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MEMÓRIA FUNDACIONAL E IDENTIDADE: OS OLHARES SOBRE A POPULAÇÃO NEGRA Maria Aparecida Corrêa Custódio Doutoranda FeUSP [email protected] Palavras-chave: história da educação; Asilo Sagrada Família; população negra. Esta comunicação é parte de uma pesquisa que se inscreve no âmbito da história de um orfanato feminino da cidade de São Paulo, bairro Ipiranga, criado em 1903 para atender filhas de ex-escravos e de seus descendentes. Trata-se do Asilo Sagrada Família, uma obra idealizada pelo Conde Vicente de Azevedo desde 1890 e gerenciada pelas Irmãzinhas da Imaculada Conceição a partir de 1903, data de sua inauguração. Os objetivos nesse momento são os de analisar os olhares sobre a população negra registrados nos documentos que tratam dos principais agentes do Asilo Sagrada Família: o Conde Vicente de Azevedo e as Irmãzinhas da Imaculada Conceição - durante a fase inicial de organização, inauguração e primeiros tempos do asilo, em especial em sua implantação no ano de 1903. Para trabalhar esta temática dialogo com alguns dados e excertos extraídos de fontes primárias distintas: crônicas manuscritas da história das Irmãzinhas da Imaculada Conceição elaboradas por Madre Dorotéa (História da Congregação: 1865-1921); crônicas datilografadas da história das Irmãzinhas da Imaculada Conceição também atribuídas à Madre Dorotéa (História da Congregação: 1895-1943); pesquisa de Irmã Natividade (1975); biografia de Madre Paulina (Biografia Documentada, 1987). Entre esses documentos, priorizo excertos das crônicas manuscritas por serem as mais antigas e alguns da Biografia Documentada pela sua fluência redacional, mas em outro momento da pesquisa farei uma análise comparativa desses materiais. Cito também trechos das escrituras de doação do terreno onde foi construído o asilo a fim de chamar atenção para a finalidade da obra. Apresento ainda alguns excertos da biografia do Conde Vicente de Azevedo escrita por seus familiares (Franceschini, 1996). Todos esses materiais reúnem um conjunto significativo de documentos e dados sobre as origens do Asilo Sagrada Família e, certamente, expressam a visão das irmãs que escreveram a história da congregação e a visão dos familiares do conde que biografaram sua vida. Alguns aspectos dessas visões estão presentes nos fragmentos selecionados de algumas entrevistas realizadas. No que diz respeito à pesquisa bibliográfica, destaco a obra de Foner (1988) que me inspira na formulação de algumas conjecturas a respeito do contexto de criação do Asilo Sagrada Família. Vale dizer que percorro um caminho de pesquisa “que subjaz as expressões ler entre as linhas, decifrar o não dito, procurar tornar visível o oculto, interpretar o indizível” (Dias, 1998, p. 250). Com base na pesquisa realizada por Ir. Natividade (1975) sabe-se que a criação de uma obra para atender parte da população negra começou a ser pensada pelo Conde Vicente de Azevedo em 1890, no bojo da libertação dos escravos no Brasil (1888), quando ele era provedor da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Catedral da Sé. Para essa obra, o conde doou terreno no Ipiranga. Nesse terreno, inicialmente foi construída a Capela Sagrada Família (inaugurada em 1891), onde se anexou o Asilo Sagrada Família em GEHER – Grupo de Estudos História da Educação e Religião – www.geher.fe.usp.br Proibida a reprodução e a publicação sem autorização expressa dos autores. 1903. A escritura de doação desse terreno, oficializada anos mais tarde, deixava claro que a obra era “para o fim de serem asylados, socorridos ou beneficiados os ex-escravos brasileiros, seus descendentes e principalmente os velhos desamparados ou inválidos” (escritura de doação do inter-vivos: 20/07/1905). A ideia de criar um asilo com os objetivos citados anteriormente, se pensada nas entrelinhas conforme me inspira Foner (1988), pode revelar a situação caótica de negros e de negras na cidade de São Paulo no final da escravidão e início da vida emancipada, suscitando ações filantrópicas provavelmente decorrentes de múltiplos olhares. Mas há de se questionar a qualidade desses olhares: assistencialistas e caritativos ou discriminatórios e preconceituosos? Olhares convergentes, ambíguos ou contraditórios? Um desses olhares ou, simultaneamente, parte de cada um compõe a memória fundacional do Asilo Sagrada Família? Pois bem, são estas as questões que abordarei a seguir. O Conde Vicente de Azevedo (1859-1944) é uma das figuras emblemáticas que desponta nos relatos históricos dos tempos primordiais do asilo: membro de uma família pertencente às oligarquias cafeicultoras da Província de São Paulo, professor, advogado, político e católico atuante na igreja paulista. Em sua trajetória de político representante da facção católica, Vicente de Azevedo é conhecido pelas “obras pias de religião e instrução da infância pobre” que foram implantadas no Ipiranga - Asilo de Meninas Órfãs Desamparadas Nossa Senhora Auxiliadora, Orfanato Cristóvão Colombo, Instituto Padre Chico, Grupo Escolar São José - e em outras localidades. Pelo menos, é isso que diz sua biografia familiar que o venera e o exalta (Franceschini, 1996). No que tangue a questão da orfandade e dos negros, segundo relato familiar, aos nove anos ele perdeu o pai e desde então teria se sensibilizado para com a infância desvalida (Franceschini, 1996, p. 43-44). Ele também teria se incomodado com a situação dos escravos. Desde a sua adolescência, papai ficou profundamente penalizado pelo que tantas vezes tinha ouvido contar a respeito dos inúmeros horrores e torturas que muitos fazendeiros infligiam aos seus escravos e escravas. Assim, bem cedo, concebeu o propósito de um dia fazer alguma coisa em benefício desses pobres indefesos, profundamente sofredores (Franceschini, 1996, p. 382). Sendo assim, o Conde Vicente de Azevedo teria tomado uma atitude de reparação aos negros, destinando parte de suas propriedades, herdadas de seus avós, às obras de caridade e religiosas, pois „aqueles cabedais provinham, em parte, do trabalho escravo, e ele sempre dizia: o que foi ganho à custa do sofrimento alheio não traz felicidade‟ (Franceschini, 1996, p. 121). Uma coisa é certa: a família Azevedo possuía fazenda em Lorena, no Vale do Paraíba, região pioneira na implantação da cultura do café no Estado de São Paulo. Seu avô, Comendador José Vicente de Azevedo, se instalou lá na segunda década do século 19 para “tentar fortuna no comércio” e logo “adquiriu posição social de relevo pela atividade, não só no comércio e na lavoura, como ainda na política (Franceschini, 1996, p. 23; 26). Na época os escravos representavam a grande força de trabalho nas fazendas, sendo mais tarde substituídos pelos imigrantes (Costa & Mello, 1996, p. 152-154). Ora, nesse contexto o Conde Vicente de Azevedo tem razão quando diz que seus cabedais provinham do trabalho escravo... Um trabalho interessante seria o de arrolar os documentos [comprovantes] da referida doação de parte da herança às obras de caridade. GEHER – Grupo de Estudos História da Educação e Religião – www.geher.fe.usp.br Proibida a reprodução e a publicação sem autorização expressa dos autores. Ainda conforme informação familiar, o Asilo Sagrada Família foi pensado “como ato de caridade e de reparação pelo muito que sofreu no Brasil essa pobre raça negra” (Franceschini, 1996, 141). Por trás dessas intenções, podemos apreender o pensamento azevediano para tratar da questão dos negros no pós-abolição: a solução é investir nas obras de caridade. Certamente, a provável presença de negros “velhos desamparados ou inválidos e de meninas que por questão de raça e de cor encontravam dificuldades para receber o necessário amparo social em outras instituições” (Escritura de doação: 02 de agosto de 1951) [grifo nosso] incomodava o Conde Vicente de Azevedo.1 Aqui faço um parêntese para explicar a provável dificuldade de as meninas negras ingressar no próprio Asilo de Meninas Órfãs de Nossa Senhora Auxiliadora, fundado pelo Conde Vicente de Azevedo em 1896, no Ipiranga. Segundo depoimento da neta do conde, Maria Gabriela de Azevedo Fransceschini, (...) na ocasião, hoje nós chamamos o que realmente é, preconceito, havia um preconceito muito acentuado. Então mesmo para entrar lá, no asilo de meninas órfãs e desamparadas [Asilo de Meninas Orphans de N. S. Auxiliadora do Ipiranga] precisava ser órfã realmente, com atestado de óbito do pai ou da mãe, ou de ambos. Precisava ser batizada, os pais tinham que ser casados na religião católica, precisava ser branca. Então ele [Conde Vicente de Azevedo] ficou pensando... [precisa mesmo criar um asilo para atender meninas negras] e realmente não eram só os brancos que precisavam, né... tinha os negros descendentes de ex-escravos... (Entrevista: 2007).2 Conforme o depoimento, provavelmente o Asilo Sagrada Família constituiu-se em espaço alternativo de atendimento para órfãs que não possuíam documentação (atestado de óbito do pai ou da mãe; certidão de batismo; certidão de casamento dos pais) e nem eram brancas. Em outro momento da pesquisa investigarei melhor esta questão. Todavia, ainda que o Conde Vicente de Azevedo tenha idealizado o Asilo Sagrada Família como uma instituição voltada para o atendimento de negros/as, entendo que sua iniciativa está alinhada com o conceito de ação branca, desenvolvido por Barros (2005).3 Assim, o Asilo Sagrada Família pode ser concebido como uma estratégia das elites brancas que percebem a importância de destinar atendimento à camada negra tendo em vista a modernização em curso, momento em que a abolição do trabalho escravo trazia a demanda da integração na sociedade. No caso do Conde Vicente de Azevedo, militante e representante fiel dos princípios da doutrina católica, a intenção primária é a benemerência para com os pobres [filantropia]. E já que é uma obra articulada nos espaços da Igreja Católica, é convidada uma congregação religiosa feminina [freiras] para trabalhar nela. Note que, com base na pesquisa de Abbade (1995, p. 96-174), após a inauguração da Capela Sagrada Família (1891) passaram-se quase dez anos até a viabilização da obra para atender a popular negra. De fato, o projeto foi retomado em 1900, com a realização de eventos beneficentes para angariar fundos e, simultaneamente, criação de uma instituição jurídica – inicialmente chamada Instituição Casas da Providência para gerenciar a obra [uma espécie de associação formada pelo clero e pelo laicato da Igreja Católica]. Nessa instituição, o Conde Vicente de Azevedo, certamente, era um dos membros mais influentes até porque, conforme explanei anteriormente foi ele que doou o terreno para a construção da Capela Sagrada Família e do futuro asilo. GEHER – Grupo de Estudos História da Educação e Religião – www.geher.fe.usp.br Proibida a reprodução e a publicação sem autorização expressa dos autores. Vale dizer que o estatuto da Instituição Casas da Providência, publicado no Diário Oficial do Estado de São Paulo de três de julho de 1902, previa uma ampla assistência à população negra, em especial as pessoas idosas, conforme diz o artigo 1º: I. Proporcionar agasalho, alimentação, vestuário e todos os socorros aos velhos inválidos ex-escravos e descendentes destes, de um e de outro sexo; II. Prestar assistência aos ex-escravos ou seus descendentes cegos, aleijados ou por qualquer forma inutilizados para o trabalho; III. Amparar e educar, instruindo-as principalmente em serviços profissionais e agrícolas, ou conforme a vocação manifestada, as crianças desvalidas descendentes de escravos ou ex-escravos; IV. Promover o interesse de todos quantos sofreram o cativeiro no Brasil, e seus descendentes: protegê-los e favorecê-los pelos meios a seu alcance (extraído dos anexos do trabalho de Abbade, 1995, p. 120). Lendo as intenções da Instituição Casas da Providência, entre suas linhas e por trás delas, talvez se vislumbre a situação da população negra no período pós-abolição. É o que sugere o título da obra de Foner: “Nada além da liberdade”. Segundo Foner, o título indica a nova situação do ex-escravo e provém de um comentário feito pelo tesoureiro da Associação Americana dos Fazendeiros de Algodão, o ex-general confederado Robert Richardson, em 1865: “os escravos emancipados não têm nada porque nada além da liberdade foi dado a eles” (Foner, 1988, p. 23). Também Azevedo emprestou esta expressão para comentar a situação dos ex-escravos americanos (Azevedo, 2003, p. 191). Seja como for, “Nada além da liberdade” sublinha a natureza ambígua da própria liberdade: “(...) uma definição de liberdade como simples posse de si era extremamente truncada, pois lançava os negros no mercado livre de trabalho empobrecidos, analfabetos e em desvantagem em inúmeros outros aspectos” (Foner, 1988, p. 23-24). Contudo, ainda segundo Foner, “quaisquer que fosse suas limitações, a liberdade era, no final das contas, mais do que nada. (...) para os negros, a emancipação representava principal linha divisória em suas vidas” (Foner, 1988, p. 24).4 E por falar em ambiguidades, as finalidades da Instituição Casas da Providência também não se efetivaram conforme previam seus estatutos... é o que mostro a seguir. Além da organização jurídica [escolha de diretoria e publicação de estatuto], os membros da Instituição Casas da Providência entraram em contato com as Irmãs da Divina Providência que aceitaram a proposta de trabalhar na futura obra dia 5 de setembro de 1901. Na época, para não confundir os nomes das duas instituições (ambas da Providência), os membros da Instituição Casas da Providência resolveram renomeála Instituição Sagrada Família. Mas as Irmãs da Divina Providência desistiram da obra no dia 24 de março de 1902. Parece que um dos pivôs do desentendimento entre as irmãs e os membros da Instituição Sagrada Família (leia-se: o conde!) foi o tipo de público-alvo: as irmãs desejavam atender apenas as meninas e não os negros idosos. Outra questão dizia respeito à aplicação dos recursos financeiros recebidos da Câmara Municipal [subvenção articulada pelo Conde Vicente de Azevedo que na época era deputado e atuava na Câmara Estadual, representando o Vale do Paraíba]. Todavia, em 1903, com apoio do padre jesuíta Luiz Maria Rossi que procurava uma oportunidade para trazer as Irmãzinhas da Imaculada Conceição para São Paulo [eram GEHER – Grupo de Estudos História da Educação e Religião – www.geher.fe.usp.br Proibida a reprodução e a publicação sem autorização expressa dos autores. suas assistidas desde o tempo de seu ministério em Nova Trento - SC (1895-1903) e pertenciam a uma congregação religiosa brasileira co-fundada por ele], o Conde Vicente de Azevedo, em nome da Instituição Sagrada Família patrocina a vinda delas de Santa Catarina. Entre as freiras, está a superiora delas, Madre Paulina, mais duas irmãs e uma jovem que se preparava para ser religiosa. É interessante notar que, desta vez, não há desentendimentos entre as irmãs e os membros da Instituição Sagrada Família no que diz respeito à clientela do asilo, pois elas aceitam atender meninas e pessoas idosas negras. Mas não faltam conflitos de ordem econômica e administrativa. É o que se lê nas crônicas manuscritas (História da Congregação: 1865-1921) quando estas relatam os primeiros contatos de Madre Paulina com o Conde Vicente de Azevedo. É o que reescreve e confirma a biografia de Madre Paulina (Biografia Documentada, 1987). Um dos primeiros conflitos diz respeito à gerência da obra, pois o conde (...) desejava, agora, confiar à direção da Obra, para maior tranquilidade e sossego, a uma Comissão de Senhores. A Madre Paulina, com justa razão, não concordou com tal plano, expôs-lhe o que mais parecia conveniente: a) que a obra ficasse na direção das Irmãs; b) com a subvenção do Governo e da Câmara, com esmola de pessoas piedosas e com esforços e economias, as Irmãs, pouco a pouco, poderiam ir adiante, auxiliando a obra; c) não se comprometiam a um número determinado de órfãs e asilados, mas receberiam conforme a possibilidade. O Senhor Presidente anuiu o parecer da Madre e mostrou-se muito satisfeito (História da Congregação: 1865-1921, p. 348-349). Após estes primeiros contatos com o conde, segundo as crônicas, as freiras tiveram a impressão de que estava tudo certo para iniciar em breve os trabalhos no asilo. Mas, o tempo passou e o Conde Vicente de Azevedo não se pronunciou. Para resolver esse impasse, Madre Paulina marcou uma audiência com ele. (...) A Madre Paulina, ansiosa por começar a desejada missão, chamou o Sr. Presidente e lhe disse o que pretendia ele fazer, achando-se ela em casa alheia , muito desejaria no dia 7 de dezembro próximo [1903], se estabelecer na nova habitação e se isto não pudesse ser, desistiria do compromisso; nesse caso, voltaria, com suas Irmãs de hábito, para Nova Trento. O Senhor Presidente de maneiras afáveis e obsequiosas animou a Madre Paulina e ofereceu-lhe uma de suas casas, fora do terreno [do futuro asilo], para se abrigar e dar começo a nova empresa. A Madre continuou firme na resolução: se era para iniciar a obra queria se estabelecer no lugar designado, isto é anexo à Capelinha [Sagrada Família]; ao contrário, absolutamente, não aderia. Estando as cousas nestas condições, fez logo o Senhor Presidente o orçamento da construção, dois pequenos cômodos e nada mais [grifo meu] (História da Congregação: 1865-1921, p. 350-351). GEHER – Grupo de Estudos História da Educação e Religião – www.geher.fe.usp.br Proibida a reprodução e a publicação sem autorização expressa dos autores. De fato, Madre Paulina teria sido enfática e ameaçado desistir do projeto se os quartos não estivessem prontos até sete de dezembro de 1903. Ameaças e promessas à parte, Madre Paulina e suas companheiras se mudaram para os dois pequenos cômodos anexos à Capela Sagrada Família na data desejada. Mas encontraram uma instalação muito precária: A capelinha era bem espaçosa, tendo aos lados duas tribunas, embaixo das quais havia uns cômodos que serviam: um para sacristia e outro para alguma necessidade; junto à capelinha estavam construindo a pequena alcova, mas ainda por acabar; as tribunas com as portas e janelas sem folhas. Esta casa era exposta a todos os ventos e a toda intempérie; a falta de higiene fazia horror. Na salinha, que foi destinada para sacristia, habitava uma família de pretos, os quais estavam cheios de certos insetos [grifo meu]. (...) (História da Congregação: 1865-1921, p. 352-354). (...) Não tinham camas e nem uma cadeira para se assentar; dormiam no presbitério. A capelinha lhes serviu, até o dia de Natal, de oratório, lavatório, refeitório, dormitório, por não ter outro lugar. A cozinha era feita no ar livre (História da Congregação: 1865-1921, p. 354-355). Nesse contexto e reunindo estas condições, teve início o Asilo Sagrada Família e sua situação de precariedade perdurou nos próximos dois anos. Certamente por esta razão, as crônicas apresentam duras críticas ao conde.5 Não tendo o Sr. Presidente nenhuma providência nas mãos, tirou por dois anos a subvenção do Governo e da Câmara para os trabalhos dos cômodos e para arranjar as tribunas [construção]. Ainda mais; a construção foi tão mal feita que, no fim de dois anos, rachou pelo meio, sendo necessário demolir tudo e começar de novo a construção. O ilustre Presidente da Instituição da Sagrada Família é um Senhor de espírito profundamente religioso, dotado das prendas de uma piedade sólida, cumpridor exemplar dos deveres familiares e sociais; sendo ele tão devotado à glória de Deus e a alma consagrada a grandes empreendimentos, é de estranhar que suas obras não correspondiam à expectativa; seus feitos ficavam somente nas aparências externas. Sendo riquíssimo e possuidor de grandes terrenos, oferecia parte deles às várias obras de caridade. Oh! Como é de lamentar! Enriquecido de uma inteligência de escol e com meios para a execução de seus elevados ideais - depois de iniciar a empresa abandonava tudo. Começava muitas obras e nenhuma conduzia a termo. Funcionando a Obra da Instituição da Sagrada Família, retirou-se e não ajudou as Irmãs nem com um real. Alguns anos depois, tanto a Câmara como o Governo cortaram a metade da subvenção (História da Congregação: 1865-1921, p. 356-358). Em relação ao contato com negros, as crônicas manuscritas (História da Congregação: 1865-1921), as crônicas datilografadas (História da Congregação: 1895-1943), a biografia de Madre Paulina (Biografia Documentada, 1987) e outras obras da historiografia oficial das Irmãzinhas da Imaculada Conceição (Eymard, 1995) falam que, além das dificuldades de entendimento com o conde, as irmãs estranharam a experiência de morar perto de uma casa de jogos e divertimentos, nas proximidades do asilo, ambiente muito diferente da vida conventual. A biografia de Madre Paulina, fundamentada nas crônicas datilografadas (História da Congregação: 1895-1943), diz que: “Como não bastasse a pobreza extrema, as Irmãs deviam suportar também o incômodo de uma casa vizinha, ponto de encontro de numerosos desocupados que GEHER – Grupo de Estudos História da Educação e Religião – www.geher.fe.usp.br Proibida a reprodução e a publicação sem autorização expressa dos autores. bebiam e dançavam quase a noite toda” (Biografia Documentada, 1987, p. 171). A esse respeito, a Biografia Documentada resgata trechos de um sermão do padre Luiz Maria Rossi, proferido durante retiro das irmãs, realizado em 1918, extraído do Diário da Casa Madre.6 Nessa pregação, padre Rossi fala sobre os tempos iniciais do Asilo Sagrada Família (1903) e identifica os referidos desocupados com pretos e povos de ínfima espécie. (...) ficando esta casa isolada sem muro, e exposta a mil perigos; os pretos e povos de ínfima espécie armavam barracas nos arredores, onde faziam seus botequins, jogavam, embriagavam-se, gritavam, etc. e as pobres Irmãzinhas, em número de 4, (...) ficavam amedrontadas, submergidas num pélago pavoroso! [grifo meu] (padre Rossi apud Biografia Documentada, 1987, p. 171). Note que a existência dessa casa e a presença desses desocupados foram recontadas por duas irmãs entrevistadas em 2007, o que pode indicar que as Irmãzinhas da Imaculada Conceição até o momento não fizeram revisão da história de sua congregação.7 Nessa casa vizinha à noite se reunia aquela homearada pra beber, pra dançar, pra cantar. Era um negócio que soava muito pra elas (irmãs), as atrapalhava. Então o que ela (Madre Paulina) fez: ela comprou esta casa à prestação. Dai foi recebendo depois, aos poucos, esses doentes que apareciam e os negros. Certamente, eram mais essas pessoas negras que andavam por ai porque foi logo depois da liberação da escravidão. Eles estavam por ai sem eira nem beira e ela então começou a recebê-los e a fez um trabalho com essa gente (Entrevista de Ir. Sabina Dallabrida: 2007). Naquela casa que ela comprou, que era dos bêbados, ai ela colocou as crianças (Entrevista de Ir. Célia Bastiana Cadorin : 2007). A meu ver, estes fragmentos escritos e orais expressam a visão das cronistas e das biógrafas que, por sua vez, resgatam a visão do padre Rossi. Ao relatar os medos e os dissabores das freiras, revelam certa concepção de negros, alinhados aos povos de ínfima espécie, desocupados e bêbados. Mas há de se questionar se as irmãs que iniciaram o Asilo Sagrada Família teriam a mesma visão relatada nos documentos institucionais, pois como trabalhariam com os negros se os considerassem, por exemplo, povos de ínfima espécie? Sem dúvida, inserido no quadro de pensamento da época, os olhares citados anteriormente estão alinhados com a ideologia da vadiagem (Fausto, 1984). Cabe lembrar a legislação contra a vadiagem abordada por Foner e que também mostrava uma visão de negro, constituindo-se provavelmente em uma tentativa de discipliná-los para o trabalho. Além disso, Foner explorou bem as estratégias e ações das elites caribenhas e americanas cuja intenção era manter a ordem social desde o controle da força de trabalho negra que também parecia, aos olhos de fazendeiros e dirigentes, ora desqualificada ora perigosa ou até mesmo desinteressada e preguiçosa. No caso do Asilo Sagrada Família, talvez as irmãs que o fundaram estivessem mais preocupadas com a melhoria das instalações e com o atendimento das meninas negras e dos idosos do que com a presença de vizinhos desocupados. Por esta razão, Madre Paulina, de acordo com o P. Rossi, comprou aquela Casa por “Seis mil reis”, emprestados a 6% [de juros ao ano], porém sem tempo fixo para a restituição. O negócio resolveu dois problemas: livrou as Irmãs da contínua perturbação noturna e ofereceu a possibilidade de receber as primeiras meninas (Biografia Documentada, 1987, p. 171-172).8 GEHER – Grupo de Estudos História da Educação e Religião – www.geher.fe.usp.br Proibida a reprodução e a publicação sem autorização expressa dos autores. Essa casa passou por várias reformas, abrigou meninas negras e depois os idosos, inclusive recebeu o nome de Obras dos Pobres Pretos, sob a proteção de São Pedro Claver (História da Congregação: 1865-1921, p. 357). Mas em 1918, os idosos foram transferidos para Guapira/SP. A casa que os abrigava foi reformada e ampliada para receber as filhas dos falecidos, vítimas da epidemia da gripe espanhola que grassou na época (Coletânea Histórica, 1990, p. 278). Considerações finais Finalizo a reflexão com a impressão de que, de fato, há uma multiplicidade de olhares em torno da criação do Asilo Sagrada Família. Provavelmente são olhares assistencialistas e caritativos do veio católico, mesclados com olhares discriminatórios. Em qualquer um dos casos, são olhares permeados pelas ambigüidades e controvérsias dos agentes [conde e freiras que iniciaram o asilo], cronistas e biógrafos dos fundadores do asilo. São olhares emoldurados pelo quadro de pensamento da época. Portanto, ao que indicam os excertos visitados, certamente parte de cada um desses olhares compõe a memória fundacional do Asilo Sagrada Família. Fica como desafio, para outro momento da pesquisa, a discussão sobre os desdobramentos desses olhares no atendimento da população infanto-juvenil feminina do asilo. Vale salientar que a premissa nada além da liberdade continuará inquietando meu olhar e minha busca pela caracterização das meninas negras que frequentaram o Asilo Sagrada Família, pois órfãs e pobres elas eram herdeiras tão somente de uma liberdade: a de não serem escravas, mas de carregarem a marca de descendentes de ex-escravos! Cabe aqui, um trecho da obra de Hartman [tradução livre] que pode ser aplicado às meninas afrodescendentes do Asilo Sagrada Família: Como uma „criança escrava‟, eu representava o que mais me esquivava de escolher: a catástrofe do passado e as vidas comercializadas por tecidos da Índia, pérolas venezianas, conchinhas de moluscos, armas e rum. (...) Sou a lembrança de 12 milhões que atravessaram o Oceano Atlântico e o passado ainda não terminou. Sou descendente de cativos. Sou um vestígio dos mortos. E a história é como o mundo secular presta atenção aos mortos (Hartman, 2007, p. 4; 17).9 1 A informação foi retirada de uma cláusula da escritura de doação do terreno no qual foi edificado o Asilo Sagrada Família, comportando também a Igreja Sagrada Família e abrangendo todo o quarteirão da Av. Nazaré nº 470 (Arquivo das Irmãzinhas da Imaculada Conceição, Escritura de doação: 02 de agosto de 1951). Mas esta informação também consta em relatos históricos da instituição (Coletânea histórica, 1990, p. 277). Vale lembrar que o terreno pertencia ao Conde Vicente de Azevedo que o doou inicialmente para a Instituição Casas da Providência, da qual ele era membro, e em 1951 para a Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição com a condição de que elas continuassem dando prioridade ao atendimento de meninas negras. 2 A informante tinha 85 anos de idade na data da entrevista (2007). 3 O conceito de ação branca é trabalhado por Barros em sua pesquisa sobre a escolarização da população negra na cidade de São Paulo (1870-1920). Fundamentada nos conceitos de estratégia e tática de Michel De Certeau (1994), a autora apontou a existência de uma ação branca (estratégica) e de uma ação negra (tática) no processo de instrução formal dos negros. 4 Para uma comparação do abolicionismo brasileiro e americano, ver Azevedo (2003). Embora tenha abordagem e temática peculiares, consideramos esta obra um estudo complementar a obra de Foner no GEHER – Grupo de Estudos História da Educação e Religião – www.geher.fe.usp.br Proibida a reprodução e a publicação sem autorização expressa dos autores. sentido de tratar do caso brasileiro e de outros aspectos do abolicionismo americano. Para um estudo da emancipação em Cuba, ver Scott (1991). 5 Na biografia do conde há uma critica a esses relatos da Madre Dorotéia e uma defesa e justificação dos procedimentos dele (Franceschini, 1996, p. 393-399). 6 O padre Luiz Maria Rossi é considerado pelas Irmãzinhas da Imaculada Conceição co-fundador da congregação [junto com Madre Paulina]. Portanto, toda a sua pregação é relevante e transmitida de geração em geração, em especial por meio de suas próprias cartas (Padre Luiza Maria Rossi, 1929) e das obras: Biografia Documentada (1987) e Eymard (1995). 7 Até o momento, entrevistei seis irmãs que atuaram no asilo na década de 30 do século passado, a neta do Conde Vicente de Azevedo e uma ex-interna negra. Mas o trabalho com fontes orais ainda não está concluído. 8 A partir de 1904 as irmãs contam com a ajuda financeira de Ana Botero, uma senhora da elite paulista. Mas a presença e a interferência de Ana Botero no Asilo Sagrada Família é alvo de conflitos e tensões, em especial no ano de 1909. 9 As frases foram extraídas do prólogo da obra de Saidiya Hartman. A autora, afro-americana, relata sua viagem a Gana (África) em busca das cinzas de seu passado escravo na tentativa de compreender como se iniciou o suplício da escravidão (Hartman, 2007). Aliás, esta leitura é obrigatória para quem deseja saborear um relato cheio de afeto e tato para discutir a construção de identidades afrodescendentes. Vale mencionar que, abordada sobre o resultado de sua investigação, em uma entrevista eletrônica, Saidiya diz que se uma pessoa afrodescendente viajar à África na esperança de resgatar alguma identidade original, ficará desapontada porque identidades mudam ao longo do tempo, ou seja, são constantemente refeitas, pois é produto da história e das relações sociais (Tavis Smiley, 26/01/2007). Bibliografia ABBADE, M.P. Uma trajetória singular. A Instituição Sagrada Família e a Educação de Meninas e Moças. São Paulo: FEUSP, 1995 (Dissertação de Mestrado). AZEVEDO, Célia Maria Marinho. Abolicionismo. Estados Unidos e Brasil, uma história comparada (século XIX). São Paulo: Annablume, 2003. BARROS, Surya Aaronovich Pombo de. Negrinhos que por ahi andão: a escolarização da população negra em São Paulo (1870-1920). São Paulo: FEUSP, 2005 (Dissertação de Mestrado). COSTA, Luís César Amad & MELLO, Leonel Itaussu A. História do Brasil. São Paulo: Scipione, 1996. 8ª ed. DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. (Tradução de Ephraim Ferreira Alves). Petrópolis: Vozes, 1994. DIAS, Maria Odila Liete da Silva. Hermenêutica do Quotidiano na Historiografia Contemporânea. Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC de São Paulo, nº. 17, novembro/1998. FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo, 1880-1924. São Paulo: Brasiliense, 1984. FONER, Eric. Nada além da liberdade. A emancipação e seu legado. (Tradução de Luiz Paolo Rouanet). São Paulo: Paz e Terra, 1988. HARTMAN, Saidiya. Lose your Mother. A Journey along the Atlantic slave route. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2007, p. 3-18. _________________ . Entrevista concedida a Tavis Smiley, Jan. 2007. 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