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A IMAGEM DA MULHER NO UNIVERSO
FICCIONAL DE FERDINANDO
Jaciara Reis Veiga (UFG)
As histórias em quadrinhos são objetos de leitura de um amplo público.
Todavia, ainda são consideradas como tema infantil, revistas coloridas, nada muito
sério. Muitos as consideram como uma espécie de cultura inferior e “seu público é
considerado a ‘massa’, que seria amorfa, acrítica, infantil” (VIANA, 2008, p. 01).
As HQ são produtos sociais que expressam através dos quadrinhos uma
determinada ficção que, por sua vez, é produzida por indivíduos que são seres sociais
que realizam um trabalho coletivo, cuja base só pode ser histórica e social. Seu
conteúdo também são produtos históricos e sociais que manifestam valores,
sentimentos, concepções, etc. Desde as mais simples e superficiais, nada possuem de
“inocentes” e “neutras”. As HQ , além de ser um produto social, são manifestação do
social, e, por isso, reproduz, predominantemente, as idéias dominantes, reforçando-as.
Desta forma, os valores e idéias repassadas refletem a época da sua
produção, tornando fundamental compreeender o processo social das histórias em
quadrinhos. A contribuição de Kurt LEWIN (apud PAGÈS, 1987) é importante nesse
momento, ao afirmar que o discurso, simultaneamente, informa sobre a realidade
objetiva e sobre o indivíduo que o produz, ou seja, o “campo social” e o “campo
psicológico do indivíduo”. A imagem da mulher na obra ficcional de Ferdinando está
ligada ao contexto social e cultural no qual Al Capp produziu sua obra e ao seu campo
de percepções neste contexto.
Al Capp (Alfred Gerald Caplin) nasceu em New Haven, Connecticut, EUA,
no dia 28 de setembro de 1909 e teve uma infância pobre. A vocação para os quadrinhos
surgiria por necessidade, tentando essa profissão aos 19 anos, fazendo uma tira, Col. Em
20 de agosto de 1934, Ferdinando (Li'l Abner) fez sua estréia nos jornais norte-
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americanos levando a assinatura do até então desconhecido “Al G. Cap”. Nascia assim
uma das maiores histórias em quadrinhos de todos os tempos.
Al Capp criou uma sátira das tiras da família. Ferdinando era um rapaz de
seus eternos 19 anos que morava com sua mãe Chulipa (matriarca e briguenta, era o
melhor punho da região) e seu pai Lúcifer (um fraco), na miserável Brejo Seco, nas
montanhas do Kentucky, lugarejo inexistente nos mapas onde se desenvolveria todo um
universo de personagens que enriqueceriam ainda mais a série.
Os pesonagens não só eram caipiras, como falavam como tal. A ingenuidade
de Ferdinando servia de ponto de partida para a maioria das histórias, todas calcadas em
situações praticamente absurdas.
Considerado uma figura mais controvérsa do que sua criação, Capp atraía
vários admiradores, mas também críticos de suas obras que desafiavam até a
Constituição dos Estados Unidos. Al Capp não poupava ninguém, nem mesmo os
próprios quadrinhos. Criou um mundo de sátiras ao canibalismo industrial, ao
marcathismo, à política de ajuda aos países subdesenvolvidos, às alianças militares, à
sociedade de consumo, enfim, ao próprio American Way of Life. Com sua fórmula
satírica e tão arrasadora dos costumes do homem nos EUA, fez sucesso durante trinta
anos.
Dos anos 60 em diante suas histórias tomam um rumo conservador,
causando protestos dos leitores e seu declínio, até que em 1977 Capp decidiu
voluntariamente deixar de produzi-la. Dois anos depois morre, após ter sacudido a
América trinta anos antes.
Nosso objetivo é analisar a imagem da mulher nestas obras – entendendo
por imagem uma determinada forma de ver as mulheres, levando em consideração a
biografia do autor e o contexto social no qual ele viveu, além das proprias histórias em
que manifestou tal imagem.
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É inegável a importância dos Estados Unidos da América na conjuntura
geral da história do século XX. Durante os primeiros cinquenta anos deste mesmo
século, o país tomou definitivamente as rédeas e o “cargo” de país hegemônico global
que, segundo alguns teóricos, se mantém até hoje.
O país teve seu auge no pós-Segunda Guerra, porém seus primeiros
contornos foram traçados em meados do século XIX, tornando-se mais evidentes na
década de 1920.
Os Estados Unidos experimentaram um período de prosperidade e bem-estar
social nunca vistos em sua e talvez em toda a história. Esse modelo de classe
média branca, confortável, bem remunerada e inserida no mercado de
consumo exportado para todo o mundo através da grande influência do país é
conhecido como American Way of Life. (Teixeira, 2008, p.33)
American Way of Life é conhecido como uma “política desenvolvida entre
guerras e inteiramente implantada pós-Segunda Guerra Mundial e exportado para o
mundo, como modelo de qualidade de vida”. Contudo, é acusado como raíz de muitos
males como o consumo de massas, a cultura de massa homogeneizante, trabalho
estritamente masculino deixando as mulheres no trabalho doméstico, o desdém às
questões sociais dentre outras malezas. No entanto, “sabe-se que tudo isso não ocorreu
como uma política implementada, mas como resultado de um contexto histórico e
econômico favorável vivido pelos Estados Unidos na primeira metade do século XX”.
(Teixeira, 2008, p. 34)
A família, por sua vez, era considerada a chave da ordem social e a base do
governo estável. Os primeiros americanos eram herdeiros de uma cultura tradicional
com raízes em um passado medieval. Em sua bagagem trouxeram crenças e valores
profundamente enraizados com relação à vida familiar.
A família individual era a unidade básica da vida diária, a célula irredutível a
partir da qual toda sociedade humana era moldada. Ela constituía, sem
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dúvida, o modelo para qualquer outra estrutura de autoridade; como disse um
autor do século dezessete, 'a família é uma pequena igreja, uma pequena
comunidade... uma escola, na qual são aprendidos os primeiros princípios e
fundamentos de governo e obediência, por meio dos quais os homens são
preparados para funções mais importantes na igreja e na comunidade'. Ou –
invertendo a metáfora – as comunidades religiosas e políticas não passam de
grandes famílias (Demos, 1978, p. 03).
A família desempenhava um papel fundamental. “Se o lar falhasse, a vida
humana seria reduzida ao nível da selva” (Demos, 2008, p. 11). E enraizada no centro
do lar estava a figura altamente romântica da mulher (aquela que representava e
mantinha as delicadas virtudes). Era ela a responsável por guardar os interesses do
marido, previni-lo do perigo, confortá-lo nas dificuldades, proporcionando-lhe a maior
das felicidades. “Tal criatura era 'uma pérola sem preço', uma peça decorativa e
apropriada ao chamado 'culto da Verdadeira Feminilidade'”(Demos, 2008, p. 13). Seu
trabalho era restrito ao ambiente doméstico; o lar tornou-se altar e prisão ao mesmo
tempo. A mulher era considerada “uma garatia dos antigos valores tão amorosamente
preservados e com tanta displicência tratados...a refém do lar” (Demos, 2008, p. 13), e
como refém, não tinha liberdade de movimentos. Sua autoridade era exercida apenas
por atitudes simbólicas. Era submissa e devia obediência à vontade do esposo, e seu
principal papel era o de confortá-lo. Ela não podia viver por ela mesma, tinha como
função propocionar elevação moral a todos que entrasse em contato, principalmente, o
marido e os filhos.
É nesse contexto que a obra de Al Capp é produzida, ou seja, numa
sociedade na qual a família é supervalorada e numa concepção conservadora, onde a
mulher domina o espaço doméstico e o espaço social é dominado pelo homem. Betty
Friedam (1971) mostra como a educação das mulheres em nível superior começou a
crescer nos EUA, mas continuava sendo relativamente restrito e era marcado por
desistência, não exercício da profissão, etc., sendo que o casamento e a maternidade
eram dominantes. Ela comenta sobre as recém-diplomadas:
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Poucas entre as recém-diplomadas conseguiram distinguir-se numa carreira
ou profissão. O número é menor que o das turmas anteriores à Segunda
Guerra Mundial, a Grande Divisora. Uma cifra cada vez mais reduzida de
universitárias prepara-se para qualquer profissão que exija além de um
compromisso casual. Duas em três jovens que ingressam na universidade
abandonam os estudos antes de terminá-los. Na década de 50, as que ficaram,
mesmo as mais capazes, não demonstravam sinais de desejar algo além de ser
dona de casa e mãe de família. (Friedan, 1971, p. 131)
A obra de Friedan, publicada em 1963, mostra um tema constante da obra
de Al Capp, a questão do casamento como valor e objetivo de grande parte das
mulheres. Esse é contexto social e histórico no qual Al Capp produz Ferdinando,
mostrando “a corrida para o casamento”. Isso foi retratado por ele de forma mais
desenvolvida numa de suas histórias clássicas, O Dia da Maria Cebola (Sadie Hawkins
Days). Nesse dia, feriado anual em Brejo Seco, a cidade fictícia na qual vive a Família
Buscapé, as moças correm atrás dos rapazes solteiros, de acordo com os costumes
tradicionais do local.
É nesse contexto que se dá a relação entre Ferdinando e Violeta, que usa o
Dia da Maria Cebola para tentar conquistá-lo. Essa história é de 1937 e se tornou
costume popular em universidades e instituições americanas em 1939. Então, a história
de Ferdinando mostra sob a forma cômica e metafórica algo que Al Capp enxerga na
realidade norte-americana. Nesse sentido, a comicidade mostra o senso crítico de Al
Capp em relação à situação da mulher no caso de sua relação com o casamento.
Isto também pode ser visto nas imagens que Al Capp apresenta das
mulheres. O jogo entre “feio” e “bonito” que este autor faz é apresentado através das
imagens diferenciadas entre solteiras e casadas. As solteiras são apresentadas de acordo
com o padrão dominante de beleza nos EUA. Esse é o caso de várias personagens
femininas. Violeta é o destaque, mas a quase totalidade das solteiras são apresentadas de
acordo com o padrão dominante de beleza nos EUA. No caso das casadas, basta ver as
mulheres de Brejo Seco comandadas por Chulipa Buscapé para ver o padrão de
mulheres que estão muito distante de tal padrão.
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Violeta foi comparada, por exemplo, com Marilyn Monroe, considerada um
sexy simbol de maior repercussão na história do cinema, que, segundo algumas
especulações, imitaria a personagem dos quadrinhos. Já a mãe de Ferdinando, Chulipa
Buscapé, é apresentada de forma oposta, como se pode ver na imagem abaixo:
Figura 02: Chulipa Buscapé
Figura 01: Violeta.
Assim, a questão é o que expressam tais imagens. A imagem também
repassa valores, concepcões, sentimentos, etc. e Al Capp era bastante meticuloso com
suas construções (basta ver o jogo que faz com as palavras e nomes dos personagens,
fazendo alusão a pessoas reais, políticos da época, artistas, etc.). Nesse sentido, a
imagem da Violeta e outras mulheres solteiras em contraposição à imagem de Chulipa
Buscapé não é algo sem sentido ou objetivo. A relação entre beleza feminina (de acordo
com o padrão dominante) e mulher solteira, por um lado, e falta de beleza (no mesmo
sentido) e mulher casada expressa uma mensagem. Sem dúvida, a mensagem poderia
ser simplesmente uma questão de idade: as moças solteiras, por serem mais jovens,
tendem a ser mais belas e as casadas, sendo mais velhas, tendem a ser menos belas.
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Porém, pelo que se conhece do autor da obra fictícia, dificilmente seria algo tão simples
assim. Temos uma oposição entre belo/feio que é equivalente a solteira/casada.
Se ultrapassarmos a percepção apenas da imagem, perceberemos, ao
contrário do que coloca os analistas, que o pai de Ferdinando e os homens casados
também possuem uma aparência diferenciada dos solteiros. Assim, ao contrário da
maioria das interpretações, a oposição é entre as pessoas (tanto homens quanto
mulheres) casadas e solteiras. O casamento, tal como é apresentado nas histórias de
Ferdinando é algo que alguns fogem (Ferdinando fugiu de seu casamento com Violeta
de 1937 a 1952 e quando saiu a revista com a realização do mesmo, foi capa da Revista
Life). O Dia da Maria Cebola é o dia em que os homens correm do casamento. As
mulheres correm atrás do casamento. Aqui, simbolicamente, podemos ver que o
casamento produz feiúra tanto para homens quanto para mulheres, porém, antes dele as
mulheres o querem e os homens não (obviamente que isto se referindo aos personagens
principais e outros aspectos).
Outro aspecto é a percepção que Al Capp possui das mulheres casadas,
como possuindo um determinado poder. Isso pode ser visto em Chulipa Buscapé e ficou
popularizado como uma crítica do “matriarcado norte-americano”, ideia reproduzida por
alguns autores e cuja origem se encontra numa introdução de John Steinbeck a uma
seleção de histórias de Ferdinando (Steinbeck,1953), onde ele apresenta um perfil de
Violeta (Daisy Mae) e Chulipa Buscapé (Pansy) e Lúcifer (pai de Ferdinando):
Daisy Mae, inocente, estúpida, bela, constante, virgem e nua, e construída,
que como você sabe - em uma palavra, é o sonho de toda garota adolescente.
Pansy, Li'l Abner mãe, pequena, dura, a melhor lutadora em Dogpatch, a
governante da família e da comunidade, a verdadeira matriarca e ainda capaz
de passar por situações difíceis, fazendo milagres. O pai da família, estúpido,
ineficaz, adorável e trapalhão. (Steinbeck, 1953, p. 11)
O que Steinbeck coloca, na verdade, é que Chulipa é uma matriarca, além
de ser pequena, áspera, e governante da família e comunidade. No entanto, ele afirma
que “Dogpatch é um lugar muito real para nós”. Esse lugar real mostra que para
Steinbeck as relações entre homens e mulheres são as que estão nas histórias de
Ferdinando. No fundo, o caráter crítico da abordagem de Ferdinando e que explica tanto
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a imagem dicotômica das mulheres como o papel delas de acordo com sua posição civil,
é uma crítica do casamento. Afinal, foi o próprio Al Capp que afirmou em entrevista de
que a “licença de casamento” deveria ser renovada como “licença de automóveis”, a
“cada dois anos” (Al Capp, 1965).
Aqui temos um dado curioso, Al Capp realiza uma crítica do casamento em
suas produções quadrinísticas. Mas o que ele vê de errado no casamento? Segundo a
interpretação derivada da introdução de Steinbeck, seria o matriarcado instaurado e a
relação entre Chulipa e Lúcifer Buscapé, mostra realmente uma atitude autoritária e
dominante da mulher. E não só nesse caso, pois a história O Voto Feminino, é ilustrativa
para mostrar a relação homem-mulher apresentada por Al Capp. A curta história de
nove quadros começa com um quadro em que Lúcifer fala ao seu neto, Joãozinho
Honesto, que desde que as mulheres passaram a votar, há igualdade entre elas e os
homens. A imagem mostra um homem que é candidato com uma placa “vote para
acabar com o dia de Maria Cebola” e uma mulher candidata com uma placa escrita
“vote para continuar o Dia de Maria Cebola”. E, no mesmo quadro, passando pelos
candidatos, dois casais indo votar, sendo que as mulheres levavam seus maridos pela
coleira. No quadro seguinte, Lúcifer diz que foi ele quem concedeu o voto às mulheres e
o menino diz que é um orgulho ser neto de um velho liberal. No quadro posterior,
Chulipa Buscapé cai de uma árvore em cima da cabeça de Lúcifer e diz que isso foi de
certa forma verdade, “mas houve outros detalhes”.
Nos quadros seguintes ela narra o que realmente aconteceu: ela cortejava o
futuro estadista Lúcifer Buscapé e um dia ele afirmou que ele iria acabar com o Dia da
Maria Cebola e ela o afogou até ele concordar com o direito do voto feminino e, no
parlamento, ele diz: “proponho que a mulher também vote! Elas são iguais à gente” e do
lado de fora da janela, uma mulher com um porrete diz: “meu marido também está de
acordo”. No quadro final, Chulipa Buscapé afirma que a partir de então o Dia da Maria
Cebola se tornou uma data nacional legal.
Essa história, assim como outras, reforça a ideia de que as mulheres
possuem um poder sobre os homens. Esse poder se daria, principalmente, na esfera
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familiar, mas teria ressonâncias em todas as outras, já que através da família
controlariam os homens e estes a política institucional. Essa posição de Al Capp
corresponde à realidade norte-americana? Pelo que vimos anteriormente, dificilmente se
poderia pensar que sim, a mulher estaria reclusa na família e trabalho doméstico. No
entanto, o lar era “prisão”, mas ao mesmo tempo “altar”. Era na família que a mulher
poderia exercer mais influência, nesse contexto.
Porém, isto está um tanto quanto longe da ideia de matriarcado e da tirania
de Chulipa Buscapé, mas, certamente, manifestava aspectos das relações familiares nos
Estados Unidos, o que permitiu a afirmação de Steinbeck segundo a qual as relações em
Brejo Seco são bem “reais”. Obviamente que o exagero da história de Ferdinando pode
ter sido proporcionado pela história pessoal de Al Capp, uma forma mais exagerada de
manifestação desse tipo de relação entre esposa e marido. De qualquer forma, o que se
confirma é que no universo ficcional de Ferdinando há uma crítica do casamento e uma
afirmação do poder das mulheres nas relações conjugais – e isso justificaria os homens
correrem do casamento no Dia da Maria Cebola – e por isso retratar os homens e
mulheres casados, geralmente (pois existem exceções) como feios e as mulheres e
homens solteiros com boa aparência (também havendo exceções).
A ideia central da história “O voto feminino” é justamente a de que o
homem decide politicamente, mas sua decisão é pré-decidida na família, pela mulher. É
o chamado “poder dos bastidores” da mulher. Para exercer tal poder, é necessário o
casamento e este promove o Dia da Maria Cebola. Assim, este costume seria preservado
em todas as histórias posteriores de Ferdinando, inclusive após seu casamento, no qual
apareceria o seu irmão desaparecido, Magriço, que seria o novo alvo para tal dia.
Desta forma, a critica ao casamento está relacionada com o papel da mulher
mesmo na sua suposta “tirania”. O jogo de imagem entre mulher solteira/bela e mulher
casada/feia revela o processo de mudança das mulheres, que antes do casamento correm
atrás dos homens e, depois, os controlam. Obviamente que esta é a concepção de Al
Capp, que podemos extrair de suas histórias e é reforçada por entrevistas do próprio
autor. Em síntese, a imagem da mulher no universo ficcional de Ferdinando é a da
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mulher bela e atraente que se torna mulher feia e autoritária e para chegar a esta
condição é necessária a anterior.
Obviamente que esta é a concepção de Al Capp, retirada do contexto sóciohistórico no qual ele vivia e sua inserção particular no mesmo, o que não expressa a
realidade. A realidade é reinterpretada por ele a partir de suas experiências pessoais,
concepções, etc. e isto provoca um certo exagero. A forma como ele passa, por ser
ficcional e ter a intenção cômica, então é um exagero de um determinado tipo de relação
existente, ou seja, um exagero do exagero. De qualquer forma, não é uma invenção
arbitrária e sem nenhum vínculo com a realidade, pois, a sociedade norte-americana e o
papel da mulher na esfera doméstica apontava para uma resistência feminina mais forte
nas relações familiares, com diferenças de acordo com região, classe social, entre
outras.
Enfim, podemos então concluir, que nosso objetivo foi alcançado. A
imagem da mulher expressa no universo ficcional de Ferdinando é baseado numa
sociedade na qual a família é supervalorizada e conservadora, onde a mulher domina
somente o espaço doméstico. O casamento é valorado e objetivo de grande parte das
mulheres da época. No seu jogo entre “feio” e “belo”, Al Capp, nos revela a oposição
entre casadas e solteiras, sendo que as solteiras são apresentadas de acordo com o
padrão de beleza dos EUA, ou seja, como um “sexy simbol”, já as casadas, são o
oposto.
O autor nos apresenta o processo de mudança pelo qual as mulheres passam.
Este, por sua vez, se dá através do casamento. Antes, as mulheres correm atrás dos
homens, e depois, os controlam. Apesar do homem tomar as decisões políticas, essas
são pré-decididas na família, ou seja, pela mulher, demonstrando o poder que as
mulheres exerciam após o casamento. Em síntese, a imagem da mulher que o autor nos
revela é a da mulher bela e atraente que se torna mulher feia e autoritária e para chegar a
esta condição é necessária a anterior. Outro aspecto que podemos perceber, é que, no
contexto da época, o casamento produz feiúra tanto para homens como para mulheres.
O jogo entre “feio/belo” é também uma oposisão entre as pessoas. Antes do casamento
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elas são “belas” e depois tornam-se “feias”. A imagem da mulher é daquela que muda
com o casamento, ela é uma crítica do casamento, pelos seus efeitos sobre homens e
mulheres. Lúcifer, pai de Ferdinando, são apresentados como “feios”, pois “fracos”. A
imagem da mulher é produzida ao lado da imagem do homem. O casamento é o divisor
das imagens entre o belo e o feio, o forte e o fraco, o submisso e o autoritário.
Essa imagem expressa por Al Capp, nos é colocada de forma exagerada, no
entanto, não é uma invenção arbitrária da realidade, pois a sociedade norte-americana e
o papel da mulher na esfera doméstica apontava para uma resistência feminina mais
forte nas relações familiares, com diferenças de acordo com região, classe social, entre
outras. De qualquer forma, o que se tem é que, expressando de forma particular
determinadas relações sociais, no caso as relações entre homens e mulheres, Al Capp
manifesta sua posição diante um fenômeno social real, criando uma percepção própria e
crítica do casamento.
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