— LEGEND OF RAYTHON —

Transcrição

— LEGEND OF RAYTHON —
— LEGEND OF RAYTHON —
A LENDA DE RAYTHON
DESCRITA POR PHYREON THROWER
ROMANCEADA POR KAMILA ZÖLDYEK
2
PARA JÉSSICA,
a eterna primeira leitora de todos os meus manuscritos.
3
Prefácio
(I) DA ORIGEM DO LIVRO
NÃO É A PRIMEIRA
VEZ que eu conto esta história. História, não
estória. Estes fatos aconteceram, talvez não como narro agora, ou
como narrei antes, mas aconteceram.
Phyreon contou tudo isso a mim, sem os detalhes mais dramáticos
ou sórdidos. Contou o que eu deveria saber, para formar este livro.
Como ele apareceu para contar isso tudo não vem ao caso agora.
O que importa é que aqui eu narro os fatos que aconteceram entre o
fim da Segunda Era e meados da Quarta Era, quando houve a
Segunda Queda de Thalion.
Nos Cinco Impérios, estes fatos foram espalhados por bardos. Em
geral, era uma canção longa e dramática, cheia de eventos sem sentido,
mas que exaltava os fatos ocorridos naquele período. Cada bardo
cantava algo diferente, é claro, mas todos eles batizavam a canção com
o mesmo nome.
Legend of Raython.
Resolvi manter o nome original dela, e como Phyreon não sabia de
cor versão alguma, eu decidi criar uma canção, com minhas palavras e
talvez algumas expressões contemporâneas, que não existiam naquelas
eras, para manter tudo simples.
Uma canção sem versos.
Uma canção que eu saberia de cor.
Uma canção que eu irei compartilhar com o máximo de pessoas
que conseguir. Porque apesar de trágica, é uma bela canção.
[-4-]
Prefácio
(II) DA PRONÚNCIA DOS NOMES
UMA DAS MINHAS MAIORES PREOCUPAÇÕES nesta trilogia foram os
nomes.
Nos Cinco Impérios, os humanos falavam a língua equivalente ao
inglês britânico, porém mais bárbara e afetada pelas línguas élfica (em
Raython) e a dos Orcs (em Ethernia), que batizaram a maioria dos rios
e demais acidentes geográficos.
Assim, a pronúncia da maioria dos nomes é distorcida.
No élfico, as palavras com th são pronunciadas apenas com som de
t, deixando o h mudo. Há outras particularidades, várias delas, mas
Phyreon não teve paciência para me explicar bem.
Aqui descrevo a pronúncia dos nomes verdadeiros dos locais.
Nas versões anteriores, alguns nomes não eram estes. Phyreon
passou um longo tempo longe de mim e por isso eu fiquei sem minha
fonte de informações. Assim, criei nomes genéricos, que não usarei
mais nesta versão da Lenda.
– Asuka – ázuca
– Barthis – bartis
– Draak – draac
– Elektra – eléctra
– Ethernia – etérnia
– gemarkeerd – guemarquid
– Harris – reris
– Lothus – lotus
– Phyreon – fái:reon
– Raikou – rái:cou
– Raython – raiton
– Sellphir – selfir
– Thalion – tálion
– Thrower – tróuer
– Vihrëa – virêa
– Won – uón
– Youko – iôko
– Yûk – íuk
[-5-]
LIVRO I
ETHERNIA
Prólogo
DA FUGA
ANO 583 DA SEGUNDA ERA
OUTRO DIA COMUM EM RAYTHON. Chuva, raios, e eu corria atrás da
princesa.
Não sei o que ela tem na cabeça, e cérebro não é. Os deuses são
justos, sabe. Uma menina tão curvilínea não pode ter um cérebro
afiado, é o que digo: ou é bonita ou é inteligente…
E como ela corria. Claro que minha armadura não ajudava muito,
mas… sinceramente, se eu quisesse mesmo pegá-la pra levar de volta
eu já teria feito. Vamos brincar um pouco, essas perseguições são
sempre legais, mesmo com ela matando meus cavaleiros. Trouxe cinco,
agora tenho… dois. Pensando bem, acho que… vou deixá-la derrubar
os outros dois e então ter uma conversinha particular com ela antes de
levar para o pai.
Dei um sorriso discreto. Seria interessante. Eu vou me casar com ela,
mais cedo ou mais tarde, então acho que não tem problema, ou tem?
Meus passos quebravam galhos, grossos ou finos. Eu podia ver os
cabelos sedosos longos e incrivelmente brancos de Elektra – esse é o
nome dela – balançando na minha frente, prendendo-se aos galhos.
Aliás, meu nome é Won. Jonathan Won. Mas de que isso importa?
Essa saia dela é muito curta.
Água de chuva entrava pela minha cota de malha, mas a blusa
branca dela estava completamente seca. Seria muito mais legal se ela
não fosse uma maga e não soubesse uma magia que repele as gotas de
chuva, porque vocês sabem o que acontece quando se molha uma
blusa branca, não é?
Odeio magos. Todos eles. Não há muitos, mas odeio cada um dos
que nasceram, e cada um dos que nascerão. Mas isso definitivamente não
é da sua conta.
Abri um largo sorriso ao ver que ela achou no fim de sua trilha
uma bela falésia. Que ela não escalaria nunca não só pelo salto de sua
[-9-]
bota, mas pelo monte ser bem alto, e ela não ter poder pra destruir
aquilo. Então agora seria esperar a mocinha assassinar meus colegas
inúteis aqui e eu dar um jeito nela.
Elektra se virou, mas seu rosto não demonstrava medo. Pelo
contrário, ela parecia estar se divertindo tanto quanto eu. Nas mãos
ela trazia um cajado branco. Sua pele era pálida, como todos os que
nascem aqui. Mas ela tinha características marcantes, como aquele
cabelo branco e seus olhos. Eram cinzentos, pareciam chumbo. E
fortes. E me dariam medo se eu não a conhecesse desde que era uma
garotinha.
— Princesa, parece que você está bem encurralada. Vamos pra
casa calmamente conversar com papai e resolver tudo, entendeu? – eu
disse, autoritário, mas sarcástico.
— Você é só um cachorrinho do meu pai, Won, um verme sem
vontade própria. – ela cuspiu as palavras. Boca dura, arrogante,
estúpida, metida. Sempre foi assim.
Suspirei.
— Anda, não me faz usar a força. – soei mais firme.
Agora seria a hora que ela procuraria me distrair acertando um dos
cavaleiros, o da direita – sempre é o da direita – e sairia correndo, de
novo. Então eu mandaria o outro homem olhar o que fora atingido e
eu conseguiria meu objetivo: ficar sozinho com a princesa.
Mas ela não fez nada disso.
Ela riu.
Riu alto, claramente se deliciando com aquilo.
— Dessa vez eu não entendi, princesa.
— Você não vai me levar pra casa dessa vez, verme.
Revirei os olhos. Era sempre a mesma conversa. Ela não vai matar
os cavaleiros? Que merda.
Corri meus olhos pela blusa dela. Estava visivelmente apertada e
com três botões abertos. No lado direito, o brasão de Raython. Três
botões, pelos deuses. Como é que Phyreon não vê uma coisa dessas?
Bem simples. O imperador é do tipo de pai que não liga muito para os
filhos. Ainda bem. Pra mim, digo. Aquele decote estava chamando
pelo meu nome.
A voz dela me fez olhar seu rosto jovem novamente. Sei, jovem
demais. Deveria ser crime meninas de quinze anos serem tão
curvilíneas.
[-10-]
— Acha que esse monte de pedras vai me impedir? Acorde, Won.
Eu sou uma maga. É óbvio que eu sei uma magia pra sair daqui.
— O quê, a Sellphir? Você não sabe nem a teoria dela. – disse,
desdenhoso. Acho que eu sei mais a teoria dessa magia que Elektra.
— Veremos então. Vejo você no inferno, Won.
— Vou até lá te buscar. – respondi, incrédulo de que ela sairia dali .
Claro que não acertaria a magia, ela é horrível nessas coisas élficas.
— Sellphir. – ela disse.
E contra todas minhas expectativas ela sumiu no ar, deixando uma
fumacinha cinza onde estava.
Meu dia comum acabava de ir embora.
[-11-]
P
A R T E
I
Ainda é cedo para acreditar.
Bleach, volume 36. Turn Back the Pendulum, de Kubo Tite
I
INESPERADO
NO
ALTO DE UMA TORRE DE VIGIA,
o estômago do elfo Barthis
Wander revirou.
Ele nunca fez nada parecido com aquilo, desobedecer uma ordem
direta de seu tio – e superior supremo.
Ainda se lembrava do dia anterior.
Ele pediu gentilmente ao tio para que pudesse ir à Ethernia junto
com seu batalhão, coisa que foi sumariamente negada.
— Você não vai, Barthis, é uma ordem. Acredito que você saiba o
que pode acontecer se você descumprir uma ordem minha. – Youko
Hawking disse, calmamente.
— Sim, tio, eu sei – respondeu, com voz triste.
— Olha, Barthis… eu sei que você deveria ir para as batalhas, e
saber como são as coisas. E você vai, com certeza. Mas é que o
batalhão da Arkane vai para o front e eu não quero você no front. –
Youko disse, pondo as mãos nos ombros dele.
— Entendo sim, tio. Pode deixar, eu não irei – falou, saindo da
sala.
Sentia-se péssimo. Foi escolhido como sucessor de Youko na
Ordem dos Arqueiros de Raython porque seu tio não tinha filhos
varões. Mas mesmo assim, sua filha do meio era uma general, e tinha
mais experiência em guerra que ele.
Era revoltante, mas engolia tudo calado.
Fechou a porta de madeira do escritório de Youko no castelo de
Raython, andou um pouco, cumprimentou a Senhora Elektra, que
andava com sua cara amarrada e um vestido curtos padrões e virou
uma esquina, onde foi puxado pela manga da blusa para dentro de um
armário de vassouras.
— Shhhhh. – Barthis reconheceu aquele sussurro áspero, era
Arkane. –Ouvi sua conversa com meu pai.
[-15-]
O quarto estava escuro e frio. Mas ele sentiu a respiração quente e
com cheiro de frutas da elfa. Estavam embaraçosamente perto, a
ponto de Barthis sentir os seios dela roçarem em seu peito.
— Hã? – Barthis sentiu suas bochechas queimarem e tentou dar
um passo pra trás, mas a parede estava lá, impedindo. Além disso,
Arkane o segurava com força.
— É, seu estúpido. Eu pretendo te ajudar com isso. Com certeza o
meu pai vai pedir pra eu te vigiar. – ela riu. – Ele é tão ingênuo! Então.
Você enfia no meio do meu batalhão. Amarra esse seu cabelinho
louro num rabo-de-cavalo e se mistura. Somos todos iguais, não é?
— Arkane, acho melhor não mexer com isso. Seu pai vai me
esfolar vivo se…
— MAS QUE MERDA! Só eu tenho coragem nessa maldita família?!
Só eu tenho espírito aventureiro, é? Você vai, Barthis Wander. Eu
estou mandando, como sua generala. – Ela se aproximou mais ainda.
– E não ouse me desobedecer. Você sabe que eu sou vinte e cinco
vezes pior que meu pai – sussurrou.
— Certo – Barthis engoliu seco.
— Espero você lá. – ela riu, e Barthis sentiu os lábios dela de
encontro aos seus, e logo depois a língua, ávida. Ela era sua prima,
mas dentre elfos isso não era nenhum pecado.
O problema era que Barthis nunca foi interessado por ela. Arkane o
soltou logo em seguida e abriu a porta do quarto de vassouras, saindo.
Barthis viu o enorme rabo-de-cavalo dourado dela antes que ela
fechasse a porta e o deixasse no escuro de novo.
Barthis suspirou, chiando na parede até o chão.
Não tinha escolha alguma.
Foi como ela disse, ninguém o reconheceu só por trocar a roupa e
amarrar o longo cabelo louro. Arkane o inseriu em um batalhão
aleatório e eles viajaram com a magia de transporte Sellphir sem
problemas.
E agora estava ali. Forte Zephirus, a única fronteira não natural
entre Raython e seu império inimigo, Ethernia.
O que mais surpreendia Barthis era o céu. Ali era azul, com nuvens
branquinhas salpicadas aqui e lá. Já fora ali antes, e o céu era o que
mais gostava. Contemplava-o quando ouviu o barulho familiar das
botas de salto de Arkane.
[-16-]
— Wander, até que enfim te achei, maldito! – ela estava de bom
humor. Geralmente ―maldito‖ era elogio, vindo dela. Ele se virou para
olhá-la.
— O que houve, Generala?
— Ih, não me chame assim. Somos primos, lembra? Então, já sabe
das novas? – ela rebolou até perto dele.
Barthis engoliu seco. Não havia mais ninguém ali. Ele temia os
impulsos de sua generala.
— A princesinha fugitiva sumiu de novo. – Ela apoiou os braços
no parapeito. Barthis pôs-se ao lado dela para não ter uma visão
panorâmica de seu traseiro.
Arkane amava roupas curtas.
— Senhora Elektra? Não parece novidade…
— Tem mais, garoto. A vadia foi pra lá – ela ergueu o queixo,
apontando o sul. – Ethernia.
As sobrancelhas de Barthis arquearam.
— Sério?
— Aham. Meu pai a sentiu lá. Como eu não sei, mas sentiu. E ele
disse que nós não vamos nos envolver nisso. Pela primeira vez Senhor
Youko fez algo que presta.
Barthis nunca entendeu o ódio dela por humanos.
— Mas temos que buscá-la… Raython não pode ficar sem
herdeiros.
— Dane-se ela. Olha bem a minha cara de preocupação. Aquela lá
precisa apanhar um pouco pra aprender. O velho Phyreon mandou
seu capacho Won pra pegá-la. Eu acho que Won deveria dar uma
liçãozinha nela pra deixar de ser metida. – Arkane bufou.
— Won está sozinho?
— Não. Meu pai cedeu uma dúzia de homens para escoltá-lo. Só
escolta, eles não vão se envolver.
— Há como… eu ir?
Arkane o encarou por um minuto. Os olhos verdes dela eram
afilados e perigosos. Tinham um brilho diferente, cruel. Ela sorriu,
maliciosa.
— Parece que temos um otário corajoso aqui – ela desdenhou.
— Eu só acho que deveria ir, mais nada – ele mentiu.
Barthis sentia que precisava ir. Era alguma intuição, algo difícil de
explicar.
[-17-]
— Desça rápido então. Diga que eu mandei, eles não vão
contestar. Estão no pátio leste, juntando as tralhas. Volte vivo, garoto.
Não dormi com você ainda.
Arkane avançou para fazer alguma coisa imprevisível, como beijálo, mas ele foi mais rápido e se virou.
— Vou descer então. Até mais.
Ele desceu a escada espiral a dois degraus por vez.
E voltou a pensar em como faria sua prima largar de seu pé.
●
Raikou Mizuhara acordou com as comuns dores nos ombros e
pescoço. Claridade penetrava pela janela que era coberta apenas por
um lençol fino e branco.
Vestiu-se com as roupas pesadas e escuras que usava quando ia
trabalhar. Raikou era o escrivão de Lorde Lothus, o imperador. Não
apenas escrivão, mas também cuidava das cartas, a maioria dos
recados e ainda ouvia os ataques de loucura do monarca nos
intervalos.
Só os deuses sabiam o quanto ele odiava trabalhar naquele lugar,
mas Raikou concordava que o casaco negro e pesado era confortável,
flexível e que gostava dele. Apesar de todo o calor do verão de
Ethernia.
Penteou os longos cabelos negros. Atou-os. Encarou o reflexo na
pequena bacia de água. Ignorou os olhos azuis como o céu lá fora e
notou que a penugem negra acima dos lábios crescera. Ignorou aquilo
também e saiu do quarto.
Estava feliz, era seu tão estimado dia de folga.
Deu quatro passos e chegou até a cozinha da casa pequena.
Vislumbrou sua mãe lavando louças em bacias cheias de água. A
enorme trança negra chegava aos quadris dela, e balançava ao mínimo
movimento.
— Bom dia. – Ele pegou uma xícara e encheu-a de leite.
— Bom dia, Raikou. – Ela o olhou brevemente. – Vai sair?
— Pretendo. Vai precisar de mim?
— Só depois. Volte antes do almoço.
O rosto dela era fino e sereno. Os olhos castanhos eram doces.
Anne, o nome dela era Anne.
[-18-]
Ela olhou o filho por algum tempo e disse:
— A sua navalha está cega?
Raikou franziu o cenho.
— Não.
— Então use-a. Enquanto não tiver barba suficiente pra cobrir o
rosto todo, não deixe crescer. Você vai parecer um frango com as
penas nascendo.
Raikou quase engasgou quando riu.
— Certo então, mãe. – Ele terminou o desjejum e voltou ao
quarto.
Saiu da casa meia hora depois, sem pelo algum no rosto. Olhou os
dois lados da rua antes de sair. Sempre verificava isso.
Pessoas circulavam, com roupas leves. A maioria era morena de
sol, com cabelos e olhos castanhos ou pretos, cacheados ou
ondulados. Isso fazia Raikou e seus incomuns olhos azuis se sentir
diferente.
Andou pela estrada de pedras, rumo ao norte. Aquele bairro não
era o pior da capital, mas também não era nobre. Ali só moravam
empregados do castelo, e as famílias dos cavaleiros. Naquela rua em
especial, morava alguns generais, tanto de cavalaria quanto arquearia.
A casa de Raikou pertencera a um ex-Primeiro General, Wilhelm
Mizuhara. Raikou herdou-a ainda no ventre da mãe, quando o homem
morreu em combate.
A casa ao lado pertencia a um Líder Arqueiro. Raikou observou-a.
Uma janela estava aberta, mas ele não notou movimento. Ainda bem,
pensou.
Andou ainda por cinco metros depois da casa quando ouviu o
grito, que gelou suas entranhas.
— RAAAIKOOOU! – a voz dela não era estridente, mas irritava.
Ele parou e suspirou.
Marine. A maldita estava espiando pela janela aberta e Raikou não
viu.
Ela correu até ele e o abraçou. Ela era forte demais para uma moça
de sua idade, quinze anos. O motivo era claro. Treinamento intenso
de arco e flecha desde criança.
Isso deixou o corpo dela bem torneado e malhado. Sua pele era
levemente bronzeada, e os cabelos cacheados eram muito cheios.
[-19-]
Parecia a juba de um leão, de tom castanho, como os olhos. Ela tinha
seios fartos também, e abusava de decotes.
Raikou não podia negar que ela era linda, mas…
— Você passou pela minha casa e nem me chamou, né? Que
espécie de namorado é você?
… ela entendia tudo do jeito errado.
— Até aonde eu sei, Marine… eu não sou seu namorado. Você ter
me roubado um ou dois beijos não significa nada.
— Detalhes, detalhes… – ela balançou os cabelos. – Onde você
vai?
— Não sei. Ler um pouco. Longe dessa barulheira. – Raikou se
lembrou que sua mentira seria mais convincente se ele estivesse com
algum livro na mão.
— Seeei… – ela o fitou. – Eu te chamaria pra ir ler lá em casa, já
que meu pai saiu… mas eu preciso fazer meu serviço de mulher antes.
Chame a sua mãe pra almoçar lá em casa hoje, hã?
— NÃO! Eh, quer dizer… hoje não vai dar – ele procurou outra
boa desculpa. – Nós vamos visitar… o cemitério, sabe – ele
acrescentou com tom solene.
A expressão de Marine denunciou que ela engoliu bem a desculpa.
Raikou preferia vender a folga e aturar as loucuras do Imperador a
comer um almoço feito por Marine. Ela atirava bem com um arco e
era bela, mas na cozinha…
— Ah, certo. Já faz quanto tempo que, hm, seu pai…
— Dezesseis anos. É pela minha mãe, eu não o conheci – Raikou
tentou moderar a indiferença. Falhou.
— Bem, eu vou ali na feira. Você vai para aquela árvore, não é?
Daqui a pouco eu apareço por lá – ela piscou e saiu rebolando.
Raikou conhecia cavaleiros que venderiam a alma pela mão – e o
dote e principalmente as curvas – de Marine Asuka. Mas ele mesmo
não queria nada. Ele sempre a viu como uma irmã menor que deveria
proteger, principalmente de cavaleiros sem escrúpulos.
O melhor meio de protegê-la é se casando com ela, Raikou. – Foi o que sua
mãe dissera. Ele não queria, mas em breve teria que aceitar a ideia.
Saiu do bairro e da zona urbana da cidade. Caminhou pelas
pastagens verdes com o sol queimando sua cabeça, e cozinhando sua
pele por baixo do casaco de veludo negro. Ele não se importava.
[-20-]
Avistou a árvore e logo chegou até ela. Era enorme, dez metros de
altura. Folhas muito verdes e viçosas. Fornecia sombra a maior parte
do dia, assim Raikou perdia horas olhando as nuvens, ou lendo,
quando conseguia roubar um livro.
Quase ninguém aparecia ali. Aquela era uma Árvore que Sangra,
espécie que nunca foi bem vista pelos olhos dos deuses. Sua seiva era
vermelha, e isso significava mau presságio.
Raikou nunca acreditou nessas coisas. Ele perdeu a confiança nos
deuses há alguns pares de anos.
Deitou na relva e as dores do pescoço diminuíram. Deveria tomar
cuidado para não dormir.
Fechou os olhos levemente, e ouviu um barulho. Algo caíra no
topo da árvore, talvez um pássaro. Abriu os olhos, procurando, e
ouviu mais galhos quebrando.
Não teve tempo para levantar e correr. O peso despencou em sua
barriga, e ele arfou de dor.
Com os dentes trincados, observou aquilo que caíra.
Tinha cabelos brancos longos, que esparramaram pra todo lado.
Era uma garota. Ele sabia quem era. A última garota que pensou em
encontrar naquele continente.
Thrower. A princesa Elektra Thrower.
[-21-]
II
IMPENSADO
— WON, ONDE ELA FOI? DIGA-ME. – Phyreon folheava um livro,
despreocupado. As fugas de sua filha eram tão comuns quanto dias
chuvosos em Raython.
Um raio caiu antes que Won dissesse.
— Não sei, Senhor.
Phyreon ergueu os olhos cinzentos do livro. O imperador jogou
uma mecha longa de seus cabelos brancos por trás do ombro e voltou
a encarar seu general.
— Como não sabe? Não estava perseguindo-a? – sua voz era tão
inexpressiva quanto seus olhos.
— Estava, Senhor. Ela usou a Sellphir e sumiu.
— Elektra não sabe a Sellphir – ele separou as palavras. – E
duvido que aprenda um dia – completou.
Won engoliu a seco. Pois é, eu também pensei isso.
— Mas o fato, Senhor, é que ela desapareceu da minha frente e
deixou uma fumaça cinza. Por minha convivência aqui… sei que é a
Sellphir.
Phyreon levantou-se da cadeira de carvalho calmamente. Seus
longos cabelos brancos caindo sobre os ombros.
— Então, Won, já que foi incompetente o suficiente para não
conseguir pegá-la aqui, continuará a procurar. – Phyreon disse, forte.
Mais um raio caiu ali perto e seu trovão soou pela sala. – Vá a Vihrëa,
Forte Zephirus… leve um elfo com você. Ela pode ter ido a qualquer
lugar, pois como disse, ela não domina a Sellphir bem. Por isso… –
ele devaneou um pouco. – Está parado aí ainda?
Rapidamente Won fez uma reverência e saiu da sala.
Phyreon virou-se e olhou pela janela do castelo por uns segundos.
Um raio caiu ao longe, perto de uma das muitas montanhas de
Raython. Observou as gotas de chuva caírem, e a nuvem branca que
pairava sob sua cidade.
— Então ela fugiu de novo.
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Phyreon reconheceu a voz de Youko Hawking. Um velho amigo
seu, muito velho. Olhou pra trás e viu o elfo, armadura, arco nas costas,
cabelos dourados longos e soltos. Olhos verdes alegres e uma
expressão serena. E as orelhas – ah, as orelhas dos elfos. Pontudas,
sempre apontando pro céu, completavam as formas angulares e
perfeitas de seu rosto.
— Sim, Youko. Só que… ela exagerou. Usou a Sellphir e não se
sabe onde foi parar.
— Não foi você quem exagerou, Phyreon? Você matou a Marie na
frente da menina. Tudo bem que você sonhou que ela ia matar a
Elektra, mas você poderia ter prendido a mulher e feito em outro
lugar, já que você tem que matar alguém. – o elfo disse, com sua voz
musical.
As Três Regras, algo que Phyreon não podia esquecer.
Seus sonhos eram precisos. Quando sonhava com uma morte, ela
acontecia, isso desde que era um garoto. Havia um modo de evadir
isso, obedecendo-se as regras.
A primeira: apenas Phyreon podia salvar a pessoa marcada para
morrer.
A segunda: a morte sempre tem que levar alguém. Então se Phyreon
salvar a pessoa marcada, deve oferecer outra ao ceifador.
E a terceira… nem sempre a seguia…
— Tenho saudades daquela época, séculos atrás. – Youko
interrompeu seus pensamentos. – Sem guerra, sem maldição, sem
nada disso. – O elfo suspirou.
— Essa época se foi há seiscentos anos. Já disse pra não chorar o
destino. Encontra a Elektra por mim? – Phyreon voltou a olhar a
janela.
— Talvez não. É bom ela sair de casa um pouco. E até parece que
você gosta tanto assim dela.
— Então Won encontrará – disse Phyreon, ignorando Youko.
— Creio que você sabe as intenções desse seu Primeiro-General.
— Claro que sei. – Phyreon se virou para encarar os olhos verdefolha do amigo. – Mas ele é um ótimo cavaleiro. Não posso matá-lo.
Ainda. – acrescentou.
Youko olhou com pena o mago à sua frente. Pele pálida, cabelos
brancos que acentuam essa palidez. Cabelos estes lisos e sedosos, que
lhe escorriam até as canelas. Phyreon era muito alto e possuía uma
[-23-]
postura digna de um imperador, e sua coroa era o Cajado de Mago
Elemental, adornado na ponta com uma cabeça de dragão feita de
cristal, que emitia um brilho branco. Os olhos cinzentos dele eram
vagos, quase mortos, pra não dizer que o era. Mas mesmo assim, ele
fazia moças e mais moças da capital e arredores ficarem loucas para
desposar o ―jovem‖ viúvo.
O que mais chamava a atenção em Phyreon eram as marcas. Uma
tatuagem tribal enorme, que lhe cobria todo o lado direito do corpo.
Eram aquelas marcas que causavam a expressão de Youko.
As marcas da Maldição Illumina.
●●●
Raikou retirou a garota de cima de seu corpo.
Não havia como ser outra pessoa, por mais que ele quisesse e
desejasse isso. Algumas coisas eram únicas naquelas terras, e uma dessas
coisas era o cabelo branco dos Thrower.
Apenas eles no continente inteiro possuíam aquele tom de cabelo, e
Raikou sabia bem que a Senhora Elektra tinha mais ou menos sua idade,
talvez um ano mais nova. Olhou-a bem.
Sua testa sangrava, provavelmente bateu a cabeça num galho da
árvore e desmaiou. Sua roupa era branca e cinza, as cores de Raython.
Pele clara como a de Lorde Lothus, que era tio dela. E o tom do cabelo
idêntico. Raikou também não pôde deixar de reparar a curva dos seios
dela, exposta indecentemente pela blusa quase toda aberta.
Pensou até em fechá-la, mas achou melhor não. E começou a
imaginar como tirá-la dali.
Porque aquela garota nunca poderia ficar em Ethernia, seria morta
em questão de minutos.
Ethernia e Raython estavam em guerra há mais tempo que qualquer
um podia contar. Séculos, alguns diziam. Os motivos se perderam, e
agora só restava o conflito.
O conflito, as mortes, e os dois imperadores responsáveis: Phyreon,
de Raython, e Lothus de Ethernia. Irmãos. E inimigos.
E na frente de Raikou, a filha daquele homem. A guerra estava
ganha para o lado de sua terra se ele a entregasse ao seu patrão, mas não
podia fazer isso.
[-24-]
Ia contra o seu princípio de moral, e ele fazia alguma ideia do que
aquela menina sofreria nas mãos do monarca insano.
Definitivamente, ela não podia ficar ali.
Mas para onde a levaria?
A garota gemeu, e virou o rosto. Raikou se abaixou e tomou-o nas
mãos. Ela precisava acordar, e ele sabia que ferimentos na cabeça não
eram bons.
— Ei… acorde, vamos! Ele pode te sentir, sabia? – ele sussurrou, e
ela torceu a face em uma careta.
Depois abriu os olhos.
Raikou notou que os cílios também eram brancos, e ela passava algo
– não se lembrava do nome daquela coisa – para deixá-los pretos. E as
íris… eram cinzentas. Cinzentas como nuvens de tempestade.
Nuvens de tempestade, Raikou guardou bem isso.
Ela piscou, e falou.
— Onde… quem é você? Solte-me. Já – ela rosnou.
Por que não rosnaria? Ela era parenta deles, claro que ela seria tão
desagradável quanto.
Raikou obedeceu, e se levantou, segurando a vontade de deixá-la ali.
— Onde estou? Diga! – ela parecia atordoada, olhando todos os
lados, os olhos saltados.
— Só se me disser o que está fazendo aqui – Raikou cruzou os
braços no peito.
— Você sabe com quem está falando, insolente?
— Sei, Senhora Thrower. E sei bem que não deveria estar logo aqui.
Raikou viu o peito dela subir e descer um par de vezes. Ela estava
nervosa, e sangue pingava em sua blusa branca.
Vai ter que dar pontos, pensou.
— Não vou te contar por que estou aqui. Só me diga onde…
Raikou suspirou.
— Você está em Ethernia. E eu sugiro que desapareça do mesmo
jeito que apareceu.
Ela mordeu o lábio com força.
Ela não veio intencionalmente pra cá, concluiu.
— Não devia ter vindo tão longe... – ela murmurou. – Eu focalizei
Vihrëa, não isso aqui – disse para si mesma. Raikou agachou diante dela,
e a olhou nos olhos.
— A Sellphir não deu certo, não é?
[-25-]
Ela soltou o lábio que mordia, agora estava vermelho. Fechou o
cenho numa carranca novamente.
— E se for? Eu não sei fazer iss- – como sabe da Sellphir, garoto?
Agora ela me mata, ele riu por dentro. Como podia pensar em rir?
— Eu sou escrivão de Lorde Lothus, conheço algumas coisas.
As pupilas dela contraíram e ela ergueu um dedo, e começou a
mexer os lábios.
Raikou se apressou em tapar a boca dela antes que concluísse o
feitiço.
— Conheço uma conjuração quando vejo uma, princesa. Pode parar
de desconfiar de mim? Se eu quisesse te entregar já teria feito! – ele se
mostrou impaciente pela primeira vez.
Estava com grande problema se fosse realmente protegê-la. Seria
exonerado do cargo, morto e coisa pior, não exatamente nessa ordem.
Mas deveria fazer isso.
— Se você já errou a Sellphir uma vez, provavelmente vai errar nas
próximas. Principalmente porque você bateu a cabeça. Então, eu acho
melhor você esconder até alguém vir te buscar.
— Esconder? Onde?
Raikou engoliu seco. Andava sem opções.
— Eu posso… levar você pra minha casa.
Acabara de assinar sua sentença de morte.
— E você acha mesmo – ela apoiou as mãos no chão e se levantou
num impulso – que eu vou confiarA garota cambaleou e desequilibrou-se. Raikou saltou para segurála, e assim que a tocou nos braços sentiu a coisa mais estranha de sua
vida.
Foi um tremor leve e dolorido. Das pontas dos dedos até a cabeça.
Lothus já descrevera aquilo…
Era um choque elétrico.
— NÃO ME TOQUE! – ela berrou, soltando-se das mãos dele.
Raikou olhou as mãos por um instante.Tremiam… ignorou.
— Você bateu a maldita cabeça, não deveria levantar rápido assim,
sua estúpida! E ainda precisa fazer pontos nessa testa! E eu acho que
você não tem pra onde ir!
— Eu preciso ir pra Draak – ela levou uma das mãos à testa e se
assustou ao ver o sangue.
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— Draak? – Raikou riu. – Não te ensinam geografia em Raython
não? Aquele lugar fica a seis meses de viagem daqui, pegando balsa
nos rios navegáveis – ele realmente se irritou dessa vez – não há como
você chegar lá sozinha, nessas estradas há de tudo que possa imaginar— E daí? Eu os mato – ela o encarou.
Raikou se sentiu idiota por um segundo. Claro que ela podia matálos, todos os salteadores e estupradores que encontrasse no caminho.
Eles deviam correr dela, não o contrário. Porque ela era marcada, ela
era um dos pouquíssimos humanos que sabia magia.
E ela não precisava dele.
Não mesmo? Os olhos dela eram fortes, mas ainda parecia uma
boneca de porcelana. Branca e quebradiça.
— Você não parece que sabe chegar a Draak sozinha.
— Só preciso de um mapa.
— Por que não quer voltar pra sua casa?
Ela congelou. Os olhos vidraram, o maxilar ficou rígido. Fechou a
mão em punho.
Pergunta errada, Raikou.
— Não lhe diz respeito. – olhou-o. – Quer mesmo bancar o
altruísta traidor de sua pátria e me ajudar, garoto? Então me arrume
um mapa pra Draak. O mais rápido que puder – cuspiu cada palavra
com autoridade.
Raikou cruzou os braços no peito.
— Você acha que é só pegar um mapa e sair pro mundo, princesa?
Por acaso você já viajou? Vai comer o quê? Dormir onde? Fora outras
coisas. Olha bem as suas roupas. O salto dessas botas quebram na
primeira falésia. Você não tem nada pra te proteger do frio e eu não
vou comentar… – o quanto essa sua saia é curta. Preferiu não dizer. – …
sobre o seu cabelo. – encontrou algo pra completar a frase.
— Ah. Maldição – ela tomou uma mecha branca.
— Ainda vai negar minha ajuda? – fitou-a.
Ela suspirou.
— Não, garoto. Você é insolente, mas tem razão.
●
Insolente, mas realmente tinha razão. Ela estava perdida. Como foi
parar ali? Essa e uma dúzia de perguntas rodopiavam na cabeça de
[-27-]
Elektra. Era por isso que doía tanto? Ou era o corte? Pontos, aquele
garoto disse que ia precisar de pontos…
Sentia-se tonta e exausta. Se fizesse outro movimento brusco ia
desequilibrar de novo. Não havia como ter parado em Ethernia sem
escalas, e talvez por isso estava desgastada.
— Seu cabelo é um problema. Se não fosse isso, você poderia ir
comigo até a cidade sem chamar atenção.
— Hm? Ah. – Voltou à realidade. – Há uma magia élfica que muda
algumas coisas… cor dos cabelos e olhos.
Elektra sabia o canto de cor, vivia usando a magia para fugir do
castelo disfarçada de empregada. Era o meio mais eficaz e rápido de
fugir da guarda pessoal que tinha.
Disse as palavras, mudando o tom do cabelo para negro como o
do garoto que não sabia o nome. Notou que ele tinha os olhos azuis e
usou esse tom também. Viu o rosto dele empalidecer e quase riu. Ver
magia acontecer pela primeira vez certamente era fascinante…
— Não conhecia essa magia – ele engasgou e a olhou de cima a
baixo, analisando. – Os olhos.
— Resolvi ficar parecida com você, ora. Sei lá, uma prima.
— Mude a cor dos olhos.
— Por quê?
— Não são comuns aqui. Finja que é parente de minha mãe, então
os deixe castanhos. Meu pai era estrangeiro, por isso… ah, esqueça.
Só mude. E deixe a pele mais corada, parece um lençol quarado – o
tom dele foi de deboche.
Elektra piscou e deixou os olhos castanhos. Pensou em responder
o deboche dele, mas só torceu a expressão. Havia algo naquele tom de
voz que a incomodava. Aliás, tudo nele a incomodava.
— Não sabia que olhos azuis eram raros aqui – deu alguns passos
e achou seu cajado. Não estava quebrado, mas seria inútil por
enquanto.
— Desapareça com essa coisa, Senhora – a voz dele irritava muito,
principalmente dizendo ―senhora‖. Elektra odiava ser chamada assim,
até princesa era melhor. E quem ele pensava que ela era? Óbvio que
teria de se livrar do cajado. Não precisava dizer.
— Disso eu sei, estúpido. Não sou burra assim.
— Não mesmo? Acho que se fosse mais esperta não tentaria uma
magia que não domina bem…
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— E quem te disse que eu não domino a Sellphir bem?
— O fato de você estar aqui – ele soou firme demais, era como se
soubesse toda a teoria da magia.
Claro, ela realmente não a dominava. Como conseguiria? Era
concentração demais, não nasceu pra isso. Precisava de pelo menos
dois anos de treino antes de tentar sair do lugar, mas…
Só queria ir embora de Raython.
Só queria ir até Vihrëa, se sentar atrás de uma árvore e ficar lá.
Escondida, sem que ninguém a incomodasse. Isso até Youko ou Phill
aparecerem para levá-la de volta. Phill a levaria para Draak, mas
Youko não. Ele conseguiria consolá-la de algum jeito, porque sempre
conseguia. E então ela voltaria para… enterrá-la.
Sentiu um nó na garganta, e engoliu-o de novo.
Tudo deu errado no momento em que seu pai colocou Won para
persegui-la. Talvez perdeu sua concentração por isso. O cavaleiro era
difícil de evadir, e só de pensar no que ele poderia fazer caso ficasse
sozinho com ela quebrava qualquer concentração para escapar. Talvez
errou a Sellphir por isso…
Ainda assim. Ethernia era o cúmulo da distância, difícil para um
mago conseguir chegar sem escalas. E ela sequer pensou em ir ali.
Sempre fazendo tudo errado, Elektra. Muito bem, agora ande até Draak…
seis meses, ele disse?
— Vai ficar parada aí encarando essa coisa? – a voz do garoto
arranhou seus tímpanos e fez sua cabeça latejar onde levara a pancada.
— Cale essa boca. Está me dando dor de cabeça – resmungou, e
dizendo uma palavra de poder, fez o cajado quebrado tomar uma
forma compacta. Um pingente pequeno, com uma corrente.
Passou a corrente no pescoço e acomodou bem o pingente no
busto.
Notou que o rapaz não se assustou quando ela fez isso. Aliás, ele
reagia muito bem a magias, não saia correndo ou assustava fácil. Era
estranho. Ele só a olhava, talvez curioso. Talvez olhando seu decote.
Todos olhavam seu decote, homens, mulheres, elfos.
— Perdeu alguma coisa aqui, foi? – cruzou os braços.
— Há um maldito brasão de Raython na sua camisa, princesa – ele
separou as palavras, com ácido na voz. Oh, o garoto dos olhos azuis ficou
nervoso porque eu arruinei seu dia.
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— É um uniforme, como os dos funcionários – ela olhou as
roupas – porque era a coisa mais leve que tinha pra vestir, geralmente
uso espartilhos e essas coisas todas cheias de fitas e firulas – revirou os
olhos.
— Eu sei. Sou acostumado a realeza.
Ah, sim… ele trabalhava para Lothus… qual era o cargo? Sua
cabeça rodava quando ele disse.
— Você faz o quê com meu tio mesmo? – ela olhou o brasão
imperial e com um toque nele, desfez todo o bordado,
transformando-o em um monte de linhas disformes.
— Escrivão. Ele não tem muita coordenação desde que perdeu o
braço… acaba que eu faço de tudo um pouco. Por isso sei sobre uma
boa parte das magias. E aquele maluco costuma dizer muita coisa que
não deveria pra mim.
— Imagino – ela olhou a paisagem.
Era isso que eles chamavam de pastagens? Um manto verde plano
que fazia uma linha reta no horizonte. Um ou outro morro leve. E o
céu azul sem uma nuvem.
Não era como Draak, e muito menos como Raython.
Draak era cheia de montanhas, nuvens e nevoeiro, e Raython era
duas vezes pior. Já ali… era quente, quente demais, aliás. E as cores
vivas doíam nos olhos. Pro outro lado havia a cidade, podia ver as
construções. Uns pomares. Gado ruminando.
Era lindo, simplesmente. Não havia outra palavra para descrever
senão lindo.
O garoto passou por ela e olhou pra trás. O cabelo dele era longo,
reparou. E ele vestia roupas pesadas demais para a estação e o lugar.
— Por aqui – atolou as mãos nos bolsos e começou a andar.
— Acho que não sei seu nome.
— Raikou.
Raikou. Era um nome estranho…
Ela o seguiu enquanto ele se dirigia para a cidade. Elektra
continuou a notar a paisagem enquanto segurava um lenço para
estancar o sangue da testa. Raikou simplesmente jogou o pedaço de
pano, ―limpe essa sua cara‖, e voltou a andar.
Claro que ela podia curar o ferimento com magia, mas ela não
queria abusar. Curas consomem muita energia, e ela sabia que estava
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no limite. Mudar a cor do cabelo e dos olhos foi a gota d’água, e não
sabia se podia cair de cansaço na próxima palavra de poder em élfico.
Alguns dos sinais de exaustão estavam lá: tontura, fome.
Precisava descansar antes de sair novamente.
Mas ainda não se sentia segura o suficiente para dizer que era
sortuda por ter encontrado Raikou. Ou melhor, ter caído em cima
dele. ―É, você caiu em cima de mim, quase morri de susto‖, ele disse.
— Por que você não me deixou desmaiada e saiu correndo? Era
um pouquinho mais lógico. – Elektra quebrou o silêncio entre eles.
— Porque eu tenho uma coisa pequena chamada senso moral,
sabe? Minha mãe sempre me disse pra ajudar quem precisa de ajuda, e
você está… muito necessitada.
Maldito. Era verdade, no entanto. Em condições normais ela diria
que nunca precisava da ajuda de ninguém.
Mas aquela não era uma condição normal.
— Só preciso de você porque não conheço isso aqui. Aliás, eu
saberia me virar sem você.
Raikou parou e se virou.
— Você nem sabia que estava em Ethernia – franziu o cenho com
força – como você ia sair viva daqui? Não é todo mundo que é como
eu, princesa!
Gritando de novo. Desde que caiu ali, só ouviu aquele garoto
irritado e berrando.
Não era pra menos.
— Entendi. Agora pode continuar a andar – ela tirou o lenço da
testa e eles entraram num pomar denso.
Elektra ouviu Raikou suspirar. Os ombros dele estavam retos e
tensos. De algum jeito era familiar, mas não parou para pensar.
— Não tem como você mudar sua voz?
— Por quê?
— Você tem um sotaque de Raython forte demais… o mesmo de
Lothus.
— Quinhentos anos e ele ainda tem sotaque de Raython? – ela
ergueu as sobrancelhas.
— Sim. Claro que ninguém vai saber que seu sotaque é de lá, a
menos que já tenha falado com o imperador ou algum prisioneiro…
na dúvida, fique calada.
Elektra quebrou um galho.
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— Não é como se eu fosse conversar muito tambémParou.
— Raikou.
Elektra não conseguia sentir presenças, mas tinha um senso de
perigo aguçado por fugir tanto de casa. Sabia quando havia alguém
atrás dela, e isso nunca falhava…
— O que foi?
Elektra mirou uma das árvores com o canto dos olhos agora
castanhos.
— Eu já vi você, saia.
Ouviu uma risada, e passos pesados quebrando os galhos.
São grevas. Um cavaleiro, maldição.
— Claro que ia me encontrar. É uma maldita Thrower – o
cavaleiro saiu de trás da árvore, ainda rindo.
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