Mário Dionísio - Assobiando à Vontade

Transcrição

Mário Dionísio - Assobiando à Vontade
Assobiando à Vontade (In O Dia Cinzento e Outros Contos)
(Mário Dionísio)
Àquela hora o trânsito complicava-se. As lojas, os escritórios, algumas oficinas,
atiravam para a rua centenas de pessoas. E as ruas, as praças, as paragens dos eléctricos, que
tinham sido planeadas quando não havia nas lojas, nos escritórios e nas oficinas tanta gente,
ficavam repletas dum momento para o outro. Nos largos passeios das grandes praças havia
encontrões. As pessoas de aprumo tinham de fechar os olhos àquele desacato e não viam
remédio senão receber e dar encontrões também e praguejar algumas vezes. Os eléctricos
apinhavam-se na linha à frente uns dos outros. Seguiam morosamente, carregados até aos
estribos e por fora dos estribos, atrás, no salva-vidas, com as tais centenas de pessoas que
saltavam àquela hora apressadamente das lojas, dos escritórios, das oficinas. Além disso, nos
dias bonitos como aquele, as ruas da Baixa enchiam-se de elegantes que iam dar a sua volta, às
cinco horas, pelas lojas de novidades e pelas casas de chá, para matar o tempo de qualquer
maneira, ver caras conhecidas, cumprimentar e ser cumprimentadas, e só voltavam a casa à
hora de jantar.
A multidão propunha uma confraternização à força. Era preciso pedir desculpa ao
marçano que se acabava de pisar, implorar às pessoas penduradas no eléctrico que se
apertassem um pouco mais para se poder arrumar um pé, nada mais que um pé, num cantinho
do estribo, muitas vezes sorrir para gente que nunca se tinha visto antes e apetecia insultar. Os
elegantes e as elegantes achavam naturalmente tudo isto muito aborrecido. Sobretudo a
necessidade absoluta de seguir naquelas plataformas repletas em que não viajavam só
cavalheiros, mas muitos homenzinhos pouco correctos e onde esses mesmos homenzinhos e
mulheres vulgares deitavam um cheiro insuportável. Que fazer, no entanto, senão atirar-se uma
pessoa também para aquele mar de gente que empurrava, furava, pisava e barafustava até
chegar ao carro? Que fazer senão empurrar, furar, pisar e barafustar também?
O carro seguia morosamente e repleto como os outros. Felizmente, ainda havia
alguns homens correctos na cidade e algumas mulherezinhas que conheciam o seu lugar. Só
graças a isso as senhoras que tinham arriscado os seus sapatos e os seus chapéus naquela
refrega e alguns cavalheiros respeitáveis conseguiam sentar-se.
Nos
primeiros
momentos
de
viagem,
as
pessoas
voltavam-se
nos
bancos,
preocupadas, tentando ver se o marido, uma amiga, um filho, não teriam ficado em terra. Os
que seguiam de pé ousavam dar um passo no interior do carro, a ver se teria ficado algum lugar
vago por acaso. Havia logo protestos na plataforma. Depois as pessoas acomodavam-se o
melhor que podiam, punham os braços no ar para livrar os embrulhos do aperto, fechavam bem
os casacos e as malas onde levavam o dinheiro, o condutor puxava energicamente o cordão da
campainha muitas vezes, lotação completa, e o carro arrastava-se em silêncio.
Os senhores respeitáveis, com compreensível e muda zanga dos companheiros do
lado, começavam a desdobrar os jornais da tarde e a ler as notícias por alto. As senhoras,
visivelmente mal dispostas, compunham os chapéus e as golas dos casacos. Tiravam os
espelhinhos da mala e passavam tudo em revista: o chapéu, os cabelos, os olhos, os lábios. Era
incrível. Uma tinha ficado com o chapéu completamente de banda, outra perdera uma luva na
confusão. Depois guardavam os espelhos, acomodavam-se melhor, percorriam com os dedos os
anéis duma mão e da outra, para ver se estavam no lugar, se estavam todos. Olhavam umas
para as outras, muito sérias, como quem não repara em nada. Recuperavam pouco a pouco a
dignidade que aquele despropósito da subida para o carro evaporara.
Nas curvas, as rodas chiavam nas calhas, debaixo do grande peso. Silêncio enfim embora de vez em quando cortado pela campainha, quando alguém tinha a triste ideia de
querer descer, pelo desdobrar dos jornais, pela voz dos populares, encaixados na plataforma da
frente.
Tudo voltara à normalidade. A marcha do carro, a cobrança dos bilhetes, a separação
entre as pessoas, que rigorosamente não conseguiam separar-se umas das outras um
centímetro que fosse. E, assim, morosamente, por curvas e rectas, por ruas e praças, aquele
carro cumpria o seu destino de acarretar gente e ser insultado, numa das várias linhas que
ligavam o centro da cidade aos bairros relativamente novos, onde a separação entre a chamada
classe média e as camadas mais baixas da população não fora ainda convenientemente
estabelecida.
Em dada altura, porém, na plataforma de trás levantou-se burburinho. Protestos.
Indignação. Cabeças voltaram-se no interior do carro. E viu-se um homenzinho a empurrar toda
a gente e a dizer que havia lugares à frente, que o deixassem passar. Em vão lhe asseguravam
que não havia lugar nenhum, que não podia passar, que não fosse bruto. O homem empurrava
e teimava que havia lugares à frente. Tanto empurrou que furou. Tanto furou que conseguiu
entrar no interior do eléctrico, avançou e foi sentar-se num lugar de lado que estava
efectivamente vago lá à frente, ao lado duma senhora por sinal opulenta.
Foi um espanto geral e silencioso. Ninguém tinha reparado no lugar. E menos que
ninguém, como é fácil de compreender, a própria senhora opulenta. Todos os atrevidos têm
sorte.
O homem, que usava um chapéu coçado e um sobretudo castanho bastante lustroso
nas bandas, não se sentou propriamente. Enterrou-se no lugar, com as mãos enfiadas pelas
algibeiras dentro. Que sujeito! Devia ser mais novo do que parecia por causa do cabelo grisalho
e da barba por fazer. A senhora opulenta franziu a testa e remexeu-se no lugar, se assim se
pode dizer, como quem procura ocupar menos espaço. Na verdade, apenas se instalou melhor.
A sua intenção era fazer o homenzinho reparar na inconveniência da atitude que tomara. Mas
ele não viu nada disso ou fingiu que não viu. Olhou vagamente as pessoas que tinha na frente,
estendeu os lábios e começou a assobiar. A assobiar muito à vontade no interior do carro!
Primeiro, foi um assobio baixinho, pouco seguro, imperceptível quase. Depois, a
pouco e pouco, o sujeitinho entusiasmou-se. E o assobio aumentou de intensidade. Ouvia-se já
em todo o eléctrico. Os passageiros, que tinham recuperado com tanto custo a sua dignidade,
fingiam que não davam pelo homem nem pelo assobio. E sossegaram quando o condutor se
dirigiu ao recém-vindo. Ia aconselhá-lo a calar-se, com certeza. Mas qual! Com o maço dos
bilhetes na mão e de alicate espetado, limitou-se a dizer: «O senhor?» O passageiro tirou a mão
da algibeira e, sem deixar de assobiar, estendeu-a com a palma voltada para cima. Esperou que
lhe levassem a moeda, recebeu o bilhete e tornou a enfiar a mão pela algibeira dentro. Toda a
gente seguia a cena, interessada. Mas, quando o homem olhou as pessoas, ao acaso, voltaram
todas os olhos como se ele afinal não existisse.
O assobio, umas vezes, era baixo, mal se ouvia, outras vezes, alto, muito alto, com
trinados ridículos e irritantes. Ninguém sabia o que ele assobiava. E o homem também não.
Qualquer coisa que lhe apetecia que fosse assim mesmo. Às vezes repetia os sons como um
estribilho. Outras vezes, porém, a maior parte das vezes, passava a novas combinações, ora
brandas, ora violentas, sem querer saber para nada das que ficavam para trás. As pessoas
começavam a olhar umas para as outras à socapa. Já se tinha visto coisa assim? Um ou outro
cavalheiro levantava os olhos do jornal, franzia a testa, fitava com dureza o homem do chapéu
coçado e sobretudo castanho, na esperança de que ele, envergonhado, parasse com aquilo. A
senhora opulenta, no auge do espanto, nem se atrevia a olhar para lado nenhum, vexadíssima
porque, sem ter culpa nenhuma, se encontrava em plena zona do escândalo. A que uma pessoa
está sujeita!
E, no silêncio do carro, o assobio aumentava de volume. Talvez, no fundo, aquele
gorjeio ridículo não fosse desagradável de todo. Simplesmente, um eléctrico não é o local mais
próprio para exibições daquelas. Porque não interferiria o condutor? O condutor era a autoridade
do carro. Porque não interferiria? Estava-se a ver. Era tão bom como ele. A verdade, porém, é
que não se conhecia nenhum regulamento que impedisse os passageiros de assobiar. Colados
aos vidros do eléctrico, havia papéis que proibiam fumar, cuspir no carro. Era proibido abrir as
janelas durante os meses de Inverno. Mas nem uma palavra a respeito de assobios.
De repente, uma criança que ia sentada junto duma janela e já se sentia enfastiada
de olhar para a rua interessou-se pelo homem. Achava-lhe tanta graça, com o seu chapéu
coçado, o seu sobretudo castanho, o seu assobio... Era uma criança muito pálida, de cabelos
louros e encaracolados, vestida de azul. Interessou-se tanto pelo homem que começou a bater
palmas. Mas uma senhora nova e bonita, que ia ao lado dela, segurou-lhe as mãos com
gentileza e afastou-lhas. Devia ir calada e quietinha. Era muito feio fazer barulho no eléctrico.
Uma menina bonita não fazia barulho. «Que disse eu à minha filha?» No entanto, a senhora
nova e bonita não antipatizava com o homem. Olhava os embrulhos de papel vistoso que trazia
nos joelhos e pensava: se não pudesse mais e começasse também a assobiar? No fundo,
admirava a sem-cerimónia do homem do chapéu coçado. Não seria adorável ela própria, uma
senhora casada e mãe de uma garota de cinco anos, começar a assobiar num eléctrico se lhe
apetecesse? Quando era da idade da filha, a senhora bonita ia muitas vezes ao campo vestida
com coisas velhas para poder atirar-se para a relva à vontade. Tinha uma voz muito suave e
muito fresca, gostava de fazer precisamente aquilo que uma menina bonita não deve fazer Os
amigos do pai pegavam-lhe ao colo, atiravam-na ao ar E ela ria, ria, ria até ficar sufocada. A
mãe dizia «Pronto, pronto, vamos a ter juízo, não se ri assim dessa maneira» E, quanto mais lho
diziam, mais lhe apetecia rir, rir, rir.
De vez em quando, um passageiro saía. A plataforma do carro ia-se esvaziando. E,
pouco a pouco, os que ficavam foram-se habituando àquele estúpido assobio Os cavalheiros
tinham esquecido os jornais Algumas senhoras sorriam Já se vira um disparate assim?
Principalmente a senhora opulenta não podia mais. Apertava os lábios. Sentada num banco de
lado, encontrava os olhos de toda a gente. Era irresistível. E a senhora bonita pensava em ar
livre e nos tempos da infância. Na escola aprendera a assobiar e a lançar o pião. Havia vozes
que tinham ficado dentro dela. «Uma menina a assobiar, Nini?»
Em dada altura, o homem, sem deixar de assobiar, levantou-se e puxou o cordão da
campainha. Era um homenzinho insignificante, ainda novo e já de cabelos grisalhos, chapéu
coçado, sobretudo castanho muito lustroso nas bandas. Mas havia nele uma indiferença
soberana pelo eléctrico inteiro Toda a gente o olhava Com desprezo? Com ironia? Com inveja?
Abriu a porta, fechou-a e saltou com o carro ainda em andamento.
As pessoas voltaram-se então umas para as outras, não resistiram mais e riram
mesmo. Que homenzinho patusco! Desculpavam-se, explicavam-se sem palavras Entendiam-se
Um minuto de simplicidade e simpatia iluminou-as A criança que batera palmas limpou com a
mão o vidro embaciado da janela à procura do estranho passageiro Viu-o atravessar a rua,
seguir pelo passeio agarrado às casas, desaparecer.
Só então a senhora nova e bonita, que era a mãe da criança, abriu os olhos. Ninguém
hoje lhe chamava Nini. Nini era a filha Ela agora é que dizia à filha «Uma menina a assobiar,
Nini! Uma menina bonita não faz barulho.»
Ficara nos lábios e nos olhos de todos um sorriso de bondosa ingenuidade o Depois
esse sorriso foi-se apagando Morreu As pessoas tomaram consciência da sua momentânea
quebra de compostura Lembraram-se dos seus embrulhos, dos seus anéis, dos seus jornais Que
patetice! Não havia outra palavra para aquilo Que patetice! Os cavalheiros recomeçaram a ler os
títulos das notícias. As senhoras deram um toque nas golas dos casacos A criança tornou a olhar
para a rua. Tudo voltou, pesadamente, a encher-se de silêncio e dignidade.
In http://contosdeaula.blogspot.com/2008/09/assobiando-vontade.html (acedido em 10.10.2010)

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