aqui - Tradição Planalto Editora
Transcrição
aqui - Tradição Planalto Editora
Sumário NÚMERO 01 - ANO 01 - SETEMBRO 2015 EDITORIAL 03 NEGÓCIOS Rosália Diogo ENTREVISTA 04 NOTÍCIAS Alcione Amos CANJERÊ 08 20 Afroempreenderismo: coragem e determinação para empreender sem esquecer a responsabilidade social 23 • Mulheres na Política • Samba Fino de Garagem ENSAIO Instituto Casarão das Artes: O Espaço da Diversidade Afro-Brasileira e Africana em Belo Horizonte 24 GENTE DO CANJERÊ MODA 10 28 A mulher negra nas obras do artista Marcial Ávila Ah, o Jazz!! Coisa de gente chique, né?!! Capulanas: Cores e padronagens africanas na moda OLHAR SOCIAL CULTUR A - FOTOGR AFIA 14 30 Quilombolas em Belo Horizonte: Territórios de resistência Exposição Mwana-Mwana: pérolas do índico MATÉRIA DE CAPA CULTUR A - LITER ATUR A 16 32 Década dos Povos Afrodescendentes: Reconhecimento, Justiça e Desenvolvimento Notas quase poéticas: Tempo dos Bichos Ano 01 - Edição 01 Setembro de 2015 ISSN 2447-1143 - PUBLICAÇÃO ONLINE Valorização e promoção da cultura africana e afro-brasileira Expediente A REVISTA CANJERÊ É UMA PUBLICAÇÃO TRIMESTRAL DO INSTITUTO CULTURAL CASARÃO DAS ARTES E TRADIÇÃO PLANALTO PRODUÇÕES VISUAIS E EDITORIAIS LTDA. FOTO DA CAPA Foto: Ricardo S. G. Modelos: Anna Gabriella Passos Lopes e Adriane Santana Passos INSTITUTO CULTURAL CASARÃO DAS ARTES Marcial Ávila PRESIDENTE Rosália Diogo PRESIDENTA DE HONRA Virgínia Marques VICE-PRESIDENTA EDITORIAL Ricardo S. Gonçalves EDITOR EXECUTIVO Elissandra Flávia EDITORA Leonardo Oliveira DIAGRAMAÇÃO Maria Luiza Viana ILUSTRAÇÃO Rodrigo Marçal Santos REVISÃO COMERCIAL Tradição Planalto (31) 3226-2829 PUBLICIDADE CONSELHO EDITORIAL Carlos Serra UNIVERSIDADE EDUARDO MONDLANE - MOÇAMBIQUE MATÉRIA DE CAPA Marcos Antônio Cardoso Década dos Povos Afrodescendentes: Reconhecimento, Justiça e Desenvolvimento Edmilson de Almeida Pereira UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA - BRASIL Eduardo de Assis Duarte UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS - BRASIL Ibrahima Gaye CENTRO CULTURAL CASA ÀFRICA - BRASIL-SENEGAL Maria de Mazzarelo Rodrigues MAZZA EDIÇÕES - BRASIL Marcial Ávila CASARÃO DAS ARTES - BELO HORIZONTE/MG - BRASIL Maria Nazareth S. Fonseca PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA MINAS GERAIS - BRASIL Patricia Gomes (Guiné Bissau) Editorial É com muita alegria que o Instituto Cultural Casarão das Artes (BH) lança o primeiro número da Revista Canjerê. Canjerê é uma palavra bantu que significa união de forças, e de pessoas que se unem com intuito de multiplicar suas energias, forças e saberes. O número inaugural é composto por artigos, matérias e entrevistas, escritos por parceiros do Brasil e da África, contemplando temas que em sua maioria não estão na grande mídia. A matéria da capa, “Década dos Povos Afrodescendentes” é uma contribuição do filósofo e militante do movimento negro, Marcos Antônio Cardoso. O artigo apresenta quatro eixos estratégicos e fundamentais para a reflexão durante a Década dos Povos Afrodescendentes. A entrevista com Alcione Meira Amos, trata da exposição que vem para o Brasil pela primeira vez, intitulada “Gullah, Bahia, África: Lorenzo Dow Turner ligando comunidades da diáspora africana através da linguagem”. O artigo de Robson Di Brito traz um panorama da presença das mulheres negras nas obras do artista plástico Marcial Ávila. Na seção “Olhar Social”, as pesquisadoras Adriana Araújo e Bárbara Paes assinam o artigo que trata das comunidades Quilombolas de Belo Horizonte e onde exatamente estão localizadas. A matéria relacionada a negócios destaca o crescimento do número de afro-empreendedores no Brasil e é assinado por Elissandra Flávia, o texto apresenta empresárias que trabalham a moda afro. O texto do pesquisador e professor Leonardo Oliveira traz à tona a história do Jazz, gênero musical de origem afro-americana. A participação do professor moçambicano Carlos Serra vem para consolidar a parceria com a África, ao destacar as Capulanas e o enigma que gira em torno da sua origem. A trajetória da Exposição moçambicana “MwanaMwana: Pérolas do Índico”, é o tema do texto de Solange Brito. Por fim, o texto do caboverdiano Filinto Elísio Correia e Silva, “Tempos dos Bichos”, com ilustração de Maria Luiza Viana, fecha a primeira edição da revista. UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - BRASIL Rosália Diogo Desejamos a todos uma boa leitura! CASARÃO DAS ARTES - BELO HORIZONTE/MG - BRASIL Olusegun Michael Akinrulli INSTITUTO YOURUBÁ - BRASIL - NIGÉRIA COLABORARAM NESTA EDIÇÃO Carlos Serra, Rosália Diogo, Robson Di Brito, Alcione Amos, Ricardo S. Gonçalves, Elissandra Flávia, Adriana Araújo, Bárbara Paes, Leonardo Oliveira, Filinto Elísio e Solange de Brito Agradecemos a todos da equipe Casarão das Artes e parceiros do Brasil e do exterior que aceitaram o desafio de construir essa importante fonte de informação e pesquisa. AV. BERNARDO MONTEIRO, 414 - SANTA EFIGÊNIA 30150-280 - BELO HORIZONTE/MG - TELEFONE: (31) 3273 0601 [email protected] Rosália Diogo RUA LINDOLFO DE AZEVEDO, 192 - SL. - NOVA SUIÇA 30421-265 - BELO HORIZONTE/MG - TELEFONE: (31) 3226-2829 [email protected] PRESIDENTA DE HONRA DO INSTITUTO CULTURAL CASARÃO DAS ARTES R EVISTA CANJ ERÊ - 3 E n tre v i s ta Alcione Meira Amos Curadora do Anacostia Community Museum da Smithsonian Institution em Washington D.C, Alcione Meira Amos é responsável pela exposição, que vem para o Brasil, pela primeira vez, “Gullah, Bahia, África: Lorenzo Dow Turner ligando comunidades da diáspora africana através da linguagem” Ricardo dos Santos Gonçalves EDITOR, FOTÓGRAFO E VIDEOMAKER Nascida em 21 de novembro de 1946, em Belo Horizonte, Alcione cursou Letras com habilitação em Inglês, na FAFIBH (atual UNIBH), à noite, e trabalhava para o USIS, a Seção Cultural do Consulado Americano em Belo Horizonte, quando conheceu Preston Amos. Em 1972, foi morar em Washington D.C., EUA, onde se casou. Logo após sua chegada aos Estados Unidos, Alcione matriculouse no programa de Mestrado em Biblioteconomia, da Catholic University. Após a graduação, em 1974, foi trabalhar na Biblioteca da George Washington University por três anos. Em 1977, foi trabalhar como pesquisadora e, depois, como bibliotecária no Banco Mundial, durante vinte e sete anos, aposentando-se em 2004, como Chefa Interina, da Biblioteca do Banco Mundial. Como pesquisadora independente, publicou os livros “The Black Seminoles: History of a FreedomSeeking People” (University Press of Florida, 1997), e “Os que voltaram: a história dos retornados afro-brasileiros na África Ocidental no século XIX” (Tradição Planalto, 2007), além de vários artigos em revistas especializadas no Brasil, na França, nos Estados Unidos e na África. Em 2008, recebeu uma colocação no Anacostia Community Museum, quando realizou as pesquisas que originaram essa exposição. Durante muitos anos você foi uma pesquisadora independente. O que motivou essas pesquisas sobre afrodescendentes no Brasil e nos Estados Unidos? Quando cheguei aos Estados Unidos ajudei o meu marido, Preston, a fazer pesquisas sobre a história dos Afro-americanos que haviam recebido a Medalha de Honra do Governo americano por corajosos atos durante as muitas guerras lutadas por aquele país Quatro dos soldados que receberam esta medalha, a mais alta condecoração de guerra dos Estados Unidos, eram Seminoles negros. Achei a história deles superinteressante e comecei a me interessar em pesquisar mais e mais sobre o assunto. Ao mesmo tempo, descobri a história dos Afro-brasileiros que voltaram para a África ocidental no século XIX. De certo modo, havia uma ligação entre estes dois grupos. Eram pessoas que haviam saído da escravidão e conseguido estabelecer novas vidas, indo para outros países. Os Seminoles negros fugindo para o México e as Bahamas, os Afro-brasileiros comprando passagem num navio e mudando para a África. Como eu era imigrante, eu sabia das dificuldades de adaptação que uma pessoa encontrava, sem falar no fato de que estes dois grupos ainda lutavam contra o problema de discriminação racial. Daí começou a jornada que me trouxe até aqui. São trinta anos de pesquisa. O Preston, seu marido, era negro e você uma estrangeira branca. Como era sua mobilidade social nos Estados Unidos, um país muito segregador? Quando cheguei aos Estados Unidos eu me movia entre a comunidade branca e a comunidade negra e, na verdade, não pertencia nem a uma nem a outra. Passei a ser “other” (outra). Na verdade, era e ainda é uma posição confortável. Há algum tempo, fiz o meu teste de DNA, o que é um verdadeiro passatempo nacional aqui. Descobri que, além do sangue ibérico/português, que era o mais ascendente, tenho 12% de sangue africano e mais um tanto de outras etnias. Então cheguei a mais uma conclusão: eu tenho mesmo é que ser “other”. E viva a diversidade de raças! E depois de se aposentar do seu trabalho formal, ofereceram para você o emprego dos seus 4 - R EV ISTA CA NJERÊ sonhos no Anacostia Community Museum, um dos museus da Smithsonian, o maior complexo de museus e de pesquisa do mundo. Como foi isso? Pois é. Uma colega aqui do Museu sempre diz que foram os espíritos amigos que me trouxeram para cá. Em 2005, uma colega de muitos anos no Banco Mundial, que estava trabalhando como voluntária na Smithsonian me disse que eu deveria ir até o Anacostia Community Museum, para conversar com a Arquivista. O Museu tinha recebido uma coleção de um professor americano que havia feito pesquisas no Brasil e estava com dificuldades para identificar o material relativo ao Brasil. Ainda me lembro como se fosse hoje que a arquivista me deu uma coleção de fotocópias que o Prof. Turner tinha feito na Bahia. Eu fiquei surpresa com a riqueza das fotos e com o fato de que ele tinha, na coleção, várias fotos de Afro-brasileiros que tinham ido para Lagos no século XIX. Imediatamente me ofereci para trabalhar com a coleção. Passei dois anos como voluntária e, logo depois da publicação do meu segundo livro (primeiro em Português), me ofereceram um contrato para fazer o roteiro de uma exposição sobre o trabalho do Prof. Turner não só no Brasil, mas com o povo Gullah e a África. E aí eu fiquei. Essa foi sua única exposição na Instituição? Não, já produzi outra exposição sobre o impacto da Guerra Civil Americana em Washington, D.C.. Nesta exposição, sob o título “How the Civil War Changed Washington” eu quase não menciono Lincoln, nem os seus generais, e nem falo de batalhas. Conto a história de pessoas que vieram para Washington durante a Guerra Civil e cujas vidas foram mudadas ou mudaram a cidade. Quem foi Lorenzo Dow Turner? Lorenzo Dow Turner era um homem de uma mente brilhante, extremamente dedicado ao seu trabalho. Ele era filho de uma ex-escrava e de um homem que só conseguiu estudar depois do final da Guerra Civil Americana, por ser negro. Mas o pai de Turner era tão inteligente e dedicado que conseguiu fazer o curso preparatório, a universidade e obter um mestrado. Esta tenacidade e dedicação aos estudos foram passadas para Turner, que conseguiu frequentar a universidade trabalhando como REVISTA CANJ ERÊ - 5 Os Gullah tinham recebido a mensagem de que a língua deles era um Inglês mal falado e que devia ser esquecido. De repente, estavam recebendo o aval de um respeitado Museu da Smithsonian. Veio gente em ônibus fretado da Geórgia e da Carolina do Sul. Tinha um senhor idoso, Gullah, que me disse que todo domingo ele ia ao culto e depois vinha para o Museu ver a exposição novamente. A exibição chegou a receber um artigo na primeira página da Seção de Artes do New York Times. garçom, para custear os estudos. O seu interesse na língua Gullah começou quando ele já era professor universitário nos anos de 1930 e ouviu dois alunos conversando em uma língua que ele imediatamente identificou como não sendo Inglês. Com o tempo, ele descobriu que o Gullah era uma língua crioula, baseada em mais de 30 idiomas africanos e o Inglês. O fascinante da história é que, antes dos estudos de Turner, todo mundo achava que os negros americanos não tinham mantido nenhum resquício da cultura dos seus ancestrais africanos. Turner provou o contrário. Ele esteve no Brasil? Sim, ele fez pesquisas na Bahia em 1940-41. Turner sabia que no Brasil os Afrodescendentes tinham mantido muito da sua cultura e ele queria comparar as suas pesquisas sobre os Gullah com o que iria encontrar na Bahia. Na verdade, o que ele encontrou foi a África na Bahia. E ficou fascinado; fez muitas gravações de pessoas falando línguas africanas e tirou fotografias incríveis. Parece que Turner faz uma “ponte” com as suas duas pesquisas que viraram livro, os Seminoles e os afro-brasileiros que retornaram para a África. Como é isso? Esta parte é muito interessante, porque quando eu editei o livro contando a história dos Seminoles negros, eu não sabia que eles eram Gullah. Foi só quando eu trabalhei com a coleção do Prof. Turner é que descobri a ligação. Eu até escrevi um artigo sobre o assunto, examinando as várias ligações entre a língua falada pelos Seminoles negros, o Gullah falado hoje nos Estados Unidos, e as línguas de matrizes africanas. Este estudo deixou bem claro que os Seminoles negros foram os Gullah que fugiram! Quanto aos Afro-brasileiros que voltaram para a África Ocidental, o Prof. Turner estava interessado na comunidade de Lagos (Nigéria) e entrevistou vários membros dessa comunidade e outros que estavam vivendo na Bahia em 1940-41, e que haviam vindo de Lagos. Ele também colecionou fotografias que usei para ilustrar o meu livro. Assim, de fato, a coleção do Prof. Turner fez uma “ponte” entre as minhas duas linhas de pesquisa que viraram livro. 6 - R EV ISTA CA NJERÊ Por onde ela passou? O Prof. Lorenzo Dow Turner gravando sem eletricidade na África. Coleção Lorenzo Dow Turner, arquivos do Anacostia Community Museum, Smithsonian Institution, doação de Lois Turner Williams Você foi responsável pelas pesquisas, curadoria e montagem? Curadoria, aqui, nos Estados Unidos, implica pesquisa, elaboração do roteiro (script) da exibição, e coleta de fotografias e de objetos para exposição. Na fase de desenho da exibição, o curador ou curadora colabora com a pessoa que está elaborando o layout da exibição. A parte gráfica e a montagem são sempre feitas por uma companhia especializada. Como concebeu a exposição? Ela vem para o Brasil completa? A exposição que foi inaugurada no Anacostia Community Museum, em 2010, continha vários objetos da coleção do Prof. Turner, daqui do Museu e de coleções de outros museus. Infelizmente, não pudemos mandar os objetos para o Brasil por motivo de segurança de objetos raros. Mas a exposição no Brasil contém muitas fotos raras e cinco vídeos, feitos especialmente para a exibição, que adicionam muita riqueza. Qual a repercussão que essa exposição teve nos EUA? Foi um sucesso incrível! Existe uma comunidade Gullah imensa ao redor de Washington, D.C. e esta comunidade veio em peso dar apoio. Tinha gente que chorava em frente ao Mural de Palavras, no qual comparávamos as palavras matrizes nas línguas africanas com palavras em Gullah, no Português falado no candomblé e até no Inglês. A exibição chamou a atenção de um deputado federal americano, James Clyburn, da Carolina do Sul, que por meio de uma ONG pessoal financiou a visita da exposição a quatro cidades de três estados. É esta a exposição que viajou pelos Estados Unidos e foi traduzida sob os auspícios da Representação Diplomática dos Estados Unidos no Brasil, e agora vai ser exibida em São Paulo. O que significa para você essa exposição no Brasil? Para mim é o máximo do sucesso pessoal e profissional. É o resultado de quase dez anos de trabalho e demonstra que profissionalismo e perseverança conseguem resultados. Você acha que fará o mesmo sucesso aqui no Brasil? Eu acho que vai chamar atenção, porque fala de um tema muito interessante para brasileiros e afrodescendentes, em especial: as ligações com a África. A experiência dos Gullah e dos Seminoles negros de certo modo remonta a experiência dos quilombolas brasileiros. Acho que vai repercutir bastante. Iniciado do Candomblé com a vestimenta de Omolu, Bahia, 1940-41. Coleção Lorenzo Dow Turner, arquivos do Anacostia Community Museum, Smithsonian Institution, doação de Lois Turner Williams Gullah, Bahia, África: Lorenzo Dow Turner ligando comunidades da diáspora africana através da linguagem A exposição documenta a pesquisas do Prof. Lorenzo Dow Turner que nos anos de 1930 descobriu que o povo Gullah da Geórgia e da Carolina do Sul mantinham partes da cultura e língua de seus antepassados escravizados do Oeste Africano para os Estados Unidos. A pesquisa de Turner produziu um tesouro vivo de tradições anteriormente desconhecidas, músicas e costumes que iluminaram conexões com as comunidades afro-brasileiras e da África Ocidental. São fotografias raras, gravações e artefatos recolhidos por Turner nessas comunidades Gullah, entre os Afro-brasileiros da Bahia, e na África Ocidental. Museu Afro Brasil A partir de 18 de agosto até 18 de outubro de 2015 Av. Pedro Álvares Cabral, Portão 10 Parque Ibirapuera, São Paulo. REVISTA CANJ ERÊ - 7 C a n je rê Instituto Casarão das Artes: O Espaço da Diversidade Afro-Brasileira e Africana em Belo Horizonte Rosália Diogo DOUTORA EM LETRAS/LITERATURA. PÓS-DOUTORA EM ANTROPOLOGIA SOCIAL. PRODUTORA CULTURAL DO INSTITUTO CULTURAL CASARÃO DAS ARTES É UMA DAS CURADORAS DO FESTIVAL DE ARTE NEGRA DE BELO HORIZONTE/2015 Editoria de Arte - Fotos: Sol Brito e Rita Peixoto O Instituto Cultural Casarão das Artes celebra com orgulho seus 2 anos de atividades. A instituição ganhou destaque no cenário cultural de Belo Horizonte por valorizar a arte, a música, a moda, a literatura e a culinária. O Instituto nasceu com o intuito de valorizar e promover as culturas africanas e afro-brasileira, e de contribuir para o enfrentamento do racismo na sociedade brasileira. 8 - R EV ISTA CA NJERÊ Tudo começou em 2013, em um diálogo entre a atual presidenta de honra da instituição, Rosália Diogo, e o artista plástico Marcial Ávila, sobre a riqueza da diversidade cultural que existe em Belo Horizonte. Ávila é o fundador da grife Chica da Silva e desde 1998 é um dos artistas de grande destaque no cenário da arte em Minas Gerais por ressaltar a beleza da cultura negra em suas obras. Rosália já era admiradora dos trabalhos do artista desde 2007. Após conhecer a riqueza de conteúdo cultural na fábrica e show room da grife Chica da Silva, localizada no bairro Santa Efigênia em um casarão antigo, ela percebeu que o seu engajamento social de mais de vinte anos com relação aos afrodescendentes poderia gerar uma grande parceria. A ideia era transformar o Casarão da Avenida Bernardo Monteiro em um centro de referência das mais variadas ações sociais com foco na cultura negra. Ávila conta que o convite para uma parceria veio no momento certo: “A proposta foi a oportunidade que faltava para completar um desejo antigo meu em abordar as riquezas da cultura negra. Sempre foi meu desejo transformar o Casarão das Artes em um lugar voltado para as questões étnico-raciais. Tentei fazer vários projetos assistencialistas. Depois de quinze anos tentando, a Rosália apareceu com essa ideia, que aceitei na hora”, ressaltou. Em agosto de 2013, o Instituto Cultural Casarão das Artes iniciou suas atividades com o lançamento do projeto Canjerê, nome escolhido por se tratar de uma palavra de origem Bantu que significa união de forças: as pessoas se unem com intuito de multiplicar suas energias, forças e saberes. O primeiro Canjerê trouxe a escritora, professora e arte educadora Madu Costa para um bate-papo e performance artística. Houve ainda um desfile de moda afro com as grifes KISaco, Black Vika e Chica da Silva. O evento funcionou como termômetro para o futuro do projeto Canjerê que não parou mais. Em cada Canjerê um tema é escolhido e abordado em vários formatos. As edições do projeto contam com participações de pessoas que se interessam igualmente pelos temas a serem trabalhados. No espaço foram realizados vários canjerês. Já se falou sobre Mulher, Mídia e Racismo, Modelos Negros na Moda e na Mídia, Independência de Moçambique, Áfricas, Ecos de Zumbi, Negras Primaveras e outros cujos temas estão frequentemente em pauta nas rodas de conversa sobre a cultura africana e afrobrasileira. A música negra é sempre destaque nos eventos, com estilos que variam entre o Rap, a Música Popular Brasileira, o Samba, o Jazz, Soul e outros estilos e gêneros musicais. Várias personalidades do Brasil e da África, como o escritor e cineasta Alex Dau, o fotógrafo e jornalista Albino Moisés e o cineasta e artista plástico Aldino Languana já passaram pelo Casarão por meio da residência artística e compartilharam seus saberes. Esse intercâmbio foi fundamental para o Instituto e proporcionou uma rica troca de experiências. Foi a oportunidade de ouvir a história da África ser contada pelos próprios africanos. Outra atividade importante nas edições do Canjerê é a feira de produtos com motivos étnicos, peças produzidas por afroempreendedores. A culinária também é destaque na maioria dos eventos, na Festa da Independência de Moçambique, por exemplo, foi servido Caril de frango, prato típico de Moçambique. O sucesso dos Canjerês atraiu muitos interessados nas culturas africanas e afro-brasileira e o Casarão passou a receber visitas de educadores e estudantes de escolas públicas, privadas e de instituições socioeducativas da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Os visitantes apreciam a exposição permanente das obras do artista plástico Marcial Ávila, a produção e show room da grife Chica da Silva, e ainda são recepcionados com palestras e contação de histórias. No ano de 2015 o projeto Canjerê tornou-se itinerante. A equipe do Casarão das Artes passou a levar os eventos para outros pontos culturais de Belo Horizonte. O projeto foi realizado na Casa África, no Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos (Muquifu), na Mazza Edições, na Biblioteca Infantil e Juvenil de Belo Horizonte, no Centro de Referência da Moda e no Centro Cultural Liberalino Alves de Oliveira (Mercado da Lagoinha). O Instituto Cultural Casarão das Artes é impulsionado por uma equipe engajada com projetos sociais no que se refere à relação mais direta com o continente africano. Os artigos desta revista abordam as diversas manifestações culturais em contextos africanos e brasileiros promovidas pelo Instituto e seus parceiros. REVISTA CANJ ERÊ - 9 G e nte d o C a n je rê Fotos: Ricardo S. G. A mulher negra nas obras do artista Marcial Ávila “O afeto é capaz de levar à abolição do racismo, é o sentimento que abole a distância ontológica entre o Mesmo e o Outro”. Muniz Sodré Robson Di Brito DISCENTE DO BACHARELADO INTERDISCIPLINAR NA UFVJM-MG. GRADUADO EM JORNALISMO PELA PUC-RIO E LETRAS PELA UNIVERSIDADE PAULISTA-SP 10 - REV ISTA CA NJ E RÊ É comum ver-se que as questões de gênero nos âmbitos sociais estão em constante confronto. Evidentemente esta luta incessante vai de encontro as maneiras hegemônicas e opressoras de se pensar o mundo1. Não é desconhecido do tecido histórico que a mulher sempre foi um objeto de representação da arte. E a mulher negra, uma figura iconográfica, sempre alvo do tom alegórico da representação do “Belo”. Uma tentativa deliberada de limitar a mulher negra para um papel de subordinado como subordinado e inferior como inferior2. No princípio do Brasil colonial a mulher negra foi representada como coadjuvante. Ela não era o tema central assim como os demais negros, mas apenas mais um dos elementos da composição das pinturas, como árvores e animais retratados por artistas europeus, pesquisadores, curiosos ou contratados para descrever a nascente Nação brasileira. No barroco, “Mestre Athayde3”, em oposição às alvas belezas santíssimas da igreja de São Francisco de Assis, na cidade de Ouro Preto – MG, retratou em Nossa Senhora de Porciúncula a mulher negra sobre o tom da mestiçagem. No Modernismo, envolta ao forte apelo social, a mulher negra, surge como um elemento representativo das raízes do Brasil, contudo não menos inserida em um universo em que se vê representada de forma ambígua, ora vista como objeto sexual, ora como fruto da opressão masculina e do capitalismo. Surge de encontro a tudo isso, no apogeu do individualismo do século XXI, em oposição à supraproduções das artes plásticas afundadas no glamour contemporâneo, sem permitir que o princípio catártico da pedagogia na construção social proporcionado pela arte se perca – Marcial Ávila. Esse dicotômico artista nascido na cidade de Diamantina – MG, é um autodidata, pesquisador, e tornou-se especialista em estudos africanos e afro-brasileiros. É possível identificar seu intuito na simples contemplação de sua arte. Seu significar e ressignificar por meio da modalidade da linguagem não verbal, na concretude educativa e na construção da autoestima das mulheres negras, destaca-se da ação clássica da arte na construção social, nas coleções “Sete Vezes Chica4”, “Devoção”, “Santas Marias”, “Origens” e “Mulheres do Rosário”. Não há luta de classes nas obras de Marcial, mas lá ela está. Não as confronta; tão pouco as suaviza, mas faz uso de um olhar clínico intuindo, conforme preconizou Clive Beel, um prazer que provoca nas pessoas emoções. Sua franqueza ao representar a estética da mulher negra sem recorrer a estereótipos não se permite ser tragada pelas formas hegemônicas de poder e opressão, mas relê as formas de concepções do mundo que giram em torno dessas mulheres, sem lançar o receptor a uma pesada construção histórica e social, que não as representou ou representa. Seria conveniente suprimir o entendimento de identidade das obras de Marcial, e isolar qualquer pressuposto de seu bem dizer a mulher negra, nivelando-o a uma artista que apenas pintou um ideal. Seria cair nas garras afiadas pela história mal analisada e contribuir com a manutenção das hierarquias de poder vigentes, no agora. Trata-se de um indivíduo, componente de uma construção social. Sujeito, consciente das relações e correlações do negro na contem- 1 Butler busca compreender as características e questionamentos do movimento feminista, e de que forma suas discussões influenciam a construção do é chamado “gênero”. 2Edward Said Imperialismo. em Cultura e 3 Manoel da Costa Athayde (17621830), importante artista do BarrocoRococó mineiro. 4 Acervo permanente do IPHAN, na Casa da Chica da Silva, na cidade de Diamantina – Minas Gerais. REVISTA CANJ ERÊ - 1 1 poraneidade. Questionador do superficial pertencimento a que essa etnia, e dentro dela a mulher, são submetidos. O Pintor-Artista inserido neste contexto influencia e é influenciado. Para tanto suas obras são mais que pigmentos em tecido: são as definições de si e as definições dos outros. Um arauto de defesa dos negros e negras, no amparo contra as ideologias que se pautam por interesses econômicos, políticos, psicológicos5. Fica claro, portanto, que ao retratar a mulher negra em suas obras Marcial Ávila não apenas se vale da estética na produção artística, mas contribui contra a manutenção hegemônica da não representação. Entretanto não o faz em tom de acusação, mas na suavidade e delicadeza que atribui as formas femininas sem feminilizar. Para Marcial a mulher negra é mulher, ser, representação da obra máxima da criação “divina” e, acima de tudo, Negra. 5 Kabengele Munanga em Entrevista à USP, 2011 (Estudos Avançados). Referências BUTLER, J. Problemas de gênero: Feminismo e a subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. DEMPSEY, Amy. Estilos, escolas e movimentos. Tradução: Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? In SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença. Petrópolis: Vozes, 2000 LACOSTE, Jean. A filosofia da arte. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 1986. MOURA, Carlos Eugênio Marcondes. A travessia da kalunga grande: três séculos de imagens sobre o negro no Brasil (1637-1899). São Paulo: Edusp, 2000. ORTEGA Y GASSET, José. A desumanização da arte. São Paulo: Cortez, 2001. 12 - REV ISTA CA NJ E RÊ REVISTA CANJ ERÊ - 13 Foto: Adriana Araújo Olhar Social Quilombolas em Belo Horizonte Territórios de resistência Adriana Araújo Bárbara Paes HISTORIADORA, ESPECIALISTA EM PATRIMÔNIO CULTURAL NA CONTEMPORANEIDADE, PESQUISADORA - CULTURAS POPULARES GEÓGRAFA, ESPECIALISTA EM GEOPROCESSAMENTO, PESQUISADORA SOCIOAMBIENTAL E DAS CULTURAS NEGRAS Os quilombos no Brasil escravocrata foram a principal forma de resistência do povo negro no país. Muito mais do que esconderijos de escravizados, significaram a maior forma de protesto e resistência contra o sistema escravista e um espaço, compartilhado, onde negros e negras puderam desenvolver seus costumes e reafirmar sua identidade. O termo “quilombo” teve seu sentido histórico ampliado, incorporando as comunidades étnicas em que a identidade do grupo e sua territorialidade está diretamente relacionada à opressão vivida e à consequência da exclusão social resultante do processo escravista. Dessa forma, os quilombolas não pertencem somente ao passado escravagista brasileiro, nem estão isolados no tempo e no espaço. Ao contrário, mantêmse vivos e atuantes, lutando pelo direito de propriedade de suas terras, reconhecidos como legítimos donos pelo artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (Constituição da República de 1988). Os quilombolas desenvolvem práticas de resistência na manutenção e reprodução da história negra no Brasil, tendo mantido suas tradições culturais ao longo dos séculos. No território nacional, existem mais Mapa das Comunidades Quilombolas em Belo Horizonte - Fonte: Quilombo Fundação Palmares - Prodabel 2015 Editoria de Arte de mil e quinhentas comunidades certificadas pela Fundação Palmares. Devido à expansão dos centros urbanos, vários territórios quilombolas tornaramse quilombos urbanos. Em Belo Horizonte, existem 3 quilombos representando a ancestralidade negra. A comunidade dos Luízes, certificada no ano de 2005 pela Fundação Cultural Palmares, localizada na regional Oeste, no bairro Grajaú; a Comunidade Mangueiras, certificada em 2006, na região Norte, no bairro Ribeiro de Abreu; e a Comunidade Manzo Ngunzo Kaiango, na regional Leste, no bairro Santa Efigênia, reconhecida pela Fundação no ano de 2007. Referências bibliográficas LEITE, Ilka Boaventura. Os Quilombos no Brasil: questões e normativas. Revista do Centro de Estudos de Antropologia Social, V. 2, n. 2, p. 333354, 2000. “(...) quilombo é um conceito próprio dos africanos bantos que vem sendo modificado através dos séculos” (...) Quer dizer acampamento guerreiro na floresta, sendo entendido ainda em Angola como divisão administrativa”. Ney Lopes 14 - REV ISTA CA NJ E RÊ REVISTA CANJ ERÊ - 15 M até r i a d e C a pa Década dos Povos Afrodescendentes: Reconhecimento, Justiça e Desenvolvimento Marcos Antonio Cardoso MILITANTE DO MOVIMENTO NEGRO, FILÓSOFO, MESTRE EM HISTÓRIA SOCIAL PELA UFMG, PROFESSOR DE INTRODUÇÃO À HISTÓRIA DA ÁFRICA E PESQUISADOR DAS CULTURAS NEGRAS Nas Américas vivem mais de 200 milhões de negros e negras. Muitos mais vivem em outros lugares do mundo, fora do continente africano. Como descendentes das vítimas do tráfico transatlântico de escravos ou como migrantes, essas pessoas constituem alguns dos grupos mais pobres e marginalizados do mundo. Estudos e pesquisas de órgãos nacionais e internacionais demonstram que pessoas afrodescendentes ainda têm acesso limitado à educação de qualidade, serviços de saúde, moradia e segurança. Com frequência, vítimas de discriminação perante a justiça, enfrentam alarmantes índices de violência policial e discriminação racial. Além disso, seu grau de participação política é baixo, tanto na votação quanto na ocupação de cargos políticos. Os afrodescendentes podem sofrer de múltiplas formas de discriminação baseadas em outros critérios relacionados, como idade, sexo, idioma, religião, opinião política ou outra, classe social, incapacidade, origem ou outros. A Declaração e o Programa de Ação de Durban reconhecem que afrodescendentes foram vítimas de escravidão, do tráfico de escravos e do colonialismo, e continuam sendo vítimas das consequências. A IIIª Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, Xenofobia e a Intolerância em Durban, em 2001, deu visibilidade às pessoas afrodescendentes e contribuiu para um avanço substancial na promoção e proteção de seus direitos, como resultado de ações concretas tomadas pelos Estados, pela ONU, por outras organizações internacionais e regionais e pela sociedade civil. Ainda assim, apesar de avanços originais, o racismo e a discriminação racial, diretos ou indiretos, de fato ou de direito, continuam a se manifestar em desigualdade e desvantagem. A Década Internacional de Afrodescendentes foi proclamada pela resolução 68/237 da Assembleia Geral das Nações Unidas em 2014 e será observada entre 2015 e 2024, com o objetivo de que as Nações Unidas, os Estados-membros, a sociedade civil e todos os outros atores relevantes possam tomar medidas eficazes para a implementação do programa de Durban no espírito de reconhecimento, da justiça e do desenvolvimento. A Década deverá destacar a importante contribuição dada pelas e pelos afrodescendentes para nossas sociedades e propor medidas concretas para promover a plena inclusão delas e deles, o combate ao racismo, à discriminação racial, à xenofobia e à intolerância. Ora, como segundo país do mundo em população negra, atrás apenas da Nigéria, o Brasil tem enorme importância no cenário mundial, tendo se tornado uma das maiores economias do mundo, com forte crescimento econômico, queda do analfabetismo, população predominantemente urbana e diminuição das Freeimages.com/Justine Furmanczyk 16 - REV ISTA CA NJ E RÊ REVISTA CANJ ERÊ - 17 desigualdades. Proporcionalmente, o maior índice desse progresso afetou positivamente a população negra. No entanto, persistem desigualdades raciais, 1 2 3 étnicas e de gênero. Por isso, destaco quatro eixos estratégicos e fundamentais para a reflexão durante a Década dos Povos Afrodescendentes: O primeiro está relacionado à produção de visibilidade da força humanizadora das mulheres negras e ao seu empoderamento cultural e político. As mulheres negras recebem, em média, 50% da remuneração das mulheres brancas. Elas correspondem por quase 70% das famílias com renda de até 1 salário mínimo. As mulheres negras são as guardiãs da sabedoria, fonte na produção do conhecimento agroecológico e são as principais mantenedoras da ciência do bem viver e dos laços psíquicos e afetivos que organizam as comunidades negras tradicionais ou não. O segundo refere-se à juventude negra. Cerca de 50 mil brasileiros são assassinados por arma de fogo por ano. Contudo, essa violência distribui-se de forma desigual: as vítimas são, sobretudo, jovens negros do sexo masculino, entre 15 e 24 anos. O Índice de Homicídio na Adolescência (IHA) evidencia que a probabilidade de ser vítima de homicídio é maior que o dobro para os negros em comparação com os brancos. Isso configura o que o Movimento Negro denomina de Genocídio do Povo Negro através do extermínio em massa da juventude negra. Nessa década, como diria Hamilton Borges da Campanha “Reaja ou será Morto, Reaja ou será Morta”, “Eu contrario as estatísticas: todo preto e preta que permanece vivo aqui neste país, que mata mais gente que qualquer outro mesmo sem guerra declarada, tem contrariado as estatísticas cotidianamente”. Desde já sigamos na contramão desta estatística fúnebre, senão em 2024, meio milhão de jovens negros terão sido assassinados no Brasil. E será inútil discutir os fantásticos mapas da exclusão pelo racismo ou chorar os mortos pela rede mundial de computadores. 4 O último eixo trata da distorção da imagem do homem e da mulher negra na televisão. Essa situação perversa de racismo e discriminação da mídia é reflexo das práticas de racismo existentes na sociedade brasileira, dos aspectos sócio-históricos que entrelaçam a trajetória do povo negro no Brasil e resultado de uma política de invisibilidade planejada da população negra pelas grandes corporações midiáticas controladas por apenas 12 famílias que detém os meios de comunicação, dos interesses econômicos do mercado e de um desejo desenfreado e subjetivo das elites em transformar e hegemonizar o Brasil como uma nação branco-européia. Portanto, a democratização dos meios de comunicação é uma exigência ética, democrática e pública para que a sociedade brasileira possa avançar na construção de políticas que promovam o desenvolvimento social e democrático inclusivo e sustentável. Isso significa ir para além do reconhecimento de que o Brasil é um país onde a diversidade étnico-racial e pluralidade cultural são marcas identitárias da nação. Isso significa produzir visibilidade da população negra como parte constitutiva da nação brasileira e que deseja ter a sua representação simbólica nos meios de comunicação social. Enfim, nesta Década dos Povos Afrodescendentes, aqui no Brasil, não vamos permitir que o racismo nos submeta à violência simbólica e física, que destrua o nosso legado ancestral e espiritual africano. Esse legado é libertário, ecológico e sagrado. A nossa emancipação é a tomada da consciência negra, dos nossos direitos como sujeitos de nossa história. Freeimages.com/Simona Balint O terceiro percebe que o agravamento das questões ambientais tem atingido significativamente as comunidades negras, submetendo-as a um quadro de injustiça ambiental alarmante. Há um silencioso massacre em curso dos quilombolas pelas hidrelétricas, mineradoras e latifundiários, que roubaram as terras dos povos indígenas e quilombolas. Os madeireiros, fazendeiros, mineradoras, barragens e usinas para produção de energia espremem e asfixiam os povos indígenas e os territórios das comunidades tradicionais quilombolas e ribeirinhas. A monocultura e o cultivo de pastagens para boi e plantações mergulhadas no veneno deterioram os alimentos e desgastam o solo, acentuam o desmatamento e destroem a diversidade biológica, poluem os rios e derrubam as árvores. O capitalismo é o grande responsável pelas crises econômica, alimentar e ambiental. O modelo de produção e consumo capitalista é incompatível com a preservação ambiental, com o uso coletivo das riquezas naturais e com a justiça social. Os verdadeiros responsáveis pela devastação das florestas, pela poluição dos rios e mares, pela degradação dos biomas e insustentabilidade urbana em todo planeta são os países imperialistas e colonialistas. Não somos responsáveis por tamanha espoliação dos seres humanos e da natureza. Não apoiamos o princípio da responsabilidade comum, pois cabe aos países ricos o principal ônus da preservação. São nos países pobres e em desenvolvimento que se encontra a maioria dos povos vitimados pela degradação ambiental e pelo racismo ambiental. As comunidades quilombolas são verdadeiros territórios de resguardo da biodiversidade e escolas da diversidade cultural. 18 - REV ISTA CA NJ E RÊ REVISTA CANJ ERÊ - 19 Ne g ó c i o s Afro empreende dorismo Elissandra Flávia Sandrinha coragem e determinação para empreender sem esquecer a responsabilidade social O Brasil vive um momento em que as políticas de inclusão impulsionam um novo ciclo de desenvolvimento econômico devido ao aumento da participação da população negra no empreendedorismo. O empoderamento econômico da população tem sido motivo de mobilização dos afroempreendedores para criarem uma atuação conjunta, visando fortalecer um ao outro. Em Belo Horizonte algumas marcas criadas por empresárias negras, como Todo Black é Power, Lolita Az Avessas, Nêga Badu e Black Vika, trabalham exclusivamente com produtos étnicos e vêm despontando no cenário da moda afro. Cientes do crescimento da autoaceitação do povo negro elas sabem que o mercado é cada vez mais exigente. Para continuar desen- GRADUANDA EM JORNALISMO(UNI-BH), ASSESSORA DE COMUNICAÇÃO DO INST. CULTURAL CASARÃO DAS ARTES RADIALISTA NA NOSSA RÁDIO BH MESTRE DE CERIMÔNIAS, PRODUTORA DE EVENTOS E CONSELHEIRA DE MODA DA ACMINAS CORPETE: TODO BLACK É POWER ACESSÓRIOS: NEGA BADÚ BLUSA, SAIA E CORRENTES: LOLITA AZ AVESSAS ACESSÓRIOS: TODO BLACK É POWER FICHA TÉCNICA: FOTO: RICARDO S. G. MODELO: CHRIS SOUZA MAKE: CATARINA QUEIROZ PRODUÇÃO DE MODA: ALINE RODRIGUES PRODUÇÃO: ELISSANDRA SANDRINHA E CIDA SANTOS 20 - REV ISTA CA NJ E RÊ volvendo o crescimento de suas empresas, as empresárias encontram apoio no projeto Brasil Afroempreendedor, iniciativa que surgiu para promover o desenvolvimento social e econômico do Brasil, junto a microempresas e empreendedores individuais afrobrasileiros oferecendo gratuitamente consultoria, cursos e capacitações. A maioria dos afroempreendedores iniciou seus negócios com recursos próprios e estão em fase de expansão. A designer de moda e empresária Enia Dara é idealizadora da Feira Ébano, evento que reúne cerca de 50 expositores vindos de várias partes do Brasil. Enia explica que a feira nasceu a partir do desejo de divulgar o trabalho dos afroempreendedores da moda, arte e beleza em um mesmo espaço multicultural. Além da Feira Ébano, outras iniciativas consolidaram-se em várias partes do Brasil, como a Feira Preta, Mercado di Preta, Deusas Urbanas, Encontro de Cacheadas e Crespas, Encrespa Geral, dentre outras ações que incluem a comercialização de produtos étnicos e que têm contribuído para o fortalecimento e crescimento desse nicho de mercado comercial e cultural. A pedagoga Zane Santos, 40, não perde a oportunidade REVISTA CANJ ERÊ - 2 1 de participar de feiras em que os produtos étnicos são destaques. Zane ressalta que sempre usa peças com motivos étnicos: “Eu uso porque gosto de valorizar o que é produzido pelo povo negro. Antes não existiam cosméticos, roupas e acessórios específicos para nós. Agora que tem, eu uso e valorizo”. As marcas que crescem a cada dia com base no empreendedorismo social Levantar a bandeira do empreendedorismo social é o foco de todas as marcas citadas nessa matéria. Embasadas no conceito étnico, as empresárias criam, produzem e comercializam suas mercadorias e ainda encontram tempo para participar de várias ações sociais que acontecem na cidade. A empresária Dandara Elias da marca Todo Black é Power, por exemplo, tem como objetivo social trabalhar autoaceitação, autoestima e a valorização do cabelo crespo. A empresária comercializa vestuário e acessórios com motivos étnicos e ao mesmo tempo traz à tona os debates sociais que visam empoderar principalmente as mulheres negras. A marca Nêga Badu, da empresária Cida Santos tem como foco os produtos inspirados na ancestralidade, usando tecidos como base principal. O resultado são peças com designer exclusivos. Já a Black Vika, de Virgínia Marques, trabalha com o vestuário afro e acessórios étnicos usando tecidos africanos. As duas últimas estão interligadas em vários projetos e eventos sociais da cidade além de realizarem oficinas em escolas. Outra marca que se inspira no empreendedorismo social é a Lolita Az Avessas, da designer de moda Lorena dos Santos. A grife trabalha com a concepção de roupas que sinalizam características de personalidade, estilo musical, postura política e orientação sexual. A marca está presente em vários eventos sociais, principalmente nos de Hip Hop. As iniciativas que visam ampliar a promoção da igualdade são grandes responsáveis pela inserção, aceitação e reconhecimento da negritude: quanto mais ações eficazes, maior o reconhecimento da importância da identidade cultural dos povos afrodescendentes. Esse é o segredo do sucesso do afroeempreendedor. No tíc ias Mulheres na Política Nilma Lino Gomes A presidenta Dilma Roussef escolheu para chefiar a Secretaria Especial de Política de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), Nilma Lino Gomes. Ela é pedagoga, antropóloga e pós-doutora em sociologia. Integrante da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (2010-2014) e ex-reitora Pró-Tempore da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). A secretaria especial tem o estatuto de ministério. Nilma Gomes é a única negra no ministério. Macaé Evaristo Pela primeira vez em Minas Gerais tem-se uma mulher negra na condição de Secretária de Estado. O nome escolhido pelo Governador Fernando Pimentel foi o de Macaé Evaristo. Macaé Evaristo é assistente social formada pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Mestre em Educação pela UFMG. Foi secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) do Ministério da Educação no governo Dilma Rousseff. É professora da rede municipal de ensino desde 1984. Foi Secretária de Educação de Belo Horizonte (MG) e uma das responsáveis pelo programa de Educação Integral da capital mineira. Também coordenou o programa de implantação de escolas indígenas de Minas Gerais entre 1997 e 2004. Samba Fino de Garagem em Belo Horizonte O Samba Fino de Garagem é realizado no coração de um dos mais tradicionais bairros de Belo Horizonte, o Caiçara. Caracteriza-se por ser um samba de raiz da melhor qualidade que acontece em um sábado de cada mês. A iniciativa foi da artesã Virgínia Marques, proprietária da marca Black Vika, e de seus filhos Carolina Thompson, Rafael Thompson, para entreter os amantes do samba em um espaço tranquilo e confortável. A cada edição do Samba Fino de Garagem, os presentes ficam com gosto de quero mais e para saber quando vai ser o próximo siga a página no Facebook. Samba Fino de Garagem: Rua Expedicionário Wilson Ferreira, 87 Bairro Caiçara. 2 2 - REV ISTA CA NJ E RÊ REVISTA CANJ ERÊ - 2 3 Ensaio Ah, o Jazz!! Coisa de gente chique, né?!! Leonardo Oliveira MESTRE E PROFESSOR EM ARQUITETURA. PESQUISA SOBRE TECNOLOGIA E COMPORTAMENTE. ESTUDA JAZZ, MÚSICA NEGRA E MÚSICA ELETRÔNICA E SUAS INFLUENCIAS EM NOSSA SOCIEDADE Quando Mama sai de casa Seus filhos de olodunzam Rola o maior Jazz (Mama África – Chico César) - Que música você gosta? - Eu gosto muito de Jazz! - Hum, já entendi! Chique hem? Sou mais humilde! Fico mesmo com o meu sambinha!!! Mas ele não entendeu! Também gosto muito de sambinha, de sambão, de soul, de rock, de manguebeat, de hip-hop. E de tantos mais outros estilos musicais que devem alguma coisa ao Jazz! Mas vou tentar explicar! Vou falar de música negra. Não se pode falar de Jazz se não falar de música negra. E vou ter contar história. O Jazz é uma forma de expressão musical do negro norte americano que deve sua concepção à existência da escravatura (Calado, 2007). É gênero musical de origem afroamericana do final do Século XIX. Surgiu em muitas partes dos 24 - REV ISTA CA NJ E RÊ Estados Unidos sob a forma de independentes estilos musicais populares, mas, todos ligados por laços comuns de origem africanaeuropeia-americana (Berendt, 1975). Não havia Jazz na África. Entretanto, ele não existiria sem a participação essencial do povo negro. Historicamente existe um pouco de reducionismo ao se contar a clássica história de negros escravos africanos entoando tristes canções nos campos de algodão. Toda cultura ancestral do povo africano não poderia ser reduzida às simples lamentações, por mais dura que fosse a vida obrigada a eles. Foi essa cultura milenar a verdadeira responsável por não deixar esse povo esquecer sua terra mãe. Toda a história e tradição da África estavam ali gerando força e esperança. A África sempre foi um continente heterogêneo e a diversidade de culturas, tradições, línguas e dialetos sempre se fez presente. Quando se inicia a diáspora, a África Ocidental foi a origem da maior parte dos africanos capturados. A colônias inglesas dos Estados Unidos receberam habitantes negros de Angola, Guiné, Congo e Benim. Com isso, a escravidão americana apresentava uma certa homogeneidade cultural. É importante considerar que as referências, matrizes, religiões e tradições de séculos, com as quais os grupos daquelas regiões vivenciavam, eram fatores determinantes em suas vidas. Eram culturas ancestrais que interagiam. Não podemos esquecer que a sociedade americana havia King Jazzing Orchestra - The Robert Runyon Photograph Collection, [image number, e.g., 00199], courtesy of The Center for American History, The University of Texas at Austin. nascido e crescia sob as fortes referências, matrizes, religiões e tradições europeias de séculos. Era um cenário de união ou confronto de diferentes formas de comportamento social, religião, valores etc. A principal diferença era que os americanos não chegaram e nem viviam naquelas terras na condição de escravos. E talvez, o que se tinha de comum seria a música. Entretanto a música não desempenhava papéis semelhantes nas duas sociedades e a principal diferença se dava justamente quanto a natureza delas. Naquela época, para os europeus a música era um artefato desvinculado da vida cotidiana. Era típico da música erudita europeia pertencer ao mundo do “artístico” e da “estética” e ser uma obra de arte (Calado, 2007). O estilo vigente na Europa era o Barroco. A ópera, o concerto e a cantata se desenvolveram neste período e eram músicas para contemplação ou diversão de uma classe. Por sua vez, a música africana era puramente funcional. Elas eram criadas com objetivo utilitário e coletivo e se prestavam à determinados propósitos sociais e religiosos, como facilitar o trabalho ou auxiliar na educação. As tais famosas canções de trabalho (work songs) dos campos de algodão carregam bem mais tradições que simples lamentações. Na cultura africana mostrava-se inconcebível que se fizesse qualquer separação entre música, dança, canção, artefato e vida do homem ou adoração aos desuses. A expressão advinha da vida e a vida era a beleza. No ocidente, porém, o triunfo do espirito econômico sobre o espírito imaginativo, possibilitou o rompimento terrível entre a vida e a arte (Jones, 1963). Quando chegaram ao continente norteamericano, os primeiros escravos africanos ainda levavam consigo os instrumentos utilizados em sua música cotidiana. Entre eles estavam os tambores. E a cultura africana valoriza os tambores, que sempre foram objetos sacros. Na África os tambores podem falar. Em muitas sociedades a linguagem é tonal, o que aproxima a fala da música REVISTA CANJ ERÊ - 2 5 Lew and Ben Snowden on banjo and fiddle in the second-story gable of their home, Clinton, Knox County, Ohio, c. 1890s. Taken from the Ben Snowden Small Picture Collection of the Ohio Historical Society dos tambores. Um pensamento ou uma mensagem poderiam ser transmitidos, sem a necessidade de se usar a voz (Calado, 2007). Em pouco tempo esses instrumentos foram destruídos. Os senhores donos de escravos sabiam por que deveriam proibir o uso destes instrumentos pelos escravos. Eles compreenderam que além de separá-los de suas famílias e tribos, a única maneira de dominá-los integralmente seria cortando os últimos laços culturais com a África (Calado, 2007). Mas a tradição era muito forte e inicialmente os negros africanos substituíram os tambores pelas palmas e batidas de pé (patting juba). Depois essa atitude acabou por acelerar o processo de 2 6 - REV ISTA CA NJ E RÊ assimilação dos instrumentos europeus. A tradição africana os fez utilizar tais instrumentos a sua maneira, de acordo com seus traços e cultura latentes na memória, em vez de adotar os conceitos estéticos ocidentais. Por esse motivo os tambores são considerados como o elo não perdido do Jazz com a música africana. A forma como os negros africanos os batiam, alternando tensão e relaxamento é que deu ao Jazz o ritmo sincopado que o distingue das outras músicas. Na evolução do Jazz muitos dos instrumentos ocidentais foram utilizados com a mesma função rítmica do tambor. Esta interessante “aculturação” demonstra como os negros buscaram manter sua tradição em relação às coisas do seu novo dia-a-dia ocidental (Schuller, 1986). Foram os elementos europeus que se integraram às tradições africanas. Podese dizer que dentro do amplo marco da tradição europeia o negro afro-americano foi capaz de conservar um núcleo significativo de sua tradição africana. Todos os elementos musicais – ritmo, melodia, timbre e as formas básicas do Jazz são essencialmente africanos em seus antecedentes e derivação (Hobsbawn, 1985). Afinal, não poderia ser diferente pois tradições de séculos, que não se tratavam de meros cultos artísticos, senão partes inseparáveis da vida diária, não seriam abandonadas tão facilmente (Schuller, 1986). E é esse núcleo que tem feito do Jazz a linguagem tão singular e cativante que é. Os negros africanos trazidos como escravos para o Brasil passaram por processos similares. E um núcleo semelhante de tradição africana foi desenvolvido mantendo o predomínio dos elementos musicais, dança, estruturas cerimoniais e representações religiosas em nossa cultura. Na música, podemos considerar que o samba é o nosso Jazz. Nos Estados Unidos no começo do Século XX, o Jazz se desenvolveu em paralelo à música ocidental nas etapas tardias da música clássica. Contudo, o Jazz se firmava como expressão popular e era tocado em bares, funerais, prostíbulos e boates onde as pessoas iam para dançar. Suas raízes são dançantes e de rituais cotidianos. Por isso se tocava (e ainda se toca) Jazz nos “alegres funerais” de Nova Orleans. Os solos e improvisações do Jazz surgiram como uma solução de se manter o ritual. Os músicos “esticavam” a música um pouco mais para que as pessoas pudessem continuar dançando. A instrumentação também foi se modificando para que, nos bares, a música se fizesse ouvir apesar do barulho das pessoas. Os banjos foram utilizados pois possuem som mais alto que violões (Byrne, 2014). O Brasil apresenta paralelos de uma mesma “aculturação”, como descrita por Schuller. O tambor, a roda de samba, o baile de forró, o camdoblé, o afoxé, etc. Nossa música mais antiga é ritual, foi feita para nos reunir, para diversão coletiva. E chegamos nelas resistindo fortemente à perda da memória ancestral e criando nosso núcleo significativo de cultura africana, mesmo que às vezes isso pareça contraditório. Talvez ainda não demos conta disso em função dos problemas ocasionados pela separação, pela tentativa de se colocar as coisas em caixas distintas, mas certamente temos o nosso próprio Jazz. Cortázar escreveu sobre Charlie Parker e seu Jazz. E o fez tão bem que é difícil definir onde termina a ficção e começa a realidade (e vice-e versa). Para ele “o Jazz descarta todo erotismo fácil, todo wagnerismo, por assim dizer, para situar-se num plano aparentemente despojado em que a música encontra absoluta liberdade, assim como a pintura subtraída ao representativo encontra a liberdade para não ser pintura” (Cortázar, 2009). E é a liberdade do improviso, da virtuose, da forma de comunicar entre os três elementos mais importantes do Jazz: a música tocada, aquele que a toca e aquele que a escuta ser tocada, que marca o ritual do Jazz como um ritual de liberdade! Penso que é por isso, e não para ser esnobe ou distinto, que quando me perguntam sobre que música gosto mais, eu imediatamente respondo Jazz! É que o Jazz é mais que um estilo musical. Jazz é núcleo de resistência. - Eu gosto muito de Jazz!!! Referências bibliográficas Malta, Carlos – O Jazz como espetáculo, 2007 Jones, Le Roi – O Jazz e sua influência na cultura americana, 1963 Schuller, Gunther – Early Jazz: it’s root and musical development, 1986 Byrne, David – Como funciona a música, 2014 Hobsbawn, Eric – História social do Jazz, 1985 Billard, Françoise – No mundo do Jazz, 1990 Cortázar, Júlio – O perseguidor (conto), 2009 REVISTA CANJ ERÊ - 27 Mo d a Capulanas Cores e padronagens africanas na moda Carlos Serra PROFESSOR CATEDRÁTICO E PRESIDENTE DO CENTRO DE ESTUDOS AFRICANOS DA UNIVERSIDADE EDUARDO MONDLANE, MAPUTO, MOÇAMBIQUE Num belo texto, Maria de Lurdes Torcato escreveu que a origem da capulana continua um enigma, mas que na África Oriental falante de Swahili diz-se que a maneira de vestir a capulana surgiu no século XIX “quando as mulheres começaram a comprar lenços (em Swahili diz-se leso) de tecido de algodão estampado e colorido, trazido pelos mercadores portugueses do Oriente para Mombaça” (AAVV, 2004). Ora, sejam quais forem as suas modalidades modernas, a capulana mais não é, em meu entender, do que uma descendente do antigo bertangil (ou bertangim), tecido de algodão vermelho e azul fabricado na Índia (Surate, Cambaia, Diu e Damão), que serviu, até, como moeda. O protótipo da capulana é anterior ao século XIX e creio que começa a afirmar-se na segunda metade do século XVIII. Todo o comércio colonial em Moçambique assentava-se em dois artigos básicos: o chamado pano (mais tarde bertangil, vindo da Índia) e a missanga (especialmente vinda de Veneza na gestão colonial portuguesa). E a atividade mercantil ligada aos tecidos, na sua extensão e profundidade, foi sempre menos atividade de portugueses do que de Indianos. Por hipótese, foram os tecidos indianos que contribuíram para a ruína da indústria local das famosas machiras zambezianas, panos de fio grosso (por vezes também fino) fabricados a partir de algodão localmente cultivado, estando a fiação e a tecelagem a cargo dos homens ainda no século XIX. Referência bibliográfica AAVV, Capulanas & Lenços. Maputo: Missanga, 2004, p. 2 Fotos: Albino Moises 2 8 - REV ISTA CA NJ E RÊ REVISTA CANJ ERÊ - 29 Foto: Acervo Pessoal Fo to g ra fi a Exposição Mwana-Mwana: pérolas do índico Solange de Brito Fotos da exposição Mwana-Mwana PROFESSORA E PESQUISADORA. GRADUADA EM PEDAGOGIA Centenas de visitantes, desde maio de 2013, acolhem com atenção a exposição de fotografias “MWANA-MWANA: pérolas do Índico”, do jornalista e fotógrafo moçambicano Albino Moisés. As imagens já estiveram expostas no Centro Cultural Casa África, no Instituto Cultural Casarão das Artes, em vários Centros Culturais da cidade e também em algumas escolas. A iniciativa de trazer as fotos de Moçambique foi da Professora Doutora Rosália Diogo, que as organizou em forma de curadoria para propiciar ao belo-horizontino um pouco dessa parte da África do índico. As fotos foram captadas na cidade e periferia de Maputo, capital de Moçambique, e 30 - REV ISTA CA NJ E RÊ ainda na província da Zambezia, na cidade de Mocuba, terra natal do fotógrafo. Em várias línguas nacionais do centro e norte de Moçambique (como é o caso das línguas chuabo, sena, nhungue, macua e outras) o termo “MWANA-MWANA” significa criança. As fotografias retratam crianças e jovens moçambicanos negros e foram inspiradas por situações cotidianas de lazer, mas também de desamparo em que muitas delas vivem em seu país. O cerne da exposição dialoga com as várias iniciativas realizadas em Belo Horizonte. Nota-se que em vários espaços de memória e diversidade cultural propiciam-se saberes diaspóricos, além da promoção das possibilidade de frui- ção a partir da produção artística relacionada à cultura afro-brasileira. Assim, Mwana-Mwana traz para Belo Horizonte por meio da fotografia uma faceta da história e da cultura moçambicanas, permitindo aos estudantes e a toda sociedade civil a oportunidade de conhecerem um pouco mais sobre Moçambique - um dos países africanos de Língua Portuguesa. Albino Moisés é jornalista cultural desde 1997 e dedica-se à fotografia desde a década de 1990. Possui fotos publicadas nos Jornais Notícias e Eco-Social e nas revistas Essencial e Ideal, tendo ocupado, nesta última, o cargo de Coordenador Editorial. É editor da Revista Baia. REVISTA CANJ ERÊ - 31 L i te ra tu ra Notas quase poéticas: Tempo dos Bichos Ilustração: Maria Luiza Viana Filinto Elísio Correia e Siva FILINTO É POETA E CRONISTA, NASCEU NA CIDADE DE PRAIA, EM CABO VERDE. É BIBLIOTECÁRIO E ADMINISTRADOR DE EMPRESAS A cidade da Praia, a esse tempo, não passava de uma pequena aldeia. Numa lenta combustão, consumava o vaticínio dos Tristes Trópicos e nós, crianças, ainda sem ler Levi-Strauss, assistíamos ao desboroar do poder colonial. Depois, veio a Independência e o surto dos novos poderes. A cidade tornou-se uma explosão de tudo. Menos de lagartos e lagartixas. Dos seres mais rastejantes, apenas certos deuses tinham direito à ribalta e suas luzes. Luzeiro de mentiras, praguejava Nona, para quem os dogmáticos deviam estar abaixo de cão, na prateleira de sua consideração. Enquanto assim explodia a cidade, seus transeuntes só não eram mais rápidos que os desenfreados veículos que, à hora de ponta, ficavam parados, quais botes 32 - REV ISTA CA NJ E RÊ encalhados na praia. Nona puxava a sua cigarreira, em verdade dava duas baforadas de cannabis e começava a contar histórias do antanho. Os naufrágios, suas buscas e seus salvamentos. Quando economizava em exageros de contar, não se regateava em detalhes. À cena adúltera da vizinha, especialmente aquela de ter sido enforcada pelo marido traído, lá vinham os sórdidos detalhes todos. Das duas, uma, responderá Diva: ou eras o amante ou estavas debaixo daquela cama. Mas havia ele escutado assaz novela de fio a pavio, silente e compenetrado. Ou ficávamos, ainda adolescentes, a reparar o germinar lento de um endocolonialismo? A cidade não teria outro atrativo...