Baixar primeiro capítulo

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Baixar primeiro capítulo
UM
GÊMEOS
Ela deu um sorriso.
— Você devia ter sido Alanna. Eles sempre ensinam magia às meninas…
— O pensamento a atingiu tão subitamente que ela perdeu o fôlego. — Thom,
— Esta é a minha decisão. Não vamos discutir mais nada — falou o
homem sentado à escrivaninha. Ele já tinha aberto um livro. Seus dois filhos
é isso!
Pela expressão no rosto da irmã, Thom soube que ela acabara de ter
outra ideia maluca.
fecharam a porta ao sair do cômodo.
— Ele não nos quer por perto — murmurou o menino. — Ele não se
— O que é isso? — perguntou ele, desconfiado.
Alanna olhou ao redor, verificando se havia algum servo no corredor.
importa com o que nós queremos.
— Nós sabemos disso. — Foi a resposta da menina. — Ele não se importa
com nada, a não ser com os livros e os pergaminhos.
— Amanhã papai vai entregar as cartas para o homem que treina os pajens
e as pessoas do convento. Você pode imitar a letra dele e escrever novas
O menino deu um soco na parede.
cartas, dizendo que somos dois garotos gêmeos. — Você vai para o convento.
— Eu não quero ser um cavaleiro! Quero ser um grande feiticeiro! Eu
Diga na carta que quer ser feiticeiro. As Filhas da Deusa é que treinam os
quero matar demônios e caminhar com os deuses…
— Você acha que eu quero ser uma dama? — indagou a irmã. — “Caminhe
meninos em magia, lembra? Quando você ficar mais velho, elas vão mandar
você para os padres. E eu vou para o palácio aprender a ser um cavaleiro.
lentamente, Alanna” — falou com afetação. — “Sente-se quieta, Alanna. Com
— Isso é loucura! — argumentou Thom. — E o seu cabelo? Você também
os ombros para trás, Alanna.” Como se isso fosse tudo que eu pudesse fazer!
não pode nadar pelada. E vai ficar mocinha… você sabe, com peitos e tudo
— Ela cruzou o soalho. — Tem de haver outro jeito.
mais.
O menino observou a irmã. Thom e Alanna de Trebond eram gêmeos,
ambos tinham cabelos vermelhos e olhos violeta. A única diferença entre eles,
pelo menos a que a maioria das pessoas conseguia ver, era o comprimento
dos cabelos. O formato do rosto e do corpo eram tão iguais que, se vestissem
— Eu corto o cabelo — retrucou Alanna. — E… ora, vou lidar com o
restante quando acontecer.
— E quanto a Coram e a Maude? Eles viajarão com a gente e sabem
quem é quem. Eles sabem que não somos garotos gêmeos.
Ela mordeu o polegar e refletiu.
a mesma roupa, ficariam idênticos.
— Vamos encarar — disse Thom para Alanna. — Amanhã você vai para o
convento e eu vou para o palácio. É isso.
— Por que você fica com a parte divertida? — reclamou ela. — Eu vou ter
de aprender a costurar e a dançar. E você vai aprender esgrima, justa…
— Você acha que eu gosto dessas coisas? — gritou o menino. — Eu odeio
cair e golpear! É você quem gosta disso, não eu!
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— Vou dizer a Coram que se ele contar alguma coisa nós faremos uma
magia contra ele — falou ela, afinal. — Ele odeia magia… vai ser o suficiente.
E talvez a gente possa conversar com a Maude.
Thom pensou, fitando as mãos.
— Você acha que é possível? — murmurou ele.
Alanna olhou para o rosto esperançoso do irmão gêmeo. Parte dela queria
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impedir o plano antes que as coisas saíssem do controle, mas não uma parte
magia. Com Thom, era preciso obrigá-lo a caçar; com Alanna, era necessário lançar
muito grande.
mão de truques e de súplicas para que tentasse os feitiços.
— Se você não perder a coragem — falou ela para o irmão. E se eu não
A mulher ansiava pelo dia em que outra pessoa teria de lidar com aqueles
dois. Agora parecia que os deuses iam testá-la por meio deles uma última vez.
perder a minha, pensou ela.
— E quanto ao papai? — Ele já olhava ao longe e via a Cidade dos
Ela balançou a cabeça.
— Não posso tomar uma decisão dessas sem ajuda. Preciso tentar
Deuses.
encontrar a Visão no fogo.
Alanna balançou a cabeça.
— Ele se esquecerá de nós assim que formos embora. — Olhou para
Thom. — Você quer muito mesmo ser um feiticeiro? — ela quis saber. — Isso
significa anos de estudo e de trabalho para nós dois. Você vai ter nervos de
Thom franziu a testa.
— Eu pensei que você não conseguia fazer isso. Pensei que podia apenas
curar.
Maude enxugou o suor do rosto. Ela estava com medo.
aço para isso?
Thom endireitou a túnica. Seus olhos estavam frios.
— Não importa o que eu posso ou não fazer — falou sem rodeios. —
Alanna, traga lenha. Thom, verbena.
— Basta me dizer como!
Eles correram para fazer o que ela pedia. Alanna foi a primeira a voltar e
Alanna assentiu com a cabeça.
colocou a lenha no fogo que já ardia na lareira. Pouco depois, Thom apareceu,
— Vamos procurar a Maude.
trazendo folhas da planta mágica, verbena.
***
Maude se ajoelhou diante da lareira e gesticulou para que os gêmeos
sentassem um de cada lado dela. Ela sentia o suor escorrer pelas costas.
Maude, a curandeira da aldeia, prestou atenção nos dois, mas não disse
Pessoas que tentavam usar a magia que os deuses não haviam lhes dado
uma única palavra. Quando Alanna terminou, a mulher se virou e olhou para o
costumavam morrer de formas horrendas. Maude fez uma oração silenciosa
lado de fora da porta por longos minutos. Finalmente, voltou a fitar os gêmeos.
à Grande Deusa Mãe e prometeu se comportar pelo resto de seus dias se a
Eles não sabiam, mas Maude estava numa situação difícil. Ela lhes havia
Deusa a mantivesse incólume ao longo disso.
ensinado toda a magia que conhecia. Os dois poderiam aprender muito mais, mas
Ela jogou as folhas no fogo, movendo silenciosamente os lábios com
não havia outros mestres em Trebond. Thom queria aprender tudo que pudesse
as palavras sagradas. O poder dela e dos gêmeos lentamente preencheu o
sobre magia, mas ele implicava com as pessoas. Escutava Maude somente por
fogo. As chamas ficaram verdes com a feitiçaria de Maude e roxas com a dos
achar que ainda restava algo que ela pudesse lhe ensinar. Odiava Coram, o outro
gêmeos. A mulher respirou fundo e segurou a mão esquerda de cada irmão,
adulto responsável pelos gêmeos, porque ele o fazia se sentir estúpido. A única
impelindo-os para o fogo. O poder atingiu o braço deles. Thom soltou um grito
pessoa no mundo que Thom amava, além de si mesmo, era Alanna. Maude pensou
e se contorceu com a dor da magia que agora o invadia. Alanna mordeu o lábio
em Alanna e suspirou. Ela era muito diferente do irmão. A menina tinha medo de sua
inferior até sangrar, combatendo a dor à própria maneira. Os olhos de Maude
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estavam arregalados e vazios enquanto ela mantinha nas chamas as mãos
A curandeira suspirou.
entrelaçadas.
— Muito bem, Thom e eu amanhã iremos para a Cidade dos Deuses.
De repente, Alanna franziu o cenho. Uma imagem se formava no fogo.
***
Isso era impossível, ela não deveria ter Visão de coisa nenhuma. Fora Maude
quem lançara o feitiço, ela deveria ser a única a conseguir ter Visão de algo.
Contradizendo todas as leis da magia que Alanna havia aprendido, a
Na madrugada do dia seguinte, lorde Alan entregou a cada filho uma carta
imagem cresceu e se espalhou. Era uma cidade inteira construída em rocha
selada, lhes deu a bênção e instruiu Coram e Maude. Coram ainda não sabia
preta reluzente. Alanna se inclinou para a frente e espremeu os olhos para
da mudança de planos. Alanna não pretendia esclarecer as coisas para ele até
enxergar melhor. Nunca vira algo como aquela cidade. O sol batia nos muros
que estivessem bem longe de Trebond.
e nas torres brilhantes. A menina estava com medo, com mais medo do que
Assim que lorde Alan os dispensou, Maude levou os gêmeos para o quarto
de Alanna enquanto Coram preparava os cavalos. As cartas foram prontamente
jamais sentira…
Maude largou os gêmeos. A imagem desapareceu. Agora Alanna estava
com frio e muito confusa. Que cidade era aquela? Onde ficava?
abertas e lidas.
Lorde Alan confiou o filho aos cuidados do duque Gareth de Naxen, e a
Thom examinou a mão. Não havia marcas de queimadura nem cicatrizes.
filha à Primeira Filha do convento. Quantias de dinheiro seriam trimestralmente
Não havia nenhum sinal que indicasse que Maude mantivera as mãos deles
enviadas para pagar as despesas dos filhos até que seus mestres
nas chamas durante longos minutos.
considerassem adequado que retornassem para casa. O pai estava ocupado
Maude ficou atônita. Ela parecia velha e exausta.
com os próprios estudos e confiava no julgamento do duque e da Primeira
— Já vi muitas coisas que não compreendo — murmurou ela, finalmente.
Filha em todas as questões. Lorde Alan de Trebond estava agora em débito
com eles.
— Muitas coisas…
— A senhora viu a cidade? — quis saber Alanna.
Muitas dessas cartas chegavam ao convento e ao palácio todos os anos.
Maude olhou abruptamente para ela.
As meninas de famílias nobres estudavam em conventos até completarem
— Eu não vi cidade alguma.
quinze ou dezesseis anos, época em que iam à Corte para encontrar um
Thom se inclinou para a frente.
marido. Normalmente, o filho mais velho de uma família nobre aprendia as
— Você viu alguma coisa? — perguntou com a voz aflita. — Mas foi Maude
habilidades e obrigações de um cavaleiro no palácio do rei. Os filhos mais
novos seguiam os irmãos ao palácio ou poderiam ir, antes, para o convento
quem lançou o feitiço…
— Não! — interrompeu Alanna. — Eu não vi nada! Nada!
Thom decidiu esperar e perguntar à irmã mais tarde, quando não estivesse
tão assustada. Ele se virou para Maude.
e, depois, para o claustro dos padres, onde aprendiam religião ou feitiçaria.
Thom era especialista em forjar a caligrafia do pai. Ele escreveu duas
novas cartas, uma para o irmão gêmeo “Alan” e outra para ele mesmo. Alanna
as leu com cuidado, e ficou aliviada ao ver que não havia meio de distinguir
— E então? — quis saber.
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entre a obra de Thom e a carta verdadeira. O garoto se recostou com um
você parece bastante com Thom para enganar qualquer um, a não ser o
sorriso, sabendo que anos se passariam até que a confusão fosse resolvida.
Coram.
Enquanto Thom vestia uma saia de montaria, Maude levou Alanna até
Alanna se olhou no espelho. O irmão gêmeo também a fitou, com os olhos
o quarto de vestir. A garota colocou uma camisa, calça de montaria e botas.
violeta arregalados no rosto pálido. Ela sorriu e se enrolou no manto. Deu uma
Depois, Maude cortou seu cabelo.
última olhadela para o garoto no espelho e seguiu Maude até o pátio. Coram e
— Tenho uma coisa para lhe dizer — falou Maude quando o primeiro
Thom, já montados, esperavam por elas. O menino arrumou novamente a saia
e deu uma piscadela para a irmã.
cacho caiu no chão.
— O quê? — perguntou Alanna, ansiosa.
— Você tem o dom da cura. — A tesoura continuou trabalhando. — É
maior que o meu, maior que o de qualquer um que já conheci. E você tem outra
magia, um poder que ainda aprenderá a usar. Mas o dom da cura é o mais
importante. Eu tive um sonho noite passada. Foi um aviso, tão claro quanto se
os deuses tivessem gritado no meu ouvido.
Ao imaginar isso, Alanna abafou uma risadinha.
— Não é bom rir dos deuses — falou Maude com expressão severa. —
Embora você vá descobrir isso sozinha em breve.
Maude parou Alanna quando ela estava prestes a montar o pônei,
Rechonchudo.
— Cure, pequena — aconselhou a mulher. — Cure tudo o que puder, ou
você pagará por isso. Os deuses querem que os dons sejam usados.
Alanna se acomodou na sela e afagou Rechonchudo para reconfortá-lo.
O pônei, ao perceber que a boa gêmea estava em suas costas, parou de se
remexer. Quando Thom o cavalgava, Rechonchudo dava um jeito de derrubá-lo.
Os gêmeos e os dois servos acenaram, dando adeus aos criados do
castelo que se reuniram para se despedir deles. Lentamente, cavalgaram até o
— O que isso significa?
portão do castelo, e Alanna imitou o melhor que pôde o bico de Thom, ou o bico
— Deixe pra lá. Preste atenção. Você já pensou nas vidas que vai tirar
que Thom faria se estivesse cavalgando rumo ao castelo naquele momento.
quando sair por aí realizando grandes feitos?
O menino tinha os olhos baixos para as orelhas do pônei e mantinha o rosto
oculto. Todos sabiam como os gêmeos se sentiam sendo enviados para longe.
Alanna mordeu o lábio.
A estrada íngreme que os conduzia para fora do castelo culminava
— Não — admitiu ela.
— Imaginei que não. Você vê apenas a glória, mas vidas são tiradas,
num terreno rochoso densamente coberto por plantas. No dia seguinte, eles
famílias ficam sem os pais e há tristeza. Reflita antes de lutar. Pense ao
cavalgariam em meio às hostis florestas das Montanhas Grimhold, a grande
menos quem você está combatendo, porque um dia você encontrará um
fronteira natural entre Tortall e Scanra. Era terreno familiar aos gêmeos.
rival. E, se quiser pagar pelas vidas que tirar, use a magia da cura. Use-a
Embora pudesse parecer escuro e inóspito aos povos do Sul, para Alanna e
quanto puder ou não vai conseguir lavar a alma dessas mortes por séculos.
Thom ali sempre seria o lar.
É mais difícil curar do que matar. A Mãe sabe por que, mas você tem um
No meio da manhã, eles chegaram ao cruzamento do Caminho de
dom para as duas coisas. — Escovou rapidamente o cabelo curtinho de
Trebond e da Grande Estrada. Patrulhada pelos homens do rei, a Grande
Alanna. — Fique mais um pouco com a cabeça coberta com o capuz, mas
Estrada conduzia ao norte para a distante Cidade dos Deuses. Esse era o
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caminho que Thom e Maude seguiriam. Alanna e Coram deveriam seguir para
fora o soldado mais durão dos exércitos do rei. Agora ia virar piada. As pessoas
o sul, até a capital de Corus e o palácio real.
veriam que Thom não era guerreiro coisa nenhuma e poriam a culpa em
Os dois servos se afastaram para se despedir e dar aos gêmeos um pouco
Coram — o homem que deveria ter ensinado a ele os fundamentos da arte da
de privacidade. Assim como Thom e Alanna, passariam anos até que Coram
guerra. Ele cavalgou durante horas sem dizer uma única palavra, remoendo
e Maude voltassem a se encontrar. Embora Maude devesse retornar para
pensamentos sombrios, deprimido demais para perceber que Thom, que
Trebond, Coram permaneceria com “Alan”, atuando como seu valete durante
costumava reclamar depois de uma hora de cavalgada, estava em silêncio
os anos que ela passaria no palácio.
também.
Alanna fitou o irmão e esboçou um sorriso.
Coram fora treinado como ferreiro, mas se tornara um dos melhores
— Aqui estamos nós — falou ela.
soldados da infantaria, até que retornou ao Castelo de Trebond, onde virou
— Eu queria poder dizer “divirta-se” — emendou Thom sinceramente
sargento de armas. Agora queria voltar a ficar com os soldados do rei, mas
—, mas não consigo ver como alguém poderia se divertir aprendendo a ser
desde que não fossem rir dele por ter um fracote como mestre. Por que Alanna
cavaleiro. De qualquer forma, boa sorte. Se formos pegos, vão nos escalpelar.
não nasceu menino? Ela era uma lutadora. A princípio Coram a ensinara
— Ninguém irá nos pegar, irmão. — Ela esticou o braço na distância que
porque instruir um gêmeo significava instruir também o outro, pobres coisinhas
os separava e eles apertaram as mãos com brandura. — Boa sorte, Thom.
sem mãe. Depois ele começou a gostar de ensinar a menina. Ela aprendia
Cuide-se.
rápido e direito, muito melhor do que o irmão. Assim como fizera no passado,
— Você tem muitos testes pela frente — falou o garoto com ar severo. —
Coram Smythesson desejava agora com todo o coração que Alanna fosse
menino. Ele estava prestes a realizar seu desejo por vias tortas.
Cuide-se, você.
— Eu vou passar nos testes — falou Alanna. Ela sabia que eram palavras
O sol reluzia diretamente acima da cabeça deles — era hora da refeição
corajosas, quase audaciosas, mas parecia que Thom precisava ouvi-las. Então,
da tarde. Coram resmungou ordens para a criança encapuzada, e ambos
deram meia-volta com os pôneis e juntaram-se aos adultos.
desmontaram numa clareira ao lado da estrada. O soldado tirou pão e queijo
— Vamos — resmungou Alanna para Coram.
do alforje, partiu um pedaço e o estendeu para a criança. Da sela de seu cavalo
Maude e Thom seguiram pelo cruzamento esquerdo da Grande Estrada;
também pegou o odre de vinho.
Alanna e Coram seguiram pela direita. Alanna parou subitamente e deu meiavolta para ver o irmão partir. Ela piscou para afastar a sensação de ardência
— Nós vamos chegar à estalagem ao anoitecer, senão antes — grunhiu
ele. — Até lá, teremos de nos virar com isso.
nos olhos, mas não conseguiu aliviar o aperto na garganta. Alguma coisa lhe
Alanna retirou o manto pesado.
dizia que Thom estaria muito diferente quando voltassem a se ver. Com um
— Para mim isso está de bom tamanho.
suspiro, Alanna voltou Rechonchudo em direção à capital.
Coram fez uma careta e impeliu o grande cavalo. Ele teria preferido
qualquer coisa a acompanhar um garoto caprichoso ao palácio. Antigamente,
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Coram engasgou e cuspiu um bocado de líquido na estrada. Alanna teve
de bater nas costas do soldado até que ele recobrasse o fôlego.
— Conhaque? — murmurou, fitando o odre. E voltou ao problema
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imediato. — Pelo Deus Negro! — rugiu ele e foi ficando roxo. — Vamos voltar
agora mesmo e eu vou arrancar o seu couro quando chegarmos em casa. Cadê
Ela fez uma careta.
— Papai não se importa com nada além dos pergaminhos dele. — Alanna
respirou fundo. — Coram, estou sendo boazinha. Thom não agiria assim. Você
aquele filho do capeta do seu irmão?
— Acalme-se, Coram — falou ela. — Tome um gole.
quer ver coisas que não existem pelos próximos dez anos? Eu posso fazer
— Eu não quero tomar nada — rosnou ele — Vocês mereciam apanhar até
isso, você sabe. Lembra-se de quando o Cozinheiro ia contar para o papai
virar uma peneira! — Ele sorveu um profundo gole do odre.
— Thom está a caminho da Cidade dos Deuses com a Maude — explicou
Alanna. — Ela acredita que a gente está fazendo a coisa certa.
quem comeu as tortas de cereja? Ou a época em que a madrinha tentou fazer
o papai se casar com ela?
Coram empalideceu. A tarde em que descobriram que as tortas haviam
Coram praguejou baixinho.
desaparecido, o Cozinheiro começou a enxergar leões grandes e famintos
— Aquela bruxa concordaria com vocês dois, seus feiticeiros. E o que o
atrás dele nas cozinhas. Lorde Alan nunca ouviu falar das tortas desaparecidas.
E, quando a madrinha dos gêmeos veio a Trebond para agarrar lorde Alan
seu pai disse a respeito?
— Por que ele saberia? — indagou Alanna. — Coram, você sabe que
Thom não quer ser cavaleiro. Eu desejo isso.
— Não quero saber se vocês dois sonham ser ursos dançarinos! —
exclamou Coram e deu outro gole no odre. — Você é uma garota!
— E quem é que sabe? — Ela se inclinou, e seu pequeno rosto tinha uma
expressão concentrada. — A partir de agora eu sou Alan de Trebond, o gêmeo
mais novo. Vou ser cavaleiro e Thom será feiticeiro. Será assim. Maude viu
como seu próximo marido, fugiu apenas três dias depois, dizendo que o castelo
era mal-assombrado.
— Vocês não fariam isso — murmurou Coram. Ele sempre suspeitara que
os gêmeos estavam por trás das alucinações do Cozinheiro e dos fantasmas
de lady Catherine, mas guardara esses pensamentos para si mesmo. O
Cozinheiro se gabava muito, e lady Catherine era cruel com os servos.
Ao se dar conta de que tinha irritado Coram, Alanna mudou de tática.
— Thom não acerta um alvo sequer, e eu tenho uma ótima mira. Meu
para nós no fogo.
Coram fez o Sinal contra o mal com a mão direita. Magia o deixava
irmão não seria motivo de honra para você, mas acho que eu poderia ser. Você
nervoso. Maude o deixava nervoso. Ele bebeu mais um pouco para acalmar
mesmo disse que um homem adulto não consegue tirar a pele de um coelho
os nervos.
mais rápido que eu. — Ela deu o último pedaço de pão a Rechonchudo e fitou
— Mocinha, é uma ideia nobre, o pensamento de um guerreiro, mas nunca
Coram com olhos enormes, como se suplicasse. — Vamos continuar a viagem.
vai dar certo. Se você não for pega quando tomar banho, vai ser quando virar
Se pela manhã você não tiver mudado de ideia, podemos voltar — ela mentiu
mulher…
com os dedos cruzados. Alanna não tinha intenção de voltar a Trebond. — Mas
— Eu posso esconder tudo isso… com a sua ajuda. Se não puder, vou
não se apresse. Papai não saberá de nada até ser tarde demais.
Coram tomou um novo gole do odre e se levantou, trêmulo. Montou
sumir.
— Daí seu pai é quem vai arrancar o meu couro!
o cavalo sem tirar os olhos da garota. Cavalgaram em silêncio enquanto o
homem pensava e bebia.
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A ameaça de fazê-lo ver coisas não o preocupava muito. Na verdade,
ele pensava no desempenho de Thom com o arco e flecha — era o suficiente
o “pobre garotinho”. Já deitada, Alanna ouviu os roncos de Coram e abriu um
para fazer um soldado chorar. Alanna era muito mais rápida que o irmão.
grande sorriso. Maude havia conseguido encher o odre com o melhor conhaque
Ela raramente se cansava, mesmo quando caminhava em terreno íngreme.
de lorde Alan, na esperança de que o amigo pudesse ser mais tolerante se as
Ela tinha jeito para as artes marciais, e isso era algo que nunca poderia ser
engrenagens estivessem bem lubrificadas.
ensinado. Ela também era teimosa como uma mula.
Como estava imerso nos próprios pensamentos, Coram não viu uma
Coram acordou na manhã seguinte com a pior ressaca que já tivera. Ele
gemeu quando Alanna entrou no quarto.
serpente se arrastar pela estrada. Alanna e o cavalo de Coram avistaram a
— Não faça tanto barulho ao andar — implorou.
criatura escorregadia no mesmo instante. O grande cavalo empinou e quase
Alanna estendeu-lhe uma caneca fumegante.
derrubou seu mestre. Rechonchudo ficou paralisado na estrada, surpreso com
— Beba. Maude diz que isso sempre faz você se sentir melhor.
o comportamento do outro. Coram gritou e lutou para manter-se firme enquanto
O homem deu um gole profundo e se engasgou quando o líquido quente
a montaria escoiceava freneticamente, apavorada com a cobra. Alanna não
queimou sua garganta. No fim, ele realmente se sentia melhor. Esfregou os pés
pensou duas vezes. Lançou-se da sela de Rechonchudo e agarrou as rédeas
no chão e acariciou a cabeça.
de Coram com as duas mãos. Desviando dos cascos do cavalo, que se moviam
— Preciso de um banho.
rapidamente, ela usou toda a sua força e o seu peso para puxar o cavalo para
Alanna apontou para a banheira que já o aguardava no canto.
baixo antes que Coram caísse e quebrasse o pescoço.
Coram a fitou por baixo das sobrancelhas com uma expressão severa.
O cavalo, mais surpreso que qualquer outra coisa pelo novo peso nas
rédeas, caiu apoiado nas quatro patas. Enquanto Alanna acariciava seu focinho
— Peça o café da manhã. Suponho agora que devo chamá-la de “Alan”?
Ela deu um gritinho de alegria e saiu num pulo do quarto.
e murmurava palavras de conforto, ele tremia. Ela enfiou a mão num dos
bolsos, retirou uma maçã, deu-a para o animal e continuou a acariciá-lo até que
a tremedeira passasse.
Quando Alanna ergueu o olhar, Coram a observava com uma expressão
estranha. Ela não sabia que ele estava imaginando o que Thom teria feito
em circunstâncias semelhantes: o gêmeo teria deixado que o homem se
defendesse sozinho. Coram sabia a coragem necessária para acalmar um
cavalo imenso escoiceando. Era a coragem que um cavaleiro deveria ter. Ainda
assim, Alanna era uma menina…
Quando chegaram na estalagem, Coram estava muito embriagado. O
estalajadeiro o ajudou a se deitar enquanto sua esposa se preocupava com
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