Série do Jornal O Globo, de outubro de 2013, sobre transformações
Transcrição
Série do Jornal O Globo, de outubro de 2013, sobre transformações
18 l O GLOBO 2ª Edição Domingo 27.10.2013 Rio Cidade em transe FREGUESIA Teve aumento populacional de 28% entre 2000 e 2010, percentual bem acima dos 8% registrado em todo o Rio GUARATIBA, BARRA DE GUARATIBA E PEDRA DE GUARATIBA CENTRO MADUREIRA Em 2000, os moradores com ensino superior completo correspondia a apenas 6,9%. Em 2010, passou para 17,8%. Aumento de 158% A participação de mulheres sem filhos passou de 35% para 40%. Variação de 14% em dez anos. Em todo o Rio, essa variação foi de apenas 4,5% a u re i r Em dez anos, aumento de renda per capita de 24%. passando de R$ 481, em 2000, para R$ 596, em 2010 Mad 190 aguá7 p e r J a c a 5. 2 9 Centro 17 Lapa 3 24 Bottaafogo 237 ar u G 4 3 Nova identidade para o Rio surge na mudança do perfil de bairros cariocas Fontes: Idemi e Censos 2000 e 2010 Novo retrato da metrópole [email protected] O antigo sobrado estava meio esquecido, pichado e com infiltrações. Ali, desde 1971, existia a lavanderia e tinturaria Jandaia, no número 97 da Rua Voluntários da Pátria. Eis que os novos ventos do mercado imobiliário sopram, e os proprietários portugueses decidem passar o ponto no fim de 2012, auge da valorização imobiliária de Botafogo. O livreiro Rui Campos alugou o imóvel, que antes abrigou até um cortiço, e está investindo mais de R$ 2 milhões no velho casarão de 1.200 metros quadrados: ele abrirá este ano a maior loja de rua da Livraria da Travessa, a primeira fora do eixo Ipanema-LeblonCentro-Barra. Os fregueses com seus sacos de roupa suja serão substituídos em breve por clientes em busca de livros, DVDs, cafés gourmet e um ambiente sofisticado. É um dos sinais mais recentes de que a cidade está em transformação. Situações semelhantes ocorrem em outros bairros do município, assim como em outras cidades do país e do mundo, que parecem ter, de repente, trocado de roupa. Novos moradores chegam, pagam caro, e alteram o cotidiano das ruas. O comércio acompanha, com perdas e ganhos; vizinhos antigos, nem tanto. Alguns deixam o local por causa dos preços altos do custo de vida. Outros resistem, reclamam. Mas há também aqueles que aproveitam o momento de valorização, vendem os imóveis e preferem morar em outros locais. A esse emaranhado de novas relações econômicas e sociais, provocado pela renovação de população, é atribuído o fenômeno da gentrificação. No Rio, os contornos são distintos. Com investimentos de R$ 15,9 bilhões previstos somente para obras da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016, fora os aportes que virão do petróleo extraído da camada pré-sal e de outros negócios, o Produto Interno Bruto (PIB) fluminense deve crescer até 2016 a taxas superiores (entre 4% e 5%) às do PIB brasileiro, o que já ocorreu em 2011 e 2012. A nova classe C, com mais poder de compra e maior capacidade de migração entre bairros, também influencia nas mudanças: de 2003 a 2011, cerca de 40 milhões de pessoas no Brasil se juntaram a esse grupo. SENSAÇÃO DE SEGURANÇA Os ventos econômicos são acompanhados também pelo processo de pacificação de favelas. Já são 34 Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), número que deve chegar a 40 em 2014. Favelas e até bairros antes dominados territorialmente por criminosos tiveram suas portas abertas e atraíram gente que nunca havia pisado lá, tanto para passear como para morar e investir. Algumas regiões já apresentam sinais de mudança de seus tecidos urbanos e sociais. E os números são expressivos. Segundo o anuário do mercado imobiliário, feito pela Lopes Imobiliária, em 2012 foram movimentados R$ 11 bilhões com a venda de novos empreendimentos, valor 11% superior a 2011. Com tantas mudanças, a série “Cidade em transe”, que começa hoje, vai contar histórias sobre as mutações de bairros do subúrbio, das zonas Sul e Oeste, do Centro e da Zona Portuária, além das favelas pacificadas, e de áreas que vivem o mesmo processo em cidades nos Estados Unidos, Es- A cidade em processo de transformação Contexto a ta ib FÁBIO VASCONCELLOS, FLÁVIO TABAK, NATANAEL DAMASCENO E PAULO THIAGO DE MELLO BOTAFOGO Aumentou em 35% a proporção de moradores que declararam não ter religião**. Eram 10.301 (11,91%) em 2000; em 2010, 13.745 (16,12%) panha, Alemanha, Turquia, Argentina, França e Reino Unido. Não há fórmulas, nem dados prontos sobre o Rio que evidenciem diretamente o fenômeno da gentrificação. Para compreender essas transformações, O GLOBO conversou com especialistas, urbanistas e profissionais do mercado imobiliário carioca para não só mapear os bairros onde há mudança de população, mas igualmente para tentar amarrar variáveis socioeconômicas e culturais que poderiam indicar esse processo. Um dado que costuma se repetir é a alteração do perfil socioeconômico dos moradores, especialmente quando há uma elevação da renda acima da média na cidade. A equipe de reportagem levou em conta esse aspecto, mas também a perda do número de casas, que caracteriza um tipo de moradia mais tradicional, associada ao crescimento do número de apartamentos. Os bancos de dados utilizados foram dos censos de 2000 e 2010, do Instituto Pereira Passos (IPP), da Secretaria municipal de Fazenda e da Associação de Dirigentes do Mercado Imobiliário (Ademi). Eles mostram, por exemplo, variações de renda em alguns lugares acima dos 40% em dez anos, quando no município a média foi na faixa dos 20%, ou ainda, perdas de até 50% do número de casas e construções de centenas de novos edifícios. U GLOSSÁRIO GENTRIFICAÇÃO É um conceito usado para se referir ao processo de renovação de população, em que a chegada crescente de novos residentes de renda superior acaba por transformar o perfil sociocultural da área em questão. Os novos moradores introduzem costumes e práticas de consumo distintos dos tradicionais, estimulando o surgimento de negócios e elevando o custo de vida, especialmente no que se refere aos gastos com moradia, o que pressiona a saída de antigos residentes da área. CIDADE GLOBAL São cidades que funcionam como centros econômicos internacionais, quer por seus mercados de ações, quer pela concentração de instituições financeiras importantes. Alguns exemplos: Nova York, Londres e Tóquio. São Paulo funcionaria como uma cidade de importância econômica regional. CIDADE-COMMODITY São cidades administradas como se fossem empresas. Esses centros urbanos disputam com outros o fluxo global de capital, investimentos, turismo, transferência de tecnologia etc. BOBÔS Contração de bourgeois-bohème. A expressão, muito usada na França, foi criada pelo colunista do “New York Times” David Brooks para se referir a um personagem urbano que une dois arquétipos antes antagônicos: o burguês e o boêmio. Algumas características desse grupo: tem uma alta formação intelectual, gosto tecnológico sofisticado, estilo pessoal de se vestir. Bons ventos da economia no estado atraem novos moradores e mudam a cara de bairros Com a escolha desse primeiro conjunto de dados, o passo seguinte foi analisar variações no perfil social das famílias. Esses indicadores serviram como guia para constatar nas ruas que a gentrificação, quando ocorre, nem sempre é algo que pode ser generalizado. No caso do Rio, pode ser num bairro, trecho de um bairro ou mesmo um processo inicial de transformação que, a médio prazo, poderá levar à renovação dessas áreas. Para o professor e especialista em Direito Imobiliário Mário Cerveira Filho, o troca-troca de moradores nos bairros ganhou combustível a partir de 2010, com a nova lei do inquilinato, que mudou a relação entre inquilinos e proprietários. — Antes, o inquilino poderia sofrer duas ações de despejo por falta de pagamento a cada 12 meses. Agora, somente haverá uma oportunidade a cada 24 meses. Não há dúvida que essas e outras alterações contribuíram para esse fenômeno. MUDANÇA DIVIDE OPINIÕES Se por um lado as mudanças parecem ser irrefreáveis, os efeitos do fenômeno são alvo de controvérsia. Há quem o considere benéfico, como o urbanista londrino Richard Burdett, diretor do London School of Economics Cities and Urban Age, um centro internacional de pesquisas que estuda como as pessoas e as cidades interagem em um mundo em rápida urbanização. Assessor chefe de Arquitetura e Urbanismo para os Jogos Olímpicos de Londres 2012 e conselheiro de arquitetura para o prefeito de Londres, de 2001 a 2006, ele diz que todos podem ser beneficiados com a transformação. — Gentrificação é uma palavra muito pesada, que vem com uma negatividade muito grande associada a ela. Tenho uma visão diferente. Numa mudança, existe gente com mais dinheiro entrando em áreas onde habitam pessoas com menos dinheiro. Isso deve ser uma coisa boa, se você canaliza os recursos que chegam em investimentos, e usa a força política para ter certeza que os moradores não serão expulsos. Ou seja, para que essas pessoas sejam beneficiadas pela valorização e pelos investimentos que podem eventualmente ser feitos. O presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), Sérgio Magalhães, alerta que esse fenômeno não pode ser visto destituído da perda de qualidade de vida de áreas importantes da cidade: — A gentrificação tem um simétrico, um contraponto que não podemos perder: a expulsão pela deterioração, pela degradação ambiental e urbanística. É o que acontece na Zona Norte, um fator socialmente talvez até mais grave porque há mais áreas em degradação do que em recuperação, saem mais por isso do que pela qualificação do ambiente. Consultor técnico da Ademi, o arquiteto David Cadermam afirma que é o poder público quem tem o poder de conduzir os rumos da transformação, abrindo ou fechando espaços para a atuação do mercado imobiliário. — A legislação é orientadora da ocupação. Se você faz um decreto ou uma lei restringindo o uso, cerceia aquela região ou não. Depende do que o legislador quer fazer com aquela área. O Rio não pode ser estudado por trechos, e sim como um todo, por meio de planos diretores de transportes, de saneamento, de ocupação. Nesse conjunto é que vai entrar o Rio dentro dos próximos 20, 30 anos. l Cruzada: Valorização de imóveis em 135%, página 23 R obert Ezra Park, um dos pais da chamada Escola Sociológica de Chicago, pioneira nos estudos urbanos, costumava dizer que a cidade é muito mais do que seu arranjo espacial, seus edifícios e até mesmo suas instituições. A cidade, dizia ele, é sobretudo o resultado dos sonhos das pessoas que a habitam. Essa é uma ideia interessante para se pensar os variados fenômenos urbanos do Rio de Janeiro, entre eles o processo que certa sociologia classifica como “gentrificação”, ou seja, a substituição de população em determinadas áreas, que passam a receber uma leva crescente de residentes com maior poder aquisitivo, estimulando a saída de moradores antigos com renda inferior. Isso gera uma mudança do perfil social, cultural e econômico da região. Esse processo ocorre estimulado por diversos fatores, desde o mercado imobiliário superaquecido à adoção de políticas públicas de revitalização e valorização urbana. Ele é percebido pelos atores envolvidos no processo — residentes, comerciantes locais, autoridades, empresários do setor imobiliário — de distintas formas. Em pesquisa de campo sobre Botafogo, por exemplo, encontrei pessoas que descrevem a mudança do bairro como a perda de um patrimônio subjetivo, relacionado à história do lugar. Por meio dessa percepção, o discurso delas ganha a autoridade de representantes legítimos do bairro, cujas raízes remontam ao passado. A demolição do antigo casario para dar lugar a condomínios exclusivos, uma das marcas das mudanças em Botafogo, é narrado como uma “invasão”. Muitos desses moradores “nascidos e criados” se sentem ameaçados em sua história de vida. “Ali era a casa do meu avô”, disse um deles. “Hoje é esse prédio horroroso.” Isso não impede que muitos deles vendam seus imóveis, seduzidos por irrecusáveis ofertas das imobiliárias. Por outro lado, ao entrevistar novos residentes — que se instalaram nos edifícios recém-construídos e independentes do bairro por ofertar no condomínio os serviços do comércio local —, percebi que muitos falam do bairro como um patrimônio voltado para o futuro. “O bairro está melhorando”, disse uma moradora recém-chegada a Botafogo, referindo-se à noção de que o bairro, antes degradado, está cada vez mais prestigiado, deixando de ser um lugar de passagem, para se tornar um local de destino. Neologismo criado como uma ironia crítica pela socióloga britânica Ruth Glass nos anos 1960, o conceito de gentrificação ganhou ao longo do tempo conotação positiva, como “enobrecimento”, e negativa, como “aburguesamento”. Concretamente, o que se vê nas ruas, praças e espaços compartilhados das áreas onde o fenômeno se dá é o choque de sonhos distintos de cidade. Se, por um lado, representa uma valorização econômica do espaço, por outro, a gentrificação tende a diluir ou mesmo eliminar a diversidade social e cultural, que aparece no drama diário da convivência nos bairros, e que os torna bons lugares para se viver. l Paulo Thiago de Mello é jornalista , antropólogo do LeMetro/IFCS-UFRJ e faz pesquisa sobre o processo de gentrificação EDITORIA DE ARTE Unidades imobiliárias lançadas em 2012. Este número é um indicador da transformação em alguns bairros da cidade 12 l O GLOBO | l Rio l Panorama carioca Cidade em transe | _ GILBERTO SCOFIELD JR. [email protected] _ História da diversão no Rio Estou lendo um livro delicioso chamado “Vida divertida: histórias do lazer no Rio de Janeiro (1830-1930)”, organizado pelos professores e escritores Andrea Marzano e Victor Andrade de Melo. É uma reunião de ensaios que busca, como o próprio título diz, revelar como os cariocas ocupavam suas horas livres desde a Independência ao fim da República Velha, com a cidade ainda capital federal. Maravilha de leitura. N o ensaio “Em casa, fazendo graça: domesticidade, família e lazer entre a Colônia e o Império”, da historiadora Mary Del Priore, por exemplo, descobre-se com riqueza de detalhes que o Rio era uma cidade basicamente rural até a Independência, e o eixo central do lazer era o Passeio Público, vejam vocês. Diz o texto: “Até o período em que se deu a Independência, as características não variavam: o Brasil continuava a ser um país agrário, cuja atividade básica era a produção agrícola apoiada no braço escravo. A capital, por exemplo, era cortada por ruas estreitíssimas e sujas. Bairros como Botafogo ou Catete eram considerados arrabaldes, encerrando casas de campo abraçadas pela vegetação. O Passeio Público representava a melhor área de lazer para a população. Nas noites de luar, era à beira d’água que as famílias se reuniam, entoando modinhas e lundus ao som do violão. Foi nesse Rio de Janeiro que desembarcaram, a 8 de março de 1808, o futuro monarca e a família real.” E qual era o grande evento social dessa época? A missa de domingo. Era uma oportunidade única para que trocas de olhares e conversas fiadas virassem namoricos de verdade. Ou seja, a igreja católica do Império era o lugar de azaração dos jovens no fim de semana, que ironia. No ensaio “O esporte como forma de lazer no Rio de Janeiro do século XIX e década inicial de XX”, de Victor Andrade de Melo, sabe-se mais sobre a influência da colônia britânica na difusão de competições, como corridas de cavalos e — até a década de 20 do século XX — de touros. A maneira como certas atividades esportivas eram encaradas na época, como o remo, causam riso hoje em dia. Mas, se pensarmos bem, muitos temos opiniões parecidas hoje, só que com relação a outras atividades esportivas (de imediato me vem à cabeça o preconceito que observo com relação ao fisiculturismo ou ao golfe). Diz Melo: “O remo já U existia na cidade do Os pontos-chave Rio de Janeiro desde a década de 1860, mas a princípio sua consolidação se dava a passos “Vida divertida: histórias do lentos. As restrições à lazer no Rio de Janeiro prática estavam relaci(1830-1930)” é um livro de onadas: à estética corleitura obrigatória poral dos remadores, fortes e com a musculatura desenvolvida, Bairros como Botafogo ou pouco usual em uma Catete eram considerados época onde se valoriarrabaldes, com casas de zavam os tipos físicos campo e florestas magros e fracos; à pouca quantidade de roupa que eles usavam, o que ocasionava Os exercícios eram consicríticas quanto ao puderados prejudiciais à dor da prática; à sua saúde. Só tinham valor as compreensão enatividades intelectuais quanto uma atividade física intensa, quando os exercícios eram muitas vezes considerados prejudiciais à saúde e de menor valor perante as atividades intelectuais.” Divertidíssimo — e espantoso — mesmo é o ensaio “Livros baratos e o bom humor da pornografia no século XIX”, de Alessandra El Far, que trata da popularização do livro na então capital e dos “romances para homens”: “As mulheres, consideradas por muitos intelectuais e homens de ciência daquela época detentoras de uma personalidade frágil, estavam proibidas de ler essas narrativas. Temia-se, em particular, que jovens donzelas suscetíveis às fantasias e às ilusões trazidas por essas histórias mergulhassem em devaneios solitários ou, em segredo, experimentassem com as amigas as descobertas do amor, deixando de lado os ideais do recato, do casamento e da vida em família. Não por acaso, uma parte considerável desses romances estampava, em seus títulos, nomes de jovens meninas inebriadas pelos deleites de sua sexualidade, como ocorre em ‘Os prazeres de Rosália’, ‘Suzana e suas proezas!’, ‘Julia de Milo, perfil de uma mulher desonesta’, (...) ‘Gabriela ou a cortesã dos tempos coloniais’.” Para todo carioca curioso com a história da cidade, “Vida divertida” é leitura obrigatória. E divertidíssima. E ainda prova que as pessoas podiam ser muito felizes antes do surgimento dos celulares. l 1 2 3 _ ENTRO DE FÉRIAS em novembro. Este nosso espaço, que passa a ser semanal, publicado apenas aos sábados, será ocupado pelo querido Aydano André Motta, profundo conhecedor do Rio (e do mundo do samba) e um dos melhores textos do jornalismo carioca. Vocês ficam em boa companhia. _ Quarta-feira 30.10.2013 Na Freguesia, casas dão lugar a condomínios no estilo Barra Valorização do bairro leva moradores a apostarem em outros negócios CUSTÓDIO COIMBRA FÁBIO VASCONCELLOS, FLÁVIO TABAK, NATANAEL DAMASCENO E PAULO THIAGO DE MELLO [email protected] Era fim dos anos 90 quando começaram as mudanças. Casamentos, projetos pessoais, viagens. Com o tempo, a casa, que antes era adequada para um casal e três filhos, ficou grande demais para o aposentado Aguinaldo Augusto Nunes, de 79 anos, e sua mulher. E vieram as propostas — muitas — de compra do imóvel. Localizada na Estrada dos Três Rios, uma área privilegiada na Freguesia, em Jacarepaguá, a residência da família ocupava uma área de alto interesse dos construtores. Sem disposição de arcar com as despesas de manutenção da casa, pois o custo de vida só aumentava, Augusto decidiu vendê-la no fim de 2010. Os dois vizinhos, proprietários dos imóveis do lado esquerdo e direito, fizeram o mesmo que o aposentado: — Com o dinheiro do negócio, comprei um apartamento aqui no bairro, porque não queria sair daqui — conta. O MODELO BARRA A área das três residências, com 1,8 mil metros quadrados, dará lugar em breve a um luxuoso condomínio fechado, com toda infraestrutura de serviço e lazer comum em imóveis da vizinha Barra da Tijuca. Esse estilo de moradia virou uma febre na Freguesia e levou o bairro a ocupar a terceira posição no número de novos empreendimentos no ano passado (21), perdendo apenas para o Recreio dos Bandeirantes (30). E são muitas as transformações no bairro. Em dez anos, a Freguesia teve uma variação da renda per capita de 33%, acima da média registrada no Rio, que foi de 23%. Além disso, houve um aumento de 47% no número de apartamentos, que passou de 8.736 para 12.838. O número de casas seguiu tendência contrária: caiu 3%. — A Freguesia é bairro central, um lugar que concentra redes de infraestrutura como Hoje na web oglobo.com.br/rio l GLOSSÁRIO: A mudança da cidade em novas palavras. Oportunidade. Gilberto Castro em seu hostel no Anil: “Estou com todos os quartos lotados até a Copa do Mundo” saneamento, água, transporte e mercado de trabalho. Tem acesso. Os BRTs vão passar por lá. Além disso, fica perto do mercado do trabalho. Desde abril, no entanto, a prefeitura congelou novas construções, até que seja feita uma nova legislação para o local. Mas o que foi autorizado está sendo construído — explica David Cardeman, consultor técnico da Ademi. As mudanças transformaram o comércio da Freguesia e adjacentes. Ex-proprietário de uma casa com lote de 4 mil metros quadrados na Estrada dos Três Rios, Gilberto Castro, 69 anos, é exemplo de como o fenômeno da gentrificação vem acontecendo no bairro. Como os vizinhos de Castro eram procurados dia sim, outro também, pelos empreendedores, ele decidiu vender o seu imóvel em 2005. Com o dinheiro, mudou-se para o Anil, próximo à Freguesia, e lá, abriu um hostel que já recebe turistas de todo o mundo: l VÍDEOS: Novos moradores em Guaratiba e Freguesia. l GENTRIFICAÇÃO, UM FENÔMENO GLOBAL: Vídeo explicativo sobre o 2 534-4333 classificadosdorio.com.br — A Freguesia está se transformando muito, e vi que essa poderia ser uma oportunidade de ficar próximo ao bairro e ter uma fonte de renda. Estou com todos os quartos lotados até a Copa do Mundo. A procura tem sido muito boa. Recebo gente da Europa, dos Estados Unidos e do Brasil também — revela. É fácil encontrar empreendimentos em construção ou recém-inaugurados na Freguesia. Eles estão por toda parte. Num trecho de 900 metros das ruas Araguaia e Joaquim Pinheiro, próximas à Estrada dos Três Rios, é possível localizar 14 novos prédios, entregues ou em fase de obras. Todos com o mesmo perfil. Com quatro e cinco andares, serviços, lazer, como quadras de esportes, espaço gourmet, espaço zen, piscinas, saunas, churrasqueiras e cinema. Segundo as imobiliárias, a maioria dos novos compradores vem da Freguesia e de bairros próximos. São conceito e os indicadores do processo de mudança no mundo. l FOTOGALERIA: As imagens do passado e as recentes mudanças na bucólica região de Guaratiba. pessoas que tiveram melhora na renda e decidiram trocar de residência. O empresário Marcelo Silveira Lemos, 42 anos, faz parte dessa história. Solteiro e sem filhos, ele comprou um duplex na Estrada dos Três Rios. A localização e os serviços do “Full Confort Residence” o atraíram. Lemos era morador de Campinho, na Zona Norte, e, todos os dias, tinha que se deslocar para Vila Isabel, onde tem uma empresa. Há um ano mudou para um casa em Jacarepaguá. — Queria um apartamento com conforto, que tivesse esses serviços, especialmente para alguém que é solteiro. l BB CIDADE EM TRANSE DOMINGO: A valorização na Cruzada São Sebastião SEGUNDA: Botafogo perde casas e atrai novos moradores ONTEM: Investimentos públicos na Zona Portuária em Madureira Correção Diferentemente do que foi publicado na edição de ontem, na página 9, a foto aérea não é da Zona Portuária, e sim de bairros do subúrbio do Rio. l l Rio l Quarta-feira 30.10.2013 O GLOBO l 11 Cidade em transe CUSTODIO COIMBRA Guaratiba entra no mapa da gentrificação Proporção de moradores com ensino superior subiu 167% em dez anos, acima da média do Rio, de 121% FÁBIO VASCONCELLOS, FLÁVIO TABAK, NATANAEL DAMASCENO E PAULO THIAGO DE MELLO [email protected] Os conturbados dias da Jornada Mundial da Juventude, com o cancelamento da missa do Papa Francisco, representam, talvez, o grande momento histórico de Guaratiba. Há três meses, os bairros da região entraram no mapa imaginário de cariocas e visitantes, que não reparavam na existência de uma área tão grande, verde e distante do centro urbano. Um ano antes, outro fato histórico: luz no fim do túnel, e o tempo gasto no trânsito da Serra da Grota Funda desaparece na via aberta dentro da rocha, por onde carros e ônibus BRT passam a 80 km/h. Assim, mais perto de tudo e conhecida, Guaratiba e seus bairros adjacentes já apresentam sinais de gentrificação ali e em áreas próximas, como a Freguesia. Entre 2000 e 2010, segundo o Censo do IBGE, subiu em 167% a proporção de moradores com ensino superior na região, quando a variação média do Rio foi de 121%. Ainda é baixa, 3% do total, mas sinaliza que o caminho mudou. O fenômeno é dife- rente do crescimento desordenado, marca da Zona Oeste. Bairros vizinhos, como Recreio e Barra, se valorizaram mais rapidamente, e o caminho do Túnel da Grota Funda é cada vez mais um destino de pessoas da velha ou nova classe média atingidas pela maré cheia, e salgada, do mercado imobiliário. PERDA DE CASAS A francesa Gwenaelle Neveu, de 28 anos é uma das representantes do novo perfil de morador que chega espontaneamente. Ela queria viver no Brasil e conseguiu emprego numa pousada de luxo com spa em Barra de Guaratiba. As diárias vão de R$ 396 a R$ 671. Formada em Marketing, Comercialização e Gestão em seu país, Gwenaelle, há dois anos no bairro, percebe as mudanças: — Percebo os preços dos imóveis mais caros. Conheço outros europeus que estão comprando casas por aqui. Acho que isso aconteceu graças ao túnel. Enquanto Guaratiba, o maior bairro, viu o número de casas subir 36% (fruto, em parte, de construções irregulares), Barra e Pedra de Guaratiba, menores, registram queda desse tipo de imóvel (-17% e -3,5% respectivamente). E os apartamentos dobraram ou mais que dobraram nos três locais em dez anos. Ainda são poucos, mas a vida no sítio ganhou um forte concorrente. Áreas de Pedra de Guaratiba, que ainda abrigam sítios bem ajardinados, recebem visitas de britadeiras, caminhões com material de construção e emissários de empreiteiras com ofertas tentadoras. É o caso da Estrada do Catruz, com condomínios de centenas de apartamentos em obras e com recursos do Minha Casa Minha Vida, do governo federal. — Moro nesse sítio da Estrada do Catruz há 30 anos e agora apareceram as ofertas. Já recebi quatro. Mas espero valorizar mais — conta o artista plástico Túlio Corrêa, de 59 anos, que vive num sítio de 4 mil metros quadrados. ESTUDOS PARA NOVO PEU A população explodiu: apenas em Guaratiba, chegaram novos 22.917 moradores em dez anos. Já são mais de 110 mil pessoas. Tanto que, depois do fiasco do encharcado Campus Fidei, a prefeitura decidiu, em agosto, congelar por seis meses todas as licenças de obras em análise ou já concedidas para os bairros. Será feito um estudo Rural e urbano. Carroça puxada a cavalo passa por conjunto do Minha Casa Minha Vida, em Pedra de Guaratiba urbanístico, com o auxílio do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), para a elaboração de um Plano de Estrutura Urbana (PEU). Foi nesse contexto que o pizzaiolo Francisco Cunha Matias, de 23 anos, chegou ao bairro. Ele mora, desde 2012, num condomínio de seis prédios de cinco andares. O empreendimento chama a atenção na Estrada da Matriz. Enquanto cavalos ainda passam por lá, o terreno com grama aparada, piscina e portão eletrônico atrai olhares. Matias morava na Rocinha e trabalhava num restaurante do Fashion Mall. Depois decidiu se mudar, com a mulher e um filho, para a Ilha da Gigoia, na Barra. Mas os ares da gentrificação chegaram por lá: — Pagava R$ 450 por um quarto e sala na Gigoia. Quando saí, a proprietária já queria R$ 850. Assim que abriram o túnel, pensei: a Pedra vai valorizar para caramba, e a parcela do Minha Casa Minha Vida era a mesma do aluguel. Em 15 dias, valorizou R$ 15 mil. Comprei meu apartamento dois quartos por R$ 90 mil — conta Matias. Ele abriu uma pizzaria n bairro, a Matias Mix, e sabe que apartamentos no prédio em que mora já são vendidos a R$ 120 mil. Por outro lado, o presidente do IAB, Sérgio Magalhães, critica a forma como o Minha Casa Minha Vida induz mudanças entre bairros, como é o caso do pizzaiolo: — Nessa associação entre governo e empreiteira, a pessoa só pode aderir, não optar. Não vão obrigados, mas induzidos. Não acho isso razoável. As pessoas é que devem ser protagonistas. A vitalidade urbana está sendo conduzida, não estimulada. Consequências ambientais da chegada de tanta gente nova, porém, assustam pescadores da área. Armando Daltro, de 46 anos, explica: — Sem vínculo, sem raiz, vão preservar o quê? Quando dão descarga no condomínio novo, o esgoto sai direto aqui e prejudica quem sobrevive do pescado. Estamos perdendo nossa identidade. l Na Freguesia, condomínios no estilo Barra da Tijuca, na página 12 12 l O GLOBO l Rio l Terça-feira 29.10.2013 Cidade em transe Madureira: brilha a estrela do subúrbio da Central De 2010 até este ano, valor do metro quadrado subiu 104% para novos empreendimentos CUSTÓDIO COIMBRA Londres Na berlinda, o preço alto dos aluguéis Valorização de áreas londrinas estimulou especulação imobiliária VIVIAN OSWALD Correspondente [email protected] Chance. Domingos Suarez, na frente do painel que mostra a piscina do condomínio em construção em Madureira, onde comprou um apartamento Da janela do seu escritório, num edifício comercial de Madureira, Flávio Henrique da Silva, de 37 anos, acompanha o ritmo das obras do seu futuro apartamento. Em breve, ele deixará de pagar aluguel para morar com a mulher e a filha de apenas 1 ano no primeiro “condomínio-clube” do bairro. O empreendimento promete aos futuros proprietários 20 diferentes tipos de lazer, entre eles até um espaço para minigolf. A história de Flávio sintetiza as mudanças que estão em curso nesse tradicional bairro da Zona Norte do Rio. Nascido em Vila Valqueire, o empresário experimentou uma temporada no Maracanã, mas desistiu porque queria ficar perto da família. A melhora nos negócios permitiu que ele, enfim, concretizasse a compra do seu primeiro apartamento. A história de Flávio tem outro detalhe. As cinco salas ocupadas por sua empresa de tecnologia estão num edifício inaugurado há dois anos. Perto do Madureira Centro Empresarial, que fica em frente ao Parque Madureira, será aberto em breve o Connection Offices Madureira, onde profissionais liberais e empresários devem aportar. Os novos empreendimentos fizeram subir os preços no bairro. Entre 2010 e este ano, segundo a Ademi, o valor do metro quadrado na região passou de R$ 2.734 para R$ 5.590, uma variação de 104%. A construção dos novos prédios coincide com o volume de investimentos do poder público nesse e em outros bairros da Zona Norte. Alguns já foram concluídos ou estão em fase de expansão, como é o caso do Parque Madureira. Inaugurada em junho do ano passado, a área de lazer custou cerca de R$ 107 milhões. Em 2016, será inaugurado um novo trecho do parque, que passará de 1,3km de ex- tensão para 5km, chegando até aos bairros de Turiaçu, Oswaldo Cruz, Rocha Miranda, Bento Ribeiro, Honório Gurgel, Marechal Hermes, Coelho Neto e Guadalupe. No total, serão investidos mais R$ 287 milhões no projeto. — O Parque Madureira e os outros investimentos que estão sendo feitos, como o BRT, estão melhorando muito o bairro. Escolhi voltar porque toda a minha família vive na Zona Norte e não me adaptei ao Maracanã. No meu futuro apartamento, terei a oportunidade de estar a apenas sete minutos do meu escritório — conta Silva. A LENTA TRANSFORMAÇÃO O BRT Transcarioca, que cortará vários bairros da Zona Norte, terá no total 39km de extensão. O projeto tem como objetivo melhorar o acesso a esses bairros. Em Madureira, as obras se concentram na Avenida Ministro Edgard Romero, onde em breve será inaugurado também um condomínio fechado, com toda a infraestrutura de serviço e lazer para os moradores. É para lá que Domingos Suarez, de 37 anos, pretende se mudar. Ele confessa que nunca pensou em morar em Madureira, mas as condições oferecidas pela imobiliária e a localização do prédio foram decisivas: — O bairro já tem todos os serviços, e acho que o BRT e o Parque Madureira vão dar um novo ar ao local. Para mim será ótimo. A minha mulher, que usa transporte público, terá o BRT na porta do nosso futuro apartamento. Em dez anos, segundo o Censo, Madureira perdeu 1.876 casas, uma queda de 19% no total, mas não ganhou apartamentos na mesma proporção. A variação foi de apenas 2% entre 2000 e 2010, tendência, contudo, que pode ter se acelerado nos úl- timos três anos. Fabiana Izaga, arquiteta, professora da UFRJ e vice-presidente do IAB-RJ, não vê ainda um processo clássico de gentrificação em Madureira. Segundo ela, o que está havendo, por enquanto, é um transformação do tecido urbano, com a instalação de novos prédios, incentivada pelos investimentos públicos. Essas mudanças, no entanto, podem alterar, num futuro próximo, o perfil do bairro: — Madureira sempre teve como característica principal a centralidade de um comércio forte. Associada a isso, existe a linha do trem, que ajuda a mobilidade. Quando o poder público decide fazer uma via de transporte como o BRT, numa área que tem uma demanda enorme de usuários, ajuda a acentuar essa característica, o que pode agregar outras mudanças do ponto de vista comercial e residencial. Consultor técnico da Ademi, David Cardeman diz que as transformações no bairro serão intensas nos próximos anos se houver mudanças no Plano de Estruturação Urbana (PEU): — A prefeitura está estudando o PEU de Madureira. Fui à audiência pública, e os moradores estavam ansiosos por esse PEU. Por quê? Eles queriam que mais prédios fossem construídos, para que mais pessoas fossem morar por lá. l -LONDRES- Quase meio século depois de a socióloga britânica Ruth Glass cunhar o termo “gentrificação” para explicar a ocupação dos bairros pobres de Londres pela classe média, não há sinal que indique que a expressão sairá de moda num futuro próximo. Metade dos londrinos acha que terá de deixar a capital em função da especulação imobiliária. E nove entre dez deles creem que é mais difícil comprar ou alugar na cidade hoje do que no tempo dos seus pais, segundo pesquisa do instituto Ipsos Mori no começo deste ano. Se os investimentos bilionários para a realização das Olimpíadas de 2012 jogaram os holofotes sobre a Zona Leste, também deixaram em evidência, no mapa da cidade, o eixo Hackney Wick-Ilha Fish-Stratford, uma espécie de segredo que o mundo artístico vinha tentando guardar. É a maior concentração de artistas por metro quadrado da Europa. A estatística é repetida pela maior parte dos dois mil pintores, escultores, roteiristas de cinema, entre outros, que, nos últimos cinco anos, chegaram ali de mala e cuia. Atrás de aluguéis mais baratos e espaço, ocuparam como puderam velhos armazéns do início do século XX. O lugar tornou-se polo de artes, que atrai não apenas jovens iniciantes, como também nomes estabelecidos e estrangeiros. Galerias de arte se instalaram nos prédios de aspecto délabré da região, dividindo os quarteirões com oficinas mecânicas, portões de metal com arame farpado, latões de lixo e entulhos. Tudo isso numa atmosfera industrial de antigas chaminés e paredes de tijolinho escuro, enfeitadas por belos exemplares da street art. Aos poucos, eles próprios, que tanto se queixam da especulação, vão deslocando a comunidade empobrecida e diversa (onde se falam pelo menos 140 idiomas), que, diante da chegada das novas tribos e da badalação, já não tem mais como ficar. O movimento não deixa de expor certa tensão social entre velhos e novos moradores, numa parte da cidade que já foi uma das mais pobres do país. NOVA VIZINHANÇA À beira de um canal, com vista para o gigantesco estádio construído no Parque Olímpico, o empreendimento mais caro dos Jogos de Londres, a galeria Stour Space ganhou fama desde que se instalou ali há três anos. Ocupa um dos antigos armazéns, esteve prestes a ser despejada pela especulação imobiliária pós-olímpica e, agora, com a ajuda de artistas e da comunidade, está de olho nos três prédios vizinhos, que hoje abrigam nada menos que 144 estúdios. A Foreman & Sons, mais antiga fábrica de peixes defumados da capital, foi obrigada a deixar a área onde aconteceram as Olimpíadas. Mas já garantiu seu novo endereço também à beira do canal, onde ainda instalou seu restaurante e a imensa galeria de arte. l VIVIAN OSWALD BB CIDADE EM TRANSE No canal. Na galeria de arte Stour Space, londrinos aproveitam o brunch aos domingos, numa área que já foi uma das mais pobres da cidade DOMINGO: Valorização da Cruzada ONTEM: Botafogo perde casas AMANHÃ: O modelo condomínio U Retirada de pessoas A VISÃO DE: Raquel Rolnik, relatora especial da ONU para o direito à moradia adequada e professora da A VISÃO DE: Eduardo Paes, prefeito do Rio Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP TRANSTORNO PARA UNS, BENEFÍCIO PARA A MAIORIA Não dá para fazer investimentos em mobilidade urbana sem desapropriações, especialmente em antigos bairros, onde as ruas são estreitas e há um adensamento dos espaços. Apesar disso, nós fugimos o quanto pudemos das desapropriações. A prefeitura optou por traçados dos BRTs nas zonas Norte e Oeste que tivessem o menor impacto possível, que levassem ao menor número de retirada de imóveis. Essa foi uma escolha não apenas para reduzir os custos do projeto, já que teríamos menos indenizações, mas também para impactar menos a vida dos moradores. É preciso lembrar que esses investimentos em mobilidade urbana e lazer, como foi no Parque Madureira, onde também foi preciso fazer cerca de 500 desapropriações, são fundamentais para essas áreas da cidade. São obras que estão fazendo com que os bairros voltem a ser atraentes como moradia. Embora causem impacto na vida de quem teve que deixar a sua casa, os benefícios para o bairro como um todo são visíveis. É Hoje na web oglobo.com.br/rio A mudança da cidade em novas palavras. l GLOSSÁRIO: Novos moradores no Centro e em Madureira. l VÍDEOS: importante lembrar também que muitos moradores que indenizamos compraram imóveis lá mesmo porque preferiram permanecer no bairro, que está recebendo as melhorias. No Centro, também evitamos ao máximo as desapropriações de residências. Estamos trabalhando na legislação para incentivar a construções de moradias nessa área e, paralelo a isso, vamos fazer duas mil casas, dentro do Projeto Minha Casa, Minha Vida. Tudo para manter os moradores no Centro. l GENTRIFICAÇÃO, UM FENÔMENO GLOBAL: Vídeo explicativo sobre o conceito e os indicadores do processo de mudança nas cidades do Brasil e do mundo. DEBATE SOBRE MUDANÇA E COMPENSAÇÃO NÃO OCORREU O direito à moradia tal como estabelecido nos tratados internacionais do qual o Brasil é signatário estabelece claramente como devem ser implementados projetos que envolvam remoções, em suas varias etapas, já que remoções são sempre momentos com potencial de envolver violações de direitos. Em primeiro lugar, é necessário discutir publicamente o projeto, especialmente com as pessoas diretamente afetadas. Ou seja, a pergunta é: essa obra é realmente necessária? Este é seu l FOTOGALERIA: Madureira, o antigo bairro do subúrbio da Central passa por mudanças e atrai moradores. melhor desenho? Que medidas devem ser tomadas para minimizar o impacto do número de famílias ou casas a serem removidas? Este debate público simplesmente não ocorreu com as comunidades afetadas, em nenhum dos planos atuais da prefeitura do Rio em relação aos BRTs e nem em relação à Zona Portuária. Os projetos não foram debatidos publicamente com ninguém. Segunda questão: o destino das pessoas. Se as remoções forem inevitáveis, para onde devem ser removidos ou que l NO GOOGLE+: google.com/ +JornalOGlobo Acompanhe O GLOBO no Google Plus tipo de compensações financeiras devem receber? Neste caso, o marco internacional dos direitos humanos do direito à moradia estabelece que a situação dos afetados nunca pode piorar. E isso significa não apenas a piora em relação à casa em si, mas principalmente em relação à localização. Portanto, são particularmente preocupantes as remoções feitas para localizações a 30km, 40km dos lugares originais de moradia, onde evidentemente as condições urbanas gerais são claramente piores. l FOTOGALERIA: A região do Centro e da Zona Portuária em imagens que mostram a profunda transformação da paisagem. Terça-feira 29 .10.2013 O GLOBO Rio l 9 Cidade em transe A mão do governo Poder público também estimula gentrificação: de obras viárias a políticas de segurança CUSTÓDIO COIMBRA FÁBIO VASCONCELLOS, FLÁVIO TABAK, NATANAEL DAMASCENO E PAULO THIAGO DE MELLO [email protected] O fenômeno da gentrificação pode ser espontâneo, causado pela oscilação na renda dos moradores, mas muitas vezes ocorre como reflexo de ações públicas. Um novo sistema viário, um parque onde havia um terreno baldio, uma obra gigante de saneamento, fenômenos recentes em alguns bairros da Zona Norte e do Centro. A ampliação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) também é considerada uma medida com impacto na dinâmica de ocupação dessas áreas. No Centro, por exemplo, o valor arrecadado com o Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) cresceu 555% entre 2005 e 2012, saltando de R$ 9,2 milhões para R$ 60,5 milhões, turbinado pela implantação do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), os estímulos para construção na Cidade Nova e pelo projeto do Porto Maravilha. A variação indica o grau de interesse do mercado imobiliário por essa região. Na Zona Norte, vários bairros são beneficiados pelo projeto do BRT Transcarioca, que está sendo implantado e vai ligar a Barra à Ilha do Governador. Ao todo, o investimento será de R$ 1,5 bilhão. Madureira está no percurso do BRT e já foi beneficiada também com a construção do Parque Madureira, com mais de 90 mil metros quadrados. Foram R$ 107 milhões no projeto, que está sendo ampliado para atender a mais bairros. — A gentrificação, nessas áreas, será fruto direto da ação do poder público. No Centro, na Cidade Nova, em São Cristóvão e em todo o entorno do Porto haverá muitas possibilidades em função da demanda. Madureira ganhou o parque, o BRT e a criação de um novo Plano de Estruturação Urbana — diz o presidente da Ademi, João Paulo Rio Tinto de Matos. Para Pedro DeLamare, presidente do Sindicado dos Bares e Restaurantes do Rio, a mudança é sinônimo de oportunidades para os empresários. Ele, que abriu uma filial de seu restaurante no entorno do centro administrativo da prefeitura, na Cidade Nova, diz que a revitalização cria um círculo virtuoso. Mas há quem reclame que os investimentos têm um custo: o do deslocamento de moradores para outras regiões para dar lugar a avenidas e vias. Se, por um lado, há quem defenda que as remoções devam ser debatidas e evitadas ao máximo, como diz Raquel Rolnik, relatora especial da ONU, por outro o prefeito Eduardo Paes afirma que “não dá para fazer investimentos em mobilidade urbana sem desapropriações, especialmente em antigos bairros, onde as ruas são estreitas e há um adensamento dos espaços”. l A nova Madureira, na página 12 Novo Porto. O anúncio de R$ 8 bilhões em investimentos na área durante 15 anos já atrai empresários e novos moradores, que percebem o potencial da região no Centro Porto, o destino de quem aposta no futuro Valorização atrai investidores do mercado imobiliário, donos de restaurantes e novos moradores Patrick Fontaine conhece bem os efeitos da gentrificação. Ex-morador de Botafogo, saiu do bairro fugindo do aumento do preço dos aluguéis. Antes disso, durante uma temporada de estudos em Paris, viu como o fenômeno modificou em pouco tempo o bairro onde morou, ocupado originalmente por descendentes de imigrantes judeus e árabes. Atento às mudanças, resolveu, ao menos uma vez, se beneficiar do processo e, há um ano, se instalou na Zona Portuária, que segundo estimativa da Companhia de Desenvolvimento Urbano do Porto (Cdurp), deve receber R$ 8 bilhões em obras e serviços ao longo de 15 anos. — Com a valorização do mercado imobiliário em Botafogo, não ia conseguir sobreviver ali. Como já tinha um grande interesse no Porto, cheguei ao Morro da Conceição — diz Patrick, que se estabeleceu em um apartamento num sobrado de três andares, construído na década de 50. — Optei pelo que me parece lógico. Embora o mercado valorize mais os bairros da Zona Sul, como o Leblon, na minha opinião, aquela é a franja da cidade e não o seu centro. A poucos metros do apartamento de Fontaine, a Rua Camerino, esquecida durante muito tempo, apresenta sinais de que está sendo modificada pelo processo. Assim como a primeira fase de obras do Porto Maravilha, em que se reformaram calçadas e mobiliário urbano de trechos da via, a presença de empresários como o carioca Ronnie Arosa é parte importante do processo. Ele deixou a Espanha, onde trabalhava como consultor de projetos de desenvolvimento, para ajudar o pai, Manolo Arosa, de 69 anos, na reconstrução de antigos motéis. Eles têm benefícios fiscais do Comitê de Acomodações da prefeitura para os Jogos Olímpicos de 2016. — Percebemos o potencial dessa região, que tem poucos hotéis, apesar da procura. Na Espanha e Itália, por exemplo, centros de grandes cidades são cheios de opções de hospedagem. Aqui no Rio é o contrário — conta Arosa, que nota as mudanças na Camerino desde 2011. — Vi surgirem um restaurante de comida asiática, lanchonete, salão de beleza e uma loja que emoldura quadros. Patrick Fontaine, por sua vez, se mostra preocupado com o destino dos moradores antigos, que compõem a identidade local. Em sua opinião, o poder público deveria investir em políticas inclusivas que garantissem o direito à moradia dos trabalhadores de baixa renda que já ocupa- vam a região antes do anúncio do projeto. — Tem gente comprando imóveis, deixando fechado à espera da valorização. O poder público deveria garantir moradias de interesse social, evitando os efeitos negativos da gentrificação. O sociólogo Alberto Gomes, presidente da Cdurp, diz que já localizou 500 famílias em cortiços e imóveis abandonados. E que tem em seus planos a construção de 2.200 habitações de interesse social na região para absorver esses e outros moradores de baixa renda que desejarem continuar no local: — Isso não evitará a saída de moradores antigos. As pessoas não moram onde querem, moram onde podem. O problema maior não é a questão da valorização do imóvel. A maior parte da população aqui é de proprietários. Mas, da mesma forma que o poder público não pode obrigar ninguém a sair de onde está, a não ser por motivos de segurança, também não pode obrigar a ficar. As pessoas vão fazer suas escolhas. Para ele, é preciso preservar a identidade do local. Alberto diz que tem trabalhado na discussão de políticas fiscais, como desconto do IPTU, para quem permanecer nos morros da Conceição e Providência, e o aumento do ITBI para quem comprar. l 12 l O GLOBO l Rio l Segunda-feira 28.10.2013 Cidade em transe EDUARDO MAIA/15-8-2013 Renovação. Harlem é uma das áreas de Manhattan sob gentrificação. O processo cresceu na gestão de Bloomberg Nova York A intensa mudança na ‘Grande Maçã’ Harlem, Brooklyn e Queens vivem rápidas transformações ISABEL DE LUCA correspondente [email protected] -NOVA YORK- Como quase tudo o que se refere à No- va York recente, basta recorrer ao seriado “Sex and the city”: quando uma das quatro protagonistas se mudou para o Meatpacking District, o submundo da cidade convergia ali. Treze anos depois, o Meatpacking é um bairro repleto de lojas de grife, restaurantes caros e hotéis badalados. A gentrificação é cada vez mais ágil em transformar a cidade — hoje, com a chamada parte central de Manhattan (do sul da ilha até a Rua 96) saturada, as áreas que mudam com mais rapidez são o Harlem central e algumas regiões do Brooklyn e do Queens. — Tem sido ainda mais rápido desde 2005. Quando o prefeito Michael Bloomberg foi eleito, em 2002, ele trouxe uma série de políticas focadas na qualidade de vida das classes média e médiaalta, então a cidade se tornou um destino para essas classes. É um novo ambiente, e o ambiente político certamente tem a ver com isso — diz Stacey Sutton, professora da escola de pós-graduação em Arquitetura da Universidade de Columbia. Em Clinton Hill e Fort Greene, atualmente bairros de família no Brooklyn, a população branca aumentou 30% entre 2000 e 2010, enquanto a negra diminiu 29% — a maior mudança, segundo Stacey, aconteceu na segunda metade da década. Outra visível transformação ocorreu em Williamsburg, também no Brooklyn, atualmente o ponto dos jovens descolados de Nova York (muito embora Bushwick, um pouco mais a leste, esteja virando o destino hipster da vez). Enquanto isso, no Harlem central, os brancos não param de chegar. — A proporção ainda é pequena, mas há dez anos quase não havia brancos no Harlem, então se trata, sim, de uma transformação dramática. Há muitas mudanças em curso na cidade e elas estão todas conectadas. As pessoas saem do Hoje na web oglobo.com.br/rio l GLOSSÁRIO: A mudança da cidade em novas palavras. l ESPECIALISTA: A socióloga Sharon Zukin analisa fenômeno. Centro Manhattan em busca de aluguéis acessíveis. E elas acabam em bairros bem-servidos de transporte público e ainda próximas ao Centro, vide o que está acontecendo no Harlem, no norte e no centro do Brooklyn, no Queens. As áreas mais gentrificadas são as mais próximas à cidade, é um padrão que segue uma trajetória lógica — aponta Stacey. Ela acrescenta que, mesmo no Bronx, na região de University Heights, a população branca vem crescendo, apesar de, diferentemente do que ocorre em outros locais em franca transformação, a renda média continuar baixa: se em 2000 havia 1% de brancos, hoje eles são 9%: — O problema é que tinha gente morando nesses lugares, e não existe uma estratégia para habitar essas áreas. Se essas pessoas decidem sair, também não há planejamento sobre para onde podem ir, porque tudo está ficando cada vez mais caro. Um dos focos do estudo de Stacey é a gentrificação comercial. Em 2005, no início do processo de transformação de Fort Greene and Clinton Hill, ela entrevistou cerca de 60 donos de pequenos negócios, para entender o que os motivou a ocupar a região e as pressões a deslocá-los: — Quando voltei a campo, entre 2009 e 2010, 75% dos empreendedores que tinha entrevistado, negros na maioria, não estavam mais lá. Não é só que os novos moradores estejam pedindo mais restaurantes e cafés: os empresários estão procurando lugares para investir. Se há uma área em processo de gentrificação, eles se instalam nela, e os pequenos negócios são forçados a sair. PAULO THIAGO DE MELLO Bobolândia. Em Paris, novos moradores transformam o perfil de bairros proletários e os redutos de imigrantes Paris Novo tipo social altera perfil da Cidade Luz ‘Bobôs’ chegam em bairros populares com outro estilo de vida FERNANDO EICHENBERG Correspondente [email protected] Paris possui apenas 105 quilômetros quadrados de superfície. Nenhum ponto da cidade dista mais de cinco quilômetros de Notre-Dame, localizada no centro. Em seu espaço urbano, no entanto, o mosaico social antes existente tende a se uniformizar, apontam os dois sociólogos. A valorização do preço do metro quadrado e dos aluguéis nas áreas mais centrais da cidade fez com que os “bobôs” procurassem imóveis em bairros de características mais populares, em que o custo da moradia era mais acessível, como Oberkampf, Bastilha, o canal de Saint Martin e seus arredores. Os novos moradores levaram junto comércio, restaurantes, bares e um outro estilo de vida, bem diferente do existente. — Bairros “bobôs” são simpáticos, muito animados, plenos de convivialidade, mas o nosso olhar sociológico visa a analisar as relações sociais nesse processo. E houve um nivelamento de locais que antes eram bastante coletivos e com uma maior mistura de camadas sociais — diz Monique. DIVERSIDADE AMEAÇADA Segundo os dados alinhavados pelos pesquisadores, entre 1991 e 2007 os preços imobiliários aumentaram em média 103% em Paris. No antes mais popular 11º distrito, o aumento registrado foi superior, de 120%, em parte devido à chegada de moradores com maior poder aquisitivo. A composição social também variou. Entre 1954 e 1999, a porcentagem de trabalhadores no conjunto da população ativa residente em Paris diminuiu de 65% para 35%; e o índice de profissionais liberais e de quadros superiores aumentou na mesma proporção. No bairro de Saint-Germain-des-Près, celebrado no século passado por sua efervescência artística e intelectual — dos debates filosóficos de Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e outros ativos pensadores assentados nas mesas do Café de Flore ou do Deux Magots às criações literárias e musicais de nomes como Boris Vian, Jacques Prevèrt e Juliette Gréco —, a transformação ocorrida, na análise dos sociólogos, ganhou outros contornos. — O mundo dos negócios e das finanças, mais comum à “Rive droite” (parte norte de Paris), atravessou o Rio Sena e invadiu a “Rive gauche” (sul). Saint-Germain-des-Près adotou uma nova alma. Sartre foi destronado por Dior — afirma a socióloga. Na “terra de exôdos”, a Rua Goutte-d’Or, chamada de “rua das imigrações”, destaca-se como um exemplo das diferentes sedimentações arquitetônicas e sociológicas do local. Na segunda metade do século XIX, com a reforma urbana promovida pelo barão Haussmann, a área acolheu trabalhadores franceses e de outras nacionalidades, em habitações baratas. No século XX, o fluxo de imigrantes continuou, com belgas, poloneses e magrebinos, argelinos em sua maioria, fazendo da Goutte-d’Or um símbolo da África do Norte. No fim dos anos 1980, ocorreu uma nova leva de imigrantes, com a chegada de ganenses e cingaleses. Definido pela socióloga como um local de diversidade social e étnica, eles temem que o bairro perca suas características: — Ainda resta a Goutte-d’Or em Paris, mas sou pessimista, não sei quanto tempo vai durar. l ESTÍMULO A GRANDES EMPRESAS Muitos livros se dedicam às origens do processo de gentrificação na cidade, nos anos 1970. Para uns, começou no Lower East Side; para outros, SoHo. O Lower East era predominantemente uma área de posseiros brancos de baixa renda que ocuparam espaços subutilizados, e, quando a cidade os quis de volta, houve conflitos. Já o SoHo foi eleito por artistas, que viram em seus lofts industriais, também subutilizados, um lugar para viver e trabalhar. — Diferentemente do que aconteceu no Lower East Side, os artistas foram incentivados pelo governo a ficar no SoHo — nota Stacey. Sobre todas as outras, a administração Bloomberg — que deixa a prefeitura no fim do ano, após 12 anos no poder (as eleições são em 5 de novembro) — foi prolífica em desenvolvimento urbano. Milhares de quadras foram rezoneadas para dar espaço a novas construções. — Certas políticas públicas exacerbam a gentrificação de forma explícita. Qualquer política de criar espaços para a classe média alta, mudando leis de preservação e códigos de construção, exacerba a gentrificação. E o Bloomberg incentivou mais do que nenhum outro prefeito o estabelecimento de grandes empresas na cidade, mudando o mercado — diz ela. Nova York, alerta Stacey, vem tomando o caminho da homogeneidade: — Bairros têm que mudar, isso é natural. O fenômeno que faz uma cidade ser vibrante é ela mudar constantemente. Mas as cidades devem ser cuidadosas em termos de contrabalançar a mudança, e levar em conta sobre quem os benefícios e os fardos caem. Porque parte da vibração de uma cidade vem da sua diversidade. Quando ela perde isso, torna-se menos interessante. Quando tudo começa a ficar com a mesma cara, Nova York perde a sua identidade. l -PARIS- Com 29 milhões de visitantes anuais (mais de 12 vezes a sua população intramuros), a Cidade Luz esbanja vitalidade turística e mantém sua atratividade e reputação internacionais. Mas numa análise sociológica, a capital francesa estaria correndo risco de perder uma de suas maiores riquezas: sua diversidade social. Esta pelo menos é a tese dos sociólogos Monique Pinçon-Charlot e Michel Pinçon — autores de “Sociologia de Paris” (ed. La Découverte) e “Paris: Quinze passeios sociólogicos” (Petite Bibliothèque Payot) —, que alertam para a veloz transformação do perfil social da cidade, provocada pelos altos preços imobiliários e dos aluguéis e pela falta de construção de habitações sociais prevista em lei, com o consequente deslocamento urbano da população de baixa renda. Os pesquisadores colocam Paris como vítima de um processo que também atinge outras cidades: a gentrificação. Na capital francesa, ganhou força nos últimos anos, uma ideia similar, chamada de “bobotização”, numa referência aos chamados “bobôs”, contração de bourgeois-bohème (burguês-boêmio). Trata-se de uma expressão criada pelo jornalista americano David Brooks para se referir a um tipo social que uniria dois arquétipos historicamente antagônicos: o burguês e o boêmio. Em Paris, o “bobô” é o agente da gentrificação. Para Monique PinçonCharlot, a “bobotização” configura uma violência simbólica e subjetiva, mas também real e objetiva contra as classes mais populares, que aos poucos se veem excluídas de Paris: — Em 1962, havia 576 mil empregos industriais em Paris, e hoje há 68 mil. A forte desindustrialização beneficiou a gentrificação. A classe baixa vai para a periferia ou para zonas rurais reurbanizadas, e os “bobôs” se apropriam dos espaços públicos. BB CIDADE EM TRANSE ONTEM: Alta valorização de imóveis na Cruzada. AMANHÃ: Investimentos públicos aceleram mudança. l GENTRIFICAÇÃO, UM l BOTAFOGO: l NO l FOTOGALERIA: FENÔMENO GLOBAL: Em vídeo, as mudanças e conflitos de velhos e novos moradores. GOOGLE+: google.com/ +JornalOGlobo Imagens sobre as mudanças em Botafogo, de bairro de passagem a local com alta valorização do metro quadrado. Vídeo explicativo sobre o conceito e os indicadores do processo de mudança nas cidades do Brasil e do mundo. Acompanhe O GLOBO no Google Plus 8 l O GLOBO Segunda-feira 28.10.2013 Rio Cidade em transe Um bairro que perde casas Desde 2000, já desapareceram pelo menos 942 em Botafogo; novos hábitos mudam vida local FOTOS DE CUSTÓDIO COIMBRA TROCANDO DE ROUPA Acima, grupo visita prédio recém-construído, em destaque na foto à direita, uma vista do bairro, com alguns dos condomínios que já mudam o cotidiano: em dez anos, surgiram quase cinco mil novos FÁBIO VASCONCELLOS, FLÁVIO TABAK, NATANAEL DAMASCENO E PAULO THIAGO DE MELLO [email protected] A paulista que mora no prédio novo elogia a praticidade do bairro e a infraestrutura de seu edifício, com espaço gourmet, mas se surpreende ao saber que a região já foi perigosa, o patinho feio da Zona Sul. Perto dali, o porteiro não consegue decorar os nomes dos novos moradores porque “a maioria só sai de carro”. Já o sócio de um dos restaurantes mais tradicionais da área, o Botequim, mescla sentimentos de frustração e otimismo em busca de outro imóvel para manter o seu negócio. E quem chega faz investimentos significativos (R$ 2 milhões) para transformar um casarão, que abrigou um cortiço e uma lavanderia, numa loja da Livraria Travessa. Botafogo trocou parte de sua população, gentrificou-se, e tem hoje o segundo metro quadrado mais caro do Brasil de novos empreendimentos, a incríveis R$ 13,5 mil. Perdeu, em dez anos, pelo menos 942 casas, 27% do total, segundo dados colhidos dos censos 2000 e 2010 do IBGE, mas esse número hoje pode ser maior. O bairro ganhou, nesse mesmo período, 4.917 apartamentos (alta de 19%), abrigados em prédios batizados pelas construtoras com nomes que sugerem exclusividade, autossuficiência e segurança. E ainda viu subir em 15% o número de pessoas que vivem no bairro há menos de cinco anos: eram mais de oito mil em 2010 (10%), um dos índices mais altos do Rio. A série “Cidade em transe” mostra hoje os contornos da gentrificação nessa área da Zona Sul batizada no passado de “bairro de passagem”. Sob o efeito das mudanças, o comércio se adapta aos gostos de uma população cuja renda cresceu 43% em dez anos. O livreiro Rui Campos enxergou isso há algum tempo. Ele venceu uma disputa para alugar o casarão na Rua Voluntários da Pátria, que fica perto da nova Rua Nelson Mandela, aberta depois da saída de um canteiro de obras do metrô, e logo ocupada por bares, bancos e serviços. Campos sabe que o bairro concentra, agora, uma quantidade crescente de pessoas do perfil buscado pela Travessa: — Acompanho a evolução do bairro. A classe mais interessante para o livreiro não é a AA, e sim a B e um pouco da A. É quem reconhece a importância do livro. NOSTALGIA EM FORMA DE SAMBA Não muito longe da futura livraria, um senhor de 77 anos chamado Norival Góes, conhecido “por todos” como Seu Vavá, decide cantar um samba. Ele está à vontade no Bar da Dona Adelina, na Rua Rodrigo de Brito, um abrigo afetivo no tão movimentado bairro onde nasceu e cresceu. Nos versos, Botafogo é um bairro onde “já não existe mais espaço pra gente sambar”, e, “quando se encontra um pedaço de chão, surge logo um espigão, querendo expulsar gente de tradição e antiga do lugar”. — Fiz esse samba em 1996, era a época do nascimento dos espigões. Serviu como lembrança da casa do meu pai — conta Vavá, em referência ao Cantinho da Fofoca, uma pensão na mesma rua que depois virou bar, um dos mais famosos pontos de encontro dos antigos moradores e frequentadores de Botafogo, muitos deles ligados ao samba. O atual cantinho de seu Vavá é o Bar da Adelina, um típico, e em extinção, pé-sujo, “porém lavado”, explica a dona. Há violões pendurados nas paredes, cafezinho grátis, santinhos, fotos de família, comida caseira, quadro com oração para purificar o ambiente e um telefone que não para de tocar. Adelina Maria de Sá Nunes, de 58 anos, senta-se à mesa com os fregueses, muitos deles seus amigos. Ela mora na mesma casa da Rua Arnaldo Quintela desde que nasceu. Apesar da valorização e do assédio de empreiteiras, foi uma das únicas moradoras da vila que bateram o pé e não quiseram vender o imóvel. Ela tem sentido os novos ventos: — Meu pai comprou aquela casa com muito sa- ADELINA NUNES Dona de um pé-sujo na Rua Rodrigo de Brito, Adelina é uma das poucas comerciantes que ainda vendem fiado num bairro de comércio cada vez mais impessoal: “Mantenho o cadernão”. Ela sempre morou na mesma casa de uma vila na Rua Arnaldo Quintela e, por ora, não pretende sair, mesmo com propostas de construtoras EDUARDO LABORNE O sócio do Botequim, restaurante tradicional da Rua Visconde de Caravelas, terá que deixar o imóvel em alguns anos. A Casa de Saúde São José comprou três casarões da rua e negocia a data da mudança com seu novo inquilino. Ele busca outro imóvel para reabrir o restaurante no mesmo estilo familiar, de bairro RENATA COAN A psicóloga paulista chegou a Botafogo há três anos. Por mais que ainda se considere turista, ela, que veio de Campinas, elogia a praticidade do bairro e a infraestrutura caprichada do seu prédio, que tem espaço gourmet e playground cheio de ofertas de lazer. NORIVAL GÓES Seu Vavá, antigo morador de Botafogo, é um símbolo da tradição do bairro. Seu pai foi dono de uma pensão que virou bar, o Cantinho da Fofoca, reduto de sambistas. Ele fez um samba contra a chegada de novos prédios no bairro, que afastam, diz a letra,“gente de tradição e antiga do lugar” crifício, e respeito isso. Eu disse não para a construtora, e uma vizinha ficou até aborrecida. Adoro morar ali. Hoje o pessoal que vem para cá é turista, mal te dá bom dia, não interage. Mora num prédio sem conhecer ninguém, a não ser o porteiro. Dona Adelina não imagina que até os porteiros também estranham os novos costumes do bairro. Ailton Sacramento de Jesus, do novíssimo edifício Riservato, na esquina das ruas Mena Barreto e São João Batista, explica: — A maioria dos moradores usa carro e sai pelo portão eletrônico da garagem. Por isso, um porteiro novo tem dificuldade para decorar nomes. Além das mudanças pelas quais o Rio passa, Botafogo tem seus motivos peculiares, com um número considerável de casas que puderam dar espaço a edifícios. Consultor da Ademi, David Cardeman conta que a chegada das construções em bloco tem a ver com a legislação carioca, que concentrou, durante muito tempo, serviços em Botafogo. — Em 1976, o prefeito Marcos Tamoio fez um novo zoneamento da cidade, e a prestação de serviços foi parar em Botafogo, com hospitais, oficinas mecânicas e escolas. Isso gerou um problema porque houve acúmulo. Mas, em 1983, o Plano de Estruturação Urbana de Botafogo (Peu) bloqueou esse uso no bairro. E, com a ausência de terrenos em Ipanema, Leblon e Copacabana, a construção civil foi para lá. RESTAURANTE SAI, HOSPITAL ENTRA Não são apenas novos prédios que chegam. Hospitais também se interessam pelas casas, mesmo que as mantenham de pé. A Casa de Saúde São José, no Humaitá, comprou três no fim da Rua Visconde de Caravelas para se expandir. Numa delas funciona, desde 1979, o restaurante Botequim, conhecido de moradores e frequentadores do bairro. O sócio Eduardo Laborne negocia com seus novos inquilinos e espera permanecer mais alguns anos, mas é certo que precisará buscar outro endereço. O restaurante é um à la carte à moda antiga, que não hesita em trocar ingredientes do prato se o freguês pedir. Na origem, o casarão era a sede de um escritório de arquitetura que tinha vida boêmia depois do expediente. Os donos resolveram, à época, abrir um restaurante, já que os encontros noturnos eram um sucesso. Laborne observa as perdas de Botafogo, mas valoriza os ganhos e vê com naturalidade os novos tempos, mesmo lamentando a futura saída da casa desenhada pelos arquitetos do antigo escritório, que tem até madeira de pinho de riga. — Graças a Deus a negociação é feita de forma elegante e amistosa. Sei que esse estilo do Botequim está em extinção. Mas vou reabrir com a mesma personalidade, o mesmo nome — diz Laborne. — A sensação é de tristeza e frustração. O proprietário tem o direito de vender, a São José de comprar e tudo foi feito como manda a lei. Sou só mais um pequenininho engolido pelos grandes negócios. Já os que chegam, principalmente de outro estado, podem elogiar Botafogo. É o caso da psicóloga Renata Sims Coan, de 44 anos, que é de Campinas e aportou na região há cerca de três anos porque o marido foi transferido para o Rio. Apesar de o filho sonhar morar na Barra “porque tudo é novo”, ela gosta de bairro que é prático para a família. — Mas ouvi falar que cariocas são bairristas, e quem é de Botafogo tem até um rixinha com outros. Para mim, é uma coisa só — opina Renata. Apesar de se dizer desanimada com a “falta de vínculo” de novos moradores com o bairro, Regina Chiaradia, presidente da associação de moradores de Botafogo há 12 anos, exalta a confraternização das pessoas no Baixo Botafogo e no Polo Gastronômico, além da criação de novas praças, fruto de cobranças antigas e dos novos ventos econômicos. l As mudanças em Nova York e Paris na página 12 l Rio l Domingo 27.10.2013 O GLOBO l 23 Cidade em transe FOTOS DE CUSTÓDIO COIMBRA Imóveis na Cruzada se valorizam em até 135% Localização privilegiada de áreas na Zona Sul atrai compradores com maior poder aquisitivo FÁBIO VASCONCELLOS, FLÁVIO TABAK, NATANAEL DAMASCENO E PAULO THIAGO DE MELLO [email protected] Os sinais da mudança são anunciados na entrada da Cruzada São Sebastião, no Leblon. Ao chegar a um dos dez blocos do conjunto habitacional, onde moram cerca de cinco mil pessoas, uma das moradoras pergunta se a entrevistada é a nova vizinha que, há pouco mais de 19 meses, vem influenciando o cotidiano do lugar. À porta, Deisi Soleti, abre seu apartamento de 24 metros quadrados, Nesse período, o imóvel teve uma valorização de 135%. E explica que preferiu investir no conjunto que foi inaugurado em 1957, no coração do Leblon. Ex-comissária de bordo da Varig, ela se viu sem condições de manter o seu apartamento na Rua Almirante Guilhem, no mesmo bairro. Não titubeou: vendeu o imóvel e comprou o apartamento de quarto e sala que, totalmente remodelado, virou referência de bom gosto e decoração para os vizinhos que, em sua maioria, moram em apartamentos humildes e malconservados. — Perto de minha aposentadoria, vi a Varig e o Aerus (o fundo de pensão da companhia) irem à falência. Na época, morava em um apartamento de 120 metros quadrados a uma quadra daqui, e a primeira coisa que pensei foi: “como vou me manter aqui?”. Pagava um condomínio de R$ 1.200 e só pensava que, à beira dos 50 anos, não arranjaria um emprego que me permitisse ficar. Por isso decidi me mudar. Pensei na Barra, mas vi que não daria para fugir do condomínio. Foi então que percebi que a solução seria vir para cá. Moraria no mesmo lugar, a duas quadras da praia, perto da escola da minha filha, e conseguiria viver com minha aposentadoria. Deisi não foi a única a enxergar além do estereótipo. Assim como ela, profissionais liberais, jovens estudantes e investidores têm buscado moradia na Cruzada e outras áreas da cida- de, como as favelas recém-pacificadas da Rocinha e do Vidigal. Com a nova onda de migração, os preços dos imóveis dispararam. Deisi enfatiza que está investindo na cidade: — Quando saí do meu apartamento, senti os olhares de quem dizia: “ih, faliu!”. Sei que me viam como uma derrotada. Mas minha visão é outra. É a de empreendedora. Comprei o apartamento há um ano e sete meses por R$ 170 mil. Hoje, depois da reforma completa, está avaliado em R$ 400 mil. O urbanista Jake Cummings, pesquisador da Universidade de Harvard que estudou a gentrificação em áreas de baixa renda da Zona Sul, diz que casos como o da Cruzada concentram três fenômenos que, juntos, criam as condições para a transformação: acessibilidade, uma economia forte e o interesse de compradores com maior poder aquisitivo. — Especialistas discutem sobre qual dessas três forças é mais importante, mas, recentemente, Rio vem experimentando todas as três. E enquanto a economia do estado tem crescido nos últimos anos, os seus custos de habitação têm aumentado muito mais rapidamente que a renda. E os megaeventos que vêm para a cidade trouxeram todos os tipos de reformas urbanas. Somadas a isso, as UPPs efetivamente reconfiguraram a infraestrutura de segurança nesses lugares. JANELA DE OPORTUNIDADES Cummings afirma que, apesar de a gentrificação ser lembrada também pelo choque que produz entre novos e antigos moradores, o fenômeno representa uma oportunidade para o Rio: — Esses lugares precisam de investimento, e a iniciativa privada e o poder público estão dispostos a investir. O desafio é canalizar esses investimentos de forma inclusiva. Na favela do Vidigal, um dos objetos de estudo do pesquisador americano, um movimento cultural idealizado por uma das novas moradoras da comunidade exemplifica o que diz a sua tese. A londrina Alex Gillot, de 27 anos, chegou ao lugar há três anos vinda de uma viagem à America do Sul e, contrariando Novos tempos. Encravada no Leblon, a Cruzada São Sebastião atrae novos moradores em busca da localização, o que provoca a valorização dos apartamentos Antenada. Demitida da Varig, Deisi Soleti optou por morar na Cruzada “Minha visão é outra. É de empreendedora” Deise Soleti Moradora da Cruzada o conselho de amigos, estabeleceu-se na favela pouco antes do início do processo de pacificação. Ela conta que, na época, o número de estrangeiros na favela era ínfimo, e que todos ficavam encantados pela forma como os moradores se relacionavam entre si e entre no espaço público. Diz ainda que, após o início da pacificação, percebeu mudança nas das manifestações culturais: — Antes, as festas eram na rua, para os moradores. Agora, são pagas. A favela, por sinal, é, segundo o arquiteto Rogério Goldfeld Cardeman, pesquisador do processo de ocupação do Rio, o maior exemplo de gentrificação na cidade hoje: — Estão fazendo pousadas no topo da favela por causa da vista. Com isso, as pessoas vendem seus terrenos e saem dali. Alex se juntou a três amigas, a gaúcha Vanessa Garrone e a carioca Angélica Grativol, ambas também recém-chegadas à favela, e Lin Falcão, uma comunicadora do Vidigal, para articular um movimento cultural que voltasse a ocupar o espaço público e fosse destinado aos antigos moradores. Com o apoio de oito ONGs e de moradores locais, organizaram o primeiro Vidigal Cria Ativos, ocupando ruas com shows e oficinas gratuitas. — Queremos de volta a celebração da cultura da favela, diz Alex. Ela, no entanto, não se engana. Ciente do papel de agente da transformação que ela critica, diz que o mais importante é o esforço para manter e os valores antigos apesar das transformações: — É fácil achar que a culpa é do estrangeiro, mas esse é um movimento experimentado por todo o Rio. Favela está na moda. Precisamos que mostrar a quem chega que há um código e uma história a serem respeitados. NOVOS E VELHOS COSTUMES Na Cruzada São Sebastião, costumes dos novos moradores já entram em conflito com o cotidiano dos mais antigos. Manoel João Camilo foi um dos primeiros a ocupar um apartamento no lugar. Aos 82 anos, é vice-presidente da associação de moradores do conjunto e mora com duas filhas e dois netos em um apar- Construções. Em franca mudança, Vidigal é berço de novos hostels “Antes as festas eram na rua (...) agora são pagas” Alex Gilot Londrina, moradora do Vidigal tamento de um quarto. Ele diz que os moradores que chegam hoje, com exceções, se fecham em seus apartamentos. — Eles trazem a cultura de apartamentos como os da Selva de Pedra (condomínio em frente à Cruzada), onde ninguém sequer se cumprimenta. Esse pessoal novo não aparece, não procura saber o que acontece na vizinhança. Vive trancado em casa ou vive na rua. A maioria é solteira e não tem filhos. A valorização dos imóveis também já é sentida no lugar. Embora não haja números oficiais, os valores subiram mais de 100% no último ano, segundo a associação de moradores local. Sua presidente, Laíde Melo, que nasceu e cresceu no conjunto, conta que, no atual estado em que se encontram, um conjugado está sendo vendido entre R$180 e R$200 mil; um apartamento de um quarto, por R$270 mil; e um de dois quartos por até R$350 mil. Há informações de que um dos imóveis estaria à venda por R$ 500 mil. Idealizado por Dom Helder Câmara na década de 1950 como um projeto piloto de habitação popular, o conjunto tem 965 apartamentos divididos em dez blocos, onde, na ocasião da inauguração, foram alocados os moradores da Favela Praia do Pinto, que ficava às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas. Os três primeiros blocos têm 168 apartamentos conjugados. Outros quatro, com 84 apartamentos de quarto e sala, e os três blocos restantes têm 42 apartamentos de dois quartos. Deisi, outra agente da mudança, prefere que seus vizinhos permaneçam: — Fui muito bem recebida e busquei servir de exemplo para os novos vizinhos, trazer algo que melhorasse a situação de todos. Hoje, as pessoas me convidam para festas, pedem ajuda na reforma de suas casas. E alguns amigos já manifestaram a vontade de vir para cá. Conversei com o síndico do bloco e acho que podemos fazer melhorias. Estamos cobrando uma taxa extra e estudando a possibilidade de alugar um espaço no térreo, para um pequeno estabelecimento e reverter o dinheiro para o condomínio. l Mudanças em Madri e Istambul, na página 24. Estrangeiros em favelas chamam a atenção de pesquisadores Corpo a corpo Jake Cummings Urbanista considera que é necessária uma boa política habitacional para amenizar impacto social da gentificação Formado em Urbanismo pela Universidade de Harvard, o americano Jake Cummings tem estudado o fenômeno da atração dos estrangeiros por favelas cariocas e o impacto no custo de vida nas comunidades. l O que está levando a gentrificação às áreas de baixa renda da Zona Sul? Existem geralmente três fenômenos que, juntos, criam as condições para a gentrificação em um bairro de baixa renda. A primeira é a demanda: um segmento com mais poder aqusitivo da sociedade torna-se interessado em viver naquele bairro. A segunda são as condições eco- nômicas: em uma economia forte, o crescimento da renda pessoal e a migração interna que supera a oferta de habitação na cidade. A terceira é a acessibilidade. Parte do valor de um imóvel é determinada por sua localização. Projetos de reestruturação urbana que introduzem nova infraestrutura de transportes, como uma linha de metrô, ou outras instalações, como parques e zonas comerciais, alteram essa equação. Especialistas discutem sobre qual destas três forças é mais importante, mas, recentemente, o Rio vem experimentando todos os três fenômenos. l Na sua opinião, quais as áreas do Rio são mais suscetíveis ao fenômeno? Alguns argumentam que a gentrificação só pode acontecer na Zona Sul, mas esse é um reducionismo. Se considerarmos essa equação, demanda mais economia, mais acessibilidade, existem favelas em outros lugares que são suscetíveis. Com a introdução de uma UPP, um teleférico e um novo arranjo comercial, o Complexo do Alemão, por exemplo, teve aumentada sua acessibilidade. Quais são os aspectos da gentrificação nas comunidades? Um aspecto chave, que é positivo, são as melhorias físicas que chegam com a l mudança. O principal ponto negativo é, naturalmente, o deslocamento dos moradores. Sem uma robusta política habitacional, os moradores de baixa renda acabam se deslocando cada vez mais para áreas periféricas, com baixos níveis de acessibilidade. Grandes cidades mundiais, como São Paulo ou Lagos, na Nigéria, já viram isso acontecer, e esse é um futuro possível para Rio. Décadas de experiência em cidades americanas nos mostraram que este é um resultado terrível, mesmo que seja em grande parte resultado da lógica do mercado. l 24 l O GLOBO l Rio l Domingo 27.10.2013 Cidade em transe Istambul Shoppings de luxo, no lugar de comércio local Reforma urbana provoca deslocamento de minorias étnicas do centro para áreas do subúrbio CLAUDIA DOS SANTOS/25-4-2011 CLAUDIA DOS SANTOS [email protected] -RIO E ISTAMBUL- As obras no Parque Gezi, o estopim dos protestos que sacudiram a Turquia em junho, faziam parte de um megaprojeto de transformação urbana do governo Recep Tayyip Erdogan. Este prevê a renovação de várias áreas de Istambul, principalmente aquelas habitadas pelas classes de baixa renda, com o argumento de que os imóveis são insalubres ou inseguros no caso de um terremoto. A área de Tarlabasi é um exemplo: os antigos moradores, muitas vezes de minorias étnicas, têm de deixar suas casas, demolidas para dar lugar a novos empreendimentos, inacessíveis aos seus bolsos. Além disso, prédios comerciais históricos na Avenida Istiklal, no coração da cidade, passam por reformas de gosto duvidoso e se transformam em shopping centers. De certa forma, era isso que estava no centro dos protestos de Gezi: pelo projeto, atualmente suspenso pela Justiça, o parque seria substituído por uma réplica de um quartel otomano demolido nos anos 1940, que funcionaria como um shopping. A transformação urbana suscitou várias críticas, tanto de urbanistas quanto da população afetada. O governo, que quer fazer de Istambul uma cidade cosmopolita, rivalizando com Londres e Nova York, argumenta que as pessoas estarão melhores em imóveis novos do que em habitações insalubres. O Ministério do Desenvolvimento Imobiliário da Turquia (Toki, pela sigla em turco), responsável pela construção de moradias populares, ressalta oferecer imóveis ao alcance do bolso da população de baixa renda. Mas esses imóveis, ressaltam os críticos, são sempre distantes do Centro de Istambul. O processo de transformações urbanas na cidade teve início nos anos 1950, com a derrubada das yalis à beira do Estreito do Bósforo para dar lugar a largas avenidas, conta o arquiteto Cem Yücel, do escritório Mars Architects e responsável pelo projeto do Museu da Inocência, idealizado pelo escritor Orhan Pamuk. Os ricos que habitavam as yalis não apreciaram a mudança, mas a população ganhou a vista para o Bósforo. ADMINISTRADOR QUER UM ‘CHAMPS-ELYSÉES’ Nos anos 1980, mais avenidas. Nessa ocasião foi aberto o Boulevard Tarlabasi, na área de mesmo nome, junto ao Parque Gezi. Onde havia casas e pequenos prédios, há hoje uma larga avenida de seis pistas. As ruas que permaneceram intactas são agora alvo de um novo projeto do governo. As obras estão em andamento: as calçadas e ruas são refeitas, e os predinhos antigos, de três ou quatro andares, dão lugar a construções com o dobro da altura e um preço dez vezes maior. Muitos dos imóveis de Tarlabasi são ocupações ilegais, explica Yücel. Os proprietários originais eram gregos e armênios, forçados a deixar o país nos anos 1950. As casas acabaram invadidas por trabalhadores que vinham do interior da Turquia — segundo a jornalista alemã Constanze Letsch, que mora em Istambul desde 2005, os curdos representam 80% dos moradores. E quem não consegue apresentar um título de propriedade do imóvel em que vive é, invariavelmente, expulso. Tarlabasi era uma espécie de “alvo natural” para o governo depois que Beyoglu, área da qual faz parte, passou por seu próprio processo de gentrificação — mais natural, de acordo com Yucel. O administrador de Beyoglu, Ahmet Misbah Demircan, já declarou que quer transformar Tarlabasi nos “Champs-Elysées” de Istambul. Há cerca de 15 anos, Beyoglu, no qual poucas pessoas se aventuravam devido à prostituição e à criminalidade, foi “redescoberto” por artistas. Lá se instalaram as mais badaladas casas noturnas da cidade, como Babylon e Peyote, assim como galerias de arte e hotéis butique para abrigar turistas em busca da vibe de Istambul. — Os preços começam a subir, as imobiliárias vêm, os antigos moradores não podem mais pagar o aluguel e acabam se mudando — disse Yücel ao GLOBO. Yücel vê a gentrificação como algo inevitável; o que o preocupa é a condução desse processo. — A gentrificação é um processo natural e necessário. A transformação em si não é algo ruim. Já uma transformação desleixada… Se o governo vê nisso apenas uma oportunidade de ganhar dinheiro, só vai causar mais problemas. Você começa a esquecer sua história, o que não é bom para nenhuma sociedade. Não devemos destruir a alma das coisas. l Hoje na web oglobo.com.br/ rio l GLOSSÁRIO: A l ESPECIALISTA: O mudança da cidade em novas palavras. pesquisador de favelas Jake Cummings. Eu sou você amanhã. Na Avenida Istiklal, o shopping Demirören (à direita) e o Edifício Se Sam, atualmente passando por obras para se tornar mais um centro comercial JONÁS BEL/NOPHOTO/DIVULGAÇÃO Madri Chueca, símbolo de bairro moderno Área já foi considerada retrato da pobreza e decadência nos anos 1980 PRISCILA GUILAYN Correspondente [email protected] -MADRI- Heroinômanos a cada esquina; grades trancando comércios vazios há anos; edifícios deteriorados, sem calefação, sem elevador, com banheiros nos corredores; e uma população, basicamente, de pessoas idosas, sem ter para onde fugir. Esta é a Chueca da década de 1980, retrato de pobreza e desolação no centro madrilenho, onde Pedro Almodóvar gravou algumas das cenas de “Ata me!”, quando o personagem de Antonio Banderas ia em busca de droga. Porque Chueca se resumia a isso: seringas pelo chão, rostos inchados e vermelhos, bocas com dentes negros corroídos, vidas devastadas pela heroína. Um passado de decadência, que nada tem a ver com a Chueca de hoje, símbolo de modernidade, tema de teses de doutorado, por ser resultado de um processo de gentrificação expontâneo e exitoso. Não houve um plano estratégico da prefeitura nem um projeto ambicioso de um grupo de empresários. Chueca foi mudando de fisionomia pouco a pouco, e o primeiro grão de areia quem colocou foi Mili Hernández. Ela tinha o sonho de montar uma livraria direcionada para o público LGTB (lésbicas, gays, transexuais e bissexuais) e em Chueca havia lojas aos montes para escolher e com aluguéis baratos. Berkana, inaugurada em 1993, l GENTRIFICAÇÃO, UM FENÔMENO GLOBAL: Vídeo explicativo sobre o conceito e os indicadores do processo de mudança nas cidades do Brasil e do mundo. Chueca . Mudança do bairro é estudada nas universidades foi o motor da transformação. — As pessoas estavam surpresas e me perguntavam se eu não tinha medo. Mais do que a insegurança do bairro, o receio era de uma agressão homófoba à livraria. Mas eu não tinha medo nem de uma coisa nem da outra. A abertura de Berkana teve um grande impacto mediático, e serviu de incentivo para que outros homossexuais se interessassem em montar um negócio no bairro. Um restaurante, uma floricultura, outro restaurante, um café... Em 1995, Mili tinha ao redor da Berkana uma con- l CRUZADA: O impacto na rotina de velhos moradores e a chegada de novos personagens nos apartamentos da Cruzada. l NO l FOTO GALERIA: GOOGLE+: google.com/ +JornalOGlobo Imagens sobre a ocupação do conjunto habitacional, no Leblon, desde a década de 1950. Acompanhe O GLOBO no Google Plus centração de comerciantes LGTB suficiente para lançar o primeiro mapa gay, chamado de Chueca Gay. — Nós fomos mudando a fisionomia do bairro, que deixou de ser um deserto de lojas fechadas. Os moradores de Chueca estavam contentíssimos e nos diziam “preferimos os gays aos viciados”. A prefeitura estava de boca aberta com a transformação: tudo o que a gente pedia para fazer, eles deixavam. Nós, LGTB, deixamos de ser invisíveis. O Cogam, Coletivo de Lésbicas, Gays, Transexuais e Bissexuais de Madri, que se estabeleceu no bairro em 1995, apresentou no Congresso dois anos antesquando Berkana se estabelecia em Chueca e atraía olhares da opinião pública — um texto de proposta para uma lei de união estável homossexual. As reivindicações cresciam, Chueca saía do armário e vários espanhóis seguiam a corrente (entre outros, um tenente coronel do Exército que fez pública sua homossexualidade, sendo o primeiro militar gay confesso da Espanha). Era uma onda transformadora do bairro que avançava com a luta contra a discriminação homossexual. Enquanto isso, o preço do metro quadrado subia às nuvens. — Há um mito de que as pessoas LGTB têm muito dinheiro e, por isso, há muitos gays que podem morar em Chueca. Mas, não é verdade — diz Agustín López, atual presidente do Cogam. — Chueca virou um fenômeno, estudado em universidade, mas a mudança trouxe preços proibitivos que provoca a saída de muitos que impulsionaram o crescimento local. Mili é um exemplo. Continuará morando no bairro, em sua cobertura de 140 metros quadrados, que ela comprou por 110 mil euros, em 1996, e que hoje está avaliada em 600 mil. Mas Berkana teve que mudar de lugar três vezes, sempre dentro de Chueca. O aluguel de sua primeira loja saltou de 800 euros para 6 mil euros. Este caminho de revalorização é o que o novo bairro Triball, uma dezena de decadentes ruas no centro da capital próximas à Gran Vía, pretendia trilhar. Um grupo de empresários do setor imobiliário apostou nisso em 2008, com a compra de mais de 30 lojas. Previam o aumento do preço do metro quadrado de 3.600 euros a 4.800 euros em cinco anos, mas o prognóstico não se cumpriu. A transformação ainda é incipiente. l BB CIDADE EM TRANSE AMANHÃ: A perda das casas de Botafogo | Rio | MAIS NOTÍCIAS PÁGINAS 37 A 44
Documentos relacionados
Istambul: Shoppings de luxo, no lugar - LeMetro/IFCS-UFRJ
mesmo nome, junto ao Parque Gezi. Onde havia casas e pequenos prédios, há hoje uma larga avenida de seis pistas. As ruas que permaneceram intactas são agora alvo de um novo projeto do governo. As o...
Leia mais