Segredos da catálise enzimática

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Segredos da catálise enzimática
Ensino em Biotecnologia
Segredos da catálise enzimática
João Paulo Medeiros Ferreira¹
¹ Escola Superior de Biotecnologia – Universidade Católica Portuguesa, Porto
Rua Dr. António Bernardino de Almeida, 4200-072 Porto
Tel: 225580027; Fax: 225090351; e-mail: [email protected]
RESUMO
As enzimas sempre despertaram acentuado interesse
aos bioquímicos. A sua diversidade, estrutura e capacidade catalítica têm sido alvo de sucessivos estudos, com
resultados frequentemente surpreendentes. Embora
algumas das propriedades das enzimas sejam do conhecimento comum, a compreensão dos mecanismos físicoquímicos subjacentes à sua actuação é frequentemente
superficial. Este texto pretende rever, dum modo simples
e sistematizado, os factores que, presentemente, são
tidos como responsáveis pela catálise enzimática.
produtos. As abcissas representam a coordenada reaccional,
uma variável que traduz o evoluir da reacção, e nas ordenadas
figura a energia de Gibbs do sistema, G (esta é a grandeza
termodinâmica adequada para temperatura e pressão fixas).
Conforme explicado, a S‡ corresponde um máximo de
energia.
A velocidade de formação de produtos ( v =
d [ P]
dt ) é ditada
pela velocidade da etapa lenta, ou seja, a segunda etapa em
(1):
v=
d [ P]
′  ‡
dt = k S 
(2)
(
)
‡
Como S‡  = [S] K ‡ e K ‡ = exp −∆G RT , então a velocidade de formação de produtos é calculável por
Introdução
Vamos recordar algumas propriedades gerais dos catalisadores, e das enzimas em particular, recorrendo a uma teoria de
cinética química muito difundida, a teoria dos estados de
transição. Qualquer transformação química compreende
uma determinada sequência reaccional, com quebra de
ligações e formação de novas outras. No processo, formamse estruturas transientes de elevada energia, designadas
estados de transição ou complexos activados. Estes não são
observáveis experimentalmente e têm tempos de meia-vida
estimados em volta de 10-13 s. Exemplifiquemos para a reacção
A − B + C → A + B − C . O estado de transição deverá
corresponder a uma espécie do género [ ABC ] , na qual
a ligação entre A e B se está a quebrar, enquanto uma outra,
entre B e C, se está a formar. Vamos simplificar a sua representação por S‡. Uma vez formado, o estado de transição pode
decompor-se de novo nos reagentes ou, de um modo mais
lento, originar os produtos. Aquela reacção é, então, descrita
pelos passos
K‡
k′
A − B + C ⇔ S‡ → A + B − C
d [ P]
dt = κ
(
‡
′ [S] exp −∆G
RT
)
(3)
em que ∆G‡ é a variação de energia de Gibbs padrão da
formação do estado de transição, correntemente designada
apenas por energia de activação.
A equação anterior evidencia que a velocidade de reacção
diminui acentuadamente com o aumento da energia de activação. Por exemplo, a 25 ºC, um aumento de apenas 5.71 kJ⋅mol-1
(1)
Esta teoria supõe que existe um equilíbrio rápido entre os
reagentes e o estado de transição, caracterizado pela constante
de equilíbrio K‡. Em termos energéticos, a transformação pode
ser representada por um diagrama como o da Fig. 1, conhecido por diagrama de estado de transição ou diagrama de
coordenada reaccional, em que S são os reagentes e P os
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v=
Fig. 1 - Diagrama de coordenada reaccional para uma transformação
química elementar.
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em ∆G‡, provoca uma diminuição de 10 vezes em v.
Catálise ácido-base
As enzimas, enquanto catalisadores, providenciam percursos
reaccionais alternativos, de menor energia de activação. Os
novos percursos reaccionais incluem geralmente a formação
de espécies intermédias de relativa estabilidade, distintas dos
estados de transição. Entre essas espécies figuram os complexos
enzima – substrato (ES) e enzima–produtos (EP). Assim, uma
reacção enzimática inclui, no mínimo, os seguintes passos:
Considere-se a reacção de hidrólise de ésteres. O processo não
catalítico deverá ocorrer como representado na Fig. 3(a). O estado de transição apresenta uma carga negativa no oxigénio carbonílico e uma carga positiva na molécula de água, o que torna
a sua formação bastante desfavorável. Mas a hidrólise de ésteres admite catálise não-enzimática por ácidos e por bases, como
mostram as Fig. 3(b)-(e). Na presença de um ácido ou de uma
base forte, a espécie catalítica é, respectivamente, H+ ou OH-,
sendo estes géneros de catálise conhecidos por ácida específica e básica específica. Contudo, muitas outras espécies podem
ceder ou aceitar protões, servindo também como catalisadores (Fig. 3(d)-(e)). Nestes casos, as catálises são designadas ácida geral e básica geral. Em qualquer dos casos, a função do catalisador é permitir que, por transferência de um protão, se origine um estado de transição mais estável, logo, de menor energia do que em (a).
E + S ⇔ ES ⇔ EP ⇔ E + P
(5)
Ou seja, o percurso reaccional tem várias etapas elementares,
cada uma com um estado de transição e energia de activação
associados (ver Fig. 2). Do exposto, é compreensível que
a velocidade do processo global seja ditada pela etapa
mais lenta, ou seja, aquela com maior energia de activação.
Frequentemente, tal etapa é a conversão de reagentes em
produtos, mas há muitos casos em que uma outra etapa, como
a de libertação dos produtos, é a mais lenta. Com base na Fig.
2, enfatize-se que: i) a variação de energia de Gibbs da reacção
global, ∆G, é a mesma para as vias catalítica e não-catalítica;
ii) os catalisadores providenciam uma mesma redução da
energia de activação na reacção no sentido directo, S → P , e
na reacção em sentido inverso, P → S . Como consequência,
a constante de equilíbrio global permanece inalterada.
Na prática, observa-se que as enzimas aceleram reacções por
um factor da ordem de 106 a 1014. Um estudo estimou que a
enzima ácido orótico descarboxilase aumenta a velocidade
reaccional em 1017 vezes relativamente à reacção não catalítica,
cujo tempo de meia-vida, para condições ambientais, foi avaliado em 78 milhões de anos (Radzicka e Wolfenden, 1995)!
Eis um exemplo notável da importância dos biocatalisadores.
Para além de espectaculares efeitos catalíticos, as enzimas
mostram elevada especificidade, isto é, catalisam apenas
uma só reacção ou, quando muito, um grupo muito similar
de reacções.
As enzimas possuem vários grupos que podem actuar como ácidos e bases gerais. Nomeadamente, os aminoácidos
aspártico, glutâmico, histidina, cisteína, lisina, tirosina, serina e
arginina têm grupos laterais protonizáveis. Assim, um ou mais
destes aminoácidos podem figurar no centro activo das enzimas, intervindo no processo de catálise. Várias reacções enzimáticas de hidrólise de ésteres e de amidas, reacções de tautomerização, ou de transferência de grupos fosfato, entre outras, apresentam os mecanismos ácido e/ou base geral. Estes apresentam
várias vantagens em relação a catálise por H+ ou OH-: i) nas condições fisiológicas de pH, as concentrações destas espécies são
muito baixas, tornando-se pouco viável a sua participação directa na reacção; ii) grupos ácido ou base geral localizam-se estrategicamente no centro activo, enquanto que H+ e OH- apresentam elevada mobilidade. iii) grupos protonizáveis da enzima podem apresentar valores de pK muito afastados dos cor-
O intuito primordial deste artigo é, agora, aprofundar os mecanismos moleculares que, supostamente, estão por detrás destas
propriedades extraordinárias e misteriosas das enzimas.
Expor com algum pormenor as bases experimentais que
levaram às conclusões seguintes seria longo e complexo, pelo
que tal não será feito. Diga-se, contudo, que muito do conhecimento adquirido sobre o funcionamento das enzimas advém
de estudos cinéticos e de revelações de estruturas tridimensionais das moléculas por cristalografia de raios X e técnicas de
RMN. Mais recentemente, a engenharia genética trouxe novas
ferramentas como, por exemplo, as que permitem alterar um
ou vários aminoácidos das sequências polipeptídicas para
assim se avaliar a sua influência na catálise. Dos muitos estudos efectuados, depreendeu-se que nos processos enzimáticos
intervêm factores de natureza química e outros de natureza
mais física. Entre os primeiros listam-se a catálise covalente,
a catálise ácido-base e a activação por metais; nos segundos,
os efeitos de proximidade e orientação, desestabilização de
substrato e/ou enzima e o efeito de estabilização do estado
de transição. Refira-se que esta classificação não é universal,
encontrando-se outras diferentes na literatura.
Fig. 2 - Diagrama reaccional para uma reacção enzimática típica.
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Catálise Covalente
Mostrou-se que, no decurso de muitas
reacções enzimáticas, um substrato
ou um seu fragmento liga-se covalentemente a um grupo lateral da cadeia
polipeptídica ou, por vezes, a um co-factor enzimático. Tais espécies intermédias
podem apresentar alguma estabilidade,
mas o processo deverá prosseguir para
originar produtos e regenerar a enzima
(ou co-factor) livre. Este mecanismo é
encontrado, por exemplo, nas proteases
de serina, como a tripsina, quimotripsina,
ou elastase. Estas enzimas hidrolisam as
ligações amida de cadeias polipeptídicas,
de acordo com o mecanismo da Fig.
4. Após ligação do substrato ao centro
activo, o grupo hidroxilo de uma serina
da protease ataca o carbono carbonílico
da ligação amida do substrato. Forma-se
um complexo activado, de geometria
tetraédrica em torno desse carbono.
O complexo quebra, originando um
primeiro produto com um novo grupo
terminal amino, enquanto a restante
parte do substrato permanece numa ligação éster com a serina. Neste processo, o
hidrogénio da Ser foi transferido para o
grupo imidazol de uma histidina. Este
grupo aceita com facilidade o protão,
porque a carga positiva que adquire é
estabilizada pela proximidade do grupo
carboxílico de um aspartato.
O complexo covalente intermédio,
embora com certa estabilidade (é possível
“congelar” a reacção e isolá-lo), é todavia
deslocado por um ataque nucleófilo de
uma molécula de água, o que engloba
passos semelhantes aos anteriores, mas
por ordem inversa. No final, têm-se
enzima regenerada e o segundo produto,
com um novo terminus carboxílico.
Pelo descrito, observe-se ainda que este
processo reaccional apresenta, para
além de catálise covalente, o mecanismo
ácido-base geral.
Fig. 3 - Mecanismos reaccionais para a hidrólise de ésteres: (a) reacção
não-catalítica; (b) catálise por um ácido forte; (c) catálise por uma base
forte; (d) catálise por um ácido geral; (e) catálise por uma base geral.
respondentes pK´s de aminoácidos simples em solução, devido
a diferentes microambientes. Deste modo, a função ácido ou base geral desses grupos é flexibilizada, podendo ajustar-se convenientemente a cada caso. Exemplos específicos de mecanismos
ácido-base são apresentados mais adiante.
 Boletim de Biotecnologia
Para além de Ser, outros aminoácidos formam, noutros casos,
ligações covalentes com o substrato, como histidina (exemplo:
em succinil-coA sintetase), cisteína (exemplo: em tiol-proteases), ou lisina (exemplo: em acetoacetato descarboxilase).
Por vezes, a transferência de grupos do substrato é efectuada
através de um co-factor, como tiamina-pirofosfato, biotina ou
piridoxal-fosfato (PLP). Um conjunto de enzimas com este
último co-factor são as transaminases, que catalisam a transferência do grupo amino entre aminoácidos e α-cetoácidos. Um
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Fig. 4 - Mecanismo reaccional de quimotripsina, uma protease de serina.
dos pares envolvidos é, quase sempre, glutamato/α-cetoglutarato. No centro activo das transaminases, o grupo PLP forma
uma base de Schiff com uma Lys da estrutura polipeptídica
(Fig. 5(a)). Esta ligação é quebrada quando o primeiro aminoácido cede o grupo amino, formando-se piridoxamina-fosfato (PMP) e libertando-se o α-cetoácido correspondente. O
mecanismo detalhado desta transformação é mostrado na Fig.
5(b). Reparar que a Lys actua como base geral e como ácido
geral nos passos (2) e (3), respectivamente.
regenerando a enzima-PLP.
A segunda fase da reacção começa com a ligação à enzima do
segundo α-cetoácido. Por um conjunto de passos inversos aos
anteriores, não mostrados na Fig. 5(b), este substrato recebe o
grupo amino de PMP, originando um novo α-aminoácido e
Entre um quarto e um terço de todas as enzimas conhecidas
exigem um ião metálico para a sua actividade. O tipo de ligação desses iões e as suas funções são bastante diversos. Nas
enzimas activadas por metal, os iões ligam-se às estruturas
Recorde-se que estes ou quaisquer outros exemplos de reacções enzimáticas representam percursos reaccionais de menor
energia de activação do que os correspondentes processos
não catalíticos (a serem possíveis), não obstante formarem-se
novas espécies intermédias.
Catálise com Iões Metálicos
Boletim de Biotecnologia
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Fig. 5 (a) - Reacções catalisadas por
transaminases: esquema da transformação.
durante o processo catalítico;
ou são agentes electrofílicos,
actuando dum modo algo
semelhante, mas com maior
intensidade, que H+ (sendo,
por isso, designados superácidos). Conhecem-se mais
de 300 enzimas com Zn2+
como co-factor, entre eles,
a anidrase carbónica. Esta
enzima catalisa a conversão de
CO2 dissolvido a bicarbonato
no interior dos eritrócitos
polipeptídicas das enzimas e/ou aos substratos por interacções fracas a moderadas e reversíveis. Frequentemente, os
iões K+, Mg2+ ou Ca2+ estão neste caso. Eles contribuem para
a estabilidade da conformação activa da enzima, ou para
uma efectiva ligação
do substrato ao centro
activo. Por exemplo, as
cinases em que ATP
é dador de grupos
fosfato requerem Mg2+
para a sua actividade.
Este ião complexa
com os grupos fosfato
do ATP, neutralizando
parcialmente a sua
elevada carga negativa.
Noutros casos, os iões
metálicos
ligam-se
fortemente ao centro
activo das enzimas,
então
designados
metaloenzimas.
Frequentemente,
os
metais envolvidos são
metais de transição,
como zinco, cobre,
cobalto
ou
ferro.
Estes desempenham
normalmente
um
de dois papéis: ou
são mediadores de
reacções de oxidaçãoredução, alterando o
seu estado de oxidação
Fig. 5 (b) - Reacções catalisadas por transaminases:
mecanismo de meia reac-
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[ CO2 (d) + H2 O(l) ⇔ HCO−3 (aq ) + H+ (aq ) ]. Na enzima,
Zn2+ está tetracoordenado a 3 histidinas da cadeia polipeptídica e a um grupo hidroxilo. Este último resulta de uma molé-
Ensino em Biotecnologia
Fig. 6 - Mecanismo de anidrase carbónica, uma metaloenzima.
cula de água, facilmente dissociada pelo ião zinco (Fig. 6). O
ião hidróxido é um forte nucleófilo, atacando e transferindo-se
para o CO2. Uma nova molécula de água liga-se, então, a Zn2+.
Refira-se que a simplicidade deste mecanismo faz com que
a anidrase carbónica seja uma das enzimas conhecidas mais
eficientes. Este parâmetro pode ser traduzido pelo quociente
kcat
K m , que representa a constante cinética da reacção de
segunda ordem entre enzima e substrato. O seu valor é limitado
superiormente pela velocidade com que enzima e substrato se
podem encontrar, ou seja, a velocidade de difusão em solução
dessas espécies, que é da ordem de 109 M-1⋅s-1 (Fersht, 1985).
k
Para a anidrase carbónica, cat K = 1.2×108 M-1⋅s-1!
m
Efeitos de proximidade e orientação
Passemos agora a analisar factores de natureza essencialmente
física que intervêm nos processos enzimáticos. Considere-se
uma reacção bimolecular. Para que ocorra, os dois reagentes
têm de se encontrar, sendo a velocidade proporcional ao
produto das suas concentrações. Na mesma reacção catalisada
por uma enzima, os substratos formam eventualmente um
complexo com ela. Assim, os dois reagentes vão estar muito
próximos um do outro, isto é, a sua “concentração efectiva” vai
ser elevada. Para além disso, os seus grupos reactivos vão estar
na orientação adequada para a reacção. Estes efeitos promovidos pelas enzimas designam-se efeitos de proximidade e de
orientação.
O aumento de velocidade reaccional derivado destes efeitos
pode ser avaliado mesmo em reacções não-enzimáticas,
comparando as constantes cinéticas de uma reacção bimolecular e de uma reacção unimolecular semelhante. A Tabela 1
apresenta as constantes de segunda ordem da reacção entre
fenol e ácido acético ( k2 ) e de duas reacções unimoleculares
k
( k1 ) equivalentes. A razão entre elas, 1 k , é 3.2x104 M em
2
(B) e 8.5x108 M em (C). Estes números traduzem a referida
“concentração efectiva” de grupos reactivos para as reacções
unimoleculares. Como explicar valores tão elevados? Nos reagentes singulares, os movimentos de translação e de rotação
das moléculas não influem na reacção, ao contrário do que
acontece em reacções multimoleculares. A estes factores pode
ainda juntar-se o de movimentos de rotação interna. Dos substratos na Tabela 1, o da reacção (C) tem menor liberdade de
rotação nas suas ligações que o da (B) devido aos substituintes
adicionais no benzeno. Esta inibição de movimentos internos
da molécula amplifica o efeito de orientação, o que deverá
explicar a diferença de 104 entre as constantes cinéticas das
duas reacções. Em processos enzimáticos, a ligação dos substratos à enzima promove estes mesmos efeitos, eliminando
movimentos de translação, de rotação molecular e de rotação
interna nos substratos.
Em termos de interpretação termodinâmica, a formação do
complexo enzima – substrato(s) representa uma grande diminuição de entropia em relação a enzima e substrato(s) livres
em solução. Daí, os efeitos acima descritos serem conhecidos
por efeitos anti-entrópicos. A uma diminuição de entropia
corresponde um aumento na energia de Gibbs. Assim, estes
efeitos elevam a energia do complexo ES, reduzindo deste
modo a energia de activação. Como é óbvio, eles têm maior
expressão em reacções envolvendo simultaneamente mais
do que um substrato. Por último, refira-se que, para além do
substrato ou enzima, os efeitos anti-entrópicos podem advir
de outras moléculas, particularmente do solvente. Sabe-se
que a reacção entre duas espécies em solução só ocorre após
um rearranjo das moléculas de solvente à volta, isto é, após se
originar um microambiente particular, etapa que pode mesmo
ser a limitante do processo. No centro activo das enzimas,
microambientes favoráveis são providenciados à partida, com
a presença de moléculas de solvente estritamente necessárias e
com orientações adequadas para catálise.
Pode-se interrogar, pertinentemente, como é que E e S tendem
espontaneamente para um estado de menor entropia. A
resposta reside na parcela entálpica associada à formação
do próprio complexo ES, isto é, na energia das interacções
enzima-substrato, que é negativa. Têm-se, assim, dois efeitos
opostos associados à formação de ES. O balanço de G respectivo poderá ser positivo ou negativo.
Estabilização do estado de transição
Uma enzima deve ligar o estado de transição com uma
afinidade superior à sua ligação ao substrato, na forma do
complexo ES, ou à sua ligação ao produto, na forma EP. Este
facto é fundamentado por princípios lógicos e também por
algumas observações experimentais. Se a ligação entre enzima
e substrato for muito forte, a energia de Gibbs de ES será
baixa, possivelmente até bastante inferior à das espécies E e S
separadas. Ora, assim sendo, a etapa seguinte terá uma energia
Boletim de Biotecnologia
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Ensino em Biotecnologia
de activação muito eleTabela 1: Cinética de Diferentes Reacções de Esterificação
vada, perdendo-se a
vantagem catalítica.
Para que tal não aconteça, ES deverá ter uma
energia razoavelmente
Concentração efectiva
alta. Simultaneamente,
Reacção
Reagentes
Constante Cinética
de grupos reactivos
interessa, sim, baixar a
energia de ES‡, o que
(A)
10-10 s-1 M-1
acontecerá se a complementaridade entre
enzima e estado de
transição for elevada.
Isto é, quando se passa
(B)
3.2 x 10-6 s-1
3.2 x 104 M
de ES a ES‡, devem
formar-se interacções
adicionais entre enzima e substrato, como
(C)
8.5 x 10-2 s-1
8.5 x 108 M
pontes de hidrogénio,
ligações iónicas, forças
de van der Waals ou
efeitos hidrofóbicos
favoráveis. Este factor
é tido como um dos
principais promotores
do poder catalítico de
grande parte das enzimas, sendo conhecido por estabilização Cristalografia de raios X de enzima livre e enzima - inibidor,
do estado de transição. Ele é visível no mecanismo das entre outras técnicas, permitiu corroborar que a formação
proteases de serina, por exemplo, onde o oxianião correspon- do complexo é frequentemente acompanhada de alterações
dente ao estado de transição é estabilizado por duas pontes de conformacionais na enzima. Em alguns casos, estas são
relativamente pequenas, mas noutros casos são consideráveis,
hidrogénio formadas com a cadeia polipeptídica (Fig. 4).
mudando a enzima duma forma inactiva para uma conforOs dois princípios acima descritos – elevação energética de mação activa. Estes rearranjos podem também originar uma
ES e diminuição da de ES‡ – são representáveis no diagrama certa tensão em ES.
do estado de transição (Fig. 7). Em relação ao primeiro
princípio, deduz-se que um bom substrato é aquele que se liga Existem outras observações experimentais que suportam as
frouxamente à enzima, ao contrário do que a intuição poderia teorias anteriores. Para muitas enzimas, o parâmetro cinético
prever. Contudo, deverá existir sempre alguma afinidade, caso Km é uma boa estimativa da constante de dissociação de ES, ou
contrário não ocorrerá formação de uma concentração signi- seja, traduz a afinidade da ligação com o substrato (Km elevado,
ficativa de ES, limitando a velocidade reaccional. Há, portanto, baixa afinidade e vice-versa). Os valores de Km situam-se
uma afinidade de compromisso óptima para a catálise.
Em alguns casos, pode mesmo acontecer que a formação de ES
seja acompanhada da introdução de alguma “tensão” em E e/
ou S. Esta tensão pode advir de alterações conformacionais em
E ou S (distorção ou tensão estérica), de interacções desfavoráveis entre ambos (como proximidade de grupos com a mesma
carga), etc. Quando evidente, este efeito é, por vezes, designado
por desestabilização de ES. Um bom exemplo de distorção
do substrato é visto em lisozima. Esta hidroliza ligações Oglicosídicas entre o carbono-1 de ácido N-acetilmurâmico
(MurNAc) e o carbono-4 de N-acetilglucosamina (GlcNAc)
nos peptidoglicanos de paredes bacterianas. Quando a cadeia
de ósido se liga ao centro activo do lisozima, a conformação
do MurNAc envolvido na hidrólise altera-se de cadeira para
meia-cadeira. Esta é, também, a conformação do carbanião
formado no decurso da reacção (Fig. 8(a)). Assim, a distorção
inicial do substrato aproxima a energia de ES da de ES‡.
Fig. 7 - Efeitos de desestabilização de ES, (a), e de estabilização de ES‡,
(b), promovidos pela via enzimática.
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Ensino em Biotecnologia
(c)
(a)
(d)
(b)
Fig. 8 - Estados de transição nas reacções catalisadas por lisozima (a) e por adenosina deaminase (b) e exemplos de compostos análogos a esses
estados, (c) e (d), respectivamente.
geralmente entre 10-1 e 10-7 M e, em muitos casos, em volta
de 10-4 M. Estes são valores elevados, quando comparados
com as constantes de dissociação de outros complexos, como
ligando-receptor ou antigénio-anticorpo, onde existe boa
complementaridade entre as duas espécies. Por outro lado,
compostos análogos a supostos estados de transição ligamse às enzimas com elevadíssima afinidade (sendo, por isso,
excelentes inibidores competitivos). Pode-se apresentar alguns
exemplos. O composto derivado de (GlcNac)4 com um grupo
lactona na última unidade (Fig. 8(c)) é um forte inibidor de
lisozima. Esta propriedade é atribuída à conformação desta
ose, que se aproxima da meia-cadeira. A conversão de adenosina a inosina é efectuada por adenosina deaminase (Fig. 8(b)),
com um K m = 3×10−5 M . Um composto análogo ao suposto
estado de transição da reacção, representado na Fig. 8(d), é
um potente inibidor, com um K i = 3×10−13 M . Ou seja, esse
composto deve ter uma afinidade pela enzima 108 vezes mais
elevada que o substrato.
Talvez a prova mais notável do efeito de estabilização do esta-
do de transição venha do recurso a anticorpos monoclonais.
As experiências baseam-se na seguinte suposição: se enzima
e estado de transição são muito complementares, então anticorpos desenvolvidos contra supostos estados de transição
poderão apresentar actividade catalítica. Desde 1986, diversos
grupos têm conseguido produzir tais anticorpos catalíticos.
Um destes trabalhos utilizou o fosfonamidato da Fig 9(a),
composto análogo ao suposto estado de transição que ocorre
na hidrólise da amida na Fig. 9(b). Efectivamente, anticorpos
contra o primeiro composto actuaram no segundo, com
demonstrada especificidade.
Em termos energéticos, a estabilização do estado de transição
é perfeitamente aceitável. Por exemplo, com base na teoria dos
estados de transição, para uma aceleração da ordem de 106
entre reacção não-catalizada e catalizada, é necessária uma
redução de 34.2 kJ⋅mol-1 (a 25 ºC) na energia de activação.
Ora, este valor equivale aproximadamente à energia de apenas
duas pontes de hidrogénio. Assim, em algumas enzimas, a
estabilização do estado de transição poderá, só por si, explicar
grande parte do efeito catalítico.
Conclusão
Têm sido elucidados diversos factores físicos e químicos
subjacentes à catálise enzimática. Nem todos estão
sempre presentes, e o factor com maior impacto varia
de caso para caso. Só o conhecimento detalhado do
processo reaccional permite inferir sobre estes aspectos,
revelando o “segredo” catalítico da enzima.
Referências e outra Bibliografia
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College Publishing
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A. Fersht (1985) Enzyme Structure and Mechanism, 2ª edição, W. H.
Freeman and Co.
Fig. 9 - (a) Composto utilizado para desenvolver anticorpos catalíticos para a
reacção de hidrólise da amida em (b).
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S. J. Benkovic (1992) Catalytic Antibodies, Annu. Rev. Biochem. 61, 29-54
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