Polícia Interativa - O Futuro de uma Ilusão.
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Polícia Interativa - O Futuro de uma Ilusão.
UNIVERSIDADE VILA VELHA-ES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS MESTRADO ASSOCIADO AO PROGRAMA DE ESTUDOS PÓSGRADUADOS EM CIÊNCIAS SOCIAIS – PUC/SP DISSERTAÇÃO DE MESTRADO SAULO DE SOUZA LIBARDI POLÍCIA INTERATIVA – O FUTURO DE UMA ILUSÃO VILA VELHA/ES 2012 UNIVERSIDADE VILA VELHA-ES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM CIÊNCIAS SOCIAIS PUC-SP POLÍCIA INTERATIVA – O FUTURO DE UMA ILUSÃO Dissertação apresentada à Universidade de Vila Velha-ES, como pré-requisito do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, associado ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais PUCSP, para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. SAULO DE SOUZA LIBARDI Orientador: Profª. Drª. Maria da Penha Smarzaro Siqueira VILA VELHA 2012 Catalogação na publicação elaborada pela Biblioteca Central / UVV-ES L694p Libardi, Saulo de Souza. Polícia interativa: o futuro de uma ilusão / Saulo de Souza Libardi. – 2012. 159 f. Orientadora: Maria da Penha Smarzaro Siqueira. Dissertação (mestrado em Sociologia) - Universidade Vila Velha, 2012. Inclui bibliografias. 1. Serviços de polícia - Brasil. 2. Polícia - Cidadania. 3. Relações policiais - Comunidade. I. Siqueira, Maria da Penha Smarzaro. II. Universidade Vila Velha. III. Título. CDD 363.2 Aos meus pais, Paulo e Neusa, cujos esforços na minha criação consigo agora compreender melhor. Sem eles, certamente estas linhas não existiriam. Dvania, paciente e compreensiva esposa, permanente companheira, inspiradora e meu eterno amor. Daniel, filho amado, alegria constante, cujo sorriso nunca me sai da mente. AGRADECIMENTOS Talvez seja esta uma das partes mais difíceis de um trabalho acadêmico. Isso porque embora seja indispensável citar nomes e assim fazer justiça a contribuições diversas realizadas durante a pesquisa, por outro lado, as injustiças são inevitáveis, já que embora tenha um autor, esta obra é na verdade fruto das experiências e aprendizados desde a mais tenra idade. Sabendo disso, sou grato a Profª Drª Maria da Penha Smarzaro Siqueira, minha orientadora, que teve a paciência de ler e corrigir folha a folha deste trabalho, contribuindo ainda com preciosas sugestões. Ao Coronel e Professor Júlio Cezar Costa, devo toda minha formação teórica na área da interação policial, sendo também grato por sua generosidade em sempre dividir comigo pesquisas, dados, e todas as informações de vanguarda nessa temática, que muito deve a seu pioneirismo e dedicação. Charles Souza da Silva, José Augusto Píccoli de Almeida e Nízio César Silva do Bem foram os companheiros de curso com os quais dividi não somente alguns dos trabalhos, mas, sobretudo, as angústias, ansiedades, reflexões e agora alegrias próprias da conclusão de um mestrado. Mais do que a dedicatória, nem todos os agradecimentos do mundo conseguiriam expressar o quanto fui e tenho sido ajudado e incentivado por meus pais, Paulo e Neusa, Dvania (esposa), Daniel (filho), e irmãos, Sandro, Ana Paula e Sagno. Aos irmãos em Cristo da Igreja Batista Liberdade, onde ao mesmo tempo ajudamos e somos ajudados a seguir os retos caminhos do Senhor, obrigado. Sobretudo, agradeço ao Deus Eterno, o mesmo que continua abrindo os mares, atravessando desertos, acalmando tempestades, alimentando multidões, e a cada dia também ressuscitando nos corações dos que Lhe buscam, que com sua maravilhosa graça, permitiu condições para que este trabalho fosse concluído. Com medidas de prudência fará a guerra; na multidão de conselheiros está a vitória. Bíblia Sagrada (Provérbios, 24:6). Ao que lhe respondeu Jesus: Se podes! Tudo é possível ao que crê. Bíblia Sagrada (Marcos 9:23). RESUMO Ao longo de sua história, o modelo policial desenvolvido no Brasil foi desenhado a partir de uma panorâmica autoritária, da polícia como uma espécie de anteparo em relação aos anseios e revoltas populares contra os diversos governos e clivagens ideológicas que ocuparam o poder. Com a redemocratização e o coincidente e paradoxal aumento da criminalidade desde o primeiro quartel da década de 1980, surge à oportunidade e a necessidade da busca de novas concepções, agora baseadas na filosofia comunitária de polícia, no Espírito Santo desenvolvida a partir de metodologia própria, sob a denominação de polícia interativa. Palavras-Chave: Polícia, cidadania, interação, violência, segurança. ABSTRACT Throughout its history, the police model developed in Brazil was drawn from an authoritative overview of the police as a kind of bulwark against the wishes and popular uprisings against various governments and ideological cleavages occupied the power. With the return to democracy and the coincident and paradoxical increase in crime since the first quarter of 1980, arises the opportunity and the need to search for new conceptions now based on the communitarian philosophy of policing, in the Espirito Santo state developed from its own methodology, under the name police interactively. Keywords: Police, citizenship, interaction, violence, security. SUMÁRIO 1 PRELIMINAR................................................................................................... 10 2 INTRODUÇÃO................................................................................................. 12 3 O ESTADO BRASILEIRO REPUBLICANO E A SEGURANÇA PÚBLICA.... 16 3.1 A FORMAÇÃO MILITARIZADA E A POLITIZAÇÃO DO SERVIÇO POLICIAL......................................................................................................... 16 3.2 A RELAÇÃO DA SOCIEDADE COM O ESTADO POLICIAL.......................... 39 4 ESPÍRITO SANTO: O CRESCIMENTO DA VIOLÊNCIA NO ES E A ATUAÇÃO DO ESTADO........................................................................................ 48 4.1 A CURVA ASCENDENTE DA VIOLÊNCIA NA REGIÃO METROPOLITANA DA GRANDE VITÓRIA..................................................................................... 48 4.2 A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA NO ESTADO E SEU CRESCIMENTO NA REGIÃO METROPOLITANA DE VITÓRIA...................................................... 59 5 O FUTURO DE UMA ILUSÃO: A COMUNITARIZAÇÃO POLICIAL NO ESPÍRITO SANTO........................................................................................... 82 5.1 VOTOS, ARMAS E PODER: DEMOCRACIA E SEGURANÇA PÚBLICA NO BRASIL E NO ESPÍRITO SANTO NO PÓS-1988........................................... 82 5.2 O POLICIAMENTO COMUNITÁRIO NO BRASIL............................................ 91 5.3 A POLÍCIA INTERATIVA NO ESPÍRITO SANTO............................................ 109 5.3.1 Guaçuí: Da Guerrilha à Cidadania................................................................... 109 5.3.2 Polícia Interativa no Bairro do Quadro: O Morro Que Teve Vez...................... 115 5.4 A REPROFISSIONALIZAÇÃO POLICIAL CAPIXABA..................................... 120 6 O FUTURO DE UMA ILUSÃO......................................................................... 129 7 CONCLUSÃO.................................................................................................. 138 8 REFERÊNCIAS................................................................................................ 144 10 1 PRELIMINAR Início da década de 1980, Méier, bairro da zona norte do Rio de Janeiro. Um trabalhador divide uma casa alugada com sua esposa e quatro filhos. Um de seus filhos, um garoto de sete anos, observa já no alvorecer de outro dia a constatação de que mais uma vez a família fora vítima de um crime. A maioria dos utensílios domésticos, e quase todos os pares de sapatos da família haviam sido furtados. Após um telefonema dois carros de polícia chegam. Policiais fardados se misturam a outros trajando calças jeans e coletes pretos. Um homem grisalho, chamado de ―Doutor‖, com óculos escuros e um enorme cordão de ouro, que suportava uma carteira com um emblema também dourado, permanece abraçado com uma metralhadora enquanto dá as ordens. A conclusão é rápida. Os culpados são originários de uma favela próxima. Pouco tempo depois de saírem os policiais retornam com vários homens presos. A movimentação chama a atenção de toda a vizinhança. O garoto consegue ver quando a porta da Veraneio (carro da polícia) se abre e uns quatro ou cinco jovens estão espremidos. Uma barreira de policiais à porta do carro toma o depoimento informal dos acusados. Algumas interjeições de sofrimento são ouvidas. O garoto está perto de seu pai quando ouve o ―Doutor‖ dizer: ―está tudo resolvido, foram eles‖. Magister dixit, ou seja, o mestre o disse. Depois, as sirenes ligadas indicam que o espetáculo terminou. O garoto e seus irmãos ainda estão descalços, não podem ir à escola. Março de 1996. Com medo da violência anos antes à família do garoto havia refeito o caminho de volta ao Espírito Santo. O garoto agora tem 19 anos e pela primeira vez veste a farda da Polícia Militar capixaba, iniciando os estudos para se tornar um Oficial. Ao longo do curso vai se tornando possível entender tudo o que havia acontecido naquela longínqua manhã em que ficou sem sapatos. A prisão para averiguação, o depoimento forçado na caçapa da viatura, o significado das interjeições, o sentimento de apoio e ao mesmo tempo de abandono que sua família sentiu depois que o som das sirenes se distanciou e sua casa tornou-se tão vulnerável quanto antes. 11 Deve ser mais fácil compreender a polícia sendo um policial, conclui o garoto. De repente um sinal, é preciso ir para a próxima instrução. A reflexão é interrompida, afinal magister dixit... 12 2 INTRODUÇÃO Desde sua formação primária, a partir das primeiras ações de criação do aparelho governamental pelos portugueses colonizadores, a polícia brasileira acabou fincando suas bases em matrizes e conceitos muito distanciados das diversas realidades sociais país afora. Década após década, mesmo diante de seguidas fases, denominações e revestimentos legais diversos, a característica nuclear de distanciamento da sociedade, bem como de seus reais anseios e necessidades, acabou constituindose em uma espécie de marca, ou tatuagem indelével do aparato policial brasileiro. Resistente às naturais mudanças políticas, sociais, jurídicas e de pensamento provocadas pela evolução dos tempos, essa característica central do ser, pensar e existir policial brasileiro é revisitada neste trabalho, que procura refazer o caminho e os descaminhos dessa trajetória. Começamos no primeiro capítulo já desaguando no Brasil República, embora tenhamos sentido a necessidade de também passar pelos aspectos considerados mais modernos na formação das instituições policiais no Brasil, desde a chegada da Família Real Portuguesa, em 1808. Partindo desse importante marco histórico, ou seja, do Brasil como sede provisória da coroa portuguesa, com uma intensa aceleração do processo de independência política e a criação de várias instituições de serviço público – inclusive os embriões das atuais Polícias Militares e Civis, damos início a uma reflexão sobre dois dos mais importantes traços distintivos de nosso modelo policial. Primeiro a militarização, que transformou as polícias militares em uma espécie de irmãs gêmeas do Exército brasileiro, e impôs ao policiamento urbano às práticas e concepções transportadas diretamente dos campos de batalha (mesmo que imaginários). Depois, a politização do serviço policial, com o uso da máquina e a interpretação muito peculiar do sistema legal para o atendimento dos interesses dos condôminos do poder de cada época. 13 Na sequência, a relação daquilo que chamamos de ―Estado Policial‖ com a sociedade, obviamente quase sempre precarizada em razão da pequena disposição das corporações policiais Brasil afora, historicamente muito mais ligadas às coisas e aos interesses do Estado e seus dirigentes. Neste ponto buscamos também entender como funciona o processo de contaminação da sociedade pelos mesmos preceitos e visões deturpadas oriundas dos regimes autoritários, o que acabou disseminando uma perigosa dificuldade em entender a real complexidade dos problemas que envolvem o crime, o criminoso e a violência de maneira multifacetada. A disseminação das opiniões que insistem em tratar a segurança pública com uma perigosa dose de simplificação, mesmo passados mais de dez anos do novo milênio, acabou por permitir a sobrevivência das soluções apoiadas no discurso ―nós sociedade, contra eles bandidos‖, já bastante gastas pelo tempo e pelos resultados comprovadamente ineficientes. Visto o panorama geral, o capítulo quatro procura transportar a realidade das concepções tradicionais na segurança pública em uma realidade de resultados nefastos no Espírito Santo, especialmente na Região Metropolitana da Grande Vitória. Não somente buscando explicações na formatação do modelo policial, nosso estudo segue também na direção de uma análise das condições sócio-espaciais na Região, elucidando como o êxodo rural, o caótico processo de urbanização, a ocupação das cidades sem que equipamentos sociais (escolas, hospitais, saneamento, habitação, etc...) suficientes existissem para todos, entre outros fatores, transformaram-se em importantes condicionantes da criminalidade. Sobre a atuação da polícia capixaba, buscamos compreender e traduzir ao leitor como funcionam e quais os resultados das operações policiais que apenas replicam o fazer policial tradicional. Nesse particular, examinamos as chamadas ―blitzens”, bem como as diversas iniciativas policiais centradas nas abordagens indiscriminadas às pessoas em bairros periféricos. 14 Os desvãos da política capixaba durante os anos 80 e 90 são relembrados como forma de elucidar o uso das estruturas policiais para a proteção de esquemas criminosos, apenas ratificando a necessidade de uma urgente mudança no fazer policial. O quinto capítulo trata do processo de comunitarização policial no Espírito Santo. Fruto das conquistas democráticas da década de 1980 no Brasil, sobretudo com a Carta Constitucional de 1988, a polícia interativa surge com metodologia própria, tendo como base conceitual toda a doutrina internacionalmente aceita no campo da segurança pública em regimes democráticos. Nas páginas seguintes, antes de mergulhar na realidade e nos contextos do Espírito Santo, buscamos compreender melhor o conceito de polícia comunitária, a partir dos estudos e das experiências prévias ocorridas em países da Europa e nos Estados Unidos. A seguir, o relato capixaba. Guaçuí. Cidade situada ao sul do Espírito Santo, onde a pioneira experiência do policiamento interativo atingiu repercussão nacional, e depois o Morro do Quadro, localidade da periferia da Região Metropolitana da Grande Vitória, são as experiências relatadas neste trabalho, ratificando assim a polícia interativa como uma exitosa e confirmada experiência de gestão democrática na segurança pública. Na esteira do sucesso da aplicação do método interativo, a reprofissionalização, termo que cunhamos neste trabalho para elucidar as motivações políticas, culturais e sociais que levaram a polícia capixaba, durante a primeira década do novo milênio, a retroceder em seu processo de transformação rumo à comunitarização. Por fim, o trecho que dá nome ao trabalho, o futuro de uma ilusão. Antes, a propósito, um pequeno esclarecimento a cerca do título que optamos em dar a estes escritos. 15 O título é uma clara referência, e ao mesmo tempo homenagem, a um artigo de mesmo nome1, cujo autor trata das inovações mundo afora na segurança pública, citando a polícia comunitária como a proposta mais consistente para a diminuição da violência e o aumento da confiabilidade social nos serviços policiais. Entretanto, ao mesmo tempo otimista, o artigo se finda com certa dose de melancolia, indagando ao leitor se todos os avanços e conquistas na vertente da comunitarização policial não seriam um dia obliterados pelos mesmos ventos autoritários que insistem em soprar desde sempre no Brasil. Por isso a pergunta, e eis então a tentativa de esclarecer a real identidade da polícia interativa: apenas uma ilusão passageira, ou uma realidade baseada em fatos, concretudes e resultados. 1 CERQUEIRA; CARLOS MAGNO NAZARETH. O futuro de uma Ilusão: O sonho de uma nova polícia. Coleção Polícia Amanhã, nº 06. Ed. Freitas Bastos. Rio de Janeiro. 2001. 16 3 O ESTADO BRASILEIRO REPUBLICANO E A SEGURANÇA PÚBLICA 3.1 A FORMAÇÃO MILITARIZADA E A POLITIZAÇÃO DO SERVIÇO POLICIAL A história nos informa que foi necessário um longo período, perpassando pela sociedade colonial até a proclamação da República no final do século XIX, para que fossem absorvidas no Brasil as idéias defendidas pelos movimentos libertários estabelecidos com a Revolução Francesa. O ideal iluminista e suas vertentes filosóficas surgidas na Europa no século XVII, expandiu-se não só pela Europa, mas também teve repercussões na América, encontrando maior eco nos Estados Unidos, onde as idéias de liberdade e de direito individual criaram as bases da independência, num contexto onde o embate entre o tradicional, o secular e o moderno, fomentados pela Revolução Industrial, influenciou nos princípios do novo mundo capitalista. O Iluminismo, entre outras correntes filosóficas surgidas anos antes na Europa, que já havia predominado inclusive nos Estados Unidos, marcou também a vitória desse sério embate entre o tradicional e secular, e o moderno, prevalecendo finalmente no Brasil. Vigia o lema kantiano “sapere aude” - ouse conhecer, que exprimia muito bem a tentativa de ruptura com o passado. A superação de dogmas teológicos pelos princípios da razão e da ciência apontou novos caminhos para a construção de paradigmas éticos modernos que estabeleceram a predominância da razão científica. Os princípios iluministas romperam definitivamente os limites dogmáticos instransponíveis prevalecentes na sociedade medieval. É dessa ruptura que nasce o ideário iluminista da Revolução Industrial, que na expressão “sapere aude” celebrava ousar saber, conhecer, que exprimia muito bem a ruptura com o passado. “Sapere aude” tem coragem de fazer uso de seu próprio conhecimento, tal o lema do esclarecimento (Kant, 2011, p. 63-64). 17 Historicamente, no Brasil a influência iluminista culminou na Inconfidência Mineira (1789), num exercício político-social que chamava por direitos de liberdade e igualdade, ideário que se estende ao processo de independência, seguindo-se ao movimento republicano. Entretanto, com a proclamação da República, em 1889, sendo realizada da mesma forma como o anterior processo de independência, ou seja, a partir das concepções da elite da época, visando à manutenção de seu status quo, a estrutura do aparato policial brasileiro permaneceu praticamente inalterada, sendo decorrente sua postura isolacionista em relação à sociedade. Nessa prática política brasileira, a síntese kantiana do esclarecimento e da ruptura com o passado não se incorpora nos movimentos modernos, ou seja, renovam mas não estabelecem rupturas transformadoras. Mesmo a Constituição de 18912, que inaugurou a série de textos constitucionais do período republicano tendo inovado em seu artigo 80, com a substituição da expressão Segurança do Estado‖, por ―Segurança da República‖, manteve-se o mesmo apelo de uso da força repressora em relação aos descontentes, dada a possibilidade de suspensão das garantias constitucionais por tempo indeterminado, acaso fosse a República ameaçada. Na prática, Estado e República confundiam-se da mesma forma como Estado e Império se fundiram durante todo o regime monárquico. Tal relativismo nas garantias e nos chamados direitos individuais obviamente não estava em consonância com os ideais teóricos que nortearam a proclamação, nascida juntamente com as promessas de abolição da escravatura – o que de fato ocorreu, porém sem que houvesse a inclusão no negro na sociedade, com a consequente promoção da igualdade social. 2 BRASIL. Constituição (1891). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro. Senado. 1891. 18 Mudanças políticas à parte, também na prática a força policial permanecia sob o comando do poder, agora não mais imperial, mas ainda sob as regras da elite, visando o represamento dos descontentamentos. No entanto, para a plena compreensão do significado e dos resultados sociais decorrentes da formatação belicista da polícia brasileira, importante também conhecer, mesmo de forma sumária, em qual contexto os republicanos encontraram a segurança pública após a derrocada da monarquia, em 1889. Cumprir tal tarefa importa necessariamente em saber qual a raiz do modelo policial brasileiro, que demonstra já ter nascido com um vetor muito mais dirigido para as atividades de proteção e segurança do Estado, como muito bem esclarece Bretas (1997, p. 80): A polícia nas linhas gerais que se associam com a idéia moderna se origina com das instituições ligadas ao estado francês do século XVII, que se espalham pelas monarquias absolutistas similares, como Portugal e daí para o Brasil ou mais tarde a partir da expansão napoleônica, pelo próprio emprego de forças policiais pelo invasor francês, em seguida conservadas pelos governos da restauração. Como Instituição à parte em território brasileiro, a estrutura policial que funcionaria ns séculos posteriores, é inaugurada antes mesmo da independência do Brasil em relação a Portugal, datando de 1808, com a chegada da Família Real Portuguesa. Inspirada no modelo francês, que já vigia antes em terras lusitanas desde 1760, a réplica do modelo militarista importado por Dom João VI, príncipe regente português, se apresentava como se um exército de combate fosse, cujos integrantes eram fortemente assemelhados aos ―gendarmes‖ da França. (Holloway, 1997). Seguindo a mesma cartilha de seu ascendente, o modelo policial brasileiro acabou concebido visando prioritariamente reafirmar o emprego da força e da violência como um meio de conquista e depois de manutenção do poder, quer seja pelos colonizadores portugueses, ou mesmo após a declaração da independência, em 1822. 19 Esclarecedora foi à visão de Minayo, Souza e Assis, apud Donicci (2003, p. 56), o qual assinalou que a organização policial no período imperial foi deplorável, e ainda, ―dominada por um poder judiciário politiqueiro e corrupto e pelos políticos‖. Tanto é, de modo contrário ao que se poderia imaginar, a sensação de insegurança e de aumento da criminalidade não é um acontecimento nascido nas últimas décadas do último milênio, muito menos no período pós-republicano. A narrativa de Gomes (2007, p.228-229) é elucidativa quanto à realidade da violência no Rio de Janeiro quando da chegada da Família Real portuguesa em 1808: A criminalidade atingiu índices altíssimos. Roubos e assassinatos aconteciam a todo momento. No porto, navios eram alvos de pirataria. Gangues de arruaceiros percorriam as ruas atacando as pessoas a golpes de faca e estilete. Oficialmente proibidos, a prostituição e o jogo eram praticados a luz do dia. Aos problemas relativos à desordem pública não se atribuíam como causas o crescimento não planejado, ou mesmo as profundas mudanças decorrentes da mudança da sede do governo português a então capital, muito menos os desmandos e indignidades a que eram submetidos os escravos, que, aos olhos do Estado, eram vistos como a maior ameaça à segurança da sociedade. Acerca da solução para tais dilemas criminais, o mesmo autor resume a atuação do intendente geral de polícia do Rio de Janeiro, entre 1808 e 1821, o advogado Paulo Fernandes Viana (2007, p. 231): Malvestidos, os negros costumavam se reunir nas ruas e praças aos domingos e feriados para jogar, lutar capoeira e batucar. Quando cometiam algum delito, seus donos tinham a prerrogativa de mandar açoita-los em praça pública. Relatório do intendente em 1821 revela que um terço de todas as prisões de escravos no período estavam relacionadas a ―crimes contra a ordem pública‖, registrados nos boletins policiais sob o nome genérico de ―desordens‖. Nessa categoria incluíam-se brigas, bebedeiras, jogos proibidos e agressões físicas. Pequenos furtos e porte de armas, como navalhas, eram reprimidos de forma severa. Um escravo recebia de duzentos a trezentos açoites por ser encontrado com navalhas ou lutando capoeira. 20 Não somente a questão do escravismo era resumida ao mero tratamento policial, cujas ferramentas de trabalho não iam muito além da aplicação dos castigos e outras violências cujos comandos eram emanados pela elite dominante. Também nos assuntos relativos à vida política, já em 1850, o estamento policial demonstrava como iria ser utilizado ao longo de todo o restante do século XIX, e também do século XX, como uma espécie de ferrete impeditivo contra eventuais descontentamentos. Sobre tal ponto muito bem delineia Sodré (2008, p. 37): ―A violência parece ser uma das condições indeclináveis do nosso sistema eleitoral. Durante a crise, e sobretudo no dia da eleição, o espanto e o terror reinam nas cidades, vilas e povoações; os soldados e carcereiros percorrem armados as ruas e praças; há gritos, clamores, tumultos de todo gênero; dir-se-iam os preparativos de uma batalha, não os de um ato pacífico, e a cena do feito termina às vezes com espancamentos, tiros e descargas‖. Dessa forma muito se explica acerca da motivação pela qual a polícia brasileira nasceu vocacionada para as atividades de proteção do Estado e enfrentamento de seus desafetos, quer no campo social ou político. Primeiro defendendo os interesses portugueses na então Colônia, e depois para a manutenção do status quo da elite social republicana, cujos ideais libertários acabaram sendo traduzidos na forma de um Estado muito mais policial, no sentido da imposição violenta, do que propriamente representativo. Outro exemplo histórico dessa constante tensão entre povo e polícia, mesmo no período imperial, foi o Espírito Santo, cujos ensinamentos de Demuner (1985, p. 36) revelam que ―os ataques constantes e a destruição da defesa do Rio Doce deram origem a total militarização da Capitania. Uma carta régia de 1808 determinava medidas severas contra os indígenas‖. Por isso, não significando o alvorecer da República uma ruptura com as práticas policiais do Império, mas sim um declarado continuísmo, a polícia brasileira, mesmo após 1889, permaneceu voltada para as práticas medievais herdadas do colonialismo português. Mesmo findo o escravismo e a monarquia, manteve-se em formação uma espécie de estigma que ainda hoje perdura nas relações entre o aparato policial brasileiro e a sociedade. 21 Há que se considerar, nesse particular, que o contexto histórico sociocultural do Brasil não favoreceu a construção de instituições públicas que atuassem de forma horizontalizada diante do povo. Como todos os países sul-americanos o Brasil foi colonizado, passando por um longo período de espoliação, tendo como forte herança o autoritarismo e a hierarquização social, fomentada inclusive pelo prolongado escravismo. Obviamente que a polícia, como força pública e armada desse tipo de Estado não fugiria dessa regra, constituindo-se como peça fundamental de sua perpetuação. Destarte, segurança pública, na forma de defesa do cidadão, parece ser preocupação muito recente na historiografia brasileira, sendo pré-existente e ainda sobrevivente uma relação muito mais coronelista do que propriamente de serviço ao povo. Assim, o agir policial acabou sendo pautado pela relação horizontal entre as elites e o povo, aplicando a lei não em igualdade de condições, mas traduzindo exatamente o pensamento dominante, que infelizmente reflete a plena realidade da gênese e do desenvolvimento policial no Brasil: ―para os amigos pão, para os inimigos pau, ou, para os amigos, tudo, para os inimigos, nada‖. (Carvalho, 2002, p. 57). Acompanhando a trajetória claudicante da formação do Estado Brasileiro, sempre voltada para a acomodação do poder, ao invés de uma efetiva mudança na estrutura social, o aparato policial passou a ser utilizado como meio de força para a prevalência dos interesses do poder. É nesse ponto que se torna necessário o treinamento dentro das métricas bélicas, voltado para uma espécie de guerra interna de repressão aos conflitos e as discordâncias políticas. Como antagonista dessa cidadania desnaturada, onde o povo se manifesta apenas em reação aos direcionamentos estatais divorciados da vontade e dos interesses da maioria, a polícia brasileira passou de imperialista para republicana sem que suas matrizes conceituais fossem modificadas, acompanhando assim o imobilismo do Estado Republicano, tão distante do povo quando a realeza o foi. Sobre os históricos dilemas do sistema policial brasileiro, e o continuado estado de dissenso social não interrompido pela república, fator que ao longo do tempo vai 22 ganhando importância como uma das fontes geradoras da violência, Adorno e Cardia (1999, p. 67/68) oferecem importante contribuição ao debate: Ao longo de mais de cem anos de vida republicana, a violência em suas múltiplas formas de manifestação permaneceu enraizada como modo costumeiro e positivamente valorizado – isto é, moralmente imperativo, de soluções de conflitos decorrentes das diferenças étnicas, de gênero, de classe, de propriedade e de riqueza, de poder, de privilégio, de prestígio. Permaneceu atravessando todo o tecido social, penetrando em seus espaços mais recônditos e se instalando resolutamente nas instituições sociais e políticas destinadas a ofertar segurança e proteção aos cidadãos. Trata-se de formas de violência que imbricam e conectam atores e instituições, base sob a qual se constitui uma densa rede de solidariedade entre espaços institucionais tão díspares como a família, trabalho, escola, prisões, tudo convergindo para a afirmação de uma sorte de subjetividade autoritária na sociedade brasileira. Nesse horizonte, visando entender melhor as origens e consequências da visão míope do Estado Brasileiro na questão da segurança pública, necessário será conhecer melhor três premissas: a formação policial, a utilização ditatorial e política da polícia e o relacionamento desse Estado policial junto à sociedade. Delineado o quadro geral, feita a proclamação, cujo gesto teórico seria de soterramento do poder moderador do Imperador, e aproximação do povo dos negócios do governo, não se promoveu significativa mudança na estrutura policial. Tal arcabouço permaneceu focado naquilo que no século XIX já se denominava de ―classes perigosas3‖, compostas por prostitutas, malandros, desertores da Marinha e Exército, bem como na conhecida figura do ―capoeira‖, típico da então capital do país, estigmatizado como inimigo público. Sendo a ação das Forças Armadas ainda muito incipiente, e ainda assim voltada para a para a conflituosa relação entre os países da América do Sul, coube à força policial a tarefa de coordenar e impor os interesses governamentais. Para tanto, a melhor alternativa durante o transpor do século XX, foi a de fazer dos corpos policiais à imagem e a semelhança do Exército, permitindo assim que o treinamento 3 Segundo Michel Misse, (Malandros, Marginais e Vagabundos & a acumulação social da violência no Rio de Janeiro, 1999. p. 184) no Brasil os primeiros a ser registrados e estigmatizados como membros das chamadas classes perigosas foram os capoeiras e suas maltas (grupos de capoeiras), principalmente após o advento da República. 23 militar inculcasse tanto a mentalidade da obediência estrita, quanto à visão do inimigo, retratado nos eventuais discordantes dentro da sociedade. Em sua síntese, a formação e o treinamento do policial brasileiro, notadamente dos integrantes do que hoje chamamos de Polícias Militares4, foi originariamente constituído como um corpo militarizado, com disciplina castrense, que deveria agir a partir de ordens prévias e seguindo uma rotinização mecânica. (Foucalt, 2008). Tal formatação se encaixou de forma perfeita ao esquema político montado após a proclamação. Com o poder federal sendo controlado e alternado por São Paulo e Minas Gerais5, suas forças estaduais passaram a ser formadas tanto para o controle das insatisfações internas, quanto para o enfrentamento com outros oponentes. Inclui-se nessa lista o próprio Exército, como mais tarde ocorreria com a Revolução Constitucionalista de 1932, opção de luta armada decorrente, entre outros aspectos, da queda do prestígio político e econômico que São Paulo até então detinha, muito dependente da lavoura cafeeira em crise, sendo consequente e progressivo o seu alijamento do núcleo do poder federal da época. (Fausto, p. 249). Já mesmo antes do embate de 1932, as academias de treinamento e formação policial desses Estados incutiam em seus alunos a noção do inimigo, do enfrentamento e da guerra contra o crime. Isso anunciava a distorcida visão do Estado brasileiro, a do crime como um evento a mais em uma batalha que podia ser definitivamente vencida por uma força disciplinada, treinada a partir de conceitos militares, capaz de arrefecer os ânimos de iniciativa popular com pólvora e cassetetes, impedindo assim o aprofundamento do debate. Um dos marcos desse processo de treinamento militarizado no pós–república ocorreu em 1906, quando o governo de São Paulo contratou junto ao Governo da França um grupo de militares do Exército, a chamada Missão Francesa, que se 4 Por tradição local apenas no Rio Grande do Sul a força militar estadual se denomina Brigada Militar. 5 Segundo Viscardi (2005, p.44, 45), a expressão República do café com leite refere-se ao predomínio de políticos paulistas (ligados aos produtores de café) e mineiros (ligados aos produtores de leite) no governo central. Fazendo coligações (alianças) com os proprietários de terras nos demais estados do Brasil, os políticos de Minas Gerais e de São Paulo dominaram boa parte da vida política do país, alternando-se no poder federal. 24 encarregou de treinar a então Força Pública de São Paulo, mais tarde denominada Polícia Militar de São Paulo, a maior e mais influente Corporação do país. Ministrando instruções de cunho essencialmente militar, a Missão Francesa espelhou o corpo policial como sendo um verdadeiro Exército, mesmo sendo suas respectivas atividades completamente díspares. O primeiro devendo cuidar das questões relativas à ordem pública, o segundo da defesa da chamada soberania, muito embora com organização e treinamento similar, confuso quadro que ainda se perpetuaria por todo o século XX e início do novo milênio. Sendo a cultura um complexo de conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou demais capacidade ou hábitos adquiridos por alguém enquanto membro de uma sociedade, (Tylor, 1871), essa rigidez extremada, o treinamento físico exorbitante e as táticas para o combate de guerra, entre outros ensinamentos, acabaram por fazer com que os corpos policiais no Brasil criassem uma espécie de cultura e saber próprios. Fisicamente próximos, mas conceitualmente distantes da sociedade. Para se compreender melhor a questão e suas conseqüências, importantes as observações de Pedroso (2005 p. 85-86): Sob essa ótica socializadora, o processo de transformação do aparato policial tornou-se constitutivo de um ―saber próprio e institucionalizado‖ compondo um universo ideológico de produção de conhecimento aliado às práticas de novas técnicas. Mas, mais do que isso, o policial (ou soldado) deveria ser, acima de tudo, um militar e agir como tal. Assim, a hegemonia da corporação policial militar acabou por moldar um ideário de como deve ser o policial: militar, por excelência. A missão francesa deixou São Paulo apenas em 1913, deixando a então Força Pública de São Paulo como ―um pequeno exército, talvez a melhor corporação policial-militar da América‖ nos dizeres de Amaral (1966, p. 137). A partir desse protótipo, com a disseminação desses conceitos por meio de manuais de instrução, ou de livros cujo conteúdo remetia à história militar, delineando as táticas e arte da guerra de Napoleão Bonaparte (Azevedo, p. 20), as demais corporações estaduais acabaram por padronizar seu ensino, e, consequentemente, suas ações combativas. 25 Visto desse plano de observação, a formação e o treinamento policial no Brasil, mesmo antes da República, e notadamente após sua implementação, passou a privilegiar aspectos cuja essência se desvirtuavam das reais necessidades para a atuação junto à sociedade. Rigidez extremada, treinamento físico exorbitante, táticas para o combate de guerra, entre outros ensinamentos, acabaram por fazer com que os corpos policiais no Brasil criassem uma espécie de cultura própria, fisicamente próximos, mas conceitualmente distantes da sociedade. Posto isso, importa ressaltar que a partir desse contexto histórico, que retrata a profissionalização de todo o aparelho policial a partir do conceito bélico militar, todo o desenrolar posterior acabou por ratificar esse deletério posicionamento. Treinadas como imagem e semelhança umas as outras, e, sobretudo, do Exército, as forças policiais dos Estados acabaram ao longo dos anos sendo programadas muito mais para atuar de forma eficaz junto aos movimentos operários, promovendo o desenvolvimento a fórceps do trabalho assalariado sem justas condições. Também para prender sediciosos ou desordeiros de pouco relevo social, e assim impor a ordem então vigente junto aos guetos e espaços sociais insalubres ocupados pelo operariado. Os chamados cânticos militares, entoados durante as instruções, notadamente as que envolvem atividades físicas, muito mais do que uma simples forma de obtenção da motivação psicológica diante das naturais vicissitudes e do rigor dos treinamentos, denotam o novo pensamento que paulatinamente vai sendo incorporado, e desde então persistente na cultura particular das Corporações:6: O interrogatório é muito fácil de fazer / pega o favelado e dá porrada até doer/ O interrogatório é muito fácil de acabar / pega o favelado e dá porrada até matar. Bandido favelado / não varre com vassoura / se varre com granada/ com fuzil, metralhadora. 6 Carta publicada no Jornal O Globo, dando conta de músicas cantadas durante treinamento de policiais do Batalhão de Operações Especiais – BOPE, da Polícia Militar do Rio de Janeiro. O Globo, ―Gritos de guerra do BOPE assustam Parque Guinle‖, 24 de setembro de 2003. 26 É a égide, ainda muito resistente, da chamada Doutrina de Segurança Nacional 7, que deu exagerada conotação ideológica ao treinamento policial, fomentada nos Estados Unidos visando impedir que as idéias de caráter comunista fossem disseminadas nos países de sua abrangência e controle econômico e político, a exemplo do Brasil. Sendo assim, das influências dos dispositivos militarizantes origina-se uma espécie de sociedade militarizada, que acaba contaminando a ordem política com preceitos de caráter bélico, ou militares. Isso possibilita o que Sodré (2008, p. 28) denomina de ―endocolonização‖, ou seja, um controle agora realizado não de um país para outro, mas sim das forças armadas contra seu próprio povo, colocando na burocracia dos quartéis as grandes decisões nacionais, sobretudo na segurança pública, agora confundida com segurança nacional. Seguindo nessa mesma linha de raciocínio, para Cerqueira (2001), intelectual e policial carioca precursor do policiamento comunitário no Brasil, as estratégias de atuação das organizações policiais, baseadas no processo de formação ora descrito, ainda se enquadram no chamado modelo clássico, por meio do qual se exige a padronização e a rotinização dos procedimentos, tornando o profissional inflexível diante de uma realidade cada vez mais volúvel. Nesse modelo, adota-se a teoria da máquina (Katz e Khan, 1996), onde os homens são também vistos como máquinas, sendo robotizados, ou programados, para o desenvolvimento de traços profissionais como a insensibilidade, a ausência de medo, o exarcebamento da coragem, a especialização dos processos e tarefas, a centralização no processo decisório, bem como a não duplicação de práticas. De forma evidente, ao assumir essa personalidade robótica, não somente curricular dentro das Academias Militares, mas, sobretudo, fruto de uma cultura arraigada, o policial permanece insensível e duro diante de uma realidade que lhe imporá não somente o conteúdo técnico de suas práticas, mas, sobretudo, a humanização. 7 Segundo Gaspari tal doutrina foi aperfeiçoada no Brasil pelo General Golbery do Couto e Silva, por intermédio de seus estudos na Escola Superior de Guerra – ESG. GASPARI, Élio. A ditadura derrotada. 2003, p. 128. 27 Todos esses desencontros e equívocos desaguam no fato de que os ensinamentos e convicções adquiridas nas salas de aulas policiais raramente vão ao encontro da realidade e das necessidades da comunidade atendida, agravando ainda mais a eterna lide entre o estado-polícia e a sociedade. Com muita acuidade enxergou tal contexto Poncioni8: No que diz respeito, especificamente, à formação profissional do policial, pode-se apontar uma primeira importante conseqüência resultante do modelo profissional em foco – o descompasso entre o conhecimento adquirido para o desempenho do trabalho policial nos bancos das academias e a realidade na qual se realiza o trabalho cotidiano da polícia. De um lado, dentro da organização, principalmente no período de treinamento, transmite-se a idéia do trabalho policial baseado essencialmente no controle do crime e no cumprimento da lei, com ênfase na importância de sua adesão às regras e procedimentos da organização para o controle do crime nos limites da lei. Além disso, neste contexto, ele experimenta uma enorme restrição com relação à tomada de decisão nas atividades concernentes ao dia-a-dia da organização. De outro, fora da organização, ele se defronta com uma grande diversidade de situações com relação às quais tem de tomar constantemente decisões que não estão necessariamente de acordo com as diretrizes, procedimentos, ordens gerais, ou mesmo com os processos formais da legalidade, mas têm por objetivo fundamentalmente a aplicação eficiente de certas leis e regras para a manutenção da ordem, muito mais do que o respeito integral à legalidade ou às regras estabelecidas pela organização. Mesmo neste início do século XXI, embora sejam notáveis os avanços rumo à democratização do serviço policial, também a partir da mudança conceitual da formação, a exemplo da criação da chamada Matriz Curricular Nacional9, que visa estabelecer parâmetros mais modernos no ensino policial, infelizmente ainda é possível notar a forte influência do chamado ―currículo oculto‖ na formação policial. Tal expressão, muito utilizada pela pedagogia, consegue denotar de modo exato como a cultura irreflexiva, arraigada em uma série de paradigmas, ainda é capaz de burlar a modernidade e contribuir para a perpetuação do antigo modus operandi. 8 O modelo policial profissional e a formação profissional do futuro policial nas academias de polícia do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em: htpp//www.scielo.com.br. Acesso em 18/02/2011. 9 Ministério da Justiça (Brasil). Secretaria Nacional de Segurança Pública. – SENASP. Matriz Curricular Nacional. Brasília. 2003. 28 Em outras palavras, se de um lado o posicionamento oficial das instituições passou a defender o debate acerca dos direitos humanos, a formação humanizada, entre outros aspectos mais modernos, de outra banda torna-se fácil observar a existência de uma espécie de subcultura resistente e ainda muito influente, que repele a aproximação com a sociedade e incentiva o traço mais arcaico da atividade. Tais lições, que se não são aprendidas mais em salas de aulas, se mostram de transmissão eficiente quando no exercício da atividade propriamente dita, quase sempre precedidas da célebre introdução: “aqui é a prática, esqueça a teoria...”. Observando outra importante vertente desse processo, se de um lado as polícias militares foram ideologicamente aparelhadas como forças militares nas cidades com um ethos belicista, as polícias civis ingressaram pela vereda do legalismo, tornandose instituições onde o saber jurídico se sobressai em relação ao saber policial. Tal constatação se torna importante na medida em que o direito, notadamente o direito penal, não se apresenta como ferramenta capaz, por si só, de atuar ao menos com razoável satisfação junto aos múltiplos dilemas que envolvem a violência. A chamada advocatização das polícias não militares no Brasil, a qual impõe uma formação quase estritamente jurídica, torna a atuação dessas Instituições ainda muito voltadas para o positivismo penal, tornando o medieval e inquisitivo inquérito policial quase como a única providência diante de fenômeno de enorme complexidade. Buscando no acervo das múltiplas adversidades de tal modelo, quando um cidadão procura uma Delegacia de Polícia em qualquer recôndito do Brasil, possivelmente irá depara-se com uma série de formalidades legais, que por seus caracteres arcaicos e simplistas diante da situação, possivelmente levarão a não elucidação do crime, e a conseqüente multiplicação da criminalidade por meio da impunidade. Assim, lamentavelmente a formação policial civil, como o já ressaltado, voltada para o formalismo do saber penal, acaba privilegiar uma espécie de interminável ritual de burocratização de procedimentos (Kant, 1995), muito apegada a um dogmatismo de um direito conservador capitaneado pelo arcaico inquérito policial, tornando as 29 práticas ilícitas muito mais céleres e até mais inteligentes do que o sistema policialjudicial. Tal padrão geral de formação da polícia brasileira, desconectado da realidade social, bem como da natural evolução dos tempos, acaba gerando uma espécie de crise de identidade, termo apropriadamente utilizado por Da Silva (2003, p. 394), para descrever o atual quadro brasileiro: As polícias Militares ficaram sem identidade. Numa direção, os currículos das escolas, os comandantes gerais (oficiais superiores do Exército, à exceção de Minas Gerais e Rio Grande do Sul), e os Oficiais PM da chamada ―comunidade de informações‖, a enfatizarem a preocupação com o inimigo interno; em outra direção, as demandas por segurança da população, e a realidade das ruas vivida pelos policiais militares, enfrentando o criminoso comum, cada vez mais audacioso, sofisticado e organizado, porém trabalhando apenas com a idéia de ocupar os espaços públicos (...) as Polícias Civis impedidas por lei de executar o policiamento ostensivo em uniforme, deslocaram grande parte dos seus efetivos exatamente para fazer isto, ainda que sob rótulos diversos. Contrariamente ao que se poderia esperar, as Polícias Civis desinteressara-se das funções judiciárias e de investigação criminal, e passaram a ter maior visibilidade ainda nas ruas do que antes. Cria-se então o que podemos chamar do mundo policial e do mundo social. No primeiro, persistem os jargões, práticas e atividades muito próprias, quer seja no meio policial militar e civil, aspectos que vão sendo paulatinamente esculpidos quando do ingresso nas Instituições10. No segundo, a sociedade em sua forma geral, apresentada como a maioria dos cidadãos vivem. Na intercessão, ou seja, no encontro desses conjuntos díspares, reside o permanente confronto gerado pela dissonância entre as atuais expectativas e necessidades da cidadania e a oferta de serviços efetivamente prestados, desde sua origem prejudicados pela visão interna corporis ainda muito preenchida de anacronismos. 10 O artigo 9º da Lei nº 3.196/78, prevê que uma das formas de ingresso na Polícia Militar do Espírito Santo se dá por meio da chamada incorporação, termo jurídico que se equivale à posse ou nomeação dos servidores civis. De maneira geral, a chamada incorporação parece não se limitar apenas ao ato jurídico, alargando-se ao comportamento e a maneira como o indivíduo agora ―incorporado‖ se relaciona com a sociedade, do qual se origina. BRASIL. Lei nº 3.196, de 09 de Janeiro de 1978. Regula a situação, as obrigações, os deveres, os direitos e as prerrogativas dos policiais militares. [Diário Oficial do Espírito Santo]. Vitória, ES, 14 jan. 1978. 30 Não bastasse isso, de modo geral, as polícias militar e civil, as quais possuem a maior carga de responsabilidades dentro do sistema policial do Brasil11, se comportam como se ainda estivessem em uma espécie de torre de babel 12, onde cada uma possui seu idioma técnico e de atuação independente, havendo pouca interconexão nas relações de trabalho, sendo cada uma um arquipélago independente, tendo os Batalhões e as Delegacias como pequenas lhas isoladas. No segundo trecho desta análise, a questão da utilização do aparato policial durante a claudicante trajetória antidemocrática no Brasil. Tendo a proclamação da República mantido o mesmo esquema de predomínio dos interesses da elite local, não se realizou nenhuma mudança mais profunda na temática da segurança pública. Na análise de Costa, (1999), 1889 não representou nenhuma ruptura do processo histórico brasileiro, permanecendo as mesmas condições dos trabalhadores do campo, o caráter colonial da economia, bem como a dependência do mercado e dos capitais externos. Com essa debilidade nuclear da proclamação, agora com a realidade mascarada na forma de uma democracia existente para poucos, e sendo mantida a coluna vertebral política e social do regime anterior, não seria mesmo de se esperar qualquer tipo de modificação no campo policial. Contrário disso, com o aumento das tensões em razão da disputa de poder pelas oligarquias locais, as forças de segurança seriam ainda mais utilizadas como verdadeiros aríetes na constante medição de forças entre os interessados pelo poder. 11De acordo com o artigo 144 da Constituição Federal de 1988, parágrafos 4º e 5º, respectivamente, ―às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares [...] às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública.‖ Ou seja, à polícia federal e a polícia rodoviária federal, bem como ao Corpo de Bombeiros Militar, incumbem-se das tarefas residuais, sendo a maioria das apurações de crimes de responsabilidade das polícias civis, bem como o policiamento ostensivo, de modo privativo, de responsabilidade das policiais militares. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília – DF. Senado. 1988. 12 A expressão e a analogia, que se refere ao uso de idiomas diferentes, foi extraída da Bíblia Sagrada, livro de Gênesis, capítulo 11. Segundo a escrita bíblica Deus puniu os povos, que até então falavam apenas um idioma, mas tentaram construir uma torre que os colocasse à altura dos céus, atrapalhando a língua falada, criando assim vários idiomas. BÍBLIA, NTLH. Bíblia Sagrada. Sociedade Bíblica do Brasil. São Paulo, 2005. Gen.11. 31 Nesse horizonte, pela lógica da época, dado o centralismo que o poder monárquico representava, a Constituição de 1891 propiciou uma espécie de fortalecimento das oligarquias estaduais, as quais lançaram mão de suas forças policiais locais para a manutenção dessa hegemonia. Essa afirmação da autonomia estadual foi traduzida de forma transparente pelo artigo 6º, parágrafo 3º da citada Carta, o qual determinou que a intervenção do Governo Federal em negócios peculiares dos Estados, quanto a restabelecimento da ordem e tranqüilidade pública, estava condicionada ―a requisição dos respectivos governos‖, ou ―por solicitação de seus legítimos representantes‖, mediante a nova redação dada a esse artigo pela Emenda Constitucional nº 03/1926. Sobre o período analisa Souza (1986, pág. 22): Aos Estados concedia-se, inclusive, a liberdade de se armarem militarmente, através de suas forças policiais. Ao Presidente do Estado atribuía-se o direito de dispor da sua Força Militar de Polícia, para a manutenção da ordem pública e, também, o direito de dissolvê-la, conforme prescrevia o artigo 36, nº 4 da Constituição Estadual de São Paulo. Até mesmo a fixação de seu efetivo era atribuição do Congresso Estadual, por proposta do Executivo (art. 20, nº 2). E não se há que desconhecer que ‖as polícias militares estaduais sempre foram olhadas pelo Exército como um ameaça à União (...) por ensejarem tentativas de rebelião ou de insurreição, sempre danosas para a Nação‖. Não se desconheça, tampouco, que o fortalecimento militar dos Estados, na Primeira República, se consistiu em uma garantia contra o intervencionismo político da União e, por vias de conseqüências, na asseguração da autonomia dos Estados e do federalismo recém-implantando no Brasil. Não seria então exagero algum ressaltar que o sistema policial brasileiro acabou por ser conduzido e utilizado, durante prolongado período republicano, como verdadeira miniatura do Exército no âmbito estadual, visando ora se contrapor ao poder federal, ora ratificar a posição do governante central, conforme suas alianças e conveniências políticas. Tiradas de seu mister principal, que seria a preservação da ordem pública e o socorro, a proteção e a assistência à sociedade, as Instituições policiais acabaram por percorrer o caminho contrário: ao invés de justificar sua existência em razão da sociedade, acabaram cunhadas para servir como uma espécie de muro impeditivo‖ 32 entre o Estado, quase sempre divorciado das reais necessidades do povo, e a sociedade, mormente as classes menos abastadas. Pari pasu, o crescimento dos efetivos significou também o aumento e o uso da máquina policial na repressão de todos os movimentos populares da primeira década do século XX, desde a Revolta da Chibata, em 1910, quando marinheiros negros se revoltaram contra as penas de castigos corpóreos, passando pela criminalização da pobreza, muito bem delineada – e parece que galvanizada para a posteridade, pelo então Presidente Washigton Luís, que definiu a questão social, como eram denominados os movimentos sociais, ―como caso de polícia‖. Assim como também se transformaram em caso de polícia os chamados movimentos higienistas do início do século XX, delegando mais uma vez somente à polícia a tarefa de conter o caos provocado pelas péssimas condições de habitação, oriundas do desemprego e da miséria, da urbanização caótica que já prenunciava como seriam as grandes cidades nos anos seguintes. Mais do que usar da licença semântica de realizar operações de limpeza e de promoção da saúde junto aos representantes das classes menos abastadas, o discurso científico de ―promoção da saúde‖, muitas vezes tentando usar parâmetros europeus, acabou por mais uma vez usar o corpo policial como longa manus da plutocracia que promovia a industrialização com altíssimo custo social. Sobre o período e em particular acerca desse tipo de desenvolvimento deletério, é elucidativa e didática a visão de Marins, (1998, 41): A ambição de arrancar do seio da capital as habitações e moradores indesejados pelas elites dirigentes começou a se materializar com as medidas visando à demolição dos numerosos cortiços e estalagens, espalhados por todas as freguesias centrais do Rio de Janeiro, o que se procedeu sob a legitimação conferida pelo sanitarismo. Paulatinamente polícia e sociedade foram se transformando em antagonistas, na medida em que o corpo policial ia sendo usado como a força que ajudava a desentulhar os pobres das áreas centrais do Rio de Janeiro, então capital federal, e São Paulo, citando duas das mais importantes cidades do país. 33 Nesse ponto, importante conhecer a atuação da polícia carioca, por intermédio do poder público, em 04 de novembro de 1900, rebaixando e resumindo o problema dos renegados sociais da época a uma ―diligência policial‖ requerida por uma então autoridade pública: (Zaluar, 1998, p. 08): Trata-se de uma carta do delegado da 10ª circunscrição ao chefe de polícia, dr. Enéas Galvão. Nela podemos ler: Obedecendo ao pedido de informações que V. Excia., em ofício sob o nº 7.071, ontem me dirigiu relativamente a um local do Jornal do Brasil, que diz estar o Morro da Providência infestado de vagabundos e criminosos que são o sobressalto das famílias no local designado, é ali impossível ser feito o policiamento porquanto nesse local, foco de desertores, ladrões e praças do Exército, não há ruas, os casebres são construídos de madeira e cobertos de zinco, e não existe em todo o morro um só bico de gás, de modo que para a completa extinção dos malfeitores apontados se torna necessário um grande cerco, que para produzir resultado, precisa pelo menos de um auxílio de 80 praças completamente armadas. (...) dos livros desta delegacia consta ter ali sido feita uma diligência pelo meu antecessor que teve êxito, sendo, com um contingente de 50 praças, capturados, numa só noite, de cerca de 92 indivíduos perigosos. Vendo a exclusão social como apenas um caso de polícia, o Estado, de maneira geral, acabou instrumentalizando as corporações para uma guerra contra seus próprios compatriotas, criando assim a figura do policial que ao mesmo tempo é mal e violento, que se acostuma desde cedo ao cometimento de toda sorte de arbítrios nos lugares mais pobres, embora servil junto aos segmentos privilegiados. Com a guetização dos excluídos sociais, o efeito cascata no campo da segurança pública acabou repercutindo inclusive neste pós-milênio. Como efeitos, vemos a ocupação desordenada dos morros, a multiplicação das favelas13 como locais transformados em verdadeiros enclaves de um estado criminoso, paralelo, criado e desenvolvido a partir de ações deturpadas e da omissão do poder público, e o 13 Segundo Santucci, o desmonte do grande cortiço é apontado como semente das favelas. Sem ter para onde ir, os inquilinos foram autorizados a retirar a madeira dos cômodos para construir outra moradia. Uma das proprietárias do ―Cabeça de Porco‖, grande cortiço da época, era dona de lotes no Morro da Favela, hoje Morro da Providência. Ela negociou os terrenos com os antigos moradores. A ocupação se expandiu em 1897, com o retorno dos combatentes da Guerra de Canudos, que ali se instalaram. SANTUCCI, Jane. Cidade Rebelde - As Revoltas Populares do Rio de Janeiro no Início do Século XX. (2008) 34 investimento maciço, mais uma vez, na ação policial guerreira a serviço do poder político constituído. Outra importante constatação acerca da utilização política da polícia brasileira é a chamada ideologização das Corporações, quer seja nos ramos investigativo ou administrativo (ligado à polícia ostensiva), visando à repressão ao chamado ―inimigo interno do Estado‖. Nesse sentido, a ideologia incutida nas mentes policiais no início do século XX pareceu adquirir o sentido de camuflar a realidade, criando uma espécie de consciência falsa que acabou por deformar as concepções originais, criando assim um quadro favorável aos interesses da classe dominante. Ligada a essa idéia de alienação, de falsas premissas que acabam por mascarar os reais fundamentos da sociedade, a ideologia do ―combate aos inimigos da nação‖ adquire sua forma arbitrária, servindo para fazer com que os outros atuem de maneira dirigida, eminentemente servindo para dominar (Gramsci, 1977). Sendo assim, a idéia do já delineado ―inimigo do Estado‖, ou seja, o elemento discordante ou ameaçador dos condôminos do poder, passou a ser difundida como uma espécie de regra que contaminou o saber e o agir policial. A partir desse ponto torna-se mais compreensível o treinamento militar, a formação voltada para a defesa do Estado, bem como a conseqüência maior, o enorme abismo criado entre o meio policial e o meio social. Com o fim da chamada República Velha e a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, em 1930, as velhas oligarquias estaduais, junto com suas polícias, passam a efetivamente ser tuteladas pela União, o que não impede ou freia o meio policial em continuar seu trabalho de domesticação do povo. Contrário disso, a idéia de uma repressão mais apurada, vinculada não somente ao braço forte junto a eventuais manifestantes, é aperfeiçoada com a politização das investigações, sendo o cárcere outro importante método a ser ainda mais utilizado. 35 A perseguição ao comunismo foi alçada como o ponto máximo da atuação policial naquele momento. Antevendo os choques ideológicos que iriam atingir seu ápice nas décadas subseqüentes, até o efeito dominó da queda política da ex-União Soviética em 1991, o aparelho policial do estado brasileiro passou a agir na contenção do movimento operário, das classes populares, dos caracterizados como criminosos a qualquer título, perseguindo sob a desculpa de combate a ―onda vermelha‖. O Departamento de Ordem Política e Social – DEOPS, funcionou como ícone dessa fase, onde a caçada ao elemento comunista, considerado perigoso ao funcionamento do Estado, justificava a ação policial de cunho arbitrário e extremista. Assim, enquanto na propaganda oficial do Governo o elemento comunista, ou ―alienígena‖ se propaga, as perseguições e o cárcere acabam sendo utilizados como forma de criar um novo perfil criminológico no Brasil, o preso político, extinto apenas em 1979, com a chamada Lei da Anistia14. Essa espécie de ―Bastilha moderna‖ também caracterizou a relação e o uso político do sistema policial em favor do poder constituído. A tentativa de limpeza dos inimigos sociais provocou um surto extremista, capitaneado pela União, com a construção de todo um arcabouço institucional quer fazia do policial, militarizado e com mentalidade guerreira, seu braço forte. Tal aspecto é muito bem explicado nos dizeres de Pedroso (2005, pag. 84): A montagem do aparato repressivo do Estado foi constituída a partir de uma rede composta pelos planos de auto-defesa do Estado; da vigilância constante por parte das organizações para este fim, como a Comissão de Repressão ao Comunismo, a polícia política representada pelos Deops Estaduais e pela Desps (Delegacia Especial de Ordem Política e Social, criada em 1933 com sede no Rio de Janeiro), a articulação constante entre o Ministério da Justiça, Desps e os Deops estaduais, e finalizando essa gênese da repressão, o Tribunal de Segurança Nacional, encarregado do julgamento final do réu político. 14 BRASIL. Lei n° 6.683, de 28 de agosto de 1979. Concede anistia e dá outras providências. Diário Oficial da [República Federativa do Brasil], Brasília, DF. 36 Como instituição política secundária, relegada não ao uso do intelecto, mas apenas da força, a polícia brasileira foi inserida na visão panóptica de Estado, uma espécie de sociedade disciplinar (Foucalt, 2008), onde as relações de poder, controle e visão estão muito bem estabelecidas, com seus protagonistas, mocinhos e bandidos, inapelavelmente pré-definidos. Tal estado de coisas terá seu ápice com o golpe que leva os militares ao poder em 1964, sendo parcialmente arrefecido – e não eliminado, visto remanescer a cultura e o estigma adquirido durante as décadas anteriores, com o processo de redemocratização que culminará com a Constituição de 1988. Sobre essa fase ainda são importantes outras considerações sobre o uso político do aparelho policial, visando ainda melhor compreender a dificuldade das instituições em adaptarem-se à nova clivagem social, imposta pelo Estado Democrático de Direito. Sendo as organizações policiais historicamente alienadas aos anseios sociais, não foi tarefa difícil para a nova ordem ditatorial manter a mesma estrutura de uso dos serviços policiais para a repressão aos descontentes, acentuando ainda mais a longa distância que ainda separa o meio policial do mundo social. O desmonte do Estado de Direito era justificado pela necessidade de preservação dos interesses da família brasileira, mormente mais uma vez em face dos perigos representados pelo comunismo, tal como afirma Villa (2001, p. 17): O governo tem procurado criar condições para uma democracia representativa autêntica. Esse regime [...] depende, entretanto, da boa escolha que o povo saiba e possa fazer de seus representantes. No Brasil, na fase imediatamente anterior à Revolução foi promovida uma política de gradativa destruição interna e desmoralização externa do país, completamente contrárias aos interesses do povo. [...] Quem, senão a Revolução, defendeu, em 1964, a propriedade, o erário público, e a moral política e administrativa? Quem, senão o movimento de 31 de março, salvou o Brasil de uma subversiva minoria e salvaguardou assim os direitos dos trabalhadores? Com o golpe militar os antigos e novos inimigos do Estado haviam de ser enfrentados, ora pelas tropas policiais militares fardadas, adestradas para a dispersão dos manifestantes, ora pelos policiais militares, civis e militares federais 37 alocados nas delegacias de égide política, calabouços onde o que menos importava era a investigação criminal, mas sim a manutenção do status quo vigente. Sendo as policiais militares uma força auxiliar e reserva do Exército, quadro que não foi alterado pela Constituição vigente, não se poderia conceber outra opção se não a da replicação das condutas e formas de atuação adotados pelas Forças Armadas. Afinal, seria de enorme ilogismo pensar em uma força auxiliar que não fosse capaz de substituir ―o titular‖ quando assim fosse preciso. Gaspari (2002, p. 41) denota, até com certa ironia, como militares de altos e baixos coturnos enxergavam a tortura como forma de combate aos descontentes, de sublevação dos valores sociais, citando os termos de um Sargento que atuava na Vila Militar, no Rio de Janeiro, o qual mostrava a entrada do Quartel e bradava: “Dali pra dentro Deus não entra. Se entrar, a gente dependura no pau-de-arara”. Nesse contexto, de utilização do poder de polícia do Estado como forma de coerção política, as agências de segurança pública acabaram funcionando muito mais para promover a banditização dos oponentes do regime, esquecendo-se da criminalidade, que, subdimensionada, iria torna-se o grande desafio da posterior fase democrática. Membros do Partido Comunista Brasileiro (PCB), Partido Comunista do Brasil (PC do B), Aliança Nacional Libertadora (ANL), Vanguarda Armada Revolucionária (VAR Palmares)15, dentre outros partidos e movimentos discordantes, acabaram por se tornar a principal preocupação policial do período do governo militar, causando assim o aprofundamento do foco politizado, em detrimento da onda criminal urbana que ainda prevalece, cujos primeiros sinais já surgiam nos grandes centros urbanos. Embora as repercussões da luta dessas organizações tenham sido enormes, a desproporção entre a força e a organização do aparelho policial de repressão e os movimentos de reação era abissal. Sobre a constatada superioridade das forças de repressão do Estado, inclusive de policiais em nítido desvio de suas funções 15 A atual Presidenta do Brasil, Dilma Vana Roussef, eleita em 2010, com mandato entre 2011 e 2014, foi membro ativo da VAR-Palmares, tendo inclusive sido presa pela repressão militar. 38 tradicionais, assim registrou Gorender (1987, p. 81): ―o amadorismo e o isolamento dos guerrilheiros acabou por impedir qualquer tipo de mudança no quadro político‖. Como Che Guevara16, um dos líderes do movimento de tomada do poder em Cuba, que de líder rebelado tornou-se um mito da juventude, os movimentos revoltosos acabaram baleados e mortos por agências de segurança que haviam aprendido, com louvor, os ensinamentos belicistas aprendidos por gerações de policiais. ―O problema é a política‖, costumam dizer muitos policiais, alguns certamente evocando os fantasmas de utilização não republicana de suas fardas e armas durante todo o século passado, tal qual nos ensina Muniz e Proença Júnior (2007, p. 160): Discutir o ―poder de polícia‖, suas virtudes e vícios é, em termos amplos, inquirir sobre o quanto concordamos com os conteúdos do mandato policial e as formas de seu exercício no Brasil. É questionar, alterar ou validar os termos concretos dos poderes delegados ao Estado para a coerção legal e legítima. É estabelecer o que é desejável, o que é tolerável, na ação policial. É se pôr de acordo sobre quais sejam os fins, os meios e os modos do agir policial como instrumento de sustentação, defesa e garantia dos Direitos Fundamentais. É pactuar sobre as alternativas de produção de obediência socialmente consentida, com respaldo da força, sob o Império da Lei. É assegurar a capacidade da polícia de cumprir o seu mandato sem que ela sirva à tirania do governante, a opressão por seus procuradores, ou seja, apropriada por interesses privados (...) Continuando a examinar a utilização política da força policial brasileira, quase sempre justificada como uma necessidade de preservação ou manutenção de uma pseudo – ordem pública, é possível registrar com enorme facilidade um sem número de vezes em que a força do Estado, foi forçosamente legitimada pelo império da força, e não o da lei. 16 Ernesto Guevara, conhecido como Che Guevara, foi um político, jornalista e médico argentino, foi um dos ideólogos e comandantes que lideraram a Revolução Cubana (1953/1959). Participante de guerrilhas na América Latina, morreu na Bolívia em outubro de 1967, capturado e executado de maneira clandestina pelo exército boliviano em colaboração com a CIA. Disponível em: http//www.wikipedia.org/wiki/che–guevara. Acesso em 02/03/2011. 39 Tal constatação, de sobreposição da força, e, por conseguinte, de interesses não coletivos, possui o condão de muito resumir o contexto de atuação da polícia brasileira, desde sua fundação até o novo milênio. Bem como as conseqüências herdadas dessa visão desfocada, que relega ao policial a tarefa de ainda ser os braços do rei, quer seja monarca ou presidencialista, desqualificando-o diante da sociedade para o exercício de suas clássicas funções. 3.2 A RELAÇÃO DA SOCIEDADE COM O ESTADO POLICIAL Postas às premissas iniciais que assumidamente interferiram e desaguaram no escopo policial brasileiro até o final do século XX, passamos para uma breve análise nos princípios que envolvem a necessidade de segurança nas relações sociais e a ação de intervenção do Estado. Nesse ponto, sobretudo, parece ocorrer uma exarcebamento da também histórica confusão de conceitos no campo da segurança pública brasileira. Como nos ensina Da Silva (2003), ordem pública, assunto de natureza eminentemente policial, se refere muito mais a segurança dos cidadãos, realizada quase sempre por meio da prevenção e pela mediação de conflitos. Já a ordem interna, ainda segundo o autor, é concebida como algo ligado à ameaça da soberania, da democracia, por exemplo. Nesse sentido, pontuamos que se tratando de ações para a manutenção da ordem social, a fundamentação maior representada pela ―proteção-coerção‖, no contexto dos direcionamentos da ordem policial no Brasil, manteve um caráter contraditório, com desdobramentos conflitantes. Com isso, ao longo de sua história, a polícia brasileira levou-se e foi levada a confundir esses basilares conceitos, mostrando e vendo à sociedade muito mais como ameaçadora dessa ordem interna, que deveria ser mantida a todo custo, do que cliente e recebedora dos serviços de segurança pública, muito mais exigidos a partir dos anos 80. 40 Com isso, prevenção e repressão policial acabaram por ser confundidas com prevenção e repressão militar, contradição que possivelmente tenha passado disfarçada ao longo de décadas em função do baixo nível de urbanização e de criminalidade em quase todo o país, mas que acabou explodindo após a abertura política. Não se quer dizer com isso que a abertura política tenha alguma relação com o aumento da criminalidade, verificado durante a década de 80, com impactos mais expressivos a partir dos anos 90. Tal fenômeno, embora complexo, deve ser visto como inerente à convivência social, e ainda, elemento constitutivo do seu funcionamento. (Durkheim, 1973). Em outras palavras, a criminalidade e a violência são vistas como fenômenos sóciopolítico-histórico-culturais, ou seja, como fatos sociais que podem ser controlados e não extirpados, e não necessariamente como uma patologia social, ou advento exclusivo de erros ou políticas sociais e administrativas equivocadas, embora acertos nesses setores possam atuar como importante freio para a violência. Da República Velha ao Estado Novo, e de 31 de março de 1964, data do golpe militar, até 15 de março de 1985, quando José Sarney17 assumiu a presidência da república, dando fim ao ciclo de generais no poder, repetiu-se a tendência de um sistema de justiça criminal excludente e elitista, nos mesmos moldes do regime imperial. A Nova República, iniciada em 1985, que prometia refundar o Estado dentro da perspectiva democrática, optou por não alterar justamente um dos fundamentos básicos da construção da cidadania. A estrutura policial, talvez a mais capilarizada junto a todos os segmentos sociais, presente nas grandes cidades, mas também nos lugarejos rurais, acabou permanecendo quase inalterada, perdendo-se então a 17 Presidente do Brasil entre 15/03/1985 e 15/03/1990. http://www.presidencia.gov.br/info_historicas. Acesso em 02/04/2011. Disponível em: 41 possibilidade, com a nova ordem constitucional, de criação de uma nova matriz conceitual para a segurança pública18. “Polícia para quem polícia, polícia para quem precisa de polícia19‖. Esse era um dos refrões da moda nos anos 80, feito como uma das muitas formas desse protesto calado ao longo das décadas anteriores, que agora exprimia muito bem a reação social diante do abismo que separava a recém nascida cidadania e a chamada comunidade policial. Retraídas durante décadas nos quartéis e nas delegacias, usando métodos ora de guerra, ora intensamente inquisitivos - e por isso invasivos e violentos, com assunção do poder civil e a edição de uma nova Carta Constitucional em 1988, que garantia amplos direitos e garantias ao cidadão, todas as contradições seculares da polícia brasileira acabaram por eclodir a um só momento. Levadas a ter, repentinamente, que abandonar as práticas antes consideradas normais20, que passaram a serem vistas como anátemas pelos antes perseguidos políticos, mas que paulatinamente iriam assumir o poder, e ainda, encarando um inaudito aumento da criminalidade, apresentado como uma guerra civil não oficialmente declarada, as instituições acabaram vendo seus meios e fins transformarem-se em ilusões que de nada mais adiantavam diante do novo desafio. Nesse turbilhão de acontecimentos, em que a criminalidade se dissemina e assume um movimento centrípeto, tornando-se assunto e problemática obrigatória, passa a sociedade a externar toda a demanda reprimida de ódios, reclamações e insatisfações acerca do serviço policial e de seus integrantes. 18 O parágrafo 6º do artigo 144 da Constituição Federal de 1988 manteve as polícias e corpos de bombeiros militares como forças auxiliares e reserva do Exército. Nessa Carta Constitucional a temática da segurança pública é tratado no título V, que se refere a ―Defesa do Estado e das Instituições Democráticas‖. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília – DF. Senado. 19 Frase da música ―Polícia‖ de autoria de Tony Bellotto. 1986. 20 Uma das práticas mais rotineiras era a chamada prisão para averiguação, um dos corolários do regime militar, juntamente com a chamada incomunicabilidade, sendo o cidadão primeiro encarcerado, para somente depois ser investigado eventual crime. Tal conduta foi juridicamente abolida pelo artigo 5º, inciso LXI, da Constituição Federal de 1988. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília – DF. Senado. 1988. 42 Colaboram com isso atributos indispensáveis de toda democracia que permaneciam represados por muitos anos, como a liberdade de expressão e a ação da mídia participativa e investigativa, que tanto passam a dar conhecimento dos fatos criminosos como a tecer críticas, justas ou não, acerca do serviço policial. Dentro dessa nova geopolítica, onde a cultura organizacional do policial, voltada para a defesa do establishment, se colide com a nova ordem, em que direitos humanos, cidadania e não violência passam a ser termos cada vez mais utilizados, é que aflora a necessidade de uma mudança em todo o paradigma das instituições policiais. De forma paradoxal e até mesmo surpreendente, as polícias militares, mesmo com sua matriz belicista, tem se apresentado como protagonistas nesse novo intento, de comunitarizar suas mentes e ações. Conquanto seja importantíssimo o desiderato de promover a comunitarização do serviço policial, torna-se tarefa de pouca monta constatar a existência de alguns preconceitos não somente nascidos no seio das instituições. Não é raro observar integrantes da própria sociedade, ou representantes do poder público sacando da algibeira idéias também completamente ultrapassadas no campo criminológico, e por que não dizer absolutamente inapropriadas para uma democracia. Talvez por isso, um paciente observador social possa observar que muito se critica quanto à violência policial, mas pouco se esclarece acerca da sedição e da satisfação de significativa parcela de pessoas que defendem a violência como a melhor forma de agir contra a própria violência. Não sem outra razão, tornou-se o ―Capitão Nascimento‖, personagem principal do filme Tropa de Elite21, já em segunda versão, uma espécie de super-herói nacional, ou de catarse coletiva contra os desmandos das autoridades públicas, mesmo cometendo uma série de barbáries e ilegalidades em seu agir. 21 TROPA DE ELITE. Direção: José Padilha. Produção: José Padilha e Marcos Prado. Intérpretes: Wagner Moura, Caio Junqueira, André Ramiro, Milhem Cortaz, Fernanda de Freitas e outros. Roteiro: Rodrigo Pimentel, Bráulio Mantovani e José Padilha.. [S.I]: Universal Pictures, 2007, 1 DVD (118 min), son., color, DVD. 43 É como se a sociedade, em um número indeterminado de pessoas de todas as matizes sociais, que deveria ser a primeira a defender e exigir o cumprimento dos direitos e garantias fundamentais indissociáveis a qualquer ser humano, direitos conquistados mais recentemente ao longo de cerca de 20 anos de duração do último regime militar (1964/1984), de certa forma ratificasse justamente aquilo que deveria contraditar: o uso de quaisquer meios para o atingimento de uma finalidade pública. Afinal, os fins justificam os meios? A famosa frase atribuída a Nicolau Maquiavel, que muito está ligada ao senso comum da idéia de perfídia, astúcia, servindo como forma de desqualificar os outros, mas que em nada explica o verdadeiro sentido do autor florentino, de uma prática ―livre dos freios extraterrenos [...] de uma política com ética e lógica próprias‖ (Sadek, 1999, p. 20 e 24), não pode ser aplicada no campo da segurança pública. Isso porque além de questão política, devem também prevalecer princípios cuja amplitude é muito maior e importante, a exemplo da dignidade da pessoa humana, uma espécie de fundação de todo o edifício jurídico brasileiro após 1988. Destarte, a crise de identidade atinge também setores da sociedade, que de um lado deseja serviços policiais eficientes, mas do outro, ante ao aumento da criminalidade, se rende ao proselitismo e acaba por também incentivar o discurso sedicioso. Frases como “bandido tem que morrer, ou bandido morto é bandido bom”, entre outras, estão amalgamadas nas mentes do coletivo, como se esse sujeito caracterizado como criminoso, cada vez mais indeterminado, repentinamente não possa se transformar em qualquer cidadão vitimado pela ação ilegal de um agente público. Sob a ótica de acabar com o crime, propõe-se acabar com o criminoso, como se isso fosse possível, confundido respeito aos direitos da pessoa humana com leniência com o crime, como se a sociedade vitimada pela violência pudesse voltar ao tempo em que vigia a lei de talião: ―olho por olho, dente por dente‖. Uma tentativa de legitimar a vingança pública, que acaba por replicar ainda mais o contraproducente modelo repressivo. 44 Entretanto, contrastando com o senso comum, devemos refazer os questionamentos de Thompson (1985, p. 04): ―Algum de nós é capaz de assegurar jamais ter cometido um único ilícito até hoje?‖ E ainda, quem são os criminosos? Paradoxalmente, muito se discute acerca do crime e de seu consequente sentimento de medo coletivo, conquanto o discurso social seja muito semelhante à própria prática criminosa, e ainda, muitas vezes reverso, já que a democratização da década de 1980 não permaneceu nos limites políticos, mas expandiu-se e igualou, nesse ponto, ricos e pobres, assolados que estão pelo mesmo problema, à violência. Em outro viés, é possível ver também que o desenvolvimento tardio e até engessado da cidadania brasileira favoreceu essa espécie de miopia coletiva que assola quase todas as camadas sociais, independentemente do status quo. Nos dizeres de Ribeiro (2005, p. 46), ―construímos uma sociedade que aumenta a polis (cidade), mas que hipertrofia o civitas (cidadania), pela inexistência do societas (sociedade).‖ De fato, dentro dessa relação entre o Estado policial e a sociedade vige também uma espécie de ambigüidade entre o discurso oficial, que ora se situa na linha do respeito aos direitos humanos e ao ordenamento jurídico, e o discurso social, que se limita ora a cobrar providências, ou a defender o aumento do gradiente de força junto aos criminosos. Como fato constatado, a sociedade em geral demonstra reunir pouca capacidade de associativismo na busca por seus direitos, muitas vezes desconsiderando ou fingindo não ver a realidade fática, apresentada na entrevista do ex-Chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Delegado Hélio Luz, no documentário Notícias de uma Guerra Particular22: Eu digo que a polícia é corrupta. É violenta e corrupta. É uma instituição que existe e foi criada para ser uma instituição violenta e corrupta. O pessoal estranha... [...] Ela foi criada para ser segurança do Estado e segurança da elite. Eu faço política de repressão em benefício, em proteção do Estado, tranqüilamente... Manter a favela sob controle... Como é que você mantém 2 milhões de pessoas sob controle ganhando 22 NOTICIAS de uma guerra particular. Direção: João Moreira Salles e Kátia Lund. Produção: Intérpretes: Hélio Luz; Rodrigo Pimentel; Paulo Lins; Adão Xalebaradã e outros. Roteiro: João Moreira Salles; Kátia Lund; Walter Salles. [S.I]: VideoFilmes, 2005, 2 DVDs (56 min), son., color, DVD. 45 112 reais, e quando ganha?... É lógico que é com repressão. Como é que você vai manter? [...] É polícia política mesmo. Evidentemente, tal análise não importa em lançar no rol dos culpados esse ou aquele cidadão, muito menos catapultar o peso de todas as mazelas do sistema público apenas nas instituições policiais. Em síntese, as constatações históricas também nos remetam às causas e conseqüências dessa relação claudicante junto à sociedade, muitas vezes oponente, tantas outras cúmplice de um Estado que na maioria das vezes finge não ver a maximização da exclusão e a miséria, da fome e da periferização, preferindo mitigar o debate por meio da ação policial. Todavia, ao historicamente privilegiar perfis que variam do burocrático-militar, ao de aplicação da lei, desprezando outros tipos de atuação, que por requerem menor demonstração de força acabam sendo jocosamente denominados de ―assistência social‖, as corporações policias ainda hoje, mais de uma década depois do novo milênio, enfrentam uma torrente de contradições internas, demonstrando uma certa bipolaridade de pensamento. Para uns, policiais, parlamentares gestores políticos e integrantes da sociedade em geral adeptos de soluções que alterem a estrutura policial, corrente ainda minoritária, as práticas consideradas tradicionais devem ser modificadas. Para tanto, necessária seria uma modernização dos procedimentos e a mudança radical da cultura que transforma as agências de segurança pública em verdadeiras máquinas de reação ao crime e ao criminoso, esse muitas vezes um sujeito indeterminado que sequer se encontra em fundada suspeita. Para os demais, representantes dos mesmos segmentos, corrente majoritária, os dogmas funcionam muito bem, não carecendo maiores mudanças na gestão policial, muito menos em sua estrutura de pensamento, sendo os problemas atinentes às instituições limitadas aos baixos salários, à estrutura logística, a diminuição da autoridade ou do status junto aos Governos, entre tantos outros. Preocupações muito mais consequenciais do que efetivas causas, segundo nossa análise. 46 Decorrente dessa ambivalência que persiste no contexto da polícia nacional, a confiança da sociedade nas agências policiais segue em queda livre, à medida que as taxas de criminalidade tendem a subir. Segundo a análise do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas – IPEA23, em pesquisa realizada em 2010, 70,15% dos brasileiros confiam pouco ou não confiam nas polícias estaduais. Ou seja, a credibilidade de quase todo o sistema policial brasileiro é baixíssima junto à sociedade. Tal distanciamento das perspectivas e anseios públicos parece refletir também nos índices criminais. De acordo com Waizelfisz (1979. p. 12) as taxas de homicídios com armas de fogo apresentam uma série histórica crescente em todo o país, com um aumento de 542,7% entre os anos de 1979 e 2003, vitimização muito maior do que a provocada por históricos conflitos, a exemplo da milenar luta entre israelenses e palestinos, que segundo o mesmo estudo ceifou 125.000 vidas, ao passo que no Brasil 325.551 morreram por meio de projéteis de calibres diversos. É nesse impasse que mesmo após mais de duas décadas da democratização política, permanece não respondido o questionamento: Como pode a polícia, responsável por sustentar o necessário e comedido enforcement, ou seja, o uso da força para o cumprimento da lei, no entanto, produzir tirania ou opressão, ou mesmo manipulação política e apropriação por interesses privados, sobretudo diante dos que Buarque (1994), chamou de apartados sociais? Produzir essa nova governança, em que a paz social é sustentada sem que os preceitos já considerados antigos sejam constantemente evocados, ainda permanece como uma interrogação prática a ser respondida, já que se trata o crime, como antes afirmado, um fenômeno pluricameral, que envolve o Estado – e suas polícias, e, sobretudo, a sociedade. Embora existam iniciativas exitosas, a exemplo do policiamento comunitário, que demonstram, mesmo de forma ainda localizada, boas práticas no sentido de 23 BRASIL. Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas – IPEA. Sistema de Indicadores de Percepção Social - SIPS. 2011. 47 combinar eficiência policial com respeito aos direitos humanos, assunto que será tratado no final deste trabalho, a resiliência do modelo policial no Brasil ainda é evidente, demonstrando ter ultrapassado a barreira dos séculos XIX e XX praticamente inalterado em sua base estrutural, mesmo com toda a acumulação de mudanças sociais (Blasius, 2008). Eis então o modelo policial brasileiro, uma espécie de Dom Quixote, em pleno transe, que mesmo já decorridos os dez anos do novo milênio, luta bravamente contra os moinhos de vento, que muito representam a modernidade, seu maior temor. 48 4 ESPÍRITO SANTO: O CRESCIMENTO DA VIOLÊNCIA NO ES E A ATUAÇÃO DO ESTADO 4.1 A CURVA ASCENDENTE DA VIOLÊNCIA NA REGIÃO METROPOLITANA DA GRANDE VITÓRIA A constatação de que a violência tornou-se um sério problema também no Espírito Santo, e de que as autoridades locais, embora com iniciativas e políticas diversas ainda não conseguiram, com raras exceções, criar políticas públicas de maior eficácia, fica evidenciada quando são apresentados os índices estatísticos, que demonstram uma clara curva ascendente da criminalidade em todo o Estado. Um dos grandes obstáculos para a realização de uma análise mais aprofundada dos dados estatísticos referentes a ocorrências criminais no Espírito Santo é a ausência de fontes mais exatas, pelo menos no que se refere às informações das décadas de 1970 e 1980. Felizmente, a partir da década de 1990 as informações apresentam uma radiografia mais nítida, melhorando ainda mais nos primeiros dez anos do novo milênio. É conhecida a discrepância entre os dados estatísticos relativos à violência no Brasil, sobretudo em razão do padrão dual do sistema estadual, dividido entre duas polícias. Por um lado, as informações oriundas das Polícias Militares não são completamente fidedignas, muitas vezes pela própria característica do trabalho ostensivo. A título de exemplo, uma tentativa de homicídio registrada por agentes militares pode, dias depois, consumar-se com a morte da vítima já no hospital, evento que não será incluído na base de dados das Instituições militares. Em outra vertente, as Polícias Civis padecem também com a claudicância de seus registros, sendo histórica a manualização de seus procedimentos. Deslandes, Minayo e Fonseca (2003, p.118), apresentando estudo conclusivo das condições da Polícia Civil do Rio de Janeiro, o qual pode perfeitamente ser utilizado como importante parâmetro comparativo no que pertine à Polícia Civil capixaba, trazem a lume o seguinte: ―os ambientes de trabalho nos passavam sempre a idéia de que a 49 Instituição havia parado no tempo [...] informalmente um policial revelou que ali ele estava se desatualizando‖, ou seja, refletindo o paradoxo de alguém que vive em uma sociedade em constante mudança e trabalha em uma Corporação cujo perfil ainda é muito enraizado a afazeres com prazo de validade e eficácia já há muito está vencido. Outro problema relativo à análise estatística criminal é o que Lima (2002, p. 48) denomina como uma espécie de ―fetichização‖ dessas estatísticas, termo pelo qual o autor procurou designar uma provável influenciação motivada por interesses atinentes a ―arte de governar‖, entranhada no cotidiano da burocracia do sistema de justiça, gerando assim certa desconfiança quanto a fidedignidade dos números.24 Visando superar tais obstáculos, que se aliam a miríade de tipos penais, bem como o desencontro ou incompletude de dados criminais, não somente no Espírito Santo, mas como regra brasileira, nos dirigiremos a uma análise que se restringirá ao crime de homicídio. Trata-se do principal exponencial da violência, sendo de altíssimo potencial lesivo ao convívio social, nos permitindo uma visão panorâmica dos últimos anos desse fenômeno em terras capixabas, mas especificamente em sua Região Metropolitana. Como iremos buscar demonstrar, o Espírito Santo acabou por acompanhar o padrão brasileiro de aumento da violência nas últimas décadas do século XX e na primeira do milênio, conquanto não tenha implementado, com pontuais exceções que pretendemos delinear no último capítulo deste estudo, políticas de segurança pública baseadas em princípios mais modernos na área da prevenção e investigação criminal. Tornando mais cartesiano, e, portanto, quantificado, o aumento da criminalidade na Região Metropolitana da Grande Vitória, estudos apontam que entre os anos de 1980 e 2002 a taxa de homicídios nessa região aumentou em 311%, ao passo que o 24 Não sem razão, visando preservar a necessária isenção acadêmica, o autor deste trabalho procurou pesquisar, sempre que possível, informações estatísticas produzidas por estudos de cunho nacional, sem vinculação a órgãos públicos. 50 crescimento médio da mesma taxa nas outras regiões metropolitanas do Brasil foi de 128,8%. (Cerqueira; Lobão; Carvalho, 2005, apud, Mattos, 2008,). Buscar motivações apenas policiais, ou de origem criminal, que possam explicar, primeiro, a descomunal elevação das mortes na Grande Vitória, e, segundo, quais as origens dessa desproporção em relação ao fenômeno no restante do país, seria tornar por demais simplificativa e errática a resposta. Importa então dizer que a inflexão positiva da curva criminal capixaba remonta raízes históricas, sociais e também políticas, as quais devem ser melhor examinadas para pleno entendimento da questão. Incrustrado na região mais rica do país, embora socioeconomicamente muito mais desprivilegiado do que seus vizinhos, o Espírito Santo viveu, por diversas motivações, uma fase tardia de industrialização se comparada aos outros Estados do Sudeste. Não por isso fugiu à regra do tradicional processo de avanço econômico brasileiro, dada à ausência de sustentabilidade e a paradoxal produção de miséria, ladeada pela riqueza. Estigmatizado como o ―primo pobre do sudeste‖, vizinho das grandes potências regionais, o Estado acabou por também preservar, por mais tempo que seus vizinhos, o clima provinciano, aprazível do ponto de vista da ausência de grandes centros urbanos, e dos consequentes problemas desse fenômeno moderno, como o trânsito caótico, a favelização e a violência. Somente na segunda metade do século XX, quando várias outras Unidades da Federação já sofriam com as consequências da urbanização não planejada, a derrocada do café como a maior fonte de produção de riqueza regional iria não somente permitir, mas obrigar uma forte alteração na economia regional, advindo então o incremento da industrialização, por meio dos chamados ―grandes projetos‖. Ressaltando o contexto histórico, sendo o café o produto responsável pela interiorização da produção de riqueza, inicialmente apenas disposta na região litorânea, produto maior de um modelo agro-exportador, com a queda de sua 51 produção que se inicia a partir de 1960, vai surgindo um novo modelo, o industrialexportador, agora com a criação de um parque industrial voltado para o comércio exterior. Como um conceito basilar da engenharia, toda estrutura necessita de alicerces, ou bases suficientemente fortes para suportar o peso das construções. No campo do desenvolvimento industrial, ou econômico em geral, a analogia é perfeitamente possível, tornando-se imprescindível a sustentabilidade, ambiental, social, entre outros. No caso do Espírito Santo, mais especificamente na macrorregião denominada Grande Vitória, os grandes projetos de industrialização 25 não se preocuparam em prever as consequências danosas de uma mudança tão radical no tradicional modo de vida do capixaba, permitindo que a rápida metropolização provocasse um amplo desarranjo social, sendo esse um dos fatores do aumento da criminalidade. É como muito bem demonstra estudo do Instituto de Apoio à Pesquisa e Desenvolvimento do ES – IPES (1998, p. 11): De forma direta, estas transformações determinaram o processo de metropolização regional, promovendo intensa reestruturação físico-territorial e implicando expressivas mudanças dos perfis econômicos e sociais da região. Segundo recenseamentos do IBGE, a população residente na Grande Vitória passou da ordem de 194 mil habitantes em 1960 para 1.065 mil habitantes em 1991, o que representou um acréscimo de 871 mil pessoas em apenas três décadas. 25 Segundo Abe (1999, p. 167), exemplo clássico desses projetos, dentre outros, do projeto da Aracruz Celulose, por suas características de abrangência rural, exploração agrícola de mão-de-obra especializada e capital intensivo, concentrou a propriedade fundiária e provocou a elevação dos preços das terras e dos imóveis, constituindo-se em fator de expulsão do homem do campo, inclusive de indígenas. Além da emigração, trouxe efeitos de assalariamento, monetarização, urbanização e sazonalidade nas ocupações, modificando profundamente a estrutura social local. A Aracruz, em ultima análise, organizou o território às suas necessidades e requisitou ao Estado todas as condições necessárias à sua operação: políticas, institucionais, fiscais, infra-estruturais e de capitalização. Para lá acorreram os trabalhadores não qualificados, que chegaram a 14 mil em 1977. Todavia, na operação plena, o número de empregados chegou apenas a 7.500. A taxa de crescimento urbano da micro-região em que está inserida foi de 111,7% na década de 70-80. Por tratar-se de uma região carente de serviços, grande proporção da demanda repercutiu sobre a Grande Vitória. ABE; André Tomoyki. Grande Vitória, ES: Crescimento e Metropolização, USP, 1999. 52 Assim, de um modal de trabalho familiar, que preservava a estrutura patriarcal, rapidamente passou-se ao trabalho assalariado, agora longe das raízes e costumes interioranos, surgindo a esse excedente populacional a necessidade de adaptação ao novo mundo da cidade grande. Tendo como exemplos vários outros eventos da história brasileira, como os candangos que ajudaram a construir Brasília, inaugurada em 1960, migrantes do interior do Estado, bem como de várias outras regiões do país, sobretudo do nordeste, passaram a ver a construção de novas fábricas, ou de portos especialmente planejados para a exportação, como um novo eldorado de oportunidades que o plantio do café, ou mesmo as áridas condições locais não permitiam vislumbrar. Repetindo um padrão histórico da nação, de desenvolvimento do capitalismo em sua face mais apresentada, de acumulação de capitais com base no uso de mão-deobra barata e descartável, os trabalhadores pouco ou quase nada preparados para o trabalho fabril, que requer certa especialização e conhecimentos que estavam muito longe de seus limites e possibilidades, acabaram não sendo aproveitados pelo novo setor de empregos, ficando à margem da nova fronteira de expansão econômica capixaba. Como definiu Bittencourt (2006, p. 498): Além disso, a recessão econômica e a virtual paralisação dos projetos nacionais superdimensionados nos anos de 1980, refluíram para o ES uma grande massa de desempregados, sobretudo, de Minas Gerais, atraídos pelos ―Grandes Projetos de Impacto‖, que só contribuíram para aumentar o anel de miséria da periferia de Vitória. A população do Estado, que se tornara, predominantemente urbana, já apresentava, em 1980, 64,2% de seus habitantes residindo na zona urbana. Diante desse cenário aqui sintetizado, ao qual acrescentamos a patente ausência de equipamentos sociais para atendimento desse novo contingente populacional, quer seja na capital ou mesmo nos municípios vizinhos, uma das consequências desse processo de exclusão foi à produção de uma espécie de efeito dominó, que nos últimos anos atingiu o Espírito Santo, notadamente sua Região Metropolitana. 53 O rápido estágio de metropolitanização da Grande Vitória, já na década de 1990, apresentava nítido contraste com o perfil dos anos 60. A rapidez desse crescimento, desacompanhada de todas as condições de empregabilidade, locomoção, habitação, da estrutura em geral para o salutar convívio, acabou por precarizar a região, que já em 2007 abrigava o maior contingente populacional – 48% dos moradores do Espírito Santo. As invasões de terras, muitas incentivadas pelo populismo irresponsável de eternos políticos locais, geraram a criação de bairros sem as mínimas condições de salubridade e permanência, onde ação policial acabou acompanhando a desorganização e a descontinuidade das políticas públicas, conforme ratifica estudo sobre a dinâmica urbana da Grande Vitória26: Neste período, constata-se também um dos mais intensos processos de invasão de terras ocorridos na Grande Vitória. Além de atingirem áreas de morros e mangues adjacentes aos núcleos consolidados, estas ocupações estenderam-se de forma generalizada a zonas periféricas praticamente isoladas em relação ao conjunto urbano existente, provocando expansões ainda mais desordenadas da malha metropolitana, inclusive com o comprometimento de áreas de extrema fragilidade ambiental. Eis aí então o núcleo da favelização e uma importante condicionante da crescente violência na Região Metropolitana da Grande Vitória a partir do início dos anos 80. De maneira que a exclusão favoreceu o desemprego, a favelização, a perda dos laços originais de parentesco, de religião, a mitigação dos chamados freios sociais que desaguaram em uma série de consequências. Nessa linha importantes as considerações de Siqueira (2010, p. 138): Segundo trabalho realizado em 1980 pela Secretaria Estadual de Planejamento, podia-se estimar que cerca de 60 mil pessoas em idade de trabalho encontravam-se desempregadas na Grande Vitória. A maior parte do setor informal constituía-se de empregadas domésticas, engraxates, jornaleiros, lavadores de carro, vendedores ambulantes e outras funções pouco 26 Governo do Espírito Santo. Instituto de Apoio à Pesquisa e Desenvolvimento do ES – IPES Região Metropolitana da Grande Vitória – Dinâmica Urbana na Década de 90. 1998. 54 rentáveis e altamente instáveis, profissões que situam o indivíduo muito próximo das fronteiras da delinquência, para onde é tangido por uma qualidade de vida precária, que derruba qualquer padrão moral e qualifica uma camada da população como ―camada marginal‖. Nessa mesma linha, estudo realizado por Beato (apud, Relatório da Anistia Internacional, 2006, p. 19) tendo como locus favelas de Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, afirma que ―o índice de infra-estrutura urbana era também significativamente mais deficiente nos lugares com maiores taxas de homicídio (cerca de cinco vezes)‖. Ou seja, no vácuo deixado pelo poder público a criminalidade ingressa e acaba se enraizando, trazendo consigo violência em progressão geométrica. Certamente não existem apenas aspectos negativos nesse urbanismo. Mesmo assim podemos refletir na direção de que essa desplanejada, complexificação da sociedade (Lefebvre, 2008), que rapidamente passou do rural ao industrial e desse industrial ao urbano, quase sempre de forma atabalhoada, confundindo crescimento e desenvolvimento com uma penúria social, gestou diversos e prolongados efeitos, a exemplo da criminalidade. Muito embora possa ser um equívoco primário relacionar, de forma taxativa, o fenômeno da pobreza e da exclusão com a expansão da fronteira da criminalidade no Espírito Santo, torna-se indubitável um olhar não exclusivamente policial ou tão somente criminológico sobre essa questão. Nesse ângulo, a precariedade social, aliada a ação estatal, ora desinteressada, ora errada ou despreparada, também pode ser vista como importante preponderante para a produção da marginalidade em série e o esperado aumento da violência. Inicia-se então a década de 1980 no Espírito Santo já com a repercussão negativa dos problemas sociais gerados pelos grandes investimentos, não planejados para a distribuição equitativa dos recursos e benefícios, mas sim para o enriquecimento de pequenas parcelas sociais e o retorno dos lucros ao capital internacional. Dessa forma é inaugurado o que se veria amalgamado na década seguinte. A explosão das taxas de homicídios, dentre outros crimes violentos, quase sempre 55 ocorridos nas periferias e em meio ao intenso comércio de ilícito de drogas, passando ao ser, ao lado dos históricos problemas, como a habitação, o saneamento e saúde, um dos maiores desafios do poder público ainda hoje. Somando-se a isso, no mesmo período já são mais sentidos no Espírito Santo os efeitos da globalização. Isso por que a internacionalização dos investimentos e dos lucros atingia em cheio a sociedade, que sem a opção rural de subsistência, agora mitigada pelo latifúndio, e sem os prometidos empregos nas indústrias, viu-se marginalizada e a mercê da expansão do narcotráfico, natural produtor e reprodutor da violência em todo o mundo. Tal aspecto, a expansão do tráfico e do consumo de drogas, embora não seja o objeto direto deste trabalho, merece uma explicitação mais detalhada, exatamente porque coincide com o processo de exclusão social que coloca em ponto de ebulição a violência no Espírito Santo, sobretudo em sua chamada Região Metropolitana. Traçando um pequeno painel acerca dessa expansão, é possível dizer que na década de 1970 foram efetivamente gestadas as condições para explosão da violência capixaba nos anos seguintes, alcançando todo o final do século XX e a primeira década do século XXI. Misturados, alguns dos fatores causadores da violência perversamente interagiam, tais como o Estado repressor e em constante embate com movimentos de reação, políticas públicas de segurança inexistentes ou equivocadas, sociedade dividida em classes quase estanques, endividamento público, favelização e o fim da era do chamado banditismo romântico, que envolvia pequenas e desorganizadas quadrilhas, armas não muito sofisticadas e um certo amadorismo delinqüente. Tudo isso acabou por contribuir para tornar a Região Metropolitana da Grande Vitória um dos locais onde mais se mata no Brasil, conforme poderemos ver nos estudos estatísticos adiante apresentados. 56 O filme ―Cidade de Deus‖27 retrata bem esse cenário, com o fim do chamado ―trio ternura‖, formado por jovens que praticavam furtos e roubos de pequeno valor. Era o início da era do crime visto em sua forma quase empresarial, visando alta lucratividade, com a criação de quadrilhas fortemente armadas, presidiários que enfrentam o poder constituído28, sendo seu arquétipo o personagem ―dadinho – depois zé pequeno‖, o novo criminoso, agora um rico e poderoso traficante de drogas, com sua ética, poder e força própria diante do poder público ora letárgico, ora complacente ou até mesmo cúmplice. Nesse aspecto a grande novidade foi à expansão do uso e tráfico de cocaína, e em poucos anos do crack, como mais uma das variadas determinantes biopsicossociais que revestem a criminalidade. Substituindo os deliquentes tradicionais, já estereotipados, surgem os cartéis, com conexões internacionais, fazendo com que as tradicionais fronteiras deixem de existir para o cometimento do ilícito. Na mesma tecla interpreta Zaluar29: (...) quando se considera o contexto nacional e transnacional da cultura globalizada e do crime negócio, também visto de diferentes perspectivas pelos autores mencionados. Isso só ficou claro para nós quando ouvimos a presidente de uma das associações de moradores contar, chorando, em 1988, como as armas de fogo chegavam até o bairro e eram postas nas mãos dos adolescentes pobres, trazidas de carro por desconhecidos. Estes adolescentes, em plena fase de fortalecimento da identidade masculina, aprendiam rápido um novo jogo mortal para afirmá-la, devido à facilidade de obter armas. Havia, então, um fluxo de recursos — armas, drogas e até dinheiro — cuja fonte transcendia a prática fatal dos adolescentes pobres. O escopo da análise teve de ser ampliado até incluir a organização transnacional dos cartéis das drogas e de outras mercadorias negociadas ilegalmente, além, é claro, das instituições locais — a polícia e a Justiça — com as quais esses adolescentes e jovens adultos se mantinham em permanente contato e das quais viviam fugindo 27 CIDADE DE DEUS. Direção: Fernando Meirelles e Kátia Lund. Produção: Intérpretes: Matheus Nachtergaele, Alexandre Rodrigues, Leandro Firmino da Hora, Phellipe Haagensen, Jonathan Haagensen e outros. Roteiro: Bráulio Mantovani [S.I]: O2 filmes, 2002, 1 DVD (130 min), son., color, DVD. 28 Data dessa época a formação do Comando Vermelho, uma das mais poderosas organizações criminosas do Brasil, modelo também depois adotado pelo Primeiro Comando da Capital – PCC, que controla a maioria dos presídios paulistas. 29 Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-88391999000300002&lang=pt. Acesso em 1/03/2011. 57 (Zaluar, 1993 a, b e c e 1994 a e b). A concepção da violência — no seu excesso e nos seus efeitos maléficos sobre os próprios jovens e seus vizinhos — tornava-se cada vez mais complexa. Paradoxalmente, pela mesma zona portuária ou de entrepostos comerciais planejada para o desenvolvimento da região – que acabou não resultando em distribuição equitativa de riqueza, as drogas passam a chegar visando o consumo dos grandes centros urbanos vizinhos, bem como abastecer a crescente demanda local. No caso da Região Metropolitana da Grande Vitória, os morros e as periferias (ocupadas a partir dos anos 70) acabaram sendo locais muito propícios para o comércio de drogas ilícitas, sobretudo em razão do completo abandono estatal. Para a proteção das ―bocas de fumo‖, como são popularmente denominados os locais de venda de entorpecentes, ou para o cometimento de outros crimes, as armas de fogo acabam funcionando como um vetor a mais de impulsão da violência. Seguindo a linha argumentativa de Cano (2002), existe no Brasil uma espécie de epidemia de fluxo de armas de fogo, sendo tal condição um indubitável fio condutor de violência letal. De acordo com o mesmo autor, 88% dos homicídios cometidos no Brasil ocorrem por meio de armas de fogo, obviamente não fugindo o Espírito Santo desse negativo rol. Sendo mais um elemento na cadeia causal da violência, a expansão do tráfico de drogas significou, necessariamente, o aumento das mortes violentas, instalando-se assim em um círculo vicioso: de recrutamento de pessoas de maior vulnerabilidade social, a morte decorrente da violência entre os grupos criminosos e os enfrentamentos com a polícia e o recidivo recrutamento, cada vez mais precoce, de novos agentes vulneráveis. Em nítida visão privilegiada de quem consegue vislumbrar o passado com o poder analítico do presente, vivenciado as devastadoras consequências, torna-se possível observar a sociedade capixaba sendo tragada por todas as variáveis até então 58 apresentadas neste trabalho. Do atraso ao desenvolvimento sem sustentabilidade social, passando pela epidemia da drogadição e a globalização do crime, torna-se mais fácil entender quais caminhos levaram o Espírito Santo ao topo das estatísticas criminais. Traduzindo essa realidade para a matemática estatística, dos 556 municípios com maiores taxas médias de homicídios no Brasil30, a Região Metropolitana da Grande Vitória, uma verdadeira hot spot do país, está representada pelo 4º lugar (Serra), 13º (Vitória), 17ª (Viana), 20 (Cariacica), 102º (Vila Velha), 207º (Guarapari), além de Fundão, a última cidade oficialmente inclusa na região ser, conforme o mesmo estudo, a 196º cidade com maior taxa de óbitos por arma de fogo no país. (Waizelfisz, 2010). Embora as multidisciplinariedade dos problemas que geram a violência seja um assunto conhecido, e embora não seja a Grande Vitória um centro urbano de grandes proporções, como a Grande São Paulo, por exemplo, de acordo o referenciado estudo, as taxas de homicídios no Espírito Santo permanecem bastante elevadas, e, diga-se de passagem, muito acima do padrão médio nacional. Sem prejuízo de outras possíveis e variáveis análises, os dados até então apresentados demonstram que a Grande Vitória, com destaque em relação às demais localidades brasileiras, com menores ou piores indicadores sociais, apresenta índices quase epidêmicos de assassinatos, problemática que comporta um estudo mais sofisticado, que inclua todos os elementos multicausais interferentes no processo. Nos ateremos no próximo ítem deste capítulo a uma retrospectiva da política de justiça criminal no Espírito Santo, a atuação policial e suas estratégias, ao enfoque das políticas públicas de segurança pública desenvolvidas nos dez últimos anos, ou mesmo a completa ausência de iniciativas por parte do poder público visando diminuir a violência. 30 Dados referentes ao número e taxas médias de Homicídio (em 100.000) na População Total dos Municípios. Brasil, 2003/2007. 59 4.2 A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA NO ESTADO E SEU CRESCIMENTO NA REGIÃO METROPOLITANA DE VITÓRIA Criadas e desenvolvidas as variáveis sociais e urbanas que influenciariam no aumento da criminalidade na Região Metropolitana da Grande Vitória, a claudicância política e administrativa dos governos que sucederam a volta do pluripartidarismo e o voto popular acabou sendo também incisiva na fragilização das estruturas públicas de controle e combate ao crime e a desordem. Nossa análise começa por Gerson Camata, passando por José Moraes (ViceGovernador), Max Freitas Mauro, Albuíno Cunha de Azeredo, Vítor Buaiz e José Ignácio Ferreira31. Governos que em maior ou menor escala registraram uma disputa político-partidária forte, que acabou levando a ausência de um consenso no interesse da sociedade, ou mesmo uma grande desorganização administrativa, quase sempre obliterando a discussão em torno da temática da insegurança. Dentre os problemas daí advindos, um dos mais nefastos acabou sendo a indevida interferência e mistura de atribuições entre os poderes executivo, legislativo e judiciário no Espírito Santo, sobretudo na década de 1990, contrariando o célebre princípio da separação dos poderes, já muito bem explicitado por Montesquieu (1993, p. 169): Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse unido ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse unido ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. Ilustração importante desse contexto fático em terras capixabas foi trazida pela Revista Veja, sob o título ―A foto de Velloso, Collor e Ibsen‖32: Na terça-feira passada, a CPI do Narcotráfico tomava o depoimento do delegado Francisco Badenes, da Polícia Civil 31 Governadores do Espírito Santo entre 1983 e 2002, respectivamente. Disponível em http://www.es.gov.br/site/espirito_santo/governadores_estado.aspx. 32 Netto. Vladimir. ―A foto de Velloso, Collor e Ibsen. Edição nº 1633, de 26/01/2000, pag. 43. 60 do Espírito Santo. O policial falava havia quarenta minutos sobre suas investigações em torno do narcotráfico no Estado, quando o deputado Fernando Ferro (PT-PE) o interrompeu para formular a pergunta mais espantosa feita nesta CPI. Ferro queria saber se a amizade entre o presidente do Supremo Tribunal Federal, Carlos Velloso, e o presidente da Assembléia Legislativa do Espírito Santo, José Carlos Gratz, apontado como um dos possíveis líderes do crime organizado no Estado, não estaria comprometendo a isenção do ministro do STF em decisões recentes que havia tomado. Na semana anterior, Velloso concedera seis liminares suspendendo a decisão da CPI de quebrar o sigilo bancário, fiscal e telefônico de capixabas investigados pela CPI. Uma das liminares beneficiou a sobrinha de José Gratz. "Considero o ministro Velloso suspeito para conceder esse tipo de liminar", afirmou Fernando Ferro, durante a introdução a sua pergunta. A resposta de Badenes: "Não o conheço, nunca o investiguei. Porém, ele vive no Espírito Santo. Passou o réveillon no Espírito Santo. Nós temos fotografias dele abraçado com essa turma. Agora, se ele não se dá por impedido, não cabe a mim analisar isso". Com um poder legislativo hiperventilado, não realizando de forma efetiva sua natural atribuição de fiscalização e proposição de leis, mas sim governando de forma indireta, mantendo os gestores públicos reféns em suas decisões, o enfraquecimento do poder executivo, que perdurou até o final de 2002, pareceu refletir também em um perigoso elastério e conformismo com os índices criminais. Com isso, provocou-se um subdimensionamento e até mesmo uma proposital inércia com a elevação dos índices criminais. Dessa forma, o poder público capixaba, como ressalta Silva (2010, p. 33) ―mais precisamente, as instituições do poder político estadual – Executivo, Legislativo e Judiciário – foi capturado, nos anos 90, pelas frações mais arcaicas e conservadoras do poder político‖. Com isso, a agenda política estadual esteve dominada pelas práticas do favoritismo, clientelismo, personalismo político e naturalização da corrupção, gerando crises recorrentes de governo. Acresça-se a isso, como mais um fator dificultador, a intensa imersão do Brasil, por conseguinte dos capixabas, em todas as naturais condições e traços característicos das sociedades complexas do início do século XXI, individualismo, competição, fragmentação das relações e a criminalidade (Bauman, 2001), misturando-se assim a leniência com o crime e a negativa complexificação do convívio social. 61 Exemplo nacionalmente conhecido, a Scuderie Detetive Le Coqc33, formada por magistrados, policiais civis e militares, promotores de justiça, advogados, bem como empresários e representantes de outros segmentos da sociedade, acabou transformando-se no símbolo dessa espécie de leniência com a criminalidade no Espírito Santo, até ser extinta por decisão da Justiça Federal. Vários crimes acabaram sendo atribuídos a integrantes da chamada Scuderie Detetive Coqc, ou simplesmente Le Coqc. Adesivos com a respectiva numeração de seus integrantes eram colados nos vidros dos veículos, ou chaveiros com sua simbologia permaneciam à mostra nas roupas, funcionando tais adereços como uma espécie de passaporte para o não cumprimento das normas oficiais, ou como demonstração de penetração nos vários órgãos públicos, e, consequentemente, de força e intimidação. Confirmando a força de seus integrantes junto aos poderes constituídos, Zanotelli (2001, p. 117) assim registra: em operação policial realizada em 1993 na sede da Le Coqc, foram apreendidas fichas de integrantes pertencentes a 35 advogados, 21 delegados de polícia, 90 policiais civis, 91 policiais militares, 01 juiz, 01 promotor de justiça, policiais rodoviários federais, fiscais da receita estadual, 02 deputados estaduais, Conselheiro do Tribunal de Contas, além de empresários, fazendeiros, comerciantes, entre outros. Ou seja, inserida em todos os gabinetes públicos, membros dessa associação podiam ao mesmo tempo exercer todas as funções do Estado, que de tripartite, podia tornar-se uno, em razão do caráter de auxílio mútuo entre os associados, termo que escondia o aparelhamento do Estado por seus integrantes. 33 Scuderie Le Cocq ou Esquadrão Le Quocq foi uma associação de policiais, registrada oficialmente, que praticava de forma não-oficial atos de grupo paramilitar e de extermíno. O grupo foi criado no Rio de Janeiro por volta de 1965, tendo atuado nas decadas de 60, 70, 80 e começo de 90. A Scuderie Le Cocq foi criada para vingar a morte do famoso detetive de polícia do Estado do Rio de Janeiro (então Distrito Federal), Milton Le Cocq que foi morto em serviço por um conhecido marinal da década de 60 da Favela do Esqueleto, o bandido Manuel Moreira mais conhecido vulgarmente como "cara de cavalo". Disponível em: http://wikipedia.org/lecoqc. Acesso em 19/04/2011. 62 Sendo oficial e definitivamente extinta somente em 2004, os longos anos de atividade da Scuderie Detetive Le Coqc significaram muito mais do que os inúmeros crimes atribuídos a seus integrantes. Além do sentimento coletivo e abstrato de impunidade, isso uma consequência direta da leniência e da mistura crime versus Estado, fomentado também estava uma ampla noção de inação e complacência do poder público capixaba para com o crime. A impunidade, mesmo em seu sentido abstrato, ou seja, na construção de um imaginário geral de que a lei podia ser violada sem que as necessárias consequências ocorressem, foi também maximizada nesse período. O notório envolvimento de autoridades públicas em crimes de grande repercussão, aliado a ausência de um efetivo e rápido julgamento, acabava incentivando a errática noção de que ―o crime compensa‖, funcionando assim como uma espécie de locomotiva da violência. Revelando um pouco mais sobre essa temática, visando um desenho mais nítido do quadro capixaba, vê-se que tal fenômeno possui traços históricos no Brasil. A distinção entre a casa, a rua e o trabalho (Da Matta, 1986) explica as raízes antropológicas desse fenômeno, sendo a rua o espaço onde a lei iguala as pessoas, devendo ser a todos aplicada, muito embora a cultura reserve ao trabalho a condição de castigo, sofrimento, ganhando força a figura do ―malandro‖, que consegue ganhar mais se esforçando menos do que os outros. Ou seja, não cumprir as regras, ou burlar o sistema, desde cedo passa ser sinônimo de inteligência, destemor, e inclusive de aceitação social. É o famoso jeitinho brasileiro, que advém das contradições entre as leis, que devem ser cumpridas por todos, e o salve-se quem puder oriundo do individualismo das pessoas que utilizam suas relações pessoas para saltar os obstáculos legais que as separam de suas vontades. Tudo isso resumido no famoso bordão: Você sabe com quem está falando? (Da Matta, 1986, pag. 64). Dessa forma, a frase ―rouba, mas faz‖, que de certa forma sempre esteve presente na administração pública como uma forma de tolerância à rapinagem e a improbidade, conquanto tenha sido celebrizada qualificar a trajetória do político 63 paulista Adhemar de Barros34, acabou incorporando-se no léxico político brasileiro, fortalecendo a noção de ser plenamente normal, e até aceita, desde de que feitos, sobretudo grandes e faraônicas obras, fossem demonstrados pelo governante. Torna-se ainda mais aguda a constatação de que a impunidade é uma realidade no Brasil, quando desvelada não somente no campo político, mas também criminal. Nesse sentido, a impunidade está delineada como a desistência da aplicação da lei penal para os crimes reportados à polícia ou ao sistema judicial (Dahrendorf, 1987). Ou seja, por fatores diversos, como a falta de estrutura e de modernização do modelo investigativo, ainda extremamente dependente do retrógrado e ineficiente inquérito policial, grande parte dos autores de crimes acabam não sendo responsabilizados, gerando assim uma sensação crônica de insegurança. Apenas para exemplificar a erosão social provocada pela impunidade, Azevedo (2008), relata que no Rio Grande do Sul, cuja taxa de elucidação de delitos está entre as melhores do país – o que nos proporciona bom padrão de comparação com o Espírito Santo, conforme dados disponibilizados pela Secretaria de Segurança local, referentes a 2007, do total de inquéritos iniciados 55% são finalizados e remetidos ao Ministério Público. Destes, apenas 15% dão origem à chamada denúncia e são remetidos ao Poder Judiciário, não significando isso, necessariamente, em razão da complexidade e da morosidade do sistema, a efetiva condenação e aplicação da respectiva pena aos culpados. Sem ampliar muito a questão, o que possivelmente desencadearia resultados ainda piores, e verificando apenas o início da chamada persecução criminal, ou seja, a lavratura do boletim de ocorrência policial e a instauração do inquérito policial 35, peça inquisitiva que inicia, de fato, a apuração do crime, Adorno e Passinato (2010, 34 Ademar Pereira de Barros – Ex-Governador de São Paulo, e influente político brasileiro entre as décadas de 1930 e 1960. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ademar_Pereira_de_Barros 35 Segundo levantamento do Conselho Nacional do Ministério Público, o Espírito Santo é, em 2011, a terceira Unidade da Federação com mais inquéritos policiais referentes a homicídios sem conclusão (11.610), perdendo apenas para o Rio de Janeiro e Minas Gerais, respectivamente. O estudo se refere aos inquéritos instaurados a partir de 31 de dezembro de 2007. Disponível em: http://aplicativos.cnmp.gov.br/inqueritometro/#. Acesso em 09 de maio de 2011. 64 p.63), estudando a atuação de uma Delegacia de Polícia de São Paulo, assinalam o seguinte: Para o conjunto de crimes e ocorrências não criminais observado, foram localizados 344.767 Boletins de Ocorrência Policial registrados em 16 delegacias que compõem a 3ª Seccional de Polícia Civil. Este número corresponde a 57,2% de todas as ocorrências registradas nestas delegacias. No mesmo período e para os mesmos crimes e ocorrências foram instaurados 21.886 inquéritos policiais, o mesmo que 28,69% do total. Não possuindo a etapa inicial de apuração criminal sequer parâmetro de resolutividade ao menos regular, demonstrando possivelmente um padrão em quase todas as delegacias brasileiras, o decurso processual segue comprometido. Após a conclusão do inquérito policial, com a obrigatória manifestação do Ministério Público e da defesa, com observância de todos os princípios legais, para somente depois a lavratura da sentença, nesse verdadeiro funil provocado pelas incoerências do sistema de justiça criminal parte esmagadora dos crimes certamente acabam não sendo punidos. De forma que, no somatório das condicionantes da criminalidade no Espírito Santo, visto como uma parte das também inúmeras contradições que permeiam o Brasil, e em razão dos entraves dispostos nos campos da política, economia, da administração pública e da inadequação policial aos novos patamares constitucionais, criados estavam os impedimentos para a implementação ou a efetivação no tempo, de políticas públicas para a segurança pública. Em janeiro de 2003 Paulo César Hartung Gomes36 assumiu o Governo do Espírito Santo. Seu governo teve como bandeira política maior a reorganização administrativa e o combate ao crime organizado, dada à constatação pública de que agentes políticos, detentores de cargos públicos, estariam utilizando a máquina estatal para o cometimento de crimes. 36 Governador do Espírito Santo http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Hartung. entre 2003 e 2010. Disponível em 65 Após um longo período de claudicância política, com greves em vários setores, pagamentos de servidores em atraso, bem como fortes escândalos políticos, o chamado ―Novo Espírito Santo‖, tema publicitário que acompanhou quase todo o período, buscava externar a imagem de que uma positiva mudança em todos os setores governamentais iria ocorrer, inclusive na área da segurança pública. Durante os dois períodos do Governador Paulo Hartung, disseminou-se a idéia geral de que as condições de governança pública, bem como as sociais, haviam melhorado de forma sensível, como assim defende Vescovi (2010, p. 09): O progresso observado no Espírito Santo durante os últimos dois períodos de governo é notório e contundente. O estado saiu da 8ª para a 4ª posição na economia nacional, entre os estados da federação com maior renda per capita. Reduziu à metade a incidência de pobreza, como conseqüência do aumento da renda domiciliar per capita e de redução da desigualdade. Em 2010, mais da metade dos capixabas já estava inserida na classe média, compondo um mercado consumidor ativo, com aceso a crédito, bens de consumo duráveis e, mais importante, com acesso ao mercado de trabalho em franca expansão. Em particular, o movimento dos últimos oito anos acelerou a convergência da renda estadual para os patamares dos estados mais desenvolvidos do País, e contribuiu para compensar o desenvolvimento tardio do Espírito Santo desde o processo de colonização do solo brasileiro. Consolidou, assim, uma terceira onda de crescimento, após 100 anos de predominância da monocultura cafeeira, e após a industrialização concentradora dos anos 70 e 80. Para os observadores pouco atentos, este seria mais um ciclo caracterizado pela expansão dos negócios nas áreas dos grandes projetos em cujo rol agora se inclui o petróleo e o gás. Mas, uma observação mais atenta do processo revela que o estado vem conquistando um desenvolvimento institucional que o destaca entre os demais estados da federação e que poderá engendrar conquistas importantes para as gerações subsequentes. Por certo que importantes indicadores sociais apresentaram importante melhora, a exemplo da pobreza, pesquisada pelo Instituto Jones dos Santos Neves37, que entre 2001 e 2007 teve reduzida sua taxa de no Espírito Santo em 47,3%, média maior do que a apresentada pelo país, na ordem de 30,7%, saltando o Estado do 9º para o 3º lugar nacional de menor taxa de pobreza. 37 Instituto Jones dos Santos Neves. Síntese dos Indicadores Sociais do Espírito Santo. Vitória; 2009. 66 O mesmo ocorreu com a desigualdade, que de acordo com o chamado coeficiente de Gini, que mede o grau de concentração de renda na economia, que segundo a pesquisa acima referenciada obteve declínio de 5,5% no Espírito Santo, entre 2003 e 2007, sendo a queda no país, no mesmo período, de 4,9%. Além disso, a própria avaliação da atuação do Governo demonstra a satisfação da população com as políticas públicas em geral. Conforme pesquisa realizada pelo Instituto Ibope38, publicada em 29 de julho de 2010, 81% dos capixabas aprovaram a maneira pela qual o então Governador Paulo Hartung administrava o Estado, tornando-o um dos políticos mais credíveis e influentes da história política capixaba. Entretanto, apesar do declarado apoio societal às iniciativas governamentais, a mesma pesquisa revelou que dentre as três áreas que apresentaram menos avanços positivos entre 2006 e 2010, se enquadra a segurança, com 37%, deixando transparecer que os rumos tomados nesse setor acabaram por não repetir as conquistas e os avanços mais recentes. Na sequência dos acontecimentos, com a propagação do choque ético, termo muito utilizado e previsto no Plano de Metas ―Espírito Santo 20-25‖ (2006, p. 36), planejamento estratégico do Governo do Estado que buscou constatar as condições sociais, econômicas e políticas do Espírito Santo, projetando um cenário ideal para 2025, definiu-se como meta da administração estadual a diminuição da taxa de homicídios até o patamar de 10 mortes por cem mil habitantes até 2025. Certamente um alvo ousado e muito longínquo em relação aos dados finais da gestão, em dezembro de 2010. Muito embora o desempenho e a marca pessoal de Paulo Hartung 39 tenham caracterizado uma impressão muito forte, o combate ao crime organizado pareceu ao mesmo tempo confundir e nublar a visão relativa ao crime e a violência que 38 Ibope Inteligência. Pesquisa de Opinião Pública sobre Assuntos Políticos/Administrativos. Espírito Santo. Julho de 2010. 39 Paulo César Hartung Gomes deixou o governo em 01/01/2011, passando a administração estadual para José Renato Casagrande na mesma data. 67 vitimiza o cidadão de forma mais direta, com delitos que ocorrem nos bastidores do poder, mas sim nas esquinas das periferias. Assim, engendrando a idéia de que o ―novo‖ permeava todas as áreas de atuação pública, a melhoria do desempenho da máquina de governo passou a erigir a percepção geral de que o histórico ciclo de políticas públicas ausentes ou equivocadas na segurança pública havia se encerrado, ofertando assim à sociedade a noção de avanço também na segurança pública. Tal informação se revela como equivocada quando analisada sob a ótica das pesquisas de vitimização no Espírito Santo, relativas aos primeiros dez anos deste novo milênio. Tais estudos demonstram que, de forma diametralmente oposta ao que se poderia imaginar, a melhoria nos indicadores sócio-econômicos não necessariamente significou a diminuição dos índices de assassinatos. Contrário disso, a curva criminal no que pertine aos homicídios na Região Metropolitana da Grande Vitória se manteve ora estabilizada, ora tendendo ao aumento, conforme o quadro demonstrativo abaixo: Quadro 01: Média de homicídios (por 100.000 hab) na Região Metropolitana de Vitória - 1998-2008 Ano Média % 1998 95,9 1999 86,6 2000 73,6 2001 72,8 2002 81,0 2003 78,4 2004 79,5 2005 71,5 2006 77,7 2007 78,4 2008 80,2 Fonte: WAIZELFISZ, Júlio Jacobo. Mapa da Violência 2011. Os jovens do Brasil. 1ª ed. São Paulo. 68 Na confirmação desse limiar, mais uma vez utilizando apenas os índices relativos aos homicídios, em nítida tentativa de desvio dos bancos de dados não muito confiáveis ou mesmo desatualizados, de acordo com as pesquisas apresentadas a taxa de homicídios no Espírito Santo manteve-se muito alta. A título de exemplo, em 2008 a Grande Vitória apresentou a maior taxa dentre as outras Regiões Metropolitanas pesquisadas40, demonstrando assim que a política pública de segurança capixaba do novo milênio não evoluiu a ponto de contrastar com os péssimos resultados das décadas anteriores, a partir de 1980. Dentre as possíveis causas para essa visível contradição, o desenvolvimento econômico e social ladeado de taxas criminais em patamar elevado, tem-se como perceptível uma confusão de conceitos – e consequentemente de ações, relativas ao crime organizado. A macrocriminalidade e a microcriminalidade, temáticas as quais, mesmo não aprofundadas, em razão do elevado risco de fuga do objeto principal deste estudo, são importantes para a compreensão da ação do Estado capixaba em face da violência na última década. Das muitas definições acerca do crime organizado, uma redundância de conceitos acaba nos remetendo a uma das mais importantes características do fenômeno, qual seja, a simbiose estabelecida entre os agentes criminosos e os agentes estatais. (Mingardi, 1996, p. 69). Dessa forma, a inserção de pessoas detentoras de cargos eletivos, membros do poder judiciário ou do poder executivo, dentre seus vários Órgãos, em quadrilhas organizadas para o desvio de recursos ou da finalidade pública do Estado, define de forma simples, porém objetiva, o crime organizado. Nesse mesmo ângulo é bem explicativa a abordagem de Naím (2006, p. 13): (...) as redes criminosas frequentemente constituem o capital investido mais poderoso que confronta o governo. Em alguns países, seus recursos e capacidades até mesmo superam aqueles dos governos. Essas capacidades traduzem-se em 40 Fazendo referência a 2008, o estudo apresentou dados relativos as taxas de homicídios nas seguintes Regiões Metropolitanas: Belém, Belo Horizonte, Curitiba, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo, além de Vitória. 69 geral em influência política. Os traficantes e seus sócios controlam os partidos políticos, dominam importantes meios de comunicação e são os maiores filantropos por trás de organizações não-governamentais. A definição do crime organizado está muito próxima e umbilicalmente ligada a macrocriminalidade, a qual é realizada em forma de blocos, ou seja, como mais um dos muitos resultados da globalização, onde o crime deixa de ter fronteiras, passando a funcionar como uma espécie de malha ininterrupta de criminalidade. Sendo o combate ao crime organizado, e, consequentemente, a macrocriminalidade, uma das prioridades da agenda estadual entre 2002 e 2010, dentre as conseqüências mais visíveis dessa política que privilegiou a ação contra agentes públicos e privados, destaca-se que, para a sociedade, a simbolização de enfrentamento desse poder paralelo acabou permitindo que a microcriminalidade acabasse sendo paulatinamente esquecida, ou desprivilegiada nesse processo. Contrariamente ao que se pode imaginar, não se trata a microcriminalidade de fenômeno que deve ser desprezado. Na idéia explicitada por Silva (1980), por se configurar eminentemente à base de crimes episódicos, indicativos de criminalidade em pequena escala, conquanto lhes sejam atribuídas pelas duras pelo legislador, tais acontecimentos acabam sendo preponderantes na elevação das estatísticas criminais, e, consequentemente, no aumento da sensação de insegurança da sociedade. Tal premissa é explicável sob o aspecto de que as ações governamentais contra o crime organizado e a macrocriminalidade, muito embora de extrema relevância, acabam não demonstrando eficácia direta ou resultados mais paupáveis junto aos cidadãos em geral. Sobretudo nas periferias, cujos moradores estão mais desprotegidos e desassistidos pelo poder público, vitimados pela ação direta dessa criminalidade desordenada, que mesmo estando extremamente longínqua da organização das grandes quadrilhas, se apresenta tão violenta quanto. A compreensão dessa dinâmica é importante para desvelar a direção tomada pelo Espírito Santo. Sobretudo a partir do ano de 2002, quando o Estado passou a 70 centralizar seus mais bem elaborados projetos e esforços em sentido contrário a uma política de segurança pública que pudesse compatibilizar o rearranjo da máquina administrativa com a modernização do sistema de segurança pública, preparando-o para a ação amadora, conquanto violenta, dos criminosos não presentes em elevados cargos públicos, mas sim vizinhos, integrantes e filhos do desordenamento social, econômico e urbano do Estado e de sua região metropolitana. Não se observando a identificação de uma queda consistente, ou mesmo progressiva das mortes, ficou clarificada a visão de uma estabilização dos índices de mortes em um padrão elevadíssimo se comparado a outras Regiões Metropolitanas, as quais pela magnitude dos problemas – em razão do elevado quociente populacional, levariam um observador menos atento a apontar como objetivamente mais violentas41. Tendo essa política de segurança pública ora privilegiado ações junto à macrocriminalidade, ora agido de forma muito tradicional – e, portanto, repetitiva em relação ao padrão secular, o discurso e a prática governamental do período acabou reprisando as ações e iniciativas de uma cruzada contra o crime, mais uma vez com resultados negativos. Exceção à regra, na história do Espírito Santo, nas décadas de 1990 e 2000, observam-se apenas pontuais iniciativas de políticas públicas de segurança diferenciadas, no sentido da tentativa de fuga do tradicionalismo que insiste na equação crime versus repressão. Não obstante, o simultâneo efeito do rearranjo que privilegiou as políticas de reorganização da máquina administrativa, com o resgate da desgastada imagem do Espírito Santo perante a opinião pública local e nacional42, foi à manutenção do mesmo status de atuação policial, tradicionalmente repressiva. 41 Refere-se apenas as estatísticas relativas aos homicídios. 42 O sucesso da administração de Paulo Hartung foi destaque na Revista Veja, em 2010, sob o título ―Boa Gestão também rende votos‖, com destaque para o progresso na área econômica. Edição 2179, pag. 79. 71 A morte do Juiz Alexandre Martins de Castro Filho, em março de 2003, acabou fortalecendo ainda mais a diretriz de que o combate ao crime organizado, termo pelo qual, daí em diante, seriam denominados de forma genérica todos os acusados por crimes de maior repercussão no Estado, marcaria de forma muito profunda o pensamento das autoridades responsáveis pela política de segurança pública capixaba. Com o envolvimento de jovens moradores de uma periferia violenta da Região Metropolitana, policiais militares, policial civil e até integrante do Poder Judiciário tiveram envolvimento no crime que vitimou o Magistrado, isso conforme acusação do Ministério Público do ES e decisões posteriores do Poder Judiciário43. Dessa forma, confirmado estava no imaginário coletivo à certeza de que o maior dos problemas para o capixaba era, de fato, o crime entranhado na máquina pública, sendo agora uma necessidade primordial e prioritárias ações nesse vetor, equívoco registrado pelas elevadas taxas de homicídios do período. Apresentando agora, para fins didáticos deste estudo, a terceira fase estatística44 da taxa de homicídios na Região Metropolitana de Vitória45, torna-se mais fácil vislumbrar tal estado de coisas, com dados de 2009 e 2010 e que apresentam uma média de 80,2% em 2009, com uma queda para 70,41% em 2010. Como já delineado neste trabalho, engendrada durante o Império e plenamente aceita e até mesmo aperfeiçoada na República, a utilização de práticas policiais metodologicamente repressivas acabou também sendo também copiada no Espírito 43 Odessi Martins da Silva e Gilliardi Ferreira foram julgados e condenados a 25 anos e 02 meses de reclusão em regime fechado, e 4 anos e 06 meses de reclusão e setenta dias multa, regime de pena fechado, respectivamente. Outros envolvidos foram condenados ou estão em grau de recurso em instâncias judiciais superiores. Disponível em http://www.tj.es.gov.br/consulta/cfmx/portal/Novo/desc_proces.cfm. Acesso em 10/06/2011. 44 Fonte: Instituto Jones dos Santos Neves – Informações Criminais Espírito Santo – Boletim 02. 2010. P. 23. 45 Os dados apresentados tem fonte diversa das informações anteriormente descritas, vez que o Mapa da Criminalidade 2011, estudo até então utilizado, não possui informações que compreendem os anos de 2009 e 2010. Tal aspecto prejudica uma análise mais exata quanto à evolução, ou não, da taxa de homicídios na Região Metropolitana da Grande Vitória, até mesmo em virtude de possíveis critérios 72 Santo durante quase toda a primeira década do novo milênio, em um movimento retrógrado, contrário às ações modernas das políticas de segurança. Visando conjuntamente delimitar o estudo, em razão da vastidão de possibilidades, bem como exemplificar, de modo claro, o alertado continuísmo metodológico repressivo, paradoxal diante da notável modernização administrativa, buscamos nesse sentido definir e contextualizar três práticas anacrônicas, ou modus operandi – como se define no jargão policial, secularmente inseridas na cultura policial brasileira: as blitzens, as abordagens indiscriminadas às pessoas e operações policiais nos bairros periféricos. De acordo com Lopez Rey (1978, p. 42, 45), são cinco os elementos condicionadores da criminalidade: o poder, o desenvolvimento, a desigualdade, a condição humana e o sistema penal. Nos aspectos particulares e peculiares deste trabalho, importante agora uma melhor exposição das questões que envolvem o sistema penal capixaba. Nos moldes do que também leciona o autor antes citado, argumentando que em sociedades democráticas, quanto mais um sistema discrimine pessoas ou grupos em função de classe, raça, ou origem social, mais ele condicionará o aumento do crime e da violência, criando assim uma espécie de círculo vicioso, ou um labirinto cuja saída cada vez torna-se mais intrincada. (Lopez Rey, 1978). Blitzkrieg46, ou simplesmente ―blitz‖, esta como uma forma de expressão usada pelo brasileiro, é mais um derivativo do modal repressivo e desatualizado de enfrentamento da criminalidade, trazendo consigo além das deficiências conceituais no campo da prevenção, um enorme lastro de preconceito e marginalização. Programada originalmente para conceder mais visibilidade à polícia, bem como, de forma aleatória e amplamente discricionária, promover a abordagem e a eventual 46 O Blitzkrieg (termo alemão para guerra-relâmpago) foi uma doutrina militar a nível operacional que consistia em utilizar forças móveis em ataques rápidos e de surpresa, com o intuito de evitar que as forças inimigas tivessem tempo de organizar a defesa. Seus três elementos essenciais eram a o efeito surpresa, a rapidez da manobra e a brutalidade do ataque, e seus objetivos principais eram: a desmoralização do inimigo e a desorganização de suas forças (paralisando seus centros de controle). Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Blitzkrieg. Acesso em 09/04/2011. 73 prisão de infratores, a blitzen acabou tornando-se prática corriqueira em todo o país, sendo uma ação policial eminentemente passageira e quase complemente repressiva, e por isso incapaz de gerar qualquer tipo de conexão entre as autoridades e a sociedade local. Essas operações que acabam sendo rotina em todo o Brasil, normalmente são denominadas com termos chamativos à mídia, como, por exemplo, ―operação limpeza, ou segurança total‖. Consistem basicamente em técnicas de aproximação de uma pessoa, ou pessoas, quer sejam transeuntes ou em veículos, as quais emanam indícios de suspeição, ou que tenham praticado ou estejam na iminência de praticar ilícitos penais.47 Não reside à problemática nas operações em si. Tais ações derivam do poder de polícia, mas não impedem a ponderação de direitos que no Brasil estão constitucionalmente garantidos à universalidade das pessoas, como a dignidade da pessoa humana, locomoção, presunção da inocência, já que esses atos de polícia podem causar constrangimentos, limitação de liberdade e pré-julgamentos. (Boni, p. 651). O significado conceitual em muito perde para a prática desse tipo de iniciativa, que além de ineficaz sob o ponto de vista da redução da criminalidade, como se poderá verificar pelas estatísticas oficiais do Espírito Santo adiante apresentadas, acaba mais uma vez reproduzindo o mesmo contexto militarista, guerreiro e excludente já mais do que bicentenário nesse início de milênio. No exame que podemos chamar de mais etnográfico, e por isso muito mais real, Thompson (1998, p. 65, 66, 67), descreve tais operações: ―Consiste a diligência basicamente no cerco completo a uma área densamente povoada. Obturadas todas as possíveis saídas, impedem-se os moradores de se retirar do local até o término da expedição, a qual foi planejada com todos os requintes dos manuais de estratégia bélica, a contar com a participação das polícias militar e civil, grande número de viaturas, um arsenal por armamento, sofisticado sistema de comunicações. Isolado o gueto com a ―força de intervenção‖, 47 Polícia Militar do Espírito Santo. Manual de Instrução Modular. 5ª ed. 1999. P. 111. 74 invade barracos, passando a revista de tudo, coisas e indivíduos, exigindo documentos comprovadores de ocupação lícita [...] a ninguém ocorreria empregar o mesmo método de choque nas zonas residenciais das classes média e alta‖. Soma-se a isso o fato de que a questão da discricionariedade da ação policial, ou seja, dos limites da decisão que obrigatoriamente deve ser motivada, tendo como base a chamada fundada suspeita48 para a realização de qualquer procedimento, acaba se tornando muito nebulosa nessas operações policiais, que em virtude da ausência de critérios e delimitações conceituais, permitem ao agente do Estado simplesmente decidir, in loco e por si só, quem, onde, como e porque atuará. Caruso (2004, p. 16) em pesquisa que transcreveu entrevista com policiais cariocas, demonstra muito bem a amplitude do poder que o policial detém nas ruas, dentro de seu aberto rol de decisões muitas vezes extralegais: ―na prática tem muita diversidade, viu? não dá para você ficar, ah faz isso porque está escrito no manual, é você na hora que vai decidir. Você é o Juiz, você é o advogado, ou você condena, ou libera. Ou executa ou libera, ou prende ou solta, você na boa, você que vai determinar, você e teu companheiro‖. (Sargento, 19 anos na PMERJ) Aplicadas de forma desmesurada, as abordagens aleatórias acabam motivando uma espécie de violência oficial, que diante do descontrole dos índices criminais se transforma em um instrumento automático das autoridades país afora. Isso como forma de tentar ofertar à sociedade alguma resposta, mesmo que equivocada e muito mais afeta ao estilo hollywoodiano, e por isso ficcional e improdutivo, do que a realidade local, que obriga a efetivação de políticas públicas responsáveis e continuadas. 48 Determinam os artigos 240 § 2º do Decreto Lei nº 6.389/40, o Código de Processo Penal, e 244 do mesmo diploma legal, que ―proceder-se-á à busca pessoal quando houver fundada suspeita de que alguém oculte consigo arma proibida ou objetos (...)‖ e ―a busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar‖. BRASIL. Decreto Lei nº 3.689 de 03 de outubro de 1941. Dispõe sobre o Processo Penal no Brasil. Rio de Janeiro – RJ. 75 Dentre outros autores, Ramos e Musumeci (2005, p. 53), definem a abordagem policial como ―situações peculiares de encontro entre polícia e população, em princípio não relacionadas ao contexto criminal‖. Portanto, a abordagem, quer estejam às pessoas em seus veículos, recebendo ordens para a vistoria geral (eis a blitzen), ou mesmo na qualidade de transeuntes, representa uma forma de relacionamento entre as agências policiais e as pessoas. Não se defende aqui o completo descarte desse tipo de atuação, que de fato pode abranger objetivos preventivos – como a prisão de alguém que cogitava cometer um crime na próxima esquina, mas que adotada de forma exagerada ou como integrante das poucas escolhas que o universo político-repressivo possui, acaba gerando efeito diverso ao pretendido: torna a ação do Estado tanto repetitiva quanto ineficaz e, por vezes, arbitrária, em razão da existência de poucos mecanismos de controle. Muito sujeitos a uma cultura própria, que muitas vezes acaba distorcendo ou ignorando o processo de mudança constante pelo qual toda sociedade passa, as abordagens sem critérios ou as blitzen inopinadas acabam se tornado momentos mais do que propícios para que tais contradições aflorem. As pesquisas de Muniz, (1999, p. 15), tornam claras esses desencontros, apontando na direção da existência de um grande abismo ―entre o prescrito e o praticado‖, traduzindo como uma singularidade do saber policial o bordão ―na prática a teoria é outra‖. Ainda nesse mesmo raciocínio, a mesma autoria disserta sobre o desencontro entre os ensinamentos teóricos e a ação dos policiais in loco. Nas ruas, muitas vezes a letra da lei acaba não conseguindo se encaixar nas ações, produzindo assim improvisações que acabam sendo moralmente validadas, com a consequente renúncia aos princípios teóricos e legais. Ou seja, na prática, os manuais e as aulas teóricas tornam-se instrumentos frágeis diante de uma realidade cultural muito mais forte, sendo essa atuação que já classificamos como aleatória e até mesmo caótica, terreno fértil para a reprodução 76 de paradigmas que desde muito se tornaram ineficientes diante da criminalidade moderna. Perversamente, esse sistema acaba sempre sendo realimentado, na medida em que os novos recrutas – termo usado para qualificar os policiais militares ingressantes nas policiais militares, ou mesmo os policiais civis, que a despeito de suas definidas atribuições constitucionais49, delimitadas para o âmbito da investigação, também se paramentam com roupagem e adereços tipicamente militares, acabam sendo facilmente contaminados por essa visão paradigmática, e por assim dizer, reducionista. Transportando para este estudo as idéias de Morin (2008), em seus escritos acerca da complexidade, podemos conceber que o saber policial reiteradas vezes reproduzido acaba fugindo ao que o estudioso em comento delineia como o desafio da complexidade. Ou seja, ao invés de considerar a repetição em série como um produto da ausência de novas propostas e métodos, sendo isso um desafio à motivação de pensar, e, consequentemente, ampliar o rol de soluções, a procura por novos mundos no campo policial quase sempre transparece mirar na obscuridade, tornando-se negativa. Diante disso, a necessidade de encarar a temática da criminalidade de modo diferente passa por considerar uma alteração nesse cartesianismo que não consegue levar em conta a complexidade dos problemas decorrentes, ou antecedentes da criminalidade, e que mantém a antiga lógica policial de tentar se fazer ao mesmo tempo presente e, consequentemente, ausente, em todos os lugares. Daí se afirmar que essa ilogicidade não os leva a ponto algum, exprimindo muito bem a visão ainda simplificativa acerca da temática historicamente reiterada no Espírito Santo. 49 Segundo o parágrafo 4º do artigo 144 da Constituição Federal de 1988, ―às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.‖ BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília – DF. Senado. 1988. 77 Entretanto, o discurso sedicioso sobre o crime, direito e sociedade no Brasil, trabalhando de forma conjunta com a exploração midiática e as fantasias políticas da "segurança-total", ironicamente partilhado pelas correntes políticas classificadas como de direita e esquerda, acabou reconectou a questão criminal e a questão social (Wacquant, 1999). Atuando na linha de que o crime deve ser enfrentando, tal discurso possibilitou a demonstração da força do Estado com base em lemas como ―guerra contra o crime‖, ou ―força total‖ da polícia em face dos eventuais criminosos, embora não gerando na Região da Grande Vitória os efeitos desejados. Os dados a seguir demonstrados se referem aos bairros períféricos onde as operações genericamente denominadas de blitz ou simplesmente abordagens diversas, foram realizadas pela Polícia Militar do Espírito Santo, conforme seus próprios registros: QUADRO II BAIRROS ATENDIDOS PELO PROGRAMA DE ENFRENTAMENTO DA CRIMINALIDADE NO ES Cidade CARIACICA SERRA VILA VELHA VITORIA Bairro 2005 CASTELO BRANCO 11 NOVA ROSA DA PENHA 24 CONJUNTO FEU ROSA 19 VILA NOVA DE COLARES 18 PRIMEIRO DE MAIO 4 SANTA RITA 15 TERRA VERMELHA 6 NOVA PALESTINA 1 RESISTENCIA 22 SANTO ANDRE 3 SANTOS REIS SAO PEDRO 11 Fonte: Geac/SESP 2006 2007 12 30 28 28 16 20 4 3 11 4 12 22 26 24 9 10 12 1 23 3 8 17 2008 14 32 30 25 3 17 7 2 12 7 1 13 2009 14 19 25 31 10 22 5 16 3 14 78 QUADRO III OPERAÇÕES DIVERSAS NOS BAIRROS ATENDIDOS PELO PROGRAMA DE ENFRENTAMENTO DA CRIMINALIDADE NO ES Cidade CARIACICA SERRA VILA VELHA VITORIA Bairro 2005 2006 CASTELO BRANCO 65 32 NOVA ROSA DA PENHA 78 90 FEU ROSA 58 73 VILA NOVA DE COLARES 15 69 PRIMEIRO DE MAIO 12 11 SANTA RITA 33 50 TERRA VERMELHA 63 91 NOVA PALESTINA 24 16 RESISTENCIA 47 36 SANTO ANDRE 4 3 SANTOS REIS SAO PEDRO 92 77 Fonte: Geac/SESP 2007 33 93 40 27 35 48 55 29 37 7 1 66 2008 2009 2010 19 62 69 57 24 106 40 16 33 6 46 217 112 159 52 175 97 26 105 10 140 332 211 218 98 138 140 52 233 31 71 195 507 QUADRO IV OPERAÇÕES (BLITZ) NOS BAIRROS ATENDIDOS PELO PROGRAMA DE ENFRENTAMENTO DA CRIMINALIDADE NO ES Cidade CARIACICA SERRA VILA VELHA VITORIA Bairro 2005 2006 CASTELO BRANCO 27 19 NOVA ROSA DA PENHA 42 43 FEU ROSA 22 47 VILA NOVA DE COLARES 4 61 PRIMEIRO DE MAIO 1 9 SANTA RITA 15 38 TERRA VERMELHA 36 81 NOVA PALESTINA 10 3 RESISTENCIA 9 13 SANTO ANDRE 1 SAO PEDRO 27 45 Fonte: Geac/SESP 2007 2008 2009 2010 4 7 9 15 2 5 28 1 3 5 22 2 3 53 103 7 10 3 9 42 3 2 2 8 32 3 36 6 1 2 1 12 15 16 90 6 281 Vê-se logo, de plano, que na interpretação dos dados apresentados não encontramos nenhuma correspondência entre o agir policial no sentido de reprimir o crime com base em abordagens aleatórias ou operações de repressão aleatória, com a diminuição na incidência de assassinatos, já que inclusive o número de mortes, de forma geral, se manteve ou aumentou durante os anos analisados. 79 Importante esclarecer que os referidos dados não conseguem revelar sequer uma parte da realidade policial. Como o já explicitado anteriormente neste estudo, esta realidade está completamente permeada pela discricionariedade, e o consequente não registro de todas as iniciativas, quer proativas ou repressivas, transparecendo, no entanto, até mesmo uma certa instabilidade nas iniciativas apelidadas como operacionais50, ora exorbitantes, ora quase oficialmente inexistentes. Contudo, a série histórica de mortes registradas e o constatando continuísmo de uma política pública que acabou por ratificar os paradigmas penalista e militarista (Da Silva, 2003), deixando em segundo plano a perspectiva societal, acabou não promovendo resultados significativos na diminuição da criminalidade letal na Grande Vitória. A rigor, o aumento do encarceramento, baseado na perspectiva de atuação do Estado com sua ―força total‖ contra a criminalidade, deveria provocar na sociedade a noção de que a sensação de segurança cresceria na mesma proporção do aumento do encarceramento, sendo isso certamente mais um fruto da exegese penalista e repressiva da ação policial. No entanto, não é essa a informação dada pela pesquisa realizada pelo Instituto Futura51, a qual aponta que dos 406 entrevistados nos Municípios da Região Metropolitana da Grande Vitória, 53,7% acham que o Espírito Santo está mais violento do que em 2009, 31,3% entendem que a condição da insegurança está no mesmo patamar e apenas 11,6% percebem a diminuição da violência. Sem a idéia prevencionista, que visa ações que antecedem o crime, o que resta ao Estado é apenas prender pessoas, o que provoca consequências extremamente danosas. De acordo com o Sistema Integrado de Informações Penitenciárias Infopen52, o Espírito Santo possui uma taxa de encarceramento (população 50 Termo empírico genericamente utilizado pelos policiais para designar o serviço nas ruas, mormente às atividades de repressão a criminalidade. 51Disponívelemhttp://www.furutanet.ws/upld/pesquisa/semanal/144/arquivo/R_CBN_AssaltoeMedo.p df. 52 BRASIL. Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário Nacional. 2010. 80 carcerária por 100.000 hab), de 309,79, só perdendo na Região Sudeste para São Paulo, o Estado mais rico da federação. Além dos custos sociais, muitas vezes irreversíveis, a política repressiva requer elevados encargos ao cidadão. Macaulay (2006, p. 17), explica com bastante densidade esse ponto: O custo médio para providenciar uma nova vaga na prisão é em torno de quinze mil reais e o custo mensal para manter essa pessoa na prisão é de, pelo menos, oitocentos reais. [...] Os custos indiretos são ainda mais alarmantes. Embora as prisões sejam instituições fechadas, elas são, não obstante, altamente permeáveis por causa do trânsito de internos, detentos, carcereiros, policiais e parentes. Por isso, a idéia de o problema do crime e da violência pode ser trancado atrás das grades é equivocada. A inocuidade desse tipo de premissa no controle da criminalidade é também comprovada em pesquisa realizada pelo INANUD (2005)53. Em suas conclusões o estudo confirma que a Lei de Crimes Hediondos54, sancionada em 1990, que a título de inibir o cometimento de crimes aumentou a pena de vários crimes, entre outras modificações no sentido do endurecimento penal, não surtiu o efeito desejado, não interferindo no quadro estatístico nacional, muito embora tenha causando efeito reverso ao pretendido, pois aumentando a população carcerária gerou outras formas de violência, como rebeliões, fugas, conflitos com a polícia, etc... Deixar de cumprir a lei é outro crime contra a sociedade, conquanto focar as ações policiais apenas no pólo combativo significa também permitir que o poder público permaneça fragilizado e combalido diante da recidiva criminal. Prender somente não resolve, ao contrário, agrava o problema. Adepto do direito penal máximo, que se consubstancia na defesa cada vez mais veemente de uma repressão policial e penal, e vê a na prisão a melhor forma de defesa da cidadania, ao invés da criação de uma política pública que privilegie a proação, o Espírito Santo 53 Instituto Latino Americano das Nações Unidas para prevenção do delito e tratamento delinquente. ILANUD. Relatório Final da Pesquisa: A Lei de Crimes Hediondos como instrumento política criminal. São Paulo, 2005. 54 BRASIL. Lei n° 8.072, de 25 de julho de 1990. Dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências. Diário Oficial [República Federativa do Brasil], Brasília, DF. do de do da 81 acabou fazendo ―mais do mesmo‖, ou seja, repetindo no período pósredemocratização, em 1988, o histórico padrão coercitivo no campo da segurança pública. Destarte, vistas as contradições e os drásticos resultados para a sociedade de um sistema policial que acabou por não evoluir diante das necessidades e anseios da sociedade, torna-se de solar clareza a necessidade de uma discussão que possa envolver o campo da comunitarização policial como forma de controle da criminalidade, no Brasil e em particular na Região Metropolitana da Grande Vitória, assunto que será tema de nosso último capítulo. 82 5 O FUTURO DE UMA ILUSÃO: A COMUNITARIZAÇÃO POLICIAL NO ESPÍRITO SANTO 5.1 VOTOS, ARMAS E PODER: DEMOCRACIA E SEGURANÇA PÚBLICA NO BRASIL E NO ESPÍRITO SANTO NO PÓS-1988. A década de 1980 se iniciava no Brasil sob a promessa de uma abertura política lenta e gradual, após o golpe que levou os militares ao poder em 31 de março de 1964. Durante o regime, contrariamente ao que fizeram outras ditaduras latino-americanas, os militares brasileiros sustentaram um pseudo-quadro institucional, baseado na eleição formal dos Presidentes pelo Congresso Nacional, assim como os Governadores pelas respectivas Assembleias Legislativas. O bipartidarismo compulsório55 representou uma espécie de diarquia: de um lado uma macroestrutura autoritária, fortalecida pelo poderia militar, do outro uma lacuna reservada para a manutenção e acomodação das forças civis tradicionais preexistentes. (Lamounier, 1994). Já sob a presidência do General Ernesto Gaisel, e depois concluída pelo General João Baptista Figueiredo de Oliveira 56, os militares prepararam a saída do poder dentro de uma estratégia que acabou denominada de ―distenção‖, como nos ensina Chauí e Nogueira (2007, p. 179): No vocabulário político daquela época, distinguia-se o ―sistema‖ e o ―regime‖: este era o governo; aquele, a estrutura do poder do Estado montada pela ditadura, cujo fundamento era a ideologia da segurança nacional (ou seja, o combate ao ―inimigo interno‖, portanto, a repressão ou o terror de Estado). A questão que se discutia, a partir, sobretudo, de 1974, era se havia uma crise de legitimidade do ―sistema‖ e se essa crise abriria um vazio de poder. Essa discussão era inseparável da idéia desenvolvida pelo general Golbery do Couto e Silva e posta em prática pelo general-presidente Ernesto Geisel, da ―abertura democrática‖ ou, na linguagem de Golbery, a 55 Aliança Nacional Renovadora (ARENA) e Movimento Democrático Brasileiro (MDB). 56 Presidentes do Brasil entre 15.03.1974 a 15.03.1979 e 15.03.1979 a 15.03.1985, respectivamente. Disponível em: http://www.presidencia.gov.br/info_historicas/galeria_pres/galfigueiredo. 83 ―distensão lenta, gradual e segura‖. A palavra ―distensão‖ não veio por acaso. O general Golbery escreveu, entre várias obras, uma sobre a questão da segurança nacional, na qual desenvolvia a tese de que os Estados, as nações em geral e o Brasil são como um organismo que opera à maneira do coração, com sístoles e diástoles. E é essa concepção naturalista e organicista da sociedade e do Estado que aparece na idéia da ―abertura democrática‖ como ―distensão‖. Diferentemente do que podiam imaginar os mais idealistas, que durante anos lutaram contra o regime militar, muitos pensando até mesmo em repetir o feito da Revolução Cubana57, a abertura política no Brasil não se deu mediante uma ruptura com o estado de coisas anterior. Foi sim resultado de uma intensa negociação política, de uma distenção previsível e planejada, que acabou por não gerar, pelo menos no campo policial, uma modificação mais profunda. Dessa forma, mais uma vez dentro do percurso histórico brasileiro a conciliação acabou sendo a saída encontrada, agora para combinar o equilíbrio de forças na transição de um regime ditatorial para a democracia. A conciliação, maximizada nas negociações que resultaram na Constituição de 1988, fez com que todas as partes, os antes chamados governantes e governados, amigos e inimigos do regime, opressores e oprimidos se pusessem no mesmo nível, inalterando a base modelo policial brasileiro e reafirmando o continuísmo das práticas antecedentes a abertura política. (Vieira, 2000). Mesmo assim, em alguns momentos as transformações políticas e sociais dessa fase de redemocratização produziram instantes de extrema incerteza quanto aos novos rumos da nação. Era de notório conhecimento que a idéia de voltar aos quartéis e permitir a retomada democrática não era unânime na caserna, remanescendo assim um ambiente duvidoso e de muitos embates entre as alas 57 A Revolução Cubana foi um movimento armado, inicialmente, que levou à derrubada do ditador Fulgencio Batista de Cuba em 01 de janeiro de 1959 pelo Movimento 26 de Julho liderada por Fidel Castro. O termo Revolução Cubana também se refere à implantação em série de programas sociais e econômicas do novo governo. O apoio soviético depois do movimento armado enfatizou seu caráter anti-capitalista e também antiamericano para posteriormente alinhar o país com o chamado bloco socialista. Em 31 de dezembro de 1959 o então Presidente de Cuba, Fulgência Batista, renunciou ao Governo, fugindo para a República Dominicana, onde se asilou. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Revolução_Cubana 84 mais conservadoras das forças armadas e importantes quadros políticos civis que ascendiam ao poder. Tendo levado aproximadamente 11 anos, a transição brasileira do governo militar ao civil transcorreu em um clima de implícita negociação. Certamente esse um dos principais motivos pelos quais os militares mantiveram praticamente o mesmo papel institucional que detinham desde a década de 1930, inclusive na segurança pública, graças à manutenção das polícias militares como ―forças auxiliares e reserva do Exército‖, esta uma observação que já fizemos constar em nosso primeiro capítulo e que se ratifica em razão de sua importância histórica, política e conceitual. Nesse contexto a afirmação, seguida do questionamento de Lamounier (1994, p. 31), refletindo acerca desse rico período da recente história brasileira, pode aqui ser repetida: ―(...) há um sentimento muito disseminado de que as instituições democráticas brasileiras continuam vulneráveis – mas vulneráveis a que?‖ No campo da segurança pública, tais contradições podem ser vistas de forma muito mais latente. Se constituindo a polícia no braço forte do Estado autoritário, a democracia certamente deveria impor a necessidade de drásticas mudanças nesse paralelo de atuação, iniciando assim um debate até então inédito no Brasil: a rediscussão não somente da temática política, mas também do modelo policial, cujas bases estavam fincadas ainda no período imperial. Por consequência, analisar a ressignificação do modelo policial brasileiro a partir das reformas políticas que desaguaram na Constituição de 1988, importa necessariamente em conhecer, mesmo que de forma resumida, um pouco das bases teóricas da democracia. Com isso, iniciamos a caminhada rumo a descobrir como esses princípios podem ser utilizados para a definitiva desobstrução dos impedimentos sociais, políticos e culturais que mantém a velha polícia em pleno funcionamento no Estado Democrático de Direito. Como primeiro passo, importante assentar que discutir o modelo policial sem necessariamente adequá-lo em uma ambientação democrática é tarefa inócua, isso 85 porque a atuação policial acaba de certa forma replicando o regime de Estado constituído. Por exemplo, a existência de uma polícia de controle de costumes no Irã (Carranca, Camargos, 2010) que tem como dever fiscalizar o uso de ônibus distintos para homens e mulheres, a segregação de praias, o mesmo a proibição de determinadas músicas, tudo a título de impedir a ―invasão da cultura ocidental‖, ao custo de sérias violações de direitos humanos, está intimamente ligada aos desdobramentos da Revolução Islâmica, em 197958. Já no Brasil, mesmo com a amplitude dos direitos e garantias fundamentais cujas bases começavam a ser estabelecidas a partir do final da década de 1980, a singularidade do sistema policial acabou por permitir um modal teratológico: de um lado à evolução política e social que permitiu a transição para o Estado Democrático de Direito, do outro o congelamento e, por conseguinte, a sobrevivência da visão apenas policialesca e repressiva em relação à violência e ao crime. É claro que essa comparação deve ser limitada e entendida dentro do enorme rol de diferenças culturais, sociais, religiosas e políticas que separam o Irã e o Brasil. É fato que os direitos humanos no ocidente e no oriente são violados dentro de contextos diferentes. Entretanto, a questão é que mesmo tendo atingido a maioridade, o regime democrático brasileiro ainda não foi capaz de clarear completamente a penumbra provocada por um sistema policial que insiste em ostentar traços autocráticos. Sendo assim, antes de retomar a análise da trajetória da polícia brasileira após a redemocratização na década de 1980, algumas importantes notas sobre a democracia - que de forma alguma esgotarão tão vasto tema, nos permitirão melhor entender os conceitos por fim apresentados neste trabalho. 58 A Revolução Iraniana, ocorrida em 1979, transformou o Irã - até então comandado pelo Xá Mohammad Reza Pahlevi - de uma monarquia autocrática pró-Ocidente, em uma república islâmica sob o comando do aiatolá Ruhollah Khomeini. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Revolu%C3%A7%C3%A3o_Iraniana. Acesso em 01 de setembro de 2011. 86 Afinal o que é democracia? Não é o objetivo deste estudo buscar suas raízes mais longínquas, na antiguidade grega, que remontam inclusive ao sentido etimológico da expressão ―governo do povo, governo da maioria‖. Até mesmo porque tal premissa se mostra bastante insuficiente, pois a definição de Aristóteles para a democracia grega não considerava os escravos, que eram a maioria, como partícipes do processo, assim como diversos sistemas políticos excluíram e ainda excluem as mulheres. (Azambuja, 1973). Alguns importantes autores nos apresentam esclarecedoras respostas para tal questionamento. Bobbio (1989) revela que desde a época clássica o termo democracia é empregado para designar uma das formas de governo, ou uma das maneiras de exercer o poder, e ainda, especificamente a forma de governo em que o poder é exercido pelo povo. Mais do que um sistema político, onde se oportuniza a sociedade a escolha de seus representantes, a chamada democracia indireta, é também importante desvelar outra ótica acerca da democracia, como também nos ensina Azambuja (1973, p. 213-214): Em primeiro lugar a democracia não é concebida como devendo ser essencialmente política, é reclamada a intervenção do Estado em matéria econômica, pois não poderia haver liberdade política sem segurança econômica. Ao lado dos direitos individuais a democracia deve também assegurar os direitos sociais; não somente defender o direito do homem à vida e a liberdade, mas também à saúde, educação, ao trabalho, e daí nos Estados Modernos, a abundante legislação social. Em resumo, a democracia, não deve ser apenas política, mas social. Devendo então a democracia ser vista também como um valor social, e não apenas um evento episódico de votação para a escolha de candidatos, para uns até mesmo uma desnecessária obrigação no processo político, torna-se possível compreender a importância desse tema também para o campo da segurança pública. Ainda sobre a democracia, celebrados e clássicos autores escreveram sobre o tema, a exemplo do francês Alexis de Tocqueville, que foi um detalhista observador da realidade política e social norte-americana do século XIX. Tocqueville centralizou 87 seus estudos em importantes questões, muitas delas ainda não bem resolvidas no Brasil, como a compatibilização da igualdade e liberdade, e a indispensável coexistência com o desenvolvimento da democracia (Quirino 2001). Contudo, uma das principais preocupações de Alexis de Tocqueville foi à fraqueza da cidadania, também nos termos de Quirino (2001, p. 157): Sem dúvida, a fraqueza do exercício da cidadania permite que se aceite mais facilmente o desenvolvimento da centralização administrativa, o que normalmente leva à maior concentração de poder do Estado. Assim, se a cidadania que não se ocupa de coisas públicas se aliar a um crescente aumento do poder do Estado, chegar-se-á facilmente a um Estado despótico. Um Estado que comandará um povo massificado, apenas preocupado com suas pequenas atividades particulares de caráter enriquecedor para os mais abastados ou apenas sobrevivência para os mais pobres.‖ Com muita antecedência o historiador francês destacava o painel descortinado pela saída dos militares do poder. A ausência de uma cultura de associativismo, de participação comunitária nas coisas do Estado, permitiria um estranho paradoxo que mesmo já transcorridos mais de uma década do novo milênio pouco se moveu. Em uma extremidade o Brasil enquanto nação tornou-se uma democracia, adotou tal sistema em uma Carta Constitucional rica em direitos e prerrogativas cidadãs, embora na outra ponta exista uma cultura marcante de pouco interesse coletivo nos assuntos públicos. Com isso, embora exista a garantia legal de muitos direitos, é impossível negar uma dose significativa de despotismo estatal, mesmo nos anos pós-1988. Quando o assunto é segurança pública essa constatação é ainda mais marcante. Talvez fruto do significativo aumento da sensação de insegurança vivenciado pela sociedade brasileira após o início da década de 80, combinado com a ineficácia das políticas públicas, persiste na coletividade uma sensação de abandono estatal, e em larga medida desinteresse pelas soluções que envolvam o debate. 88 Exemplo disso, mesmo que localizado no Espírito Santo, muito embora podendo constar como importante dado demonstrativo, é a inatividade dos chamados Conselhos de Segurança no Espírito Santo. De acordo com o Batista (2008), os Conselhos de Segurança são entidades de direito privado, com relação de independência do poder público, servindo para incentivar e organizar o voluntariado, fomentando o debate social no campo da segurança pública. Em síntese, os Conselhos de Segurança, por definição prática, significam a organização e a mobilização das comunidades junto ao poder público buscando soluções para as questões aflitivas provocadas pela violência em todos os níveis. No Espírito Santo, segundo dados da Coordenadoria de Polícia Interativa da Polícia Militar, existem 122 Conselhos de Segurança catalogados, inexistindo informações precisas acerca do pleno funcionamento, ou não, de tais organizações.59 Em larga medida, a ausência de registros mais precisos relativos aos Conselhos de Segurança ativos pode funcionar como um importante indício de que, nesse início da segunda década do milênio, tanto a organização popular quanto a governamental no ramo da segurança pública são ainda muito frágeis diante do descontrolado leviatã que se transformou a violência no Brasil, e em particular, para efeito deste estudo, na Região Metropolitana da Grande Vitória. De maneira que na contramão do que seria razoável pensar, de que quanto mais tempo transcorrido após a redemocratização mais cimentada estaria à cidadania, atuando na transformação da passividade social, alguns efeitos dos remédios autoritários aplicados ao longo da história brasileira parecem ainda persistir, inibindo um ativismo maduro e participativo por parte da sociedade organizada. Identifica-se, portanto, uma espécie de descidadanização da cidadania (Alves, Souza, Batista, 2005), ou ainda uma ―cidadania mutilada, subalternizada‖, (Santos, 1993, p. 24), em razão da não efetivação de direitos que permanecem 59 Polícia Militar do Espírito Santo. Estado Maior Geral. Relatório dos Conselhos Interativos de Segurança. 2011. 89 hermeticamente posicionados nas órbitas apenas jurídica e política, não chegando à esfera social, seu principal locus. O inglês John Stuart Mill, que viveu na mesma época que Alexis de Tocqueville, é outro importante pensador da democracia. Sendo sua existência contemporânea a eclosão da Revolução Industrial, Mill foi testemunha ocular das profundas transformações ocorridas na sociedade da época, sobretudo na Inglaterra, seu país de origem. Para entender um pouco de sua vasta obra acerca desse ponto, são importantes as observações de Bobbio (1986), do quanto é necessária e importante a visão de que é preciso pensar todo o problema político segundo duas vias diametralmente opostas, a de quem vê a sociedade de cima (o príncipe), e a perspectiva popular. Desse patamar é possível observar Stuart Mill, ou seja, vendo a democracia com uma lente de aumento que nos permite olhar as camadas sociais menos superficiais, e por isso menos vistas, tal como nos ensinamentos de Balbachevsky, (2001, p. 195): Com Mill, o liberalismo despe-se de seu ranço conservador, defensor do voto censitário e da democracia restrita, para incorporar em sua agenda todo um elenco de reformas que vão desde o voto universal até a emancipação da mulher (...). De certa forma a obra de Mill pode ser tomada como um compromisso entre o pensamento liberal e os ideais democráticos do século XIX. O fundamento desse compromisso está no reconhecimento de que a participação política não é e não pode ser encarada como um privilégio de poucos. E está também na aceitação de que, nas condições modernas, o trato da coisa pública diz respeito a todos. Para seu tempo, as observações de Stuart Mill, expressas em Balbachevsk (2001), são bastante esclarecedoras, sobretudo no tocante a observação de que as coisas públicas, ou seja, os assuntos do Estado, dentre os quais a segurança pública em geral, não podem ser matéria discutida apenas no âmbito dos gabinetes, sendo uma decorrência da democracia a ampliação do debate ao público em geral. É possível entender a democracia buscando também seus sentidos e significados contrários, ou seja, sua ausência ou deturpação. Rosenfield (1984), discorrendo 90 acerca dos problemas da democracia diante do cenário da modernidade, afirma que os valores democráticos considerados universais, como a igualdade e autonomia, enfrentam novos desafios. De acordo com o referenciado autor, o sentido da expressão democracia acaba sendo ressignificado e reapropriado, tornado inclusive indivíduos e comunidade termos contrapostos, na medida em que ao mesmo tempo em que o indivíduo acabou emancipado, fruto das históricas conquistas sociais, tornou-se também indefeso diante do mercado globalizado. As pessoas então passam a se constituir em uma massa representada por outros que se auto designam seus ―representantes‖, gerando assim a autonomização dos líderes em relação a seus apoiadores. Mais uma vez inter-relacionando os conceitos apresentados com o objeto deste estudo, programas de governo geralmente repetitivos, que se resumem a realizar um mero exercício tautológico de envernizamento das mesmas promessas, tais como ―vamos nos unir, o governo será a voz das comunidades‖, entre outros slogans publicitários, acabam tornando-se autônomos após a euforia das urnas. Eleitos os governantes, mantida a independência da massa votante, embora aprofundada a dependência dos compromissos financeiros e políticos que também turvam o regime democrático, fica evidente a opacidade do sistema político brasileiro, ainda muito distante das promessas quando da promulgação da Carta Constitucional de 1988. Talvez por isso Zaverucha (2005), tenha definido como um vazio conceitual o desafio de criar uma democracia que concilie o aspecto formal, que denomina de procedimento, do seu conteúdo, ou substância, criticando a ausência de persuasividade nas teorias que tentam explicar a democracia. Se desligada do contexto sócio-econômico, afirma ainda Zaverucha, é que a democracia se torna irrelevante para muitos, sendo esse um sério entrave para a construção de uma cultura de paz, termo que nos reinsere no estudo da comunitarização policial. 91 5.2 O POLICIAMENTO COMUNITÁRIO NO BRASIL Nas eleições de 1982 os Governadores dos Estados foram eleitos pelo voto direito, sendo Leonel Brizola60, um dos arqui-inimigos do golpe militar de 1964, eleito para o Governo do Rio de Janeiro. Firmado como um histórico contraponto ao regime militar, Leonel Brizola aproveitou o momento de redefinição política pelo qual passava o país para implementar as primeiras políticas públicas de segurança que intentavam transformar as polícias em agências cujo trabalho fosse mais técnico, legal e humanista. De forma geral, o rumo tomado pelo então Governador do Rio de Janeiro foi diametralmente oposto ao perfil até então adotado pelos governos militares. Exemplo disso, como aponta Buarque de Holanda (2005), foram os debates que resultaram na criação de diversas comissões, tais como Comissão da Terra, Comissão Especial para o Grupo Tortura Nunca Mais, Comissão de Defesa Dos Direitos da Mulher e a Comissão de Discriminação Racial nos Condomínios, temas que mesmo passadas quase três décadas, permanecem candentes e não bem resolvidos em nossa sociedade. O Coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira foi encarregado da missão de remodelar a Polícia carioca, sendo nomeado como Secretário de Polícia Militar, uma cargo até então inédito, gerando assim a extinção da Secretaria de Segurança Pública. A posse de Nazareth Cerqueira firmou-se como marco de reconfiguração do modelo policial brasileiro no inicio da década de 80, pois possibilitou que um oficial de 60 Leonel de Moura Brizola foi lançado na vida pública por Getúlio Vargas, sendo o único político eleito pelo povo para governar dois estados diferentes (Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro) em toda a História do Brasil. Exerceu também a presidência de honra da Internacional Socialista. Foi prefeito de Porto Alegre, deputado estadual e governador do Rio Grande do Sul, deputado federal pelo Rio Grande do Sul e pelo extinto estado da Guanabara, e duas vezes governador do Rio de Janeiro. Sua influência política no Brasil durou aproximadamente cinquenta anos, inclusive enquanto exilado pelo Golpe de 1964, contra o qual foi um dos líderes da resistência. Por duas vezes foi candidato a presidente do Brasil pelo PDT, partido que fundou em 1980, não conseguindo se eleger. Morreu aos 82 anos de idade, vitimado por problemas cardíacos. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Leonel_Brizola. Acesso em 25/07/2011. 92 carreira assumisse o comando da Corporação, afastando assim o obedecimento direto das ordens de integrantes do Exército, algo que, desde 1835, só havia acontecido pelo curto interregno de 12 anos. (Buarque de Holanda, 2005). Mais do que emblemático o gesto político, a nomeação do Coronel Nazareth Cerqueira foi de profundo simbolismo em razão de seu perfil e suas origens sociais. Originário de família pobre, negro, amante dos livros, idealista e intelectual que se opunha ao perfil de ação policial ―enérgica‖, eufemismo que escondia o agir arbitrário e ilegal, Nazareth Cerqueira foi à verdadeira antítese do que a classe policial de então, marcada pela cultura excludente, poderia esperar. Um interessante painel desse momento é ofertado pelos escritos de Nobre (2008, p. 79): A primeira controvérsia aconteceu porque a sociedade fluminense se deparara com um oficial negro no comando de uma organização encarregada de policiamento ostensivo nas ruas e tradicionalmente voltada para o controle das classes populares. A presença de Nazareth Cerqueira como comandante-geral da PM se tornara uma novidade até certo ponto constrangedora, pois, colocava em cena novos questionamentos sobre o papel da polícia e da marginalidade num período ainda cheio de amarras, interdições e tensões vindas da ditadura militar (1964-1985), que ainda mantinha o controle da Polícia Militar em suas mãos. O debate não se restringia a questão racial, ou sobre a inserção dos originários das classes menos favorecidas, comumente subalternizadas, em postos estratégicos. Outro ponto nevrálgico era à disposição de Cerqueira em realizar reformas que atingiriam o status quo secular da polícia no Brasil, como bem complementa o mesmo autor: (Nobre, 2008, p. 79): A ―surpresa‖ da sociedade civil em relação a Nazareth Cerqueira, em certo sentido, se originava pelo fato de as classes sociais em geral estarem acostumadas em verem negros como policiais subalternos ou como criminosos. Neste sentido, a imagem de Nazareth Cerqueira, apresentava novos elementos de discussão envolvendo alguns parâmetros, tais como: a violência da polícia contra os negros prováveis modificações nas técnicas de ação policial e a discussão sobre o emprego dos direitos humanos como política pública para as ações policiais. 93 Ambientado em um céu de conflitos, discordâncias e incertezas, marcas comuns ao processo político de redemocratização e reconciliação social após o golpe de 1964, os primeiros passos dos pioneiros na busca de uma reforma conceitual no arquétipo policial esbarraram na própria resistência dos policiais, e do regime que se findava, em aceitar a nova ordem estabelecida. Um emblema disso foi à experiência narrada pelo próprio Nazareth Cerqueira, quando das manifestações no Rio de Janeiro pela Campanha ―Diretas Já‖ 61. Convocado para uma reunião presidida por um General do Exército, que desejava proibir a passeata, deu a seguinte resposta: ―pedimos a palavra e lhe passamos a orientação do Governador: que ele sabia de suas responsabilidades e decidira que haveria passeata e comício (...) quando terminamos de falar reinou o silêncio‖. (Cerqueira, 2001, p. 49). Conquanto os indiscutíveis avanços, terminada a reunião do início da década de 1980, os desencontros entre o velho e o novo dentro do conjunto de pensamentos que formam o modelo policial brasileiro permanecem vivos e em constante atrito em nossa sociedade. Na opinião de Rocha (2010), Nazareth Cerqueira atuou exatamente no ritual de passagem do processo autoritário (ditatorial) para a construção do processo democrático (década de 1980 e início dos anos 90), um momento delicado, pois a cidadania não chega por decreto, é processual, demandando assim uma mão dupla com os vários atores sociais. 61 A Campanha ―Diretas Já‖ ocorreu em decorrência da Proposta de Emenda a Constituição formulada pelo então Deputado Dante de Oliveira, em 1983, assinada por 23 senadores e 177 deputados federais, a qual propunha o restabelecimento das eleições diretas para presidente. Ainda em 1983 Ulysses Guimarães, então Presidente do Partido do Movimento Democrático Brasileiro – PMDB, juntamente com Luís Inácio Lula da Silva, Presidente do Partido dos Trabalhadores – PT, decidem lançar uma campanha nacional defendendo a chamada Emenda Dante de Oliveira. Quase cinquenta comícios são realizados, sendo o derradeiro em São Paulo, no Vale do Anhangabaú, que reuniu mais de um milhão de pessoas. Em 25 de abril de 1984, em sessão que durou mais de dezessete horas, a emenda foi derrotada, obtendo 298 votos quando precisava de 320. LEONELLI; Domingos; OLIVEIRA; Dante. Diretas já: 15 meses que abalaram a ditadura. Ed. Record. Rio de Janeiro. 2004. 94 Muitos dos projetos levados a efeito pelo ex-Secretário de Estado da Polícia Militar do Rio de Janeiro, a exemplo do Programa Educacional de Resistência as Drogas – PROERD, o Batalhão de Turismo – Brtur, o Grupo Especial de Policiamento em Estádios – GEPE, além da produção de extensa literatura sobre direitos humanos e atividade policial, o colocam como vanguardista na discussão do modelo policial brasileiro. Vaticinando o declínio e a inviabilidade do modelo policial repressor, e propugnando pela abertura democrática do sistema, Cerqueira previu a ―queda do muro de Berlim‖, muito antes do que a maioria das pessoas. Os embriões plantados pelas duas gestões de Nazareth Cerqueira foram fecundados em todo o Brasil, embora em alguns locais de maneira mais avançada. Para efeito deste estudo nos limitaremos a uma análise mais profunda ao caso do Espírito Santo, mais especificamente de sua Polícia Militar, cujos princípios internacionais do policiamento democrático, também muito influenciados pelo debate carioca, deram formato ao que posteriormente veio a denominar-se polícia interativa. Antes de aprofundar o tema inserindo sua conceituação, principais atores e resultados, torna-se necessária uma pequena reconstituição histórica das condições políticas do período, de modo a melhor entender os estigmas e marcas que ainda acompanham, mesmo transcorridos mais de dez anos do novo milênio, a temática da interação policial na sociedade capixaba. Conforme relata Moulin (2003), a Criação dos Conselhos Comunitários de Segurança, em 1985, por meio de Decreto Estadual, dá início oficial ao debate em volta da comunitarização da polícia capixaba. Em visível contradição em relação à formatação do pensamento que levou as polícias militares a orbitarem em torno do autoritarismo estatal, todo o embasamento teórico inicial foi decorrente de estudos realizados pelo setor de planejamento da própria Polícia Militar capixaba. O emblema disso, ou seja, do pioneirismo policial nos estudos que buscaram compilar e adaptar à realidade capixaba as teorias que versam sobre a democratização do serviço policial, foi o trabalho monográfico intitulado ―Polícia 95 Interativa: a Democratização e a Universalização da Segurança Pública‖ (Costa, Fernandes, 1998). Tal reflexão desde então se apresentou como uma espécie de marco teórico, que procurou fornecer argumentos e apresentar uma proposta metodológica visando por em prática às teorias de defesa do modelo comunitário de polícia. Como base para esse estudo serviu a experiência realizada no município de Guaçuí, sul do Espírito Santo, assunto que será objeto de abordagem mais explícita em outro ponto deste capítulo. Buscando os contextos históricos, importantes que são para a plena compreensão dos sucessos e insucessos da filosofia interativa, em 1995 assume o Governo do Espírito Santo o médico Vitor Buaiz62, do Partido dos Trabalhadores – PT. O governo de Vítor Buaiz acabou marcado por uma série de crises, notadamente o precoce desgaste com sua base partidária, o atraso no pagamento dos servidores, greves generalizadas e a consequente falência múltipla de toda sua estrutura de governabilidade. Apostando no insucesso do Plano Real, Vítor Buaiz concedeu um aumento de 25,34% logo em maio de 1995, início de seu mandato, tentando com isso levar ao público a imagem de que a principal preocupação governamental seria com o trabalhador. Tendo o Plano Real conseguido de fato brecar a escalada da inflação, a administração estadual aumentou em muito suas despesas, conquanto a arrecadação pública não tenha acompanhado esse crescimento, em razão das novas dinâmicas impostas pela economia nacional. (Scherer, Pereira, 2005). A nova ordem internacional, teleguiada pela lógica neoliberal, compeliu os Estados à adoção de medidas não simpáticas as matrizes conceituais então defendidas pelo Partido dos Trabalhadores. Como condicionante para a rolagem da dívida com a União e a obtenção de novos financiamentos, exigiu-se a vinculação ao receituário do Plano Real, inclusive com a desestatização e a flexibilização das empresas em 62 Governador do Espírito Santo entre 01/01/1995 e 01/01/1999. Fonte: Portal do Governo do Estado do Espírito Santo. Disponível em: http://www.es.gov.br/site/espirito_santo/governadores_estado.aspx 96 poder do Estado, o que levou o então Governador a uma quase completa desincompatibilização com sua base partidária (Scherer, Pereira, 2005). A crise econômica afetou de maneira contundente a máquina governamental. Em particular, na órbita da segurança pública, se nem mesmo os salários dos policiais eram pagos com pontualidade, quiçá foram mantidas as mínimas condições logísticas e de equipamentos em geral para o controle da criminalidade. Incentivados a se aproximar dos movimentos comunitários, permitindo que a sociedade participasse e conhecesse melhor os dilemas internos, segmentos policiais da época acabaram se prevalecendo de forma inadequada dessa oportunidade, até então obstaculizada pelas recomendações internas que desaconselhavam até mesmo o diálogo com pessoas nas ruas. Como mais uma decorrência da década de 90 para a polícia do Espírito Santo, a aplicação degenerada do conceito de interação com a sociedade acabou criando uma série de imbróglios que embaralharam ainda mais o contexto de transição pelo qual a Polícia Militar passava. Aos que se apresentavam como refratários, grupo majoritário que resistia as idéias de interação policial e a todos os que a defendiam, essas distorções tornaram-se poderosos argumentos. Nerme, (2003, p. 06), pesquisando a opinião negativa de policiais militares paulistas sobre o policiamento comunitário, que por analogia pode ser bem aplicada a realidade capixaba, colheu informações que conseguem medir o impacto que a utilização desconfigurada da metodologia interativa gerou na sociedade e na própria Polícia Militar: (...) Trata-se de evitar problemas pela polícia: comerciantes que estabelecem contato direto com a base e a viatura sem passar pelo 190, comerciantes que fazem demandas particulares, como manter uma viatura na porta de seu estabelecimento (...) Assim, espremida entre as contradições políticas locais, a forte carga cultural herdada também pelos policiais capixabas, que sempre ofereceram elevado grau de 97 resistência, entre muitos outros fatores dificultadores, a comunitarização policial no Espírito Santo significou também a criação de uma espécie de arquipélago policial. Utilizando uma metáfora geográfica para melhor entender a cisão provocada pelas iniciativas de comunitarização policial no Espírito Santo, no continente permaneceu a estrutura corporativa, fiel às tradições e ao invólucro decorrente da visão policialesca de Estado. Ao lado, algumas ilhas existindo como meio de transição entre o modelo tradicional e o comunitário de polícia. Constata-se então que ao mesmo tempo em que o modelo interativo de polícia foi inserido no contexto da Polícia Militar, passando a constar nas grades curriculares dos principais cursos de formação e aperfeiçoamento profissional, sendo inclusive utilizado como parâmetro em âmbito nacional63, surgiram os embates internos, com a criação de grupos pró e contra. Utilizando a expressão ideologia como um significado do conjunto de idéias de uma época, uma opinião geral no sentido orientado por pensadores de determinado momento histórico (Chauí, 1980), o início dos anos 90 é marcado também pelos fortes focos de resistência a idéia da interação policia versus comunidade. Logo, a polícia interativa passou a ser vista como uma alienígena, invasora e detratora do status quo de poder policial em suas duas faces. Política, no caso dos policiais de maior patente, na medida em os chamados interativos 64 passaram a ganhar espaço e confiança de importantes setores da sociedade, e tática, ou operacional, para os policiais atuantes nas ruas, pois as novas concepções representavam uma torção na linha de pensamento mais vinculado à herança tradicionalista. 63 Dentre as muitas inserções em obras e projetos análogos país afora, a Polícia Interativa foi citada como meta de médio prazo para a proteção do direito à vida no Plano Nacional de Direitos Humanos – PNDH, em 1996, no Governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso. BRASIL: Decreto nº 1.904 de 13 de maio de 1996. Institui o Plano Nacional de Direitos Humanos. 64 Termo pejorativo pelo qual os adeptos do modelo interativo passaram a ser chamados. Seu significado trazia consigo a imagem de um policial teórico, imaginativo, de perfil profissional frágil em relação as reais necessidades de emprego da força policial repressora no combate ao crime. 98 Delimitando o relato desse conturbado e ao mesmo tempo rico período entre o início da década de 1990 e os vinte anos seguintes, tornou-se notória na Polícia Militar do Espírito Santo a construção de uma visão pendular do ser e saber policial. O pêndulo aqui representa a trajetória claudicante dos diferentes grupos ou tendências de pensamento formadas desde então. Marcados por clivagens ideológicas conflitantes (interativos – ou progressistas, operacionais, conservadores, ultraconservadores, desinteressados), entre tantas outras classificações empíricas possíveis, desde então tais grupos passaram a delimitar seus pensamentos e, consequentemente, de alguma forma lutar pela hegemonia. Sobre a hegemonia, é importante expressar as reflexões do pensador italiano Antônio Gramsci. O olhar gramsciano para a hegemonia se volta para a importância da ―direção cultural e ideológica que a classe que deseje ser ou permanecer fundamental imprime à ação das demais classes, exercendo, sobre estas, uma ação primordialmente educativa‖ (Rummert, 2004, p. 02). Assim, depreende-se que para Gramsci a hegemonia significa a capacidade de determinada classe de intelectualmente subordinar outros segmentos, com a utilização da persuasão e da educação. Foi certamente olhando nesse horizonte que afirmou o pensador italiano: ―Toda relação de hegemonia é necessariamente uma relação pedagógica‖ (Rummert, apud Gramsci, 1978, p.37). Nessa ―luta pedagógica‖, do outro lado estavam os adeptos da proposta de renovação, os chamados interativos. Buscando promover a mudança de pensamentos, e, consequentemente de hábitos profissionais, promoviam cursos, palestras e outros estudos que visavam apagar a linha demarcatória conceitual da atuação policial versus a violência, o crime, o criminoso e a sociedade em geral. Em permanente posição de combate as idéias interativas, toda uma superestrutura firmada nas bases históricas, sociais culturais e políticas já fartamente explicitadas neste estudo. Com estratégias pedagógicas diferentes, mas em constante rivalidade 99 paradigmática, esses grupos transpuseram o milênio como vencedores e ao mesmo tempo derrotados. Isso porque ao mesmo tempo em que a filosofia interativa acabou não sendo disseminada a ponto de torna-se parte do pensar/agir policial, as experiências resultantes no Espírito Santo são hoje prova inconteste de sua viabilidade enquanto parte de uma política pública consistente de diminuição da criminalidade e paulatino surgimento de uma cultura de paz social. Em todo o Brasil, desde o início da década de 1980, existem relatos de iniciativas de aproximação, especialmente de segmentos das polícias militares, da sociedade organizada. Duas das mais significativas e exitosas experiências de comunitarização policial do país ocorreram no Espírito Santo, no município de Guaçuí, e na capital, na localidade do Morro do Quadro65. A primeira no início da década de 90, a segunda em seu final, ultrapassando a virada do milênio, muito embora sobrevivendo apenas aos seus anos iniciais. Entendendo que o conhecimento do conceito deve preceder sua aplicação, neste ponto buscaremos a resposta para uma pergunta ainda não muito bem respondida no Brasil. Afinal, o que é o policiamento comunitário, ou interativo, termo que expressa à particularizada metodologia capixaba? Começar tentando dar um sentido matemático a essa resposta seria uma inútil tentativa de justamente suprir a abissal lacuna conceitual que impede que todos os segmentos sociais, e policiais, tenham exata compreensão da proposta. Este é um dos problemas quando programas de policiamento interativo são apresentados aos diversos segmentos. 65 O Morro do Quadro fazia parte do bairro Santa Tereza, em Vitória, e teve origem através de um loteamento feito em 1964, em Caratoíra, de propriedade do Sr. Manoel Rozindo da Silva e de outro pequeno loteamento feito em 1965, de propriedade do Sr. Constant Furlani, na área do Morro do Quadro. Santa Tereza foi criado pela lei nº 1.192/64 e no mesmo ano, através da Lei nº 1.267 foi criado Presidente Kennedy. Assim o Bairro do Quadro,criado pela Lei 6077/03,contempla a aglomeração urbana conhecida como Morro do Quadro, bem como parte do antigo bairro conhecido como Presidente kennedy. O bairro ficou conhecido como Quadro devido à construção da Praça Dr. Athayde que, através do seu formato, ficou referenciada como 'quadro'. Assim, era comum os moradores dizerem que estavam 'lá no quadro'. A praça, na realidade, tem o formado de um retângulo medindo 36x17m. Disponível em: http://legado.vitoria.es.gov.br/regionais/bairros/regiao2/doquadro.asp. Acesso em 12/10/2011. 100 A subjetividade contida nos princípios e ações, tais como aproximação da comunidade, abertura de canais de diálogo, prevenção criminal, entre outras, em muito contrasta com o apelo semântico, e também visual, que as grandes operações policiais66 proporcionam ao público em geral por intermédio da mídia. A título de ―mostrar o serviço‖, as operações policiais acabam adotando o formato de peças publicitárias, em apologia ao combate ao crime e a impunidade. Permite-se o televisionamento ―ao vivo‖ das prisões, a colocação de armas de fogo e drogas sobre os capôs das viaturas, a divulgação dos símbolos que aludem a determinado departamento ou batalhão de polícia, ao mesmo tempo em que um agente da lei força o acusado a mostrar seu rosto diante das câmeras. A despeito de garantias constitucionais como a presunção da inocência, entre tantas outras, torna-se muito mais importante dar métricas a quantidade de armas e entorpecentes apreendidos, ou do número de pessoas presas, sempre com as câmeras focalizando a colocação das algemas67 e o abrir e fechar das portas das celas. 66 Tais ações normalmente permitem a mídia em geral chamadas do tipo ―guerra, combate ao crime, caçada a criminosos, etc...‖, sendo também prática corrente das polícias em geral batizar as operações com nomes de impacto midiático, como ―Operação Zeus, Hurricane, Varredura, Lacraia‖, etc...Curiosamente, durante a ditadura militar que perdurou no Brasil entre 1964 e 1985, também era costume dar as operações de repressão nomes emblemáticos, como a Operação Condor, que foi uma aliança estabelecida formalmente, em 1975, entre as ditaduras militares da América Latina. O acordo consistiu no apoio político-militar entre os governos da região, visando perseguir os que se opunham aos regimes autoritários. Na prática, a aliança apagou as fronteiras nacionais entre seus signatários, que se articularam na repressão aos adversários políticos. Além do Chile, fizeram parte da aliança: Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai. Calcula-se que, apenas nos anos 1970, o número de mortos e "desaparecidos" políticos tenha chegado a aproximadamente 290 no Uruguai, 360 no Brasil, 2 mil no Paraguai, 3.100 no Chile e impressionantes 30 mil na Argentina - a ditadura latino-americana que mais vítimas deixou em seu caminho. Estimativas menos conservadores dão conta de que a Operação Condor teria chegado ao saldo total de 50 mil mortos, 30 mil desaparecidos e 400 mil presos. Disponível em: http://educacao.uol.com.br/historia-brasil/operacao-condor.jhtm. Acesso em 10/08/2011. Em razão da repercussão desse tipo de prática, sobretudo em operações protagonizadas pela Polícia Federal, o Supremo Tribunal Federal editou, em 13/08/2008, a Súmula Vinculante nº 11, com o seguinte teor: ―Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado‖. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=94467. Acesso em 11/08/2011. 101 Teatralizando o trabalho policial, fazendo uma espécie de ―mise en scène‖, as autoridades tentam externar a sensação, muito mais palpável, de que a polícia está de fato fazendo o seu trabalho de ―combater e vencer‖ o crime. Encerrada a cena, com a chamada para o intervalo comercial, poucos se dão conta do caráter efêmero desse tipo de iniciativa diante da real complexidade do problema. Não sem razão que Skolnick e Bayley (2006), afirmam que se alguém for a um departamento policial qualquer, em lugares diferentes, e solicitar ver especificamente um programa de policiamento comunitário, não obterá resposta exata, mas sim será apresentado a diferentes atividades. Com isso, ressaltam os mesmos autores, automaticamente passa o interlocutor a tender pensar que os programas comunitários constituam-se em um mero discurso das autoridades buscando tornar a atividade policial, na maioria das vezes antipática, mais palatável as pessoas em geral. Esse ledo engano acaba retroalimentando a lógica policial midiática, que sobrevive à custa de sua relação de constante simbiose com o modelo tradicional e guerreiro de combate ao crime. Retomando a questão conceitual, Monjardet (1996), também prefere não se posicionar diretamente, buscando explicitar seu pensamento por meio de exemplos e contextualizações históricas. Exemplo foi à experiência realizada nos Estados Unidos entre 1972 e 1973, feita pela polícia municipal de Kansas City, em parceria com a Police Fundation68. Tal experimento, que durou um ano, motivado pelo aumento da criminalidade e do tumulto urbano, combinado com as pesquisas avaliativas sobre o trabalho da polícia estadunidense desde a década de 1960, dividiu a cidade em três zonas comparáveis. Na primeira a polícia permaneceu agindo como de costume, ou seja, de forma tradicional; na segunda foram suprimidos os patrulhamentos (a polícia só 68 Fundação estadunidense que busca funcionar como catalisadora para a mudança e defensa de novas idéias, reafirmando e lembrando seus integrantes sobre os propósitos fundamentais do policiamento, de garantir que um elo importante permaneça intacto entre a polícia e os público que serve. Disponível em: http://www.policefoundation.org. Acesso em 11/08/2011. 102 atuou mediante chamado); na terceira os patrulhamentos foram mais do que duplicados. A constatação foi de que ―o aumento ou a diminuição dos patrulhamentos de rotina não tem incidência alguma sobre a criminalidade, sobre o medo dos cidadãos, sobre as atitudes da comunidade frente a polícia, nem sobre o tempo de resposta (Keeling, et al, 1993). Comentando os resultados da pesquisa, Monjardet também ressalta: (1996, p. 259): Seu alcance essencial foi ter dado o sinal de um exame aprofundado, muito frequentemente sob essa forma experimental, da bateria das estratégias e táticas policiais tradicionais, e de ter, desse modo, prejudicado seriamente a crença comum de sua eficácia. Percebeu-se assim, por exemplo, que os esforços consideráveis envidado em termos de organização e de equipamentos (rádios, automóveis), para minimizar o ―tempo de respostas‖ aos chamados, fundados na idéia simples de quanto mais rapidamente a polícia intervém, mais possibilidades ela tem de confundir um delinquente, tinham sido totalmente vãos, a variável essencial escapando totalmente à polícia, pois é o tempo que o cidadão leva para decidir chamar a polícia que é determinante‖. Fazendo uma crítica ao modo de atuação policial repressivo, o autor indiretamente responde a pergunta acerca do conceito de polícia comunitária, quando ressalta seu antônimo, ou seja, não é a aleatoriedade das rotas, o patrulhamento desordenado ou as abordagens indiscriminadas e discriminatórias. Com relação ao que acima se denominou tempo de resposta, toca-se em outro ponto nevrálgico a respeito do conceito de polícia comunitária. Em meio a multiplicidade de definições, mais uma vez buscamos localizar os signos e sentidos contrários. A cada divulgação de um bárbaro crime, ou mesmo reclamação social em relação aos níveis de criminalidade, o senso comum clama aos gestores públicos o aumento do número de veículos policiais circulando. A expressão ―falta policiamento‖ parece querer expressar, significativamente, ―precisamos de mais viaturas nas ruas‖. 103 Rolim (2006), nos ajuda a deslindar ainda mais o que vem a ser a polícia comunitária usando argumentos que demolem uma das principais vigas do pensamento repressivo. A ausência de estratégias que visem impedir que os crimes ocorram desagua em esforços que apontam na direção de atender o chamado pelo socorro público no menor espaço de tempo possível, isto é, quando o crime já ocorreu. Nos argumentos de Rolim (2006, p. 54, 55): Não por acaso, um dos principais investimentos realizados tradicionalmente no Brasil nessa área é a compra de novas viaturas. Providência que, invariavelmente, se faz acompanhar de desfiles de faróis ligados e sirenes abertas pelos centros urbanos e ―cerimônias de entrega‖. (...) O que vários estudos tem demonstrado, entretanto, é que as patrulhas motorizadas não são eficientes. Mais de 6 mil horas de observações, em cruzamentos com altas taxas de criminalidade, em Minneapolis, EUA, por exemplo, mostraram que a frequência dos carros de patrulha passando pelos locais era de um veículo a cada 23 horas. (...) Nos EUA, o tempo médio transcorrido entre o crime e a realização da chamada é de 41 minutos (...) O que as pesquisas demonstram é que passados 9 minutos desde o cometimento do crime, não existe qualquer relação entre o tempo transcorrido para o atendimento de uma chamada e a possibilidade de prisão. Não queremos com isso concluir que dentro da realidade de urbanização constante pela qual passa o Brasil neste início de milênio o uso de veículos por parte das polícias seja algo prescindível. Contrário disso, o socorro público célere salva muitas vidas. Contudo, a cultura da ―viaturização‖ parece ter tomado conta da práxis policial nas últimas décadas, motivo pelo qual a polícia enquanto representante do Estado tornou-se ―um carro que passa em alta velocidade‖, quer seja no atendimento a um crime já ocorrido, ou circulando aleatoriamente, buscando fazer algo em algum lugar. O uso do automóvel e do rádio como ferramentas mais importantes do que o contato e a proximidade com a comunidade para o controle do crime, acabou fazendo parte dos estudos que levaram à denominada ―profissionalização policial‖, uma expressão que segundo Bittner (2003), não pode ser entendida enquanto classificação de uma ocupação que requer um nível teórico mais aprofundado. 104 Coincidências à parte, o anti-intelectualismo, nativo da formação do modelo policial brasileiro, permanece ainda muito nítido na fotografia policial pós anos 2000. Bittner ainda relata que a profissionalização policial surgiu como uma reação a corrupção e ineficiência policial nos Estados Unidos, tendo em O. J. Wilson um de seus maiores expoentes. Dentro do modelo profissional, preconizava-se que a função policial deveria ser de neutralidade política absoluta, devotada ao policiamento criminal e a prevenção do crime, por meio de uma instituição sob um regime estrito, quase militar. Neste modelo requeria-se dos recrutas honestidade, agressividade coragem e ausência de criticidade no cumprimento de ordens, não se exigindo maior grau de conhecimentos além do necessário para a leitura dos manuais e a confecção de sucintos relatórios. Ainda sobre o modelo profissional Bitnner (2003, p. 19) também relata: O automóvel ofereceu a possibilidade de mobilidade rápida e o rádio criou a comunicação contínua. Em conjunto, essas duas aparelhagens permitiram que a administração tivesse um grau de controle totalmente sem precedente sobre as atividades do pessoal de rua (...) infelizmente quase todo mundo reconhece, essa grande vantagem do automóvel e do rádio criando uma abertura e um aumento da densidade de contatos comunicativos entre os administradores nos quartéis e as tropas no campo foi contrabalanceada pelo declínio nas oportunidades de contato, familiaridade e formação de confiança entre policiais e cidadãos. Como bem se observa, as idéias que revestem o modelo profissional são perfeitamente encaixáveis no que neste estudo estamos denominando de modelo policial militar brasileiro. Relegando o atendimento policial ao mero despacho de uma viatura após o chamado69, a separação entre as comunidades e os policiais tornou-se quase que completa. Como resultado disso, um longo, porém importante processo ocorreu nas últimas décadas no Brasil, paralelo ao modelo histórico e secular. Uma progressiva 69 No Brasil o nº 190 é nacionalmente utilizado para o contato com os centros de comunicações das polícias. 105 prevalência de uma lógica conceitual de que o trabalho da polícia deve ser o combate ao crime, mediante o rápido despacho de policiais em automóveis após o chamado de socorro. A falência do modelo profissional começou a ser decretada já na década de 1960, pelo menos nos Estados Unidos. As altas taxas de criminalidade e os questionamentos provocados pelos movimentos antiguerra, e a luta a favor dos direitos das minorias sociais, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos (Kelling, Moore, apud, Batitucci, 2011) acabou evidenciando a necessidade de alteração desse panorama engessado, que não conseguia prever e lidar com a gama de complexas situações que envolvem os dilemas da violência. Moore relata uma experiência muito interessante nos Estados Unidos acerca da ineficácia do modelo profissional (2003, p. 148-149): Como orientação profissional, a necessidade de manter uma conexão próxima entre a polícia e a comunidade foi trazida aos departamentos de polícia por volta de 1960, quando se confrontaram com agitações urbanas em larga escala. As forças policiais profissionalizadas, disciplinadas, competentes, viram-se incapazes de lidar com esse problema. Um desesperado membro do Departamento de Polícia de Los 70 Angeles recorda a experiência do tumulto em Watts : ―Tudo o que acreditávamos que ia funcionar, não funcionou. Removemos os policiais, não funcionou. Colocamos mais policiais, não funcionou‖. Revendo o caso, o Departamento de Polícia de Los Angeles conclui que tinha falhado porque tinha perdido o contato com as comunidades que policiava, e com isto, tinha perdido uma capacidade fundamental para manter a lei no estado. Entretanto, observamos que o modelo profissional parece ainda muito vivo no Brasil, mesmo passados mais de quarenta anos do início dos estudos conclusivos acerca de sua ineficácia. Certamente que esse modelo mental é diametralmente oposto ao que preconiza o modelo comunitário, que tem nos ensinamentos de Trojanowicz e Bucqueroux (1994, p. 04), sua assertiva mais simples e direta, no sentido de ser ―uma filosofia e 70 Seis dias de tumultos causados por problemas raciais e de direitos civis, em 1965, em Watts, região de Los Angeles, em que várias pessoas morreram. 106 uma estratégia organizacional que proporciona uma nova parceria entre a população e a polícia‖. Como filosofia, implica em mudar a forma heliocêntrica de pensar a segurança pública, como se o Estado estivesse todo o tempo sozinho do centro decisório, imaginando uma desimportante sociedade apenas em sua órbita. Já como estratégia, preconiza em uma série de mudanças nas ações diretamente relacionadas aos cidadãos, o que obrigatoriamente nos reintroduz na discussão acerca da debilidade da cidadania brasileira. Afinal, os esforços da polícia podem reduzir o crime? A pergunta de Sherman (2003), que transita pelos argumentos de defensores de várias correntes teóricas que tratam da temática da violência, nos parece confortavelmente encaixada nas premissas comunitárias, em que essa tarefa é compartilhada pelos diversos segmentos sociais, inclusive a polícia. Dentre os muitos questionamentos sobre as barreiras da implantação de programas de policiamento comunitário no Brasil, são recorrentes os argumentos de que a vivemos uma sociedade muito preparada para o exercício de seus deveres, embora pouco disposta ao cumprimento de suas obrigações. No plano prático é de fato muito difícil à dialética entre a visão contratualista de formação do Estado, que indica em linhas gerais a premente necessidade de amplo conhecimento dos direitos e obrigações remanescentes dessa ―troca‖ entre o povo e o Estado, e a alienação ou o desinteresse dos próprios cidadãos em participar de um debate coletivo sobre a violência em seus respectivos bairros. Explicitemos melhor a questão. Em rarefeitos momentos o Estado propõe políticas públicas cujas matizes conceituais rumam na direção da construção de uma cultura de paz, a partir do pressuposto de que é o Brasil um Estado Democrático de Direito, e também que necessariamente tais políticas devem buscar alcançar os anseios e necessidades do povo em geral. 107 Entrementes, disso extraímos a importante indagação relativa ao pensamento e as dúvidas: o que pensa o povo brasileiro acerca da violência, ou a insegurança? A fuga do lugar comum representado pelas vagas expressões de indignação após um crime de grade repercussão, necessariamente nos remete ao fato de que também é muito raso o interesse da sociedade em geral por um debate mais qualificado sobre a segurança pública. Desconectadas da realidade social, ou mesmo desinformadas pelo equivocado proselitismo oriundo de segmentos da mídia, que incitam uma indignação maquiada no interesse apenas na audiência, a alienação parece ser a forma mais visível de relação entre as pessoas e a violência no Brasil. Ao ratificar os históricos equívocos conceituais da polícia brasileira, já exaustivamente descritos neste trabalho, observamos uma perigosa aproximação com o conceito de alienação social apresentado por Basbaun (1977, p. 24): (...) O homem perde sua consciência pessoal, sua identidade e personalidade, o que vale dizer, sua vontade é esmagada pela consciência de outro, ou pela consciência social – a consciência do grupo. É uma forma de para-consciência, ou seja, uma consciência particular incompleta, pela qual o homem perde parcial ou totalmente sua capacidade de decisão. É ainda sua integração absoluta no grupo: ele massifica, passa a pertencer à massa e não a si mesmo. Infelizmente a existência dessa massa ignara em relação aos reais efeitos da violência e suas possíveis políticas de controle, não enfrentamento ou extinção, permite que as promessas falaciosas e muitas vezes até messiânicas71 de gestores 71 Oliveira (2010) registra trechos das propostas de campanha de Dejair Camata, ou Cabo Camata, político capixaba que foi para o segundo turno nas eleições para o Governo do Estado em 1994, sendo derrotado por Vítor Buaiz, após uma coalização local de forças políticas: ―[...] quem praticar crimes hediondos em meu governo receberá o mesmo tratamento, seja o que for, e o estuprador será morto e vou mandá-lo para o ―inferno‖ em defesa da família capixaba, como faria com a minha, em caso pessoal [...] No Rio de Janeiro, [...] as polícias militar, civil, federal e até o Exército, estão expulsando os marginais. Como o Espírito Santo é vizinho, eles vêm para cá. Nós vamos fechar os limites do Estado e dar um prazo de 24 horas para os marginais deixarem o Estado. Senão, não sai mais‖. OLIVEIRA, Ueber José de. O Processo Eleitoral de 1994, no Espírito Santo: O Cenário de Representação da política e o fenômeno Cabo Camata (PSD) versus Vítor Buaiz (PT). Revista Ágora, Vitória, n.11, 2010, p.9. 108 públicos país afora sejam bem aceitas, bastando isso para que o des(governo) na segurança pública seja constantemente retroalimentado. Em parte, pode haver justificativa plausível para tal vertente quando se constata que a fronteira da segurança pública foi uma das últimas incorporadas por instituições participativas a partir da década de 80. Sendo assim, é declarada a existência de importante lacuna no Brasil quanto à incorporação de cidadãos e associações da sociedade civil na deliberação sobre políticas, em especial na segurança pública. Sapori (2010), relatando suas impressões sobre a 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública - CONSEG72, evento que teve como objetivo reunir diferentes segmentos da sociedade visando um amplo debate sobre o tema, afirma que a fragmentação e a ausência de elementares consensos são as constatações que mais se revelaram em tal reunião. Em relação ao assunto e ao escrutínio público realizado na 1ª Conseg, o mesmo Sapori refletiu: (2010, p. 164-165): Na verdade, as inconsistências identificadas, a proeminência dos interesses corporativos e a fragilidade propositiva dos movimentos sociais são sintomas do status Revista Brasileira de Segurança Pública quo do campo da segurança pública na sociedade brasileira. Não podia se esperar nada melhor do primeiro evento nacional que induziu a participação popular na busca de soluções para os problemas relacionados à garantia da ordem pública. A maturidade do debate já alcançada pelos campos da saúde e da educação, após décadas de conferências nacionais, ainda é uma quimera para a segurança pública. Em outras palavras, a I Conseg apenas desnudou a verdadeira ―Torre de Babel‖ que caracteriza um campo simbólico, nos termos de Pierre Bourdieu, bastante incipiente, caracterizado por crenças que o sustentam ainda muito díspares, o que torna o jogo de linguagens que nele se joga e as coisas materiais e simbólicas que nele se geram manifestações relativamente caóticas. Estamos apenas iniciando a construção do campo da segurança pública na sociedade brasileira. Por óbvio que seria um erro crasso dar as costas para o avanço que tais iniciativas representam para o amadurecimento da democracia, pois mesmo que ainda pouco 72 Realizada entre 27 e 30 de agosto de 2010, em Brasília. 109 autonomizado em relação aos diversos interesses corporativos e políticos, o debate será sempre melhor se comparado à autonomia da vontade de poucos. Essa ―Torre de Babel‖, expressão bíblica que já tomamos emprestada em outro trecho deste trabalho para traduzir o dissenso conceitual e técnico entre as polícias no Brasil, serve também como uma espécie de amostra da vitrine labiríntica onde se encontra a sociedade brasileira. Que parece saber aonde quer chegar, conquanto demonstre não conhecer ao certo quais caminhos percorrer para a diminuição da criminalidade e a construção de uma cultura de paz. 5.3 A POLÍCIA INTERATIVA NO ESPÍRITO SANTO 5.3.1 Guaçuí: Da Guerrilha à Cidadania O município de Guaçuí dista 229 quilômetros de Vitória, capital do Estado do Espírito Santo. Possui uma população de pouco mais de 27.000 habitantes73, conservando ainda um perfil interiorano e bucólico, expresso principalmente na cidade, marcada pela antiga prosperidade da economia cafeeira. Nacionalmente pouco conhecida, a região do caparão, na qual também se localiza Guaçuí, e que abriga o Pico da Bandeira, ponto mais alto da região sudeste, foi o local escolhido para a primeira experiência de guerrilha contra o regime militar instalado no Brasil em 196474. Do Caparaó, um grupo heterogêneo de desertores das forças armadas e outros discordantes do regime político de exceção que oficialmente seria extinto apenas em 1985, tentou replicar a chamada teoria do foco guerrilheiro, sistematizada por Che 73 Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Resultados Preliminares do Censo Demográfico de 2010. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1. Acesso em 04/10/2011. 74 O movimento foi marcado por um grupo de dissidentes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica que, entre 1966 e 1967, tentou estabelecer um foco de guerrilha na crista do maciço do Caparaó, onde está o Pico da Bandeira, considerado até então o ponto culminante do Brasil. Os guerrilheiros se faziam passar por criadores de cabras, agricultores e carvoeiros [...] e trocavam seus produtos nas pequenas cidades e povoações da divisa do Espírito Santo com Minas Gerais, aninhadas nos confrontos da Serra. Cony (Prefácio), in Costa, 2007. 110 Guevara a partir da experiência de 1959 em Cuba. Lendo os livros que influenciaram toda uma geração, os revolucionários do Caparaó tentaram seguir à risca a receita da Revolução Cubana, como escreveu Guevara: (1982, p. 13): As forças populares podem ganhar uma guerra contra o exército; nem sempre há que se esperar que se dêem todas as condições para a revolução; o foco insurrecional pode criá-la; na América subdesenvolvida, o terreno da luta armada deve ser fundamentalmente o campo. Os poucos meses que separaram os anos de 1966 e 1967 foram suficientes para demonstrar o insucesso da iniciativa guerrilheira no Caparaó. Em 1º de abril de 1967, os reduzidos e combalidos combatentes que haviam suportado o rígido clima frio da região, as doenças e as dificuldades do isolamento no campo, foram surpreendidos por policiais militares mineiros. Costa, com raro detalhismo, nos remete diretamente à cena (2007, p. 16): O 1º de abril de 1967 amanhecia preguiçoso na serra do Caparaó. Ainda não dava para saber se seria mais um dia nublado, muito comum naquela época do ano, ou se o sol daria o ar de sua graça. Amadeu ainda estava na rede, demorando para assumir se posto. Talvez pensasse no conforto que poderia estar desfrutando naquele momento junto de sua família, ele, que era bisneto de Hercílio Luz, ex-governador de Sabra Catarina. Avelino Capitani ardia em febre. O marinheiro alagoano João Jerônimo da Silva, único negro do grupo, repousava. Também estava doente. O grupo se abrigava sob árvores, em um local de onde se podia ver a pequena caparaó. De repente, do meio do mato, da passagem que dava acesso a uma das trilhas da serra, pela qual o grupo chegara ao local do acampamento, surgiu uma voz: ―tem café aí?‖ O sargento do Exército Araken Vaz Galvão, subcomandante do planejamento respondeu: ―Tem café no bule e bala para todo mundo‖. Não deu tempo para muita coisa o mato se abriu rapidamente e soldados da Polícia Militar de Minas Gerais imobilizavam cada um dos sete homens que ali estavam. Sobre a ação das forças de repressão a chamada Guerrilha do Caparaó é também muito esclarecedora a visão do mesmo autor (2007, p. 16-17): Havia vários dias que a Polícia de Minas Gerais e do Espírito Santo estava á procura de homens barbudos que circulavam de modo suspeito pela serra do caparaó e haviam sido denunciados por moradores. (...) Pelo menos três mil homens do Exército foram mobilizados, com aviões, armas de grosso calibre e bombardeios intimidatórios na serra. Fantasmas da repressão. A primeira tentativa de instalação da guerrilha rural no país havia fracassado. 111 Finda a ditadura militar, realizada a transição política para o regime democrático e promulgada a Constituição cidadã, coincidentemente, quase três décadas depois desse episódio, ainda no início da década de 1990, Guaçuí viria ser o palco da primeira aplicação metodolizada de inserção da sociedade no debate acerca da violência e da criminalidade em geral no Espírito Santo. Em gênero, a polícia interativa se baseia nos mesmos princípios teóricos que fundamentam a comunitarização policial em todo o mundo, já alhures descritos neste trabalho. Entretanto, em espécie, a polícia interativa significou a criação de uma metodologia própria de aplicação dos princípios policiais comunitários junto à sociedade, pressupondo um eixo rotativo de transformação centrífuga, ou seja, de dentro do departamento policial para a comunidade. As chamadas modalidades de interação (Costa; Fernandes, 1998), produziram um efeito prático até então irrealizado no Brasil. Isso porque permitiram o resumo de todo o conteúdo teórico que marca a questão polícia versus comunidade, facilitando a compreensão e o trabalho dos policiais que atuam diretamente no policiamento ostensivo. Por consequência, esse elaborado didatismo acabou facilitando também a participação popular, que livre do hermetismo promovido pela aliança dos conceitos que envolvem a segurança pública e o direito, a sociologia, entre tantos outros ramos do conhecimento, puderam compreender melhor seu papel cidadão. Eis a sucinta definição acerca das modalidades de interação elaborada por Costa; Fernandes (1998, p. 93-94): Interação funcional: O público alvo é a própria Corporação. Deve-se primeiramente investir na mudança das mentalidades operacional e administrativa (...); interação estratégica e social: consiste em mobilizar recursos internos e externos à polícia, no intuito de promover e consolidar a parceria com as comunidades e agências públicas e civis; interação financeira/logística: inventariar os meios legais necessários para institucionalizar os conselhos de segurança; interação complementar: (...) reforçar as iniciativas voltadas para a busca de cooperação das agências municipais e estaduais comprometidas – direta ou indiretamente, com o provimento de ordem e segurança pública. 112 A inovação promovida pela polícia interativa, inicialmente em Guaçuí, depois no Espírito Santo e no Brasil, não somente proporcionou a diminuição de 80 % dos índices gerais de criminalidade, e de 30% dos processos criminais (Moulin, 2003). Também provou que uma estratégia prevencionista pode sim contribuir para diminuir o inchaço do caro e ineficiente sistema de justiça criminal brasileiro. Combinando a gradativa melhoria da eficiência do serviço policial, com todo um processo de conscientização da sociedade local sobre a necessidade de um debate mais apurado sobre a temática, ineditamente a percepção positiva das comunidades sobre o projeto obteve elevados índices de aprovação popular. Nesse ponto, é possível fazer um importante exercício analítico. Segundo pesquisa do Instituto Futura, a polícia interativa chegou a obter, em seu ápice, 86,6% de aprovação popular (Moulin, 2003, p.70). Na outra ponta, fruto de políticas públicas equivocadas que rumaram com destino a uma retomada do modelo tradicional, no final de 2010 62,2% dos capixabas declaravam confiar pouco ou não confiar nas polícias civil e militar do capixabas75. A pesquisa realizada pelo Instituto Futura em 2010 coloca ainda outro dado preocupante do ponto de vista das organizações policiais capixabas. Das 14 profissões elencadas, as 405 pessoas entrevistadas disseram apenas confiar menos nos políticos em geral (92,1%) do que nas polícias Civil e Militar do Espírito Santo. Retomando a vertente conceitual, ao invés de seguir a linearidade dos preceitos e procedimentos que ainda revestem o pensamento policial, verdadeiros pleonasmos do modelo tradicional de polícia – bairro periférico, suspeito, abordado, preso, repressão, novo suspeito, abordado e preso, a filosofia interativa nos permite concluir que, de fato, é preciso mudar. Dee Hock (1999, p. 11), ofereceu definição que é muito apropriada para a plena compreensão de como deve ocorrer esse processo de mudança e reformatação do 75 Fonte: Instituto Futura. Confiança nas profissões. Disponível em: http://www.futuranet.ws/upld/pesquisa/semanal/132/arquivo/R_CBN_Site_ConfiancanasProfissoes_2 01009.pdf. Acesso em 13/10/2011. 113 relacionamento polícia versus sociedade por meio da aplicação dos conceitos interativos. Segundo Hock, caórdico significa (1999, p. 11): Caórdico adj (port. caos + ordem) – 1. comportamento de qualquer organismo, organização ou sistema autogovernado, que combine harmoniosamente características de ordem e caos; 2. Disposto de maneira a não ser dominado nem pelo caos nem pela ordem; 3. Característica dos princípios organizadores fundamentais da evolução e da natureza. Importa ressaltar então que o modelo interativo não se baseia no costumeiro engessamento das estruturas policiais, nas práticas ainda muito autóctones em seu próprio arquipélago, distantes que estão dos anseios e das reais necessidades da comunidade. Impossível pensar um mundo onde a tecnologia não encontra mais fronteiras e, de fato, ordem e caos passam a ser termos que se auto complementam, ao passo que as políticas de segurança pública seguem o mesmo roteiro. Debruçado nas transformações sociais ocorridas desde as últimas décadas do século XX, Bauman (2001) formula sua teoria, nos sentido de que estamos passando da modernidade sólida, que derretia aquilo que era sólido não para liberar algo novo, mas sim para obter espaços para novos e melhores sólidos. Por outro lado, o mesmo Bauman explica que a modernidade líquida derreteu tudo o que era ou aparentava solidez, embora não realizado a substituição por outro sólido. O líquido nos remete aos caracteres de uma nova sociedade, que burla as tradições, a repetição, que é mimética, buscando a constante mudança de formas, num processo que parece não ter previsão de término. Essa espécie de liquefação social pode trazer em si certos aspectos negativos, como o individualismo, por exemplo. Entretanto, torna-se constatável que as características intrínsecas ao modelo interativo, tais como a gestão participativa e prestação de contas (accountability76 policial), fixação do efetivo, cidadanização, 76 Accountability é um termo da língua inglesa, sem tradução exata para o português, que remete à obrigação de membros de um órgão administrativo ou representativo de prestar contas a instâncias 114 supervisão civil da Polícia (civilian oversigth) e a enfase proativa (Costa, Fernandes, 1998), constituem-se em ferramentas muito mais adequadas para que os organismos policiais possam melhor lidar com essa constantemente nova sociedade. Isto porque o método interativo de polícia pressupõe um posicionamento diametralmente oposto ao fazer ―sólido‖. Primeiro, treinando e incentivando policiais militares para o relacionamento com as comunidades e seus diversos segmentos (interação funcional). Segundo, definindo com a prévia ausculta dos sujeitos passivos dos crimes, as pessoas em geral, como o policiamento será feito (interação estratégica), tornando assim a comunidade uma espécie de sócia do projeto, e, consequentemente, uma partícipe incentivada e comprometida com seu sucesso. Terceiro, integrando-se com os demais organismos governamentais (interação estratégica), e até levando-os a reboque para a mesa de negociação com as lideranças comunitárias. Quarto, realizando e liderando eventos sociais, onde o departamento ou a companhia de polícia é apresentada como uma agência formada por homens e mulheres, com dilemas, defeitos e qualidades comuns, e não seres robóticos, como a imagem da face cerrada dos fardados costumeiramente transmite (interação social). Quinto, por fim, prestando contas dos resultados alcançados, ou não, e realinhando as idéias, planos e perspectivas, na medida em que o crime e a violência são eventos dinâmicos, que formam um verdadeiro caleidoscópio social, reclamando por isso um fazer mais ―líquido‖. Importante ressaltar que essa sintética redescrição do método interativo nem de longe consegue fazer justiça ao enorme avanço e reboliço corporativo que tais propostas provocaram na polícia brasileira no início da década de 1990, em especial no Espírito Santo. controladoras ou a seus representados. Outro termo usado numa possível versão portuguesa é responsabilização. 115 A título de exemplo, Guaçuí sediou a realização do 1º Fórum Nacional sobre Polícia Interativa, em 1995, que contou inclusive com a presença do então Ministro da Justiça, Nelson Jobim, sendo inserido no Programa Nacional de Direitos Humanos77, na qualidade de uma de suas metas de médio prazo. Levada com sucesso para vários outros Estados e também no exterior78, citada em várias publicações como uma das melhores propostas no campo da segurança pública do Brasil, a filosofia interativa foi por alguns severamente criticada e equivocadamente taxada como uma iniciativa típica de cidades interioranas, não aplicada nas favelas dos grandes centros urbanos. Desse desafio surge a polícia interativa no Morro do Quadro (referenciado no capitulo 03, p. 82). 5.3.2 Polícia Interativa no Bairro do Quadro: O Morro Que Teve Vez79 Cerca de trezentos degraus separam o asfalto do topo do bairro chamado Morro do Quadro, na periferia da capital do Espírito Santo. Fato comum nos aglomerados favelizados, os bairros se apresentam entrelaçados, com uma divisão de fronteiras que apenas os moradores conseguem bem delimitar. O Bairro do Quadro, ou o Morro do Quadro, é ladeado pelo Morro do Cabral, locais com nomenclaturas diferentes, embora com as mesmas características no que se refere à exclusão social como uma das fortes condicionantes da criminalidade. A própria história do Morro do Cabral, que se confunde com toda a região, demostra a caoticidade de seu processo de formação80: Nos anos 70, começou a se estabelecer no bairro um número considerável de famílias do norte de Minas Gerais, que ocuparam toda a parte superior do bairro, originando a Vila Mineira. De acordo com um morador local ―[...] as prefeituras 77 BRASIL. Presidência da República. Secretaria de Comunicação Social, Ministério da Justiça. Programa Nacional de Direitos Humanos. Brasília, 1996. 78 A então Vice-Ministra da Costa Rica, Maria Salazar, em 2000, esteve no Espírito Santo e conheceu a metodologia interativa de polícia, a qual estava em pleno funcionamento na região da Grande Santo Antônio, em Vitória. CORTÊS. Elimar. Costa Rica está de olho na Polícia Interativa capixaba. A Tribuna, Espírito Santo, p. 18, 31 dez. 2000. 79 Alusão ao título da música ―O morro não tem vez‖, de autoria de Antônio Carlos Jobim. 80 Disponível em: http://legado.vitoria.es.gov.br/regionais/bairros/regiao2/docabral.asp. Acesso em 14/10/2011. 116 das cidades mineiras do Vale do Rio Doce, davam uma passagem de vinda para Vitória, no trem Vitória Minas, porque aqui tinha muito trabalho. A maioria arranjava emprego na construção civil, e as mulheres de empregada doméstica‖. Muito importante destacar que as famílias de migrantes mineiros que chegavam para morar no bairro Moscoso, formavam um elo de corrente migratória numa sistemática de recomposição familiar e de laços de amizade. O bairro passou a ser uma referência de alojamento, e foi abrigando famílias que se estabeleciam com a construção de um barraco em um lote ou no fundo de um quintal de amigos ou parentes. ―Quem se globaliza mesmo são as pessoas e os lugares‖ (Ianni apud Santos, 1993, p. 156). Tal assertiva nos permite resumir muito bem como o processo de empobrecimento urbano e social, em última análise um dos mais perversos efeitos multiplicados pela globalização, atingiu de maneira contundente os moradores dos Morros do Quadro e Cabral. Atraídas pelas falsas promessas dos ―grandes investimentos‖, assunto já abordado neste trabalho, as pessoas acabavam encontrando apenas mais do mesmo que já tinham em seus locais de origem, ou seja, quase nada. A violência veio como uma espécie de efeito duplicado, pois muitos adolescentes sem expectativas, empobrecidos, semianalfabetos, filhos e netos dessa geração de emigrantes, acabaram servindo como mão-de obra descartável para o tráfico de drogas, também um comércio internacional. Assim como o termo favela tornou-se um substantivo que denomina os morros, suas casas e moradores Brasil afora, no final da década de 1990, na cidade de Vitória, a violência era substantivada pela genérica expressão ―Morro do Quadro‖. O ano de 1997 começava trágico para a comunidade, com o assassinato de dois policiais militares por integrantes da facção criminosa que dominava a região. Até então desprovidos de qualquer projeto de segurança pública, exceto o patrulhamento repressivo e as abordagens aleatórias, com ou sem fundada suspeita, a repercussão negativa da morte dos policiais acabou servindo como um propulsor para que as autoridades da época tomassem alguma iniciativa. Após a inauguração do Destacamento Policial Militar do Morro do Quadro, os depoimentos de moradores e testemunhas fáticas davam conta de que além dos 117 elevados índices de criminalidade e consequente sensação de insegurança, o que mais se observava era a precariedade de toda a estrutura urbana – iluminação, calçamento, saneamento. (Campos, 2010). O mesmo autor, apresentando a série de entrevistas realizadas com policiais militares e moradores da região, consegue focalizar ainda mais o problema (Campos, 2010, p. 63): O contexto social da região do Morro do Quadro a essa época era de verdadeiro abandono por parte do Estado e do Município, no que diz respeito à estrutura urbana, acessibilidade precária, iluminação pública, telefones públicos quebrados, entre outros. Os criminosos circulavam de forma ostensiva, com armas em punho. Conforme reportagens da época, a comunidade refém do medo do ir e vir, os moradores se viam obrigados a descer a cidade para fazerem suas compras, pois o comércio local estava fechando as portas, por conta dos assaltos constantes. O abastecimento de diversos produtos, tais como gás de cozinha, refrigerantes, sorvetes, alimentos e serviços do Estado e do Município, era coagido pelos traficantes da região, sendo que os poucos e corajosos comerciantes do morro tinham que descer até a avenida para receber suas mercadorias nos caminhões, pois caso subissem eram assaltados. No auge do domínio criminoso, foi montado no alto do Morro um estande de tiro ilegal para prática dos infratores daquela região. O local era conhecido como estande da Jaqueira. Tais ações contavam com a opressão e silêncio dos moradores, que eram ‗comprados‘ com cestas básicas, remédios e festas patrocinadas pelos criminosos. O Morro do Quadro detinha então todos os requisitos para a resposta ao desafio que o incontestável sucesso da metodologia interativa havia deixado, se seria possível replicar o método de interação em uma favela conflagrada pela criminalidade. Dando um salto na história, de 1997 para 2001, as estatísticas, as pesquisas e o reconhecimento também de âmbito nacional, a exemplo de Guaçuí, felizmente possibilitam uma resposta afirmativa ao questionamento. Passando por todas as fases, da interação funcional a interação social, a polícia interativa permitiu a ressignificação do Morro do Quadro para os que ali viviam ou trabalhavam. 118 Aspecto interessante desse processo de interação é que os benefícios da parceria polícia versus comunidade não se restringiram apenas à esfera da segurança pública, com a diminuição de 64% dos crimes contra a pessoa, e em 24% os crimes contra o patrimônio, já na virada do milênio, em comparação ao início do projeto (Rojas, 2003). Segundo nos informa a mesma autora, transcorrendo de forma paralela ao traço conceitual, técnico e social que permitiu a redução de importantes índices de criminalidade, outras mudanças foram verificadas. No âmbito dos bairros ―aumento de estabelecimentos comerciais, instalação de telefones públicos e corrimões nas escadarias, melhorias em sistemas de água, esgoto e telefone‖. Na Companhia de Polícia Militar local, a ―redução do estresse, reconhecimento do policial junto às comunidades, redução de punições disciplinares, redução considerável das denúncias de atos ilícitos e de violência praticada por policiais‖. Rojas (2003, p. 154). De plano, vê-se que o arrefecimento da elevada sensação de insegurança, resultado mais direto e palpável da interação, permitiu que o comércio local pudesse se expandir, gerando assim mais oportunidades de emprego e de inclusão social. Para os moradores, também a experiência de socialização e debate das questões relativas aos problemas na segurança pública permitiu a inclusão de outras pautas junto ao poder público, que necessariamente passam pela melhoria dos demais sistemas públicos de atendimento. Mesmo que focalizada, a mudança do pensar/agir dos policiais militares que atuaram no projeto refletiu o enfraquecimento da idéia de que a polícia deve servir apenas como uma instituição de repressão, ou uma agência de estrita aplicação da lei penal. Pedriali (2002), narra que o Destacamento Policial do Morro do Quadro recebia ligações de moradores, em sua maioria anônimos, não somente denunciando supostos crimes em tese praticados por moradores locais. Iniciativas que para a percepção unilateral de segurança pública extrapolam as atribuições policiais, como ―a solução de problemas que afligem o cotidiano – desde a troca de lâmpadas dos postes, também para que o ambiente escuro não favoreça a prática de delitos, até 119 providenciar o conserto de vazamento de água‖, eram naturalmente recebidas e encaminhadas aos órgãos competentes. (2002, p. 33-34). Essa visão caleidoscópica do pensar/agir policial, embora alguns críticos a reconheçam apenas como ilusória, mesmo de forma pontual acabou também sendo replicada no Morro do Quadro. Na medida em que os problemas de segurança pública deixaram de ser tratados de maneira restritiva, tanto policiais quanto moradores passaram a considerar como importantes uma série de variáveis antes relegadas, gerando como último efeito a diminuição da criminalidade e a melhoria da qualidade de vida em geral. O ápice do projeto ocorreu quando a Empresa Motorola do Brasil lançou um concurso nacional para a premiação das melhores experiências de policiamento comunitário. Em sua edição de 2001, o Projeto Morro do Quadro (Campos, Libardi, 2001), escrito especialmente para a participação no concurso, obteve a primeira colocação, mediante a escolha de um júri composto por especialistas em segurança pública. Em edição especial, a Revista Exame deu destaque à premiação (2003, p.157): Como prêmio por ter se destacado entre todos os programas de policiamento comunitário do país, a base do Morro do Quadro ganhou uma viatura e um sistema de rádio para uso dos policiais. Certamente, mesmo um observador atento diria que todas as oposições e contradições acerca do policiamento interativo na Polícia Militar capixaba estariam soterradas após os troféus e os meios materiais ganhos em razão da premiação. Além disso, pesaria em favor dessa análise o amplíssimo reconhecimento da façanha de que no mesmo bairro onde dois policiais foram assassinados, seis anos depois pudesse ser montado palanque para que os moradores festejassem com a polícia, em paz, sem confrontações. 120 Passada a euforia inicial, descobriu-se que a premiação não serviu para a produção de um debate menos carregado de preconceitos, ideologias vencidas pelo tempo e até mesmo uma elevada dose de críticas ao modelo e seus adeptos. Infelizmente, a reafirmação de que o modelo interativo de polícia é plenamente adaptável a outras realidades sociais, até mesmo as mais adversas, paradoxalmente não serviu como um elemento fomentador da expansão de outros projetos genuinamente interativos. Sem o incentivo da participação comunitária como molamestra para a construção da cidadania, e extremamente personalizada em alguns poucos policiais estigmatizados pelos colegas, a experiência do Morro do Quadro acabou gradativamente sendo diluída no tempo, perdendo em eficácia e resultados. 5.4 A REPROFISSIONALIZAÇÃO POLICIAL CAPIXABA Segundo a linha de pensamento de Szasz (apud Carey, White e Menke, 2002), o profissional que opta por abraçar uma profissão e atuar como um indivíduo não crítico, consequentemente acaba por abraçar a ideologia (da profissão), passando a ensiná-la, refiná-la e distribuí-la da forma mais ampla possível, inclusive promovendo sua defesa contra eventuais ataques. Já o que escolher ser um pensador crítico, optará pelo exame cuidadoso dessa ideologia, tanto lógica quanto sociologicamente, consequentemente atuando para sua destruição. Nossa análise, para efeito deste trabalho, não esboça movimentos no sentido de defender a completa demolição de todo o arcabouço das propostas referentes à política de segurança pública, mormente na área da polícia ostensiva, apresentadas no Espírito Santo na primeira década do século XXI. Tal cognição seria extremada e incompatível com a coluna vertebral da filosofia interativa de polícia, que atua na busca consistente do dissenso construtivo. Todavia, a crítica que se propõe ao exame dos programas e de suas linhas teóricas, expõe sim a tentativa acadêmica de destruir, mesmo que parcialmente, a ideologia cujo viés, mais tecnológico, muito reativo e pouco interacional, sustentou os 121 programas de segurança pública no Espírito Santo desde meados do início do novo milênio. O Espírito Santo, que na década de 1990 representou a vanguarda da comunitarização policial no Brasil, toma um direcionamento adverso a partir dos anos 2000, tornando-se um mero coadjuvante dos projetos e iniciativas propostas pelo Governo Federal ou por outras Unidades da Federação. A prospecção dos motivos que resultaram nesse claro retrocesso requer, necessariamente, a análise de uma série de fatores culturais, sociais e políticos, sobretudo da conjuntura estadual dos últimos anos. Os aspectos que envolvem a formação da cultura policial brasileira, e, consequentemente, capixaba, bem como as questões relacionadas ao intrincado processo social ligado à violência e a criminalidade já foram objeto de análise neste estudo. Entretanto, ainda nos interessa o aprofundamento de outro fundamental ponto para efeito do estudo do esfriamento da interação organizada entre a polícia e a sociedade no Espírito Santo. Chamamos a retração das ações de interação com a sociedade e os rumos tomados pela segurança pública no Espírito Santo, despontada desde o início do milênio, de reprofissionalização policial. Utilizamos a genérica expressão reprofissionalização policial para explicar o rumo tomado pelo poder público capixaba na esfera da segurança pública a partir de 2003, desnaturando quase toda a força teórica e prática alcançada pelos esforços de interação comunitária iniciados nos anos 90. Para entender o uso do termo reprofissionalização, é preciso fazer referência às chamadas três eras da polícia norte-americana: a política 1840/1900, a da profissionalização ou reforma, que perdurou até 1970, e a da resolução de problemas com a comunidade, de 1970 em diante. (Kelling, Moore, apud Cerqueira, 1998). 122 Nos concentraremos na era da profissionalização, que nos Estados Unidos permitiu que o movimento de modernização e uso de novos recursos tecnológicos – como grandes centros de comunicação em contato com veículos policiais nas ruas, e a centralização e o isolamentos dos policiais em relação a sociedade, convergisse na afirmação de um modelo reativo de segurança (Rolim, 2006). Como tratamos alhures neste trabalho, tal modelo constrói a figura do policial que se relaciona de maneira neutra e distante dos cidadãos, com procedimentos rotinizados. Ao mesmo tempo em que os policiais são encorajados a produzir mais prisões, são desprezadas as atividades que visam resolver outros tipos de problemas da comunidade, pejorativamente identificadas como de "assistência social", os quais requerem respostas policiais mais ecléticas, fora do roteiro penal repressivo. (Poncioni, 2005). Muito exposto em função das graves fraturas sociais demonstradas durante o movimento de luta pelos direitos civis, o modelo profissional estadunidense foi paulatinamente sendo reformulado, substituído por abordagens com foco mais comunitário. Na contramão das reformas iniciadas na polícia brasileira ainda nos anos 80, o eixo programático da política de segurança pública capixaba em foco produziu o fenômeno que aqui denominamos de reprofissionalização. Isso por que as diretrizes estabelecidas pelos programas estaduais de segurança pública deixaram claro o afastamento das matrizes comunitárias, permitindo assim o reflorescimento do modelo profissional, que já se julgava ultrapassado. Exemplo é o Plano Estadual de Segurança Pública e Defesa Social, elaborado pela Pasta da Segurança Pública do Espírito Santo em 200781. O documento, que dá continuidade ao traçado iniciado em 2003, que afastou a polícia estadual das diretrizes e da metodologia interativa de polícia, prevê as chamadas ―ações de participação popular‖ apenas como um subitem dentro da meta dois, que trata da 81 Governo do Estado do Espírito Santo. Secretaria de Estado da Segurança Pública e Defesa Social – SESP. Plano Estadual de Segurança Pública e Defesa Social, 2007. 123 reestruturação e reforma dos órgãos de segurança pública e defesa social (2007, p. 134). Embora o aludido plano traga em seu texto referências positivas quanto à efetivação de parcerias junto à sociedade para a diminuição da violência, os projetos em si não caminham nesse sentido, exceção feita a criação de uma ouvidoria policial. Nesse contexto o projeto rua segura, cujo texto prevê que ―pessoas devidamente treinadas terão comunicação direta com a polícia de forma anônima, disponibilizando informações sobre crimes em andamento ou atividades suspeitas‖. Também a participação anônima se dá na ampliação do projeto ―disque denúncia‖, que permite o envio de informações para prisão de criminosos, por exemplo, sem que o denunciante tenha que se identificar. Ainda compondo o rol de iniciativas inseridas nas ações de participação popular, encontramos os projetos ―Testemunha Digital e Alerta Digital‖. O primeiro prevendo a inserção de imagens de criminosos na rede mundial de computadores, para posterior identificação por parte das vítimas, e o segundo a instalação de alertas de segurança em edifícios, escolas, hospitais, estabelecimentos comerciais, entre outros, para acionamento mais rápido da polícia. O incentivo ao anonimato, ao denuncismo e a utilização de tecnologias para tais fins são aspectos capazes de revelar muito das entrelinhas disso que aqui nominamos de reprofissionalização policial. Permitem descortinar a inexistência de efetiva participação da comunidade na construção das idéias, quer seja por meio de Conselhos de Segurança, que não contam com o fomento ou incentivo do Estado, ou em plenárias que no mínimo busquem a legitimação, por parte da sociedade, das idéias oriundas dos gestores públicos. Dias Neto (2003, p. 95), denomina esse tipo de programa como sendo uma espécie de auto-ajuda, onde a polícia utiliza-se dos ―olhos e dos ouvidos da sociedade para potencializar sua capacidade de prevenir crimes e manter a ordem‖. Na mesma toada continua o referenciado autor (2003, p. 95-96): 124 Questiona-se em que medida tais programas contribuem para uma efetiva democratização da função policial. Não há dúvida de que uma sociedade atenta e mobilizada em torno de seus problemas favorece a qualidade do serviço policial. A população organizada serve de alerta à instituição sobre a gravidade de problemas e a necessidade de maior presença policial. Em regra, contudo, o envolvimento dos cidadãos limitase à realização de tarefas, não havendo uma dinâmica de planejamento comum. Enfatiza-se a cooperação do público na realização de tarefas policiais, mas subestima-se a sua participação nos processos decisórios (...) Famosas nos filmes do gênero faroeste, que cinematograficamente retratam o cotidiano da violência no meio oeste norte-americano no século XIX, iniciativas de incentivo, inclusive financeiro, para que supostos criminosos sejam denunciados pela população são pródigas no Brasil, sobretudo com a garantia da sigilosidade ofertada pelos atuais meios tecnológicos. Embora respostas positivas existam, o papel da sociedade não pode ser assim resumido. Nessa ―auto ajuda‖ da segurança pública, a cidadania acaba não estimulada e, consequentemente, renegada a um plano secundário, por programas de segurança cuja base relacional com os cidadãos se dá apenas mediante o incentivo de ligações anônimas para a prisão de pessoas, visando auferir gratificações ou recompensas. Nesses casos, as decisões estratégicas ou de maior importância nunca são tomadas de maneira participativa, servindo a comunidade como uma espécie de assessora do poder público. Uma séria inversão dos papéis, na medida em que em uma democracia a assertiva mais clássica é de que ―todo poder emana do povo‖. Não coincidentemente, Moore (2003), chama atenção para o que denomina de limitações do policiamento profissional, elencando diversos fatores para a premente derrocada desse conceito: ―fraqueza dos métodos operacionais, os limites da forma reativa, prevenção insuficiente, desprezo por solicitações que reportem crimes não sérios, profissionalização incompleta, crescimento da segurança particular‖. (2003, p. 128-133). Sobre a questão da profissionalização incompleta, Morre (2003) complementa argumentando que quando a polícia busca basear-se em seu próprio 125 profissionalismo para legitimar-se, ―torna-se responsável apenas por si mesma e por mais ninguém – o que num governo democrático é sempre uma posição suspeita‖ (2003, p 133). Ratificando esse posicionamento isolacionista, conquanto incensado como um dos exponenciais da política pública capixaba dos últimos anos, o Centro Integrado Operacional de Defesa Social – CIODES, representa muito do que neste trabalho estamos denominando de reprofissionalização. A promessa de respostas rápidas após a ligação telefônica ao número de emergência, a frenética busca por um tempo cada vez menor para a chegada da polícia ao local do crime (após seu cometimento), o chamado ―alerta vermelho‖, são objetivos perseguidos por esse modal. Infelizmente, esse empuxo que desloca a sociedade do núcleo para a superfície das decisões que lhe são afetas na segurança pública, é, contraditoriamente, mais palatável ao grande público. Isto porque as pessoas em geral ainda são pouco informadas sobre o real papel da polícia no controle criminal, bem como de suas potencialidades nesse mister. Apelos publicitários que prometem ―tolerância zero‖82 com o crime, aliados a imagens de cidadãos indeterminados sendo postos contra a parede em telejornais 82 Shecaira (2009, p. 165-176), lembra que a expressão ―tolerância zero‖ é usada em vários sentidos, seja pelo pai que adverte o filho sobre novas condutas proibidas, do empregador sobre eventuais erros do empregado, ou de políticos, sempre com o sentido de que haverá o endurecimento dos procedimentos. Usada na esfera criminal, a expressão quer dizer o aumento da repressão por parte da polícia, com mais prisões, operações, abordagens, etc..., sendo sinônimo de mais dureza no combate ao crime. O programa de tolerância zero tem sua origem, em grande medida, em função de um famoso artigo publicado por James Q. Wilson em parceria com George Kelling, no ano de 1982, na revista norte-americana Atlantic Montly. O artigo intitulou-se ―Broken Windows: the police and neighborhood safety‖. A idéia central do pensamento ali desenvolvido é o de que uma pequena infração, quando tolerada, pode levar ao cometimento de crimes mais graves, em função de uma sensação de anomia que viceja em certas áreas da cidade. A leniência e condescendência com pequenas desordens do cotidiano não devem ter sua importância minimizada. Ao contrário. Não se deve negligenciar essa importante fonte de irradiação da criminalidade violenta. Esse pensamento é metaforicamente exposto com a teoria das janelas quebradas. Em 1993 Rudolph Giuliani foi eleito prefeito de Nova York, com uma plataforma clara de ―endurecimento‖ com os criminosos e de guerra ao crime. No início de 1994, Giuliani nomeou William Bratton comissário de polícia de Nova York, com amplos poderes de enfrentamento do problema criminal, sendo a política então adotada denominada de ―tolerância zero‖. Embora tenha sido registrada a diminuição de alguns índices de criminalidade, o programa ficou também marcado por sérias denúncias de violações de direitos civis, sobretudo envolvendo preconceito racial. SHECAIRA, Sérgio Salomão. Tolerância Zero. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 5, p. 165-176, outubro/2009. 126 de grande audiência, tornam o esquema repressivo muito mais visual e atrativo, se comparado ao trabalho de conscientização contra as drogas em uma escola, por exemplo. Comentando sobre as incongruências desse tipo de abordagem na polícia estadunidense, Reiss Jr. consegue fazer uma nítida leitura de mais um dos efeitos da reprofissionalização policial capixaba (2003, p. 66-67): Talvez o maior impacto da tecnologia tenha sido solidificar a centralização burocrática do comando e do controle. A separação entre o trabalho dos policiais e as comunidades por ele policiadas foi completa em termos organizacionais. Nos anos 1970, o modelo dominante no policiamento americano foi o do discar-um-policial-resposta-rápida-ativado-pelo-rádio. Mas os responsáveis por esse modelo de policiamento não calcularam o tipo de troca que estava sendo feita. (...) Ficou claro que o volume dos chamados crescia mais do que os recursos dos departamentos para lidar com eles, especialmente em momentos de grande demanda. Um das soluções iniciais foi construir modelos de decisão, que estabeleciam prioridades de atendimento pelo tipo de chamado – desde o atendimento de emergência até o tempo de espera. Logo as pesquisas começaram a destruir a premissa principal do modelo por tempo de atendimento – a de que, com o atendimento rápido, mais criminosos seriam presos, por que eles estariam na cena do crime. (...) O modelo havia calculado mal o que os cidadãos esperam da polícia. Descobriu-se que muitos deles não esperavam um atendimento imediato e estavam dispostos a esperar até que a polícia pudesse tratar de seu problema. Obviamente que as soluções tecnológicas se constituem em ferramentas de extrema importância para o controle da criminalidade, devendo, entretanto, ser combinadas com estratégias concretas que permitam a interação das pessoas com os gestores policiais. Isolados, os softwares acabam reafirmando o caráter excludente e burocrático do processo decisório na política de segurança pública, delegando aos cidadãos um papel apenas secundário em relação à complexidade do tema. Por isso, Bayley (2006), lembra que um elemento essencial da definição das instituições policiais é a autorização em nome da comunidade. Ou seja, na verdade 127 a polícia exerce seu poder em virtude de uma prévia anuência comunitária, não devendo existir ou agir enquanto organização autóctone em relação aos desejos e anseios sociais. Em outros termos, quando as estratégias policiais não tem como base a legitimidade que determinado grupo da sociedade organizada lhe proporciona, em uma parceria que seja decisória (Dias Neto, 2003), a polícia passa a ter um fim em si mesma. É essa relação egoísta que passa a não se encaixar na necessidade do estabelecimento de um programa sincrético e multifacetado de segurança pública, muito mais adequado a complexidade que tanto envolve o tema quanto o fortalecimento da democracia. Estranho ainda constatar que essa retração, ou reprofissionalização, ocorre em pleno regime democrático, ou de império das leis, à revelia de importantes dispositivos legais, que ordenam ao administrador público a administração dos negócios da segurança pública com a participação dos cidadãos.83 O problema do afastamento das políticas públicas no Espírito Santo desses modernos preceitos comunitários comporta muitas análises, embora uma das mais factíveis nos remeta a uma das próprias características da filosofia comunitária, a chamada personalização (Trojanowicz, Bucqueroux, 1994). A quebra do anonimato dos policiais diante das comunidades, tanto em Guaçuí quanto no Morro do Quadro, para se fixar apenas em dois dos mais importantes projetos do Brasil, não ocorreu em função de uma incorporação da filosofia nas raízes organizacionais das corporações policiais. Contrário disso, a mudança do ethos policial tornou-se mais visível nos locais em que policiais militares em determinadas funções de comando, convencidos dos benefícios da interação com as representações de moradores dos bairros 83 Além da Constituição Federal de 1988, a própria Carta Constitucional do Espírito Santo, em seu artigo 124, parágrafo único, determina: ―Fica assegurado, na forma da lei, o caráter democrático na formulação da política e no controle das ações de segurança pública do Estado, com a participação da sociedade civil‖. ESPÍRITO SANTO. Constituição (1989). Constituição do Estado do Espírito Santo. ES. Assembléia Legislativa. 1989. 128 adjacentes, optaram por uma diametral mudança no pretérito fazer policial, que não se espraiou para as unidades policiais vizinhas, como inicialmente podia se esperar. Sendo assim, o conceito interativo acabou muito dependente de um grupo de profissionais de segurança pública – os habitantes do arquipélago, como já explicitamos em outro trecho deste trabalho, perdendo com isso em eficácia, força e alcance, tornando assim sua fidedigna prática restrita e incapaz de mover a pesada estrutura tradicional. Como também ressaltaram Trojanowicz e Bucqueroux, ―é difícil transformar um departamento da noite para o dia‖, (1994, p. 47), anotando ainda que a mudança do perfil de ação dos policiais deve alcançar a todos os integrantes de uma Corporação, e não apenas uma parte. Contudo, o corte epistemológico que representou o advento da polícia interativa no Espírito Santo, permitindo a eclosão de um movimento de mudança na mentalidade policial e social, acabou interrompido por um abrupto deslocamento da via de ação do Estado, que aqui denominamos de reprofissionalização. Por razões que partem do desconhecimento e chegam até a intransigência em aceitar os ótimos resultados apresentados pelas experiências capixabas, passando inclusive pela antidemocrática idéia de que as políticas públicas implementadas em governos anteriores devem ser sepultadas junto com seus gestores, o policiamento interativo passou a sofrer, desde 2002, o efeito ―fade out‖84. 84 Fade out (fade = desvanecer + out imagem) é um termo em inglês que representa o efeito que provoca o gradativo escurecimento de uma imagem, até o preto total, muito usado em imagens de filmes antigos para representar o final de uma sequência, ou mesmo do filme. Aqui desejo fazer uma analogia com o gradativo processo de esquecimento, ou apagamento da filosofia interativa no âmbito do Espírito Santo, após o ano de 2002. Sendo alinhavada com as mais modernas concepções de policiamento do mundo, e com excelente aceitação por parte da sociedade local, a filosofia interativa não foi oficialmente extinta enquanto concepção capaz de oferecer respostas mais adequadas para a moderna dinâmica criminal, mas sim paulatinamente esquecida, omitida e substituída pela subliminar e atrativa retórica de guerra ou combate ao crime. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Anexo:Terminologia_de_cinema. Acesso em 01/12/2011. 129 6 O FUTURO DE UMA ILUSÃO A partir de uma perspectiva psicanalítica, ao escrever a obra ―O Futuro de uma Ilusão‖ (1927), o pensador austríaco Sigmund Freud buscou afirmar que as idéias religiosas se originavam na ilusão. Nazareth Cerqueira (2001), policial militar e também psicólogo por formação, utilizou a idéia freudiana da ilusão para descrever o sonho de uma nova polícia, baseada na cidadania como palavra de ordem. Discutir a concretude do processo de interação entre a polícia e a sociedade capixaba é tarefa que necessariamente passa por conhecer seus resultados e perspectivas. Superado o primeiro ponto, na medida em que as pesquisas e estudos já citados nesta pesquisa demonstram a inconteste melhoria dos indicadores criminais e da satisfação coletiva das comunidades atendidas, nos resta entrever o futuro. Para isso, refaremos o caminho indagativo de Cerqueira, (2001, p. 117): ―Será que a ilusão pode ser realidade? Será que uma nova polícia pode florescer? Será que policiais e comunidade podem se dar as mãos para construir juntos uma parceria para controlar o crime no marco dos direitos humanos? Três premissas básicas envolvem a resposta. A primeira, se a polícia interativa foi somente uma miragem, um engano ilusório dos sentidos. Segunda, se foi à interatividade talvez uma espécie de augúrio passageiro, marcado apenas por experiências pontuais. Terceiro, algo que mesmo com todas as oposições de caráter subjetivo, culturais, políticas, se afigura como a saída do enorme labirinto de problemas relativos à violência enfrentados pela sociedade capixaba. Não será necessário o tradicional suspense retórico para responder a indagação. A polícia interativa se delineia, objetivamente, como uma realidade baseada na mais autorizada doutrina internacional, cujos testes já a credenciam para tornar-se a base de uma política pública de segurança que possa combinar eficiência policial com diminuição dos índices criminalidade, respeito aos direitos humanos e promoção de cidadania. 130 No caso do Espírito Santo, é preciso superar uma enorme barreira política e cultural, erigida durante quase toda a primeira década dos anos 2000, cimentada pelo que neste trabalho denominamos de negação. O termo ―negação‖ é amplo, podendo ser interpretado em várias frentes. Segundo o dicionário Houaiss, significa ―ato ou efeito de negar; o que se nega, o que não se admite como verdade; (...) não admissão de algo, recusa, rejeição (2009, p. 1347). Neste ponto queremos utilizá-lo no sentido no forçado abandono de idéias, projetos e modernas iniciativas na área da segurança pública. Para entendimento dessa concepção da negação, necessário será mais uma vez retornar ao quatriênio 1999 / 2002, período em que José Ignácio Ferreira governou o Espírito Santo, e ao plano de segurança lançado em seu governo. Tal plano, denominado Programa de Planejamento de Ações de Segurança Pública – Pro-pas85, foi subdividido em vários outros subprojetos, como o projeto de integração das comunicações dos Órgãos de defesa social, unificação do ensino, a gente de paz, Zonas de Policiamento Integrado, Corredor de Segurança Ostensivo – CSO, entre outros. Além de seu ineditismo, em razão de ter sido o primeiro programa público de segurança no Espírito Santo, o Pro-pas estava apoiado em princípios que mesmo passada mais de uma década desde a virada do milênio, ainda permanecem atuais. Entendemos política pública, nesse contexto, como o ―estado em ação‖ (Gobert, 1987, apud Höfling, 2001, p. 35), ou seja, a ação estatal de implantação de um projeto de governo, quer seja por intermédio de programas ou de ações que se voltam para determinados setores, nesse caso, a segurança pública. Tal programa envolveu ações na área da integração entre as polícias estaduais, quer seja na divisão do espaço físico, ensino unificado e nas comunicações, 85 Governo do Estado do Espírito Santo. Secretaria de Estado da Segurança Pública: Programa de Planejamento de Ações de Segurança Pública – PRO-PAS. 2001. 131 aproximação com a comunidade universitária, informatização, aumento da ostensividade policial, construção de indicadores de segurança pública, entre outros. Conceitos inovadores e só então inseridos no vocabulário policial capixaba. Ao lançar a cientificidade como pedra angular no controle da criminalidade, o Propas rompeu a barreira histórica que resumia segurança pública no trinômio ―carros, armas e prisões‖. Veículos para o patrulhamento aleatório, policiais reprimindo a criminalidade nos bairros de periferia e, consequentemente, realizando prisões que apenas retroalimentam o ineficiente sistema de justiça criminal. Contudo, embora o programa tenha obtido excelente avaliação86, em meio a uma enorme crise política, acabou também oficialmente extinto após o término do mandado de José Ignácio Ferreira. Como muito bem ressaltou Nogueira, refletindo sobre a chamada descontinuidade administrativa no Brasil (2006, p. 13): (...) interrupção de iniciativas, projetos, programas e obras, mudanças radicais de prioridades e engavetamento de planos futuros, sempre em função de um viés político, desprezando-se considerações sobre possíveis qualidades ou méritos que tenham as ações descontinuadas. Como consequência, tem-se desperdiço de recursos públicos, a perda de memória e saber institucional, o desânimo das equipes envolvidas e um aumento da tensão e da animosidade entre técnicos estáveis e gestores que vêm e vão ao sabor das eleições. De maneira abrupta, o Pro-pas foi sepultado em meio a denúncias de desvios de recursos públicos alardeadas pela imprensa capixaba. Fatos que mais tarde se mostrariam não verdadeiros, mas suficientes para permitir que uma nova dinâmica, baseada na reprofissionalição, provocasse a imediata interrupção dos mecanismos de interação com a sociedade, bem como a retomada do empirismo como um dos principais fatores para o processo decisório na segurança pública. Imaturidade democrática, ou severa perspicácia política, ou ambos, proibiram que Pro-pas fosse reconhecido como um programa de segurança pública, que deve ser 86 Segundo pesquisa do Instituto Futura, a soma dos entrevistados que avaliaram o Pro-pas como ótimo, bom ou regular, foi de 60,65%, respectivamente, média bastante superior a avaliação geral do trabalho policial no Brasil. Fonte: Governo do Estado do Espírito Santo. Secretaria de Estado da Segurança Pública: Programa de Planejamento de Ações de Segurança Pública – PRO-PAS, p. 13, 2001. 132 visto sob a ótica técnica, e não analisado ou inserido na argumentação dos embates políticos, como foi o caso do Espírito Santo. Isso acabou resultando em um posterior encurralamento dos novos programas na pasta da segurança, em razão do ineditismo do Pro-pas como política pública no estado capixaba. Assim, dar continuidade a uma linha que se demonstrava ascendente, rumando na direção de uma paulatina, porém constante, atualização da política de segurança, pela lógica política, seria o mesmo que admitir que parte do discurso de mudança, a partir da eleição de um novo mandatário estadual, serviu apenas como retórica eleitoral. Respondendo a indagações sobre a constante conflitualidade entre polícia e os cidadãos em geral, Muniz (2011)87, deixa muita claro tanto o pioneirismo do Espírito Santo no desenvolvimento de iniciativas de gestão policial com a sociedade, quanto a perda dos rumos em função das ambiguidades na construção de um pacto consistente com a comunidade: Como está a situação no Espírito Santo? Eu diria que o Espírito Santo tem uma experiência sobre isso. Foi o primeiro a lançar um programa de policiamento comunitário do país, o policiamento interativo. Foi também o primeiro a criar programas de policiamento comunitário em favelas, como nós vemos no Rio, as UPPs. A questão é que aqui essas coisas não duraram. E não duraram porque faltou um plano. E esse plano não é um papel escrito. É aquele que todo mundo assina, que todos nós construímos juntos, na forma de um pacto social. Como uma necessidade decorrente da interrupção do alinhavamento de um pacto com a sociedade, surge à negação, muitas vezes disfarçada pela troca de nomes de projetos, que na essência eram os mesmos apresentados durante o Pro-pas. O repertório da sinonímia foi grande. O Corredor de Segurança Ostensiva - CSO, que consistia na disposição estratégica de veículos policiais em pontos diferentes da Região Metropolitana da Grande Vitória, por exemplo, tornou-se Policiamento 87 Conflitos da polícia com a sociedade: as formas de controle social sobre as ações policiais. Disponível em: http://gazetaonline.globo.com/_conteudo/2011/06/noticias/especiais/871411-conflitosda-policia-com-a-sociedade-as-formas-de-controle-social-sobre-as-acoes-policiais.html. Acesso em 01/01/2011. 133 Ostensivo de Referência – POR, depois no Cerco Tático Estadual, entre outras denominações análogas ao longo dos tempos. Já a polícia interativa acabou transformando-se em uma espécie de discurso oficial, ou resposta padronizada às queixas de cidadãos diante de algum crime. Na prática também negada, em virtude da completa ausência de iniciativas ou incentivos locais, mas teoricamente aplicada, sobretudo em função das diretivas do Governo Federal, a partir do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania – PRONASCI88. Com a injeção de recursos financeiros do Governo Federal, desde 2007 o Espírito Santo formou 214989 policiais militares, civis, guardas municipais e cidadãos em geral em cursos diversos de polícia comunitária-interativa. A iniciativa é quase que unilateral da Polícia Militar, já que as demais agências policiais parecem pouco ou quase nada se interessar na reativação de uma metodologia continuada de relacionamento com a comunidade. Os cursos são um componente importante na construção do discurso oficial, que ressalta a existência de pseudo esforços para ensinar e estimular policiais a interagir com a comunidade. Paradoxalmente, constata-se que se os formandos recebem certificados de um curso que ao mesmo tempo os atualiza com importantes conhecimentos e trocas de experiências, também desperta ou reforça uma consciência crítica que os permite melhor enxergar a vacuidade das idéias e concepções que reforçam o modelo profissional de polícia. Já na formatura torna-se patente a falta um sistema público coordenado, alimentando por vontade política, que permita a interconexão de idéias e o exercício prático dos conteúdos aprendizados, os quais sem estímulos de aplicação, em pouco tempo caem em novo esquecimento. 88 BRASIL. Lei nº 11.530, de 24 de outubro de 2007. Institui o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania e outras providências. Diário Oficial da [República Federativa do Brasil], Brasília, DF. 89 Fonte: Relatório da Coordenadoria de Polícia Interativa da Polícia Militar do Espírito Santo. 2011. 134 Também com recursos do Governo Federal, mediante participação no PRONASCI, o Espírito Santo implementou, em 2010, o chamado ―Território de Paz‖, mais um sinônimo da original fórmula interativa. O policiamento é fixado em determinada localidade, servindo o destacamento policial ao mesmo tempo como referência e ponto de chegada e partida dos policiais envolvidos no patrulhamento em determinada circunscrição. Nesse espaço territorial, normalmente mediante a coordenação do comandante local de polícia, são aplicadas as modalidades de interação (Costa, Fernandes, 1988), um encadeamento ordenado de múltiplas ações, policiais ou não, com o desiderato de controlar a criminalidade com a participação da comunidade. Portela (2010) relata que tal intento detinha como principal objetivo reestruturar a polícia interativa, o que melhor explica a reutilização do método interativo. Ao mesmo tempo, mais uma vez desvela-se a questão da negação, que já se apresenta implícita, pois toda a metodologia interativa é aplicada, muito embora sob o disfarce de um outro nome, uma nova marca. Mais uma vez depreende-se que essa política pública tende a uma perigosa limitação, focando-se ―por um lado nos gastos de praxe; pelo outro as respostas às crises, algumas vezes imediatas, rápidas, mas sem pensar o modelo nem trocá-lo‖ (Soares, 2009, p. 10). Estudando acerca de políticas públicas e ordem pública, Sapori (2007) vai além, lembrando que no Brasil os Governos, os quais possuem o comando e controle financeiro das polícias, controlam apenas parte do sistema de justiça criminal. A propositura de leis, o processo penal, a aplicação das leis e sua execução, entre outras importantes funções, estão sob a responsabilidade de outros poderes e instituições, com autonomia financeira e também política. Para o prefalado autor, em países como o Brasil há uma singularidade do poder executivo em prover ordem pública já que seu sistema de justiça criminal não está centralizado, mas sim tripartido, assim como o poder, havendo então a necessidade de desenvolvimento de um conceito mais amplo do que política pública. 135 Nos ensinos de Sapori, (2007, p. 74): O conceito de governança tem sentido mais amplo que o de governo, na medida em que considera que os serviços públicos são providos de uma network organizacional complexa. Governança diz respeito, portanto, ao gerenciamento dos nexos e relações estabelecidos entre as organizações. E tais redes são em boa medida auto-organizativas, ou seja, das organizações que a compõe têm considerável controle sobre si mesmas, de modo que a autoridade do governo sobre elas e é limitada. (...) Os resultados da ação administrativa do governo, nessa ótica, não são mera consequência da implementação de regras para reduzir a ocorrência do fenômeno criminoso. A questão nos remete a um prolífico debate no âmbito da criminologia (...) Pode a atuação da polícia impactar as taxas de criminalidade? Haverá alguma correlação com as taxas de aprisionamento e as taxas de crimes contra a pessoa e o patrimônio? Não se pode responder categoricamente em termos positivos ou negativos tais indagações. Isso se reflete no âmbito da política pública, conformando um dissenso cognitivo crônico entre os decision makers. Vemos que tudo converge para o debate público, expressão maior da democracia, justamente o núcleo da filosofia interativa, tipicamente projetada para funcionar de maneira conselhar. Nesse modelo, pequenos ou médios agrupamentos de pessoas, representantes da sociedade de determinado bairro ou localidade, se reúnem para discutir com gestores públicos diversos, soluções para os problemas coletivos, que envolvem a segurança pública, quase sempre interligada com deficiências na rede escolar, saúde, infraestrutura básica, drogas, etc... Note-se que o debate popular acerca dos problemas nos bairros não está submisso aos empecilhos estruturais e institucionais que permanentemente vinculam os gestores. Para as pessoas em geral, juízes, promotores, policiais, defensores públicos, agentes penitenciários, secretários, são servidores do povo, cada um com suas especificidades de carreira, e não agentes públicos, obrigados que estão a prestar contas e a alinharem-se aos desejos e anseios coletivos. O que a polícia pode ou não fazer para diminuir a criminalidade? Ou o que o Estado deveria passar a fazer para melhorar a qualidade de vida das pessoas? Essas são perguntas que vão permanecer com meias respostas enquanto os planos de segurança seguirem como meras cartas de intenção, de construção unilateral, servindo as expressões ―cidadania, comunidade, participação popular‖ como 136 eufemismos que buscam suavizar seu contexto repetitivo, formalista e contraproducente. Em 03 de outubro de 2010 José Renato Casagrande foi eleito Governador do Espírito Santo, com mandato de quatro anos, a partir de janeiro de 2011. Seu plano de segurança, denominado ―Estado Presente‖, em linhas gerais objetiva aliar ações de combate à criminalidade com políticas públicas destinadas a reduzir as desigualdades sociais.90 Ato contínuo, o Programa Território de Paz dá lugar a um novo programa de Governo na área da segurança pública, o Estado Presente. Mesmos prédios, carros, policiais, problemas, conquanto outro nome, uma nova marca. Reprisa-se a negação, esquecendo-se que a relação entre informação e democracia é biunívoca, ou seja, uma não pode existir sem a outra (Ferrari, 2000). Mesmo dispondo de um discurso alinhado com as práticas mais modernas para o controle criminal, sugere-se novamente a negação, posto que o programa não reequilibra os pólos de poder. Nesses passos, ou percalços, o que de fato existe entre a retórica oficial e a prática acaba sendo escamoteado por interesses não muito republicanos, que oferecem esconderijo a planos e idéias muitas vezes individualistas de alguns gestores públicos. Uma visão panorâmica, mais holística, que abandonasse o tradicional atomismo na relação Estado versus polícia versus sociedade, certamente sugeriria outra abordagem ao caso. Nisso, implícito está o reconhecimento da existência prévia de programas e boas práticas na segurança pública, que invés da detração ou da negação, podem ser aperfeiçoados, adaptados, e até melhorados. 90 Governo do Estado do Espírito Santo. Secretaria de Estado da Segurança Pública e Defesa Social. Programa Estado Presente – 2011. 137 Após quase uma década de incertezas, medos e ilusões, passos que percorrem um caminho em círculos, as soluções rumam na direção do pensamento independente, sem clivagens partidárias ou ideológicas. E num discurso que se baseie ao mesmo tempo, na verdade e na reconciliação, do Estado e de suas agências e Órgãos ligados ao sistema de justiça criminal com as pessoas, diminuindo o pesadelo da apartação social91 (Da Silva, 2009), provocado pela violência e todo tipo de conflitos. Tirar a polícia dessa espécie de vôo cego, sem instrumentos, que se orienta apenas com base na cansativa retórica repressiva, constitui-se em tarefa coletiva, fundamentalmente ligada a junção de conexões sociais que se alinham em um plano único de deslocamento. Em segurança pública, tanto na prática quanto na sua construção política e ideológica, o que mais importa é a base. Por isso, somente a democracia e a constante e organizada interação com a sociedade podem dar a sine qua non sustentação e sentido de continuidade para que a necessária transformação que tanto necessita o sistema de segurança pública brasileiro finalmente aconteça. 91 Exemplo importante de reconciliação social pode ser encontrado na África do Sul, após a extinção do regime apartheid. Segundo Filipe (2009, p. 01) ―A reconciliação centra-se na reconstrução sociopsicológica pós-conflito que passa pela reconstrução de identidades onde há lugar para o reconhecimento da dignidade do outro. Este processo pode passar, também, pela compreensão das raízes mais profundas do conflito (...) Ele requer a participação activa das comunidades no sentido de anteciparem um futuro partilhado (...) A verdade e o reconhecimento do passado ajudam a estabelecer uma ponte para o futuro, criando uma memória colectiva e uma cultura de debate e de direitos humanos, por oposição à anterior cultura de impunidade (...)‖. FILIPE. Ângela Marques. O Processo de Reconciliação na África do Sul. CIARI – Centro de Investigação e Análise em Relações Internacionais. Disponível em http://www.ciari.org/investigacao/processo_reconciliacao_africa_sul.pdf. Acesso em 03/12/2011. 138 7 CONCLUSÃO Ao se estudar a história da polícia brasileira, um dos mais eloquentes aprendizados aponta no sentido conhecer como ao longo do processo de construção de toda a identidade política do país, persistiu o conflito entre a legítima ação de monopolizar e controlar o poder policial, típica de qualquer Estado politicamente organizado, e a utilização desse mesmo poder para o atendimento de fins partidários. Para que o aparato policial brasileiro pudesse ser usado como um importante instrumento isolante de Governos e suas respectivas clivagens político-ideológicas, em relação aos principais anseios e necessidades sociais, desde a colonização, passando pelo Império e a República, dois métodos de formação e atuação policial acabaram coincidentes. Primeiro a militarização das agências policiais, criadas e formadas a partir de concepções belicistas precariamente traduzidas dos campos de batalhas e adaptadas ao meio urbano. Por meio de estruturas fortemente hierarquizadas e de um treinamento que visava o preparo para uma verdadeira guerra junto à sociedade, gradativamente a noção do ―inimigo interno‖ foi sendo construída desde meados do século XVIII, atingindo seu ápice com o golpe militar de 1964. Depois a politização do serviço policial, que se aperfeiçoou ao longo do século XX, com a inauguração de uma forma muito peculiar e até mesmo interpretativa quanto à aplicação da lei. Como ―olhos e braços do Estado‖, a máquina pública e seus meios coercitivos acabaram sendo utilizados de maneira imprópria e exacerbada, levando a polícia a ver como inimigos do Estado – leia-se do ocupante do poder, e, consequentemente, como criminosos, os ―elementos‖ discordantes, pertencentes aos grupos de oposição aos acordo de poder vigente. Entretanto, o marasmo de questionamentos quanto à ideologia e até mesmo a gestão militarizada das instituições policiais, fortemente verticalizadas, pouco preocupadas com a pesquisa e o desenvolvimento de novos conceitos, e ainda, bastante inclinadas à mera replicação do pensar e agir meramente bélico, não resistiu ao processo de redemocratização da década de 1980. Muito menos ao forte 139 aumento da criminalidade registrado em todo o país desde o final do século XX, injetando assim no modelo policial brasileiro um sério contraste, que permitiu a exposição tanto de suas isquemias, quanto de suas fragilidades. Construída a partir de métricas que delinearam o desenho de uma polícia forte, rígida, discordante da idéia de democracia participativa, e ainda repressora e opositora dos movimentos sociais, a relação das agências policiais brasileiras com a sociedade quase sempre foi também precária. A inexistência de canais prévios de diálogo e também de gestores policiais que estivessem acostumados ao natural dissenso manifesto em atos, gestos e opiniões, típicos de regimes democráticos, onde o cidadão está legitimado a exigir que seus direitos sejam mais do que folhas de papel, também fez com que na década de 1980 ruídos fossem ouvidos nas primeiras manifestações populares nas principais capitais brasileiras. Como o já observado, o aumento da criminalidade, motivado por diversos fatores, entre os quais a popularização de substâncias entorpecentes mais devastadoras, e ainda, a legitimação de uma democracia por meio da Carta Magna de 1988, obrigou o estabelecimento das primeiras pontes de diálogos entre os agora cidadãos manifestantes e os então representantes das classes policiais. No entanto, impunhase uma transformação na dialética, já que a mecânica do poder havia se alterado em virtude do regime democrático em nascimento. No Espírito Santo, repetido o padrão nacional de distanciamento e primeiras aproximações das agências de polícia estaduais e a sociedade local, a novidade democrática dos anos 80 foi também acompanhada por um forte movimento de aumento da criminalidade, o que neste trabalho denominamos de curva ascendente da violência. Nosso estudo foi localizado nos municípios da Região Metropolitana da Grande Vitória - RMGV, constando que entre 1980 e 2002 a taxa de homicídios nessa região aumentou quase três vezes se comparada ao crescimento médio da mesma taxa nas outras regiões metropolitanas do Brasil. 140 O exagero das estatísticas reflete muito bem não somente a perda do controle na gestão da segurança pública, mas de forma muito latente a ausência de soluções que pudessem fugir ao agir tradicional, de realização de operações policiais em bairros de periferia, blitzens policiais e a seletivização dos reprimidos, pouco ou quase nada eficientes ante aos novos tempos. A partir da década de 1990 os primeiros movimentos de democratização policial, iniciados ainda na aurora da década anterior no Rio de Janeiro, começam também a reverberar no Espírito Santo. Fincada na mais autorizada teoria aplicada em vários países da Europa, bem como nos Estados Unidos, a polícia interativa inova ao aplicar uma metodologia que permite um encadeamento de ações que começam na polícia, e encerram seu ciclo nas outras instituições do sistema de justiça criminal e nas comunidades. Os microfatos criados pela polícia interativa, que mudam a direção do poder até então estabelecida no processo de produção de segurança e ordem pública, equilibrando a importância da sociedade no processo decisório em relação às autoridades policiais, criam também uma espécie de conflito interna corporis. O sucesso das experiências de interação realizadas no município de Guaçuí, sul do Espírito Santo, e na região do Morro do Quadro, localidade da periferia da capital, fez mais do que comprovar a eficácia da estratégia de repactuação de vontades entre a polícia e a sociedade. Incitou também o conflito, tendo forte oposição dos que discordavam em maior ou menor grau com em dar ao fenômeno criminal o tratamento pluricausal necessário, combinando diminuição da criminalidade com aperfeiçoamento da cidadania. Em lado oposto a essa maioria ainda aliada ao modelo tradicional, estão os habitantes do arquipélago. Neste estudo tal expressão foi utilizada para traduzir a posição dos policiais que se agruparam em torno das idéias da comunitarização policial, em oposição ideológica e até mesmo política em relação aos demais, ou seja, uma maioria formada ou bastante influenciada sob a égide da forte cultura tradicional, bastante combativa as idéias de recombinação do pacto polícia versus comunidade. 141 O movimento pendular de opiniões, ou de atos de gestão de Comandantes ora mais simpáticos ora menos adeptos das teorias de interação policial, acabou gerando uma transformação inacabada. Se entre 2000 e 2001 a polícia interativa foi nacionalmente reconhecida como a melhor experiência de comunitarização policial do Brasil, objeto da curiosidade de pesquisadores e vista como modelo a ser replicado em outras Unidades da Federação e países, em terras capixabas a tendência posterior acabou sendo o que adjetivamos como reprofissionalização policial. O ano de 2002 registrou o fim de uma administração estadual marcada por denúncias de corrupção, tendo a população local, acolhido um novo projeto de governo. Paradoxalmente, nesse mesmo conturbado período político, a polícia interativa repetia em uma região altamente marcada pela violência, o sucesso da experiência anterior no sul capixaba. O ―novo‖ permeava o Estado. Com o slogan ―O novo Espírito Santo‖, a então recém eleita administração estadual manteve por dois mandatos consecutivos a premissa central da necessidade de renovação das instituições públicas, sobretudo em relação ao combate a impunidade e ao crime organizado incrustrado na máquina pública. Embora os avanços tenham sido marcantes, na área da reorganização das finanças e do aperfeiçoamento dos mecanismos estatais para o desenvolvimento regional, as inovações na segurança pública na verdade significaram uma nova guinada em direção ao passado. A reprofissionalização significou uma espécie de repúdio às ações de comunitarização realizadas nos anos anteriores, tendo a máquina policial se voltado, novamente, para as micro-ações seletivas de ocupações de bairros e blitzens policiais episódicas. Também a ênfase na aleatoriedade do patrulhamento dos carros de polícia e sua constante obsessão pelo tempo de resposta aos fatos já ocorridos, pelo desprezo aos conselhos comunitários, provocando a sua inanição, e a uma série de outras medidas de caráter seletivo e pouco ou quase nada eficientes 142 diante da complexidade dos problemas relativos ao crime, criminoso e sociedade vitimada. A negação funcionou como um suporte a todo esse processo de reprofissionalização. Negar, que também compreendeu ignorar ou mesmo camuflar algumas iniciativas como ―novas‖, era uma necessidade para que não fosse lembrado que em um governo marcado por denúncias de corrupção, havia sido estabelecida uma moderna política de segurança pública. De volta ao começo, ou seja, tendo passado quase toda a primeira década do novo milênio reexperimentando muitos dos mesmos conceitos e táticas já tidos como ultrapassados desde a abertura política ainda na década de 1980, este estudo desagua na tentativa de responder uma importante indagação. Teria a polícia interativa sido uma mera ilusão diante da tamanha realidade objetiva imposta pelo fenômeno da reprofissionalização? E ainda, qual seu futuro diante dos novos cenários e desafios pós-milênio? Iniciado em 2011 um novo quatriênio na administração estadual, as contradições na política capixaba de segurança pública permanecem. O novo programa estadual de segurança pública, denominado ―Estado Presente‖, mais do que um curioso pleonasmo, já que não se pode imaginar a figura do Estado, enquanto organizador e controlador social, ausente ou distante da sociedade, apenas dá continuidade à sina da reprofissionalização e suas ancestrais práticas. Por outro lado, comprovada sua concretude por estudos e pesquisas nacionalmente reconhecidas, a polícia interativa se afirma não enquanto um mero espasmo retórico ou factual, mas sim como uma consistente proposta de ressignificação do ser e agir policial, a partir da constante busca da apaziguação social, com a participação das comunidades. Permanece, no entanto, a necessidade de encarar a questão da transformação do modelo policial brasileiro enquanto um processo ainda em curso, portanto sujeito as intempéries próprias de qualquer fase ou rito de passagem social, político, cultural. 143 Por isso, finda a primeira década do milênio, a reconstrução, ou seja, a etapa posterior a da demolição da identidade da polícia brasileira, que de alguma forma começou a ruir juntamente com o regime militar, ainda está em curso. Estamos, por conseguinte, em meio ao processo dialético de redefinição do modelo policial brasileiro, tempos nos quais pairam ainda muitas dúvidas e incertezas no cenário brasileiro, sobre o verdadeiro papel da polícia em regimes democráticos, as novas dinâmicas do crime, influenciado que está pela pós-modernidade e também a globalização. E ainda, quais os caminhos para a redução da criminalidade, diante da tendência de aperfeiçoamento da democracia e do consequente aumento da obsolescência dos meios meramente policialescos de abordagem da temática. Rumar no sentido da reconstrução do modelo policial brasileiro, necessariamente passa pela pavimentação de uma nova via, no longo caminho ainda a ser percorrido para a plena efetivação da cidadania no Brasil. Os desafios e oposições reservados para nossa sociedade no campo da segurança pública já não existem somente no mundo fenomênico próprio, não são ilusões. Verdadeiramente, são tão reais quanto à necessidade de retomada do processo de interação e comunitarização, constituindo-o como o novo alicerce dessa urgente remodelação do edifício que abriga o modelo policial brasileiro. Eis, portanto, o futuro dessa ―ilusão‖ chamada polícia interativa. 144 8 REFERÊNCIAS ABE, André Tomoyki. Grande Vitória, ES: Crescimento e Metropolização. USP, 1999; pag. 167. ADORNO, Sérgio. PASINATO, Wânia. Violência e impunidade penal: Da criminalidade detectada à criminalidade investigada. DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social - Vol. 3 – nº 7 - JAN/FEV/MAR 2010 – p. 63. ADORNO; Sérgio. CARDIA, Nancy. Violência em tempo de globalização. Org. José Vicente Tavares dos Santos. Ed. Hicitec. SP, 1999. ALVES, Pedro; DE SOUZA, Edson Belo Clemente; BATISTA, Alfredo Aparecido. Neoliberalismo e a desterritorialização dos espaços. Revista Temas & Matizes. Vol 9, nº 1. 2005. AMARAL, Antônio Barreto do. 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