morrera
na explosão na porta da delegacia, passou a ter exclusividade na encomenda de urnas para pessoas que morriam no Monsenhor Vasquez.
O fato chamou a atenção de Celso e de seu companheiro.
– Tenho quase certeza de que alguém lá de dentro do hospital
está fazendo contato com parente, de pessoas falecidas e encaminhando para essas agências.
– Também creio. Agora está se concentrando mais na Descanso Celestial do que na Euclides Borges.
185
– A Euclides Borges está praticamente fora. Se essa mesma
pessoa matou o antigo dono, não ousará procurar mais ninguém de lá.
– Não, pelo menos até que troque de proprietários.
Antônio refletiu por uns instantes, com uma das mãos em forma de concha segurando o queixo, e falou ao colega o que acabara
de pensar:
– Rapaz! Acabo de ter uma idéia que talvez faça com que
nosso criminoso ou criminosa nos encontre, ao invés de nós precisarmos encontrá-lo!
– Creio que está pensando o mesmo que eu.
– A agência? Esta pensando na agência funerária do Euclides?
– Sim, isso mesmo! Estou pensando que se conseguirmos espalhar por aí, pelo menos dentro do Monsenhor Vasquez, que novas
pessoas são os seus proprietários, o criminoso se sentirá tentado a
procurar de novo seu antigo cliente.
– E aí, quando se fizer identificar, nós o prenderemos. Mas e o
rapaz?
– Ele não pode aparecer. Se o criminoso o vir, suspeitará de
tudo e jamais se aproximará novamente.
– Temos de dar um jeito de mantê-lo por perto, mas tem de ser
às escondidas.
– Creio que não será necessário mantê-lo por perto. Na hora
H, faremos com que o identifique.
Em menos de dois dias, a placa da Euclides Borges saiu, e
outra que dizia Funerária Kemal Maluf foi colocada no lugar. Algumas semanas depois, já era conhecida como a funerária do turco.
*
O investigador Celso Ferreguti apanhou o jornal de costume na
banca em frente à delegacia e assim que viu uma das manchetes da
primeira página sorriu e pensou: “Isto é ótimo! Está lançada a isca,
agora é só esperar”.
Kemal Maluf havia sido preso e liberado em seguida, por ter
sido flagrado entregando um corpo numa faculdade de medicina do
186
interior, em troca de uma importância nem tão vultosa assim. Era o
que dizia a manchete no jornal.
No Hospital Geral Monsenhor Vasquez, Yves Pliuchtch, residente do sexto ano de medicina, entrou, e ao passar pelo balcão da
recepcionista lhe sorriu muito amavelmente, pegando o exemplar do
jornal que lhe era reservado todos os dias . A mulher notou que uma
de suas pernas estava mancando, e ele praticamente a arrastava.
Yvez entrou em sua sala, onde dividia o espaço com um dos
médicos efetivos do hospital, e saiu em seguida, depois de deixar o
jornal e as outras coisas que carregava sobre uma mesa. Antes de
sair, vestiu o guarda-pó verde da sala de obstetrícia sobre a roupa que
estava usando.
Saiu andando pelo corredor, e assim que se aproximou da sala das
enfermeiras ouviu vozes e entrou. Uma das duas mulheres que estavam
lá dentro saiu, e a outra se limitou a levantar da cadeira que ocupava e
andar na direção de Yves. O rapaz abriu os braços para recebê-la e
quase teve de ficar nas pontas dos pés para lhe envolver o pescoço num
forte abraço. Em seguida, beijou-a ardentemente nos lábios.
– Amor! O que está fazendo aqui tão cedo?
– Senti sua falta, e quis aparecer antes que fosse embora.
Yves não pôde deixar de notar que a namorada estava com os
olhos inchados, o que fazia parecer que acabara de chorar. Era uma
das poucas enfermeiras com mais de cinco anos de serviço no hospital. Chamava-se Laura.
Laura Hakinen. Sua estatura fazia com que, se quisesse, pudesse muito bem se passar com o mais alto realismo por uma loura
viking. Os cabelos da cor dos raios do sol escorriam do alto de seus
quase dois metros de altura e desciam pelos ombros fortes até o meio
das costas. Seu tamanho avantajado, porém, não lhe furtara a feminilidade em momento algum. Para Yves, ela era efetivamente uma princesa da Bavária.
– O que aconteceu, amor? Você chorou!
– É um pequeno problema que me atormenta. Mas passará
logo, tenho certeza.
– É claro! Vai passar. Mas mesmo assim quero ajudá-la.
– Eu não quero preocupá-lo, Yves!
187
O jovem abraçou a novamente, aquecendo-a em seus braços,
e falou:
– Agora, se não me disser o que se passa, aí sim eu ficarei
preocupado.
– Está bem. Mas quero que me prometa que não vai interferir
em nada. Não quero que se intrometa, pois pode ser perigoso para
você!
– Está certo. Prometo. Mas fale logo o que é!
– É meu irmão outra vez. Lembra-se dele? Das coisas que eu
lhe falei?
– Sim. Lembro-me muito bem.
– Então também está lembrado que eu lhe disse que ele havia
saído da cadeia fazia poucos meses?
Novamente o médico assentiu balançando a cabeça, enquanto
respondia:
– Lembro-me muito bem. Mas e agora, o que está acontecendo?
– Acho que ele está metido em alguma encrenca das grossas.
Achei isto aqui no meio das coisas dele. E já faz muito tempo que ele
não tem hora para chegar em casa, além do que não faz referência a
nenhum emprego, mas nunca está sem dinheiro.
Laura retirou um embrulho de dentro da bolsa e entregou nas
mãos de Yves, enrolado em um pano. Yves abriu o pano e percebeu
tratar-se de um revólver bastante usado. Teve o cuidado de não tocar
diretamente na arma para não deixar impressões digitais. Achou que
a namorada deveria procurar a polícia e entregar a arma. Por outro
lado, ficou pensando no que o irmão dela poderia lhe fazer se soubesse que ela estava tomando aquela atitude. Se ele realmente era um
bandido não teria nenhum escrúpulo em machucá-la.
– Tem de se livrar desta coisa! Se ele descobrir que você a
pegou, pode querer lhe arranjar problemas!
Laura ainda chorava um pouco e quase tinha dificuldades para
falar.
– Ele não está em casa! Pelo menos pelos próximos cinco
dias, foi o que me disse.
– Onde ele está?
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– Viajou. Foi para Piracicaba a negócios. Não sei quais são os
negócios, mas desconfio de que são drogas de novo! Deve estar indo
encontrar algum traficante, no mínimo! Se o pegarem dessa vez, não
sairá tão fácil da cadeia.
– Cadeia? Você realmente se importa com isso mesmo? Apesar de ser seu irmão?
– De certa forma, sim. Até há bem pouco tempo atrás, antes
de se meter com drogas, ele era um bom rapaz. Eu sei que ele não
está agindo certo, mas eu o amo. Não sei o que fazer.
A garota saiu de perto do namorado e passou a andar histericamente de um lado para outro da sala. Yves Pliuchtch levantou-se
lentamente devido ao problema na prótese mecânica de uma das pernas e segurou-a pelo braços, acalmando-a.
– Fique calma. Vamos dar um jeito de resolver essa situação
hoje mesmo. Guarde esse negócio onde ninguém o encontre. Logo
após o almoço vou lhe telefonar e vamos sair um pouco. Vai estar em
casa, não vai?
– Vou. Vai passar lá?
– Sim. Não saia até que eu chegue.
Depois de outro beijo ardente, o médico residente saiu da sala
das enfermeiras e prosseguiu no que iria ser seu dia rotineiro.
*
Celso Ferreguti olhou no espelho e notou que seu rosto havia
ficado muito mais branco depois que retirara a barba e o bigode.
Além disso o cabelo fora cortado quase rente ao couro cabeludo.
Teve vontade de rir. Os fios de cabelos não estavam com mais de
três centímetros de altura. Nem sua mãe o reconheceria de imediato
se o visse daquele jeito, era o que estava imaginando. Não sabia
muita coisa a respeito de vender caixões, mas esperava que não tivesse que ficar muito tempo ali na agência funerária antes que a
pessoa que supostamente estava cometendo os crimes o procurasse.
O rapaz estaria por perto, mas numa sala fechada, com uma pequena
janela de vigia , por onde ele veria quem chegasse, e o visitante não
poderia vê-lo lá dentro. Era a retaguarda do policial. Se precisasse,
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Celso recorreria a ele para resolver qualquer problema referente à
venda de qualquer mercadoria da loja.
Na segunda semana fingindo se passar por Kemal Maluf, numa
quarta-feira logo pela manhã, o telefone tocou, e a pessoa que estava
fazendo a ligação disse que não queria comprar caixões.
– Quero falar com turco!
– Que turrca?
O policial procurou imprimir um sotaque qualquer na voz, tentando se passar por um estrangeiro.
– Esse tal de Camal Maluf. Acho que é Maluf, o nome do
prefeito de São Paulo!
– É Kemal Maluf! O que a senhorr deseja? Eu ser Kemal
Maluf. Não ser prefeita de São Paulo, não. Ser vendedor de caixotões!
Quem é a senhorr?
– Isso não importa agora. Preciso falar com você, pois creio
que poderemos fazer um negócio.
Celso parou de falar por alguns segundos, enquanto acendia
um cigarro e pensava, e depois respondeu:
– Que negócia? A senhorr tem alguma morto? Eu tem a caixotão.
Todo tipo de caixotão. Mais caro, mais barrata, como quiser!
– Não é de caixão que eu estou falando, seu turco! É de...
– Então, sinto muita pena da senhorr, mas a senhorr ligou para
lugar errado! Nossa negócia é venderr caixotão para defunta!
Celso desligou imediatamente a tempo de ouvir a pessoa que
ligara mandá-lo esperar. Não conseguiu distinguir se se tratava de
voz de homem ou de mulher, pois seguramente a pessoa estava se
utilizando de algum artifício para disfarçar a voz.
O policial sabia que ela voltaria a ligar, ou então não iria resistir
à tentação de ir até lá falar com ele pessoalmente. Fizera bem o
papel do turco mau-caráter que desconfiava de tudo e de todos. Fez
parecer que tinha culpa no cartório, e que não iria cair em cilada de
ninguém facilmente. Se resolvesse dar espaço para a pessoa que lhe
ligara falar qualquer coisa, ou mesmo se mostrasse grande interesse
pelo assunto, poderia despertar desconfiança. Quem anda às margens da lei é sempre desconfiado, e assim se fizera parecer.
190
Entardeceu, e durante todo o dia Celso vendeu não mais do
que três urnas funerárias. Somente uma seria para um corpo proveniente do Monsenhor Vasquez, e Celso indagara a quem lhe encomendara se sua loja havia sido indicada por alguém de dentro do
hospital. “Sim”, foi a resposta. Mas não naquele dia. A pessoa não se
lembrava de quem fora, mas alguém do hospital tinha certeza de que
seu irmão viria a falecer e, demonstrando muito pesar, havia lhe indicado a loja de um tal de Euclides.
Celso compreendeu, então, que certamente já fazia um bom
tempo que a pessoa havia tido contato com quem estava agenciando
as urnas. Não se deu ao trabalho de perguntar ao cliente como era
quem havia indicado a loja, pois ele já foi logo dizendo como havia
acontecido:
– Não me lembro da fisionomia da pessoa. Só sei que não foi
o senhor.
“Com certeza não fui eu mesmo!”, pensou o policial.
– A princípio, estranhei o fato de alguém oferecer urnas funerárias em um hospital, a alguém que ainda não tinha um morto para
enterrar. Depois, fiquei imaginando: “Também, não há o que estranhar. Hoje em dia existem planos para tudo, inclusive para se comprar o terreno do próprio túmulo! Por que então eu deveria estranhar
alguém me oferecendo caixões?” Mas confesso ao senhor, eu sei
que é seu serviço, mas acho que não é nada muito agradável de se
fazer.
Celso sorriu e balançou a cabeça afirmativamente.
– Nada agradável! Pode ter certeza disto!
Os acertos para o funeral foram feitos, Celso pediu um minuto
de licença, e antes que o cliente fosse embora, entrou na pequena
saleta onde o rapaz estava. O mesmo anuiu a venda. O cliente agradeceu e saiu, quase batendo de frente com uma outra pessoa que
chegava. Celso foi logo falando alto:
– Pois não! Em que posso servirr?
– Procuro Camal Maluf! É o senhor?
O policial percebeu imediatamente que aquela pessoa poderia
ser quem lhe havia telefonado pela manhã, pela forma com que fala191
va o nome fictício do turco. Fez uma careta enquanto tentava espargir a fumaça fedorenta do charuto que a pessoa trazia preso em um
dos cantos da boca, e no mesmo instante também notou que o cliente
que estava saindo voltou e lhe acenava para que se dirigisse até um
dos cantos do balcão, longe da pessoa que chegara.
O policial Celso se aproximou do cliente, que lhe sussurrou ao ouvido, sem deixar que a pessoa que esperava pudesse ouvir o que falava.
– Lembra que me perguntou quem me ofereceu sua agência?
– É claro que me lembro.
– Parece essa pessoa aí! Tenho quase certeza que é ela. Mas
fique quieto, pois não quero que saiba que estamos falando dela. É
falta de educação falar dos outros sem que saibam.
Celso mais uma vez agradeceu ao cliente, e quando pensou em
lhe pedir o endereço e lhe estender um cartão, lembrou-se de que ali
ele não era um policial.
Era um comerciante e tinha os dados do cliente na ficha da
compra. Poderia averiguar em outra hora. O cliente saiu novamente,
e ao passar pela pessoa cumprimentou-a e sorriu, como se quisesse
demonstrar agradecimento pela indicação da funerária.
Celso tossiu e falou:
– Pois não! Desculpe o demorra! Alguns clientes são muita
complicadas na horra de enterrar parentas!
– Você é o turco?
– Eu ser Kemal Maluf às suas ordens. Temos qualquer tipo de
caixotões e arranjas de florres!
– Deixa de conversa mole. Falei com você de manhã, e você
desligou o telefone na minha cara.
– Desculpa. A humilde turrca pensou serr alguém querendo
me seqüestrar! Mas agora me lembro. Disse que tem uma negócia
parra mim?
– Tenho. Mas não adianta querer me enganar, pois eu li os
jornais. Sei que não é “a humilde turrca” que fala!
– Desculpa a humilde turrca de novo! Eu não está entendendo! Não foi nada daquilo. Foi arrmação que pegaram humilde Kemal
Maluf. Agorra minha rica dinheiro vai parra advogada!
192
A pessoa inclinou-se o bastante sobre o balcão, e seus fortes e
longos braços aloirados não tiveram dificuldade nenhuma em segurar
o policial pela gola da camisa. O charuto que já se apagara continuou
pendurado nos seus lábios grossos e quase tocou o rosto de Celso.
Depois, berrou:
– Ô seu turco imbecil! Sabe muito bem do que estou falando.
São corpos. Corpos de gente . Arrumo quantos você quiser! Entendeu agora?
– Corpas? Corpas de gente em bom estado?
A pessoa fez um sinal pedindo silêncio, com o indicador direito
sobre os lábios, e mandou que Celso falasse um pouco mais baixo.
Celso esboçou um sorriso de garoto maroto que havia cometido uma
gafe, e chamou a pessoa para dentro de sua sala nos fundos da loja.
Antes de entrarem na sala, Celso passou o ferrolho na porta da frente pelo lado de dentro.
– Vamos conversar aqui dentro! É sempre mais segurra !
A pessoa estranha balançou a cabeça concordando, enquanto
tentava novamente acender o charuto, que já estava com uma ponta
toda molhada de saliva.
Assim que entraram e fecharam a porta, Celso sentou-se na
cadeira atrás de sua mesa e, balançando-a para frente e para trás,
colocou as mãos com os dedos cruzados na nuca e perguntou:
– Vamos falarr da tal negócia, então. Mas quem é você?
– Isso sinceramente não importa, e é melhor você não saber.
Vamos falar somente do que interessa. De presuntos!
– E como vou saberr se você não é do polícia?
– E como vou saber se você também não é e está disfarçando
a voz e seu sotaque?
Celso chegou a imaginar que talvez a pessoa estivesse desconfiada dele e não iria se abrir facilmente. Fez menção de dar uma
gargalhada, mas somente riu e rebateu em seguida:
– Eu? Uma pobre e humilde turrca? Mesmo que eu quisesse,
não iriam me aceitar. Acabei de sair do cadeia!
– Está bem, então. Digamos que eu acredite. Bem, quanto ao
negócio, o assunto é muito simples. Você faz a transação com quem
193
precisar dos corpos para o fim que quiserem, e eu lhe arranjo eles.
De qualquer cor, idade e tamanho!
Celso deixou sair uma espécie de murmúrio enquanto acendia
um cigarro, e perguntou em seguida:
– E onde vai acharr tantas corpas?
– Que tal no açougue do seu mané do bar da esquina? Está
querendo saber demais, turco esperto! Topa a transação ou não?
O policial deu uma longa tragada no cigarro e soltou a fumaça
pelas narinas. Depois, fingindo não entender a ironia da pessoa, perguntou com cara de espantado:
– Corpas na açougue da seu mané? Turrca achar que isso não
é bom. Onde já se viu corpas em açougue?
– Agora chega! O negócio é sério! Topa ou não?
– A humilde Kemal não sabe o que quer dizer com topa, e está
pensando serriamente em não fazer mais coissas assim. Mas poderrei
lhe dar resposta outra dia?
A pessoa estranha estava irritada desde o momento em que
entrara na loja, e Celso já havia percebido desde então.
Celso pensou em lhe oferecer a oportunidade de ganhar algum
dinheiro simplesmente lhe encomendando a parentes de pessoas falecidas, mas achou que se fizesse isto, a pessoa poderia desconfiar.
Por isso a apertava cuidadosamente com desvios no assunto.
– Escuta aqui, seu turco tonto.
Celso tirou o cigarro rapidamente da boca e jogou no cinzeiro
de areia colocado em um dos cantos da sala. Depois, levantou-se de
repente e, batendo com as duas mãos fortemente em cima da mesa,
falou:
– Não chama Kemal de turca tonta, que Kemal não gosta e
põe você prá fora do loja! E depois não faz mais negócia nenhuma
com você!
– Está bem, mas não fique irritado. Só quero que entenda que
você não pode desperdiçar esta chance de ganhar uma grana boa.
Além do mais, eu também preciso levantar algum dinheiro o mais
rápido possível, pois tenho que pagar alguns credores que estão me
apertando!
194
O policial voltou a se sentar lentamente, coçou a nuca como se
estivesse pensando e murmurou quase consigo mesmo:
– Ahnnn! Uma bom dinheiro! Turca Kemal não pode deixar
passarr.
Em seguida, levantando a cabeça na direção da pessoa estranha, perguntou:
– Então o que você pode me arrumarr para fim de semana?
– O que você quiser! Homem, mulher, criança! Você escolhe!
– Está bem. Mas antes de arrumar corpa, precisa falar com
turca Kemal para confirmarr cliente! Está bem?
– Está bem. Eu lhe telefono.
– Não! Está louca também? Perdeu a juíza? Vem aqui amanhã para falar com Kemal Maluf! Telefone pode estar grampeada
pela polícia! Turca imbecil só fala com você pessoalmente!
Celso gesticulava e apontava a mão energicamente na direção
da pessoa que já era seu pretenso sócio nos negócios escusos, enquanto dizia se vangloriando de sua esperteza:
– Ha! Está vendo, sua burra? Depois é turca que é imbecil!
O policial levantou-se da cadeira para acompanhar a pessoa
até a porta, e quando esta lhe estendeu a mão para cumprimentá-lo,
ele limitou-se a inclinar a cabeça um pouco para a frente e com as
mãos cruzadas atrás das costas o cumprimentou mais como se fosse
uma reverência.
A pessoa abaixou a cabeça também e os cabelos louros caíram por sobre os ombros, estendendo-se à frente. Apanhou em um
dos bolsos outro charuto, acendeu enfumaçando todo o ambiente,
olhou na direção da porta e foi embora.
Em seguida o policial trancou novamente a porta e chamou o
rapaz que havia visto e ouvido tudo de dentro da saleta.
– E então? É essa pessoa que você viu no dia que Euclides
sumiu?
– É ela! Tenho certeza de que é ela! Principalmente pelo cheiro do charuto.
Os dois ficaram em silêncio por uns poucos instantes, e depois
o rapaz falou demonstrando entusiasmo:
195
– Menos de um mês, e já a pegamos!
– Não tenha tanta certeza assim. Teremos de armar uma boa
cilada para que caia.
– Não precisamos de mais do que um gravador, uma boa câmara escondida e meu testemunho! Não é assim que funciona nos
filmes?
Celso acabara de acender outro cigarro, e enquanto puxava a
fumaça respondia energicamente ao rapaz:
– Mas acontece que isto aqui não é nenhum filme, e na hora H
é bom que você siga tudo que eu lhe disser à risca para não se machucar. Se algo lhe acontecer, eu estou perdido!
*
Às quatorze horas do dia seguinte, o policial e o rapaz viram a
mesma pessoa entrar pela porta da frente, utilizando também a mesma roupa do dia anterior.
Meio quarteirão um pouco mais adiante, um carro com outro
policial em seu interior aguardava até que lhe fosse emitido um sinal
previamente estabelecido.
O rapaz, de dentro da sala em que estava escondido, se encarregaria de acionar o botão no radio-transmissor de mão, para alertar
Antônio. Quando o negócio tivesse sido concluído, o policial Celso
Ferreguti iria acompanhar lentamente a pessoa estranha até o meio
da loja e iria parar e voltar-se na direção da pequena janela. Não iria
dizer nada. Somente iria voltar-se na direção da janela.
Este era o sinal para que o rapaz chamasse o companheiro no
carro estacionado um pouco distante, mas o suficiente para que chegasse a tempo de prenderem a pessoa suspeita.
Ela caminhava e gingava quase rebolando, ainda com a ponta
de um charuto pendurada na boca, e lentamente aproximou-se de
Celso enquanto falava:
– Aqui estou, turco. E então? Vai querer a encomenda?
Mais uma vez Celso levou a pessoa para dentro da sala, sem dizer
nada. Ela deixou transparecer que gostava daquilo. “O turco era confiável
e ao mesmo tempo desconfiado”, ela pensou enquanto entrava.
196
Assim que fechou a porta, Celso falou:
– É para hoje à noite que preciso. Consegue alguma corpa?
– Para que horas exatamente?
– Dez, onze ou meia noite! Tanto faz! Acha que consegue
trazer uma criança para a turca Kemal? Tem que ser criança loura,
até três anos de idade! É para ritual. Cliente da turca quer para ritual
de magia negra! Macumba, entende? Turca não perguntou, mas cliente
falou. Consegue?
A pessoa demonstrou surpresa e irritação, apesar de ela própria ter dito que Celso Ferreguti poderia encomendar o que quisesse
que arrumaria.
– Verei o que posso fazer! Mas uma criança a esta hora? Isto
é fria! Onde vou arrumar uma criança?
– Que tal na bar de seu mané da esquina? Consegue ou não?
– Vinte paus. Eu quero vinte mil reais na mão.
– Nada feito. Turca Kemal dá dezesseis paus. Metade agora
e metade na entrega.
A pessoa fitou Celso firmemente, enquanto ele apanhava de
dentro da gaveta um envelope. Instintivamente segurou com todas as
forças dos dedos a arma na cintura com a mão direita. Quando o
policial Celso esparramou sobre a mesa a quantidade de notas de
cem reais que saíram de dentro do envelope, a pessoa deixou
transparecer um brilho intenso nos olhos que se arregalaram e não
exitou em confirmar o mórbido negócio.
As notas haviam sido marcadas uma por uma e relacionadas em
seguida. No instante em que Antônio a agarrasse e lhe desse voz de
prisão, as cédulas numeradas seriam a prova da transação ilegal. O rapaz de dentro da saleta testemunhou o negócio do início ao fim, vendo e
ouvindo através de outra janela falsa na parede entre as duas salas.
Celso saiu, e a pessoa o acompanhou se prontificando a ir buscar a encomenda macabra.
Dessa vez o longo e forte braço aloirado não deixou que Celso,
o falso turco, abaixasse a cabeça para dar os cumprimentos: segurou
a mão do policial e apertou de uma forma que lhe deixou os dedos
marcados pelos nós.
197
O rapaz no interior da saleta viu o policial sair, chegar ao meio
da loja e voltar em sua direção.
“É agora!”, pensou.
O moço não teve tempo de amaldiçoar o momento em que o
radio-transmissor que estava em cima da mesa caiu no chão depois
que o acionou, e também não teve tempo de se arrepender de ter
acendido a luz de dentro da saleta para procurá-lo.
O assassino o viu pelo reflexo no espelho, e atirou uma vez
enquanto blasfemava e lançava impropérios:
– Turco desgraçado! Turco desgraçado!
O espelho se despedaçou, e outro disparo se ouviu na mesma
direção.
O policial se jogou rapidamente atrás de um caixão, e sua arma
também disparou, mas na direção do louro assassino. Um pequeno
orifício surgiu na testa do gigante, e outro orifício em que caberia uma
bola de tênis de mesa apareceu atrás de sua cabeça depois que uma
longa peruca voou distante. Enquanto caia pesadamente, o sangue do
assassino esparramava-se pelo chão.
Poucos segundos depois, Antônio entrou correndo com uma
arma na mão.
– Ouvi tiros! Que aconteceu?
Celso estava sentado, e ainda meio tonto tentava explicar falando de forma ofegante, enquanto apontava com uma das mãos na
direção do louro jogado no chão.
– O desgraçado percebeu tudo na hora H! Está morto!
No mesmo instante se levantou e saiu caminhando na direção
da saleta, para ver se a testemunha estava bem.
Com o rádio ainda chiando pela estática seguro em uma das
mãos, meio sentado e meio deitado e com o corpo encostado na parede, o rapaz deixou claro aos dois policiais, que o olhavam estupefatos,
que não iria mais testemunhar contra aquele homem estendido no
meio da loja e contra ninguém nunca mais.
Celso passou a mão em seu rosto para lhe fechar os olhos, mas
estes insistiram em permanecer semi-abertos como se estivesse olhando para bem distante através da parede com o vidro estilhaçado.
198
*
Passava pouco mais da meia noite quando Laura ouviu a campainha tocar e foi atender. Dois homens muito educados e bem vestidos se identificaram como policiais e lhe anunciaram o que havia
acontecido com Ilich Hakinen. Queriam saber se era seu parente.
Ela olhou para eles, que estavam em pé dois degraus abaixo do patamar da porta, e percebeu que o cão que seria o responsável por avisála da entrada de intrusos no quintal estava confortavelmente deitado
ao lado deles e olhava para todos com os olhos melancólicos e sonolentos, como se não estivesse gostando nada daquilo àquela hora da
noite.
Antes que ela arrematasse dizendo que Ilich era seu irmão, os
dois olharam um para o outro mostrando-se impressionados com a
semelhança entre a mulher e o rapaz que havia trocado tiros com
eles na funerária. Mostraram-lhe um mandado de busca judicial e
alertaram-na de que não era obrigada a deixá-los entrar para revistar
a casa se assim não o quisesse. Aí ficariam sentados ali na porta até
às seis da manhã, quando então entrariam de qualquer maneira.
Depois de quarenta minutos de busca, os policiais Celso e Antônio voltaram para a sala onde Laura estava sentada, esperando que
terminassem de revistar a casa, e um deles lhe perguntou se poderia
responder-lhes algumas perguntas. Seriam rápidos.
“Se não quiser responder agora, sentamos lá fora, e às seis
da manhã levamos você para a delegacia”, dissera-lhe o outro calmamente, enquanto acendia um cigarro com um olhar perdido na
distância.
Laura afirmou que não haveria problemas se lhe garantissem
que iriam ser realmente rápidos.
De qualquer forma ela iria mesmo ter de sair com eles para
reconhecer o irmão.
– Pode nos dizer de quem é este guarda-pó?
Celso levantou um guarda-pó verde utilizado pelos médicos e
enfermeiras da obstetrícia do Monsenhor Vasquez.
– E esta caixa de charutos? Ela estava em seu quarto! – disse
o outro.
199
– É meu! É meu uniforme! Vocês entraram em meu quarto?
Não me disseram que iriam fazer isto!
O policial ignorou o comentário de Laura e continuou perguntando. Nada estava descartado. Até mesmo a hipótese de ela ser
uma fumadora de charutos tinha de ser levada em consideração.
– É comum a senhorita guardar suas roupas no quarto de seu
irmão? Aquele quarto do canto é dele, não é?
– Sim. É dele. Mas eu jamais deixei roupas minhas ou qualquer outra coisa lá. Porém, posso ter me esquecido. Sempre entro lá
para arrumar o quarto.
O outro policial segurava em uma das mãos algumas embalagens parecidas com a de algum medicamento, e dessa vez, depois de
pigarrear para limpar a garganta, foi quem perguntou:
– Importa-se de nos dizer se sabe para que seu irmão, ou
quem quer que seja nesta casa, se utiliza de curare?
– Curare? Para que alguém utilizaria curare se não for para
matar alguém ou algum bicho?
O policial riu quase sarcasticamente e continuou falando depois de jogar a ponta de cigarro em um cinzeiro próximo.
– A senhora não está querendo nos dizer que aqui na sua casa
vocês utilizam curare para matar baratas, está?
– Não estou querendo dizer nada. Eu não faço a menor idéia
sobre o que esta droga está fazendo aqui em casa. Só pode ser coisa
de Ilich! Porque não lhe perguntaram estas coisas antes de matá-lo?
– Ele não nos deu opção e infelizmente agora está morto. Por
isso, não poderá nos esclarecer mais nada. O que temos a lhe dizer a
respeito disso tudo é que temos fortes motivos para crer que alguém
com as suas características, que, diga-se de passagem, são as mesmas
de seu irmão, está se utilizando desse material para fins extremamente
ilegais. Por isso, somos obrigados adverti-la de que não é aconselhável
que saia da cidade sem nos comunicar, pois possivelmente deverá ser
chamada a depor novamente na delegacia. Caso contrário teremos de
pedir sua prisão preventiva até esclarecermos tudo.
– Vão me levar presa?
– Não. Simplesmente não se ausente da cidade sem nos
comunicar.
200
Os dois policiais se despediram de Laura desculpando-se por
algum inconveniente e saíram, depois de lhe dizerem que não necessitaria mais acompanhá-los. Poderia ir mais tarde para reconhecer o
corpo do irmão no necrotério. Laura fechou a porta em seguida e foi
se arrumar para cuidar de Ilich.
Celso parou na calçada do lado de fora da casa e, assim que o
companheiro entrou no carro estacionado, afastou-se um pouco para
fazer uma ligação no celular. Depois de duas tentativas, alguém muito sonolento atendeu do outro lado.
– Alô!
– É Ferreguti! Acordei você?
– Não! Imagine! Eu estava mesmo dançando um sapateado!
Fala logo! O que é tão importante para me tirar da cama a essa hora?
– Acho que você tinha razão. Não é o médico!
– Por que diz isso?
– Porque quem apareceu foi outro. Um tal de Ilich, irmão de
uma enfermeira do Monsenhor Vasquez.
– Você o prendeu?
– Ele se deu mal. Eu o peguei.
– Como?
– Ele atirou em mim e fui obrigado a matá-lo!
– Mas isso nos leva à estaca zero! Como vamos provar que
ele é ou não o assassino?
– Ainda temos a enfermeira e os vidros do curare que encontramos na casa deles. Se ela tiver um bom álibi para os dias em
que aconteceram os crimes, isso nos levará ao irmão. Roupas do
hospital foram encontradas no quarto dele, e as embalagens do curare
também!
– Mas isso não quer dizer nada. A enfermeira pode muito bem
ter colocado estas coisas lá para livrar a própria cara.
– Sim, pode. Mas não creio. De qualquer forma, vamos investigar e lhe aviso de qualquer coisa.
– Avisem-me o mais rápido possível. Apesar de que, a essa
altura, acredito que já devem ter fritado o médico. Mesmo assim, se
201
provarmos que ele não é o culpado, quero ir pessoalmente lhe informar, onde quer que esteja.
– Tem mais uma coisa.
Enquanto continuava falando, o policial Celso percebeu que o
companheiro já ligara o motor do carro. Havia esfriado bastante, por
isso o escapamento do veículo fazia subir uma pequena nuvem de
vapor que sumia logo em seguida.
– O que é agora?
– Terá de dar um jeito de me livrar a cara!
– Por que diz isso? O que você fez?
– Eu coloquei um civil na parada, e ele se deu mal!
– Está machucado?
– Não! Está morto!
De dentro do carro, o policial Antônio percebeu que Celso demorou alguns segundos ouvindo a pessoa do outro lado da linha falar,
mas com o telefone bem afastado do ouvido. Teve a nítida impressão
de que do outro lado alguém gritava com o colega. Depois disso Celso desligou o telefone e voltou para o carro. O companheiro, curioso,
quis saber com quem ele estivera falando tanto tempo.
“Mulheres!”, respondeu franzindo o cenho. “Mulheres, são uma
ótima maneira de fazer regime e não criar barriga. Elas amolam você,
fazem com que se irrite e não coma, tampouco durma direito. As
conseqüências disso? Você emagrece!”
Antonio riu e acelerou o carro para bem longe de onde estavam.
*
Yves Pliuchtch passou pela recepção do hospital como sempre
fazia todas as manhãs, e a recepcionista lhe disse que tinha um recado para ele. Deveria procurar Laura imediatamente na sala das enfermeiras. Ela o estava esperando.
A moça ficou observando enquanto ele arrastava a perna, que,
agora já sabia, do meio da coxa para baixo era uma prótese metálica.
Yves passou direto por sua sala e foi primeiro falar com Laura.
Quando entrou, depois de bater com os nós dos dedos na porta, en202
controu a namorada sentada em seu lugar de costume. Sua fisionomia,
apesar de triste, não estava pior do que quando lhe falara dos problemas com o irmão.
– Olá, amor! Fiquei sabendo que quer me falar! É o seu irmão?
– Também. Mas eu estava mesmo era com saudades de você.
– Eu senti sua falta também. E o seu irmão, o que você resolveu?
– Você ainda não abriu o seu jornal? Está aí mesmo na primeira página, no canto superior!
Yves ia perguntar novamente o que havia acontecido, mas se
limitou a manter um braço em volta da cintura de Laura, enquanto
com a mão que ficou livre abria o jornal. Bem acima do meio da
página, uma reportagem dava conta de que Ilich Hakinen havia sido
morto depois de trocar tiros com dois policiais no interior de uma
agência funerária. A reportagem não dizia o que o irmão de Laura
estava fazendo dentro da funerária, e tampouco ela desconfiava. Sabia
que boa coisa não podia ser.
O namorado percebeu que ela já havia chorado, e provavelmente já devia ter esgotado sua cota de aborrecimentos e tristezas
por causa do irmão. Quando quis mudar o rumo da conversa, ela não
deixou.
– Espere! Ainda tem mais! Os mesmos policiais que o mataram foram lá em casa com um mandado de busca e me pediram para
que os deixasse revistar a casa.
– E você deixou eles entrarem?
– Sim, deixei. E mesmo que não tivessem trazido o mandado
judicial, pela forma com que se dirigiram a mim, eu os teria deixado
entrar e revistar o que quisessem.
– Eles a ameaçaram?
– Não. Ao contrário, foram gentis demais.
– Então o que disseram para fazer você achar que eles deveriam sim revistar sua casa?
– Falaram que tinham suspeitas de que Ilich estava envolvido
em extravio de cadáveres e assassinatos, entre outros crimes , inclusive alguns que ocorreram aqui dentro do hospital!
203
Laura conversou um pouco mais com Yves e em seguida lhe
falou que iria embora para cuidar do funeral do irmão. Era um bandido, mas era seu irmão e isso cabia a ela. O namorado falou que se
conseguisse uma folga no horário do almoço iria encontrá-la para
ajudar no que precisasse.
204
Vinte e um
Mesmo depois que Inga morrera, o doutor Fritzen von Keitel
não deixou de morar na casa da represa em Igaratá.
O advogado havia lhe telefonado na noite anterior, avisando
para que viesse ter com ele no escritório, pois precisavam conversar
a respeito do recurso de apelação e das respectivas razões que havia
interposto junto ao Tribunal de Justiça em São Paulo.
O médico ainda mantinha a atadura sobre um dos supercílios,
mas, apesar do que havia lhe acontecido no fórum, já havia melhorado um pouco o estado geral de sua saúde. Por isso desistira de contratar alguém para dirigir o carro com ele de um lado para outro
sempre que precisasse.
Pela manhã, um pouco da neblina resultante da evaporação da
água da represa já havia se dissipado quando Fritzen ligou o carro e
decidiu que já podia sair.
Subiu a rampa que dava para a estrada, desceu do carro para
fechar a porteira, retornou para dentro do veículo e partiu. Não precisaria correr muito, pois Cleber não havia determinado horário para
se encontrarem.
Disse-lhe que estaria a manhã inteira no escritório.
*
O motorista do caminhão respondeu aos policiais que o interrogaram, que percebeu quando o Honda Civic branco começou a cruzar a estrada de um lado a outro. Notou que algo errado estava acontecendo dentro do carro, por isso parou o caminhão no acostamento e
ficou aguardando até que o carro passasse por ele. Não poderia fazer praticamente coisa alguma para ajudar quem quer que estivesse
dentro do veículo naquele instante.
O doutor Fritzen já havia desfalecido e estava com a cabeça
apoiada para trás e um pouco caída de lado quando o carro passou
205
acelerando pelo caminhão e subiu no barranco até tombar com as
rodas para cima. O motor urrou até engasgar e parar, quando então o
motorista do caminhão veio correndo para tentar prestar qualquer
socorro. Teve dificuldades para retirar o homem de dentro do carro
tombado, mas logo que conseguiu outros veículos já haviam parado, e
uma das pessoas que se apresentou pegou seu telefone celular e se
propôs a chamar o socorro médico.
Fritzen von Keitel foi levado minutos depois por uma viatura
até o pronto-socorro de Santa Izabel, e quando os médicos do lugar
constataram a gravidade do caso, foi imediatamente transferido de
helicóptero para o Hospital das Clínicas de São Paulo.
Felizmente não sofrera grandes danos externos em decorrência do capotamento do veículo, mas estava em coma. Uma bateria de
exames foi efetuada pelos médicos do Hospital das Clínicas, que solicitaram aos primeiros familiares que chegaram o histórico da saúde
de Fritzen. Disseram-lhes que se ele tinha algum médico particular
seria importante que conseguissem falar com ele.
Cleber teve notícia do ocorrido assim que tentou falar com
Fritzen ligando para seu telefone celular, que fora atendido ainda por
um policial rodoviário. Larissa Karmov, que seguia à risca as recomendações de Fritzen de ligar para o advogado pelo menos duas
vezes por semana se não conseguisse falar com ele pessoalmente,
também ficara sabendo do ocorrido no mesmo dia , porém um pouco
mais tarde.
“O envelope! Se Fritzen está mesmo em coma, eu terei de
abri-lo! Parece que ele já sabia de tudo!” Larissa perdeu-se por uns
momentos em seus pensamentos enquanto caminhava até a escrivaninha da sala para retirar o envelope de dentro da gaveta e abri-lo.
Assim que retirou seu conteúdo, percebeu uma folha escrita,
que se tratava mais de uma manifestação de última vontade do que
propriamente uma carta a alguém. Não estava endereçada a ninguém em particular, mas citava em alguns trechos especialmente o
advogado Cleber e a imprensa de uma forma geral. Dizia:
“Sei que assim que esta carta chegar ao conhecimento do
público provocará grande estardalhaço nos diversos meios da
sociedade.
206
Mexerá com a igreja, com a imprensa em geral e com a
justiça. Em suma, este é realmente o meu intento. Mas o que espero, na realidade, é que todos olhem a situação e o assunto
com extrema delicadeza e quando olharem para meu corpo moribundo largado em cima de uma cama qualquer, e praticamente
sem esperança de reverter o quadro comático a que com certeza
estarei submetido, entendam que este não é meu desejo, e
tampouco foi o de tantas outras pessoas que até os dias de hoje
têm sofrido até o último minuto de suas vidas desnecessariamente. Da imprensa espero que se mobilize e se encarregue de fazer
a promoção perante a sociedade dia após dia. De meu advogado e caro amigo doutor Cleber, que acredito realmente nunca ter
estado numa situação dessas, e que sabe que é inovando que se
criam precedentes, espero que vá buscar subsídios para que possa
propor a ação que venha regulamentar a eutanásia, mesmo que
tenha de recorrer a legislações estrangeiras, e lute por todos os
meios até o final, para que mais uma alma se liberte do jugo do
sofrimento e da dor irreversíveis.
Alguns ou muitos irão dizer categoricamente: isto é ilegal.
No Brasil, eutanásia é crime. Pois eu lhes digo: se é ilegal hoje,
e se no Brasil ainda é crime, que se crie a lei e se legalize a
eutanásia partindo daqui! Não deixem este pobre e cansado velho sofrer sem necessidade!.
Assinado: Fritzen von Keitel”
Ainda dentro do envelope e guardado num envelope bem menor, Larissa encontrou um cheque com honorários que custeariam
pelo menos oito meses de trabalho do advogado, nominal a ele, e uma
procuração constando todos os termos, já assinada antecipadamente
pelo doutor Fritzen.
Larissa terminou a leitura sem se importar com as lágrimas
que desciam pelo canto do rosto e caíam sobre o papel na mesa.
Decidiu que iria primeiro procurar Cleber e lhe relatar tudo, depois
iria novamente falar com o jornalista Arthur Nimitz.
207
Quando soube, Cleber lhe pediu muito educadamente que, se
pudesse, viesse vê-lo em seu escritório no fim da tarde e trouxesse
tudo o que estava no envelope.
Larissa respondeu-lhe que o faria com muito prazer, pois Fritzen,
para ela, era muito mais do que simplesmente um amigo.
208
Vinte e dois
Arthur Nimitz recebeu incrédulo Larissa Karmov em seu escritório. Esperava que qualquer pessoa chegasse à secretária do lado
de fora da sala e se fizesse anunciar, menos Larissa. Ele ainda não
tinha tomado conhecimento do que havia acontecido com Fritzen,
mas pensou: “É sobre o médico que ela vem falar. Só pode ser isso.
Por que mais ela viria?”
Larissa avançou para dentro da sala de Arthur, e ele a cumprimentou dizendo:
– Mas que surpresa! Por pouco você não me encontra aqui no
escritório. Seria bom que sempre me ligasse antes, para evitar que
perca a viagem.
– Sinceramente não esperava vê-lo tão cedo depois da última
vez que estivemos juntos. Ainda mais nessas circunstâncias que me
fizeram vir até aqui.
– Que circunstâncias? Importa-se em me dizer logo?
– Não, não me importo. Não sei o que pensará disso, mas é a
respeito de Fritzen ainda.
Arthur murmurou algo muito baixo, e Larissa percebeu que
era o nome do médico que ele deixou escapar por entre os lábios
semicerrados.
– O que tem ele? O que pode ser tão importante dessa vez
para fazer com que me procurasse novamente?
– Ele está doente, em coma, e seu estado é com certeza
irreversível. Deixou-me esta carta com recomendações claras a respeito do que quer que seja feito sem demora.
O homem acendeu um de seus charutos muito aromáticos, e
enquanto a nuvem de fumaça subia, pegou delicadamente o papel
das mãos de Larissa Karmov e leu dentro de poucos minutos. Depois
deu sua opinião:
209
– Mas isso é impossível! O que ele está pedindo é crime! No
Brasil o procedimento da eutanásia é ilegal.
– Mas não há nada que se possa fazer?
– Se não existe lei que aprove a coisa, isso é impossível como
já lhe falei. Qualquer um que tome essa iniciativa estará cometendo
um crime e estará sujeito às penas previstas. Ele é um claro exemplo
disto!
– Ele é inocente.
Larissa falou por alguns minutos, defendendo Fritzen incisivamente, e depois indagou:
– E por que não se cria a lei?
– Não é tão simples assim, e ele sabia disso quando relatou
aqui na carta que o assunto iria incomodar toda a sociedade, quando
se referiu à imprensa, à igreja, entre outros. No entanto, quando se
trata de um caso notório, e que causa grande comoção social, geralmente o congresso lá em Brasília se vê impelido a legislar a toque de
caixa sobre o assunto. Mas neste caso, que foi inclusive abafado pela
imprensa a nosso pedido? Não existe a menor chance de eles quererem legislar ou criar a lei que descrimine a eutanásia. Não está notório, não está chamando a atenção da mídia e tampouco fará com que
eles se façam notar pelos eleitores. Político quer aparecer para os
eleitores e, portanto, prefere criar leis que os façam aparecer na mídia.
Quanto mais aparecerem, tanto melhor.
– E se transformarmos este caso em uma bandeira? Se transformarmos Fritzen von Keitel em mártir? O defensor de uma causa
nobre?
– Irão rir de mim. Primeiro eu faço com que esqueçam o
homem. Agora quero que o transformem em mártir e o coloquem
juntamente com sua causa na mídia. Com certeza, irão rir na minha
cara! Mas podemos tentar. Se funcionar, a idéia não é má. Além do
mais, tenho pelo menos uns três senadores e alguns deputados lá em
Brasília que há muito tempo estão guardados aqui!
Arthur Nimitz limitou-se a abrir a manga do paletó enquanto
falava e mostrava seu interior para Larissa. Ela o abraçou calorosamente e, com a face avermelhada de vergonha, também lhe beijou os
210
lábios cerrados suavemente, depois que lhe retirou o charuto e colocou-o dentro de um cinzeiro.
– Faço isso por você! – disse o homem, apertando-a contra o
peito
Larissa agradeceu mais calorosamente ainda e, antes de sair
pela porta para ir embora, disse-lhe que voltaria a procurá-lo o quanto
antes.
*
O advogado Cleber Petrus Papadopoulos recebeu pela manhã
o telefonema que considerou um tanto estranho, e quis reconhecer a
voz. Julgou que seria impossível ser quem pensava que era.
A pessoa lhe dizia que, se tivesse um tempo, o encontrasse
numa determinada hora a partir daquela, em um ponto bem próximo
da entrada do Hospital das Clínicas.
Cleber parou o carro nas proximidades e, enquanto puxava a
fumaça do cachimbo de porcelana, caminhou até onde deveria esperar a pessoa e ficou aguardando.
De longe notou que alguém em uma cadeira de rodas vinha na
sua direção pela mesma calçada. Achou que não deveria ser quem
havia lhe telefonado, pois não o estava reconhecendo por trás dos
óculos escuros, e o cabelo comprido estava na altura dos ombros.
Preparou-se para se afastar e dar passagem à cadeira, quando o
deficiente lhe dirigiu a palavra:
– Não precisa se afastar, pois sou eu mesmo que você está
esperando!
– Mas quem é o senhor? Por que me chamou aqui? Espero
que seja algo realmente de muita importância e valor para mim como
disse, pois se estiver me fazendo perder tempo, já vou lhe adiantando
que cobro trezentos reais a hora!
– Não está me reconhecendo?
O homem tirou os óculos, e Cleber percebeu que ele havia
emagrecido muito desde a última vez que haviam se defrontado. Jamais o reconheceria em outras circunstâncias, se ele passasse direto.
Tirou o cachimbo da boca lentamente e perguntou:
211
– Natanael? Delegado Natanael Guzman? Mas você não está
morto? Deu em toda a imprensa a explosão em frente à delegacia!
– Foi preciso que assim se fizesse parecer. Foi um pedido
meu, por questões pessoais e de segurança. Mas isso já não importa
agora! Vamos ao assunto pelo qual eu o chamei.
O advogado ainda tentava se refazer da surpresa quando assentiu balançando a cabeça e perguntou:
– Está bem. Então quer me dizer do que se trata?
– Tenho aqui comigo provas concretas que descobrimos há
poucos dias, de que seu cliente é inocente de todas as acusações que
lhe foram impostas.
Cleber parou por uns instantes, colocou novamente o cachimbo entre os lábios como se estivesse em câmara lenta e retirou um
envelope grande das mãos de Guzman, enquanto murmurava:
– Inocente... Inocente!?
– Sim. Inocente!
– Como sabe disso? E quem foi que fez tudo aquilo então?
Guzman demorou alguns minutos explicando tudo desde o começo da investigação, e finalmente concluiu:
– Estávamos atrás do assassino do proprietário de uma funerária em Guarulhos e acabamos por descobrir que ele se utilizava do
crachá da irmã e de roupas do hospital para aplicar o curare nas
vítimas, fazendo-se passar por médico. A princípio achamos que a
irmã, uma enfermeira do Monsenhor Vasquez, estava envolvida, mas
ela encontrou um álibi perfeito para cada ocasião.
– E ele está preso?
– Morto! Está morto!
Ao mesmo tempo surpreso e indignado, enquanto novamente
fazia evolar uma nuvem azulada de fumaça, Cleber perguntou:
– Descoberta um pouco tardia, não é, doutor Guzman?
– Não tivemos nenhuma culpa. A princípio, todas as evidências apontavam firmemente na direção de Fritzen von Keitel!
– E o que espera fazer agora? O homem está morrendo!
– Nada mais além de contar tudo ao próprio doutor Fritzen. O
senhor é o advogado dele e saberá o que fazer. Creio que um pedido
212
de revisão criminal apoiado nestas provas que estou lhe entregando
viria bem a calhar! É claro que não estou querendo lhe ensinar a
trabalhar, doutor! Sabe o que fazer.
– Não poderá falar com ele! Já lhe disse, o homem está em
coma! Um tumor no cérebro provavelmente não deixará que ele tenha oportunidade de saber que foi inocentado.
Natanael Guzman achou então que já havia feito sua parte, e
que dali por diante caberia a Cleber arrumar um jeito de fazer com
que seu cliente ficasse sabendo dos fatos.
Quando o delegado se afastou com sua cadeira movida por um
silencioso motor elétrico pelo mesmo caminho que viera, o advogado
ficou imaginando o quanto seria impossível naquele momento informar qualquer coisa a Fritzen.
*
Depois do fim de semana, logo pela segunda-feira de manhã, a
história de Fritzen von Keitel voltou a todos os jornais e canais de rádio
e televisão com toda a força. Impelidos por um ímpeto invisível, os
jornalistas ligavam para o advogado e para todos os números de telefones possíveis a que conseguiam acesso à procura de informações, numa
voracidade de abutres que acabavam de descobrir a carniça .
O espaço à frente do hospital foi totalmente ocupado por representantes de diversos órgãos da imprensa, e programas de rádio e
televisão passaram a realizar entrevistas na rua, colhendo a opinião
pública acerca da prática da eutanásia.
Membros do clero foram os primeiros a serem chamados a dar
entrevistas, também no rádio e televisão, e a participar dos debates
que passaram a surgir, decorrentes das diferenças de opinião sobre o
assunto.
Cleber Petrus Papadopoulos abraçara a causa exatamente como
se sua fosse.
Quinze dias depois que Fritzen entrou em coma e que seu manifesto de última vontade chegou ao conhecimento público, Cleber foi
convidado a comparecer a um programa de entrevistas para debater
com o Arcebispo de São Paulo a questão.
213
A partir daí a agenda de Cleber passou a estar inteiramente
ocupada com o caso, por isso clientes novos que o procuravam eram
na maioria das vezes encaminhados a outro escritório de advogados
de sua confiança.
A cada novo dia que Cleber chegava a seu escritório, era informado pela secretária que outro debate,ou outra audiência haviam
sido agendados para o dia seguinte ou para o primeiro dia livre que se
seguisse.
A cada novo dia que passava, o advogado munia-se mais e
mais de legislações, doutrinas e jurisprudências diversas que pudessem fundamentar com máxima perfeição sua tese.
Legislações da Holanda e do Uruguai, países que já haviam
regulamentado de formas diferentes a eutanásia, encabeçavam o
calhamaço de documentos.
Quando se defrontava com qualquer um dos padres católicos,
apresentava-lhes enfaticamente a opinião do falecido Papa Pio XII,
um dos antecessores do Papa João Paulo I, que em 1958 disse: “A
eutanásia, ou provocação deliberada da morte, é evidentemente condenada pela lei moral. Mas, com o consentimento da pessoa moribunda, é permissível o uso moderado de entorpecentes para aliviar o
sofrimento, ainda que os entorpecentes apressem a morte. Nesse
caso a morte não é diretamente desejada, mas é inevitável, e são
proporcionais os motivos para a sanção de medidas que apressem a
chegada da mesma.”
214
Vinte e três
Arthur Nimitz encostou o Grand Cherokee de pintura metálica
e cor verde musgo na vaga do estacionamento do aeroporto em
Cumbica e, depois de trancá-lo e acionar o alarme, saiu carregando
em uma das mãos uma mala de pelica com algumas peças de roupas,
e na outra mão uma pasta de executivo. O charuto ia queimando
praticamente sozinho em um dos cantos da boca, enquanto caminhava na direção do saguão de embarque para fazer o check-in no próximo vôo para Brasília.
Pelos menos dois dos parlamentares que iria procurar em
Brasília, um senador e um deputado federal, já o esperavam, pois
haviam sido avisados de que ele estava embarcando àquela hora.
Depois que se livrou da ponta do charuto em um cinzeiro no
caminho, entrou no túnel elevatório que o levaria para dentro da aeronave. Olhou no relógio de pulso com seu mostrador luminoso e calculou que chegaria em Brasília, se tudo corresse bem, dentro de uma
hora e meia no máximo.
A aeromoça o recebeu sorrindo amavelmente e lhe desejou
uma boa viagem. Arthur conferiu o número da poltrona e até uma
das fileiras do meio. Depois de guardar suas bagagens de mão no
compartimento apropriado acima da cabeça, ocupou seu assento na
janela e ficou aguardando os últimos minutos que antecederiam a
decolagem.
Conhecia de cor e salteado as recomendações que a aeromoça estava fazendo no momento em que a aeronave começou a se
deslocar, puxada para trás por um veículo rebocador. Todos os assentos deveriam permanecer na vertical e nenhum cigarro deveria
ser aceso, mesmo na classe dos fumantes.
Em questão de minutos, Arthur Nimitz sentiu o corpo colar na
poltrona devido ao empuxo das duas turbinas Rolls-Royce que zuniam do lado de fora, e logo que o nariz do aparelho levantou, não
215
demorou para que todas as luzes que iluminavam Guarulhos e
adjacências se transformassem num grande e brilhante tapete de
lantejoulas.
Assim que o avião se estabilizou em vôo de cruzeiro, um rapaz
auxiliado por outra aeromoça passou oferecendo bebidas e qualquer
coisa de comer de um lado e de outro das fileiras de poltronas. Arthur
não quis nem mesmo pensar em comida. Pediu um uísque para relaxar um pouco mais, tomou de um só gole e depois esfregou ambas as
mãos nas pernas para enxugar o suor frio que saía de suas palmas.
Uma outra aeromoça que passava percebeu o excesso de
transpiração que lhe escorria pela testa e preocupando-se, naturalmente, perguntou:
– Está tudo bem com o senhor? Deseja alguma coisa?
– Não. Obrigado. Está tudo bem. É só um leve mal-estar que
me toma quando viajo. Não se preocupe, vai passar logo. Mais uma
vez, obrigado.
A aeromoça se afastou, e enquanto alguém ao lado de Arthur
Nimitz lhe falou alguma coisa, ele respondeu resmungando e se ajeitou para cochilar até o fim do vôo.
Acordou da modorra quando uma mão forte lhe tocou em um
dos ombros e o balançou, avisando para que levantasse a poltrona até
a posição vertical e apertasse o cinto, pois o avião estava prestes a
pousar.
Era assim que Arthur Nimitz gostava de viajar. Dormir o tempo todo e não ver nada. Se o avião caísse, iria morrer de qualquer
forma, mas pelo menos não iria sentir o pavor que antecedia o abraço
da velha encapuzada segurando a foice.
Havia voado praticamente a vida toda, inclusive nos velhos C-47
ou DC-3, para quem conhecia apenas sua versão militar. Diziam que
era o avião mais seguro do mundo, mas Arthur não pensava assim.
Foi correspondente de guerra no Vietnã para uma revista brasileira, e
em uma de suas muitas viagens para um lado e outro, logo que desceu de um desses monstrengos em plena selva, o avião partiu em
seguida, levando um pelotão inteiro de recrutas que vinham de Saigon.
Minutos depois, pôde ouvir a distância o estrondo da aeronave se
espatifando atrás de uma colina.
216
Para ele não havia no mundo nenhum avião absolutamente
seguro.
Um leve balanço para frente e para trás mostrou que a aeronave havia parado. Minutos depois, a porta se abriu, e enquanto a
comissária agradecia, os passageiros que iriam descer em Brasília
saíram em fila indiana depois de retirarem as bagagens do compartimento superior. Não havia o túnel. Arthur chegou à porta, agradeceu
à tripulação e desceu a escada. Saiu caminhando, mas precisou parar
para retirar a blusa. A diferença de clima entre Guarulhos e Brasília
era espantosa o ano todo. Saíra de dez ou onze graus e chegara ali
com uma temperatura de vinte e seis graus aproximadamente.
Iria para o Hotel Della Mancha Inn. Disseram-lhe que um carro o estaria aguardando do lado de fora e o motorista o esperaria no
saguão.
Assim que atravessou a última porta de vidro, olhou a distância
e próximo da multidão viu o rapaz que levantava um cartaz feito à
mão com seu nome escrito errado. Arthur Nimite.
Arthur quis sorrir, mas se limitou a chacoalhar a cabeça e se
aproximou do moço.
– É Arthur Nimitz! Nimitz! Nunca acertam meu nome. É tão
difícil assim?
– Desculpe, senhor! Não fui eu que escrevi.
Arthur percebeu que o rapaz abaixou rapidamente o cartaz e
com sutileza passou a esfregar a mão sobre as palavras, como se
quisesse apagá-las.
– Acalme-se! Não há problema nenhum nisso. Só estava comentando. Vamos para o Della Mancha!
– Senhor!?
Uma outra expressão de angústia surgiu no rosto do jovem,
que ficou sem saber como explicar a Arthur Nimitz que havia recebido ordens de levá-lo não para o hotel, mas para a casa de um dos
senadores que já iria recebê-lo. O moço terminou de colocar as
bagagens no porta-malas e foi abrir a porta para que Arthur entrasse. O jornalista já havia aberto a porta do acento dianteiro e procurava acomodar-se.
217
– Sim! O que é?
– Receio ter que lhe dizer que o senador Afonso Marinho
mandou que eu o levasse para sua casa. A menos que o senhor faça
questão...
– Não faço questão coisa alguma. Vamos para lá então. Só
estou um pouco cansado. Nada mais.
O moço respirou aliviado e agradeceu. Era muito jovem. Talvez não tivesse mais do que vinte anos, e seu cabelo extremamente
curto denunciava ser ele um militar a serviço do senador. Estava
acostumado a obedecer ordens, e toda vez que as ordens eram contestadas por qualquer pessoa sentia-se como se estivesse “num papo
de aranha”, como dizia a gíria dos quartéis.
Depois que deixaram o aeroporto, o motorista dirigiu por aproximadamente vinte minutos no sentido norte. Passaram por uma fileira de mansões, e quando Arthur achou que iriam passar direto, o
moço freou bruscamente o carro e entrou em uma das alamedas que
iriam dar direto numa das imensas casas.
“É muita ostentação paga com o dinheiro do povo!”, pensou .
O carro parou, e um outro homem de terno escuro desceu do
lugar que parecia ser um alpendre e veio receber Arthur. Ele percebeu que deveria haver muito movimento por ali, pois a segurança
estava em plena atividade àquela hora, além do que havia muita iluminação. Um pouco atrás da casa, Arthur vislumbrou rapidamente
um helicóptero pousado com as cores do exército e um brasão pintado do lado.
– Por aqui, por favor!
– Importa-se em me dizer quem está aí dentro me esperando
além do senador?
O homem fingiu não ouvir, e Arthur começou a achar que,
para seu próprio bem, era melhor também fingir que não havia perguntado nada. Colocou um charuto na boca e, quando fez menção de
acender, o homem lhe fez sinal negativo com um dos indicadores em
riste. Tornou a guardar o charuto e ficou imaginando que as pessoas
que os estavam esperando ali poderiam pensar que estava vindo para
resolver um assunto acerca do dossiê SIVAN, que estava pendente
entre eles havia muito tempo.
218
Não era este o motivo, mas de certa forma esse assunto iria
ter relação com o que o levara a se encontrar novamente com aquelas pessoas.
Lembranças do passado lhe apertaram o coração e fizeram
aflorar dentro do peito um velho ódio.
Recordou-se do dia em que o jovem jornalista havia lhe telefonado, dizendo que alguém de dentro do ministério provavelmente havia deixado na recepção do hotel em que estava hospedado uma encomenda: um pacote de documentos e uma fita de vídeo.
O rapaz havia sido designado para fazer a cobertura do projeto
do Sistema de Vigilância da Amazônia, e quando lhe telefonou estava
apavorado.
Queria que Arthur fosse se encontrar com ele.
No hotel Arthur Nimitz examinou os documentos juntamente
com o rapaz e concluiu que aquilo era uma denúncia anônima. Os
papéis mostravam dados que confirmavam, além de outras formas
de corrupção, um superfaturamento em componentes eletrônicos que
seriam usados no projeto. O rombo todo beirava a casa dos 200 milhões de dólares.
O rapaz arrumou as malas e juntamente com Arthur Nimitz
tomou um táxi e foi para o aeroporto. Como se estivesse se prevenindo, na manhã daquele mesmo dia já havia fretado antecipadamente
um pequeno bimotor que os levaria para São Paulo.
Quando guardaram os documentos em um armário apropriado
alugado por tempo indeterminado ali mesmo no aeroporto, Arthur
ficou com as chaves e combinou que o rapaz não deveria falar com
mais ninguém sobre o assunto. Voltaria à Brasília para retirar o envelope quando achasse que as coisas já haviam esfriado o bastante.
Arthur percebeu que alguém os espreitava quando se dirigiam
para a aeronave, quis desistir de voar, mas não o fez achando que era
imaginação sua.
“Bobagem! Devem ser resquícios da época em que fui correspondente de guerra!”, pensou consigo mesmo na ocasião.
O Sêneca voou por cerca de vinte minutos, e já estavam sobre
o cerrado quando Arthur percebeu que um dos motores explodira e
219
se incendiara. Quis avisar o piloto, mas notou que ele também já
havia visto o fogo que se fortificava cada vez mais, agitado pelo forte
vento. Virou-se instintivamente para o outro lado e percebeu que o
outro motor também já começara a se incendiar.
Mesmo com um motor só em funcionamento, o piloto teria condições de embandeirar o que estava em chamas e prosseguir até um local
seguro onde pudessem pousar. Agora, com os dois motores inutilizados,
só lhes restava prepararem-se para o choque que seria inevitável.
O bimotor estava carregado e descia vertiginosamente na direção do solo, quase sem planar.
Arthur ainda conseguiu ver quando a asa de seu lado bateu em
uma árvore e foi arrancada juntamente com uma parte da fuselagem
e sua poltrona. Quando bateu no chão e as chamas lhe tomaram o
corpo, desacordou. O avião caiu cerca de uns 150 metros mais adiante e espatifou-se. O piloto e o rapaz tiveram morte instantânea.
Arthur Nimitz escapara da morte com queimaduras de terceiro grau da planta dos pés até o meio do abdome.
Meses depois, quando então já se recuperara quase completamente, voltou ao aeroporto e retirou o material guardado depois que
pagou o longo período de uso do compartimento individual.
– Achei que ninguém mais viria abrir este armário! – disse-lhe
o funcionário responsável. – Pensei mesmo em chamar o pessoal da
segurança e abri-lo! – concluiu depois.
De repente as lembranças lhe fugiram da mente, e voltou à
realidade vendo-se agora bem próximo das pessoas que haviam lhe
causado tanto prejuízo no passado. O coração estava carregado e
cheio de ódio.
Queria vingança.
Mas, tomando para si o velho chavão, aceitou que a vingança
era um prato que deveria ser comido frio, e por isso deveria se controlar ao máximo para fazer aquelas pessoas pagarem à maneira dele.
Voltou novamente dos pensamentos e continuou seguindo o
homem de preto.
O guarda-costas, um homem quase da altura de um guarda-roupas, caminhava pesadamente, como se estivesse marchando, enquanto
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levava o jornalista até uma grande porta fechada. Bateu forte com os nós
dos dedos, e assim que a porta se abriu Arthur ouviu os calcanhares dos
sapatos do homem baterem um no outro numa saudação militar. O guarda-costas deu meia volta e saiu marchando novamente.
A sala era enorme, própria para reuniões de estado maior, com
uma longa mesa toda iluminada por pequenas lâmpadas dicróicas ocultas em casulos esculpidos dentro do forro de cores branca e salmão.
A primeira pessoa que Arthur viu à sua frente foi um general.
Lembrou que quando o conhecera, era ainda um jovem coronel, mas
já infiltrado entre os políticos de Brasília. Seu nome era Daniel West
Groves. Era neto de americanos que haviam imigrado para o Brasil,
depois que os Estados Unidos haviam concluído o Canal do Panamá.
Arthur Nimitz ouvira boatos quase oficiais de que seu avô e
depois seu pai foram agentes da CIA infiltrados no governo brasileiro
durante toda a vida. Seu avô, que havia sido um dos supervisores da
construção do Canal, morreu vinte anos depois que chegaram ao Brasil,
supostamente de morte natural. Seu pai, depois que tomou um
monomotor no Rio de Janeiro, quando Daniel já freqüentava o curso
da Academia das Agulhas Negras, desapareceu. Nenhum vestígio
de seu corpo foi encontrado jamais.
Arthur entrou, e só depois percebeu que fora o próprio senador
Afonso Marinho que lhe havia aberto a porta.
– Por favor, senhor Arthur! Entre e sente-se! Espero que
bons ventos o tenham trazido até aqui.
– Obrigado! Posso dizer que cheguei bem.
– Creio que está reconhecendo alguns dos cavalheiros que
aqui estão, e já deve imaginar o porquê!
Arthur sabia sim muito bem o motivo que havia feito com que
aqueles homens se reunissem ali, mas também sabia que alguns não
iriam gostar quando ele lhes dissessem que haviam se enganado.
Deveria ter dito antes ao senador qual o motivo exato que o levara
vê-lo. Depois que se sentou, achou que deveria imediatamente esclarecer o assunto:
– Sinto desapontá-los, mas deve haver algum engano por aqui.
– Como? Como se atreve a dizer que nos enganamos? O que
pretende com isto?
221
Arthur percebeu que dos três o general era o que inicialmente se
apresentava mais irritado. O senador tomou a frente da conversa, tentando mediar para aliviar as tensões e evitar possíveis constrangimentos.
– Calma, senhores! Eu tenho certeza, mesmo que não pareça,
de que o senhor Arthur Nimitz nos veio trazer boas notícias no que
diz respeito ao nosso velho assunto. Não é, senhor Nimitz?
Arthur pediu licença para acender o charuto que antes havia
colocado no bolso e depois respondeu:
– De certa forma, sim.
– Então está bem. Trouxe as fitas? E os papéis que compõem
o tal dossiê que sempre diz estar em seu poder?
– Eu disse de certa forma, sim! Não disse que iria trazê-lo,
nem que houvesse trazido algo!
O militar se empertigou todo, levantou-se subitamente da cadeira e batendo as duas mãos fechadas sobre a mesa, como se a
estivesse esmurrando, perguntou asperamente:
– Se o senhor não nos trouxe nada, por que veio então? É
dinheiro que o senhor quer?
– Não. Não é dinheiro que eu quero. Eu vim para tratarmos
exatamente do assunto dossiê, mas desde que esteja atrelado a outro
que, desculpe-me, senhor general, não lhe diz respeito diretamente.
– Como? O que disse? Não me diz respeito? Fique sabendo
que o senhor já está me enchendo o saco com este papo furado.
Qualquer hora eu...
Novamente o senador interviu e pediu que o militar se acalmasse:
– Calma, senhores! Calma! Por favor, sejamos civilizados. O
assunto é extremamente delicado, e o senhor Arthur Nimitz sabe
disso. Mas temos de ter calma. Bem, e qual é o outro assunto, senhor
Nimitz?
Arthur iria responder depois que inalou e voltou a soltar por um
dos cantos da boca uma nuvem de fumaça, mas antes disto perguntou algo que em seguida ele mesmo rebateu:
– Esta conversa está sendo gravada? Ah! Mas é claro que
não! Não iriam querer provar a ninguém sua própria torpeza! Como
222
já disse, ao general tal assunto não diz respeito. Mas fique, se quiser.
Ao senhor, senador Afonso Marinho e ao seu ilustre colega, o deputado João Quirino Hur, interessa muito, já que, apesar de estarem em
casas diferentes, aos dois cabe elaborar as nossas leis, ou pelo menos
é isso que o povo acredita, embora não seja sempre assim desde o
início de seus mandatos.
– Elaborar leis? Que papo furado é esse? O senhor está tentando se desviar do assunto?
– Não quero me desviar de assunto algum, senhor Quirino, e
acho que está perfeito! Seria interessante que o povo pudesse ouvir
um deputado representante da Câmara Federal dizer que elaborar
leis é papo furado!
O senador estranhou o rumo a que Arthur tinha levado a conversa e bradou perguntando, no mesmo instante em que se ouviu uma
campainha soar. O barulho, fez com que dois dos homens da segurança adentrassem a sala com suas respectivas armas empunhadas.
– O senhor está grampeado? Revistem ele!
– Senhores! Por favor! Eu não sou tão ingênuo assim! Foi
força de expressão! Não iriam achar mesmo que eu estaria grampeado,
não é?!
Enquanto Arthur Nimitz tentava em vão explicar, os dois homens o fizeram se levantar da cadeira e lhe passaram uma espécie de
bastão eletromagnético por todo o corpo, depois os revistaram pessoalmente. Quando terminaram, viraram para o senador e lhe disseram:
– Nada, senhor! Está limpo.
– Está bem. Podem esperar lá fora. Então, o que quer dizer
com elaborar leis? Ou melhor, o que a elaboração de leis tem a ver
com nosso assunto?
– É uma questão complicada, mas mesmo assim quero pactuar com os senhores.
– O que quer dizer com pactuar?
Arthur Nimitz soltou outra nuvem de fumaça do charuto e,
quando ia responder, o general o interrompeu falando na frente:
– Chantagem! Mais chantagem! Este cara está enrolando você,
senador. Provavelmente é dinheiro que ele quer.
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– Calma, Daniel!
Visivelmente irritado, Arthur voltou a falar como se estivesse
dando um ultimato ao militar, que depois o encarou com os olhos
parecendo que iriam saltar de suas órbitas.
– Senhor, general! Eu sei que o senhor está envolvido no assunto todo, mas no que se refere ao momento, creio que o senhor
nem mesmo deveria estar aqui. Portanto, mais uma manifestação de
sua parte que venha carregada dessa sua falta de cavalheirismo me
fará levantar e ir embora, e a primeira coisa que farei será levar a
público a maldita fita e os papéis.
– Mas o senhor não fará isso! Não mesmo! Pode ter certeza!
Arthur respondeu seco em seguida:
– Não duvide!
O militar se limitou a sorrir sarcasticamente e, enquanto levava
a mão ao queixo como se estivesse pensando algo, procurou relaxar
inclinando a cabeça junto com a poltrona para trás.
– Voltando ao que eu ia dizendo, senador Marinho, é sobre a
eutanásia. O senhor terá de se virar e a toque de caixa fazer com que
passe pelo Congresso e pelo Executivo uma lei, ou mesmo um remendo à Constituição, como os senhores sempre fazem se o assunto
é de interesse de vocês, que regule de certa forma a eutanásia.
Os homens olharam incrédulos um para o outro, demonstrando
que achavam extremamente absurdo o que acabavam de ouvir. Depois o próprio senador respondeu:
– Mas eutanásia é crime!
– Eu sei! E os senhores tratarão de descriminalizá-la dentro
dos próximos trinta dias!
– E como eu fico? E os meus princípios?
Arthur não conseguiu conter uma gargalhada. Levou novamente o charuto à boca e respondeu ironicamente:
– E desde quando político tem princípios? As exceções que
me perdoem, é claro!
– Mas as coisas não funcionam como o senhor está pensando! Não é tão rápido assim. Como pensa que vou iniciar um projeto
de lei desta natureza?
224
– Mas será! E será tão rápido como nunca imaginou. Tenho
aqui nas minhas mãos um monte de papéis que me foram dados por
um advogado para servir exatamente a este propósito. E tem mais:
vou lhes dizer que somente terão os documentos que compõem o
dossiê e aquela fita em suas mãos depois que eu vir a lei publicada.
Todos estavam embasbacados com aquela conversa e, mais uma
vez sem dizer qualquer palavra, deixaram o senador concluir o assunto:
– Você deve estar louco! Vem na minha casa, me afronta na
frente de meus amigos, nos faz de bobos e acha que sairá impune assim?
Posso muito bem mandar eliminá-lo agora, e daí adeus fitas, adeus dossiê
com todos os documentos! Quem os entregará às autoridades?
Outra risada de Arthur Nimitz, outra nuvem de fumaça na direção das luzes presas no teto, e o senador rapidamente compreendeu o que estava se passando.
– Não fale nada. Eu entendi. Quer nos dizer que se não aparecer dentro de um certo prazo, alguém tem recomendações suas
para entregar as provas às autoridades?
– Político inteligente! Vejam só! O homem realmente evolui!
– Não seja sarcástico! Pelo menos nos respeite como homens!
– Faltar com o respeito aos senhores nunca foi meu real intento! Bem, e agora se me dão licença estou realmente muito cansado e
quero dormir. Vai me dar um quarto, ou vou ter de ir ao hotel?
– Não será preciso. É meu hóspede, e fique tranqüilo que
ninguém o molestará enquanto dormir. Amanhã continuaremos a
conversar!
Todos se levantaram da mesa, e assim que Arthur saiu da sala
um dos guarda-costas o conduziu pelo longo corredor até um dos
aposentos, subindo uma larga escada para o andar superior. Tudo já
havia sido providenciado, inclusive uma bandeja com algum tipo de
comida quente, que Arthur não tocou. Limitou-se a beber um copo de
leite achocolatado depois do banho e caiu pesadamente na cama como
se fosse feito de pedra.
Assim que apagou as luzes, o piloto do helicóptero fez girar
mais rapidamente os rotores e decolou rumo a qualquer lugar, que
pouco importava a Arthur Nimitz naquele momento.
225
“Tomara que esse cara não apareça aqui amanhã! Me deixa
com os nervos à flor da pele!”, Arthur pensou, enquanto o sono demorava para chegar.
O dia já havia amanhecido havia pelo menos três horas quando
Arthur acordou. Olhou no relógio da cabeceira, um velho e barulhento
Silco com moldura de madeira, e constatou ser nove e vinte da manhã.
Com certeza o helicóptero não havia voltado trazendo o indesejável
general, pois seu ruído teria despertado Arthur; isso fez com que se
levantasse mais disposto a dialogar com o senador, seu anfitrião.
Calçou um par de chinelos novos deixados propositadamente à
beira da cama em que dormira e foi até a janela para olhar pela
vidraça e ver como estava o clima do lado de fora.
Um Hummer!
No lugar do helicóptero, encontrava-se parado um exagerado
veículo militar fabricado nos Estados Unidos, que então era para ser
usado especialmente na operação Tempestade no Deserto no Iraque.
Do lado em que Arthur podia ver, um emblema do exército brasileiro
fora recentemente pintado.
A partir daquele momento a aparente tranqüilidade de Arthur
foi embora, deixando lugar para um sentimento de raiva, que o colocou involuntariamente na defensiva frente a qualquer conversa que
pudesse surgir.
Fez o desjejum logo após a higiene matinal e foi levado novamente por outro guarda-costas a uma outra sala bem menor do que a
primeira. Enquanto caminhava, ouviu o barulho do motor do Hummer
que se afastava.
Somente uma mesa suntuosa de estilo colonial, com a cadeira
de seu principal ocupante e mais duas menores postadas à sua frente,
formavam a mobília, além da estante de livros que ocupava pelo menos duas paredes de alto a baixo e de um lado a outro.
Quem estava sentado atrás da mesa era o senador Afonso
Marinho, que aparentemente lia alguma coisa.
– Entre por favor, senhor Arthur!
– Obrigado. Posso me sentar?
– Fique à vontade. Creio que agora poderemos nos entender
melhor, já que estamos sozinhos.
226
– Acredito que vi um veículo do exército parado lá fora quando
olhei pela janela. Não seria o general Daniel? Onde ele está agora?
– Ele queria realmente participar desta conversa, mas eu o
dissuadi. Ele gostaria muito de poder apertá-lo o bastante para dizer
onde está o tal dossiê e a fita. Sabe como são os militares.
Arthur pediu licença para fumar e ofereceu ao homem um de
seus charutos. Não demonstrava dar importância alguma ao assunto,
por isso o senador mudou logo para o que realmente lhes interessava.
– Bem, mas que tipo de acordo espera que façamos, então?
– É o que eu já disse ontem para os senhores. Tenho realmente comigo as tais provas que os comprometem, e a mais uma dezena
de pessoas, incluindo o próprio general Daniel, mas estou disposto a
lhes entregar tudo em troca deste pequeno favor, digamos assim.
– Certo. Uma lei que regulamente a eutanásia. Mas porque o
interesse do senhor por tal assunto? É incrível, mas nunca achei que
alguém se dirigisse a minha pessoa fazendo tal pedido. Via de regra,
o brasileiro não se interessa muito por política, leis, etc. Para este
povo, o que os políticos fizerem estará bem feito.
Arthur se irritou um pouco com o conceito que o senador tinha
do povo brasileiro, mas se conteve. Somente respondeu:
– Acontece que na realidade não é bem assim, mas deixe para
lá. Acredito que Vossa Excelência deve estar acompanhando o caso
do médico.
– Ah, sim! O alemão! O tal Fritzen von Keitel? É esse o nome
dele?
– Ele mesmo, mas não é alemão. Somente o nome o é. Mas é
por ele mesmo que eu estou fazendo isso. Eu diria que não é por ele,
pois o pedido me foi feito por uma pessoa muito especial para mim, e
que tem um certo interesse por ele. Acredite, só estou fazendo isso
porque foi essa tal pessoa que me pediu.
– Posso saber quem é ela?
O jornalista esboçou um sorriso maroto e maliciosamente balançou a cabeça em sinal de negação.
– Entendo. Ela deve ter relação também com o tal dossiê
SIVAN, não é mesmo?
227
– Pode ser. Bem, acredito que então não há muito o que especular nesse caso. O senhor une suas forças políticas, faz passar pelo
Congresso Nacional e pelo Executivo a tal lei, e assim que eu me der
por satisfeito o senhor recebe os originais de tudo.
O homem iria falar algo, mas Arthur o cortou ainda falando:
– Ah, e para falar a verdade, isto é sim uma chantagem. Mas
podemos muito bem dizer que é uma chantagem legal.
Em seguida deu uma gargalhada para se calar logo depois. O
senador se limitou a balançar a cabeça como se estivesse admitindo
a armadilha em que havia caído e depois perguntou:
– E quem me garante que você não ficará com alguma cópia
de tudo para que seja usada contra nós no futuro?
– Ninguém lhe garante. Terá de confiar na minha palavra!
O homem emudeceu, balançou mais uma vez a cabeça desaprovando aquilo e falou:
– Não vai ser fácil. Tem gente que realmente está querendo
sua cabeça e não tem a menor intenção de deixar que você saia de
Brasília ileso.
– A minha integridade é problema seu. Se eu não voltar, digase de passagem para mim não fará muita diferença, poderá ver a
partir de amanhã nos jornais a sua cabeça e a de uma porção de
outras pessoas irem a prêmio.
Mais um instante de silêncio, como se o homem estivesse pensando, e depois a resposta:
– Espere um momento. Verei o que posso fazer.
O senador apanhou o telefone e efetuou uma ligação, falando
um pouco baixo demais para que Arthur pudesse ouvir perfeitamente. O jornalista conseguiu ouvir, porém, que ele estava pedindo para
falar com o superintendente da Polícia Federal.
Depois que desligou o telefone, o senador voltou a falar com
Arthur Nimitz:
– Senhor Nimitz! Posso chamá-lo assim?
– Fique à vontade. Mas já me chamou desta forma por diversas vezes, sem me pedir. O que é agora?
228
– Mais uma vez lhe digo com sinceridade que nunca vi em
minha vida alguém arriscar tanto a pele, por algo que não seja uma
mala recheada de dólares.
Imediatamente e sem olhar na direção dele, Arthur respondeu:
– É assim mesmo, senador. A gente vive tudo o que tem de
viver e nunca vê o suficiente. E, aqui para nós, nem sempre o dinheiro é o mais importante. Se bem que eu gostaria mesmo de utilizar
estas provas para outro tipo de coisa, e não para pressionar o senhor
e seus colegas legisladores a fazerem algo que é a própria obrigação
de vocês.
Ignorando o comentário o senador deu de ombros e respondeu:
– De qualquer forma, se é assim que pensa, eu não me importo nem um pouco. E nem os eleitores! Serão capazes de votar em
mim outra vez, e outra, e outra...
– O pior é que o senhor tem razão. Porém mais dia menos dia
isso vai mudar. Tenha certeza.
Arthur Nimitz foi novamente conduzido aos seus aposentos
com o coração cheio de ódio simplesmente pelo fato de o senador se
mostrar um político mau-caráter e assumir tudo muito friamente na
cara dele. Deu três suspiros fortes, procurou se acalmar e ficou esperando até que alguém o chamasse novamente.
Minutos mais tarde, dois carros, com quatro agentes cada um,
pararam ruidosamente na porta da mansão do senador e prepararam-se para escoltar Arthur Nimitz com segurança até o aeroporto.
Todos os quatro homens eram muito altos, provavelmente acima de
um metro e noventa centímetros, ombros largos e muito fortes, e
todos com os cabelos cortados bem rente, quase à escovinha.
A pequena comitiva saiu logo depois, e Arthur Nimitz pôde
perceber por duas vezes que o Hummer os seguia à distância. Às
vezes se aproximava um pouco mais, mas em momento algum ousou
abordar abertamente os carros na via pública.
Arthur sabia que a iniciativa que havia tomado era um caminho
sem volta. Tudo o que havia feito havia sido por causa de Larissa.
Achava que não tinha nada a perder, pois sua vida já estava bem
perto de terminar mesmo naturalmente, e não era má idéia colocar
um pouco de emoção e aventura para dizer que valera a pena viver.
229
Para muitos jovens, fazer algo assim por uma mulher seria
impensável; só o fariam por dinheiro. Arthur julgava as coisas de
forma diferente agora; falta de dinheiro não era problema, pois tinha
o suficiente para a geração que estava vivendo. “Então por que não
colocar essa dose de emoção agora?”, pensava.
O jornalista ia imaginando todas estas coisas quando os dois
Ômegas pararam em frente ao saguão de embarque do aeroporto e
os quatro homens vestidos de terno preto e óculos escuros saíram
para o escoltar até que embarcasse para São Paulo. Os carros ficaram parados nas vagas oficiais, e um dos homens apresentou ao guarda
que se aproximou uma espécie de crachá com o distintivo da República, então passaram direto pela cancela da inspeção.
Se em alguma ocasião viesse a precisar, Arthur jamais iria conseguir identificar qualquer um dos quatro guarda-costas por suas respectivas vozes. Não pronunciaram sequer uma palavra desde que
chegaram à casa do senador até o momento que o deixaram no local
de embarque.
Quando o avião decolou, os quatro homens se afastaram de
uma só vez da vidraça que dava para a pista e voltaram aos carros
para saírem dali.
230
Vinte e quatr
o
quatro
Larissa Karmov pegou o telefone e atendeu:
– Alô!
– Alô, é Larissa?
– Sim. Quem está falando?
– É o Arthur. Sei que é muito tarde, que já deve ter se deitado,
mas preciso lhe falar. Preciso urgentemente de um favor seu.
– Não, ainda não me deitei. Do que você precisa? Onde você
está?
– Ainda estou em Brasília. Consegui despistar algumas pessoas
que estavam me escoltando. Eles achavam que eu iria sair no último
vôo que acabou de decolar, mas eu fiz questão de não lhes dizer que
vou sair daqui somente amanhã pela manhã. Precisava lhe ligar antes
que fosse tarde demais.
– O que quer que eu faça a uma hora dessas?
Arthur colocou um charuto na boca e acendeu, voltou-se de
costas para uma parede para ver se ninguém por perto o ouvia e
depois falou:
– Quero que vá até o meu escritório, pegue a chave com o
porteiro e entre na minha sala. Dentro do cofre sob o tapete, perto da
escrivaninha, tem um envelope grande e pesado. Quero que o apanhe e esconda onde ninguém possa achá-lo. Em seguida, ligue para
este número e procure falar com o senador Afonso Marinho. Fale
em meu nome e diga para que se apresse o mais que puder com o
combinado, pois você tem ordens para levar estes documentos às
autoridades. Dê-lhe um prazo de dez dias. Ele deverá fazer com que
o Congresso aprove o projeto e publique a lei que regulamentará a
eutanásia. A imprensa estará em cima, e você ficará sabendo. Procure fazer as ligações sempre de telefones públicos! Por último, se
eu não aparecer mais, ou melhor, se eu desaparecer ou aparecer
morto em qualquer lugar, vá ao Ministério Público Federal e entregue
231
o envelope a eles. Tenho certeza que vão gostar muito do que tem
dentro dele.
– Acha que o porteiro vai me entregar a chave do seu escritório? E como vou abrir o cofre?
– Eu já falei com ele. E agora, pegue dois pedaços de papel, e
anote o segredo do cofre em duas partes separadas. Depois coloque
os papéis cada um em um lugar diferente do outro. Procure não trocar a ordem dos números, senão não conseguirá abrir o cofre.
Enquanto soletrava os números, Arthur podia escutar o lápis de
Larissa arranhando um papel improvisado em cima da mesa da sala.
– Por que me fez escrever em dois pedaços de papel?
– Porque se alguém a pegar, você terá tempo de fazer sumir
uma das partes do código de acesso do cofre e poderá dizer que só
tinha conhecimentos daqueles números. Mas, por favor, não deixe
que nada lhe aconteça e não dê atenção para estranhos em hipótese
alguma. Eu sei do que essa gente é capaz.
– Você vai ficar bem? Acaba de me deixar muito preocupada!
– Eu estarei bem. Amanhã pela manhã, pretendo estar aí em
casa. Cuide-se. Vou desligar.
Arthur Nimitz ainda teve tempo de ouvir a mulher lhe desejar
um beijo pelo telefone quando desligava o celular.
Até que chegasse a hora de embarcar em seu vôo para São
Paulo, achou que não seria má idéia andar um pouco pelo saguão do
aeroporto e tomar um refrigerante qualquer. Não queria jantar.
Encostou no balcão da lanchonete e assim que um rapaz o serviu, começou a beber lentamente um suco de melão com acerolas um
pouco gelado. Qaundo o rapaz lhe mostrou um pequeno cartaz que
proibia qualquer espécie de fumo, apagou o charuto e o jogou no lixo.
Não fosse o apertão nas costelas, Arthur poderia bem pensar
que o frio que lhe tomou o corpo era decorrente da bebida gelada.
Quis se virar para ver o que se passava, mas o homem com a arma
lhe disse:
– Aja naturalmente, pois não quero deixar você estendido aqui
no chão. Eu tenho aqui uma arma com silenciador, e por isso você
virá comigo assim que acabar de beber o suco.
232
– Mas eu ainda tenho de pagá-lo!
– Não se preocupe, pois já cuidamos disso.
Arthur olhou na direção do caixa e percebeu que um homem
alto e forte à paisana, mas aparentando ser um militar, dava o dinheiro ao caixa e apontava na sua direção, sorrindo falsamente. Terminou de tomar o suco e saiu andando calmamente junto com os dois
homens na direção da porta de saída principal do saguão.
Um frio de mau presságio lhe percorreu a espinha, e sentiu
alívio por ter avisado a Larissa para que apanhasse o material em seu
cofre e guardasse consigo em qualquer canto.
– Para onde estão me levando?
– Temos ordens para não lhe falar nada. As ordens são para
que o levemos de volta vivo, mas, se for necessário, não se importarão se o senhor chegar acordado ou desacordado. Portanto, poupenos trabalho. A nós e ao senhor.
Os três andaram a pé cerca de meio quarteirão, quando então
Arthur Nimitz viu distante o Hummer parado e dois soldado do exército em pé ao seu lado.
Assim que se aproximaram os soldados fizeram continência
aos homens vestidos em trajes civis, e estes entraram, acomodando o
corpo pesado do jornalista Arthur Nimitz afundado no banco entre
eles. De dentro do veículo podia-se ver o lado de fora, mas de fora
não se podia enxergar ninguém que estivesse em seu interior sentado
atrás. Quem passasse por qualquer um dos lados do veículo veria
somente os dois soldados sentados à frente.
Assim que o veículo começou a andar, um capuz foi enfiado na
grande cabeça de Arthur até o pescoço. Não podia falar nada, e
também não poderia ver nada dali por diante.
Arthur jamais saberia precisar quanto tempo estavam andando
com o Hummer, mas tinha quase certeza que já haviam se passado
mais de trinta minutos. Em dado momento começou a sentir cheiro
de poeira e percebeu que os solavancos haviam aumentado bastante.
Achou que o estavam levando para eliminá-lo e desovar em qualquer
lugar deserto. Mas concluiu que ninguém iria ganhar nada com aquilo, e que seria uma jogada muito arriscada de quem quer que o esti233
vesse seqüestrando, pois mesmo que o eliminassem, sempre haveria
a fita e o dossiê SIVAN para ameaçá-los.
Mesmo diante da delicada situação procurou se acalmar, pois decididamente ninguém iria matá-lo por nada. Já havia passado por situações
iguais àquela em ocasiões passadas e se safara de um jeito ou de outro.
“O que importa é eu manter a cabeça fria no momento, e não
me intimidar”, pensou.
O Hummer parou de repente, um dos soldados desceu, e juntamente com o barulho do vento soprando e balançando os arbustos do
cerrado, Arthur ouviu um ranger que parecia ser o de uma porteira e
o som correntes batendo. Novamente o carro avançou e tornou a
parar para que o soldado voltasse para dentro do mesmo.
O jornalista achou que já estavam chegando e que logo poderia
retirar o capuz da cabeça, pois já estava se sentindo sufocado. Mas
se enganara. Rodaram pelas estradas estreitas e mal conservadas
por pelo menos mais vinte minutos, aos trancos e solavancos, quando
então o Hummer parou pela última vez, e o soldado que o conduzia
desligou o motor.
Arthur foi agarrado pelo braços e quase arrastado para fora. Um
dos homens lhe retirou o capuz e disse-lhe logo que não deveria falar
nada a não ser que lhe fosse perguntado. Resolveu que por enquanto não
desobedeceria nada que se parecesse com uma ordem, apesar de acreditar que quem quer que fosse que o interrogasse iria respeitar sua idade.
Aqueles homens eram duros mas decididamente não eram bandidos.
Eram militares, com certeza, e deveriam ter escrúpulos.
Arthur Nimitz estava andando com o homem pensando desta
forma, e quando deu por si viu que já começavam a subir o primeiro
de três degraus que davam para dentro da enorme casa que parecia
ter sido a sede de alguma fazenda no passado.
Sentiu cheiro de água, olhou rápida e instintivamente para um
dos lados da casa e percebeu que lá embaixo no sopé de uma ravina
havia um grande lago. Talvez uma represa. Mesmo assim, não conseguia identificar o local.
Entrou junto com os dois outros homens e estes o fizeram se
sentar em uma espécie de cadeira de madeira rústica em um dos
cantos da grande sala de estar.
234
– Aguarde um momento. Não saia daí. O general já irá vê-lo!
Minutos depois, Arthur viu a cara do general aparecer por uma
porta e voltar para dentro novamente enquanto dizia:
– Tragam-no para cá!
Um dos homens que acompanhavam o militar voltou e fez com
que Arthur Nimitz o seguisse até onde o general se encontrava.
Era uma espécie de escritório, bem menor do que todas as salas
onde antes Arthur já havia se reunido com aquelas pessoas nas últimas
horas, com uma escrivaninha, duas cadeiras, das quais pendiam pedaços de cordas que pareciam nunca terem sido usados, e uma espécie
de holofote aparentemente improvisado nos últimos momentos.
Novamente Arthur sentiu um forte calafrio na espinha, mas
não demonstrou temor. Resolveu que iria esperar tudo até o último
minuto. Pensou que talvez o general tivesse resolvido fazer alguma
espécie de terrorismo psicológico com ele, e que na realidade não iria
se utilizar daqueles expedientes bárbaros de que somente se ouvira
falar na época da ditadura militar.
O general terminava de acender um cachimbo que fazia evolar
uma fumaça azul e adocicava todo o ambiente. Sem ao menos levantar a cabeça para olhar na direção de Arthur, mandou que os homens
se retirassem e trancassem a porta.
– Esperem aí mesmo do lado de fora! Então, senhor Arthur
Nimitz. Pensou que nos enganaria muito facilmente. Não é mesmo?
– Nunca quis enganar ninguém. Sempre estive falando a verdade, e continuo afirmando. Posso saber como desconfiou que eu iria
embarcar mais tarde?
– O senhor realmente subestima muito as outras pessoas. Não
levamos mais do que dois minutos para sabermos a hora, o dia e qual
seria o vôo que o senhor iria tomar!
– E onde está o senador?
O general ignorou a princípio a pergunta e perguntou se Arthur
queria fumar. Disse que se quisesse podia acender o charuto, e depois respondeu ao que antes havia sido indagado:
– E quem se importa com o senador a uma hora destas? Agora o senhor é meu convidado! Verá que comigo as coisas são um
pouco diferentes!
235
Arthur Nimitz retirou um charuto e, depois de acendê-lo e inalar um pouco de fumaça, perguntou:
– E o que o senador pensa disto que o senhor está fazendo?
– E quem disse que ele sabe de alguma coisa? O senador é
um molenga! Um incompetente! Por isso resolvi que vamos resolver
tudo da forma mais rápida e segura. Ou seja, à minha maneira!
Apesar de não querer deixar transparecer o temor que estava
sentindo, Arthur Nimitz olhava instintivamente na direção das cadeiras com alguns pedaços de corda pendurados e sentia-se cada vez
mais intranqüilo.
– Não tenha medo! Pode se sentar em vez de ficar aí em pé
me olhando. Por enquanto somente estamos conversando. Só iremos
utilizar os velhos métodos se o senhor quiser, ou mesmo se me obrigar. Mas, creia-me, não é minha primeira intenção.
Arthur percebeu que o homem estava bem mais calmo do que
quando participava da reunião na mansão do senador, talvez por sentir que estava no domínio da situação. Concluiu que isto era muito
bom, e achou que não iria fazer mal algum se abrisse a boca para
falar algo. Afinal, o militar dissera: “Por enquanto somente estamos
conversando”. E até o momento somente ele falara.
– Desculpe-me, mas o senhor parece ter se esquecido de que
eu preciso voltar logo para casa, senão as provas que também o
incriminam, além dos outros, vão parar onde o senhor bem já sabe!
Repentinamente a calma sutil do General pareceu ter saído por
baixo da porta da sala e desaparecido. Depois de desferir um soco
em cima da mesa, cujas pernas rangeram, urrou na orelha de Arthur
Nimitz:
– Que me importam as provas! Pensa que eu realmente estou
tão preocupado com isto? Eu já tenho dinheiro suficiente lá fora para
eu me mandar de uma hora para outra! Quanto aos outros, que se
virem!
Enquanto o homem gritava e gesticulava, Arthur encolheu-se
todo fechou os olhos e ficou aguardando o soco que não veio.
Lentamente o general foi se sentando e baixando a voz até
voltar ao nível de antes. Sorrindo cinicamente, e fingindo estar desapontado consigo mesmo, concluiu:
236
– É o meu jeito. Desculpe-me. Não sei se entende a disciplina
militar. Às vezes é necessário que se limpe um pouco a garganta.
– Entendo.
No momento, Arthur sentiu que seria melhor concordar praticamente em tudo com o general. O homem não somente demonstrara
ser um histérico como também parecia ser um louco descontrolado.
Arthur soltou outra lufada de fumaça para o alto enquanto esperava que o militar dissesse algo. Este, depois de retirar calmamente o cachimbo da boca e também soltar uma nuvem de fumaça para
um dos lados, falou:
– Na realidade não quero pressioná-lo. Tenho uma proposta a
lhe fazer, independente de conseguir o que queira com o senador. Mas
terá de ser da minha maneira. Toma lá da cá, não sei se entende!
– Posso estar entendendo, só não sei se direito. Do que exatamente o senhor está falando?
– Dinheiro! Muito dinheiro!
Arthur ia falar qualquer coisa, quando o general lhe estendeu a
palma da mão dizendo para que se acalmasse:
– Não! O senhor não precisa resolver agora! Não quero ouvir
nada agora! Mesmo se me disser que não aceita, vou lhe dar vinte e
quatro horas para pensar. Depois retomaremos o assunto. Enquanto
isso, permanecerá meu hóspede.
Os dois sentiam que precisavam de mais tempo. O general tinha
uma dúzia de agentes rastreando todas as pessoas que haviam tido
uma possível ligação com Arthur Nimitz, por isso precisava de tempo.
Se os homens de São Paulo conseguissem localizar a tempo as tais
provas, adeus Arthur Nimitz, adeus testemunhas e adeus problemas.
Arthur Nimitz, por sua vez, também precisava de mais tempo
antes de fazer com que tais provas surgissem, pois se isso acontecesse, o senador iria desistir de fazer aprovar a lei que se prestaria a
regulamentar a eutanásia como fora combinado.
O general chamou, e os dois homens que estavam postados do
lado de fora entraram imediatamente. Em pé e com uma das mãos
apoiada na borda da mesa, determinou que levassem o jornalista para
seus aposentos.
237
O quarto era escuro e sem mobília alguma. Arthur entrou mas
antes foi revistado e todos os seus pertences lhe foram tirados, inclusive os charutos. A porta foi fechada logo em seguida às suas costas.
Ouviu o barulho de dois ferrolhos que se fecharam pelo lado de fora,
e somente alguns segundos depois é que suas vistas se ambientaram
com a escuridão. Descobriu que em um dos cantos havia uma porta
que dava para um pequeno e escuro banheiro.
Aliás, qualquer cego o acharia pelo cheiro que exalava.
Do outro lado do quarto escuro, somente um colchonete estendido no chão esperava que Arthur jogasse seu peso em cima dele.
*
Larissa Karmov ouviu muito bem quando Arthur Nimitz lhe
dissera que deveria ter o maior cuidado com o material que viesse a
tirar do cofre do escritório e que, além disso, tomasse o máximo de
cuidado para que ninguém a seguisse, tampouco lhe tirasse o pacote.
Se isto acontecesse, fatalmente ela e Arthur estariam perdidos, e
provavelmente com finais idênticos.
Não tinha vocação para espiã e nunca havia trabalhado para
nenhum serviço secreto de qualquer espécie, mas concluiu que se tal
material era tão importante a ponto de colocar suas vidas em perigo,
deveria tirar cópias seguras de tudo que tinha em mãos, inclusive da
fita de vídeo gravada, pois seria a única forma de manter um trunfo em
caso de ser apanhada por quem estivesse interessado no material.
Depois que colocou o pesado embrulho dentro de uma bolsa,
Larissa atravessou a avenida em frente ao edifício e saiu caminhando pela calçada até o ponto de ônibus um pouco mais adiante.
Havia acabado de escurecer e a rua, apesar de não estar com
muitas pessoas caminhando de um lado para outro como de costume,
também não estava completamente deserta. Havia visto muito bem o
homem que estava parado em pé ao lado de um poste e teve a impressão de que o mesmo estava ali para vigiá-la, ou qualquer coisa
assim. O temor passou a tomar conta de seus pensamentos, e enquanto caminhava olhou por diversas vezes para trás, para ver se o
homem a seguia. Não o viu, e isso a deixou um pouco mais aliviada.
“Deve estar esperando alguém do prédio!”, pensou.
238
Com a sacola apertada embaixo do braço, chegou ao ponto do
ônibus e sentiu-se segura, pois três outras pessoas estavam paradas
ali, também esperando a condução. Encostou-se num dos suportes
da cobertura e ficou torcendo para que seu ônibus chegasse logo.
A faísca elétrica iluminou a escuridão em torno dos cabos da
rede, denunciando o trólebus que se aproximava. Larissa cruzou os
dedos e fez figa, rezando para que fosse o seu ônibus. Não era. Aquele
não passava nem perto de onde ela pretendia descer, portanto não lhe
servia. O ônibus parou, e os três passageiros que estavam esperando
subiram a bordo e foram embora.
O coração de Larissa apertou dentro do peito, e depois mais
ainda, quando percebeu que o mesmo homem que a estava vigiando
se aproximava lentamente, distante uns sessenta metros. A mulher
pensou que seu coração não iria agüentar de medo, e já estava para
partir apressadamente do local quando outro clarão semelhante ao
anterior iluminou os cabos elétricos novamente e também a figura
masculina que agora não mais andava, mas começara a correr na
direção dela. Larissa não poderia precisar quem iria chegar primeiro;
se o ônibus em sua vagareza ou o homem que corria. Um e outro já
estavam bem próximos, quando Larissa andou na direção do veículo
e segurou no suporte da porta para se jogar para dentro. As forças de
seus velhos braços ameaçaram abandoná-la, quando o homem que
se aproximara por trás agarrou a bolsa violentamente para arrancá-la
da mulher. Subitamente um par de braços fortes envolveu-a e ajudou-a para que subisse a bordo.
O perseguidor de Larissa caiu violentamente para trás, depois
que a sola do sapato do passageiro que a ajudara acertou em cheio
seu rosto. Larissa teve tempo de ver o homem sentar-se à beira da
calçada enquanto limpava o sangue que escorria pela face com um
lenço que retirara do bolso.
– A senhora está bem?
– Sim! Graças a Deus, e também ao senhor! Não sei como lhe
agradecer!
– Não precisa agradecer. Só fiz o que achei que devia. Tem
que tomar cuidado, pois a esta hora este lugar é cheio de gatunos! Ele
lhe levou alguma coisa?
239
– Não. Não levou.
Larissa não sabia como agradecer ao rapaz que a salvara.
Queria acreditar que aquele homem que tentou lhe arrancar a bolsa
fosse apenas um ladrão comum, em vez de alguém interessado somente no material que estava dentro da bolsa. Poderia ter morrido.
Se caísse com o ônibus em movimento, poderia ter batido com a
cabeça e morrido. E o material teria se ido. Não queria nem pensar
nestas coisas, e voltou a apertar a sacola com mais força embaixo
do braço quando o ônibus já se aproximava do local em que iria
desembarcar.
Levantou-se e, depois de se certificar de que o rapaz que a
ajudara não estava mais a bordo, tocou o sinal de parada.
Depois que o ônibus parou, não precisou andar mais do que
meia quadra até o local onde alguém já a esperava. Subiu um lance
de três degraus e, parando embaixo de um pequeno vestíbulo, tocou a
campainha. O morador abriu meia porta e praticamente a puxou para
dentro. Trancou três ferrolhos e a levou por um estreito corredor até
uma sala grande, cujas janelas permaneciam sempre fechadas e pregadas. Larissa viu máquinas reprográficas em um canto, noutro canto um pequeno aparelho reprodutor de fitas de vídeo, e mais ao lado
outro aparelho, que segundo o homem iria servir para reprodução de
laser discs. Assim como Arthur, ele também fora paciente de Larissa
e iria lhe fazer o favor de duplicar o material que trouxera em quantas
cópias quisesse.
O homem trabalhava com reproduções piratas, mas, apesar
disso, era muito mais seguro que ele mesmo fizesse as cópias do que
uma loja legalizada em qualquer canto da cidade. Em uma loja dessas
com certeza qualquer pessoa iria suspeitar de algo ao ler o conteúdo
do material, mesmo que fosse em partes.
240
Vinte e cinco
Mais de sessenta dias em coma, e o quadro clínico de Fritzen
von Keitel era absolutamente estável. Não tivera sequer um pequeno
e súbito minuto de melhora, tampouco de piora.
Como fazia todos os dias, uma vez mais Cleber Petrus Papadopoulos o visitara pela manhã e conversara com o médico, o qual novamente lhe disse que a situação poderia se prolongar indefinidamente.
O quadro era de dano cerebral irreversível, e ninguém poderia
dizer com certeza até quando poderia durar o coma.
Cleber saiu do hospital e dirigiu-se a uma emissora de rádio
não muito longe dali, onde mais um religioso iria debater com ele.
Dentro de uma pasta levava todo o material que servira como base
para o projeto de lei que tramitava no Congresso, além de mais doutrinas jurídicas e diversos relatos de autoridades sobre o assunto em
questão.
Já havia debatido o assunto com eclesiásticos diversos, com
pastores de diversas denominações evangélicas, e agora um rabino
havia sido convidado pela emissora para debater o assunto.
A todos os anteriores, o advogado havia se manifestado da
mesma forma e apresentado os mesmos argumentos: ninguém no
mundo tinha o direito de prolongar o sofrimento de outro pessoa, a
que davam nome de “vida”, a menos que quisessem tomar o lugar de
Deus.
Passou pelo edifício da emissora e teve de dar a volta no quarteirão para que pudesse pegar a mão correta e estacionar o carro na
frente do mesmo.
Dirigia um jipe Grand Cherokee, e assim que desceu e trancou
o veículo, um dos rapazes da recepção logo o reconheceu e o levou
para dentro. Gostava das entrevistas e dos debates no rádio, pois não
lhe era necessário passar pelo desconforto dos camarins dos
maquiadores que lhe faziam cócegas.
241
Além do que, a sala reservada para os debates não era menos
aconchegante do que as das emissoras de televisão.
Excluindo o sistema de isolamento acústico, a sala, também
como as das emissoras de televisão, possuía confortáveis poltronas
sobre grossos e felpudos carpetes azuis, e um serviço de chá e café
tão eficiente que aos ouvintes não era possível saber o exato momento em que os debatedores se serviam.
Cleber entrou depois que o rapaz que o acompanhava voltou
da porta, e à sua frente viu o rabino já sentado com o seu característico solidéu na cabeça.
Era um programa de enquetes que, além do debate, dava oportunidade para os ouvintes em geral manifestarem suas opiniões.
“Você acha que ao médico cabe o direito de aplicar medidas
extraordinárias ou heróicas, só para conservar uma centelha de vida
num doente velho e irremediavelmente perdido, cuja hora da morte já
chegou, sem qualquer possibilidade de dúvida?”
Ao ouvir esta pergunta, o ouvinte que quisesse participar dando sua opinião usaria um número de telefone que era fornecido logo
em seguida. Muitas vezes, exatamente durante o debate, perguntas
eram feitas pelos ouvintes tanto a um participante quanto ao outro.
Luís Groves era o apresentador do programa e o mediador dos
debates. Assim que viu Cleber chegar à porta, levantou-se da poltrona em que estava sentado e convidou o advogado para acomodar-se.
Ofereceu-lhe algo para tomar, e Cleber aceitou somente um café.
Sobre uma espécie de mesa central estavam três garrafas de água
mineral e três copos de cristal extremamente limpos.
Cleber acendeu o cachimbo de porcelana e ficou esperando
calado. Dentro de no máximo cinco minutos estariam no ar.
Junto com a papelada rotineira, o advogado trazia consigo um
pacote de cartas de pessoas que se manifestavam a favor do alívio
dos enfermos, por diversas razões, e que aumentavam a cada novo
dia que a imprensa em geral, o rádio e a televisão, noticiavam a
matéria.
Como todo assunto polêmico, aquele também trazia consigo
uma multidão de pessoas que eram a favor a partir do primeiro momento, outra multidão de pessoas que eram fundamentalmente radi242
cais e contra, e uma terceira parcela que era neutra e ficava esperando a tendência que iria sair vencedora para então passar a tomar
partido.
Cleber havia cumprimentado os presentes anteriormente, e
assim que o rabino lhe respondeu pôde perceber que ele devia ter
vivido por um período muito longo de sua vida em algum país fora do
Brasil. Provavelmente em Israel. Seu português era completamente
carregado de sotaque.
A um sinal que lhe fora dado de fora, o apresentador do programa cientificou-se de que estavam no ar e deu por iniciado o debate, formulando a seguinte pergunta:
– O senhor, doutor Cleber, obviamente é a favor da eutanásia,
a assim chamada “morte fácil”? Podemos dizer isso?
– Não. Não é bem assim que venho tentado transmitir o assunto à sociedade, e também não é exatamente isso que o meu cliente solicitou desde que me contatou para interceder por ele.
– Então o senhor poderia por gentileza esclarecer a todos
como o senhor está tratando o tema?
Cleber soltou uma nuvem de fumaça na direção do teto e, enquanto ela fazia pequenas argolas e desaparecia, respondeu esclarecendo amplamente o assunto:
– É claro! Não estamos em hipótese alguma advogando a
terminação deliberada da vida de uma pessoa que esteja cheia de
esperanças no futuro ainda. Estamos demonstrando ser contra o adiamento de uma conseqüência natural, que seria a morte de alguém
reconhecidamente em estado terminal, por doença ou mesmo em
decorrência da idade avançada. Em suma, somos contra a distanásia,
que é a “morte dolorosa”, sendo o oposto da eutanásia.
O apresentador virou-se na direção do rabino e perguntou:
– E Sua Eminência? O que pensa a respeito do assunto?
– Bem. Como é do conhecimento de todos, a igrreja em si,
sejam lá quais forem suas dissidências, e eu neste momento falo pela
fé judaica, condena esse tipo de interrvenção do homem. A mim,
cabe dizer, que penso que ninguém a não serr o próprio Deus tem o
direito de colocarr um terrmo à vida de quem querr que seja. Deus
243
deu o marrco inicial com o soprro da vida, e Ele darrá o terrmo final
com a expirração deste mesmo soprro.
Quando Luís Groves virou-se na direção de Cleber, este percebeu que o apresentador esperava que ele manifestasse sua opinião, replicando. Então falou:
– Concordo com o senhor, quando diz que Deus deu o termo
inicial e somente a Ele cabe dar o termo final. E por acaso já ocorreu
ao senhor que os médicos, muitas vezes imbuídos pela ânsia e pelo
zelo de efetuar um bom serviço e lutar até a última tênue palpitação
de vida, isto aliado aos avanços da medicina, por si só estendem a
vida de pessoas já moribundas por tempo além do que seria normal?
E não estariam estes mesmos médicos, embora algumas vezes
involuntariamente, fazendo-se passar por Deus?
Até que o apresentador se manifestasse chamando para o intervalo comercial, o rabino e o advogado disseram e contradisseram
seguidamente.
– Não crreio que eles estejam se fazendo passarr porr Deus.
Acho que estão fazendo o seu trrabalho, pela perrmissão deste mesmo Deus, através do conhecimento que Ele lhes deu.
– Não concordo com o senhor, e acredito que uma boa parcela da comunidade também não concorda. Se diz que Deus deu o
conhecimento ao homem para que se utilize dele da melhor forma,
está certo. Mas isso não se aplica a todos os casos. Veja por exemplo
este caso hipotético. Há muitos anos, o ser humano era fadado a
morrer pela menor infecção que pudesse contrair. Com o tempo surgiu a penicilina, que como o senhor mesmo diz, foi fruto do conhecimento que Deus deu ao homem. Agora vejamos: um paciente com
câncer terminal no cérebro contrai uma pneumonia, e após ministrar
nele a penicilina, o médico consegue eliminar a pneumonia, mas de
nada adianta em relação ao câncer que o atormenta com dores que
só ele saberia dizer, e que fatalmente, mais dia menos dia, o levara à
morte. Resumindo: a penicilina somente aumentou ainda mais os dias
de sofrimento e dor do paciente. Acha isto justo?
– Concorrdo que a questão seja polêmica, e que cada caso é
um caso diferrente do outro! Mas somos obrrigados à nos aterr ao
fato de que a vida é doada por Deus, e somente Ele poderrá retirarr
ela de quem querr que seja.
244
– O senhor mesmo acaba de dizer! Cada caso é um caso
diferente do outro! E não estamos aqui tratando de tirar a vida de
ninguém em absoluto! Estamos é tratando de não prolongá-la indefinidamente por nossas mãos!
– Mas e a dor? E o sofrrimento? Neste caso hipotético que o
senhorr acaba de citarr, a pneumonia não irria provocarr uma dorr
ainda maiorr ao paciente que já estava sofrrendo com o câncer? Podemos perrfeitamente entenderr que o médico usou a penicilina com
o intuito de amenizarr a dorr de mais uma infecção no doente.
– Não, em absoluto! O médico não precisaria se utilizar de
penicilina para amenizar a dor do paciente terminal. O senhor sabia
que o Papa Pio XII, e estamos, é claro, nos referindo à fé cristã
católica, disse uma vez que embora a eutanásia seja condenada inclusive pela lei moral, se a pessoa moribunda tiver dado o seu consentimento, antecipado ou não, é permissível o uso moderado de entorpecentes para aliviar o sofrimento, ainda que estes entorpecentes
se lhe apressem a morte? Aí está! Não precisamos em absoluto prolongar deliberadamente a sobrevida de uma pessoa com a morte lhe
batendo às portas desde há muito.
Luís Groves fez sinal e pediu licença aos debatedores para
entrar no intervalo comercial. Depois de dois minutos, quando então
o debate recomeçou e se estendeu por mais trinta, Cleber concluiu,
que entendia que os médicos em geral, estando de acordo com a
família, o doente e o seu conselheiro espiritual, se houver um, devem
fazer tudo o que estiver ao seu alcance para aliviar o sofrimento do
doente, e jamais devem se utilizar de recursos extraordinários para
prolongar o sofrimento prolongado a que denominam “vida”. O médico tem de ter consciência de que chegou a hora de parar de lutar
contra o inevitável, que é a morte certa do moribundo.
Desde o início do debate, uma porção de correspondências
vindas pelas diversas formas chegaram.
Rapidamente o apresentador do programa as citou uma a
uma, e constatou, dizendo no ar, que 78% delas aproximadamente
eram a favor do doutor Cleber Petrus Papadopoulos. Algumas pessoas diziam que já tinham passado por tal sofrimento e sua dor
245
havia sido talvez até maior do que a do parente moribundo, em
vista de seu sofrimento interminável. Deu por encerrado, e antes
de Cleber pegar suas coisas e sair, foi até o rabino e o cumprimentou respeitosamente se despedindo.
246
Vinte e seis
O senador Afonso Marinho havia conseguido mobilizar grande
parte de seus colegas parlamentares na Câmara Federal e no Senado.
Isto fez com que em apenas duas semanas sua matéria fosse
votada em regime de urgência nas duas casas legislativas e seu conteúdo aceito em parte. Assim estava praticamente preparada para a
sanção do Presidente, depois que todos os outros assuntos que estavam sendo discutidos anteriormente foram engavetados.
Esperava sempre, mas nenhum contato ainda havia sido feito.
Os jornais já haviam divulgado a matéria da forma com que fora
aprovada pelos membros do Congresso, e o senador não tinha certeza se a mesma estava agradando aos interessados diretos, pois ninguém havia lhe feito qualquer espécie de contato.
A legalização completa e plena da eutanásia não passara.
No entanto, o conteúdo do texto que estava prestes a se tornar
uma lei federal, eximia de culpa o médico que na tentativa de livrar de
sofrimento um paciente terminal, por qualquer forma aceita na medicina, fizesse com que ele viesse a óbito.
Era um remendo, como falara Arthur Nimitz.
Porém, o senador achava que, para quem não tinha nada, desta forma a lei já era um bom começo. Restava saber se Arthur Nimitz
estava satisfeito com os resultados, e se iria mesmo lhe entregar a
fita e o dossiê SIVAN. Era um risco que teria de correr, pois seus
cartuchos haviam sido todos queimados àquela altura, e nada mais
poderia fazer para mudar sua condição de potencial vítima de uma
enorme chantagem política.
*
Arthur Nimitz não conseguia saber se era dia ou se era noite.
Sentiu que havia emagrecido, pois seu cinto já estava folgado, e a
calça estava quase caindo. Não tinha muita certeza, pois depois do
décimo dia de cativeiro parara de contar, mas achava que estava
247
perto de vinte dias trancado ali. Todos os dias o general o visitava,
um homem trazia uma cadeira para que o molitar se sentasse, e ele
passava mais de uma hora interrogando e perguntando se iria aceitar
seus termos e dizer onde estavam escondidas as provas, ou se iria
esperar que seus homens as achassem. Na segunda hipótese, não
haveria acordo algum.
Arthur fazia uma espécie de prato com a tampa da marmita de
alumínio em que lhe serviam a comida, para não ter de comer com as
mãos.
Havia acabado de comer, e foi até o sujo lavatório para passar
água na boca, quando ouviu a porta ser destrancada por fora.
– Senhor Arthur?
– Estou aqui! No banheiro!
– Está bem. Eu espero. Não tenho a menor pressa!
Arthur escutou a cadeira sendo arrastada para um canto, e
antes mesmo que a luz se acendesse, machucando-lhe as vistas, soube que era o general pelo cheiro do tabaco. Quando saiu do banheiro,
o militar o olhou de alto a baixo e, fingindo estranhar seu abatimento,
lhe perguntou calmamente:
– O que se passa? Não o estão tratando bem aqui?
– Depende. Se é o melhor que podem fazer, diria que está
ótimo! Se não, diria que está péssimo!
– Bem, verei o que posso fazer. Mas compreenda, isto são
instalações militares! Não estamos habituados aos luxos dos hotéis
que o senhor certamente freqüenta!
Arthur percebeu que o militar lhe falava com extremo cinismo,
por isso respondeu secamente, sem demonstrar dar qualquer importância ao fato.
– Eu posso agüentar.
– É corajoso! Deveria ter se tornado militar! Talvez hoje fosse
um general! Talvez um brigadeiro! Gosta de voar?
Desta vez Arthur Nimitz não respondeu, deu de ombros, e ficou esperando o que viria.
– De qualquer forma, quanto antes o senhor resolver colaborar, mais cedo sairá daqui. Eu lhe prometo!
248
Arthur outra vez sentiu o cinismo na voz do general, e pressentiu que ele estava mentindo.
O General continuou falando:
– Bem, eu vim aqui, para lhe dizer que tenho duas notícias para
lhe dar. Uma boa e uma ruim. Qual delas o senhor quer ouvir primeiro?
Arthur permaneceu calado. Nada poderia ser pior do que o
que estava lhe acontecendo no momento, e não se importava. O general iria falar de qualquer jeito, e na ordem que bem entendesse.
Ficou ouvindo.
– Como queira! A primeira, a notícia boa para mim, é que
descobrimos que as provas que o senhor tem em seu poder podem
estar guardadas com uma amiga sua chamada Larissa Karmov!
Quando ouviu o nome da mulher, Arthur teve um sobressalto
no interior do peito e ficou pensando: “Se essa é notícia boa, qual
será então a ruim?”
– A segunda, a notícia ruim, é que acabamos de descobrir o
endereço dela, e assim que a pegarmos, se ela estiver com o material,
o senhor fica sem o dinheiro, morre, e provavelmente ela também!
Arthur resolveu perguntar:
– E onde está a minha notícia boa?
– É que sempre existe uma probabilidade de não ser essa tal
Larissa a estar com o material! Até descobrirmos, não posso lhe
dizer se ela agüentará nossos métodos, mas o senhor permanecerá
vivo até nós descobrirmos o paradeiro das provas!
O coração de Arthur Nimitz apertou fortemente dentro do peito, seus olhos quiseram chorar, mas se conteve. Por uns instantes
teve vontade de levar o militar até onde estava o material e permitir
que Larissa se livrasse daquele problema. Se aceitasse o dinheiro,
não que precisasse, quem lhe iria garantir que o general iria realmente deixá-los livres?
Menos de um minutos depois, estava frio e impassível novamente. Iria pagar para ver. Se conhecia bem a fibra de Larissa
Karmov, apesar de sua idade, não iria se deixar apanhar facilmente.
Quanto a ele, pouco lhe importava sua vida àquela altura. Já havia
vivido o suficiente e visto coisas na vida que jamais imaginara.
249
Mas se houvesse oportunidade de resistir, por menor que fosse, iria lutar. Não iria se entregar facilmente como se fosse um carneiro manso indo para o abatedouro.
*
Os dois homens se apresentaram ao porteiro como se fossem
da manutenção dos elevadores. O porteiro lhes disse que não tinha
nenhum conhecimento da ordem de serviço, e eles lhe mostraram
uma falsificada de dois dias antes. Sabiam que havia sido a folga
dele. Um clique forte se fez ouvir, e o portão automático abriu para
que os homens, vestindo macacões profissionais e com uma caixa de
ferramentas, entrassem.
Um deles sorriu e agradeceu ao porteiro, e caminharam até o
elevador de serviço.
Em seu interior, um dos homens apertou o botão do sétimo
andar, e ficaram aguardando até que fechasse muito lentamente a
porta e iniciasse a subida.
Sabiam que a tal Larissa Karmov era uma velha, portanto acharam que não iriam ter muito problema com ela, se porventura estivesse em casa.
Assim que a luz indicativa do andar se acendeu e a campainha
tocou, a porta se abriu novamente muito devagar, e os dois homens
saíram. Olharam cautelosamente para um dos lados do corredor e
certificaram-se de que o apartamento de Larissa ficava para o outro
lado. Logo que se aproximaram, um dos homens retirou de um dos
bolsos um par de gazuas e passou a trabalhar na fechadura da porta
de entrada da lavanderia.
Larissa ouviu o ruído na porta, e mais do que depressa apressou-se a apanhar o envelope com duas das cópias de todo o material,
e propositadamente deixou uma outra dentro de um armário em um
dos cantos da sala, onde seria facilmente encontrado por quem quer
que os procurasse.
No exato momento em que sentiu a corrente de ar entrando no
apartamento e que a porta dos fundos na lavanderia se abrira, saiu
pela porta da sala de estar no outro extremo do apartamento e desceu pelo elevador social.
250
Enquanto descia pensou se devia chamar a segurança pelo
interfone ou se seria melhor deixar que os homens lá dentro do apartamento achassem o material escondido. Ficariam pensando que era
tudo o que existia, e talvez não a procurassem mais.
Saindo dali, a primeira coisa que iria fazer seria entrar em contato com o tal senador e perguntar-lhe a respeito do amigo, o jornalista Arthur Nimitz . Estava realmente preocupada , pois ele não dera
mais sinal de vida. Larissa temia ter de dar o prazo para que o senador Afonso Marinho fizesse a sua parte no trato, pois isso poderia
significar que não iria mais ver o amigo.
Depois de se afastar de casa alguns quarteirões, descendo de
uma condução aqui e ali, e subindo em outra por várias vezes, percebeu que ninguém a seguia. Foi até um telefone público e ligou para o
número que Arthur Nimitz havia lhe passado. Olhou no relógio e constatou que já passava das dez horas da noite, e enquanto o telefone
chamava, achou que ninguém iria atendê-la .
Pensou em desligar, quando de repente o silêncio se quebrou,
com alguém falando do outro lado:
– Alô! Gabinete do senador!
– Por favor! O senador Afonso Marinho está aí? Posso falar
com ele?
– Preciso verificar, mas temo que não será possível falar com
ele a esta hora. Terá de falar com sua assessora!
– Sinto muito, mas não quero falar com ninguém que não seja
ele mesmo! Diga que é da parte de Arthur Nimitz. Tenho certeza de
que ele atenderá.
Do outro lado da linha, apesar de Larissa estar insistindo, a
pessoa que atendera novamente iria dizer que era impossível falar
com o Senador, quando ouviu o nome de Arthur Nimitz ser pronunciado
e mudou imediatamente de idéia.
– Está bem. Então aguarde um momento, por favor!
Minutos depois, uma voz estrondosa e rouca se fez ouvir do
outro lado.
– Senador Afonso Marinho! Quer falar com quem?
– Com o senhor mesmo! É da parte de Arthur Nimitz...
251
Larissa ia continuar falando, quando o senador a interrompeu e
perguntou se tinha um telefone para que ele pudesse retornar a ligação. Sabia que não era seguro falar através da linha de seu gabinete,
pois poderia estar com escutas indesejáveis. Larissa prontamente
lhe respondeu:
– Sinto muito, mas estou na rua! Praticamente fui despejada
de casa por pessoas que considero serem mandadas pelo senhor!
– Acalme-se, por favor. Não diga mais nada. Anote este número que vou lhe passar e me ligue dentro de quarenta minutos sem falta.
– Está bem.
Enquanto o senador saía apressadamente do edifício de seu
gabinete para pegar o carro e ir para o local do telefone que considerava seguro, Larissa saiu perambulando com a mochila embaixo do
braço até o posto telefônico mais próximo. Antes, porém, iria tomar
um lanche na primeira lanchonete decente que encontrasse. Àquela
hora da noite não tinha muitas opções, mas assim que encontrou uma
cujo ambiente não a assustava, entrou e sentou-se à frente de uma
televisão que passava a última edição de um jornal. O garçom lhe
trouxe o suco e o lanche que pedira, e assim que Larissa deu a primeira mordida e levou o copo à boca para tomar o primeiro gole do
suco, ouviu o repórter dizer que a lei que regulamentava de certa
forma a prática da eutanásia havia sido aprovada pelo Congresso e
sancionada pelo Presidente da República. Prestou muita atenção aos
detalhes e ficou pensando se aquilo, da forma em que fora redigido,
iria agradar a Arthur Nimitz e a Fritzen von Keitel.
*
Larissa terminou o lanche e dirigiu-se ao posto telefônico depois de refletir bastante acerca de tudo que ouvira pela televisão.
O senador atendeu o telefone depois do primeiro toque, ainda
um tanto ofegante.
– É você?
– Sim sou eu, Larissa. Onde está Arthur Nimitz?
– Como assim? Ele tem de estar com você! Por que acha que
eu deveria saber onde ele está? Já faz quase um mês que ele desapa252
receu daqui, depois do trato que fizemos! E, diga-se de passagem, eu
cumpri a minha parte!
– O senhor quer me dizer que não sabe onde ele está? Foi
exatamente ele mesmo que me ligou no dia em que falou com o senhor, e me disse que temia pela própria vida! Me fez pegar um certo
material que deveria ser entregue ao senhor, se fizesse a sua parte no
trato. Mas quero saber onde ele está, senão não vou entregar nada
ao senhor. Estou indo à Polícia Federal e ao Ministério Público federal. Se o senhor não sabe onde ele está, quem vai saber?
O senador resmungou algo, e Larissa não entendeu.
– O general Daniel West! Aquele desgraçado!
– O que disse?
– Nada! Estou pensando alto! Mas espere um pouco! Você
não pode fazer isto comigo! Eu cumpri a minha parte no nosso trato!
Se não me der este material, eu estou perdido! Minha vida estará
arruinada!
Larissa resolveu insistir, perguntando:
– Tem certeza de que não sabe qual o paradeiro do Arthur
Nimitz?
– Não! Palavra!
– Então desculpe-me, mas não me deixa escolha.
– Não! Espere!
– Quer dizer que sabe onde ele está?
– Não é isso! Eu não sei! Mas por favor, pelo amor de Deus
não faça isso! Podemos nos encontrar e fazer algum tipo de acordo!
Que tal dinheiro? Muito dinheiro!? Esqueça esse tal de Arthur!
Larissa Karmov ignorou os apelos, e um ódio intenso tomou
conta dela, quando ouviu o homem falar daquela forma. Pensou no
que poderia ter acontecido a Arthur Nimitz. Desligou lentamente o
aparelho e, sem deixar que as pessoas ao redor percebessem suas
lágrimas descendo pelo canto do rosto enrugado, saiu perambulando
com a fatídica mochila embaixo do braço. Pensou em abandonar tudo
pelo caminho, jogando-a em qualquer beco escuro, mas novamente o
ódio lhe aqueceu o rosto e teve certeza do que deveria mesmo fazer.
Sim. Seria a melhor vingança. Não se importava mais com a sua
253
mesquinha vida. Queria vingança. Talvez a mesma vingança que
Arthur Nimitz viesse a querer, se estivesse no lugar dela.
*
Arthur Nimitz levantou-se do colchão surrado jogado no chão,
onde estava deitado. Não tinha idéia da hora, pois os militares haviam
lhe tirado o relógio propositadamente, como se isso fizesse parte de
alguma técnica de abatimento da moral. O isolamento total do mundo
exterior faz com que a pessoa passe a ter constantes crises de
claustrofobia. Quando a porta se abriu e a luz se acendeu, fechou os
olhos por alguns segundos para evitar a dor intensa, e quando abriu
viu o general em pé, parado à sua frente.
– Levante-se que nós vamos dar um passeio! Tenho boas e
más notícias para você! Qual...
– Já sei. Já sei. Qual eu quero ouvir primeiro? Se quer saber,
não faz a menor diferença. Me tire logo daqui! Não agüento mais!
– É um homem de fibra, senhor Arthur Nimitz! Como já lhe
disse antes, deveria ter sido oficial do exército! Seria hoje um excelente general, com certeza!
O estômago de Arthur embrulhava com aquela conversa fiada, o que fazia parecer que o general era um autômato que não sabia
dizer outra coisa. Mesmo assim, interessou-se em saber de que se
tratava.
– O que é desta vez? E onde estão minhas coisas? Meus
charutos?
Julgou que não iria fazer-lhe diferença nenhuma se abrisse a
boca para fazer perguntas enquanto o general e dois homens à paisana o levavam para fora na direção de um helicóptero pousado atrás
da casa.
– Acalme-se. Talvez até não venha a precisar de mais nada
disso!
Novamente a sensação de frio intenso lhe percorreu todo o
corpo, e em seguida subiu empurrado para dentro do helicóptero.
Todos se calaram até que o aparelho saísse do chão, pois o
barulho do motor à toda potência impedia que se ouvisse qualquer
254
outra coisa. O piloto fez uma volta completa em torno da casa, subindo cada vez mais, e depois apontou a proa do aparelho na direção de
um dos grandes lagos de Brasília.
– Sua sorte está lançada!
– Como assim?
– Aqui está o material que retiramos do apartamento da tal Larissa
Karmov ontem à noite, e que nos foi mandado para cá de avião...
Antes que o homem terminasse de falar, Arthur perguntou:
– Como está Larissa?
O general tirou o cachimbo que estava preso entre os dentes e
respondeu mansamente enquanto olhava perdidamente na direção do
horizonte:
– Esta é a boa notícia! Ela não estava em casa quando meus
homens chegaram lá. Portanto ainda deve estar viva por aí. E o que
eu considero má notícia para você é que eu ainda não verifiquei o
material, embora estivesse morrendo de curiosidade. Guardei a surpresa para o momento em que você estivesse junto conosco! Por
exemplo, agora! Se for o que estamos esperando, talvez eu deixe
você ir. Se não for, você irá fazer um pequeno vôo em queda livre de
três mil metros! Ah, o seu amigo, o senador molengão, conseguiu
fazer passar a lei que você tanto queria. A lei da tal eutanásia! Besteira! Não sei para que um trabalho desses, se uma hora ou outra
todos morremos mesmo e de qualquer jeito!
– Com certeza, tem muitas coisas que você desconhece nesta
vida, general! Que tal a palavra humanidade para você?
O general ficou mudo enquanto abria a caixa da fita de vídeo, e
Arthur sentiu um forte aperto no peito, e um nó na garganta. Sentiu
calafrios intensos que fizeram com que o vento que entrava pelo vão que
estava sem a porta ficasse menos gelado. Um dos guarda-costas havia
ficado em terra, e o outro havia subido juntamente com ele e o general.
Arthur estava espremido entre os dois, e enquanto o general
examinava o material para depois ouvir a fita, o guarda-costas lhe
apertava um par de costelas com o cano de uma pistola automática.
Arthur estudou a situação, e concluiu que a partir daquele momento
seria tudo ou nada.
255
Segundos depois, o general visivelmente decepcionado já lhe
lançava impropérios aos vagalhões, indignado por ter entre as mãos
um monte de papéis sem o menor valor para ele. Não iria nem se dar
ao trabalho de ouvir a fita, foi o que disse, momento em que o guardacostas levantou a mão para bater forte com a arma na cabeça de
Arthur.
Arthur Nimitz se esquivou, jogando-se em cima do oficial e
soltando-lhe a fivela do cinto de segurança. Novamente o guardacostas tentou acertá-lo, e no exato momento em que o disparo foi
ouvido, seguido de um ricochete, Arthur e o general Daniel West
voaram agarrados para fora da aeronave e caíram pelo espaço escuro e vazio.
Pouco mais do que um uivo foi no que se transformou o grito
de desespero do general, perto do barulho ensurdecedor dos rotores
do aparelho.
O guarda-costas gritou então:
– O general West caiu! Vai pegar ele, seu desgraçado! Por
que não para de balançar este troço?
O piloto não respondeu.
O aparelho deu uma guinada para a frente, e neste momento o
guarda-costas percebeu o porquê. Um fio de sangue saía por baixo
do fone de ouvido do piloto, que não iria escutar nada mais neste
mundo.
Segundos depois, quem porventura tivesse escutado não saberia dizer se os gritos de desespero do guarda-costas eram mais ou
menos altos do que o estrondo da explosão provocada pelo choque do
aparelho no chão.
256
Vinte e sete
O delegado federal Youssef Aldeb Haran apanhou na portaria
o grande envelope cuja etiqueta dizia ser endereçada para ele, mas
não tinha a menor idéia do que viria a ser.
“Felizmente aqui não é moda mandar cartas-bombas à polícia!”, pensou.
Pegou o elevador e subiu até o andar em que ficava sua sala.
Passou pelo corredor cumprimentando a todos e, depois de destrancar a fechadura, entrou encostando a porta atrás de si. Colocou o
envelope em cima da mesa, foi buscar um café que a servente havia
acabado de preparar e se pôs a abrir a encomenda. Começou a passar as folhas uma por uma e, depois de constatar que era uma encomenda anônima, reconheceu logo de cara do que se tratava. Antes
dos documentos que comprovavam a fraude propriamente dita, havia
umas duas páginas de explicações da pessoa que havia preparado o
dossiê. Ainda não havia assistido a fita, mas suspeitava que certamente era referente ao mesmo assunto, e possivelmente uma prova
com mais fundamento ainda.
“Mas isto não devia estar aqui! Este negócio tem de ser visto
em Brasília, e se possível pelo próprio superintendente!”. Youssef
pensava corretamente, e por isso mesmo resolveu que mandaria via
fax para o superintendente da Polícia Federal em Brasília todo o material, e a cópia da fita iria posteriormente via sedex.
Enquanto isto, no edifício do Ministério Público federal em São
Paulo, outro envelope, idêntico na forma e no conteúdo, também fora
encontrado por um dos Procuradores da República.
Na sala haviam outros três procuradores, e o que havia recebido a encomenda colocou a fita de lado e passou a ler as páginas do
dossiê. Após ter lido mesmo que superficialmente as três páginas
iniciais, na quarta gritou, e batendo com a palma da mão sobre a
mesa instintivamente.
– Mas isto é uma bomba!
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Todos os outros que estavam na sala pararam repentinamente
de fazer o que estavam fazendo, e olharam de uma só vez para o
homem que gritara.
– O que você está dizendo? Onde é que está a bomba, pelo
amor de Deus?
– Desculpem-me. Refiro-me a isto aqui! Vejam bem o que
veio cair em nossas mãos!
Um dos procuradores aproximou-se, e apanhou a fita. Examinou algumas folhas que estavam em cima da mesa, depois caminhou
até um canto da grande sala onde estavam fixados um aparelho de
televisão e um videocassete. Cerca de quarenta minutos depois, a
fita havia acabado.
O procurador Émerson Kapelan Silva, que foi quem recebeu a
encomenda, falou:
– Vamos examinar o material todo, e mesmo que tenha alguém de São Paulo envolvido, este material tem de ir para Brasília o
mais rápido possível!
– Como pretende agir com isso?
– Vou determinar que se tirem algumas cópias de tudo, e depois um de nós levará o material pessoalmente.
*
Três dias se passaram, e os jornais não falaram absolutamente
nada a respeito do dossiê SIVAN. Na maior parte do tempo, a televisão e as páginas dos jornais matutinos se ocupavam exclusivamente
do assunto Fritzen von Keitel e da Lei que havia acabado de ser
sancionada pelo Presidente da República, regulamentando o direito
de um doente terminal parar de sofrer.
O advogado Cleber acompanhava o assunto passo a passo e
bem de perto. Havia chegado a hora de requerer o direito em prol de
Fritzen von Keitel na Justiça. Tudo havia sido muito bem preparado, e
julgou que não haveria juiz que pudesse ter a coragem de negar tal
pedido, da forma em que a imprensa havia tratado e ainda estava
tratando o assunto.
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No quarto dia pela manhã, Larissa Karmov foi até a banca de
jornais mais próxima do local onde ainda estava escondida e viu um
quadro de reportagem do lado direito superior da primeira página de
um dos periódicos de maior circulação.
“Pelo menos seis pessoas já tinham prisões preventivas decretadas pela Justiça Federal, e pelo menos outras seis já estavam sendo
solicitadas. A imunidade parlamentar protegia o senador e os outros
políticos que eram citados no dossiê SIVAN. Seria necessário que a
Câmara Federal e o Senado concedessem as respectivas licenças
para que se pudesse processá-los.”
Num quadro bem menor do mesmo jornal lia-se a notícia de
um helicóptero que havia caído próximo a um dos lagos de Brasília
com dois corpos dentro. Nas proximidades haviam sido encontrados
também outros dois corpos; um era o general Daniel West Groves,
“grande patriota e servidor da nação”, dizia o jornal, e o outro era um
jornalista famoso mundialmente. Ambos haviam supostamente caído
de dentro do aparelho que se espatifara em seguida.
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260
Vinte e oito
Cleber sentou-se na cadeira atrás de sua mesa e, enquanto
fumava o cachimbo branco, olhou mais uma vez para a cópia da
sentença em suas mãos, pensando: “Fritzen conseguiu. Lutou mas
conseguiu”. Na petição inicial, o advogado havia requerido que o juiz
designasse um médico em especial, mas neste item em particular,ele
não o pôde atender. Não poderia obrigar um médico qualquer a fazer
algo daquela natureza, se achasse que isto era contra seus princípios
morais, familiares ou mesmo religiosos.
Caberia a ele ou aos familiares do enfermo encontrarem um
médico que realmente acreditasse no que estava fazendo e aceitasse
a tarefa.
Cleber soltou uma nuvem de fumaça que rapidamente se espargiu, movida pelo vento que entrava pela janela aberta, esticou o
braço e apanhou o telefone. Alguns segundos depois que discou um
número, Larissa Karmov atendeu:
– Alô?
– É você, Larissa? Aqui é o doutor Cleber Petrus!
– Doutor! Que surpresa! Tem acompanhado os jornais?
– Sim. Você foi a responsável pela história do SIVAN?
– Não posso dizer que tenha sido eu. Isso foi coisa do Arthur
Nimitz!
– E tem sabido dele?
Fez-se um instante de silêncio, e em seguida a mulher falou
meio engasgada:
– Não soube do acidente com o helicóptero?
– Não. Me conte o que houve.
– Acharam seu corpo e os de mais quatro pessoas, entre eles
um general do exército, espalhados pelo solo de Brasília, junto com
os restos do helicóptero! Este general, segundo o jornal, é um patriota
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servidor da nação. Provavelmente ainda não sabem que é um dos
citados no dossiê!
– Ele é citado no dossiê? Então acredite! Não foi acidente.
Liguei para lhe falar do processo. Estou com a sentença aqui em
minhas mãos, mas o juiz não quis designar um médico!
– Vou ver o que posso fazer. Tenho alguém que chega aqui em
casa esta semana, que talvez possa ajudar. Chega hoje à noite!
– Você já está dormindo em casa?
– Sim. Agora creio que o perigo já passou. Assim que ele
chegar, eu lhe procuro.
Cleber Petrus agradeceu e pediu à mulher que entendesse a
urgência do caso. Ela lhe respondeu amavelmente que não se preocupasse, pois de certa forma fazia parte de tudo aquilo, talvez mais
do que ele mesmo.
*
Ninguém queria fazer daquele caso um espetáculo para o
mundo, mas assim que o advogado Cleber Petrus chegou com seu
carro e parou no lugar de costume no estacionamento do hospital,
uma multidão de repórteres o cercou fazendo perguntas. Não tinha
idéia de como era possível para eles saberem de tudo o que se passava, mas julgou que alguém lhes informava inclusive os horários de
cada ato pertinente ao caso. Cleber pensou em responder algumas
perguntas, mas assim que eles começaram com o falatório desorganizado, percebeu que não iria conseguir esclarecer nada.
– Doutor! Então o senhor conseguiu que a lei fosse aprovada?
Segurando o cachimbo apagado em uma das mãos, respondeu
com certa secura na voz:
– Creio que o senhor acompanha os jornais, e não tenho necessidade de lhe responder isto!
– É verdade que o senhor não tem um médico para matar o
doutor Fritzen?
Cleber levantou a cabeça, olhou para a direção de onde achou
que havia vindo a pergunta imbecil, mas ninguém se manifestou no262
vamente. Provavelmente quem a fizera compreendera o seu alto grau
de imbecilidade e se arrependera de tê-la feito.
Levantando a mão, acenou e falou:
– Nada mais a declarar, senhores!
– Por que o senhor sempre faz questão de utilizar esta tática
com a imprensa? Não acha que o povo tem o direito de saber o que
está se passando?
Cleber parou e, voltando-se um pouco para a espécie de platéia, achou que devia dar atenção àquela pergunta.
– Vou lhe responder uma coisa de cada vez. Utilizo esta tática
justamente por causa de certas perguntas que agora há pouco a senhora mesma acabou de ouvir. Segundo, acredito que o povo tem o
pleno direito de se informar, mas também acredito que os senhores
sempre têm os seus meios de descobrir a informação, mesmo que eu
nada lhes fale. Obrigado, e é só!
Enquanto falava, Cleber conseguiu se aproximar da entrada do
hospital empurrando os repórteres, e uma vez lá dentro se livrou da
multidão.
Alguém lá fora ainda gritou:
– Quem pode nos autorizar a filmar a execução?
Cleber sentiu-se tentado a virar para ver de onde viera a pergunta, mas teve certeza que não iria valer a pena. Ignorou e continuou andando até sumir dentro do pavilhão principal.
Dentro da pasta que carregava, levava a documentação pronta e assinada por todos os familiares, além do próprio pedido de Fritzen
von Keitel e a cópia da sentença. A petição inicial havia sido instruída
com o original dessa documentação; por isso, o que Cleber levava
eram cópias autenticadas em cartório. Talvez não viesse a precisar
delas, mas as levava por pura precaução de advogado.
Caminhava pelo corredor na direção da enfermaria onde estava Fritzen, quando Larissa veio encontra-lo no meio do caminho.
– Doutor! Tive receio de que justamente hoje o senhor não
aparecesse por aqui!
– Tenho vindo religiosamente todos os dias ver Fritzen. Afinal,
foi para isso que ele me pagou, e muito bem. Além do mais, creio que
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acabamos amigos. Talvez ele não tenha como sentir, mas eu o sinto
como um amigo íntimo!
– Pode ter certeza que ele sabe. Ele sabe perfeitamente o que
o senhor está sentindo, e está muito grato por isto. Só não pode falar,
mas sabe! Tenho certeza!
Larissa entrou na enfermaria junto com Cleber, e lá dentro já
estava o médico que iria injetar no tubo de soro a endorfina.
Larissa apresentou-lhe o advogado, e este lhe estendeu a mão
apertando a do médico. Do outro lado, um sacerdote ocupava uma
das cadeiras de visitas sentado ao lado do juiz Jonas Malton. Nada de
imprensa. Nem mesmo um só repórter teve autorização para entrar e
documentar de qualquer forma o que estava prestes a acontecer.
Assim que considerou que todos já estavam presentes e não
havia mais qualquer sombra de dúvida a respeito do que se deveria
fazer, o médico inseriu a fina agulha da seringa no tubo de soro e
injetou nele todo o seu conteúdo.
Todos se levantaram e ficaram olhando como se esperassem
qualquer reação do corpo cujo cérebro já deixara de disciplinar suas
funções faziz um tempo muito maior do que o permitido pela natureza. Nem um só movimento se fez, por menor que fosse. Era praticamente impossível. Se porventura Fritzen von Keitel voltasse a si, não
seria mais o mesmo; ao contrário, seria dez vezes mais dependente
do que uma pessoa autista.
Longos minutos depois, em pé ao lado do leito e com um
estetoscópio encostado no peito gelado do doutor Fritzen von Keitel,
o doutor Igor Karmov certificava-se de que no corpo não havia mais
sinal de vida.
Junto com ele estava o juiz Jonas Malton, e do outro lado estavam Larissa Karmov, o advogado Cleber Petrus Papadopoulos , e o
monsenhor Hantssen .
O médico falou, enquanto destruía a agulha e a seringa:
– Está feito. Ele se foi.
O jovem doutor Karmov falava com a voz embargada, e mesmo tentando disfarçar, não consegui impedir que Larissa e Cleber
notassem o fio de lágrima que lhe descia por um dos cantos da face
branca um pouco rosada.
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O padre continuou fazendo sua prece, que quase somente ele
mesmo, além de Deus, podia ouvir. Quando terminou, o juiz Malton
arrematou dizendo:
– Cessou seu sofrimento.
Como se todos estivessem anestesiados, ninguém comentou
mais nada.
Um a um foram saindo do quarto.
O advogado Cleber levava consigo a certeza de que algum
dia, a qualquer hora a partir daquela, alguém iria ser muito grato a
Fritzen von Keitel por sua luta. Ninguém mais iria ser obrigado a
sofrer e definhar até seu último segundo de vida, a menos que assim
o quisesse.
Ninguém mais teria que sofrer o interlúdio de dor .
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Vinte e no
ve
nov
Fritzen levantou-se em seguida e sentou-se na beirada da cama
com as pernas penduradas e as mãos abertas apoiadas nas coxas.
À sua frente via uma intensa luz no espaço onde deveria estar
a janela. A claridade deixava transparecer somente a silhueta de um
homem, que por uns instantes Fritzen reconheceu como sendo muito
parecido com o que saíra do quarto do leito de Natalina de Jesus,
pouco antes de sua morte, e que desaparecera no final do corredor.
Depois apareceu a silhueta de uma mulher. Uma mulher que
se aproximou lentamente por trás do homem cuja face agora resplandecia, e que Fritzen percebeu imediatamente ser Inga, enquanto ela
lhe acenava. Levantou-se para começar a andar em sua direção e
nem percebeu que seus pés não tocavam mais o chão. Pensou em
olhar para trás mas não o fez e, sem saber por que, lembrou-se da
história da mulher de Ló e teve medo. Continuou seguindo em frente,
quando então o homem-luz o tomou pelas mãos e o entregou nos
braços de Inga, que se abriram recebendo-o afetuosamente.
O homem que resplandecia intensamente lhe falou algo em
uma língua estranha que jamais havia ouvido, mas mesmo assim Fritzen
entendeu tudo.
Dizia que o Senhor o havia mandado para que o recebesse.
Fritzen, sem ter muita consciência ainda do que estava ocorrendo, surpreendeu-se quando lhe perguntou falando a mesma língua
estranha:
– Mas...quem é você?... E que Senhor é este?
Em meio ao fulgurante resplendor, a amável figura respondeulhe então:
– Eu não posso lhe dizer o que sou, e tampouco quem sou.
Somente posso lhe dizer que sou um dos mais belos, e um dos primeiros a serviço do Senhor!... E o Senhor, é Deus!... O Senhor Deus!...
Ele, que se agradou muito de você em toda a sua vida, pois notou que
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agiu como se fosse verdadeiramente um advogado dos anjos da guarda, que sofrem também toda vez que vêem um ser humano sofrer!
Depois disso, partiu e desapareceu em meio à luz.
A partir daquele instante Fritzen sentiu que estava livre, e uma
imensa felicidade o tomou.
Fritzen saiu flutuando como se estivesse andando, abraçado
com Inga. Não sabia ainda, mas a partir de então jamais se lembraria
de qualquer coisa de seu passado terreno.
***
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O Advogado
e o Querubim
Will Mampian
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