Art 6

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Art 6
Marianne Reinhardt Röhrig
Paradoxos da moda
contemporânea
Marianne Reinhardt Röhrig (Especialista)
Curso de Design de Moda - Universidade Tuiuti do Paraná
Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 25, FACET 03, p. 101-108, Curitiba, dez. 2001
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Paradoxos da moda contemporânea
Resumo
A moda é permeada por paradoxos, mas na última década do milênio eles se multiplicaram e se tornaram
parte do nosso cotidiano. A moda é hoje um imenso patchwork, feito com pensamentos, comportamentos,
valores e informações múltiplas, plurais, simultâneas. Tornam-se mais tênues os limites entre o que é certo e
errado, bonito e feio, bom e ruim, moda e antimoda. Nunca a moda foi tão mostrada, falada e valorizada,
portanto, está começando a ser compreendida e deixando de ser vista como algo superficial e fútil. Um breve
histórico do desenvolvimento da Moda como sistema (Lipovetsky, 1989) e uma análise dos principais conceitos da moda contemporânea e de seus paradoxos, são apresentados com o objetivo de ampliar o entendimento desse universo que começa a delinear uma cultura no Brasil.
Palavras-chave: moda, paradoxos, contemporâneo, conceitos.
Abstract
The fashion world is plenty of paradoxes, however, in the last decade of millenium they were multiplied and
became part of our quotidian. The “patchwork “ is the best definition for the fashion nowadays, made by
thoughts, behaviors, valves and simultaneous, plural and multiple information. The limits become thinner
between what’s right and wrong, pretty and ugly, fashion and anti-fashion. Never before the fashion was so
showed, talked and worth, therefore, it’s starting to be understood and becomes deeper and studied. A short
historical of the Fashion’s development as a system (Lipovetsky, 1989) and an analysis of the main concepts of
the contemporary fashion and its paradoxes, will be showed for increasing the understanding of this new
universe that beginning to delineate a new culture in Brazil.
Key words: fashion, paradoxes, contemporary, concepts.
Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 25, FACET 03, p. 101-108, Curitiba, dez. 2001
Marianne Reinhardt Röhrig
História
A aceitação do indivíduo pela sociedade em que vive
ou pelo grupo do qual faz parte - na verdade, pelo
outro - sempre foi uma preocupação humana que
nos leva a pensar na padronização que a moda impõe, e que aceitamos tão bem. A padronização é inerente ao Sistema de Moda e durante a história da
humanidade esteve sempre presente para diferenciar
tribos, diferenciar e hierarquizar a sociedade, para
diferenciar os povos das regiões, países ou nações.
Enfim, a padronização serve para diferenciar, e aqui
nos deparamos com um dos grandes paradoxos da
moda: padronização/diferenciação.
A partir da metade do século XIV, o homem passou a se pensar como indivíduo e sentiu a necessidade de se expressar como tal. Pela primeira vez, o
homem se questionou como sujeito e, no vestuário,
houve uma diferenciação visível em relação ao sexo
oposto, quando os homens passaram a usar calças,
no lugar das túnicas e de outras vestes longas. Durante este período, chamado de “Moda Aristocrática” (Lipovetsky,1989), iniciou-se a produção de
subjetividade, mas predominou a necessidade de diferenciar-se principalmente em relação à política,
nobreza e sociedade em geral.
Charles Worth, por volta de 1858, tornou-se o
primeiro costureiro a impor suas criações para a
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sociedade e fez roupas personalizadas e sob medida
para a alta burguesia da época. Até então, costureiros
apenas concretizavam o desejo das elites que ditavam
o que deveria ser usado. Surgiu assim a alta-costura,
que além da criação, levou em consideração traços da
personalidade de suas clientes, exteriorizando emoções
e gostos pessoais. A subjetividade começou a ser levada em conta, mas as regras sociais continuaram a predominar durante a “Moda de cem anos” (Lipovetsky,
1989). Vale lembrar, que o advento da alta-costura,
paradoxalmente, coincide com o nascimento da indústria em grande escala.
Possuir ou copiar a criação de um grande costureiro
e usar a moda imposta por ele a cada nova coleção
significou prestígio até meados dos anos 60, com o
surgimento do prêt-à-porter e a conseqüente democratização da moda. A partir da consolidação do prêt-àporter (moda aberta), a moda tornou-se massificada e
um número cada vez maior de pessoas passou a adquiri-la. A alta costura perdeu seu prestígio e novas
formas estéticas foram criadas rapidamente e expressas intensamente, principalmente pelos jovens, que criaram grupos cujas ideologias políticas e sociais são
expressas na maneira de se vestir e se comportar. As
profundas mudanças pelas quais o mundo passou principalmente durante a década de 60, delinearam a moda
até a atualidade.
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Os anos 60 viram surgir uma nova geração, nascida do baby-boom do pós-guerra. Com a sociedade em
expansão e o novo liberalismo familiar, muitos jovens
passaram a ter e administrar seu orçamento pessoal. A
moda começou a concentrar-se nos adolescentes e a
expressar o seu desejo de ruptura, liberdade, revolta,
modernidade, diferenciação. Surgiram jovens criadores, que tinham a idade de seus clientes e entenderam e
souberam interpretar seus anseios. A moda passou a
ser um reflexo do que se via nas ruas e nunca havia
mudado tão rapidamente até então. A novidade passou a fazer parte do cotidiano das pessoas e estava à
flor da pele. Novos estilos musicais e artísticos, mudanças de valores, pensamento, comportamento, formas de olhar o mundo. Novos tecidos e novas
utilizações para tecidos até então marginalizados como
o jeans. Há uma nova concepção de distinção, em que
a sofisticação e a elegância da alta-costura perdem espaço para a criatividade, democratização, experimentação, questionamento. A moda é pensada como um
todo, inseparável do modo de vida, ideologia e intenção do indivíduo. O corpo nunca esteve tão evidente,
sob transparências, saias curtíssimas e tecidos colantes.
A juventude está na moda e a padronização acontece,
quando o desejo de ser e parecer jovem é imposto
pela moda. Por outro lado, a subjetividade faz com
que se deseje ser diferente. Expressões dos sentimen-
tos paradoxos que permeavam a sociedade da época
e que delinearam a moda contemporânea.
A “Moda Expandida” que vivemos na década de
90, traduz o comportamento da sociedade contemporânea. Muitas lógicas que acompanham a Moda
desde sua instauração passam por profundas mudanças e releituras se fazem necessárias.
Conceitos da moda
contemporânea
Para que algo seja moda, precisa ser efêmero. A moda
sempre fez uso dessa qualidade, que já significou um
espaço de tempo de alguns anos, depois meses e, hoje,
o efêmero tem uma duração quase inexistente. Imagens são vinculadas instantaneamente pela TV e internet,
notícias são disseminadas pelo telefone, tudo é mostrado “ao vivo”. O jornal, com as últimas notícias, já é
obsoleto assim que começa a ser rodado. A moda é
divulgada em todas as direções através de diversos
meios de comunicação e atinge milhares de pessoas
ao mesmo tempo. O que era novidade há alguns minutos já não o é mais e a moda dura o tempo necessário para que uma nova informação se imponha.
Por outro lado, a moda mudou menos na década
de 90 do que em relação a outros períodos. Foram
impostas poucas modificações essenciais, como formas, linhas, cores. Um modelo usado no início da
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década de 90 pode continuar a ser usado na atualidade e as pessoas procuram por essa maior durabilidade. O consumismo dos anos 80 foi rejeitado, há uma
desmaterialização da moda e, na vida, uma procura
pelo abstrato, por novos valores, conceitos, o indivíduo busca saber quem ele é.
A quantidade e a variedade de informação são imensas, não havendo tempo para pensar na notícia e
decodificá-la, pois ela já se tornou passado. Um número cada vez maior de pessoas tem hoje acesso à
informação de moda, que é encontrada em quase todos os meios de comunicação e tem sido abordada
em telejornais, novelas, seriados, e revistas de grande
circulação, como Veja, Superinteressante, Isto É. Os jornais trazem suplementos especiais que tratam do assunto e novas revistas relacionadas à moda se
multiplicam. Há uma falta de informação séria e cultura de moda no país, mas o consumidor, cada vez
mais bem informado, também é exigente, e já não
aceita o tradicional “ficou lindo em você, leva !”.
O tempo, que permeia a efemeridade, a informação, o cotidiano, a moda está se tornando mais escasso e, ao mesmo tempo, mais procurado. Acordar sem
os gritos do despertador e tomar um bom café na
cama, “jogar conversa fora” durante horas com a família ou com os amigos, passear pela vizinhança ou
ficar em casa fazendo qualquer coisa que simplesmenTuiuti: Ciência e Cultura, n. 25, FACET 03, p. 101-108, Curitiba, dez. 2001
te dê prazer são os grandes luxos da vida contemporânea. A nossa noção de tempo e de espaço foram
profundamente modificadas. Existem muitas facilidades tecnológicas e conseqüentemente, fazemos mais
coisas ao mesmo tempo e nos responsabilizamos por
uma quantidade muito maior de tarefas. Precisamos
pensar mais e com multiplicidade, solucionando múltiplos problemas e usando instrumentos que poupem
tempo.
Revivals estão por toda parte. O retorno ao passado é característica do sistema de moda, mas nunca
tantos períodos diferentes foram tão visitados quanto
na última década. As releituras têm proliferado na
moda atual, não apenas de uma época determinada,
mas de vários períodos simultaneamente. Os revivals
não trazem apenas formas, recortes, tecidos e cores
de volta, mas também abrem espaço para análise e
discussão de padrões de beleza e de comportamento
da época. Muitas revistas de moda, principalmente
americanas, têm produzido editoriais referenciados nos
anos 50, e no sonho americano, de uma vida tão tranqüila
e feliz quanto o seriado I love Lucy, ou os filmes O show
de Truhman e Pleasant Ville. Resgatam, também, valores como casamento e família.
Esse retorno ao passado tem causado uma falta
de originalidade e criatividade no mundo atual. A
globalização, segundo o sociólogo Domênico de Masi,
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tem uma certa culpa nisso. Afinal, com tanta informação sendo trocada ao mesmo tempo, temos a sensação de que não há mais nada de realmente novo a ser
criado.
O corpo tem uma ligação íntima e primitiva com a
moda, e lhe fornece energia e forma para ser difundida. A moda impõe padrões de beleza a serem seguidos e muitos corpos já foram torturados (e continuarão
a ser) por conta dessa padronização. Atualmente, os
padrões vêm e vão, se modificam rapidamente, mas
há maiores possibilidades de escolha. A beleza no contemporâneo é mais democrática, no que diz respeito a
peso, tamanho ideal dos seios, corte de cabelo. O corpo é respeitado e acontece uma valorização de diferenças e misturas raciais e da beleza exótica. A moda
também abre uma janela à provocação e à reflexão,
quando exibe pessoas que fogem totalmente aos padrões, como portadores de deficiências físicas e mentais, com excesso de peso e as visualmente “estranhas”.
Os limites do corpo (se se quiser mantê-los), são finalmente levados em consideração e a indústria desenvolve tecidos com alta tecnologia, pronta para tornar
a vida mais confortável e prática. O Design desenvolve
produtos ergonômicos, pensando nos movimentos do
corpo, inseridos no meio em que o indivíduo vive e
considerando seu modo de vida. O vestuário torna-se
mais versátil e a mesma roupa pode ser usada durante
todo o tempo em que se está fora de casa, independente das mudanças de clima ou ocasiões sociais. As
roupas não amassam, não esquentam e não são frias
demais. Não precisam ser lavadas com freqüência.
Germes e bactérias não proliferam no tecido, não
deformam com uma movimentação intensa ou a falta dela (muito tempo sentada) e, sobretudo, são confortáveis.
Ao mesmo tempo em que há um respeito pelo
corpo, existe uma imposição dos meios de comunicação, transmitida pelo marketing e, conseqüentemente,
pela sociedade, no sentido de tê-lo perfeito e extremamente bem cuidado. O desenvolvimento
tecnológico em relação a produtos de beleza, cirurgias reparadoras e novos equipamentos está aí para abrir
um leque de possibilidades para a reconstrução do
corpo. Personalidades da mídia e da moda passam
por verdadeiras metamorfoses a olhos vistos e atiçam
o desejo de perfeição estética nas pessoas.
A moda, mais do que nunca, é referencial estético
contemporâneo. Ela é contaminada pela arte e a contamina. É referência para padrões de beleza e comportamento. Ela é reflexo de uma sociedade mais
informada, aberta, mais sensível e, portanto, sua estética, traduzida em imagem, mostra-se mais subjetiva,
conceitual e eclética.
Ao contrário do comercial de refrigerante, em que
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“imagem não é nada, sede é tudo”, vivemos num
mundo globalizado onde a “imagem é tudo”. A visão é
o sentido mais desenvolvido atualmente no homem e
a moda se tem aproveitado disso muito bem. Três
características que regem o atual funcionamento socioeconômico, artístico e cultural, intrínsecas à moda, são
exibidas através de suas imagens.
A simultaneidade atravessa as noções de tempo e estética. A estética é representada por um ecletismo que
se manifesta na arte, na música, na decoração, na moda,
na literatura. Surge também a noção de preconceito,
que precisa ser transposto para que se possa entender
e aceitar o momento em que vivemos. Todo um século está sendo revisto e dissecado simultaneamente nos
meios de comunicação: sua cultura, seus valores, comportamentos, objetivos. São muitas referências diferentes acontecendo ao mesmo tempo.
A desmaterialização se refere a valores abstratos, que
valem mais do que coisas palpáveis. A informação é
um deles e, na moda, representa valor agregado ao
produto. O conceito de uma marca, ou seja, informação, é um valor agregado que o marketing trata de
difundir, principalmente através de imagens. O tempo, a segurança, a criatividade, o conhecimento tam-
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bém se tornam valores importantes na atualidade.
A simulação camufla as diferenças entre o que é real
e imaginário. Cria-se uma imagem ou uma idéia de
algo melhor e mais desejável do que a realidade. Os
meios de comunicação preparam a informação antes
que ela chegue até nós. As imagens de moda mostram
lugares, mulheres e comportamentos hiper-reais. Todos nós podemos ser personagens diferentes a cada
dia e a moda e os meios de comunicação nos fazem
parecer o que queremos ser.
A moda dos anos 90 tornou-se um imenso supermercado de estilos (T. Polhemus,1976), onde o indivíduo
precisa ter autonomia, personalidade, liberdade e
criatividade para criar sua própria moda, porque possibilidades definitivamente não faltam. Os meios de
comunicação trazem os subsídios para que se possa
construir a própria moda, mas sem fugir de padrões
estabelecidos e sem correr o risco de não ser aceito
em seu grupo de convívio. A liberdade, portanto é
relativa e, apesar do desejo de diferenciação, a padronização acaba acontecendo de alguma forma.
A moda é, definitivamente, algo mais que revelação de tendências, de atitudes: talvez alguma coisa a
ser tratada com substratos de ciência.
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Referências bibliográficas
HOLLANDER, A. (1996).O sexo e as roupas: a evolução do traje moderno. Rio de Janeiro: Rocco.
LAVER, J. (1989). A roupa e a moda: uma história concisa. São Paulo: Companhia das Letras.
LIPOVETSKY, G. (1989). O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia
das Letras.
MUNARI, B. (1998). Das coisas nascem coisas. São Paulo: Martins Fontes, pp. 196 – 199.
PEACOCK, J. (1993). Storia Illustrata del Costume: dal novecento a oggi. Milão: Mondadori.
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