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FEMPAR – FUNDAÇÃO ESCOLA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ THIAGO MARINHO TOMAZI A FAMÍLIA EUDEMONISTA COMO BALIZA ESSENCIAL À PERPETUAÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES INTERSUBJETIVAS NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA CURITIBA 2008 2 THIAGO MARINHO TOMAZI A FAMÍLIA EUDEMONISTA COMO BALIZA ESSENCIAL À PERPETUAÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES INTERSUBJETIVAS NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA Monografia apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Especialista em Ministério Público – Estado Democrático de Direito, na área de concentração em Direito Civil, Fundação Escola do Ministério Público do Paraná - FEMPAR, Faculdades Integradas do Brasil - UniBrasil. Orientador: Prof. Ms. Samir Namur. CURITIBA 2008 3 TERMO DE APROVAÇÃO THIAGO MARINHO TOMAZI A FAMÍLIA EUDEMONISTA COMO BALIZA ESSENCIAL À PERPETUAÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES INTERSUBJETIVAS NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA Monografia aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Especialista no curso de Pós-Graduação em Ministério Público - Estado Democrático de Direito, Fundação Escola do Ministério Público do Paraná - FEMPAR, Faculdades Integradas do Brasil – UniBrasil, examinada pelo Professor Orientador Ms. Samir Namur. ______________________________ Prof. Ms. Samir Namur Orientador Curitiba, ______/_____/________ 4 DEDICATÓRIA À minha intenção em trazer à tona algumas das razões dentre as quais podemos lançar mão, para livrar nossa sociedade do pensamento arcaico do patriarcalismo e adentrar no eudemonismo, fazendo com que estejamos cada vez mais próximos de um Direito que considere mais os sentimentos em detrimento dos fúteis interesses. 5 AGRADECIMENTOS À Wanessa, minha esposa, que sempre esteve presente para dar o devido apoio, carinho, incentivo e amor, elementos sem os quais seria impossível o desenvolvimento deste trabalho. À meus pais e familiares, cuja presença e aconselhamento só fizeram acrescentar em todas as etapas deste trabalho. 6 SUMÁRIO RESUMO............................................................................................................................... 07 INTRODUÇÃO....................................................................................................................... 08 1.0 ARQUÉTIPO DE FAMÍLIA: ASPECTOS GERAIS......................................................... 09 2.0 O MODELO DE FAMÍLIA PATRIARCAL: EXERCÍCIO DE DESCONSTRUÇÃO......... 13 3.0 O MODELO EUDEMONISTA DE FAMÍLIA: VISÃO DE REFORMA.............................. 19 4.0 HOMOAFETIVIDADE: REFLEXO DO EUDEMONISMO................................................ 27 CONCLUSÃO........................................................................................................................ 49 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................................... 50 7 RESUMO O presente trabalho visa o fornecimento de subsídios para apresentação da necessidade em que nossa sociedade se encontra em assumir a perspectiva eudemonista nas organizações entre pessoas, quebrando com o velho paradigma do pátrio poder. Somente desta forma, sabe-se que estarão sendo constitucionalmente respeitados os princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana, através de um exercício de interpretação extensiva e analogia. Para construir este raciocínio, num primeiro momento procuramos apresentar aspectos gerais na formação dos modelos de família ao longo dos anos. Em um segundo momento trabalhamos com uma espécie de exercício desconstrutivo do conceito de patriarcalismo, em um terceiro passo apresentamos o modelo eudemonista como sendo o que mais se aproxima de um ideal, para concluir com a apresentação da união civil entre pessoas do mesmo sexo, em outra palavras, homoafetividade, para identificar um exemplar bastante significativo do compromisso do modelo eudemonista. Desta forma, entende-se tenha sido realizada uma pequena abordagem da edificação de um novo paradigma para o Direito de Família. 8 INTRODUÇÃO Durante muitos anos perpetuou em nossa sociedade o modelo patriarcal de família, cuja essência sempre esteve baseada no casamento civil com fins destinados à procriação, aos interesses econômicos e ao caráter hierarquizado. Nesta quadra de raciocínio, a legislação anterior à Constituição Federal de 1988, vale dizer o Código Civil de 1916, estabelecia o que hoje se denomina poder familiar, por pátrio poder, já fornecendo um condão eminentemente patriarcal, no sentido de colocar o poder sempre nas mãos do marido. Ocorre que, diante das novas realidades que se nos apresentam todos os dias, a permanência do caráter ortodoxo estabelecido pelo legislador de 1916, passou a não mais fornecer respostas jurídicas válidas, que visassem ao atendimento e solvência das lides expostas pela sociedade. Neste sentido, o presente trabalho visa justamente apontar uma breve contextualização da organização familiar para, em um segundo momento elucidar os aspectos concernentes à família patriarcal, com a utilização de argumentos que venham a colocá-lo em derrocada, justificando como sendo algo deveras irresponsável para interpretação das realidades atuais, nas quais as organizações familiares deixaram de ser erigidas única e exclusivamente na conveniência, para ceder espaço aos sentimentos, ao afeto, à convivência mútua a ao verdadeiro sentido de unir pessoas, este é o terceiro capítulo de nosso trabalho. Este novo modelo de família é o que denominamos de família eudemonista, representando a cisão com todos os paradigmas existentes até o momento de sua criação. Um dos exemplos de hermenêutica eudemonista é apresentado em nosso projeto com a união homoafetiva, cujos critérios de reconhecimento são justificados por doutrinas e textos jurisprudenciais. A aplicação de princípios como isonomia e dignidade da pessoa humana serviram de instrumentos mais que infalíveis para apresentar a possibilidade de reconhecimento da união civil entre pessoas do meso sexo. Acredita-se que, com esta pesquisa, se extraia da menta humana o pensamento ortodoxo e conservador de preceitos patriarcais, no sentido de fazê-la compreender o real significado de família na sociedade atual, cuja maneira de perpetuação condiciona-se à subsunção ao arquétipo eudemonista. 9 1.0 ARQUÉTIPO DE FAMÍLIA: ASPECTOS GERAIS O conservadorismo presente em todos os escritos, para identificar qualquer espécie de aglomeração humana, na tentativa de se estabelecer um conceito para o que se entende por família, manteve seus efeitos até a promulgação da Constituição Federal de 1988, quando passou-se a ter uma delgada perspectiva de mudança do conceito e acabou servindo de influência para o projeto do Código Civil de 2002. Até então, a família restringia-se a referir um organismo de pessoas hermético em seu plano de existência, sustentando a idéia da hereditariedade como sendo o aspecto mais importante e a necessidade da simples realização do vínculo matrimonial para fins de configuração. Assim, permanece-se na idéia do pai como sendo a figura central e de única importância na tomada das decisões sobre o destino da família, construindo assim o modelo patriarcal. Aponta Luiz Edson Fachin: Instaura-se, progressivamente, o patriarcado. Confere-se ao pai a direção unitária da família, regida pela lei da desigualdade, direção que implica diferenças nos papéis e funções da família. Desigualdade extremamente arbitrária, poder imotivado. Instala-se uma visão transpessoal da família, segundo a qual os interesses de uma unidade da instituição prevalecem sobre os seus membros.1 Ao tratar da idéia de organização intersubjetiva, cumpre-se erigir a família como exemplar mais primitivo e importante do gênero. E aqui se fala em família não somente na perspectiva jurídica do termo, mas também querendo mencionar sua nuance enquanto organização responsável por unir pessoas através de um processo afetivo de subsunção. Desde os primórdios da humanidade se observa as mais diversas formas de proliferação humana e, assim, a perpetuação de um legado escoltado em princípios e maneiras de nascimento, criação, desenvolvimento e morte. Acredita-se que, de nada vale a materialidade de determinada sociedade, se esta não consegue se sujeitar a um processo de adaptação impingido por sua própria existência, importando na aceitação de valores diferenciados e visando sua inserção em um meio que exige o progresso e a ausência de preconceito como ferramentas indispensáveis à exploração da felicidade. Desprendendo-se da rigidez e assumindo 1 FACHIN, Luiz Edson. Direito de família: Elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 65. 10 a volatilidade, há que se falar na idéia de eudemonismo, ao tempo em que passa-se a interpretar a família como a reunião de pessoas coligadas que visam o vínculo de afeto através da felicidade. Em outras palavras, a família patriarcal, deveras conservadora e, de certa forma, retrógrada no ponto de vista da evolução social, cede lugar a um conceito moderno e mais amplo no abarcamento das diversas situações. E isso por compreender a felicidade e não a autoridade como elemento principal. Crê-se que somente assim estar-se-á realizando juízo de valor positivo daquilo que se compreende por organização social. Nestes termos, informa Luiz Edson Fachin: Os valores que informaram a elaboração do Código Civil de 1916, com a legitimidade da família e dos filhos fundada no casamento, vão dando lugar a uma nova dimensão, em que surgem como elementos de maior relevo a igualdade e o afeto. [...]. O contorno do modelo patriarcal e hierarquizado de família, com sua dimensão transpessoal, dá lugar a um novo modelo igualitário e fundado no afeto.2 Conforme se percebe, o que se pretende é justamente uma noção de abandono desta idéia engessada e conservadora do patriarcalismo, a fim de se erigir um novo conceito baseado em uma possibilidade de existência de estrutura sócioafetiva de família. Direitos básicos essenciais, que outrora foram sonegados para fins de manutenção do modelo patriarcal, tais como igualdade e dignidade, vêm à tona quando passa-se para uma idéia de família eudemonista. Assim, deixa-se de levar tanto em consideração o aspecto biológico que liga pai e filho, para se dar maior atenção ao afeto entre ambos. Trata-se o patriarcado, de uma herança advinda do Direito Romano, em que o pai sempre esteve posicionado em uma condição de superioridade, submetendo os outros membros da família ao seu talante. Num momento posterior, o Código Civil Francês de 1804 procurou estabelecer uma noção institucional de família. Assim, deixa-se de ter a figura do pai única e exclusivamente como o membro detentor dos poderes, para ser tutelado o interesse da família enquanto instituição. Ou seja, não se pode deixar de ter em mente a hierarquização em detrimento do patriarcado absoluto. Assim observa Luiz Edson Fachin: 2 FACHIN, Luiz Edson. Direito de família: Elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 17. 11 Retomam-se, mais tarde, essas fontes, e em torno do Código Civil Francês de 1804 se compôs o modelo clássico, a família patriarcal e hierarquizada. [...] Na verdade, quando a família clássica atribui poderes ao pais, à primeira vista, está colocando a supremacia do homem na relação conjugal. Mas, num segundo momento, verifica-se que o interesse maior a ser tutelado não é do marido, e sim o da família enquanto instituição.3 Outro aspecto importante a ser observado, é que a figura do divórcio no conceito patriarcal de família tratava-se de algo praticamente condenado, tendo em vista justamente o aspecto “machista” de ser o pai o centro de tudo. Isso acabou sendo transmutado para uma perspectiva de divórcio integral, a partir do momento que surgiram novos valores para o tema. Em outras palavras, o ideal socioafetivo passou a configurar a sociedade conjugal de maneira plena. Assim demonstra novamente Luiz Edson Fachin: Vira o século e vêm novas décadas, outros valores, a exemplo da affectio maritalis. Valor socioafetivo que funda uma sociedade conjugal, matrimonializada ou não. A vigência do divórcio pleno é a prova disso. Nesta linha de raciocínio, fácil perceber a aliança da lei do Estado com a lei da Igreja. Para a igreja católica a figura do divórcio trata-se de algo que não deve ocorrer, principalmente pelos votos matrimoniais apresentados diante de Deus com a máxima utilizada no momento da celebração: “o que Deus uniu o homem não separa”. Assim, no aspecto da normatização, não há o que se distinguir entre Igreja e Estado sendo que antes de 1977, no aspecto do divórcio, ambos eram taxativos em suas opiniões negativas ao divórcio, independente de a união entre dois indivíduos estar sendo conduzida de maneira salutar ou não. De outra parte, a noção pretérita de família se identifica com o patrimônio. Em outras palavras, as posses de um determinado homem no âmbito da família patriarcal e/ou os escravos havidos em seu poder, acabam por representar também um conceito de família. Neste ponto de vista, vê-se uma preocupação em direcionar todo o poder e toda a posse ao homem propriamente dito, sendo que a mulher assumia um papel meramente secundário. A esta era negado qualquer espécie de manifestação social, não podendo trabalhar ou estudar sem o consentimento do pai, antes do casamento ou do marido, após ele. Assim, Rozane da Rosa Cachapuz informa: 3 FACHIN, Luiz Edson. Direito de família: Elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 65. 12 A mulher era subjugada à condição de total submissão, ao ponto de juridicamente ser-lhe negada a capacidade absoluta. Era-lhe proibida a manifestação social, o estudo e o trabalho, sem o consentimento do pai ou do marido.4 De acordo com o exposto, vê-se que o modelo de família patriarcal, pelos mesmos motivos que ensejaram sua existência durante muito tempo, acabaram por importar em sua derrocada, não somente pelo aspecto negativo que ele representou, mas sim pela necessidade de ser esculpido um novo arquétipo, de certa forma corretor das deficiências encontradas no patriarcado. Neste sentido, cumpre seja feita uma análise mais específica deste modelo pretérito. 4 CACHAPUZ, Rozane da Rosa. Da família patriarcal à família contemporânea. Disponível em: <http://www.cesumar.br/pesquisa/periodicos/index.php/revjuridica/article/viewFile/364/428> Acesso em: 18 abr. 2009. 13 2.0 O MODELO DE FAMÍLIA PATRIARCAL: EXERCÍCIO DE DESCONSTRUÇÃO Sem embargo de se fazer uma análise preconceituosa do tema, tampouco com aplicação de juízo de valor no sentido de informar se determinado modelo de família é bom ou ruim, deve-se antes apontar se determinado modelo é adequado ou não aos padrões demandados pela sociedade. Neste sentido, julga-se necessária a realização de um exercício de desconstrução do modelo patriarcal pelas razões adiante expostas. Com o passar dos anos, viu-se necessária a aplicação de outro conceito para família. Um conceito que estivesse voltado não tão somente ao preenchimento de uma característica patrimonial, mas sim também voltado ao ponto de vista afetivo da questão. Em outras palavras, a perpetuação de uma família ao longo dos anos, encontra-se diretamente proporcional à visualização das necessidades que também vão surgindo no decurso do tempo. E o que se vislumbra por necessidade em nossa sociedade atual, é a demanda por um elemento socioafetivo no arquétipo de família, fazendo com que o detalhe de o homem ser o centro, esteja com os dias contados. O ideal de família sempre esteve presente em todas as codificações, sendo que não foi diferente com o legislador civilista de 1916 e também não foi diferente com os constituintes anteriores a 1988. Ao tempo da vigência destes diplomas, ainda vigia e se exercia o modelo do patriarcado, fazendo com que todos os institutos legais presentes nestes textos, estivessem escoltados nos mesmos moldes. Após a Constituição da República de 1988, a qual serviu de certa influência para a elaboração do Código Civil de 2002, através do notório processo de “constitucionalização”, passou-se a ter uma aplicação maior de valores mais humanitários, erigidos aos auspícios de princípios de igualdade e dignidade. Luiz Edson Fachin assim anota: Da família patriarcal, matrimonializada e hierarquizada, os moldes contemporâneos abrem a noção para além do casamento civil ou do religioso com efeitos civis, apreendendo a união livre, a união estável e a monoparentalidade. Elasteceu o conceito impulsionado pelas mudanças históricas.5 Quando se fala em Direito de Família, deve-se lembrar de três ramificações importantes e que, dependendo do modelo que se aplica, podem tomar uma forma ou outra. Num primeiro momento trabalhamos com a idéia do matrimônio e todas as 5 FACHIN, Luiz Edson. Direito de família: Elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 71. 14 conseqüências envolvidas. Num segundo momento a questão da filiação. E, por derradeiro mas não menos importante, o aspecto do direito assistencial. Quase desnecessário mencionar a trágica conseqüência que representava a dissolução de um casamento ao tempo do patriarcado. Afinal, a partir do momento que se parte do princípio que esposa e filhos são propriedade interina dos pais, havendo como preocupação única a continuidade deste modelo para o fim dos dias, não há que se falar na existência de qualquer aspecto emocional ou sentimental. De igual forma ocorria com os filhos ilegítimos. Estes eram praticamente condenados à impossibilidade de busca de suas origens e direitos, quase como se representasse o fruto diverso dos demais, desprovido de direitos mas repleto de proibições. Havia quase que uma noção de proteção por parte do Estado em manter um certo afastamento destes filhos havidos fora do casamento, do restante da família. Ao pintar o retrato nestes termos, é de fácil compreensão a necessidade de tomada de outras medidas que venham assegurar os direitos destes filhos, tão iguais quanto aos que concebidos no âmago do casamento. Assim se processa um exercício racional de asseguração de direitos. Outro ponto relevante a ser abordado a fim de contextualizar o patriarcado, é a figura da concubina. O ideal patriarcal e hierarquizado era deveras presente, que poder-se-ia pensar na figura de uma mulher que neste tempo era tida como responsável pela concessão de prazer na cama, restando à esposa legítima o papel da procriação. Tamanhas eram as atrocidades cometidas contra as concubinas, que estas passaram a ser enquadradas à margem da sociedade. Neste sentido entende Rozane da Rosa Cachapuz: As relações entre homem e mulher sem casamento sempre existiram, principalmente, levando-se em consideração a carga atribuída à esposa. Esta era considerada apenas para procriação, enquanto a concubina era para dar prazer.6 Existe, nesta situação, um forte choque de bens jurídicos. Ou seja, era mais prático sujeitar uma pessoa à indiferença da sociedade por sua prática, muitas vezes lançando mão de subterfúgios agressivos de condenação, do que assegurar o direito à saúde, à vida e à dignidade desta pessoa. O provincianismo presente na mente social ao tempo do patriarcado limitava os olhos da sociedade à visualização 6 CACHAPUZ, Rozane da Rosa. Da família patriarcal à família contemporânea. Disponível em: <http://www.cesumar.br/pesquisa/periodicos/index.php/revjuridica/article/viewFile/364/428> Acesso em: 18 abr. 2009. 15 somente do que as pessoas tinham de errado ou faziam de errado, ao invés de apontar suas qualidades enquanto membros da mesma categoria subjetiva. O instituto do divórcio, outrossim, guarda relevância em nossa abordagem. O casamento, caracterizado pela consolidação do vínculo conjugal, consolidado pela soberba chancela do Estado e da Igreja, nasce com a perspectiva de perpetuação eterna. Neste particular, qualquer comentário acerca da dissolução matrimonial surge aos olhos do regime patriarcal como uma prática passível de condenação. Assim, o divórcio enquanto instituto permissivo para a constituição de uma nova sociedade conjugal, não existia, sendo que somente o casamento era provido de amparo legal. Com o perdão da redundância, mais uma vez não se vê qualquer indício de elementos socioafetivos na questão da ausência do divórcio. Este, nada obstante muitas vezes estar às voltas de conflitos matrimoniais, acaba por representar a possibilidade do desfazimento de uma situação para a feitura de outra mais feliz que a primeira. Felicidade, este é o termo central quando se fala em ideal de família no século XXI. A idéia de felicidade não está em contrair nova sociedade conjugal, mas sim na possibilidade de acreditar que esta felicidade é atingível, tornando-se muito mais fácil sua conquista quando o lastro jurídico é presente. Para Rozane da Rosa Cachapuz: Através da ótica jurídico-social, o casamento só tem razão de ser, à medida que forma uma comunhão de vida entre homem e mulher. Quando essa comunhão houver sido, irremediavelmente rompida, torna-se incompreensível ser exigida a abstenção quanto à formação, juridicamente reconhecida, de nova comunhão de vida, até mesmo como forma de realização das potencialidades mais altas do ser humano.7 No que tange a família patriarcal, cumpre-nos também abordar sua forma de constituição, que servirá de base para o entendimento da estrutura em que se erigiu, bem como descoberta de argumentos necessários para sua desconstrução. A palavra patriarcal já nos traz uma idéia de senhoria, ou seja, o patriarca era o senhor responsável pela gestão da família, formada não somente por esposa e filhos, como também pelos membros externos ao sangue, que eram os empregados, servos e escravos. Em razão da numerosidade de membros envolvida na formação da família, o chefe, identificado pela figura do pater representava também o poder 7 CACHAPUZ, Rozane da Rosa. Da família patriarcal à família contemporânea. Disponível em: <http://www.cesumar.br/pesquisa/periodicos/index.php/revjuridica/article/viewFile/364/428> Acesso em: 18 abr. 2009. 16 econômico daquele núcleo de pessoas. Em razão disso, acaba por ser também o pater, a figura responsável por ditar o destino econômico de seus agregados, mesmo não sendo de seu sangue. Tais práticas vinculavam outros núcleos de pessoas que acabavam por se reportar também a figura do senhor, que eram algumas modalidades de autoridades religiosas, políticos e membros do poder. Neste sentido, nos é sensível imaginar que o destino político dos estados ao tempo do patriarcado, era regido aos interesses dos patriarcas, fazendo com que os núcleos familiares, igreja e estado estivessem sempre concordes entre si. Assim demonstra André Raboni: Na definição da família patriarcal, temos uma família numerosa, composta não só do núcleo conjugal e de seus filhos, mas incluindo um grande número de criados, parentes, aderentes, agregados e escravos, submetidos todos ao poder absoluto do chefe de clã [...]. Nele o pater seria o chefe do grupo familiar pai, mãe e filhos, mas faz referência a todos que giram em torno do núcleo centralizador [...]. Dessa forma, o patriarca constitui-se em um núcleo econômico e um núcleo de poder.8 Ainda mantendo a perspectiva da análise desconstrutiva do modelo, vê-se que trata-se de uma forma de organização familiar meramente voltada no vislumbre do poder e na mantença do mesmo. Isso fez com que a sociedade à época sempre estivesse dividida entre senhores e escravos, gerando a cisão social e marginalidade de alguns, fato presente até os dias atuais. Em outras palavras, em que pese termos de avaliar os meios de vida atuais de algumas pessoas, devemos ter em mente tratar-se uma conseqüência direta do arquétipo de família havido muito antes do processo de “constitucionalização” do direito de família. E foi a conjunção de todos os fatores supramencionados que serviram de influência para a elaboração dos conservadores dispositivos presentes para o Direito de Família no Código Civil de 1916. Ainda bastante presente o modelo patriarcal, a verossimilhança dos dispositivos com a expectativa dos grandes senhores e patriarcas, configurava-se como uma proteção grande em manter o poder nas mãos deste patriarca, com a figura do homem acima de tudo. A mulher, antes do processo constitucional de 1988, sempre esteve assumindo um papel meramente secundário, caracterizado pelo civilista de 1916 como auxiliar ao marido na tomada das decisões, quando este por si só não o fizesse de maneira isolada, tal qual previa o 8 RABONI, André. Explicando o modelo de família patriarcal. <http://recantodasletras.uol.com.br/artigos/1160338> Acesso em: 19 abr. 2009. Disponível em: 17 tão conhecido pátrio-poder, devendo este permanecer sempre nas mãos do homem. Desta forma, o art. 380 do Código Civil de 1916 estabelecia: “Durante o casamento compete o pátrio poder aos pais, exercendo-o o marido, com a colaboração da mulher. Na falta ou impedimento de um dos progenitores passará o outro a exercê-lo com exclusividade”. De maneira não distinta, o art. 233 também informava: “O marido é o chefe da sociedade conjugal”. Conforme estabelecido por muitos autores da época, a noção de mantença de poder nas mãos do homem, sempre esteve relacionada ao fato de somente persistir o poder de gerir a família, se esteve estivesse nas mãos de um dos cônjuges, sendo preferencialmente o homem, pelo fato de ser ele o mais capaz e o mais forte para enfrentar seu semelhante em sociedade. Esta era a concepção do civilista de 1916. Neste sentido, aponta Marta Regina Pardo Campos Freire: O pátrio-poder era uma prerrogativa do marido, pois ele era o chefe da família. A mulher ocupava um lugar secundário na hierarquia da titularidade dos direitos. [...] Entendia-se que o poder de gerir a família não poderia subsistir se não estivesse concentrado numa só pessoa, e que o homem, por sua superioridade natural, por ser mais forte, teria melhores condições de dirigir a família.9 A desconstrução aqui também se faz necessária, em razão de tratar-se de uma concepção deveras preconceituosa a certo termo. Afinal, a capacidade da mulher para gerir uma família é tão semelhante a do homem e um raciocínio neste sentido acaba incompatibilizando as realidades da época com a atual. Vê-se que esta espécie de concepção acabou gerando reflexos inclusive na sociedade ao tempo da vigência do patriarcado. As famílias acabavam por concentrar-se mais nos meios rurais, envoltos de canaviais, tendo em vista ser o produto de comércio mais representativo da época. A economia se fazia da plantação das canas de açúcar, sendo que os proprietários de grandes extensões de terra representavam justamente a figura do patriarca. Época cronologicamente situada simultaneamente ao período da colonização do país, com a presença da corte portuguesa em terras brasileiras, fez com que os usos e costumes da sociedade sempre estivessem voltados ao atendimento dos interesses do pater. Enfim, visivelmente perceptível as influências geradas pela dominância do modelo de família patriarcal no Brasil até o advento do Código Civil de 2002, 9 FREIRE, Marta Regina Pardo Campos. Poder familiar. São Paulo, 2007. Dissertação (Mestrado em Direito Civil) – Direito das Relações Sociais. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. p. 20. 18 totalmente escoltado em reformas pensadas a partir de um processo de “constitucionalização” gerado pela Constituição Federal de 1988. Este arquétipo merece atenção em todos os seus aspectos, justamente a fim de servir como alvo de críticas e reformas até a instalação de um modelo que tivesse elementos socioafetivos presentes. Logicamente, nada obstante a presença de toda a reforma em nosso diploma civil atual, ainda estamos muito longe de servir como referência em preocupação com aspectos que visem a felicidade plena na união de pessoas, mas já está representado um primeiro passo neste sentido. Entende-se que em razão dos interesses sociais da época, outro modelo familiar seria praticamente inviável. Poder-se-ia inclusive apontar que, talvez diante da inexistência de um modelo hierarquizado como estes, não se fosse arquitetado o modelo eudemonista como base comparativa. A crítica que se faz é sim, justamente a inadequação dos modelos em subsunção às demandas sociais ao tempo do pensamento em tais arquétipos. Num primeiro momento se tem a figura do matrimônio. Em uma sociedade em que cada vez mais as mulheres estão assumindo cargos e responsabilidades de gestão, muitas vezes acima da responsabilidade assumida por muitos homens, não há mais que se falar em poder familiar havido plenamente em mãos masculinas. Deve-se quebrar este clichê a ponto de elastecer esta interpretação para se dividir a gestão da família com a esposa. De igual forma pensa-se a figura do divórcio. Esta já representa uma evolução direcionada ao respeito a elementos socioafetivos. Ao tempo da inexistência de um instituto que valorizasse a possibilidade de dissolução de uma sociedade conjugal, as pessoas permaneciam neste status, em razão da aliança existente entre o poder do Estado e o poder da Igreja, cujos interesses eram comuns, independente de representar algo positivo para o casal ou não. Já nos dias de hoje, isto sem tem alterado, visto que a figura do divórcio é uma realidade. Assim, o Estado passou a chancelar a dissolução da sociedade conjugal quando esta, por seus elementos, não guarda mais condições de perpetuação. Assim, em razão do exposto, passa-se a verificar a necessidade emergente de se estabelecer um modelo que passe a propiciar felicidade na formação de elementos familiares e trabalhe com conceitos de socioafetividade. Somente assim estar-se-á atendendo a demanda social atual. 19 3.0 O MODELO EUDEMONISTA DE FAMÍLIA: VISÃO DE REFORMA Acredita-se que o ponto central da retórica deste capítulo esteja justamente voltada para o processo de “constitucionalização” suportado pelo novo diploma civil pátrio, por conta das influências recebidas pela Constituição de 1988 que, abalroando as mazelas existentes em codificações passadas, procura o conceito de socioafetividade quando se fala em família e/ou direito de família. A caráter de exemplo, os filhos havidos fora do casamento em concepções anteriores à 1988 e mais especificamente anteriores ao Código Civil de 2002, não eram tidos como filhos providos de direitos, realidade que passou a ser eminentemente alterada a partir do momento que novos conceitos de família passaram a ser levados em conta. A família patriarcal, única e exclusivamente preocupada ao atendimento dos interesses do patriarca, deixa de manifestar preocupação com o instituto que representa a família enquanto uma união afetiva de pessoas. Neste sentido, com o advento de elementos de vanguarda no conceito de família de hoje, os filhos passam a ter o direito a um ambiente digno e sadio. Assim estabelece Luiz Edson Fachin: Sob a ótica dos filhos, consiste, isso sim, num direito básico de ter família e crescer num ambiente digno e sado, ao menos o atendimento de suas necessidades fundamentais: habitação, saúde e educação.10 Em razão do atendimento de tais interesses no âmbito da família, chega-se inclusive ao ponto da discussão a respeito do ramo do Direito em que se enquadra o Direito de Família: Direito Público ou Direito Privado? Tendo em vista os interesses eminentemente privados, acaba-se por destinar os cuidados do Direito de Família ao Direito Privado. Em que pese tal fato, o casamento a partir do momento que deixa de ser considerado como contrato e passa a ser concebido como instituição, enquadra-se mais na figura do Direito Público. Assim, os dois ramos convivem em congruência. Nas palavras de Luiz Edson Fachin: Na especialização racionalista, debate-se a integração com a seara pública ou a permanência no domínio privado. Diante das peculiaridades, chegaria a sustentar-se como ramo quase autônomo, nem público, nem privado. Mais que isso, no mesmo horizonte, haveria o Direito Público de Família e o Direito Privado de Família.11 10 FACHIN, Luiz Edson. Direito de família: Elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 74. 11 Id. 20 Apesar da tentativa que se faz em compreender o Direito de Família no âmbito do Direito Público, diz-se tratar-se ainda em grande parte de Direito Privado, tendo em vista todas as manifestações de vontade indispensáveis à sua constituição. Ou seja, a família só existe e se mantém por disposições próprias de vontade de cada sujeito. De outra parte, na parcela do Direito de Família denominado por Direito Matrimonial, o casamento somente é chancelado à luz da outorga do Estado, não deixando de ter parcela pública. Assim dispõe Luiz Edson Fachin: Se decidir casar, evidentemente o fará por um ato de tal liberdade, mas sendo a família matrimonializada, só poderá fazê-lo pelo meio através do qual o Estado prescreve. Regra cogente, mas isso não significaria ausência de deliberação própria, que, no entanto, depende de certas circunstâncias [...].12 De outra parte, a discussão reside nas evoluções sofridas pelo novo entendimento do Direito de Família com o advento da Constituição de 1988. Antes do novo código, ainda sob influências patriarcais, a informação legal se dava da seguinte forma: “O marido define o domicílio da família”. Após o processo de “constitucionalização”, a discurso passou a mudar, quando a direção da família passou a ser diárquica, sendo que a idéia é informada de outra maneira: “A direção da família é exercida igualmente pelo marido e pela mulher”. De acordo com Luiz Edson Fachin: A Constituição de 1988 estabeleceu a direção diárquica da família à luz da igualdade. Para o antigo Código Civil: “O marido define o domicílio da família”, coerente com a direção unitária do modelo familiar. Para a Constituição Federal: “A direção da família é exercida igualmente pelo marido e pela mulher”.13 Outro importante aspecto a ser mencionado nesse descritivo da família eudemonista, diz com a passagem do Código Civil para o Código Constitucional, algo já mencionado de maneira tênue em parágrafos anteriores. A definição de família está voltada a esta passagem. Antes, todas as disposições eram previstas no Código Civil de 1916, onde predominava o aspecto patriarcal, hierarquizado e transpessoal. A característica eudemonista de família, com noções de socioafetividade, passou a surgir com o advento da Constituição Federal de 1988, onde o aspecto passou a ser de igualdade substancial, plural e eudemonista. 12 FACHIN, Luiz Edson. Direito de família: Elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 76. 13 Ibid., p.77. 21 Luiz Edson Fachin assim determina: Num sentido amplo, contextualizado, a família se define juridicamente, nesse momento contemporâneo, na passagem do Código à Constituição. Com a vigência da Constituição em 1988, que chamou para si o papel de lei fundamental da família até então ocupado pelo Código Civil de 1916 e leis esparsas. [...] Tocadas pela dimensão contemporânea, indicam o Direito de Família de “outra ordem”, aquela da igualdade substancial, da visão plural e eudemonista.14 Um espécime erigido nos moldes mais específicos do modelo eudemonista é família não matrimonializada. Aqui inserem-se a união estável, a união livre e a monoparentalidade. Sobre a união estável pode-se dizer tratar-se de uma organização familiar parecida com o casamento, podendo neste se converter à critério do casal. Ou seja, não existe até a conversão em casamento, uma certidão comprobatória do mesmo, sendo que o casal permanece na condição de casado por livre disposição de sua vontade. Já no que toca à união livre, a conversão em casamento não é possível, visto tratar-se de algo não lastreado pelo direito, por referir uma relação paralela ao casamento. Deveras parecida com a figura do concubinato em tempos pretéritos. A monoparentalidade, acredita-se, representa o maior exemplo de modelo eudemonista, visto que na sociedade pré-constitucional de 1988, jamais imaginarse-ia a possibilidade de denominar família, aquela formada sem a necessidade da presença de um dos genitores. Pois assim se demonstra a presença de elementos socioafetivos mais que intensos para identificar o modelo eudemonista nesta modalidade de família não matrimonial. Para Luiz Edson Fachin: No espaço da pluralidade familiar tem assento a família não matrimonializada. Nesse ninho sem moldura apresenta-se a união estável, a união livre e monoparentalidade. A união estável liga-se a um padrão familiar próximo ao casamento, facultada a conversão em casamento [...] a união livre corresponde a uma associação informal não suscetível de conversão, e as famílias monoparentais são formadas em diversos modelos que não se resumem a pais e mães solteiras. Entes sob nova arquitetura de relação familiar.15 No aspecto das relações não matrimoniais, vale a discussão acerca da intervenção ou não estatal sobre a regulamentação dessas relações, quer seja no aspecto do matrimônio em si, quer seja no aspecto patrimonial envolvendo tais 14 FACHIN, Luiz Edson. Direito de família: Elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 81. 15 Ibid., p. 92. 22 relações. Por tratar-se de relações não matrimoniais, certa parcela de entendimento informa que a intervenção do Estado deve ser mínima, devendo apenas existir uma proteção legal voltada para o aspecto patrimonial que envolve as relações. Porém, a problemática deste aspecto encontra-se no fato de abordar um nicho muito restrito de pessoas, em razão de abordar o aspecto patrimonial como sendo o principal. Assim, a opção pela união sem o matrimônio acabaria sendo a menos dispendiosa financeiramente. Em razão disso, a intervenção legal existe. Neste particular, a legislação deve apresentar uma intervenção mínima, sob pena de incorrer em incentivo da prevalência do mais forte sobre o mais fraco, quando se trata de questões econômicas e culturais. Assim demonstra Luiz Edson Fachin: Há refutação para quem entenda que o Estado deve se manter no limite negativo, isto é, não deve se imiscuir nas relações pessoais derivadas de uniões não matrimonializadas. [...] Quando muito, intervir nas chamadas relações patrimoniais, isto é, definir regras sobre partilha do patrimônio [...] Elitista e equivocada a crítica segundo a qual a nova legislação é exageradamente concessiva. Deixar ao sabor destas circunstâncias a regulação destas relações é sustentar que prevaleça a opressão do mais forte (econômica e culturalmente) sobre o mais fraco.16 Conforme se observa, existe uma preocupação com a intervenção do Estado na regulação destas formas de relação, entendendo as mesmas como maneiras de constituição de família. Em outras palavras, nas codificações passadas, tais práticas de constituição familiar seriam reputadas como nada ortodoxas. Porém, para a legislação atual, a preocupação é tão existente quando àquela repousada sobre as relações matrimoniais ordinárias. Mais um reflexo eudemonista presente na hermenêutica legislativa. Alguns modelos de legislação esparsa também refletem a presença de reforma legislativa para o semblante de asseguração de direitos havidos por conta do eudemonismo. Um desses exemplos é o direito de alimentos e direito sucessório, havidos no status familiar de “companheirato”, presente na lei ordinária 8.971/1994. Ao tratarmos de mais alguns pontos específicos de evolução jurídica, podemos mencionar a questão da mulher perante o direito e a questão da união civil de pessoas do mesmo sexo. Procura-se aqui, falar em evolução jurídica e não evolução legislativa, posto que muitos dispositivos legais ainda mantêm o ranço da 16 FACHIN, Luiz Edson. Direito de família: Elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 96-97. 23 perspectiva patriarcal ante às novas tendências de hermenêutica jurídica. Deveras ignorante a nosso ver, mas que nos tribunais têm sofrido reformas no momento de sua aplicação. A caráter de exemplo, a situação da mulher ainda tem se expressado de maneira bastante preconceituosa e discriminatória, uma vez escoltar-se na interpretação patriarcal. De outro lado, o preceito de igualdade, fomentando afeto e solidariedade, já vem tomando lugar em muitos produtos do Poder Judiciário. Como entende Luiz Edson Fachin: O estereótipo do modelo clássico superado tem se reproduzido no Judiciário, sem que seja lícito reduzir as idéias emergentes de sentenças e acórdãos a uma visão monolítica. É possível asseverar, de um lado, ainda, o predomínio de valoração negativa das novas condutas, mas, de outro, afirma-se tenuamente os novos valores, como o da igualdade entre os gêneros.17 No que tange à união civil realizada entre pessoas do mesmo sexo, pode-se mencionar a existência de alguns precedentes jurisprudenciais existentes. Vale dizer, presença de um julgado realizado no Rio de Janeiro, reconhecendo com algumas limitações a união civil de pessoas do mesmo sexo, posto que presente a noção de afeto e companheirismo, bem como interesses comuns. Ou seja, mais um viés de eudemonismo. Para não incorrer em parcialidade de opinião absoluta, o relator do julgado realizado no Rio de Janeiro, lança mão do discurso voltado ao atendimento da não intervenção do Estado na vida íntima de outrem, a invés da utilização de discurso moralista e/ou conservador. Enquadrado como intimidade, reconhecidamente caracterizado como personalíssimo, o direito à orientação sexual procura informar justamente a possibilidade de não ser relevante quando trata-se de constituição familiar. Nas palavras de Luiz Edson Fachin: O direito personalíssimo à orientação sexual conduz a afastar a identificação social e jurídica das pessoas por esse predicado. Andou, ao menos em parte, contra essa trilha de preconceito o acórdão, antes mencionado, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, quando, na voz do relator, assentou ser “impertinente qualquer indagação sobre a vida íntima de um e de outro”, evitando resvalar para um subjetivismo discutível.18 Cumpre ser informado, outrossim, quando se trata do Direito assumindo posições de uniões civis formadas por casais do mesmo sexo, que esta é uma 17 FACHIN, Luiz Edson. Direito de família: Elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.117. 18 Ibid., p.121. 24 realidade presente diante de nossos olhos, não podendo o Direito abdicar-se de fornecer uma resposta juridicamente válida e condizente com a situação que se lhe apresenta. A realidade sempre acaba superando o Direito, posto que posterior. Neste sentido, as respostas do Poder Judiciário não podem e não devem ser tendenciosas a preceitos patriarcais, desprovidos de eudemonismo, a ponto de não atender a demanda social. Ainda existem muitos julgados arraigados a velhos preceitos e/ou respondidos ao nível da ausência de posição específica, talvez por receio da contraprestação de seus pares. Em que pese tais fatos, alguns julgados, tal como o mencionado no Rio de Janeiro, já compreendem a gravidade da situação de uma não resposta, ditando o direito de maneira concreta, ainda que ingenuamente referenciado. Esta sim trata-se de uma posição desprovida de discriminação, que aceita a dicção do direito a casais do mesmo sexo, não por serem do mesmo sexo, visto que a orientação sexual, como reiteradamente mencionada no decorrer deste projeto, refere direito personalíssimo, mas sim por serem sujeitos em busca de solução jurídica para sua demanda. De acordo com Luiz Edson Fachin: Há, por conseguinte, um estereótipo do modelo clássico superado que tem se reproduzido, sem que seja lícito reduzir as idéias emergentes de sentenças e acórdãos a uma única concepção monolítica. Se, de um lado, predomina a valoração negativa das condutas, de outro afirma-se tenuamente os novos valores, como a igualdade entre os gêneros, liberdade e não discriminação.19 O que deve ser mencionado também, quando se trata de união civil entre pessoas do mesmo sexo, é o aspecto patrimonial inerente à aquisição de bens por parte desse casal. Assim, a legislação esparsa que regula uniões não matrimoniais traz em termos genéricos a divisão dos bens com o companheiro, que auxilia na aquisição do patrimônio. Saindo da seara patrimonial e adentrando no âmbito paternal das famílias constituídas por pessoas do mesmo sexo, não pode-se deixar de mencionar o respeito à diferença. Conforme pode ser observado em nossa retórica até então, muitas são as possibilidades de constituição de família, sendo que uma delas voltase à busca pelo elemento de afeto e gerador de felicidade e amor na família. Em outras palavras, o conceito de família foge do argumento da necessidade de procriação, a fim de respeitar a noção do vínculo afetivo como sendo o principal. 19 FACHIN, Luiz Edson. Direito de família: Elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 123. 25 Não fosse dessa forma, estariam sendo excluídos de proteção jurídica os casais que auto deliberadamente decidem não ter filhos, e/ou aqueles que não podem tê-los por circunstâncias alheias à sua vontade. A fim de abarcar também estas situações, o modelo eudemonista de família surge como alternativa mais completa. Nas palavras de Juliane Mayer Grigoleto: E nos filiamos a corrente que considera a união entre homossexuais como família, porque acreditamos que a família é um grupo de pessoas ligadas por interesses ou convicções comuns. Não abrange somente o fim reprodutivo porque o que seria dos casais que não podem ter filhos? E os que podendo decidem não ter? Será que não merecem proteção do Estado? Assim, optamos pela família eudemonista que considera a busca de uma vida feliz, de maneira individual ou coletiva, o princípio e o fundamento dos valores morais, julgando eticamente positivas todas as ações que conduzam o homem à felicidade, o que não depende necessariamente da diversidade de sexos e do casamento.20 Nossa legislação, durante muito tempo, vinculou a questão da adoção de crianças a um pressuposto casamento. Se continuássemos perpetuando esta idéia, a adoção por homossexuais seria impossível legalmente, tendo em vista a constituição de família por homossexuais ainda não ser tutelada pelo Direito. Porém, como a união civil entre pessoas do mesmo sexo, nada obstante não referir casamento, o refere união estável, sendo perfeitamente possível a adoção neste caso. Reiterando, a tônica reside na questão do afeto, do carinho e da união dos membros do casal para a constituição da família e concessão de um ambiente sadio para o adotado. Desta forma, deveras preconceituoso seria tolher esta modalidade de adoção por razões ligadas à uniformidade de gênero sexual. Assim, diante do exposto no presente capítulo, sensivelmente perceptível o fato de o modelo eudemonista de família ser algo de necessidade absoluta quando se realiza qualquer espécie de hermenêutica da área no século XXI. O Direito de Família, tal qual o modelo de família estabelecido ao longo dos anos, sustentou-se única e exclusivamente pelo fato de existir um vislumbre das novas tendências e ter passado por um intenso processo de adaptação. Justifica-se, muitas vezes, o conceito patriarcal de família, pela estada do aspecto econômico no âmbito desta família. Ocorre que, com o advento da industrialização, a economia passa a ser direcionada aos grandes campos industriais e ao comércio, permanecendo apenas o semblante afetivo no âmbito 20 GRIGOLETO, Juliane Mayer. Aspectos conjunturais da adoção de crianças por homossexuais. Disponível em: < http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6502> Acesso em: 22 abr. 2009. 26 familiar, escoltado no sentimento. Em outras palavras, deixa-se de pensar única e exclusivamente na família como um meio para sustentar um negócio e passa-se a imaginá-la como uma agregação afetiva e salutar de pessoas. Por derradeiro, vê-se o eudemonismo não como um critério supletivo ao modelo patriarcal, mas sim como um arquétipo sem o qual, o conceito de família e a proteção desta pelo Direito, acabariam encontrando um caminho sem volta, cujo destino seria o insucesso. 27 4.0 HOMOAFETIVIDADE: REFLEXO DO EUDEMONISMO Acredita-se que a tônica aqui esteja completamente voltada à utilização de dois meios básicos de interpretação construídos pelo Direito como ferramenta de trabalho. Vale dizer: interpretação extensiva e analogia. Neste sentido, quer-se dizer que, em que pese um texto legal lance mão de separar o homem e a mulher na identificação de um casamento ou de uma união estável, referido conceito pode ser transmitido, outrossim, para as relações homoafetivas. Em outras palavras, como o próprio nome traz: homoafetividade, trata-se de um relacionamento que possui por escopo exatamente o que se pretende de uma relação, aos olhos do Estado, não obstante o disposto no art. 1514 do Código Civil. O art. 1723 do Código Civil, ao mencionar termos como convivência pública, contínua e duradoura, está justamente apontando características perfeitamente passíveis de configuração por casais homossexuais. Se, tal como ocorre em casais heterossexuais, a procriação não refere um elemento indispensável para a configuração da família, por motivos outrora abordados em nossa explanação, para os casais homoafetivos a interpretação não deve ser diferente, mesmo porque institutos como a adoção, conseguem abalroar de maneira hiperbólica os argumentos destinados à procriação. Nestes termos, defende Paulo Roberto Iotti Vecchiatti, em artigo publicado no sítio do Instituto Brasileiro de Direito de Família: Considerando que a interpretação extensiva e a analogia são técnicas de interpretação jurídica que visam colmatar lacunas na legislação, deve-se fazer uma análise para se saber se a situação não-citada pelo texto normativo é idêntica ou idêntica no essencial àquela citada pelo texto normativo, de forma que, se a resposta for positiva, estender o regime jurídico da situação expressamente citada àquela que não o foi pela interpretação extensiva ou pela analogia, respectivamente. Ou seja, se as situações forem idênticas, aplicar-se-á a interpretação extensiva; se as situações forem distintas mas tiverem o mesmo elemento essencial, aplicar-se-á a analogia. Em ambos os casos, o resultado será o mesmo: a extensão do regime jurídico da situação expressamente citada à situação não-citada pelo texto normativo. [...] A própria legislação traz as respostas, através de sua interpretação teleológica. O art. 1.511 do CC/02 afirma que o casamento civil estabelece uma "comunhão plena de vida" entre os cônjuges. O art. 1.723 do CC/02 afirma que a união estável é aquela pautada por uma "convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família". Constituir família não significa "ter filhos", "pretender ter filhos" ou mesmo "poder ter filhos", pois, se fosse este o caso, casais heteroafetivos estéreis não poderiam ter sua união estável reconhecida e não poderiam se casar, o que evidentemente não é o caso.21 21 VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Homoafetividade e família. Casamento civil, união estável e adoção por casais homoafetivos à luz da isonomia e da dignidade humana. Disponível em: < http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=434> Acesso em: 24 abr. 2009. 28 Neste aspecto da extensão dos modelos de interpretação aos casais viventes de maneira homoafetiva, pode-se dizer que o elemento afeto procura determinar a formação da organização familiar, mas não o afeto tal como o é imaginado. A fim de se configurar família, há de se imaginar, muito além do afeto puro e simplesmente, a presença do amor familiar, que é a união de todos os valores bons e positivos impostos por nossa Constituição no sentido de justificar uma família formada por laços de união estável. Como, em nosso entendimento, tais valores são perfeitamente utilizados e exercidos por casais homoafetivos, não há que se falar em não transmitir esse direito de união estável a esses casais, inclusive para efeito de adoção. As novas tendências de nossa sociedade demandam uma resposta jurídica à questão. Praticamente impossível imaginar que o Poder Judiciário, esfera responsável por realizar a subsunção dos fatos às norma e, diante da ausência destas, uma interpretação capaz de fornecer resposta à todas as perguntas da vida social, para esta questão permaneça silente. Para Paulo Roberto Iotti Vecchiatti: Isso é importante de ser destacado porque há uma corrente doutrinária que, quando enfrenta o argumento do afeto existente na união homoafetiva diz que o afeto seria irrelevante para o deslinde da causa - mas, como não é o mero afeto que se defende como o elemento formador da família contemporânea, mas o citado amor familiar, o argumento improcede. [...] Pode-se indagar porque se fala em interpretação extensiva ou analogia. Como mencionado, as duas versam sobre uma situação citada pelo texto normativo e outra não citada, embora a interpretação extensiva refira-se a duas situações idênticas e a analogia refira-se a duas situações que, embora diferentes em algum aspecto, são idênticas no essencial, naquilo que justifica a normatização do fato regulamentado. Nesse sentido, considero que as uniões homoafetivas são idênticas às uniões heteroafetivas tendo em vista que ambas são pautadas pelo mesmo amor familiar, sendo absolutamente irrelevante o fato de termos duas pessoas do mesmo sexo em um caso e duas pessoas de sexos diversos em outro, o que não configura nenhuma diferença - não mais do que a existente entre um casal heteroafetivo formado por brancos e um casal heteroafetivo formado por negros. Mas, caso se considere que isso configuraria uma "diferença" entre as situações, então só se pode concluir que não se trata de uma diferença relevante na medida em que ambas as uniões são pautadas pelo mesmo elemento essencial, a saber: o amor familiar, que é o elemento formador da família contemporânea.22 Fato mais que notório e que demanda nossa atenção ao abordar este tema, é que na situação das uniões homoafetivas, tal qual elas vêm sendo abordadas pelo Direito, têm sofrido uma severa discriminação jurídica nas palavras de Paulo Vecchiatti. Pode-se dizer que uma série de direitos assegurados aos casais 22 VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Homoafetividade e família. Casamento civil, união estável e adoção por casais homoafetivos à luz da isonomia e da dignidade humana. Disponível em: < http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=434> Acesso em: 24 abr. 2009. 29 heteroafetivos e que, diante da aplicação da analogia e da interpretação extensiva, poderiam estar sendo consagrados também aos casais homoafetivos. Em outras palavras, não existe tratamento isonômico para os casais do mesmo sexo na legislação brasileira, salvo algumas manifestações esparsas demonstradas pelo Poder Judiciário e tampouco respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana. Quando está-se tratando da idéia concernente à isonomia, não se está querendo, única e exclusivamente, tratar da vedação de manifestações arbitrárias, mas sim da função social da igualdade na mesmo tom. Assim dispõe Paulo Vecchiatti: Por outro lado, é de se notar que a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello deve ser complementada com a ponderação de Canotilho no sentido de que o princípio da isonomia não se resume à proibição do arbítrio (tão bem explicitada pelo primeiro), mas também à função social da igualdade, no sentido de ser a isonomia uma imposição constitucional relativa que, por isso, a caracteriza como uma forma de eliminação das desigualdades fáticas. Em outras palavras, ainda que a isonomia genericamente considerada não fundamente um dever absoluto de legislação, fundamenta um dever de legislação relativo, uma imposição constitucional acessória, uma exigência de atuação relativa, no sentido de que quando existirem pessoas essencialmente iguais àquelas que foram objeto de regulamentação legal [e, com muito mais razão, absolutamente iguais], o princípio da igualdade exige para estes uma disciplina legal igual à estabelecida para os casos já regulados, fundamentando um dever legislativo de atuação nesse sentido.23 Ao tratarmos que a singularização dada ao tratamento da união estável e do casamento civil, em certa medida representa uma discriminação jurídica na aplicação do princípio da isonomia e da dignidade da pessoa humana, aviltando os motivos para os quais o princípio foi criado, quer-se dizer que este último princípio não está sendo aplicado a todas as pessoas da coletividade. Em outras palavras, ele foi criado para que abarcasse todas as situações a todas as pessoas, sem precedência de relativização, visando a distribuição da felicidade. Assim, o gênero sexual de um casal, de maneira alguma deve ser baliza para fins de lançamento de efeitos dos princípios. Como o princípio da dignidade da pessoa humana representa um princípio expresso em nossa Constituição e o tratamento dado aos casais homoafetivos, pelo Direito, tem desrespeitado a aplicação do princípio, não só da dignidade da pessoa humana como também da isonomia, pode-se falar sem receio de conseqüência, que 23 VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Homoafetividade e família. Casamento civil, união estável e adoção por casais homoafetivos à luz da isonomia e da dignidade humana. Disponível em: < http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=434> Acesso em: 24 abr. 2009. 30 está-se diante de uma inconstitucionalidade veemente, em razão da discriminação aplicada ao caso. Assim dispõe Paulo Roberto Iotti Vecchiatti: Dessa forma, considerando a inexistência de uma motivação lógico-racional que justifique a discriminação de casais homoafetivos em relação a casais heteroafetivos por conta unicamente da orientação sexual e do sexo de um dos membros do casal (pois, se um dos membros do casal fosse de sexo oposto ao seu, não se obstaria seu casamento civil ou união estável, donde comprovada a discriminação por sexo também neste caso), assim como pela inexistência de coerência de dita discriminação com os demais valores constitucionais (em especial da promoção do bem estar de todos, da justiça e da pluralidade), então afigura-se inconstitucional o não-reconhecimento do casamento civil e da união estável entre casais homoafetivos - pelos direitos negados (isonomia) e pelo arbitrário menosprezo aos casais homoafetivos que só serão verdadeiramente felizes se puderem consagrar sua união pelo casamento civil, por toda a simbologia que ele traz (dignidade da pessoa humana).24 Outro ponto a ser abordado com o fim de justificar a possibilidade de união estável por parte de casais homoafetivos, reside no aspecto de que antes havia uma preocupação por parte do Estado em atender a forma pela qual a família era constituída. No entanto, em razão dos novos valores, inclusive pela substituição do termo pátrio poder para poder familiar, as novas diretrizes seguem o aspecto em que a família possui de substância, de conteúdo. Ou seja, deixa-se de preocupar com a forma pura e simplesmente, para dedicar atenção ao conteúdo do espaço em que uma família se desenvolve. E pensando por este prisma, os relacionamentos homoafetivos auferem o mesmo status de casais heteroafetivos, no que concerne aos escopos de busca da felicidade, auxílio mútuo, convivência e companheirismo. A proteção jurídica que era dispensada com exclusividade à 'forma' familiar (pense-se no ato formal do casamento) foi substituída, em conseqüência, pela tutela jurídica atualmente atribuída ao 'conteúdo' ou à substância: o que se deseja ressaltar é que a relação estará protegida não em decorrência de possuir esta ou aquela estrutura, mesmo se e quando prevista constitucionalmente, mas em virtude da função que desempenha - isto é, como espaço de troca de afetos, assistência moral e material, auxílio mútuo, companheirismo ou convivência entre pessoas humanas, quer sejam do mesmo sexo, quer sejam de sexos diferentes.25 A fim de corroborar tudo quanto foi expressado até o presente momento, cumpre-nos transcrever excertos de votos dados por magistrados conformes à teoria esboçada, justificando o positivismo discriminatório existente e derrubando-o com argumentos hiperbólicos, escoltados nos princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana. Assim informa-se a necessidade de aplicação da interpretação 24 VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Homoafetividade e família. Casamento civil, união estável e adoção por casais homoafetivos à luz da isonomia e da dignidade humana. Disponível em: < http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=434> Acesso em: 24 abr. 2009. 25 Id. 31 extensiva e da analogia, a fim de não cair no mesmo erro, posto que já devidamente justificada sua aplicação neste caso, em razão de representar a essência do conceito de família que sem tem em nossa sociedade atual. Das decisões: APELAÇÃO CÍVEL 70012836755/2005 (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL). UNIÃO HOMOAFETIVA. RECONHECIMENTO. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA IGUALDADE. É de ser reconhecida judicialmente a união homoafetiva mantida entre duas mulheres de forma pública e ininterrupta pelo período de 16 anos. A homossexualidade é um fato social que se perpetua através dos séculos, não mais podendo o Judiciário se olvidar de emprestar a tutela jurisdicional a uniões que, enlaçadas pelo afeto, assumem feição de família. A união pelo amor é que caracteriza a entidade familiar e não apenas a diversidade de sexos. É o afeto a mais pura exteriorização do ser e do viver, de forma que a marginalização das relações homoafetivas constitui afronta aos direitos humanos por ser forma de privação do direito à vida, violando os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade. [...] Além de a apelada ser dependente de D. no centro de servidores do IPE e na farmácia Droganossa (fls. 42-4), ainda mantinham conta conjunta em lojas (fl. 45). Outrossim, adquiriram, em condomínio, o imóvel localizado na Rua Jaguari, na razão de 18,51% para a apelada e 81,49% para a falecida. Contudo, no decorrer da relação, optaram por redefinir as frações ideais no percentual de 50% para cada uma (fls. 193-4), fato que denota comunhão de vida, de interesses e de embaralhamento patrimonial. A prova oral também vem ao encontro da tese exposta na exordial, porquanto as testemunhas confirmam que L. e D. viviam como marido e mulher (fls. 310-21). Não bastassem esses elementos, com o passar dos anos, o casal resolveu adotar o menino D. F. C., cujo nome, inclusive, foi escolhido em homenagem à falecida, cujo apelido era D., e que também foi eleita a madrinha do infante. A criança foi registrada em nome da apelada, constando como testemunhas a de cujus e a apelante N. Ainda que tal adoção tenha sido procedida de forma irregular (à brasileira), tal circunstância denota o desiderato do par de formar uma família, haja vista o fato de não poderem gerar filhos entre si. Nesse passo, cabe registrar que a falecida tratava D. como filho. Instituiu o afilhado como seu beneficiário no pecúlio GBOEX (fl. 60), desejava transferir a sua parte no imóvel adquirido em conjunto com a recorrida para o infante (fl. 59), mandava cartões para a apelada em conjunto com o menino (fls. 66-70) e arcava com as despesas inerentes ao sustento deste (fls. 195-6 e 202-5). A simples leitura do cartão da fl. 71, escrito para o afilhado, não deixa dúvidas de que o tinha como filho. Igualmente, não prospera a alegação de que a apelada teria retornado à residência comum, após uma separação, somente por interesses econômicos. [...] Inconteste que o relacionamento homoafetivo é um fato social que se perpetua através dos séculos, não pode mais o Judiciário se olvidar de prestar a tutela jurisdicional a uniões que, enlaçadas pelo afeto, assumem feição de família. A união pelo amor é que caracteriza a entidade familiar ais pura exteriorização do ser e do viver, de forma que a marginalização das relações mantidas entre pessoas do mesmo sexo constitui forma de privação do direito à vida, em atitude manifestamente preconceituosa e discriminatória. Deixemos de lado as aparências e vejamos a essência. [...] A Constituição Federal proclama o direito à vida, à liberdade, à igualdade e à intimidade (art. 5º, caput) e prevê como objetivo fundamental, a promoção do bem de todos, “sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, IV). Dispõe, ainda, que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” (art. 5º, XLI). Portanto, sua intenção é a promoção do bem dos cidadãos, que são livres para ser, rechaçando qualquer forma de exclusão social ou tratamento desigual. 32 Outrossim, a Carta Maior é a norma hipotética fundamental validante do ordenamento jurídico, da qual a dignidade da pessoa humana é princípio basilar vinculado umbilicalmente aos direitos fundamentais. Portanto, tal princípio é norma fundante, orientadora e condicional, tanto para a própria existência, como para a aplicação do direito, envolvendo o universo jurídico como um todo. Esta norma atua como qualidade inerente, logo indissociável, de todo e qualquer ser humano, relacionando-se intrinsecamente com a autonomia, razão e autodeterminação de cada indivíduo. [...] Por conseguinte, a Constituição da República, calcada no princípio da dignidade da pessoa humana e da igualdade, se encarrega de salvaguardar os interesses das uniões homoafetivas. Qualquer entendimento em sentido contrário é que seria inconstitucional. E quanto à tutela específica dessas relações, aplica-se analogicamente a legislação infraconstitucional atinente às uniões estáveis. [...] Diante de todos esses elementos, a existência da relação afetiva exsurge dos autos, revelando-se impositiva a manutenção da sentença que a reconheceu. Nesses termos, correta se mostra a sentença de lavra da Dra. Jucelana Lurdes Pereira dos Santos que conferiu efeitos jurídicos à relação havida, reconhecendo direitos sucessórios à apelada. Por tais fundamentos, é de ser negado provimento ao apelo.26 Em razão dos argumentos expostos pela desembargadora, visivelmente perceptível a consonância com o que expusemos em nossos parágrafos anteriores, no sentido de reconhecer o relacionamento homoafetivo publicamente, com base na Constituição Federal e nos princípios de igualdade e da dignidade da pessoa humana. Eis mais alguns excertos jurisprudenciais: APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO HOMOAFETIVA. RECONHECIMENTO. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA IGUALDADE. É de ser reconhecida judicialmente a união homoafetiva mantida entre dois homens de forma pública e ininterrupta pelo período de nove anos. A homossexualidade é um fato social que se perpetuou através dos séculos, não podendo o judiciário se olvidar de prestar a tutela jurisdicional a uniões que, enlaçadas pelo afeto, assumem feição de família. A união pelo amor é que caracteriza a entidade familiar e não apenas a diversidade de gêneros. E, antes disso, é o afeto a mais pura exteriorização do ser e do viver, de forma que a marginalização das relações mantidas entre pessoas do mesmo sexo constitui forma de privação do direito à vida, bem como viola os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade. AUSÊNCIA DE REGRAMENTO ESPECÍFICO. UTILIZAÇÃO DE ANALOGIA E DOS PRINCÍPIOS GERAIS DE DIREITO. A ausência de lei específica sobre o tema não implica ausência de direito, pois existem mecanismos para suprir as lacunas legais, aplicando-se aos casos concretos a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito, em consonância com os preceitos constitucionais (art. 4º da LICC). Negado provimento ao apelo, vencido o Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Apelação Cível Nº 70009550070, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Berenice Dias, Julgado em 17/11/2004). [...] O tratamento analógico das uniões homossexuais como entidades familiares segue a evolução jurisprudencial iniciada em meados do séc. XIX no Direito francês, que culminou no reconhecimento da sociedade de fato nas formações familiares entre homem e mulher não vinculadas pelo casamento. À época, por igual, não havia, no ordenamento jurídico positivo 26 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Negação de apelo. Apelação Cível nº 70012836755 / 2005. Relatora: Desembargadora: Maria Berenice Dias. 21 dez. 2005. Sítio do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. 33 brasileiro, e nem no francês, nenhum dispositivo legal que permitisse afirmar que união fática entre homem e mulher constituía família, daí por que o recurso à analogia, indo a jurisprudência inspirar-se em um instituto tipicamente obrigacional como a sociedade de fato. Houve resistências inicialmente? Claro que sim, como as há agora em relação às uniões entre pessoas do mesmo sexo. O fenômeno, a meu ver, é rigorosamente o mesmo. Vejam : não estou afirmando que tais relacionamentos constituem exatamente uma união estável. O que estou dizendo é que, se é para tratar por analogia, muito mais se assemelha a uma união estável do que a uma sociedade de fato. Por quê? Porque a affectio que leva estas duas pessoas a viverem juntas, a partilharem os momentos bons e maus da vida é muito mais a affectio conjugalis do que a affectio societatis. Eles não estão ali para obter resultados econômicos da relação, mas, sim, para trocarem afeto, e esta troca de afeto é que forma uma entidade familiar. Pode-se dizer que não é união estável, mas é uma entidade familiar, com a devida vênia de opiniões respeitabilíssimas em contrário. Estamos hoje, como muito bem ensina Luiz Edson Fachin, na perspectiva daquilo que ele chama de família eudemonista, ou seja, a família que se justifica exclusivamente pela busca da felicidade, da realização pessoal dos seus indivíduos. E essa realização pessoal pode darse dentro da heterossexualidade ou da homossexualidade, é uma questão de opção, ou de determinismo, controvérsia esta sobre a qual a Ciência ainda não chegou a uma conclusão definitiva, mas, de qualquer forma, é uma decisão, e, como tal, deve ser respeitada. Parece inegável que o que leva estas pessoas a conviverem é o amor. Prefiro dizer amor mesmo, não mero afeto, porque o afeto, conforme as teorias psicanalíticas afirmam, pode ser o ódio também. Todo sentimento é um afeto, de forma que me parece mais adequado dizer que são relações de amor, cercadas, ainda, por preconceitos. Como tal, são aptas a servir de base a entidades familiares equiparáveis, para todos os efeitos, à união estável entre homem e mulher. Em contrário a esse entendimento costuma-se esgrimir sobretudo com o argumento de que as entidades familiares estão especificadas na Constituição Federal, e que dentre elas não se alinha a união entre pessoas de mesmo sexo.27 Outra manifestação de relatoria da Desembargadora Maria Berenice Dias, porém nesta última citação, apresenta-se manifestação do Desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, que figurou como revisor no feito, seguindo a mesma linha apresentada até então. Aproveitamos para transcrever citação feita pelo Desembargador, de texto redigido por Maria Celina Bodin de Moraes. O argumento jurídico mais consistente, contrário à natureza familiar da união civil entre pessoas do mesmo sexo, provém da interpretação do Texto Constitucional. Nele encontramse previstas expressamente três formas de configurações familiares: aquela fundada no casamento, a união estável entre um homem e uma mulher com ânimo de constituir família (art. 226, §3º), além da comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (art. 226, §4º). Alguns autores, em respeito à literalidade da dicção constitucional e com argumentação que guarda certa coerência lógica, entendem que ‘qualquer outro tipo de entidade familiar que se queira criar, terá que ser feito via emenda constitucional e não por projeto de lei’”. “O raciocínio jurídico implícito a este posicionamento pode ser inserido entre aqueles que compõem a chamada teoria da ‘norma geral exclusiva’ segundo a qual, resumidamente, uma norma, ao regular um comportamento, ao mesmo tempo exclui daquela regulamentação todos os demais comportamentos. Como se salientou em doutrina, a teoria da nomra geral exclusiva tem o seu ponto fraco no fato de que, nos ordenamentos jurídicos , há uma outra norma geral (denominada inclusiva), cuja característica é regular os casos não previstos na 27 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Negação de apelo. Apelação Cível nº 70009550070 / 2004. Relatora: Desembargadora: Maria Berenice Dias. Revisor: Desembargador: Luiz Felipe Brasil Santos. 17 nov. 2004. Sítio do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. 34 norma, desde que semelhantes a ele, de maneira idêntica. De modo que, frente a uma lacuna, cabe ao intérprete decidir se deve aplicar a norma geral exclusiva, usando o argumento a contrario sensu, ou se deve aplicar a norma geral inclusiva, através do argumento a simili ou analógico”. “Sem abandonar os métodos clássicos de interpretação, verificou-se que outras dimensões, de ordem social, econômica, política, cultural etc., mereceriam ser consideradas , muito especialmente para interpretação dos textos das longas Constituições democráticas que se forjaram a partir da segunda metade deste século. Sustenta a melhor doutrina, modernamente, com efeito, a necessidade de se utilizar métodos de interpretação que levem em conta trata-se de dispositivo constante da Lei Maior e, portanto, métodos específicos de interpretação constitucional devem vir à baila”. “Daí ser imprescindível enfatizar, no momento interpretativo, a especificidade da normativa constitucional – composta de regras e princípios –, e considerar que os preceitos constitucionais são, essencialmente, muito mais indeterminados e elásticos do que as demais normas e, portanto, ‘não predeterminam, de modo completo, em nenhum caso, o ato de aplicação, mas este se produz ao amparo de um sistema normativo que abrange diversas possibilidades’. Assim é que as normas constitucionais estabelecem, através de formulações concisas, ‘apenas os princípios e os valores fundamentais do estatuto das pessoas na comunidade, que hão de ser concretizados no momento de sua aplicação’ ”. “Por outro lado, é preciso não esquecer que segundo a perspectiva metodológica de aplicação direta da Constituição às relações intersubjetivas, no que se convencionou denominar de ‘direito civil-constitucional’, a normativa constitucional, mediante aplicação direta dos princípios e valores antes referidos, determina o iter interpretativo das normas de direito privado – bem como a colmatação de suas lacunas –, tendo em vista o princípio de solidariedade que transformou, completamente, o direito privado vigente anteriormente, de cunho marcadamente individualístico. No Estado democrático e social de Direito, as relações jurídicas privadas ‘perderam o caráter estritamente privatista e inserem-se no contexto mais abrangente de relações a serem dirimidas, tendo-se em vista, em última instância, no ordenamento constitucional”. “Seguindo-se estes raciocínios hermenêuticos, o da especificidade da interpretação normativa civil à luz da Constituição, cumpre verificar se por que a norma constitucional não previu outras formas de entidades familiares, estariam elas automaticamente excluídas do ordenamento jurídico, sendo imprescindível, neste caso, a via emendacional para garantir proteção jurídica às uniões civis entre pessoas do mesmo sexo, ou se, ao contrário, tendo-se em vista a similitude das situações, estariam essas uniões abrangidas pela expressão constitucional ‘entidade familiar’”. “Ressalte-se que a Constituição Federal de 1988, além dos dispositivos enunciados em tema de família, consagrou, no art. 1º, III, entre os seus princípios fundamentais, a dignidade da pessoa humana, ‘impedindo assim que se pudesse admitir a superposição de qualquer estrutura institucional à tutela de seus integrantes, mesmo em se tratando de instituições com status constitucional, como é o caso da empresa, da propriedade e da família’. Assim sendo, embora tenha ampliado seu prestígio constitucional, a família, como qualquer outra comunidade de pessoas, ‘deixa de ter valor intrínseco, como instituição capaz de merecer tutela jurídica pelo simples fato de existir, passando a ser valorada de maneira instrumental, tutelada na media em que se constitua em um núcleo intermediário de desenvolvimento da personalidade dos filhos e de promoção da dignidade de seus integrantes’. É o fenômeno da ‘funcionalização’ das comunidades intermediárias – em especial da família – com relação aos membros que as compõem”. “A proteção jurídica que era dispensada com exclusividade à ‘forma’ familiar (pense-se no ato formal do casamento) foi substituída, em consequência, pela tutela jurídica atualmente atribuída ao ‘conteúdo’ ou à substância: o que se deseja ressaltar é que a relação estará protegida não em decorrência de possuir esta ou aquela estrutura, mesmo se e quando prevista constitucionalemnte, mas em virtude da função que desempenha – isto é, como espaço de troca de afetos, assistência moral e material, auxílio mútuo, companheirismo ou convivência entre pessoas humanas, quer sejam do mesmo sexo, quer sejam de sexos diferentes”. “Se a família, através de adequada interpretação dos dispositivos constitucionais, passa a ser entendida principalmente como ‘instrumento’, não há como se recusar tutela a outras formas de vínculos afetivos que, embora não previstos expressamente pelo legislador constituinte, se 35 encontram identificados com a mesma ratio, como os mesmo fundamentos e com a mesma função. Mais do que isto: a admissibilidade de outras formas de de entidades ‘familiares’ torna-se obrigatória quando se considera seja a proibição de qualquer outra forma de discriminação entre as pessoas, especialmente aquela decorrente de sua orientação sexual – a qual se configura como direito personalíssimo –, seja a razão maior de que o legislador constituinte se mostrou profundamente compromissado com a com a dignidade da pessoa humana (art. 1º, II, CF), tutelando-a onde quer que sua personalidade melhor se desenvolva. De fato, a Constituição brasileira, assim como a italiana, inspirou-se no princípio solidarista, sobre o qual funda a estrutura da República, significando dizer que a dignidade da pessoa é preexistente e a antecedente a qualquer outra forma de organização social”. “O argumento de que à entidade familiar denominada ‘união estável’ o legislador constitucional impôs o requisito da diversidade de sexo parece insuficiente para fazer concluir que onde vínculo semelhante se estabeleça, entre pessoas do mesmo sexo serão capazes, a exemplo do que ocorre entre heterossexuais, de gerar uma entidade familiar, devendo ser tutelados de modo semelhante, garantindo-se-lhes direitos semelhantes e, portanto, também, os deveres correspondentes. A prescindir da veste formal, a ser dada pelo legislador ordinário, a jurisprudência – que, em geral, espelha a sensibilidade e as convenções da sociedade civil –, vem respondendo afirmativamente”. “A partir do reconhecimento da existência de pessoas definitivamente homossexuais, ou homossexuais inatas, e do fato de que tal orientação ou tendência não configura doença de qualquer espécie – a ser, portanto, curada e destinada a desaparecer –, mas uma manifestação particular do ser humano, e considerado, ainda, o valor jurídico do princípio fundamental da dignidade da pessoa, ao qual está definitivamente vinculado todo o ordenamento jurídico, e da conseqüente vedação à discriminação em virtude da orientação sexual, parece que as relações entre pessoas do mesmo sexo devem merecer status semelhante às demais comunidade de afeto, podendo gerar vínculo de natureza familiar”. “Para tanto, dá-se como certo o fato de que a concepção sociojurídica de família mudou. E mudou seja do ponto de vista dos seus objetivos, não mais exclusivamente de procriação, como outrora, seja do ponto de vista da proteção que lhe é atribuída. Atualmente, como se procurou demonstrar, a tutela jurídica não é mais concedida à instituição em si mesma, como portadora de um interesse superior ou supra-individual, mas à família como um grupo social, como o ambiente no qual seus membros possam, individualmente, melhor se desenvolver (CF, art. 226, §8º)”.28 CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. 1. AÇÃO NOMINADA DE SOCIEDADE DE FATO. IRRELEVÂNCIA. FUNDAMENTO DA PRETENSÃO CENTRADO NA UNIÃO HOMOAFETIVA. PLEITO DE MEAÇÃO. 2. ENTIDADE FAMILIAR. RELAÇÃO FUNDADA NA AFETIVIDADE. 3. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA IGUALDADE. 4. POSSÍVEL ANALOGIA COM A UNIÃO ESTÁVEL. 5. COMPETÊNCIA DA VARA DA FAMÍLIA. ACOLHIMENTO DO CONFLITO. [...] 1. A admissibilidade do conflito de competência Satisfeitos os pressupostos de admissibilidade, conheço do conflito de competência. 2. As particularidades da hipótese sub judice Registro impropriedade na nominação da ação - 'ação de dissolução de sociedade de fato' -, o que poderia sugerir conclusão diversa daquela constante nesta decisão. É que, em verdade, o autor pretende é a atribuir "ao requerente o direito de meação dos bens constituídos no curso da união" (fl. 03) (grifei) - o que só é possível à luz do direito de família. Isso porque a dissolução de sociedade de fato configura matéria de cunho exclusivamente patrimonial, incompatível com meação que só está presente no regime de bens. Se não 28 MORAES, Maria Celina Bodin de. A união entre pessoas do mesmo sexo: uma análise sob a perspectiva civil-constitucional. Vol. 1. p. 89-112. apud BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Negação de apelo. Apelação Cível nº 70009550070 / 2004. Relatora: Desembargadora: Maria Berenice Dias. Revisor: Desembargador: Luiz Felipe Brasil Santos. 17 nov. 2004. Sítio do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. 36 bastasse, o pano de fundo da pretensão inicial é a alegada relação homoafetividade havida entre o autor e o falecido P. J. de M., pautada no afeto. Referido raciocínio, consigne-se por cautela, não afronta o princípio da congruência, pois, afinal, o que se aprecia é o pedido formulado, independentemente da nominação da demanda. É sabido que "O nomem iuris conferido à petição, desde que adaptável ao procedimento legal, não implica em inadequação do meio processual" (TJSC, Apelação cível n. 2003.020538-1, da Capital, rel. Des. JOSÉ VOLPATO DE SOUZA, j. em 09.12.2003). Ademais, é de se apontar outra conseqüência grave da discussão. Se se entender que há mera sociedade de fato, chamando a competência do juízo cível, a solução da lide haverá de ser lançada tendo em conta a contribuição de cada um dos 'companheiros' para, depois, determinar-se a divisão proporcional à contribuição individual. Todavia, se de união homoafetiva estável se tratar, impõe-se a partilha igualitária, nos termos do regime legal, sendo desimportante a contribuição material de cada um. Enfim, essas são as premissas que irão iluminar a posição que segue. 3. O mérito Dispõe o art. 5º, LIII, da Constituição Federal que: "Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente". A controvérsia dos autos reside em estabelecer a competência - da vara da família ou da vara cível - para processar demanda intitulada "ação de reconhecimento e dissolução de sociedade de fato", tendo como pano de fundo a existência de união homoafetiva. De início, impõe-se tecer algumas considerações introdutórias. 3.a A família contemporânea e o afeto A Constituição Federal estatui em seu art. 226 que a "família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado". A definição de família não é e não pode ser estanque. As transformações políticas, econômicas, culturais e sociais vêm ao longo dos tempos transmudando as relações interpessoais. O conceito de entidade familiar ampliou-se consideravelmente ao longo dos tempos, para incluir, inclusive, relacionamentos não advindos do casamento legal, como a união estável. A discriminação entre filhos legítimos e ilegítimos restou afastada pelo legislador. A paternidade socioafetiva é tema relevante nas ações de investigação de paternidade do vínculo biológico, chegando ao ponto de superá-la, por vezes (CC/02, art.1.597, V). Enfim, o delineamento da família contemporânea tem no afeto sua mola propulsora. Sobre a evolução do conceito de família, leciona RODRIGO DA CUNHA PEREIRA: A partir de LACAN e LÉVI-STRAUSS, podemos dizer que família é uma estruturação psíquica em que cada membro ocupa um lugar, uma função. Lugar de pai, lugar de mãe, lugar de filhos, sem, entretanto, estarem necessariamente ligados biologicamente. Tanto é assim, uma questão de "lugar", que um indivíduo pode ocupar o lugar de pai ou mãe, sem que seja o pai ou a mãe biológicos. Exatamente por ser uma questão de lugar, de função exercida, que existe o milenar instituto da adoção. Da mesma forma, o pai ou a mãe biológicos podem ter dificuldade em ocuparem este lugar de pai ou de mãe, tão necessários e essenciais à nossa estruturação psíquica e formação como seres humanos e Sujeitos de Direitos. É essa estruturação familiar que existe antes, e acima do Direito, que nos interessa trazer para o campo jurídico. E é sobre ela que o Direito vem, através dos tempos, e em todos os ordenamentos jurídicos, regulando e legislando, sempre com o intuito de ajudar a mantê-la para que o indivíduo possa, inclusive, existir como cidadão (sem esta estruturação familiar, na qual há um lugar definido para cada membro, o indivíduo seria psicótico) e trabalhar na construção de si mesmo, ou seja, na estruturação do ser-sujeito e das relações interpessoais e sociais, que possibilitam a existência dos ordenamentos jurídicos. Nossa velha e constante indagação persiste: o que é que garante a existência de uma família? Certamente não é o vínculo jurídico e nem mesmo laços biológicos de filiação são garantidores. Essas relações não são necessariamente naturais. Elas são da ordem da cultura, e não da natureza. Se assim fosse não seria possível o milenar instituto da adoção, por exemplo. Devemos, então, a partir da compreensão, e da constatação, de que é possível estabelecer um conceito universal para família, revisitar o inciso III do art. 16 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, já que família não é natural, mas essencialmente cultural. (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Família, Direitos Humanos, Psicanálise e Inclusão Social, in Revista Brasileira de Direito de Família, Vol. 16, jan./fev./mar. Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, 2003). 37 LOURIVAL SEREJO completa que: Qualquer que seja a família do futuro, as tendências previsíveis em suas características já estão presentes em grande maioria das famílias atuais, a saber: despatrimonialização (substituição da preocupação capitalista de acumular bens pela valorização das relações familiares autênticas entre os membros de uma família), valoração dos aspectos afetivos da convivência familiar, igualdade dos filhos, desbiologização do conceito de paternidade, guarda dos filhos a terceiros, companheirismo, democracia interna mais acentuada, instabilidade, mobilidade e inovação permanente. (SEREJO, Lourival. Direito Constitucional da Família. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 23). Não se pode perder de vista que: "o direito não regula sentimentos, mas as uniões que associam afeto a interesses comuns, que, ao terem relevância jurídica, merecem proteção legal, independentemente da orientação sexual do par" (DIAS, Maria Berenice. União homossexual: o preconceito e a justiça. 2. ed. Porto Alegre: Do Advogado, 2001, p. 68). Dir-se-á que o art. 226 da Constituição Federal dispõe que "a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado", é composta tão-somente de três espécies: a) o casamento (art. 226, §1º); b) a união estável entre homem e mulher (art. 226, §3º); e c) comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, qual seja, a família monoparental (art. 226, §4º) . A sujeitar-se, o intérprete, ao texto frio e explícito da norma constitucional, não constituiriam família, por exemplo, a entidade formada por avô e neto, tio e sobrinho, irmãos, sogra e nora etc., comunidades, todas, fundadas essencialmente no afeto. Por tal incongruência, é que se sustenta que a conceituação da família não deve ficar concentrada na letra da lei, mas agregar fatores sociais, culturais e econômicos, que são dinâmicos. Sua compreensão não há de ser limitativa, restritiva ou excludente, mas sim ampliativa e inclusiva, de modo a observar seu caráter plural e instrumental. O legislador pátrio sinaliza evolução nesse sentido. A Câmara dos Deputados aprovou recentemente o Projeto de Lei n. 6.222/05, estabelecendo novas regras para adoção. Embora tenha sido excluído do texto original a possibilidade de adoção por casais homoafetivos, foi mantida a alteração que acrescenta o parágrafo único ao art. 25 do Estatuto da Criança e do Adolescente, definindo que: "Entende-se por família extensa ou ampliada aquela que se estende além da unidade pais/filhos e/ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade". O Projeto segue agora para o Senado Federal. A redação do art. 2º, §1º, I, da Lei n. 10.836/04, que criou o Programa Bolsa Família, estabelece que considera-se família, para fins daquela legislação: "a unidade nuclear, eventualmente ampliada por outros indivíduos que com ela possuam laços de parentesco ou de afinidade, que forme um grupo doméstico, vivendo sob o mesmo teto e que se mantém pela contribuição de seus membros"; Por tudo, vê-se que a compreensão acerca da família contemporânea vai além do casamento, da união estável e da monoparentalidade, pois, absorvidas as transformações sócio-culturais, proteger também àqueles segmentos fundados no afeto. 3.b União homoafetiva e legislação estrangeira As questões que envolvem o reconhecimento da união homoafetiva vêm sendo debatidas em vários países, com níveis de liberdade distintos. Conforme dados da Anistia Internacional, mais de 70 países do mundo consideram a homossexualidade crime e em 30 países constatou-se abusos aos direitos humanos dos homossexuais, também chamados 'crimes de ódio, conspiração e silêncio" (DIAS, Maria Berenice. DIAS, União homossexual: o preconceito e a justiça. 2. ed. Porto Alegre: Do Advogado, 2001, p. 51). O Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas assentou que leis que proíbam relações homoafetivas entre adultos violam o disposto no art. 1º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, que dispõe: "Todos os povos têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito, determinam livremente seu estatuto político e asseguram livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural." O primeiro país a reconhecer legalmente a união homoafetiva foi a Dinamarca, no ano de 1989. Adotou um modelo de 'parceria registrada', através do registro do relacionamento de casais homossexuais, linha posteriormente seguida por outros países nórdicos: Suécia, Noruega e Islândia. Os primeiros parceiros dinamarqueses, e do mundo, a formalizar sua união foram Axel (72 anos) e Eigil Axil (67 anos), que mantiveram uma relação de 40 anos de 38 vida em comum (MATOS, Ana Carla Harmatiuk. União entre pessoas do mesmo sexo. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 92). Na esteira da tendência de reconhecimento legal da união homoafetiva, a Holanda conta com a legislação mais liberal sobre a matéria, estando na vanguarda ao estender aos casais homoafetivos, desde 2001, o direito ao casamento. A Bélgica enveredou pela mesma trilha e, no ano de 2003, autorizou o casamento de pessoas do mesmo sexo. A Constituição da África do Sul, de 1996, proíbe expressamente qualquer discriminação fundada na orientação sexual, porém, não reconhecia o casamento entre pessoas do mesmos sexo. Em 2006, após o Tribunal Constitucional do país entender que a legislação até então existente discriminava homossexuais ao definir o casamento como "uma união entre um homem e uma mulher", o Parlamento sul-africano aprovou lei que possibilita o casamento entre pessoas do mesmo sexo ao prever: "a união voluntária de duas pessoas, solenizada e registrada por um casamento ou união civil". Na Europa ocidental, a Alemanha conta desde 2001 com legislação que prevê direitos às uniões homoafetivas. Na Inglaterra, embora sob forte resistência, em 2001 possibilitou-se o registro das uniões. A França, no ano de 1999, aprovou o Pacto Civil de Solidariedade (PACs) entre pessoas do mesmo sexo, equiparando os membros dos PACs aos cônjuges. Na Espanha, a lei catalã, do ano de 1998, prevê um modelo parecido com o PAC francês. O parlamento português, em março de 2001, aprovou o Decreto 56/VIII, que traz em seu bojo medidas protetivas às uniões de fato. Já o Tratado de Amsterdã, concluído em 1997, autoriza o Conselho da União Européia, após consulta ao Parlamento Europeu, a tomar medidas sancionatórias contra atos discriminatórios decorrentes de orientação sexual. Aliás, em janeiro deste ano, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos condenou a França por ter impedido uma mulher homossexual e sua companheira de adotar uma criança, em uma decisão sem precedentes. A condenação abarcou o pagamento à litigante de 10 mil euros por danos morais, além de cobrir suas despesas judiciais, no valor de 14.528 euros (Disponível em: <http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL269311-5602,00.html>, acesso em: 12.03.2008). Nas Américas, o Canadá autoriza a extensão de benefícios de saúde a parceiros do mesmo sexo, e o casamento de pessoas do mesmo sexo desde 2005. Em caso de discriminação decorrente da orientação sexual, aquele país reconhece a violação à garantia constitucional da igualdade. Em Buenos Aires, na Argentina, a Lei n. 1004/2002, promulgada em janeiro de 2003 pelo Decreto n. 63, possibilita a formalização das uniões civis de pessoas do mesmo sexo naquela cidade, com a criação de registro público próprio, estabelecendo união civil aquela "formada livremente por duas pessoas, independentemente de seu sexo ou orientação sexual". Posteriormente, o Uruguai transformou-se no primeiro país da América Latina em legalizar a união civil entre homossexuais, em dezembro de 2007, ao aprovar a chamada "união concubinária". Referida legislação reconhece e regula todas as relações estáveis entre pessoas que vivem juntas por mais de cinco anos, inclusive do mesmo sexo. Nos Estados Unidos, de uma maneira geral, os estados não autorizam o casamento entre pessoas do mesmo sexo. No estado da Califórnia, em recente julgado de sua Corte Suprema (maio/2008), aprovou-se a suspensão à proibição do casamento de pessoas do mesmo sexo. A decisão coloca a Califórnia, junto com o estado de Massachusetts, como os únicos estados americanos onde pessoas do mesmo sexo podem se casar legalmente. Enfim, essa é uma breve panorâmica sobre o cenário atual acerca do reconhecimento dos direitos em favor da união homoafetiva em alguns países. Após essa rápida contextualização, passo à análise sob o enfoque da Constituição Federal. 3.c União homoafetiva e as garantias constitucionais Não se desconhece o posicionamento no sentido que: "O relacionamento homoafetivo entre pessoas do mesmo sexo não pode ser reconhecido como união estável, a ponto de merecer a proteção do Estado, porquanto o § 3º do art. 226 da Carta Magna e o art. 1.723 do Código Civil somente reconhece como entidade familiar aquela constituída entre homem e mulher." (TJSC, Apelação Cível n. 2006.016597-1, da Capital, Relator: Des. MAZONI FERREIRA, j. em 28.09.2006). No mesmo sentido: STJ, Resp 648763 / RS, rel. Min. CESAR ASFOR ROCHA, j. em 07.12.2006; e TJSC, Apelação Cível n. 2006.046480-0, rel. Des. MARCUS TULIO SARTORATO, j. em 29.07.2008. Ouso divergir, venia. 39 A união homoafetiva como entidade familiar O afeto, como já explicitado, é elemento essencial das relações interpessoais e a união homoafetiva é uma realidade social. A convivência com base no afeto não é um privilégio dos heterossexuais. Nos relacionamentos homossexuais, o amor, o afeto, o desejo, o erotismo e as relações sexuais estão tão fortemente presentes que saltam as barreiras do estigma social. Esse complexo de fatores, da ordem do não -racional e até do subconsciente, manifesta-se independentemente da orientação sexual e representa uma das melhores maneiras de se realizar como ser humano (MATOS, Ana Carla Harmatiuk. União entre pessoas do mesmo sexo. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 59). Argumento no sentido de que o casamento/união estável teriam por fim a procriação, não serve, a meu sentir, como justificava à desqualificação da união homoafetiva. Primeiro, a paternidade não advém somente do vínculo biológico, uma vez que adoção é uma realidade, primada na socioafetividade. Segundo, "a impotência generandi tanto quanto a concipiendi jamais foram causa de desfazimento de vínculo matrimonial, até mesmo em face do Direito canônico." (DIAS, Maria Berenice. União homossexual: o preconceito e a justiça. 2. ed. Porto Alegre: Do Advogado, 2001, p. 67). Nesse ponto, de registrar-se recente situação noticiada pela imprensa, dando conta que uma americana, nascida mulher, após legal e anatomicamente (retirada de seios, administração de hormônios) mudar para o sexo masculino, engravidou, por inseminação artificial, constituindo-se no primeiro "pai grávido" de que se tem notícia: Prestes a completar 1 mês, SUSAN JULIETTE passa bem, depois de fazer história: o corpo que a gestou, por inseminação artificial, pertence, para todos os fins legais, a um homem, o americano THOMAS BEATIE, 34 anos, que nasceu Tracy Lagondino mas removeu os seios, fez tratamento hormonal e mudou de sexo. Beatie diz que o parto foi normal e que já se recuperou. "Peso 2 quilos menos que antes de engravidar. E não tenho marca de estria", comemora o pai-mãe. A companheira Nancy, 45, está amamentando (por indução, com hormônios e estímulo). "Somos, finalmente, a família que sempre sonhamos", diz. (Revista Veja, edição 207, 30 de julho de 2008, disponível em: <http://veja.Abril.com.br/300708/gente.shtml>, acesso em 31.07.2008). A defesa de que a união homoafetiva não é entidade familiar por fugir aos padrões "normais" também se mostra discriminatória e em extrema dissintonia com o conceito contemporâneo de família. Embora a discussão sobre o tema gire em torno do reconhecimento como entidade familiar, é incontroverso que a união homoafetiva é fato lícito. Não se pense, todavia, que a família homoafetiva se confunde com a família casamentária fundada no casamento, união formal entre pessoas de sexos diferentes - ou como família convivencional - fundada na união estável, como laço informal entre pessoas de sexos diferentes. Trata-se de modelo familiar autônomo, como a comunidade entre irmãos, tios e sobrinhos e avós e netos, merecedor de especial proteção do Estado" (FARIAS, Cristiano Chaves de. Reconhecer a obrigação alimentar nas uniões homoafetivas: uma questão de respeito à Constituição da República. Revista Brasileira de Direito de Família. n. 28. fev. mar. 2005. Porto Alegre: síntese, IBDFAM, 2005, p. 33) (grifo nosso). O modelo de família sofreu grandes transformações, e continuará mutante. Cabe ao operador do Direito de Família estar atento e em sintonia com as transformações que clamam respostas jurídicas. Nesse contexto, a questão merece enfrentamento à luz dos princípios constitucionais (dignidade, igualdade e segurança jurídica). Nos últimos anos, a moderna dogmática constitucional vem operando a distinção qualitativa ou estrutural entre regra e princípio, com o intuito de superar o positivismo legalista. A Constituição passa a ser encarada como um sistema aberto de princípios e regras, permeável a valores jurídicos suprapositivos, no qual as idéias de justiça e de realização dos direitos fundamentais desempenham um papel central. A mudança de paradigma nessa matéria deve especial tributo às concepções de Ronald Dworkin e aos desenvolvimento a ela dados por Robert Alexy. A conjugação das idéias desses dois autores dominou a teoria jurídica e passou a constituir o conhecimento convencional na matéria (BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paulade. A nova interpretação constitucional. Organizador: Luís Roberto Barroso. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 340) 40 A Constituição Federal consagra em seu art. 1º, III, o princípio da dignidade humana como fundamento da República Federativa do Brasil, constituindo-se em verdadeira pedra de toque do sistema jurídico pátrio. É princípio natural positivado pelo ordenamento jurídico, e tem como premissa o respeito ao ser humano, dentro da sua individualidade. Na Carta Constitucional, apesar de não privilegiar especificamente determinado direito individual quando os delimita no artigo definidor das cláusulas pétreas (art. 60, § 4o), sem dúvidas enaltece os valores vinculados ao princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1o, III). Desse modo, "devem ser levados em conta, em eventual juízo de ponderação, os valores que constituem inequívoca expressão desse princípio (inviolabilidade de pessoa humana, respeito à sua integridade física e moral, inviolabilidade do direito de imagem e da intimidade)" (MENDES, Gilmar Ferreira. op. cit., p. 62-63). E continua o julgador: Fica evidente aqui que, também no Direito brasileiro, o princípio da dignidade humana assume relevo ímpar na decisão do processo de ponderação entre as posições em conflito. (p. 69-70) (grifo nosso). Destaca SARLET que "A dignidade da pessoa humana é a qualidade integrante e irrenunciável da condição humana, devendo ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida. Não é criada, nem concedida pelo ordenamento jurídico, motivo por que não pode ser retirada, pois é inerente a cada ser humano." (SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 41). E completa aquele doutrinador: O Constituinte deixou transparecer de forma clara e inequívoca a sua intenção de outorgar aos princípios fundamentais a qualidade de normas embasadoras e informativas de toda ordem constitucional, inclusive (e especialmente) das normas definidores de direitos e garantias fundamentais, que igualmente integram (juntamente com os princípios fundamentais) aquilo que se pode - e neste ponto parece haver consenso - denominador de núcleo essencial da nossa Constituição formal e material. (SARLET. Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 64). Dentre as múltiplas possibilidades de sentido da idéia de dignidade, leciona LUÍS ROBERTO BARROSO que duas delas são reconhecidas pelo conhecimento convencional: 'I) ninguém pode ser tratado como meio, devendo cada indivíduo ser considerado como fim em si mesmo; II) todos os projetos pessoais e coletivos de vida, quando razoáveis, são dignos de igual respeito e consideração, são merecedores de igual "reconhecimento". E completa o jurista que o "não reconhecimento da união de pessoas do mesmo sexo viola essas duas dimensões nucleares da dignidade humana" (BARROSO, Luís Roberto. Diferentes, mas iguais: o reconhecimento das relações homoafetivas no Brasil. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/mostra_noticia_articuladas.aspx?cod=40507>, acesso em 11.08.2008). Desta forma, a inclinação sexual não pode ser fator de exclusão do indivíduo, nem tampouco retirar-lhe a garantia de viver com dignidade. Sob outro prisma, a ausência de regime jurídico a ser aplicado às uniões homoafetivas, se excluída a incidência dos efeitos da união estável, gera insegurança jurídica. Da lição de ÁLVARO VILLAÇA AZEVEDO extrai-se que: A vida familiar com segurança jurídica é o ideal, também porque o Estado está preocupado com sua própria existência. A família é seu forte, seu sustentáculo, sua própria vida, a menor porção da sociedade, dentro do lar. E a família, por sua vez, encontra sua força na convivência pacífica e segura de seus membros, irmanados no amor (AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato: de acordo com o novo Código Civil. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 241). No âmbito familiar, questões como alimentos, guarda de filhos, meação, direito hereditário, exoneração de alimentos para ex-cônjuge que viva em união homoafetiva etc, ficariam à margem do sistema jurídico. Perante terceiros, a indefinição do regime jurídico da união homoafetiva, se reconhecida apenas sociedade de fato, proporciona também insegurança jurídica. Dúvidas remanesceriam sobre outorga marital, responsabilidade patrimonial por dívidas individuais ou comuns aos companheiros e inelegibilidade eleitoral. 41 Nessa linha, "se é possível interpretar o direito posto de modo a prestigiar o princípio da segurança jurídica, e inexistindo outro valor constitucional que a ele se oponha, será contrária à Constituição a interpretação que frustre a concretização de tal bem jurídico" (BARROSO, Luís Roberto. Diferentes, mas iguais: o reconhecimento das relações homoafetivas no Brasil. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/mostra_noticia_articuladas.aspx?cod=40507>, acesso em 11.08.2008). As concepções jurídicas contemporâneas de igualdade remetem ao conceito aristotélico. Para Aristóteles, a identificação do que é justo ocorre por intermédio de juízos sobre o que é bom e melhor. A pesquisa dialética encerrada no seio da pólis estabelece a correção destes juízos. Quanto mais amplas forem as circunstâncias informadoras do julgamento, maior será o grau de justiça alcançado no ato de julgar e, por conseqüência, a realização do princípio da igualdade (RIOS, Roger Raupp. O princípio da igualdade e a discriminação por orientação sexual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 28). LUÍS ROBERTO BARROSO assenta que: O conteúdo do princípio da igualdade sofreu uma importante expansão nas últimas décadas. No contexto do embate entre capitalismo e socialismo, os temas centrais de discussão gravitam em torno da promoção de igualdade material e da redistribuição de riquezas. Com o fim da guerra fria, entraram na agenda pública outros temas, sobretudo os que envolvem as denominadas políticas de reconhecimento, designação sob a qual se travam as discussões acerca de etnia, gênero e orientação sexual. Sob o influxo do princípio da dignidade da pessoa humana, passou-se a enfatizar a idéia de que devem ser respeitados todos os projetos pessoais de vida e todas as identidades culturais, ainda quando não sejam majoritárias. (BARROSO, Luis Roberto. Diferentes, mas iguais: o reconhecimento das relações homoafetivas no Brasil. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/mostra_noticia_articuladas.aspx?cod=40507> , acesso em 11.08.2008). Além de seu preâmbulo, a Constituição Federal ratifica o princípio da igualdade em seu art. 5º, caput, ao estabelecer que: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantido-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade". Reafirmada a intenção do constituinte originário, no art. 3º, IV, da CF, consta que constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Por certo que, no âmbito da igualdade formal, a orientação sexual está incluída na vedação à discriminação por gênero. A igualdade material, no que toca à orientação sexual, institui, na relação homoafetiva, o direito de ser tratado igualmente e o dever de dispensar tratamento igual, sempre que não houver fundamento racional para a desigualdade. O preconceito ou ponto de vista particular jamais pode ser tido como fundamento para atitudes discriminatórias (BARROSO, Luís Roberto. Diferentes, mas iguais: o reconhecimento das relações homoafetivas no Brasil. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/mostra_noticia_articuladas.aspx?cod=40507>, acesso em 11.08.2008). Sob esse prisma, resta saber se na dualidade de sexos exigida na regra do art. 226, § 3º, da Constituição Federal, há congruência entre a distinção de regime estabelecido e a desigualdade de situações correspondentes (MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do princípio da igualdade. 3. Ed. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 35). Eis o conteúdo do art. 226, § 3°, da CF: "Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento". Muitas vezes, na busca de solução de eventuais conflitos, equivocadamente busca-se o estabelecimento de superioridade entre os direitos individuais. Contudo, apesar de não se negar que a Constituição apresenta diferentes pesos dentro da ordem constitucional inquestionável que o direito à vida tem precedência sobre os demais direitos individuais, vez que é pressuposto para o exercício dos demais -, é certo que a fixação de rigorosa prevalência entre diferentes direitos individuais acabaria por desnaturá-los por completo, ensejando desvalor com a própria Lei Maior, que é um complexo normativo unitário e harmônico. Uma valoração hierárquica, de antemão lançada, diferenciada somente pode ser admitida em casos especialíssimos. O Ministro GILMAR FERREIRA MENDES, do STF, ressalta: 42 Na tentativa de fixar uma regra geral, consagra Dürig a seguinte fórmula: valores relativos às pessoas têm precedência sobre valores de índole material (Persongutwert geht vor Sachgutwert). Tal como apontado por Rüfner, a tentativa de atribuir maior significado aos direitos individuais não submetidos à restrição legal expressa em relação àqueloutros, vinculados ao regime de reserva legal simples ou qualificada, revela-se absolutamente inadequada, por não apreender a natureza especial dos direitos individuais. A previsão de expressa restrição legal não contém um juízo de desvalor de determinado direito, traduzindo tão-somente a idéia de que a sua limitação é necessária e evidente para a compatibilização com outros direitos ou valores constitucionalmente relevantes. (MENDES, Gilmar Ferreira. Direito fundamentais. In: Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. 3 ed., Saraiva: São Paulo, 2004. Material da 4ª aula da Disciplina Direitos e Garantias Fundamentais, ministrada no Curso de Especialização TeleVirtual em Direito Constitucional - UNISUL - IDP - REDE LFG. p. 53-54). O constitucionalista português JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO explica: O facto de a constituição constituir um sistema aberto de princípios insinua já que podem existir fenômenos de tensão entre os vários princípios estruturantes ou entre os restantes princípios constitucionais gerais e especiais. Considerar a constituição como uma ordem ou sistema de ordenação totalmente fechado e harmonizante significaria esquecer, desde logo, que ela é, muitas vezes, o resultado de um compromisso entre vários actores sociais, transportadores de idéias, aspirações e interesses substancialmente diferenciados e até antagônicos ou contraditórios. O consenso fundamental quanto a princípios e normas positivo-constitucionalmente plasmados não pode apagar, como é óbvio, o pluralismo e antagonismo de idéias subjacentes ao pacto fundador. A pretensão de validade absoluta de certos princípios com sacrifício de outros originaria a criação de princípios reciprocamente incompatíveis, com a consequente destruição da tendencial unidade axio-lógico-normativa da lei fundamental. Daí o reconhecimento de momentos de tensão ou antagonismo entre os vários princípios e a necessidade, atrás exposta, de aceitar que os princípios não obedecem, em caso de conflito, a uma «lógica do tudo ou nada», antes podem ser objecto de ponderação e concordância prática, consoante o seu «peso» e as circunstâncias do caso. (in: Direito Constitucional. 6 ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1993. p. 190). Para LUIS ROBERTO BARROSO a referência homem e mulher da regra daquele artigo (art. 226, §3°, da CF) não traduz em vedação da extensão às relações homoafetivas e completa: Nem o teor do preceito nem o sistema constitucional como um todo contêm indicação nessa direção. Extrair desse preceito tal conseqüência seria desvirtuar a sua natureza: a de norma de inclusão. De fato, ela foi introduzida na Constituição para superar a discriminação que, historicamente, incidira sobre as relações entre homem e mulher que não decorressem do casamento. Não se deve interpretar uma regra constitucional contrariando os princípios constitucionais e os fins que a justificaram (BARROSO, Luís Roberto. Diferentes, mas iguais: o reconhecimento das relações homoafetivas no Brasil. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/mostra_noticia_articuladas.aspx?cod=40507>, acesso em 11.08.2008) ADAUTO SUANES assenta que o §3º, do art. 226, da Constituição Federal, bem como as leis que o regulamentam, afrontam o espírito e a letra da Constituição de 1988, quando restringem a proteção legal apenas às uniões estáveis de pessoas de sexo diferente, fazendo uma distinção que os princípios supraconstitucionais, albergados no art. 5º, não autorizavam, nem mesmo como exceção (SUANES, Adauto, apud DIAS, Maria Berenice. União homossexual: o preconceito e a justiça. 2. ed. Porto Alegre: Do Advogado, 2001, p. 85). De concluir-se, então, que a norma não proíbe a união homoafetiva, porquanto constituiria afronta ao princípio constitucional da igualdade. Todavia, mesmo na perspectiva da igualdade, deve-se preservar as diferenças. A intenção não está num nivelamento sistemático das relações homoafetivas aos modelos já existentes. Ressalvadas as peculiaridades, almeja-se um sistema paritário que não promova discriminações sob o critério da orientação sexual (MATOS, Ana Carla Harmatiuk. União entre pessoas do mesmo sexo. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 171). Preenchimento da lacuna legislativa e o princípio da analogia Viu-se, por tudo, que não é possível que há norma proibitiva ao reconhecimento das uniões homoafetivas, o que, ao revés, seria inconstitucional, insisto. Ora, havendo omissão normativa, cabe ao intérprete supri-la. Vejamos. 43 O princípio da indeclinabilidade estatuído no art. 126, do Código de Processo Civil, estabelece que: "O juiz não se exime de sentenciar ou despachar lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais, não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito". Na mesma linha, o art. 4º, da Lei de Introdução ao Código Civil: "Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito". A analogia se aplica para os casos em que "não haja regramento expresso na lei sobre determinada matéria, o juiz pode aplicar outra norma legal prevista para a situação jurídica semelhante" (NERY, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 335). Nas uniões homoafetivas os elementos essenciais da união estável podem se encontrar presentes: convivência pública, pacífica e duradoura com o intuito de constituir família. Entretanto, estabelece ANA CARLA HARMATIUK MATOS que "tal estreitamento está relacionado aos aspectos próprios da affectio maritalis sem a presença da formalização" (in União entre pessoas do mesmo sexo. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 88). Enquanto, por injustificável omissão do legislador, "não forem disciplinadas as novas estruturas familiares que florescem independentemente da identificação do sexo do par, ninguém, muito menos os operadores do Direito, pode fechar os olhos a essas realidades" (DIAS, Maria Berenice. União homossexual: o preconceito e a justiça. 2. ed. Porto Alegre: Do Advogado, 2001, p. 19/20). Daí porque se invoca o princípio da analogia para concluir-se que: a) a Constituição Federal abriga expressamente três tipos de família: casamento, união estável com dualidade de sexos e família monoparental; b) a união homoafetiva, como outra espécie de família, está protegida implicitamente pela Constituição; c) a outra espécie de família, apesar da falta de norma específica, é defluência da própria ordem jurídica e equiparável, pela presença de elementos semelhantes, às uniões estáveis, com caráter de entidade familiare. (BARROSO, Luís Roberto. Diferentes, mas iguais: o reconhecimento das relações homoafetivas no Brasil. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/mostra_noticia_articuladas.aspx?cod=40507>, acesso em 11.08.2008). Diante de todo exposto, a melhor forma de integração da lacuna legislativa é atribuir à união homoafetiva a natureza de grupo familiar - equiparável, a meu sentir, à união estável heterossexual - , por analogia. 3.d Panorama jurisprudencial A matéria aqui discutida está longe de ser pacífica. A jurisprudência pátria vem gradativamente mudando para acolher as uniões homoafetivas como entidades familiares dignas de reconhecimento. No Supremo Tribunal Federal, em decisão monocrática, o Ministro CELSO DE MELO, em sede da ADI n. 3300, sinaliza posicionamento no sentido aqui defendido: UNIÃO CIVIL ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO. ALTA RELEVÂNCIA SOCIAL E JURÍDICO-CONSTITUCIONAL DA QUESTÃO PERTINENTE ÀS UNIÕES HOMOAFETIVAS. PRETENDIDA QUALIFICAÇÃO DE TAIS UNIÕES COMO ENTIDADES FAMILIARES. DOUTRINA. ALEGADA INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 1º DA LEI Nº 9.278/96. NORMA LEGAL DERROGADA PELA SUPERVENIÊNCIA DO ART. 1.723 DO NOVO CÓDIGO CIVIL (2002), QUE NÃO FOI OBJETO DE IMPUGNAÇÃO NESTA SEDE DE CONTROLE ABSTRATO. INVIABILIDADE, POR TAL RAZÃO, DA AÇÃO DIRETA. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA, DE OUTRO LADO, DE SE PROCEDER À FISCALIZAÇÃO NORMATIVA ABSTRATA DE NORMAS CONSTITUCIONAIS ORIGINÁRIAS (CF, ART. 226, § 3º, NO CASO). DOUTRINA. JURISPRUDÊNCIA (STF). NECESSIDADE, CONTUDO, DE SE DISCUTIR O TEMA DAS UNIÕES ESTÁVEIS HOMOAFETIVAS, INCLUSIVE PARA EFEITO DE SUA SUBSUNÇÃO AO CONCEITO DE ENTIDADE FAMILIAR: MATÉRIA A SER VEICULADA EM SEDE DE ADPF? Mesmo julgando extinto o processo, ante à ocorrência de óbice formal, assentou o Ministro no corpo da decisão: Não obstante as razões de ordem estritamente formal, que tornam insuscetível de conhecimento a presente ação direta, mas considerando a extrema importância jurídico-social da matéria - cuja apreciação talvez pudesse viabilizar-se em sede de argüição de descumprimento de preceito fundamental -, cumpre registrar, quanto à tese sustentada pelas entidades autoras, que o magistério da doutrina, apoiando-se em valiosa hermenêutica construtiva, utilizando-se da analogia e invocando princípios fundamentais (como os da 44 dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação, da igualdade, do pluralismo, da intimidade, da não-discriminação e da busca da felicidade), tem revelado admirável percepção do alto significado de que se revestem tanto o reconhecimento do direito personalíssimo à orientação sexual, de um lado, quanto a proclamação da legitimidade éticojurídica da união homoafetiva como entidade familiar, de outro, em ordem a permitir que se extraiam, em favor de parceiros homossexuais, relevantes conseqüências no plano do Direito e na esfera das relações sociais. Essa visão do tema, que tem a virtude de superar, neste início de terceiro milênio, incompreensíveis resistências sociais e institucionais fundadas em fórmulas preconceituosas inadmissíveis, vem sendo externada, como anteriormente enfatizado, por eminentes autores, cuja análise de tão significativas questões tem colocado em evidência, com absoluta correção, a necessidade de se atribuir verdadeiro estatuto de cidadania às uniões estáveis homoafetivas (LUIZ EDSON FACHIN, "Direito de Família - Elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro", p. 119/127, item n. 4, 2003, Renovar; LUIZ SALEM VARELLA/IRENE INNWINKL SALEM VARELLA, "Homoerotismo no Direito Brasileiro e Universal - Parceria Civil entre Pessoas do mesmo Sexo", 2000, Agá Juris Editora, ROGER RAUPP RIOS, "A Homossexualidade no Direito", p. 97/128, item n. 4, 2001, Livraria do Advogado Editora ESMAFE/RS; ANA CARLA HARMATIUK MATOS, "União entre Pessoas do mesmo Sexo: aspectos jurídicos e sociais", p. 161/162, Del Rey, 2004; VIVIANE GIRARDI, "Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: a possibilidade jurídica da Adoção por Homossexuais", Livraria do Advogado Editora, 2005; TAÍSA RIBEIRO FERNANDES, "Uniões Homossexuais: efeitos jurídicos", Editora Método, São Paulo; JOSÉ CARLOS TEIXEIRA GIORGIS, "A Natureza Jurídica da Relação Homoerótica", "in" "Revista da AJURIS" nº 88, tomo I, p. 224/252, dez/2002, v.g.) (grifo nosso). Também no STF tramita a ADPF n. 132, de relatoria do Min. CARLOS AYRES BRITTO, argüida pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, que visa a aplicação do regime jurídico das uniões estáveis, previsto no artigo 1.723 do Código Civil, às uniões homoafetivas de funcionários públicos civis daquela unidade da Federação. Referida demanda aguarda julgamento. Instada, a Advocacia-Geral da União (AGU), por seu Advogado-Geral José Antonio Dias Toffoli, emitiu naqueles autos parecer favorável ao reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar. Assentou a AGU que: A compreensão do texto normativo não pode ignorar, com base nos parâmetros constitucionais, os vínculos e as relações de afeto que mantêm os integrantes de uniões homoafetivas. Se é certo que a Carta Maior prevê, de modo expresso, em seu art. 226, o casamento (§ 2º), a união estável (§ 3º) e a família monoparental (§ 4º) como entidades familiares, não se pode afirmar que o conjunto de suas normas permite excluir de similar tratamento jurídico outras relações baseadas no mesmo suporte fático: (i) auto-determinação, (ii) afeto e (iii) pleno exercício da liberdade pela deliberada intenção de convivência íntima e estável, a fim de alcançar objetivos comuns. Já se afirmou em doutrina que "a família existe para a satisfação de seus membros e como materialização de uma situação compartilhada por pessoas que vivem juntas, trocando experiências e partilhando de vida em comum. Há a opção pessoal de cada um de unir e partilhar de sentimentos comuns." Nesses termos, pode-se afirmar que, a despeito de a Carta de 1988 não haver contemplado de modo expresso - o tratamento jurídico das uniões homoafetivas no capítulo que dedica à família, a evolução e a complexidade das relações humanas estão a exigir do sistema jurídico respostas adequadas para a resolução dessas controvérsias, intimamente ligadas ao pleno exercício dos direitos humanos fundamentais. Com efeito, pode-se afirmar que o tratamento diferenciado entre as entidades familiares expressamente previstas na Constituição Federal e as uniões homoafetivas não apresenta justificativa plausível, sob a ótica do princípio da igualdade. É ofensivo ao senso comum - e à força normativa do princípio da isonomia - que, no caso do art. 19 do Decreto-lei nº 220/75, possa ser deferida licença para aquele companheiro ou cônjuge para tratar da doença de seu consorte, sendo impossível ao que mantém união homoafetiva estável - cuja relação se funda nos mesmos pressupostos de liberdade e de afeto que as outras uniões - similar tratamento. (disponível : <http://www.espacovital.com.br/parecer_agu.Pdf>, acesso em: 14.08.2008) (grifo nosso). 45 No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, no REsp. n. 238.715, relator o Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, mesmo não conhecido o recurso, restou registrado: PROCESSO CIVIL E CIVIL. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. SÚMULA Nº 282/STF. UNIÃO HOMOAFETIVA. INSCRIÇÃO DE PARCEIRO EM PLANO DE ASSISTÊNCIA MÉDICA. POSSIBILIDADE. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO-CONFIGURADA. - Se o dispositivo legal supostamente violado não foi discutido na formação do acórdão, não se conhece do Recurso Especial, à míngua de prequestionamento. - A relação homoafetiva gera direitos e, analogicamente à união estável, permite a inclusão do companheiro dependente em plano de assistência médica. - O homossexual não é cidadão de segunda categoria. A opção ou condição sexual não diminui direitos e, muito menos, a dignidade da pessoa humana. - Para configuração da divergência jurisprudencial é necessário confronto analítico, para evidenciar semelhança e simetria entre os arestos confrontados. Simples transcrição de ementas não basta. (STJ, Resp 238.715, Terceira Turma; Rel. Min. HUMBERTO GOMES DE BARROS, j. em 07.03.2006) (grifo nosso). Do corpo do julgado colhe-se que: A questão a ser resolvida resume-se em saber se os integrantes de relação homossexual estável tem direito à inclusão em plano de saúde de um dos parceiros. É grande a celeuma em torno da regulamentação da relação homoafetiva (neologismo cunhado com brilhantismo pela e. Desembargadora Maria Berenice Dias do TJRS). Nada em nosso ordenamento jurídico disciplina os direitos oriundos dessa relação tão corriqueira e notória nos dias de hoje. A realidade e até a ficção (novelas, filmes, etc) nos mostram, todos os dias, a evidência desse fato social. Há projetos de lei, que não andam, emperrados em arraigadas tradições culturais. A construção pretoriana, aos poucos, supre o vazio legal: após longas batalhas, os tribunais, aos poucos proclamam os efeitos práticos da relação homoafetiva. Apesar de tímido, já se percebe algum avanço no reconhecimento dos direitos advindos da relação homossexual. [...] Como disse acima, nada disciplina os direitos oriundos da relação homoafetiva. Há, contudo, uma situação de fato a reclamar tratamento jurídico. A teor do Art. 4º da LICC, em sendo omissa a lei, o juiz deve exercer a analogia. O relacionamento regular homoafetivo, embora não configurando união estável, é análogo a esse instituto. Com efeito: duas pessoas com relacionamento estável, duradouro e afetivo, sendo homem e mulher formam união estável reconhecida pelo Direito. Entre pessoas do mesmo sexo, a relação homoafetiva é extremamente semelhante à união estável. Trago esse fundamento pois, ainda que não tido por ofendido, ele está implícito nas razões do acórdão recorrido. Além disso, o STJ pode se utilizar de fundamento legal diverso daquele apresentado pelas partes. Não estamos estritamente jungidos às alegações feitas no recurso ou nas contra-razões (Cf. AgRg no Resp 174.856/NANCY e Edcl no AgRg no AG 256.536/PÁDUA. No STF, veja-se o RE 298.694-1/PERTENCE- Plenário). Vinculamo-nos, apenas, aos fatos lá definidos (cf. AgRg no AG 2.799/CARLOS VELLOSO, dentre outros). A interpretação dos dispositivos legais é feita dentro de um contexto. Finalmente, não tenho dúvidas que a relação homoafetiva gera direitos e, analogicamente à união estável, permite a inclusão do companheiro como dependente em plano de assistência médica. O homossexual não é cidadão de segunda categoria. A opção ou condição sexual não diminui direitos e, muito menos, a dignidade da pessoa humana. (corpo do acórdão supra) (grifo nosso). Na Quarta Turma da mencionada Corte, até esta data, encontra-se em andamento o julgamento do Resp. n. 820475, tendo como relator o Min. ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO, com resultado parcial. O relator, Min. PÁDUA RIBEIRO, acompanhado pelo Min. MASSAMI UYEDA, votou favoravelmente ao reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar. O julgamento de desempate, a cargo do voto do Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, está previsto para esta data, por coincidência. O sempre citado precedente do Tribunal Superior Eleitoral também deve ser registrado. Naquela Corte, em sede de Recurso Especial Eleitoral n. 24.564, de relatoria do Min. 46 GILMAR MENDES, restou reconhecida a inelegibilidade de companheira que vive em relação homoafetiva estável, nos termos do art. 14, § 7°, da Constituição Federal: REGISTRO DE CANDIDATO. CANDIDATA AO CARGO DE PREFEITO. RELAÇÃO ESTÁVEL HOMOSSEXUAL COM A PREFEITA REELEITA DO MUNICÍPIO. INELEGIBILIDADE. ART. 14, § 7°, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Os sujeitos de uma relação estável homossexual, à semelhança do que ocorre com os de relação estável, de concubinato e de casamento, submetem-se à regra de inelegibilidade prevista no art. 14, § 7°, da Constituição Federal. Recurso a que se dá provimento. (TSE, Resp Eleitoral n. 24.564, rel. Min. GILMAR MENDES, j. em 01.10.2004). Nos Tribunais Pátrios, é da Corte do Rio Grande do Sul o pioneirismo no reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar, e a competência das varas de família para dirimir os conflitos daí advindos: UNIAO HOMOSSEXUAL. RECONHECIMENTO. PARTILHA DO PATRIMÔNIO. MEAÇÃO PARADIGMA. Não se permite mais o farisaísmo de desconhecer a existência de uniões entre pessoas do mesmo sexo e a produção de efeitos jurídicos derivados dessas relações homoafetivas. Embora permeadas de preconceitos, são realidades que o Judiciário não pode ignorar, mesmo em sua natural atividade retardatária. nelas remanescem conseqüências semelhantes as que vigoram nas relações de afeto, buscando-se sempre a aplicação da analogia e dos princípios gerais do direito, relevado sempre os princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade. Desta forma, o patrimônio havido na constância do relacionamento deve ser partilhado como na união estável, paradigma supletivo onde se debruça a melhor hermenêutica. apelação provida, em parte, por maioria, para assegurar a divisão do acervo entre os parceiros. (Apelação Cível Nº 70001388982, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, rel. JOSÉ CARLOS TEIXEIRA GIORGIS, j. em 14.03.2001). Em decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, aplicando o princípio da analogia, reconheceu-se a relação homoafetiva da ex-esposa do lá apelante como causa de exoneração de alimentos, nos termos do art. 1.708, do Código Civil: ALIMENTOS. RELACIONAMENTO HOMOSSEXUAL DA MULHER. COMPROVAÇÃO. PEDIDO DE EXONERAÇÃO. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. PRINCÍPIO DA ANALOGIA. Apelação Cível. Relação homoafetiva entre o ex-cônjuge mulher do apelado com companheira, comprovada nesta lide. Pedido do ex-cônjuge marido de sua exoneração de prestação alimentícia à ex-mulher por este motivo. Concessão pelo Juízo monocrático da exoneração obrigacional familiar requerida em tela, com fundamento no princípio da analogia, em face do disposto no artigo 1.708 do Código Civil Brasileiro ("Com o casamento, a união estável ou o concubinato do credor, cessa o dever de prestar alimentos"). conhecimento e desprovimento do apelo. (TJRJ, Apelação Cível n. 2006.001.24129, rel. Des. CELIO GERALDO M. RIBEIRO, j. em 15.08.2006) (grifo nosso). No âmbito deste Tribunal, o reconhecimento da união homoafetiva se restringe a fins previdenciários. Eis os pertinentes precedentes: PREVIDENCIÁRIO - PENSÃO POR MORTE - DEPENDENTE - COMPANHEIRO DE SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL - UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA - EXISTÊNCIA DE PROVA PRÉ-CONSTITUÍDA - FUMUS BONI IURIS DECORRENTE DE INTERPRETAÇÃO SISTÊMICA DO DIREITO - PERICULUM IN MORA QUE SE ORIGINA DO CARÁTER ALIMENTAR DA VERBA O fato de a legislação previdenciária estadual não regular expressamente os benefícios devidos nos casos em que a dependência se originar de união estável homoafetiva não implica óbice à concessão liminar de pensão por morte ao companheiro de servidor público falecido. No caso, o fumus boni iuris decorre da interpretação sistêmica do direito e o periculum in mora do caráter alimentar da verba. (Agravo de Instrumento n. 2004.021459-6, da Capital, Relator: Des. LUIZ CÉZAR MEDEIROS, j. em 04.11.2004); E: APELAÇÃO CÍVEL EM MANDADO DE SEGURANÇA - REEXAME NECESSÁRIO - UNIÃO HOMOAFETIVA - RECONHECIMENTO PARA FINS PREVIDENCIÁRIOS - POSSIBILIDADE 47 - PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS - INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA - PRECEDENTES APELO E REEXAME NECESSÁRIO INACOLHIDOS. Em face de lacuna legislativa, cabe ao Judiciário oferecer proteção jurídica às situações oriundas de união homoafetiva, através de uma interpretação sistemática, com fundamento nos princípios da dignidade humana, igualdade e repudio a discriminação. '"Como direito e garantia fundamental, dispõe a Constituição Federal que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. É o 'caput' do art. 5°. '"Conforme o ensinamento mais básico de Direito Constitucional, tais regras, por retratarem princípios, direitos e garantias fundamentais, se sobrepõem a quaisquer outras, inclusive aquela esculpida no art. 226 § 3°, que prevê o reconhecimento da união estável entre homem e a mulher..." (Homoafetividade o que diz a Justiça. Dias, Maria Berenice. Porto Alegre.2003. p. 109) (Apelação Cível em Mandado de Segurança n. 2007.021488-2, da Capital, Relator: Des. FRANCISCO OLIVEIRA FILHO, j. em 07.08.2007) (grifo nosso). Não há se invocar, venia, o argumento segundo o qual a questão resume-se à seara patrimonial, não trazendo, essa compreensão, prejuízo ao autor. É que se as demandas nas quais se discute patrimônio, nas uniões heterossexuais (casamento e união estável), são processadas nas unidades de família, razão por que, entender-se o contrário em relação à homoafetividade, ensejaria discriminação fundada na inclusão sexual, o que não é tolerável. É da jurisprudência: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. AÇÃO DECLARATÓRIA DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO HOMOAFETIVA. UNIÃO FORMADA POR CASAIS DO MESMO SEXO. COMPETÊNCIA DA VARA DE FAMÍLIA. CONSTITUIÇÃO PROÍBE QUALQUER FORMA DE DISCRIMINAÇÃO. CONFLITO PROCEDENTE. É competente o Juízo de Direito da 1ª Vara de Família da Capital para julgar ação declaratória de união formada por casais do mesmo sexo, por ser incabível em nossa Carta Magna qualquer forma de discriminação. (TJ-MS; CC 2007.030521-7/0000-00; Campo Grande; Terceira Turma Cível; Rel. Des. Paulo Alfeu Puccinelli; DJEMS 28/02/2008; Pág. 31); E: APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO ESTÁVEL. RELAÇÃO ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO. ALEGAÇÃO DE INCOMPETÊNCIA DA VARA DE FAMÍLIA E DE IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. INOCORRÊNCIA DE NULIDADE DA SENTENÇA. PRECEDENTES. 1. Não ocorre carência de fundamentação na decisão que deixa de se referir expressamente ao texto de lei que subsidiou a conclusão esposada pelo julgador quanto à decisão do caso. 2. Está firmado em vasta jurisprudência o entendimento acerca da competência das Varas de Família para processar as ações em que se discutem os efeitos jurídicos das uniões formadas por pessoas do mesmo sexo. 3. Não há falar em impossibilidade jurídica do pedido, pois a Constituição Federal assegura a todos os cidadãos a igualdade de direitos e o sistema jurídico encaminha o julgador ao uso da analogia e dos princípios gerais para decidir situações fáticas que se formam pela transformação dos costumes sociais. 4. Não obstante a nomenclatura adotada para a ação, é incontroverso que o autor relatou a existência de uma vida familiar com o companheiro homossexual. 5. No entanto, embora comprovada a relação afetiva entretida pelo par, não há prova suficiente da constituição de uma entidade familiar, nos moldes constitucionalmente tutelados. Por igual, não há falar em sociedade de fato, por não demonstrada contribuição à formação do patrimônio, nos moldes da Súmula 380 do STF. AFASTADAS AS PRELIMINARES, NEGARAM PROVIMENTO, À UNANIMIDADE. (TJRS, Apelação Cível Nº 70016239949, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS, Julgado em 20.12.2006) (grifo nosso). Por tudo, com todas as vênias possíveis em face de incursões que transbordam a competência, tenho que a alegada relação, centrada e movida por afeto, há de ser dirimida perante o juízo de família, mesmo que, ao final, eventualmente, se conclua que a prova impede o reconhecimento da relação como entidade familiar. Conclusão Em suma, voto pelo acolhimento do presente conflito para declarar competente para processar o pleito o Juízo suscitado, qual seja, a vara da família da comarca de Lages. DECISÃO Ante o exposto, por maioria, a Câmara decide acolher o conflito para declarar competente o Juízo suscitado, qual seja, a vara da família da comarca de Lages, nos termos supra. 48 O julgamento, realizado nesta data, foi presidido pelo Exmo. Sr. Des. Marcus Tulio Sartorato, com voto vencido, dele participando a Exma. Sra. Desa. Maria do Rocio Luz Santa Rita .29 Com base nas transcrições supra que, nada obstante deveras delongadas, cumprem ser mencionadas em nosso projeto, no sentido de caracterizar com propriedade ainda mais recrudescida a necessidade de interpretação das associações homoafetivas com base no princípio da isonomia e da dignidade da pessoa humana, posto que princípios constitucionais e, utilizando-se de interpretação extensiva e analogia, estendem seus efeitos a essa modalidade de constituição familiar. Enfim, pode-se mencionar que a sociedade mudou muito, e concomitantemente à alteração social, a aplicação do Direito ao caso concreto também mudou em uma perspectiva de adaptabilidade às novas realidades. Logicamente está-se muito distante de um status plenamente perfeito, mas muito mais próximo do que estaria, caso essas manifestações esparsas não estivessem sendo realizadas nos tribunais e doutrinadores não estivessem construindo argumentos baseados em contraprestação à discriminação. 29 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Acolhimento de conflito. Conflito de competência nº 2008.030289-8. Relatora: Desembargador: Henry Petry Junior. 20 out. 2008. Sítio do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Florianópolis. 49 CONCLUSÃO Pelas razões expostas no presente trabalho, pode-se assumir que não há outra forma de compreender as organizações familiares atualmente, que não através da perspectiva eudemonista. Relações civis entre pessoas do mesmo sexo, tão iguais quanto relações heteroafetivas, baseiam-se no mesmo princípio destas, qual seja: afeto, convivência mútua, felicidade, amor e compreensão. Enfim, muitos são os valores que são base para a justificativa do reconhecimento público das uniões homoafetivas. E aqui, não fala-se somente nas uniões, afinal, é deveras relevante tratarmos dos princípios que regem referida cumplicidade. Nesta quadra, vale ressaltar o entendimento constitucional dado à questão. Ou seja, a partir do momento que se tem a interpretação extensiva e a analogia aplicadas ao caso em que inexiste qualquer previsão legal, estar-se-á diante de um tratamento isonômico e diretamente proporcional à dignidade da pessoa humana. Num primeiro momento tínhamos a figura do pai como sendo o centro da família, por conta de razões econômicas, hierárquicas etc. Não obstante, referido entendimento passa a ser alterado com o processo de “constitucionalização” do Direito de Família. Por derradeiro, é de nosso entendimento que tudo em sociedade que volta-se a regular regras e comportamentos, deve estar em constante atualização, a fim de que a realidade encarada como um processo eterno de evolução, sempre esteja protegida pelo Direito. E que, mesmo diante da inexistência de normas reguladoras, preveja meios de aplicar a lei ao caso concreto, sem deixar de fornecer uma devida resposta jurídica à questão apresentada. Nos dias de hoje, irresponsáveis são as hermenêuticas que ainda voltam-se a preceitos patriarcais de família. Sabemos que, direcionando nossa defesa para o prisma eudemonista de família, estaremos fazendo com que muitas pessoas que vivem em um limiar incerto de sentimento, passem a incorporar sentimentos puros como amor e felicidade, fazendo com que suas vidas sejam conduzidas de maneira menos penosa. Enfim, a sociedade atual, com suas mazelas e infortúnios, já representa um “coliseu” de homens gladiadores havendo a preocupação atenta do Direito, imaginemos como seria diante da indiferença. 50 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 01. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Negação de apelo. Apelação Cível nº 70009550070 / 2004. Relatora: Desembargadora: Maria Berenice Dias. Revisor: Desembargador: Luiz Felipe Brasil Santos. 17 nov. 2004. Sítio do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. 02. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Negação de apelo. Apelação Cível nº 70012836755 / 2005. Relatora: Desembargadora: Maria Berenice Dias. 21 dez. 2005. Sítio do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. 03. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Acolhimento de conflito. Conflito de competência nº 2008.030289-8. Relatora: Desembargador: Henry Petry Junior. 20 out. 2008. Sítio do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Florianópolis. 04. CACHAPUZ, Rozane da Rosa. Da família patriarcal à família contemporânea. Disponívelem:<http://www.cesumar.br/pesquisa/periodicos/index.php/revjuridica/artic le/viewFile/364/428> Acesso em: 18 abr. 2009. 05. FACHIN, Luiz Edson. Direito de família: Elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. 06. FREIRE, Marta Regina Pardo Campos. Poder familiar. São Paulo, 2007. Dissertação (Mestrado em Direito Civil) – Direito das Relações Sociais. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 07. GRIGOLETO, Juliane Mayer. Aspectos conjunturais da adoção de crianças por homossexuais. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6502> Acesso em: 22 abr. 2009. 08. MORAES, Maria Celina Bodin de. A união entre pessoas do mesmo sexo: uma análise sob a perspectiva civil-constitucional. Vol. 1. p. 89-112. apud BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Negação de apelo. Apelação Cível nº 70009550070 / 2004. Relatora: Desembargadora: Maria Berenice Dias. Revisor: Desembargador: Luiz Felipe Brasil Santos. 17 nov. 2004. Sítio do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. 09. RABONI, André. Explicando o modelo de família patriarcal. Disponível em: <http://recantodasletras.uol.com.br/artigos/1160338> Acesso em: 19 abr. 2009. 10. VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Homoafetividade e família. Casamento civil, união estável e adoção por casais homoafetivos à luz da isonomia e da dignidade humana. Disponível em: < http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=434> Acesso em: 24 abr. 2009.