JOÃO ISABEL CONTOS SERRANOS Edição da CÂMARA

Transcrição

JOÃO ISABEL CONTOS SERRANOS Edição da CÂMARA
JOÃO ISABEL
CONTOS SERRANOS
Edição da CÂMARA MUNICIPAL DE MANTEIGAS
1988
(uma digitalização de www.joraga.net com pistas de leitura… 2015 10)
2 -- João Isabel
DO AUTOR:
-- Estela, poesia (1918)
-- Três problemas sanitários urgentes, ensaio
(1948)
-- O Infante de Sagres, confierência (1960)
-- A família e a educação religiosa dos filhos, conferência (1960)
-- Quando a Neve Cai, poesia (1961)
-- Cântico da Montanha, poesia (1977)
-- Mare Nostrum, poesia (1984)
Biblioteca Municipal de Manteigas
L -- 821 134 3-3 ISA -- 00154
Contos Serranos -- 3
JOÃO ISABEL
ILUSTRAÇÕES DE
ISOLINO VAZ
EDIÇÃO DA CÂMARA MUNICIPAL DE MANTEIGAS
1988
4 -- João Isabel
Título: CONTOS SERRANOS
Autor: João Isabel
Editor: Câmara Municipal de Manteigas
© 1988 by João Isabel e Câmara Municipal de
Manteigas para esta edição (de 1988)
Ilustrações: Isolino Vaz
Fixação de texto e revisão de provas: Elsa Isabel e
José Duarte Saraiva
Fotocomposição, impressão e acabamento: PENTAEDRO, Publicidade e Anes Gráficas, Lda.
Praceta da República, Loja B, Póvoa de Sto. Adrião
2675 ODIVELAS
Dep. Legal: 20596/88
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Ao povo da minha terra
6 -- João Isabel
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A ABRIR...
João Isabel era médico e poeta: eis duas credenciais
seguras para que pudesse vir a ser um bom contista. E é-o.
Fialho de Almeida, Rodrigo Paganino, Miguel Torga,
Fernando Namora e Araújo Correia foram todos médicos e
são dos melhores contistas da nossa literatura; alguns são
também poetas de rara estirpe. Quanto ao lado poético, é
geralmente aceite que o conto compartilha muito das características da poesia, pela economia de meios a ambos exigida: “Arte de sugestão, o conto aproxima-se muitas vezes da
poesia e dai até a fuga para a sua forma de literatura fantástica”1. Nos versos que publicou, J. Isabel mostrou-se um poeta emérito e lembro a obra “Mare Nostrum” 2, em que o
soneto atinge um nível de excepção, além da musicalidade e
do ritmo que o acompanham.
Como poeta cristão que a cada passo se mostra,
com uma unção religiosa a pairar pelos seus versos, alarga
esta sua mundovisão aos contos, cuja elaboração se estendeu por vários anos até bem perto da sua morte, como me
foi revelado por uma das suas filhas. Diz-me D. Elsa Isabel:
“alguns foram feitos quando se encontram ainda cheio de
força e saúde, outros, como a “Ti Clotilde” (creio que o último), já bem, bem doente”3.
1
(1) - “Teoria da Literatura” Vítor Manuel Aguiar e Silva, Coimbra, Livraria
Almedina, 3.* Edição, 1973.
2
(2) - João Isabel, Guarda, 1984.
3
(3) - Carta de Lisboa de 27/X/87.
10 -- João Isabel
Julgo que só um foi publicado em vida do autor -“Um Pastor da Serra”4, sinal de que J. Isabel esperava alguma coisa mais do seu estro e talvez aguardasse altura oportuna para lhes juntar outros ou dar outra forma.
Vergílio Ferreira, no prefácio da edição dos seus
“Contos”5, opõe o conto ao romance, comparando aquele a
uma cerâmica ou a uma gravura, e este a um quadro a óleo.
Assim será, ou muito perto disso, embora não se esqueça de
assinalar que a diferença visa em particular a “dimensão”
mais ligada à estrutura básica do que ao tamanho.
Seja como for, os “Contos Serranos” de J. Isabel,
que agora vêm a lume, são um retrato da Serra e da sua
gente, com personagens não arrancadas à vida mas que são
a própria vida. Algumas delas nem envolvidas estão pelo
“manto diáfano” queirosiano, de tal forma encarnam pessoas que nós conhecemos e com quem lidamos no dia-a-dia da
vida serrana. Não serão as mesmas mas são tão parecidas
que umas e outras se confundem, como face do real.
Gosto sempre de lembrar a observação, profunda e
cheia de ironia que Fernando Namora escreve em prosa introdutória da sua “Resposta a Matilde”6, sobre as relações
da Arte com a vida. E sabem porquê? Só porque, quanto
mais entra na vida e tenta debuxá-la, mais o artista sobressai como artista, naquela interpenetração entre a vida e a
Arte, que é sempre um segredo fascinante e inextricável.
Que manancial de figuras típicas, enraizadas numa
topografia que é parte da serra que tanto amou: o pastor
João Badana, bem desenhado, enquadrado no seu meio, na
cena cheia de vida que é a venda da cabra (”chiba" lhe chamará na sua linguagem rústica); o António Canário e o Chico
Perdiz, na rivalidade sempre em aberto na vila de Mantei4
(4) Ver 'A Guarda” n.º 3931 de 8/VI/84.
(5) - Vergílio Ferreira, ”Contos” Arcadia, Lisboa, 1976.
6
(6) - “Resposta a Matilde” Fernando Namora, Livraria Bertrand, Lisboa,
1980.
5
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gas, entre os ”macavencos” e os ”macarroncos“ (os de cima
da vila e os de baixo), numa luta dura, na rudeza das personagens, em que se vê aplicada a pena de Talião; no conto
“Dois Parceiros”, a antítese marcada pelo Albino Marra e o
Joaquim Cuco -- aquele, servidor capaz de dar a vida pelo
amo; este, trabalhador revolucionário e anarquista, contaminado por ideias marxistas; o Pataquinho, figura tão típica
de qualquer terra provinciana; a Maria, criada do Prior, que
é quem tudo manda e dispõe lá em casa... e fora dela. De
todas estas figuras, como de outras de que aqui se não fala,
nos são dados retratos incisivos, rápidos e sugestivos, tendo
como pano de fundo tradições, usos e costumes bem assinalados e vivos no espaço a que a obra esta ligada.
Quando se consultar um roteiro, mapa ou carta topográfica dos lugares calcorreados pelas personagens saídas
da pena de João Isabel, não podemos encontrar maior riqueza de nomes do que os que aparecem nos seus “Contos
Serranos": os Cântaros, os Piornos, o Covão da Ametade, o
Mondeguinho, as Penhas Douradas e o Observatório, a
Nave e a Lagoa Comprida -- e tantos mais que tenho de
omitir - como nos enchem de vitalidade a alma, com o ar
puro e fresco que lá se respira e nos chega pelas correntes
frescas da memória e pelo debrum artístico que o autor
põe, em linha emocional, a sair do seu coração, grande e
terno como era. E a dominar, embora lá no fundo, no vale
glaciar do Zêzere, a sua Manteigas, sempre atractiva, bela e
viridente. Mas repare-se, é a vila de Manteigas, física e humana: em personagens como Joaquim de Matos e Manuel
da Cunha, tão bem delineados na azáfama do seu trabalho
honrado, estamos a ver os antepassados autênticos dos actuais industriais do burgo, que fizeram a sua grandeza.
Não se pode pensar que E só o banal e corriqueiro
que atrai João Isabel: a sua mirada vai para o Alto e, no domínio estético, a sua visão raia pelo limite do simbólico: estou a lembrar-me do conto “Rosa Maria”. Pecadora? Perante Maria Madalena, que é esta pobrezinha, tão humana e
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tão fraca? Coberta pelo manto alvinitente da neve - realidade do quotidiano na Estrela -- que outra coisa é senão o
símbolo da pureza em que o narrador envolve a sua personagem? É que ela nem chega a pecar e a recta formação do
narrador bem interpretou o instante e ocasional apelo carnal do seu amor: o destino levou-lhe o noivo e eis o seu
martírio de jovem, que, a ser mãe, morreu envolta na brancura da Natureza...
Não podemos esquecer a grandeza de alma dos
“Dois Parceiros” -- a igualdade no infortúnio, no abraço que
os uniu, patrão e servidor; o capital e o trabalho, não na luta
de classes, mas no bom entendimento estribado no amor,
até à hora da morte.
A política ao vivo, no seu verso e reverso, vistos no
diálogo espontâneo e natural do pobre pastor da Serra -aqui a vox populi -- a criticar amargamente o grande político
que tanto revolucionou a mentalidade portuguesa nos princípios do século -- Afonso Costa. Mas muito menos do que
pensou e se esforçou por fazer!
No conto “João Brandão” pelo simples acaso da parecença física, podemos ver como os extremos se tocam: a
bondade de Manuel da Cunha e a brutalidade (não isenta
de coração, às vezes) trouxe como consequência uma protecção mútua, forma hábil mas real de vencer a dureza das
travessias da serra: o perigo e o risco perante a segurança e
a protecção, como que convertidos em autêntico mito, que
não renega a origem remota do conto como forrma narrativa.
Na “Noite de Consoada” não E cheio de significado
aquele perder-se na Sena o Zé Isidro, bloqueado pela neve,
para consoar com a família? E a busca e o encontro com a
festança respectiva?
Em “DoisParceiros” tem sabor a merecer comentário especial a entrada do Albino Marra e do Joaquim Cuco na Igreja,
bêbedos como de costume, a pedir perdão à Senhora da
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Graça pelas suas faltas -- aqui fundamentalmente o vício dos
copos.
Mas nem todas as personagens são boas: João Isabel sabe bem, e a sua arte não o deixa enganar, que não lidamos com anjos no dia-a-dia. E eis porque aparecem traços
de vilania e maldade, como a vingança do conto “Bairrismo”
- "olho por olho, banho por banho”, que tem na base a velha
rivalidade entre as duas freguesias da vila. E, nesta mesma
ordem de ideias, porque não lembrar a violência a que sujeitam o Pataquinho, morto por partida cruel e de mau gosto,
fazendo-o ingerir álcool puro, na farmácia da terra? Se os
contos de João Isabel não apresentassem personagens deste jaez, eram menos credíveis, ou pelo menos sofriam do
não respeito â verosimilhança, que, como já se deixou entender e o leitor poderá verificar, é mais que conseguida.
A linguagem é simples, tersa e natural, com diálogos espontâneos no seu tom coloquial, nos quais o autor se
mostra um conhecedor atento da língua da sua terra, como
fonte inesgotável de palavras e expressões de cariz local.
Sem contar com os provérbios que são proferidas ou iniciados e dão uma riqueza assinalável e documental ao texto, a
semelhança do que fizeram Aquilino para as suas terras do
demo e Nuno de Montemor para a região egitaniense.
Pela economia que lhe é inerente, não posso num
prefácio exemplificar a variadíssima gama desta riqueza,
mas o leitor topá-la-á a cada pé de passada, tão evidente ela
se lhe apresenta.
Mas, se mo consentem, deixem-me dar-lhes esta
simples amostra, colhida em flagrante no seu discurso narrativo ou na boca das suas personagens:
-- “chiba”, “pagar a murta”, “calar a sanfona”, “bico
calado”, “ia-me dando uma coisa”, “boca fechada não
cria vareja” (em “Um Pastor da Serra"');
-- “por estas e por outras”, “para mão de ensino”, “dar
escândula”, “sem mais aquelas”, ”danados daquele in-
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cidente”, “pedradas que até faziam lume” (em ”Bairrismo”);
-- “um rais me parta”, “E vai ele, disse-me”, “O Albino,
na sua, respondia”, “e vai eu, atiro-me”, “faça o que
V. Ex.ª quijer" (em “Dois Parceiros");
-- “Quem merca os requeijões?” “É uma terra derrancada“, “Tens umas mãos de prata“, “Senão não botava
cá”, “deixa-me lá ir”, ”abusava da pingoleta”, “que façam cruzes na boca” (em A Ti Clotilde dos Requeijões”);
-- “não estar com mais aquelas”, “não lhe ligavam nenhuma” “ala que se faz tarde”, “tirar palhinha com
ele”, “sou homem p'às curvas”, “tens mais sorte que o
Facadas” (em “O Pataquinho”);
-- “deixa-me lá ir”, “cal quê?”, “a patroa e os-filhos”,
“dê lá por onde der”, “Foi o cão do nevoeiro”, “eu botava cá, de qualquer maneira”, “uma vez não são vezes”, “teso como um carapau” (em “Noite de Consoada”);
-- “tocado da mioleira “, “não venham cá com cantigas” “de tacha arreganhada", “à conta dos capacetes
quentes e das requintas altas”, “venho à rasca dos
pés”, “tem muita queda", “como o outro que diz”, “está o pão chegado ã foice” (em “O Compadre e o
Prior”);
-- “tremer como varas verdes”, “oferecer um lanço”,
(em “Rosa Maria”);
-- “aIapardado", “uns cobres no bolso para uma bucha”
(em João Brandão”).
Se talvez fosse dispensável a parte final do conto “Um
Pastor da Serra” -- o que veio a ser o filho do João Badana;
se em “Deus e Satã” o narrador se converte mais num doutrinador (quase pregador); e, se no mesmo conto, o nível de
linguagem da São e do Joaquim Pedro não lhes está cabalmente adequado; e ainda se o milagre da Nazaré, no conto
Contos Serranos -- 15
“João Brandão”, talvez esteja metido a força, não há dúvida
de que estamos perante um artista cujos contos merecem
um efectivo realce, pela sua naturalidade e transparência,
pela forma como nos az ver a verdade desta gente e pela arte revelada no seu conhecimento de toda a realidade serrana.
Vão os contos ilustrados com primorosos desenhos do
Pintor Isolino Vaz, óptima e bem realizada ideia que vem pôr
em relevo todo o encanto desta obra, em alguns dos seus
traços mais pertinentes. Eis a génese desta ilustração: “João
Isabel é da família. Um dia leu-me uns contos. Achei-os saborosos e pedi para os ilustrar. Entretanto ele morre 7 e eu
quis cumprir a minha palavra” 8 Bem cumprida esta palavra
que vem servir a Arte modelarmente.
Não ficaria bem comigo próprio, se não deixasse aqui
exarada uma palavra de viva felicitação à Câmara Municipal
de Manteigas, patrocinadora desta edição que, honrando o
artista e a sua terra, acaba por se dignificar a si própria nesta área inequívoca da cultura.
GUARDA, Dezembro de 1987
Abílio Perfeito
1923 - 2009 08 07
7
(7) -- Faleceu em Lisboa a 23/8/84.
(8) -- Isolino Vaz, em “Contos Serranas na pena de um professor-pintor" 0 Século de 20/10/87.
8
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UM PASTOR DA SERRA
O Ti João Badana era um velhote simpático, já caído
na casa dos setenta, mas que ainda mourejava lá pela Serra,
a fazer alqueives ou a guardar o gado. Tinha quatro filhos
que o ajudavam na labuta da vida. Usava suíças que lhe davam um aspecto serrano e patriarcal.
Naquele dia tardava, contra o costume, e era quase
noite quando chegou a casa. Subiu a escada, entrou na saleta, sentou-se na arca e disse à mulher:
-- Encontrei há migalho o José Torrado, em Santo António.
Perguntou-me se eu lhe queria vender uma chiba, das mais
novas. Como tenho amanhã de pagar a décima e não tenho
agora dinheiro a modo, até me convém. Disse-lhe que sim e
estou a pensar na chiba que nasceu hã cinco meses, a Malata. Que dizes, mulher?
-- Tu é que sabes -- respondeu esta.
Mas o filho António, por alcunha o Matorro, que
estava em baixo no quarto, ouviu a conversa e subiu logo a
escada, a perguntar açodado:
-- Vossemecê que diz?! Vender a Malata?!
-- Sim, António. Tenho de pagar amanhã a décima e
não tenho outro remédio.
O filho, já com as lágrimas nos olhos, pronunciou:
-- Não venda a chiba, pai! Arranje de qualquer maneira, mas não venda a chiba.
O pai, já um pouco agastado com aquela discordância, replicou:
-- Mas então, como há-de ser? Não tenho em casa
um pataco, nem um tostão furado. E na fazenda não esperam. Se não se paga, murta p'ra cima.
Mas o filho, obstinado na sua, não se importava.
Desceu a escada e foi refugiar-se no quarto, embezerrado.
18 -- João Isabel
Meteu-se na cama a chorar como uma Madalena e, de momento a momento, lá ia moendo:
-- Não venda a chiba, pai! Não venda a chiba, pai!
A mãe, condoída daquela dor, disse assim ao marido:
-- Olha, João. Tenho ali umas moedas que fui juntando com o tempo. Dou-t'as e vais pagar a décima. Devem
chegar.
E vendo o marido, de cabeça baixa, a anuir, bradou
assim ao rapaz:
-- Ouves, António? Fica descansado porque o teu
pai já não vende a chiba. Fica descansado. Mas agora vais
calar a sanfona, porque já nos dói a cabeça.
E o Matorro calou-se, com um sorriso de satisfação e alívio,
a rever o pequeno rebanho.
Era o seu enlevo, o rebanho do pai. Desde criança
que ele guardava aquelas cabras e ovelhas por sítios ermos
da Serra.
À força de as guardar e viver com elas, tinha-as como suas, chamava-as pelos seus nomes e elas obedeciamlhe. Era raro ter de mandar alguma lapada, no caso de teimosia ou afastamento, dalguma delas.
Era a Malhada, a Andorinha, a Carriça, a Fadista, a
Bonita, a Landrisca, a Janota... Todas tinham nome, conforme a sugestão do seu físico ou maneira de ser. Um dia, ao
meter o rebanho na corte, verificou com grande surpresa
que faltava uma cabra, a Janota.
Ia-lhe dando uma coisa, ali mesmo. De cabeça perdida, começou a procura-la por todos os lados, sem saber
como ela tinha desaparecido. Talvez fosse quando lhe dera
o sono, a hora da sesta, a guardar o rebanho. As voltas que
ele deu, por aquela Serra, à sua procura! Percorreu o Trapique, a Malhada das Fôrneas, o Vale da Barca, o Tornágua, a
Fraga da Cruz. De fragão em fragão, para ver melhor e mais
longe, olhava para todos os lados e bradava por ela:
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20 -- João Isabel
Img v/
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-- ]a...no...ta... Ja...no...ta...
Respondia-lhe o eco e depois o silêncio que agora o
perturbava e lhe apertava o coração. Deu-a como perdida,
Já comida pelos lobos, e que não valia a pena procurá-la
mais.
Regressou à corte, a limpar os olhos ao lenço e às
costas das mãos, quando lhe pareceu ouvir o som dum chocalho, lá longe, para o lado dos Barros Vermelhos. Dirigiu-se
para lá, a correr e aos saltos, por cima daquelas pedras e o
som do chocalho ia-se tornando mais audível e mais perto.
Até que foi encontrar a cabra num maciço de urgueiras e piornos, presa, pela coleira do chocalho, por um
ramo forte e recurvo que a não deixava fugir. Desprendeu-a
e abraçou-se a ela, a chorar de alegria.
Foi por essa altura que sucedeu um caso curioso
com o Ti João Badana, que vale a pena contar.
O velhote estava na Nave da Mestra a guardar o
gado, num dia em que o António Matorro tinha ido para o
Hospital com uma pneumonia, quando se aproximou dele
um sujeito, baixo de estatura, de bigode e pera e com um
casaco e boné alvadios.
-- Bom dia, -- disse o recém-chegado, abeirando-se
do pastor.
-- Deus lhe dê bons dias, -- respondeu o Ti Badana,
levando a mão ao chapéu.
-- Donde é vossemecê? -- perguntou ele, de mão
arrimada a uma pequena bengala.
-- De Manteigas, meu senhor.
-- E é seu o rebanho?
-- Enquanto Nosso Senhor quiser.
-- E que dizem cá do Governo?
O Ti João reflectiu um pouco e retrucou:
-- Que os há lá bons e maus, como em tudo.
-- E do Afonso Costa, o que dizem por aí?
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Aqui o Ti João Badana tirou um cigarro do bolso,
que começou a ajeitar e, a seguir, a pederneira e a isca, para
o acender.
-- D'esse dizem que é um bom maroto. Que quer
acabar com os padres e com a religião, como já acabou com
o toque dos sinos e com as procissões, cá na nossa terra.
Mas é mais certo, saiba o senhor, ele ir para as profundas do
inferno, do que acabar com a religião. A religião está dentro
de cada um e aí não manda ele.
O desconhecido teve um sorriso ligeiramente sardónico e continuou:
-- Então querem-lhe cá muito mal?!
-- Se lhe parece! Um patifório daqueles!
Então o senhor de pera e bigode tirou um maço de
cigarros da algibeira e entregou-o ao Ti João Badana, dizendo:
-- Tome lá, que lhe oferece o seu amigo Afonso
Costa.
Admirado e estarrecido, o Ti João Badana quis ajoelhar-se-lhe aos pés e pedir-lhe perdão:
-- Ó senhor, desculpe. Saiba Vossa Excelência que
não o quis ofender. Isto é falar por falar. Uns pensam duma
maneira, outros doutra. O mundo é assim, que se lhe há-de
fazer?
Afonso Costa sorria e então disse-lhe:
-- Sossegue, sossegue. Ninguém lhe faz mal. Um
pastor da Serra tem direito a pensar como quiser.
E saudando-o novamente, fez-lhe, com a mão, um
gesto amistoso.
-- Adeus.
E afastou-se, apoiado na bengala, em direcção às
Penhas Douradas.
Ficando sozinho, João Badana entrou, a seguir, em
vivo Monólogo.
-- E esta, hein? Ia-a arranjando boa. Por um pouco
não me mandava prender. É bem feito, para que não sejas
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linguarudo. Para a outra vez, haja o que houver, bico calado.
Boca fechada não cria varejas.
E, a ruminar, lá foi continuando:
-- Quem havia de dizer?! Quem havia de dizer?!
Afonso Costa achou graça ao episódio e foi contá-lo
a hora do almoço, em ar de anedota, aos seus familiares.
Por esse tempo, o filho mais novo do Ti Badana, o
Manuel, fazia a quarta classe do ensino primário. Era um
bom aluno, com muita tendência para os livros, que chegava
a ser paixão.
Como sofria duma perna e coxeava um pouco, desistiram de o mandar guardar o rebanho, como sucedia com
o Matorro.
Foi para marçano, numa mercearia da terra, a do
José Roque. Mas nunca largava os livros, houvesse o que
houvesse.
Entretanto o Ti João Badana enviuvara e o Manuel, sem carinho de mãe, até fome passava. Mandaram-no para Melgaço, como marçano também e, passados alguns anos, mediante a protecção do Conde de Azevedo, de quem era amigo,
foi para o Brasil.
Aí se empregou numa perfumaria, na Praça Tiradentes, mas
continuou a estudar e, passados anos, formado em História,
foi professor e bibliotecário no Liceu de Portugal do Rio de
Janeiro. Nomeado representante da Causa Monárquica no
Brasil, por D. Duarte Nuno, foi orador em várias sessões solenes, de carácter oficial, com a presença de altas individualidades, como Getúlio Vargas e Pedro Calmon.
O seu nome já figurava em jornais brasileiros de
grande tiragem e tendo sido sempre um monárquico acérrimo, embirrava com todos os governos que existiram em
Portugal na primeira República. Tirou o curso de Direito aos
setenta anos de idade, com elevada classificação.
O Ti João Badana já tinha morrido, há anos. Já não
viu o seu filho guindado a tão altos lugares.
24 -- João Isabel
Se visse, o que diria ele? Que tinha um filho importante,
com grandes e bons amigos, lá no distante Brasil e capaz de
dizer duas coisas acertadas ao Dr. Afonso Costa, se calhasse
encontra-lo, como ele, daquela vez, confuso e envergonhado, a guardar o seu pobre rebanho, na Nave da Mestra.
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BAIRRISMO
Havia, nesse tempo, muita agitação e efervescência
na vila por causa da rivalidade existente entre as suas freguesias. Se uma fazia uma festa rija, com música e foguetes,
logo na outra se fazia uma festa de arromba, com mais foguetes, música e arraial. Nas aleluias, era de ver qual das
duas apresentava uma procissão maior, com mais andores,
anjinhos e figuras alusivas. E na noite de S. João, com fogueiras de rosmaninho a recender nos ares e de grupos em
descantes pelas ruas, a que não faltavam os bailaricos em
certos largos da vila, lá estavam os mastros de rosmano, no
adro das duas igrejas, a atestar, na sua imponência e na sua
altura, e a arder pela noite fora, o bairrismo de quem ali os
tinha erguido.
A rivalidade estendia-se às duas filarmónicas da vila, a Música Velha e a Música Nova, cuja origem derivava já
de motivos políticos, do tempo dos progressistas e regeneradores.
Duma das vezes, o regente duma das bandas foi esconder-se, de noite, numa casa contígua ao ensaio da outra,
quando esta ensaiava uma marcha, ou ordinário, para tocar
no dia seguinte, na festa. Pois esse regente, o Boléo, que
era, na verdade, um belíssimo artista, escreve rapidamente
a partitura dessa peça musical, distribui os papéis dos diversos elementos, ainda essa noite a ensaia e, na manhã seguinte, a sua banda é a primeira a executar a peça pelas
ruas da vila, com grande regozijo da Música Velha e grande
arrelia da Nova, cujos músicos, danados daquele incidente,
vociferavam pragas e até arrepelavam os cabelos.
Por estas e por outras é que havia, a seguir, questões e pancadaria grossa, ou pedradas no escuro que até faziam lume nos balcões ou esquinas das moradias.
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Um dia o Sr. Bispo resolveu fazer uma visita pastoral a esta vila serrana. Foi recebido, à entrada da vila, por
muito povo e bandas das duas freguesias. Mas porque cada
uma queria ter a prioridade na visita do Sr. Bispo, não ficando para segundo lugar, logo ali se armou um tremendo reboliço. Não faltaram murros e bordoadas a granel, os instrumentos das duas bandas andaram pelos ares transformados em instrumentos de agressão e o Sr. Bispo teve de
safar-se, de qualquer maneira, aturdido e assombrado com
aquela recepção.
Até foguetes se deitaram em sentido horizontal,
para cima daqueles magotes. Chegou-se a pontos de ninguém passar, à noite, duma freguesia para a outra, como se
se tratasse de campos vedados ou proibidos.
Até o ti Bichas que morava para o Eirô e tinha umas
pedras ou toças aparelhadas junto à igreja de Santa Maria,
respondeu assim, a quem lhas pedia:
-- Dou-tas, rapaz, mas só na condição de tapares
com elas o caminho entre as duas freguesias.
Nas ceifas, nas malhas, à hora do almoço nas fábricas, nos trabalhos das vinhas e até nos alqueives da Serra, o
motivo de conversa era quase sempre o mesmo: as duas
freguesias.
Os macavencos, de cima, os macarroncos, de baixo,
o Sr. Padre de Santa Maria, o Sr. Padre de S. Pedro, as beatas para aqui, as beatas para ali, o Bernardo sacristão, as
festas rijas do Senhor do Calvário e N. Senhora da Graça, os
pregadores que eram convidados para essas festas. Tudo
era motivo de conversa, mas sempre na base do bairrismo e
rivalidade.
Só num ponto não havia destrinça ou qualquer disputa: os namoros e casamentos faziam-se indistintamente
com rapazes e raparigas de qualquer das freguesias mas,
mesmo assim, não era prudente um rapaz namorar, de noi
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te, uma rapariga da outra freguesia, porque se sujeitava a
qualquer provocação ou pedrada anónima.
Foi o aconteceu, uma vez, ao António Canário, o
qual conversando, à noite, por sinal de lua cheia, com a Ana
Maria, sua namorada, no cimo do Eirô, mesmo à porta da
casa dela, foi bruscamente atingido por uma chapada d'água
que o inundou, da cabeça aos pés.
-- Olha o disparate! -- exclamou a Ana Maria,
olhando para as janelas da casa vizinha, donde devia ter
vindo a água. – Mas que lindo serviço! Ó Ti Fortunato -- gritou ela para as janelas da casa. -- Alguém apareça, para se
lhe agradecer.
E foi bater pancadas rijas à porta dessa casa: Truz,
truz, truz...
Mas ninguém respondeu. A porta estava fechada à chave e
a casa parecia um túmulo.
-- Mas isto não fica assim, -- continuava ela, muito
indignada.
-- Ai não fica, podes ter a certeza, -- continuou o
Canário, ensopado como um pinto, a enxugar a cara com o
lenço de bolso. -- Só queria saber quem foi o filho da mãe.
-- Vai mudar de roupa, depressa, -- pediu a Ana Maria. – Não podes ficar assim.
-- Pois vou, -- disse ele. -- Mas vê lá se consegues
saber quem foi e depois diz-me.
O Canário desandou e a Ana Maria entrou em casa
e foi para a janela, a vigiar. Passada cerca de meia hora, viu
subir a rua um vulto que lhe pareceu ser o Ti Fortunato, como de facto. Claro que não podia ser ele o autor da proeza.
Era um velho pastor, homem de setenta e tantos
anos, de boa fama e que nunca tinha dado escândalo a ninguém. Mas podia ser algum dos filhos.
-- Ó Ti Fortunato, - chamou, da janela, a Ana Maria.
– Os seus filhos, aonde estão?
30 -- João Isabel
-- Os meus filhos? Ficaram em casa da minha irmã
Rosaria, no fundo da vila.
-- Tem a certeza?
-- Assim me Deus salve...
Meteu a chave à porta da casa e entrou, de seguida.
A Ana Maria ficou intrigada a pensar naquilo.
-- Mas então quem seria?
Passados uns dias o Canário soube, por portas travessas, que tinha sido o Chico Perdiz, filho do Ti Fortunato, o
qual, escapando-se à sorrelfa da casa da tia Rosária, sem
ninguém dar conta, tinha vindo fazer aquilo. É que ele gostava da Ana Maria e há muito vigiava o António Canário,
com ciúmes dele.
-- Deixa estar, malandro, que não as perdes, -- pensava o Canário, dia e noite.
E meu dito, meu feito. O Chico Perdiz trabalhava
para lá do rio, no sítio da Lapa, nas fazendas do pai. Passava
ali os dias, a cavar, a lavrar, e a guardar o gado.
O Canário averiguou, calculou e, numa tarde, foi
espera-lo a Ponte do Pego, perto da fábrica do rio. Depois
de descer o caminho, o Chico entrou na ponte e, de repente,
surge o Canário que lhe pergunta, a queima-roupa:
-- Ouve lá, ó Chico, foste tu que me atiraste há dias,
uma chapada d`água, no cimo do Eirô?
-- Quê?! -- respondeu o Chico, surpreendido e receoso do que iria suceder.
O Canário era muito forte e decidido, nas ocasiões.
-- Não te faças desentendido. Foste tu, ou não foste, ó meu grande malandro?
E, sem mais aquelas, agarrou o Chico que era um
frangote ao pé dele, e sobrepõe-no na guarda da ponte e
diz-lhe:
-- Olho por olho, banho por banho... Jurei que não
as perdias.
Contos Serranos -- 31
E, acto contínuo, num ímpeto nervoso, despejou o
Chico nas águas do rio.
-- Ai quem me acode! Socorro! -- gritava o Chico, a
debater-se na água.
Mas ele lá foi nadando para uma das margens aonde chegou com dificuldade por causa do fato e das botas
cardadas.
Toda a vila soube daquele banho forçado. Uns tomavam o
partido dum, outros do outro mas, a grande maioria, estava
a favor do Canário, mesmo os da freguesia de cima.
-- Deixasse lá estar quem lá estava. O namoro era
livre e aqui não havia bairrismo de freguesia. E se tinha dor
de cotovelo, que fosse ao alveitar que o curasse e deixasse
os outros em paz.
O Eduardo Gacha e o Manel Mêda, os valentões da
freguesia de S. Pedro, disseram assim ao Canário, passados
dias:
-- Fizeste bem, ó rapaz. Assim é que se ensinam. É
para que saibam os macavencos que não fazem pouco dos
macarroncos. Pena é que fosse tão pouco. Mas para mão de
ensino, chega!
32 -- João Isabel
Contos Serranos -- 33
ROSA MARIA
Foi na festa do Senhor do Calvário, à hora da arrematação das ofertas, no largo defronte da Capela, que Raul
reparou na rapariga.
Era linda, um pouco magra e esbelta, de expressão
suave e quase angelical, o cabelo louro escuro, os olhos verdes e a boca pequena e carminada, a lembrar um botão de
rosa.
Estava-lhe bem o seu nome, Rosa Maria, e mais parecia uma rapariga da cidade do que uma flor rústica da serra.
Seguia com atenção o desfilar das ofertas, desde as
de tabuleiro, muito fartas de cabrito, frango assado, frutas e
garrafas de vinho, às chouriças, dependuradas em paus, bailantes e de cor vermelho-escuro, aos cestos de batatas e de
frutas e ainda aos bolos grandes e redondos, de aspecto
apetitoso. Os pregões misturavam-se e sucediam-se, em vários tons:
-- Setenta escudos! Quem da mais?
-- Cento e vinte escudos.
-- Trezentos e cinquenta escudos.
-- Quem dá mais?
Iam à mesa perguntar se deviam entregar ou não e
o desfilar das ofertas continuava, no meio do sussurro do
povo, enquanto a banda, no coreto, atacava mais um número e a tarde, a doce tarde de Agosto, de temperatura amena, ia caindo devagar.
Raul aproximou-se, pouco a pouco, da rapariga e perguntoulhe, em voz baixa:
-- Não lanças, Rosa Maria?
Ela virou a cabeça, ligeiramente surpreendida:
-- Não. São muito caras para mim.
-- Há caras e baratas, -- retorquiu Raul. -- De qual
gostas mais?
34 -- João Isabel
Ela sorriu e, um pouco maliciosa, acrescentou:
-- De todas. Cada uma em seu género.
Ia a passar um bolo grande e circular, de bom aspecto, e Raul perguntou:
-- Em quanto vai esse bolo?
-- Setenta escudos.
-- Setenta e cinco, -- lançou Raul, um bocadinho
importante.
Mas, logo adiante, alguém cobriu o lanço, porque o
rapaz do bolo apregoou:
-- Oitenta escudos!
-- Cem escudos, -- lançou o Raul novamente.
E o rapaz do bolo continuou a apregoar e foi à mesa
perguntar e receber novas ordens. Disseram-lhe que entregasse. E o bolo Foi entregue a Raul que, por sua vez, o ofereceu a Rosa Maria, dizendo:
-- À mais linda rapariga que já vi.
E perante o aspecto de recusa que ela manifestou,
Raul insistiu:
-- Não me faças a desfeita de não aceitar. Se o não
quiseres, dá-o ao primeiro pobre que encontrares. Por favor, Rosa Maria. É dado de boa vontade. E, acima de tudo...
Se tu soubesses...
-- O quê? -- perguntou ela, separando-se um pouco
das pessoas e agarrando maquinalmente no bolo.
Ele olhou-a respeitoso e humilde e, numa expressão de muito carinho, murmurou:
-- Se tu soubesses, como gosto de ti...
Rosa Maria encarou nele e franziu a boca num trejeito de dúvida, ligeiramente desdenhoso:
-- Acredito lá nisso! Estava servida, se fosse acreditar em todas as cantigas. Vocês são todos iguais! Se virem
uma burra de saias...
Raul emudeceu uns momentos, de aspecto sério e
um pouco triste:
Contos Serranos -- 35
-- Duvidas de mim, Rosa Maria?! Pois eu gosto de ti
como de ninguém mais... E, se tu quisesses, ainda este ano
casávamos...
-- O que aí vai, o que aí vai, -- retorquiu ela, a rir.
E reparando em alguém, a uma certa distância:
-- Olha a minha tia, a chamar-me. Tenho de ir ter
com ela. Obrigada, Raul.
-- Adeus!
E foi a correr ter com a tia, que lhe acenava de longe, dum ponto dominante, junto ao muro da estrada.
-- A tia por cá hoje!? -- e beijou-a em ambas as faces.
-- É verdade, Rosa Maria, viemos a festa.
-- Quem veio mais?
-- Teu tio, o Jorge e o tintureiro lá da fábrica que
nos ofereceu o carro. Tu é que nunca apareces. Estás esquecida de nós.
-- Não é isso, tia. A vida é que não deixa e daqui a
Gouveia ainda é muito longe. Nem sempre aparecem carros.
Ainda se houvesse carreira...
A tia olhou o bolo que Rosa Maria trazia e disse:
-- Que lindo bolo tu trazes e que bom aspecto ele
tem! Está mesmo a dizer: comei-me! Quanto te custou?
-- Olhe tia, nada. Ofereceu-mo um rapaz, o Raul, há
bocadinho. Quis à viva força que eu ficasse com ele. Morria,
se não aceitasse.
-- Namora-lo?
-- Não, tia. Mal o conheço. Ele declarou-se, mas a
mim entrou-me por um ouvido e saiu pelo outro.
-- Bem! Pode ser que goste de ti. O que não é difícil,
com a cara que Deus te deu. Mas é preciso cuidado. Com
papas e bolos...
-- Eu sei, tia, eu sei... Mas, já agora, para se evitarem aborrecimentos com meus pais, façamos de conta que
foi a tia quem arrematou o bolo. Está bem, tia?
-- Sim, não custa nada. E lá os velhotes, como vão?
36 -- João Isabel
-- Assim, assim. Já com muita idade. Minha mãe vai
fazendo a vidita de casa e o meu pai lá continua com o gadito, na Serra. Já não pode, coitado, mas foi criado naquilo e a
vida está cada vez mais cara...
-- E tu, Rosa Maria, continua na fábrica?
-- Continuo. Tenho de os ajudar e ganhar para o
meu sustento.
Foram andando para casa, as duas.
-- E o tio? -- perguntou Rosa.
-- Anda para aí, com algum amigo. Mas sabe que
estou em vossa casa e lá irá ter.
A tarde caía de todo e, de longe, chegavam as notas
indecisas da Banda, a tocar uma rapsódia antiga, dos bons e
velhos tempos.
Decorreram alguns meses. Raul não desistia de obter as boas graças da sua amada que era esquiva e fugidia, o
que aumentava, ainda mais, o amor que sentia por ela.
Procurava-a, aqui e além, e lá conseguia falar-lhe,
por vezes. Uma noite, cerca das dez horas, depois de ter feito serão na fábrica, vinha Rosa Maria estrada fora com outra
operária, caminho de casa, quando dois vultos, surgindo da
sombra, as agarraram subitamente e tentaram derrubá-las,
para a valeta.
Elas resistiram com todas as forças e gritavam por
socorro, pouco provável naquele sítio ermo, longe da vila e
de qualquer casa de habitação.
Mas logo se ouviram passos rápidos, de alguém que
vinha correndo e um homem apareceu e se agarrou a um
dos assaltantes, socando-o valentemente e atirando-o por
terra. O outro, sem mais espera, procurou na fuga a melhor
forma de sair daquele aperto, ou melhor, do seu acto de vilania.
As raparigas, estarrecidas de medo, gritaram ainda,
sem saber o que faziam.
-- Sou eu, Rosa Maria, não tenhas medo, -- dizia-lhe
o recém-chegado, ofegante de cansaço.
Contos Serranos -- 37
Era Raul que muitas vezes esperava e seguia Rosa
Maria, sem que ela o suspeitasse.
-- Meu Deus, meu Deus...
E elas choravam, ansiosas e confusas, compondo os
cabelos desgrenhados e tentando fugir daquele negro lugar.
--Já passou tudo, -- sossegou Raul.
E curvando-se sobre o vulto enrodilhado e caído,
apertou-lhe o pescoço e invectivou-o, rangendo os dentes: l
-- Canalha, quem és tu?!
-- Não me faças mal... Sou o Albertino... o Marrafa...
– gemeu o prostrado.
-- Ah! cão dos infernos, malandro... -- ululava Raul,
esbofeteando-o, com fúria. -- Vou-te dar cabo do coirão...
Seu pulha, seu miserável...
E apertava-lhe mais o pescoço, espumando de raiva.
O prostrado, já sem forças, emitiu uns ligeiros sons
estertorosos, quase afogado.
-- Deixa-o, deixa-o, Raul, -- pediu Rosa Maria, aflita,
naquele novo transe.
Raul afrouxou a pressão dos dedos e levantou-se,
largando Albertino.
-- Vamos embora, -- continuou ela, angustiada ainda. – Anda connosco, Raul, até à vila.
-- Pois vamos. Mas tu não podes andar assim sozinha, de noite, Rosa Maria. É perigoso, bem vês!
E os três seguiram estrada fora, em direcção à vila,
que em breve surgiu, iluminada, após a curva do Varatojo.
Rosa Maria sentiu nascer dentro de si um novo sentimento
para com aquele rapaz, tão bom e dedicado, tão sério e corajoso, que assim a defendera, naquela hora e que há muito
mostrava gostar dela verdadeiramente.
Por que não retribuir o seu amor, por que não aceitar o namoro que ele tanto desejava, há tanto tempo?
38 -- João Isabel
À entrada da vila, a outra rapariga despediu-se e
Raul acompanhou Rosa Maria, Eirô acima, até à porta de casa.
-- Obrigada, Raul... -- disse ela, segurando-lhe a
mão e olhando-o nos olhos, num impulso de afecto.
-- Gostas de mim, Rosa Maria? - E fitava-a, humilde
e carinhoso, apertando a mão que se lhe oferecia.
-- Gosto... -- E correspondeu a pressão dos seus dedos, continuando a olhá-lo nos olhos.
-- Muito?
-- Muito.
-- Queres ser minha mulher?
E ela, continuando a deixar apertar as mãos e envolvendo-o
num lindo e meigo sorriso, murmurou:
-- Sim...
Raul não pôde conter-se e exprimindo no rosto a
maior alegria, puxou-a para si e estreitou-a ao coração.
Ouviram-se passos a descer a rua e ela desprendeuse brandamente daquele amplexo.
-- São horas... É já muito tarde...
- E agora, quando voltamos a falar?
-- Amanhã, à saída da fábrica.
E despediram-se, apertando as mãos, com muito
carinho.
Na torre da igreja próxima soaram lentamente as
onze horas daquela noite agitada mas, apesar de tudo, feliz.
O namoro continuou, por largos meses. Ele passou
a trabalhar na mesma fábrica e juntavam-se logo à saída,
com o demais pessoal.
Entretanto chegou a altura do serviço da tropa e Raul teve
de ausentar-se para fazer a recruta em Santa Margarida e, a
seguir, foi escalado para fazer o resto do serviço na Guiné, à
semelhança de tantos militares dispersos pelas nossas Províncias Ultramarinas.
Contos Serranos -- 39
Na véspera da partida, Raul teve uns dias de licença
para vir à terra despedir-se da família e das pessoas amigas.
E as últimas horas utilizou-as, como não podia deixar de ser, nesse domingo, num largo passeio, estrada fora,
com Rosa Maria que levava o coração apertado por aquela
longa e dolorosa separação.
40 -- João Isabel
-- Absorvidos e concentrados no mundo interior
que os dominava, não deram conta de que o tempo passava
rapidamente e que eram horas de regressar.
Baixava a noite e ainda estavam distanciados alguns
quilómetros da vila. De longe chegou, doce e plangente,
como bênção do céu, o toque saudoso das Avé-Marias...
Nuvens negras rolavam sobre a serra, para os lados
da Covilhã, com aspecto sinistro e ameaçador, enquanto o
vento começou a soprar impetuoso, vergastando a folhagem da floresta, dum e doutro lado da estrada. Grossos pingos de água começaram a cair anunciando borrasca e um
súbito relâmpago deu beleza estranha àquele lugar ermo,
logo seguido por medonho trovão que reboou pelas abóbadas do céu, como descarga de artilharia.
-- Jesus, valei-me... - -exclamou Rosa Maria, num
grito de pavor, agarrando-se a Raul.
-- Não tenhas medo... Isto já passa...
Mas Raul também estava receoso e intranquilo.
-- Virgem Santíssima... Senhora da Conceição... Rogai por nós.
E continuava agarrada a ele, a tremer, como varas
verdes.
-- Temos de sair daqui... Dizem que as árvores são
perigosas, por causa das faíscas.
Começaram a correr para saírem do meio da floresta.
-- Aqui perto está a casa dos cantoneiros, -- lembrou Raul. -- Vamos para lá.
A chuva era agora torrencial e o céu abria-se em relâmpagos e trovões formidáveis, cada vez mais fantásticos e
pavorosos. Ouviram-se campainhas de gado, não muito longe, como que tresmalhado e fugindo também do temporal.
Era já noite fechada e muito negra, sem o menor
vislumbre de estrelas. Mal se via a própria estrada que percorriam apressadamente.
-- Ainda falta muito?!
Contos Serranos -- 41
-- É já perto...
Raul tinha tirado o casaco e posto sobre os ombros
de Rosa Maria que tentara recusar.
Até que surgiu a casa dos cantoneiros e ali se abrigaram molhados até aos ossos, trementes de emoção. Rosa
Maria estava muda e sucumbida. Que pensariam os pais dela, daquela ausência? Tinha medo da sua reacção vendo-a
chegar tão tarde a casa. Sobretudo o pai, que perdia a cabeça em certas ocasiões e era duro e inflexível em pontos de
moral.
Raul acarinhava-a, vendo-a assim tão triste e aflita.
Lá fora a chuva continuava a cair, batida pelo vento
que soprava em fortes rajadas, por vezes, sacudindo as árvores com fúria e levando pedaços delas para longe.
A trovoada ia passando, pouco a pouco.
Rosa Maria perdia o domínio de si própria a arrependia-se de ter vindo. Já não era aquela rapariga sensata e
reservada que os rapazes respeitavam pela seriedade do seu
proceder.
Era uma mulher apaixonada, como tantas outras e
vítima das circunstâncias daquela noite de trovoada, que o
destino parecia ter forjado, para a perder.
Raul lá embarcara para o Ultramar. Escrevia muitas
vezes e não se cansava de falar do seu amor e das saudades
que lhe despedaçavam o coração. Pedia-lhe que nunca o
esquecesse, assim como ele só pensava nela, dia e noite,
ansiando pela hora do regresso, para casarem.
Rosa Maria apercebeu-se, passado algum tempo,
do resultado funesto daquela noite, em que estiveram juntos. Teve vergonha de si própria e pesou bem a imprudência
em que tinha caído. Agora já não havia remédio. Escreveu a
Raul, a pedir-lhe que viesse depressa, sob pena de não a encontrar, se demorasse muito tempo.
Entretanto Raul andava lá pelos matos e ia curtindo
febres e saudades, à espera que o tempo passasse. Apertou-
42 -- João Isabel
se-lhe o coração quando soube do estado dela e sem poder
acudir-lhe, de pronto, como tanto desejava.
Teve tentações de fugir, de desertar, em horas de
desespero. Os meses foram passando e Rosa Maria disfarçava, o mais que podia, o seu estado. Mas quis-lhe parecer
que sua mãe entrava de desconfiar, ou seria ilusão sua, que
ela queria manter, a todo o custo.
E um dia veio a notícia trágica e brutal, a notícia
horrorosa de Raul que há tempo lhe não escrevia, ter morrido, com mais uma dúzia de soldados, devido Ia explosão de
uma mina que tinha feito ir pelos ares, em estilhas, o camião
onde eles seguiam.
Houve gritos de desespero e lágrimas de muita aflição, naquela terra serrana.
Rosa Maria recebeu a notícia como se fosse um sonho, de olhos enxutos e esgazeados. Não gritou nem chorou, sentindo a morte consigo, no mais íntimo do seu ser.
Meteu-se na cama dias e dias, recusando comer,
muda e angustiada, numa imobilidade de estátua, de olhar
perdido no vago...
-- Mas que tens tu, rapariga?!...
E a mãe torcia as mãos de aflição, sem saber o que lhe havia
de fazer.
-- Vou chamar o médico.
E pôs um xale a pressa, para sair.
-- Não vá, mãe, -- pediu ela, vivamente, -- Não vá...
peço-lhe...
-- Mas que tens tu, diz lá?!
E, num repelão brusco, puxou a roupa da cama e
descobriu o ventre branco e proeminente da rapariga, para
se certificar.
-- Ah! malvada, malvada... Bem me parecia a mim...
E eras tu a rapariga séria e ajuizada... Tu... tu...
E começou a chorar, aos gritos, arrepelando os cabelos e dando punhadas na cabeça, num grande desespero.
Contos Serranos -- 43
-- Não grite, mãe... Não chore... Eu vou-me embora
daqui...
-- Embora para onde? Para onde queres tu ir?! -gritava a mãe, fora de si, aproximando-lhe os punhos da cara, sem querer compreendê-la.
Rosa Maria vergava a cabeça, aturdida e esmagada
pela sua desgraça e as lágrimas deslizavam-lhe, abundantes
e silenciosas, pelas faces. O que faria o pai quando viesse a
saber? Mas ela não teria coragem de o enfrentar. Fugiria
primeiro, para qualquer sítio, fosse para onde fosse.
Nessa noite, sacudida e agitada por tantas emoções, sentiu dores muito fortes, precursoras talvez do próximo desfecho.
Juntou, à pressa, alguma roupa e aproveitando a
ausência da mãe, que devia ter ido fazer algum recado, embrulhou-se num xale e lenço de lã e saiu de casa, seguindo
Carvalheira acima, caminho da Serra.
Era em Dezembro, meados do mês e o dia estava
frio e nublado. Rosa Maria resolvera ir ter com a tia que vivia em Gouveia, do outro lado da Serra e pedir-lhe agasalho
e protecção, naquela hora angustiada. Era amiga dela e confiava que não deixaria de acudir-lhe.
O dia escurecera ainda mais e o frio era cada vez
mais intenso, à medida que ia subindo e se aproximava do
sítio das Penhas.
No alto da Serra começou a nevar, primeiro em flocos pequenos e raros, depois em flocos maiores e abundantes que pareciam bocados de algodão em rama que adejavam e revoluteavam pelo ar. A abundância era tal que mal
se via o caminho e a própria Serra que começava a envolverse num lindo manto de arminho. Rosa Maria, aconchegando
o xale ao pescoço, seguia sempre, estrada fora, marcando os
seus passos na neve que tinha jaz uma certa espessura. Sacudia o xale, de vez em quando, para diminuir-lhe o peso e
passava a mão pela cara, tirando os flocos que a cobriam.
44 -- João Isabel
O manto alvinitente aumentava a olhos vistos e já
se não distinguia a estrada do resto da paisagem imaculada.
Tudo branco e liso, naquele imenso deserto. Cansada e ofegante, o suor a escorrer-lhe do rosto, Rosa Maria
começou a sentir dores mais fortes e teve de sentar-se na
elevação duma pedra, sobre a neve alta que a cobria. As dores em breve se tornaram lancinantes e mais frequentes.
Deitou-se na neve, a gritar e a pedir socorro, esvaída de coragem e de forças.
Mas mal podia gritar, no auge da aflição e do pavor.
-- Socorro!... Socorro!...
Respondia-lhe o silêncio da Serra, a mudez daquele
sítio tão ermo onde só lobos podiam acudir para consumar a
tragédia. Teve medo da morte que nunca esperou poder
chegar naquela idade. Muitas coisas lhe passaram pela mente. Os seus dezoito anos, os seus pais, o Raul lá tão longe,
morto...
Era vítima da sua imprudência, do pecado daquela
noite.
Sentiu-se banhar num lago de sangue quente, as
forças fugiam-lhe e um torpor começou a dominá-la, invencível.
Lábios muito brancos, os olhos ainda lindos, a olhar
o céu, Rosa Maria murmurou:
-- Meu Deus... Meu Deus... Per...doa...me
Se...nhor... Salva... a... mi... nha... al... ma... Mi... nha...
mãe... adeus.
E ficou imóvel, rosto muito branco e olhos abertos,
sempre a olhar o céu. O céu onde devia estar, àquela hora, a
sua alma de mártir, junto dos anjos, seus irmãos.
E a neve continuava a cair, em milhares de pétalas,
sobre Rosa Maria, como último preito à sua beleza, a sua juventude e a dor suprema do seu amor perdido.
24-11-1971.
Contos Serranos -- 45
DOIS PARCEIROS
-- Saiba V. Exa. que sim.
-- Saiba V. Exa. que não.
Assim respondia habitualmente o Albino Marra ao
seu patrão e senhor, quando este o interpelava sobre qualquer assunto da fábrica ou mesmo particular.
Nesse tempo, a fábrica, na qual ele trabalhava desde garoto, era das melhores do país, não só em artigos de
cardação, como de penteação e tinha muitos operários, garantindo assim o pão e sobrevivência a muitas famílias da
região.
E mais do que operário, o Marra era um servo dedicado e fiel, em especial ao patrão Joaquim de Matos que ele
venerava e servia como se fosse o seu verdadeiro pai.
Assim o afirmava, muitas vezes:
-- Mê pai é o Sr. Joaquim de Matos!
-- Mas ó Albino, -- dizia-lhe algumas vezes o Joaquim Cuco, operário também da fábrica, que tinha ideias
vagas e subversivas sobre capital e trabalho. -- Não é preciso
tanto. Os patrões pagam-nos o nosso trabalho e não fazem
mais do que o seu dever!
Mas o Albino, na sua, respondia logo:
-- Nã senhor. Mê pai é o Sr. Joaquim de Matos!
Um dia, o mais velho dos patrões que era na fábrica
e fora dela o pater famílias, mandou o Albino Marra a estação de caminho-de-ferro de Belmonte buscar não sei que
tarifa que ele trouxe num burro, visto que, nesses velhos
tempos, não havia outro meio de transporte.
Como era já muito tarde e trazia o capacete um
pouco quente, resolveu ficar e dormir na povoação de Vale
de Amoreira e aí, noite velha, foi assaltado por dois meliantes que, para roubarem o dinheiro e a mercadoria, lhe deram uma carga de pau que o prostrou, sem acordo. Os patrões, ao tomarem conhecimento do caso e verdadeiramen-
46 -- João Isabel
te indignados com o sucedido, moveram acção judicial contra os meliantes, os quais, descobertos por denúncia, foram
logo intimados a comparecer, para julgamento.
Em plena audiência, no tribunal da Guarda, ao ser
interrogado pelo Juiz sobre os factos ocorridos, ele respondeu, perfilado e sério, na sua baixa estatura:
-- Saiba V. Exa., Sr. Doutor Juiz, que eu já lhes perdoei e queria que V.Exa. lhes perdoasse também.
Grande surpresa e risos na sala da audiência, ao verem aquele homem rústico e tão bom, a perdoar assim aos
dois malandrins que, por pouco, o não tinham deixado morto, para o roubar.
Era assim o Albino Marra, na sua alma simples e ingênua, como de criança.
Mas o fraco, o grande fraco daquele homem eram
os copos, aos quais não resistia, por mais instado e repreendido que fosse. As pielas sucediam-se umas às outras, nos
fins de semana, em especial aos domingos. E quando o patrão lhe ralhava e perguntava se não havia forma de se
emendar, ele então retorquia, muito sério, tirando o garruço:
-- Saiba V. Exa. que sim!
-- Mas então, ó Albino, tu queres dar cabo da tua
saúde, dar desgostos a tua família e ir mais cedo para o cemitério?
-- Saiba V. Exa. que não!
E ficava-se nisto, mas era o mesmo que nada. Volta
e meia, sucedia a mesma coisa. Uma vez, muito pingado, foi
bater à porta de casa da filha do patrão e a criada, a Amélia,
antes de abrir a porta, perguntou:
-- Quem está ai?
E o Marra, com a voz soturna, respondeu:
-- Daqui fala o Sagrado Coração de Jesus de S. Pedro.
S. Pedro era a sua paróquia, pois a vila tinha duas
freguesias, S. Pedro e Santa Maria.
Contos Serranos -- 47
48 -- João Isabel
Contos Serranos -- 49
Doutra vez veio a Manteigas o Ministro das Corporações, no tempo do Estado Novo, o qual falou ao povo da
varanda do edifício da Câmara Municipal para a Praça Luís
de Camões que estava apinhada de gente. E, em pleno discurso do Ministro, o Albino Marra, que não gostava do subsídio que o Governo concedia para as farinhas das crianças,
talvez por ser solteiro e não ter filhos, embora fosse doido
por crianças, lançou este brado singular que ecoou por toda
a praça:
-- Abaixo a mamadeira dos meninos!
-- Abaixo o azeiteiro (Dr. Oliveira Salazar)!
E à voz de prisão da Guarda Nacional Republicana
que estava presente e logo o agarrou para o levar ao posto,
foi preciso o Sr. Ministro dizer, lá da varanda, que largassem
o homem e o deixassem ir em paz.
De vez em quando emparceirava com o Joaquim
Cuco, seu ilustre colega e digno compincha nos copos. Este,
que não era nada tolo e tinha ideias revolucionárias e anarquistas, não cessava de bater na mesma tecla:
-- Não há direito. Somos todos irmãos e filhos do
mesmo Pai. Uns muito ricos e outros muito pobres. Não há
direito. Quem fez isto não sabia o que fazia. Não há direito.
E afogava as suas mágoas e revoltas nuns bons
quartilhos de vinho, pregando pelas ruas da vila as suas
ideias revolucionárias e libertadoras.
Uma ocasião, entraram os dois parceiros, já meio
tocados, numa das igrejas da vila e, ao passarem pelo altar
da Senhora da Graça, o Albino, contemplando a imagem da
Padroeira, disse assim a lacrimejar, num arranco da sua alma boa:
-- Ó querida Mãe do céu, perdoai a estes dois malandros...
E saíram aos bordos, os dois comovidos, a limpar as
lágrimas ao dorso das mãos.
50 -- João Isabel
Ninguém os igualava nestas saídas imprevistas e
inéditas.
Doutra vez, no dia da festa da Senhora da Graça,
Padroeira da freguesia de S. Pedro, a 8 de Setembro, à hora
da saída da procissão, o Cuco, no adro, junto a porta principal da igreja, via passar atentamente as filas dos homens e
das mulheres, os anjinhos, os guiões, as bandeiras e os andores. E quando o andor da Padroeira surgiu na moldura da
porta e girândolas de morteiros atroavam os ares, os sinos
repicavam e a Banda de S. Pedro atacava uma marcha grave,
o Cuco, de joelhos, olhos postos na imagem da Senhora, exclamou comovido, num frémito da sua fé:
-- Um rais me parta se há Senhora mais linda do
que esta!
Assim misturavam, os dois parceiros, o sagrado e o
profano, sem prejuízo das boas almas que ambos possuíam,
cada um no seu género, nomeadamente o Albino Marra que
tinha a sua alma simples guardada num invólucro de homem rude, baixote, de meia-idade, de pernas tortas, olhar
azul e bigode hirsuto e aloirado.
E assim ele era da inteira confiança do seu patrão, o
Sr. Joaquim de Matos, embora este, à hora das refeições, o
mandasse em baixo, a adega, com uma garrafa, buscar o vinho para a mesa, mas sempre a cantar ou a assobiar, não
fosse o diabo travesso e o tentasse a levar o gargalo à boca.
No regresso da adega, o patrão, a rir-se com ele,
sempre lhe perguntava:
-- Então Albino, foste sempre a cantar?
-- Saiba V. Exa. que sim!
Quando Joaquim de Matos ia para a Serra, no Verão, passar um mês na sua casa de S. Lourenço, o Albino
Marra fazia sempre parte da comitiva como elemento indispensável.
E ia de cântaro à fonte, várias vezes por dia, ao pinhal buscar lenha para o fogão da cozinha e, uma vez por
Contos Serranos -- 51
outra, à vila, para trazer o correio e um ou outro mantimento que fosse necessário.
Duma dessas vezes chegou a S. Lourenço desfigurado e de rosto vermelho, o roupão, de riscado azul, todo
cheio de terra e o garrafão, partido e sem vinho, preso pelo
gargalo.
O patrão, ao vê-lo assim, perguntou-lhe surpreendido:
-- O que foi isso, Albino?
E este, a coçar a cabeça, explicou-lhe:
-- Saiba V. Exa. que foi um homem, vestido de preto, que me saltou ao caminho e tinha os pés como os das
cabras, uns cornichos na testa, de pêra e um rabo comprido
que lhe chegava ao chão. Vi logo que era o diabo. E vai ele
disse-me assim: Albino, quando fazes o que prometeste? -Que é que eu prometi? -- Prometeste suicidar-te. -- E vai eu
atiro-me a ele e da refrega que tivemos fiquei assim todo
sujo e o garrafão feito em cacos.
O patrão sorria, do cómico da cena. E a sorrir-lhe
perguntou, com vontade de rir às gargalhadas:
-- Mas ó Albino, tu viste mesmo o diabo, como estás a dizer?
-- Saiba V. Exa. que sim. Era um sujeito vestido de
preto, de pêra, com uns pés parecidos com os das cabras e
uns cornitos assim.
E punha dois dedos sobre a testa, a atestar a veracidade daquela história, não fosse alguém duvidar.
-- Bem, - disse Joaquim de Matos. -- já vejo que para ires buscar vinho, não prestas. Tenho de chamar outra
pessoa.
E o Marra, de cabeça baixa, respondeu:
-- Faça o que V. Exa. “quijér”!
Passados alguns anos, aquele homem de baixa estatura, de
pernas curtas e tortas, que tantas léguas tinha andado a fazer recados e a cumprir as mais diversas missões, deixou de
52 -- João Isabel
poder andar, com as pernas tesas e pesadas e a ponto de
mal poder levantar-se do leito.
Deixou de ir à fábrica e o pior é que o patrão Joaquim de Matos caiu à cama também, muito doente e sem
esperança de poder voltar a levantar-se.
Um dia quis ver o seu velho serviçal e amigo, e levaram-lho, dois homens, sentado numa cadeira, a barba descuidada e o rosto macilento e emagrecido.
Quando entrou no seu quarto e o depuseram na
cadeira, junto ao leito, o patrão disse-lhe:
-- Olha, Albino, ao que nós chegámos...
E o velho serviçal, humilde como sempre fora, apenas pôde
balbucrar:
-- Saiba V. Exa. que Deus tem lá muito para nos
dar...
-- Pois tem... pois tem... -- respondeu Joaquim de
Matos, comovido.
E soerguendo-se do leito, atraiu-o a si e abraçandoo, disse:
-- Adeus, amigo! Reza por mim, como eu rezarei
por ti...
De olhos marejados, despediram-se mudamente e
nunca mais se voltaram a ver.
Manteigas 22-6-1980
Contos Serranos -- 53
A TI CLOTILDE DOS REQUEIJÕES
-- Quem merca os requeijões? Quem merca dos requeijões?
Era o pregão da ti Clotilde, logo de manhã, pelas
ruas da vila, a vender a sua boa e apreciada mercadoria.
Era uma mulher agradável, castiça, já passante dos
sessenta, de média estatura, um pouco curvada e de cara
vermelha, devido talvez aos bons ares da serra que, com
frequência, respirava.
Trazia sempre um lenço atado à cabeça, que lhe
dava um certo aspecto de minhota, saia rodada até aos tornozelos e pés descalços, os quais davam nas vistas porque
tinham enormes joanetes, adivinhando-se-lhe muitos calos
nas solas.
Atravessava a Serra duas vezes por semana, quer
de Verão quer de Inverno e o seu companheiro inseparável
era o burrinho, o Ruço, que transportava a carga e era já
bastante velhinho. Andava sempre descalço, como ela. Saíam de S. Martinho de madrugada e regressavam à aldeia, na
manhã seguinte, a mesma hora, depois de terem feito o seu
negócio, na véspera.
Assim aguentavam os frios e neves de Inverno e o
sol e calores de Verão, estes bem mais fáceis de suportar,
pois até era agradável atravessar a Serra no tempo quente,
logo de manhã cedo.
Mas o Verão era fugaz naquelas paragens, pois,
como dizia um velho boticário da vila, nesta terra só havia
duas estações: a do Inverno e a dos Correios. É que a vila era
tão linda, tão linda, que até o Inverno cá vinha passar o Verão.
Mais simplesmente, a gente do povo dizia, batendo
os queixos de frio: -- Isto é uma terra derrancada! Quem a
aqui fez, precisava o pescoço cortado!
54 -- João Isabel
É que o frio era quase sempre intenso e insuportável nesta terra serrana. Os frios e os trabalhos que a ti Clotilde curtiu, por essa Serra fora, tinham muito que contar!
Mas era uma pobre de Cristo, que tinha de ganhar a sua vida e não havia outro remédio senão andar com a cara p'rá
frente, de qualquer maneira.
Lá tinha em casa um filho aleijadinho e perdido do
juízo, para sustentar. O burrito transportava a mercadoria
que, além dos requeijões, constava de cebolas, feijões,
alhos, maçãs e chinelos.
Tudo se vendia, mormente maçãs, pois, nesse tempo, não havia pomares como existem hoje, por todos os lados.
Com o burro preso pela arreata, andava ela, pelas
ruas da vila, a apregoar:
-- Quem merca os requeijões? Alhos, cebolas, maçãs... Quem merca os requeijões?
Quase junto à porta da casita que ela alugara, surgiu a uma janela a cabeça desgrenhada da Rosa d'Avó que
logo perguntou:
-- Ó senhora Clotilde! A como são os requeijões?
-- A quartinho, vizinha.
-- A quartinho?! São muito caros. Não os deixa a
dez tostões?
-- A mais do que isso me ficaram eles.
Ficaram as duas emudecidas, por instantes, e a Rosa continuou:
-- E são frescos?
-- Olha, frescos! -- respondeu a Clotilde. -- Vi-os eu
fazer, ontem à noite. Assim me Deus salve. Isto são o rei dos
requeijões, feitos pela Augusta, a mulher do Zé Alho, lá de S.
Martinho. Conhece-a?
-- Não conheço, -- disse a Rosa.
-- Isso tem umas mãos de prata. Para queijos e requeijões, não há como ela. Até vem gente de Lisboa, de
Contos Serranos -- 55
propósito, à procura dos queijos do Zé Alho. Uma coisa é
ver-se, outra dizer-se.
-- Bem, -- disse a Rosa d’Avó, já sorridente de convencida. -- Deixe lá ver dois.
E sumiu-se da janela para ir à cozinha buscar um
prato vidrado, de fundo raso. Já na porta da rua, de prato na
mão e reparando na cara vermelha da ti Clotilde e no suor a
escorrer-lhe da testa, perguntou-lhe:
-- Vem cansada, senhora Clotilde?
-- Um bocado, vizinha, um bocado. É um estirão, de
S. Martinho aqui. O que me vale é o burrito, senão não botava ca.
--Isso acredito eu. E o frio, de Inverno, senhora Clotilde? Como aguenta tanto frio, na Serra?
-- Olhe, filha. O que me vale é ir bebendo uns golitos de aguardente, p'ra aquecer. Levo sempre uma garrafita
com ela. Se não, o que havia de ser de mim!
Sobretudo o nariz da ti Clotilde, mais rubicundo do
que o resto da cara, dava bem a entender que abusava da
pingoleta.
-- Bem, senhora Clotilde, -- disse a Rosa, a despedirse. – Agora toque a campainha da porta do sr. doutor, que
também la querem requeijões. A senhora, há dias, disse-me.
Defronte da casa da Rosa d’Avó ficava a casa do médico da
vila, cujo tamanho e paredes de cantaria contrastava com as
das casas vizinhas. Era uma casa antiga, de família da esposa
do clínico, tipo solarenga, toda feita de granito e com uma
varanda a todo o comprimento, com vidros de diversas cores nas portas e janelas da referida varanda.
A ti Clotilde carregou no botão da campainha da
porta e breve apareceu à varanda a Lucinda, criada do doutor, que logo perguntou para a rua:
-- Quem é?
-- Sou eu, a Clotilde.
-- Ai, é a senhora Clotilde? Espere um bocadinho.
Eu vou abrir.
56 -- João Isabel
E, daí a pouco, estava a senhora Clotilde no cimo da
escada do médico, com a cesta dos requeijões enfiada no
braço.
Veio a dona da casa que logo perguntou:
-- Como tem passado a sra. Clotilde? Bem de saúde?
-- Assim, assim, minha senhora. Cá vamos andando
como Deus é servido. E a senhora, o sr. doutor e os meninos?
-- Tudo bem, graças a Deus. Então vamos aos nossos requeijões?
O meu marido gosta muito deles, mas é dos seus.
Alguns são muito salgados e desses não gosta. Mas dos da
sra. Clotilde, sim. Costumam ser muito bons.
-- Obrigada, minha senhora. Quantos quer?
-- Aí uns três. Devem chegar. Depois, para a semana, volta cá outra vez.
-- Então ficam quatro e um ofereço-lhe eu.
-- Não, isso não, sra. Clotilde. Agradeço-lhe muito,
mas a senhora não anda a negociar para fazer esses favores.
Ficam os quatro, mas pago-lhe os quatro.
-- Seja pelas almas. Como a senhora quiser!
A Lucinda tirou os quatro requeijões que pôs numa
travessa e a senhora pagou os requeijões, dizendo:
-- Então quando volta, sra. Clotilde?
- Eu venho cá às segundas e sextas-feiras. Só se de
todo em todo não puder. Mas é raro faltar. Às vezes chego,
mas não sei se querem alguma coisa... Envergonho-me de
bater.
-- Pois toque à campainha, de hoje em diante. É
que nós estamos lá para dentro, a casa é grande e não ouvimos o seu pregão. Bem, sra. Clotilde, vá lá então à sua labuta. Não lhe queremos tirar mais tempo. Mas admiro, na
sua idade, como ainda anda metida nestes negócios. Não
tem medo de atravessar a Serra, assim sozinha?
Contos Serranos -- 57
58 -- João Isabel
Contos Serranos -- 59
-- Medo de quê, minha senhora?!
-- Eu sei lá. Da neve, do frio, dos lobos, dalgum mau
encontro.
-- E que remédio tenho eu senão andar com a cara
p'ra diante! Que remédio tenho eu! Tenho lá em casa um filho aleijadinho e maluquinho do juízo, que precisa de comer. Além disso é tolhido dos braços e pernas e não se levanta da cama. Ficou assim da meningite que lhe deu quando tinha cinco anos. Meu rico filho! Nascer com saúde e perfeitinho como ele era e ficar assim naquele estado... Sou
uma pobre viúva, pois o meu homem morreu, vai agora para
vinte anos, dum desastre no trabalho. ii
-- De desastre, sra. Clotilde?! Como foi isso?
-- Andavam a fazer a barragem, na Lagoa Comprida.
Davam lá muitos tiros de pedreira, para desfazer as pedras
grandes. E vai daí, atacaram lá uma vez um poio enorme,
com pólvora e rastilho, pegaram-lhe o fogo, o tiro não se
deu e os homens julgaram que estava encravado. Então
aproximaram-se, muito confiados, quando de repente, -bum! -- aquilo rebentou e o meu homem, que ia na frente,
apanhou com uma pedra na cabeça, que lha abriu de meio a
meio. Levaram-no logo para o hospital de Seia, aonde foi
visto pelo Sr. doutor Mota Veiga, mas não deu tempo para
nada. Estava em estado lastimoso e morreu ainda nesse
mesmo dia. Meu querido homem!
E tirou um lenço do bolso para enxugar as lágrimas.
-- Realmente, sra. Clotilde, -- exclamou a mulher do
médico. -- Tem sido muito infeliz. Mas Deus lá está, para a
recompensar. Dizem que Deus trata assim os amigos. Todos
estamos sujeitos, uns duma forma, outros doutra...
- Pois é, minha senhora. Mas uns mais do que outros. Não sei porquê, mas é assim.
-- Mas olhe, sra. Clotilde, -- continuou a mulher do
médico. -- Todos nós somos filhos de Deus. Mas sabe como
S. Paulo chama às pessoas muito felizes, a quem tudo corre
60 -- João Isabel
bem? Filhos bastardos de Deus. E S. Paulo sabia bem o que
dizia...
-- Será assim, minha senhora, será mesmo assim.
Mas custa muito sofrer certas coisas. Há vidas muito custosas, muito cheias de sofrimento. Mas seja feita a vontade do
Altíssimo... Ele tudo sabe e nós somos para aqui uns ceguinhos, que nada sabemos.
E, com os olhos ainda húmidos, concluiu:
-- Bem, deixa-me lá ir à minha vida. Adeus minha
senhora. Cá virei, qualquer dia.
--Venha, venha. Adeus, sra. Clotilde.
Desceu as escadas e, daí a pouco, lá andava pelas
ruas, a clamar:
-- Quem merca os requeijões?!
E a labuta continuou, durante todo o dia, puxando
pela arreata do burro que, por vezes, já não queria andar.
-- Anda Ruço, anda, que logo já descansas, à tua
vontade.
E animava o burro com uma mão cheia de feno que
tirava debaixo da albarda.
Num dos becos do fundo da vila apareceu a Josefa
Vinagre a descer o balcão da casa, de aspecto macilento e
muito triste e andrajosa.
-- Então Josefa, queres algum requeijão? -- perguntou a Clotilde.
-- Querer, queria... Mas o meu homem não me dá
nada, é um borrachão que anda sempre metido nas tabernas. E ele pouco ganha. É um preguiçoso. A mulher e os filhos que façam cruzes na boca. É para isto que uma mulher
casa, p'ra esta desgraça. Mais valia deitar-se a gente a afogar, antes de dar este passo. Há horas muito ruins, sra. Clotilde. Mal haja essa hora em que eu disse que sim, ao meu
homem. A mim bem me avisaram. Mas não quis acreditar.
Mas era mais que verdade, o que me diziam. Agora auguenta, estafermo, auguenta para aí.
Contos Serranos -- 61
A ti Clotilde, que tinha um coração sensível e bom,
lá lhe foi recomendando:
-- Tem paciência rapariga. Há muitas como tu. Ou
julgas que és a primeira? Deus experimenta-nos de muitas
maneiras. A tua cruz é essa. Tens de levá-la com jeito, senão
é pior.
-- Isso é bom de dizer, sra. Clotilde. É bom de dizer... Se estivesse no meu caso, não falava assim.
-- Tinha de auguentar, que não tinha outro remédio. Ou julgas que não tenho também a minha cruz? Mais
do que tu julgas. E hei-de ir matar-me por causa disso?
E a olhar para um e outro lado, não fosse alguém
surpreendê-la, tirou um requeijão dum dos cestos, entregou-o rapidamente à Josefa, dizendo:
-- Toma lá este, que t’o ofereço eu. Escolhe também uns chinelos, que deves precisar e pagas quando puderes. E não dês à língua. Escusam de saber.
A Josefa, muito comovida e com os olhos humedecidos, só pôde articular:
- Bem-haja, sra. Clotilde. Deus lhe dê tantos anos
de vida e tantas felicidades como desejo para os meus filhos.
A ti Clotilde, já a puxar a arreata do burro, ainda
respondeu:
-- Não tens que agradecer. Agora vai à tua vida e
que Deus te ajude a levar a tua cruz.
Foi por essa altura que ela trouxe a Vila Herminius
um rapazinho dos seus sete anos de idade, que pedia esmola e contava uma história muito triste e até dramática, que
porventura lhe tinham ensinado para melhor comover as
pessoas e ser mais abundante o fruto da sua pedincha. Era
um miúdo pálido e magrito, de olhar meigo e um pouco triste, de rosto oval e muito bonito, a despeito do seu aspecto
mal cuidado e sujo que muito prejudicava a simpatia que
inspirava.
62 -- João Isabel
-- É seu neto? -- perguntavam algumas pessoas à ti
Clotilde, olhando o pequenito com uma certa compaixão.
-- Não, não é meu neto, -- explicava ela. -- É filho
duma vizinha minha, lá de S. Martinho, que me pediu para o
trazer. Mas é uma desgraçada, muito pobre e muito doente,
que não tem onde cair morta, porque o homem foi para o
Brasil e nunca mais lhe escreveu. Nem sabe se é vivo ou
morto. Deixou-lhe este pequeno que lá anda às esmolas,
porque não tem com que o sustentar.
As pessoas olhavam com pena o miúdo, dizendo:
-- Pobre criança!
-- E tão bonito que ele é! -- diziam outras, condoídas e afagando-o com afecto.
Veio algumas vezes com a ti Clotilde e, quando havia muito frio e por ser a casita dela um pardieiro, sem vidros nas janelas e os pavimentos esburacados, costumavam
dormir os dois, por caridade, no forno de cozer o pão. Havia
vários fornos nessa altura e, além do calorzinho, também se
consolavam com o bom cheiro do feijão do forno, assim
chamado porque era costume, nesse tempo, colocarem panelas, de preferência de barro, dentro dos fornos, depois de
retirar o pão já cozido. E nunca mais os feijões voltaram a
ter o sabor delicioso que tinham esses, cozidos assim.
Um dia o Francisco, que assim se chamava o rapazito, foi pedir esmola à casa do já referido clínico da terra.
A dona da casa e os filhos, quando o viram assim
tão andrajoso e pobrezinho, descalço, os cabelos emaranhados e a roupa em pedaços, tiveram muita pena dele.
Quem não havia de ter?
Sobretudo o João, um dos filhos do casal, que, nessa altura, fizera um Curso de Cristandade, tomou o miúdo a
seu cargo. E então ficou com ele em casa. Deram-lhe um
bom banho de limpeza, vestiu-se e calçou-se com roupas
doutro irmão de idade aproximada e foi ao barbeiro cortar o
cabelo e o alfaiate para lhe ajeitar uma jaleca e uns calções.
Contos Serranos -- 63
Estes artistas, honra lhes seja feita, não levaram
nada pelo seu trabalho. Depois de tudo isto, o Francisco parecia um principezinho. Jantou com todos da casa e fez-se
um serão musical, com piano, violino e coros, nos quais todos tomaram parte.
O Francisco também cantou, riu muito e sentiu-se
feliz.
Arranjou-se-lhe uma caminha e não lhe faltou o
beijinho que a sua mãe lhe daria, se ali estivesse também.
Como ela teria chorado e sorrido, de ternura, se tivesse presenciado e vivido aquela cena! O certo é que o Francisco fez
um sucesso, no dia seguinte, ao regressar à sua terra. E tão
lavado e bem vestido ia, que até parecia um fidalguinho.
Pobre criança, tão pequenina e desamparada! Que será feito do Francisco, que nunca mais apareceu?!
Passado algum tempo correu o boato que a ti Clotilde tinha sido atacada e devorada pelos lobos, deixandolhe apenas alguns ossos e os pés dentro dos sapatos.
Nem se lembrava, essa gente boateira, de que ela
andava quase sempre descalça. Mas apareceu, passados alguns dias, em Vila Hermínius, com o seu costumado pregão:
-- Quem merca os requeijões?
Fizeram-lhe uma festa em todos os sítios por onde passou,
pois era bem popular e estimada em toda aquela vila.
Ao verem-na novamente, com a sua cara muito
vermelha e a cesta dos requeijões enfiada no braço, exclamavam, com alegria:
-- Viva a Sra. Clotilde! Ainda bem que foi boato! ”
E ela explicava:
-- A história dos lobos? Confundiram-me com uma
mulher das Aldeias que foi assaltada por dois cães de gado,
perto de Gouveia.
Ela levava um cãozito pequeno e os outros atiraram-se a ele.
A mulher quis defender o seu cãozito e os cães de gado atiraram-se a ela. O que valeu foi acudir o pastor, dono desses
64 -- João Isabel
cães, senão davam cabo da pobre mulher. Mas comigo não
houve nada, graças a Deus!
As pessoas então advertiam:
- Mas vá tendo cuidado, sra. Clotilde! Que Deus a
proteja, nessas travessias da Serra.
E ti Clotilde respondia:
-- Há-de ser o que Deus quiser... Estamos todos à
mercê de Deus.
Em conversa com a esposa do clínico, a ti Clotilde
dizia:
-- Já vi um lobo ou outro, a atravessar a Serra. Mas
nunca me fizeram mal.
E, um pouco a rir, continuou:
-- Dizem que eles atacam mais no Inverno, quando
não há rebanhos. Se eles me atacassem, dava-lhes pão e
chouriça que trago sempre comigo e não haveria qualquer
novidade.
-- Nunca fiando sra. Clotilde, nunca fiando... -- dizia
a esposa do doutor. -- São feras e basta. Mas Deus há-de
protege-la, como até aqui.
Passado algum tempo chegou a triste notícia de
que a ti Clotilde tinha morrido na Serra, já perto de S. Martinho.
Ao atravessar um riacho, devido talvez ao torpor
em que se encontrava por ter bebido demais ou por lhe ter
dado alguma coisa de súbito, caiu do burro abaixo, ficando
de bruços dentro da água e lá morreu. O burro seguiu o seu
caminho e quando na aldeia o viram chegar, sem a dona, logo pensaram o pior.
Foram a sua procura, mas sem poder já valer-lhe.
Desta vez era verdade.
Estava escrito que a ti Clotilde, figura típica e castiça, que tanto labutara na vida e tão estimada era naquela vila serrana, havia de morrer na Serra, deixando em todos que
a conheceram a mais sentida pena e, porque não dizê-lo, a
mais viva saudade.
Contos Serranos -- 65
O COMPADRE E O SR. PRIOR
Um pândego, aquele Alberto! Conheci-o quando
ele tinha vinte anos e já então era assim, alegre e vivaço,
atrevido e palrador, embora um tanto patusco e um tudo
nada tocado da mioleira.
Por esse tempo, como os pais eram um bocado
abastados e não tivesse encargos de família, pois era solteiro, levava uma vida livre e folgazã e sem um mínimo de preocupações que o embaraçassem ou tolhessem no seu caminho descuidado e feliz.
Trabalhava, durante o dia, nas propriedades rústicas de seus pais e nas que ele possuía, herdadas da sua madrinha de baptismo, já falecida, mas, à tarde e à noite, era
vê-lo a conversar e a rir, na rua ou na taberna, com os seus
amigos e conhecidos, ou a namoriscar, nos balcões das casas ou, o que era pior, por sítios mais ou menos solitários e
escusos.
Um dia o padre António que era o prior lá da freguesia, homem simples e bom, espontâneo e pitoresco nos
seus ditos e conversas, muito integrado naquele meio rude
e primitivo mas sem deixar de ser firme e até austero quando se tornava necessário, disse-lhe assim:
-- Alberto, Alberto! Tu assim não vais bem. Não
gosto de te ver nessa vida que levas.
-- Na vida que levo?! -- respondeu o Alberto, em
tom de admiração. -- Mas então, senhor prior, que vida é
que eu levo? De dia trabalho e, à tarde e à noite, gosto de
conversar e de me distrair um bocado. Que mal há nisto, senhor prior?!
-- Pois sim, pois sim, -- respondeu o padre, aquiescente. – Não digo menos disso. Mas tudo se quer em termos, em termos. E não venhas cá com cantigas. Não ê só isso, o que por aí se diz.
O Alberto coçou a cabeça e respondeu:
66 -- João Isabel
-- São mais as vozes que as nozes, senhor prior.
Acredite no que lhe digo. E, se não for agora, quando ê que
me hei-de divertir um bocado?! Quando for velho, senhor
prior?
-- Divertir, divertir! -- replicou o prior. -- Eu não sei
lá dessas vidas. Tu é que sabes. Mas ouve lá, Alberto, ouve o
que te digo. Por que não te casas? Não era melhor do que
andares por aí, sabe Deus como, a fazer asneiras? Arranja
uma mulher que te faça jeito e casa-te, rapaz. É o melhor
que tens a fazer. Não ê preferível do que andares a condenar a tua alma e um dia teres de ir malhar, quer queiras
quer não, às profundas do inferno? Pensa nisto, rapaz, enquanto é tempo. Olha que a morte bate-nos à porta dum
momento para o outro e quando menos o esperamos.
O certo ê que o Alberto começou a cogitar naquilo
que o padre dissera e deu então em amainar e a mudar um
pouco de vida.
Lançou então os olhos para uma rapariga de quem
gostava desde criança, a Graça Tanganho; que não se fez
muito rogada e, passado menos de um ano estava casado
com ela. Começou então uma vida mais normal e sossegada,
embora o Alberto não dispensasse a visita habitual à taberna, para conversar com os seus amigos e ir apanhando o seu
pifãozito que, por sorte, lhe dava quase sempre para o alegro.
O pior foi que, passados meses, estando a mulher
em gravidez de termo, começou a inchar toda e a perder o
conhecimento, de vez em quando, até que teve de ser levada, de urgência, ao médico duma vila próxima, o qual a
mandou internar imediatamente no hospital dessa vila.
-- Mas ela o que tem, senhor doutor? -- perguntou
o Alberto, muito aflito e de ,olhos esbugalhados, após o
exame clínico.
-- Eclampsia. Mas você não sabe o que é e o melhor
será leva-la já para Coimbra, onde pode ter melhor assistência.
Contos Serranos -- 67
-- Ó senhor doutor! Veja lá isso! Preferia que ela
fosse aqui tratada, -- redarguiu o Alberto, com voz suplicante.
-- Bem. Então fica, -- respondeu o médico. -- Mas
não afianço nada do que possa acontecer.
-- E lá em Coimbra, afiançam-na? -- interrogou o
marido, suspenso dos lábios do doutor.
-- Isso não sei, -- respondeu este. -- Mas julgo que
não.
-- Então ela fica. E o senhor doutor faça lá o que
puder, que não se há-de arrepender.
A Graça ficou. Deu muito trabalho, mas salvou-se. E
salvou-se a criança, um robusto rapaz, com mais de quatro
quilos de peso, que era mesmo uma admiração. Passados
uns quinze dias regressaram à terra e o médico foi logo convidado para padrinho do rapaz e almoço do baptizado. Este
realizou-se um mês depois, em casa do Alberto, com a presença do médico e da esposa, do senhor prior e de pessoas
de família do casal.
Foi um almoço muito animado, com ditos e chistes
do Alberto e do senhor prior, tendo cada pessoa na sua
frente uma rima de cinco pratos, muito grossos, de Sacavém. Mal se viam uns aos outros e o almoço foi todo obrigado a carne e realçado, a certa altura, com um enorme
borrego numa grande travessa.
Logo o Alberto separou a cabeça do animal e lançando-a no prato do médico, exclamou:
-- A cabeça para o senhor compadre!
Era um domingo e o médico e a esposa aproveitaram para assistir à missa celebrada pelo senhor prior que, já
no final, a propósito duma grande barulheira feita com um
caldeiro, e fora de horas, na noite anterior, e na rua onde
habitava, lobrigou a criada no meio da assistência e apontando para ela, disse:
-- Não é verdade, ó Maria?
68 -- João Isabel
-- Foi o pai deste! -- respondeu um garoto, de tacha
arreganhada até às orelhas e de braço curvo para trás, a indicar um companheiro.
Risota geral em toda a igreja, acompanhada de cochichos uns com os outros e até de palavras trocadas em
voz mais alta, a que pôs termo o senhor prior que permitia o
diálogo, mas não a indisciplina:
-- Silêncio! Isto aqui é a igreja, não é a feira de
Agosto.
De resto, o senhor prior era sempre obedecido,
apesar do seu feitio simples e até um pouco bonacheirão.
Sabia dar-se ao respeito e, na verdade, toda a gente o considerava naquela terra.
Se havia briga ou zaragata na rua ou na taberna, à
conta dos capacetes já quentes e das requintas altas e iam
chamar o senhor prior, este vinha e não queria saber de
desgraças ou de quem tinha ou não tinha razão. Era sopapo
para a direita, sopapo para a esquerda e tudo entrava na
ordem como por encanto.
E nem admira, dado que ele havia baptizado e casado quase toda aquela gente, habituada desde sempre a
respeitar e obedecer ao senhor prior.
Mas quem verdadeiramente mandava era a criada
dele, a velha Maria que punha e dispunha em casa do prior
e tinha intervenções pitorescas, como aquela de vir à rua,
com o chapéu velho do padre António, tirar-lhe o novo da
cabeça e dizer:
-- Hoje é o velho, não é este que traz. -- (Tudo por
uma questão de economia, da qual era acérrima defensora,
a velha criada do prior).
Também sucedera, algumas vezes, ir o padre cortar
o cabelo ao barbeiro lá do povo e surgir à porta a Maria, que
ordenava, investida de certo poder:
-- Corte-lho rente, ouviu?
O padre ria, um pouco bonacheirão, para dar graça
ao caso mas, em casa, advertia a criada que não se metesse
Contos Serranos -- 69
naquelas coisas para as quais não era chamada e tratasse lá
das panelas e arranjo da casa, onde era o seu lugar.
-- Se o senhor prior não me quer cá, vou-me já embora – retorquia a velha criada, abespinhada com o caso e
um pouco chorosa.
-- Ó mulher, não é nada disso, -- respondia o prior.- Ninguém lhe fez mal.
E o caso ficava por ali, até nova e inoportuna intervenção. É que o padre António era tão simples e tão bom,
para não dizer tão simplório, por vezes, que dava azo àqueles pequenos abusos domésticos, que a criada não cometia
por mal, mas por defesa e afecto àquele prior que ela, no
fundo, tanto estimava e estremecia, como irmão ou pai.
Ninguém havia de dizer à primeira vista, mas o padre António tinha sensibilidade musical, organizando até, lá
no povo, uma Banda de vinte e cinco elementos, da qual fazia parte o compadre Alberto que tocava clarinete ou requinta, conforme as ocasiões.
Faziam ensaio às terças e sextas-feiras e tinham um reportório muito variado que ia desde música da Grã-Via e Rigoletto, até às marchas graves e polca Sebastiana. Era nessa que
o Alberto mostrava a sua “virtuosidade” na execução de
tresquiálteras e semicolcheias, em andamento presto, que
fazia a admiração de todos os presentes.
Quando, em certas tardes de domingo e no Verão,
a Banda executava alguns trechos de música no velho coreto daquela aldeia, lá surgia uma voz, dentre o magote do
povo, que pedia, alvoroçada:
-- Ô Alberto! Toca lã a Sebastiana!
O velho prior sorria, de satisfeito, na regência da
Banda e mandando distribuir os papéis, dizia, em voz baixa:
-- Bem, vamos lá à polca.
E Alberto, mais uma vez, fazia um brilharete com a
execução daquela música que sabia de cor e salteado de
tantas vezes a tocar. Mas havia horas de tudo e nalgumas o
70 -- João Isabel
padre arreliava-se e barafustava, sobretudo quando a Banda
desafinava ou ia fora de tempo.
Uma vez, numa procissão pelas ruas da aldeia, ia
ele debaixo do pálio, devidamente paramentado, com a custódia do Santíssimo e a Banda logo atrás, a atacar uma marcha grave.
-- Mas a Banda desatou a desafinar, cada um para
seu lado. O padre começou a ferver lá por dentro e, não podendo conter-se, entrega a custódia a um seminarista que ia
ao seu lado e, de capa de asperges aos ombros, volta-se para trás e entra a reger, de braço no ar e a entoar, muito
enérgico:
--Tachim, tachim, tachim...
E a Banda lá se recompôs, obrigada por aquela regência, e o prior regressou ao seu lugar, muito congestionado e aborrecido com tal contratempo.
Mas tinha muitas assim, o senhor padre António.
Doutra vez, na Covilhã, acompanhado de muita
gente da sua freguesia, aconteceu que, logo ao chegarem
àquela cidade e antes de se incorporarem na procissão para
que tinham vindo, muitas pessoas, derreadas pela caminhada, já andavam descalças e de calçado na mão.
O próprio prior, muito aflito e acalorado, foi bater à
porta duns afilhados que lá tinha e, logo que entrou na sala,
disse assim:
-- Afilhada! Tens cá umas botas ou sapatos do afilhado, que me emprestes? Venho à rasca dos pés e não posso ir assim à procissão. E um pau de vassoura, tens cá? Esqueceram-se do pau da bandeira e agora temos de remediar, de qualquer forma.
Entre frouxos de riso a afilhada foi buscar os objectos necessários e o padre, olhando para ela, continuou:
-- Tu ris-te? Havias de estar como eu, que não te rias tanto. Anda lá, anda lá...
Contos Serranos -- 71
72 -- João Isabel
E a descalçar umas botas e a enfiar as outras, o padre esbofava-se e transpirava por todos os poros, a preparar-se para a procissão.
Foi nesse dia que o Alberto, tendo abusado da
aguardente, foi acometido de violentas cólicas abdominais
que o obrigaram a ser levado, de urgência, para o hospital.
Aí lhe foi dito, pelo médico de serviço, que não podia beber
vinho ou qualquer outra bebida alcoólica, visto ter uma úlcera no estômago e estar arriscado a uma hemorragia ou
perfuração.
-- Eu bem sei que não crio o meu filho, -- dizia o Alberto, muito seguro de si e ainda mais seguro de não deixar
a aguardente. -- A mim o que me vale é o bicarbonato, por
causa das azias, -- explicava ele ao médico. -- Senão já tinha
morrido...
-- Pois sim, -- respondeu o clínico, sorrindo dos modos do doente. -- Mas tenha juízo, que é o melhor.
Por isso naquele almoço de baptizado do filho do
Alberto, a que já nos referimos, o padre aludiu ao fraco que
este tinha pela bebida, dizendo que era muito bom moço,
bom marido, amigo de se rir, sim senhor, mas sempre respeitador, não se podia dizer o contrário...
-- E muito bom músico, ali onde o vêem, -- continuava o prior.
-- Tem bom ouvido e muita queda, o Alberto. Dos
melhores que lá tenho, na Banda. O pior é quando já esta de
requinta alta, mesmo nos ensaios... Então é uma desgraça,
não há nada a fazer. E é uma pena, pois anda a dar cabo da
vida e da saúde...
-- Chegue-lhe, senhor prior, que ele bem merece, -atalhou a mulher, a Graça Tanganho, formalizada e de aspecto sério. – Não tem pena dele, nem da mulher e do filho.
-- Eu já te disse, mulher, muitas vezes, que não crio
o meu filho, -- retorquiu o marido, muito convicto, a rir-se. -É um palpite que cá tenho, há muito tempo.
Contos Serranos -- 73
-- Porque és doido, -- replicou o prior, escandalizado. -- Se não fosses maluco, não dizias isso. Quem te priva, a
ti, de deixares a pinga? Se é esse o teu mal, porque a não
deixas, de vez?
-- Isso é bom de dizer... -- respondeu o Alberto a
ponderar as palavras.
-- E de fazer, -- ripostou o padre, -- quando se tem
juízo e vontade de acertar. O vício não pode mais que o homem. Há muitos que deixam. Por que não fazes tu o mesmo? Quem te priva de o fazer?
-- Eu já tentei, senhor prior. Mas o raio do vício...
-- Tentaste, tentaste! É porque ainda não quiseste,
a valer. Ao menos lembra-te do teu filho. Tens contas que
dar a Deus, por ti e pela família. Mas hoje é dia de festa, não
vale a pena insistir. Estás farto de ouvir estas coisas.
E a mulher do médico, para mudar o rumo da conversa, interveio:
-- Ouvi dizer, senhor padre António, que há tempos
lhe fizeram uma homenagem, lá na vila, promovida pelos
seus colegas. Gostava de ter assistido, mas só o soube mais
tarde. Ninguém nos avisou, de contrário teria ido, com todo
o prazer.
-- Pois foi, -- respondeu o prior. -- Foram coisas lá
do padre Silvério que é homem para estas ideias. Mas eu
não tive a culpa. Não havia razão para fazer isso. Pois o que
é que eu fiz? Eu não fiz nada a não ser meter-me aqui, nesta
aldeola, há quase cinquenta anos. Isso é que eles não eram
capazes de fazer. Mas o senhor bispo disse, ordenou e eu
obedeci. E cá estou a cumprir a minha missão, bem ou mal,
Deus Nosso Senhor é que sabe. O que vale -- continuou o
padre, sem falsa modéstia, -- é que já será por pouco tempo. Missão cumprida, como o outro diz. Está o pão chegado
à foice por que a idade não perdoa e a minha já vai indo um
bocado adiantada. Agora que venham outros a continuar a
tarefa.
74 -- João Isabel
O médico viu as horas no seu relógio de bolso e exclamou, surpreendido:
-- Eia! Quase quatro da tarde! São horas de irmos
andando, senão anoitece-nos aqui.
Levantaram-se da mesa e já cá fora, na rua, havia
um magote de gente, sobretudo mulheres com meninos ao
colo, que queriam consultar.
-- O senhor doutor está com pressa, -- advertiu o
senhor prior em ligeira exprobração, -- Só poderá ver um caso ou outro mais urgente. De resto, o senhor doutor é que
diz.
-- Na verdade, -- disse este, -- é já muito tarde. Qual
é o mais doente?
-- Este e este -- disseram duas mulheres quase ao
mesmo tempo.
O médico viu, interrogou, observou e no fim, pediu:
-- Arranjem-me aí um papel para fazer a receita.
E uma mulher, ao lado, perguntou:
-- Com letras ou sem letras, sr. "doitor”?
E o médico, muito sério, respondeu:
-- Sem letras, claro.
Foi forçoso despedirem-se porque o tempo urgia e
o sol baixava já muito, para os lados da Covilhã.
O padre, que tinha um carro de sociedade com o Zé
Faustino, o endireita lá da terra, logo disse que o seu carro
ia transportar o senhor doutor e a senhora, lá do alto, onde
o médico havia deixado o seu por causa do mau caminho,
daí à aldeia.
E logo o Alberto elucidou:
-- O carro do senhor prior leva meia hora a pegar
mas, quando pega, zás! nem um raio o apanha.
-- Ó Alberto, -- advertiu o prior, -- não digas isso,
porque o senhor doutor pode ter medo de ir nele e o Zé
Faustino guia até muito bem.
-- Não há perigo, -- disse o médico sorrindo. -- Vamos então embora.
Contos Serranos -- 75
E feitas as despedidas a toda aquela gente, com acenos de
mãos e votos de “boa viagem”, o carro lá arrancou com
grande ruído do motor e logo desapareceu na curva da rua
estreita, numa nuvem de fumo e quase rente às paredes das
velhas casas.
Passado algum tempo o Alberto apareceu em casa
do médico, com aspecto de estar bastante doente e a queixar-se das dores de barriga que o afligiam de vez em quando.
-- Então que é isso, ó Alberto?!
-- Uma dor muito forte, aqui... -- e indicava a região
do estômago. -- Mas agora é pior que das outras vezes, senhor compadre, muito pior.
O médico observou, palpou, tomou-lhe o pulso, pôs o termómetro e, no fim, disse:
-- O Alberto precisa de ser operado imediatamente.
Não há tempo a perder. Amanhã seria tarde, por isso ainda
hoje e já a seguir, vai dar entrada, de urgência, no hospital
da Covilhã. Leva uma carta minha para o médico operador,
que entrega, logo que lá chegue. Combinado, ó Alberto?
-- Mas o que é que eu tenho, senhor compadre?
-- Uma perfuração, seguida de peritonite. Não há
tempo a perder. Vou passar-lhe a carta e siga imediatamente para a Covilhã.
-- Mas eu tenho de ir a casa primeiro, dizer à mulher e à família...
-- Então vá de caminho e siga logo para o hospital.
Mas o compadre Alberto, com o seu feitio de superficial e gracejador, não foi nesse dia. Foi no dia seguinte
e, mesmo assim, empurrado pela mulher, mais avisada do
perigo do que ele.
O médico operador torceu o nariz ao observa-lo e
logo mandou preparar tudo para a intervenção imediata.
O doente foi preparado, injectado e levado, sem
demora, num carrinho de rodas, para uma sala, onde já es-
76 -- João Isabel
tavam dois médicos com máscaras. Gracejando até ao fim, o
Alberto entrou na sala de operações a cantar a Portuguesa.
'Mudado para a mesa de cirurgia foi logo incisado e
aberto mas, devido ao seu estado deplorável, resultante do
adiantamento que tivera, sob profunda anestesia e apesar
do maior cuidado técnico, o Alberto, passadas duas horas,
morria na operação.
Manteigas, 30 de Maio de 1983
Contos Serranos -- 77
DEUS E SATÃ
Trabalhava na fábrica como cerzideira, e, na igreja,
como cantora e catequista, pois era piedosa e activa e fora
educada, pelos pais, em bons princípios cristãos.
Não obstante estes predicados, era também muito
simples e modesta e considerada, sem favor, uma das raparigas mais bonitas da sua freguesia. Parecia mais atraída por
Deus do que pelos homens, e até havia quem pensasse e
dissesse que Maria da Conceição, ou São, como lhe chamavam, deixaria tudo, um dia, para entrar e professar em
qualquer ordem religiosa.
Mas na tarde dum domingo festivo, no doce convívio campestre rapazes e raparigas daquela freguesia, com a
presença do pároco e de pessoas de família dessa juventude, um dos rapazes, o Joaquim Pedro por sinal o chefe do
grupo dos escuteiros e que trabalhava na mesma fábrica da
São, chamou esta de parte e disse-lhe assim:
-- Olha, São. Ando há muito para dizer-te uma coisa. Gosto de ti e quereria casar contigo. Queres-me para teu
namorado?
Apanhada assim de surpresa, a São corou um pouco, ficou muda e pensativa durante alguns instantes e depois, simples e reflectida era, respondeu:
-- Não tinha pensado nisso... Nem supus que tivesses isso na ideia.
-- Pois eu gosto de ti, há muito tempo. Há anos até.
Mas acanhava-me de te dizer, sentia vergonha e timidez, ao
mesmo tempo... Nem sei explicar-te.
Ela fitou-o insistente, durante alguns momentos,
como a querer ler-lhe na fisionomia a verdade do que acabava de ouvir e, por fim, respondeu:
-- É caso para pensar... Darei a resposta daqui a uns
dias. Achas bem assim?
78 -- João Isabel
-- Okay -- acrescentou ele imediatamente, aliviado
dum grande peso.
E o convívio continuou, tarde fora, sem o menor incidente e como se nada tivesse acontecido, de novidade,
naquele lugar.
O sol baixava para os lados da Fraga da Cruz e a
temperatura, agradável e amena, convidava a estar ali.
Daquele sítio, rodeado de pinheiros e carvalhos
frondosos, com o seu cheiro aprazível a resina e outras essências subtis, via-se bem a vila, linda e graciosa, espalhada
pelo vale e pelas encostas da Serra e, até quase à origem, o
vale do Zêzere, sempre antigo e inédito, na sua vetusta beleza, com os seus lances de rio, espelhento e ao sol, naquela
tarde mansa e tranquila.
Apetecia ali ficar, horas e horas esquecidas, a saborear aquele recanto serrano, à sombra daquelas árvores e
junto à fonte velhinha que ali os tinha atraído e cuja água,
fria e cantante, era deliciosa ao paladar e leve, muito leve,
para toda a gente que ali passava.
As canções reboavam, entoadas por aquelas gargantas juvenis, desde o “Malhão, Malhão”, às músicas do
Rancho dos Serranos da Estrela, quase todas da autoria do
Sr. Pe. Parente, o velho pároco daquela freguesia, já falecido, cujo nome, de grande artista e de projecção nacional, ficara envolvido numa grande saudade e numa profunda admiração. Todos que tiveram a ventura de o conhecer, se
lembravam das récitas e descantes populares desses belos
tempos, como o Fado do Pastor, o Fado da Candeia, o Fado
do Queijo da Serra, o Fado do Polícia, o Vira da Saudade, as
Canção do Vale da Barca, a Canção das Lavadeiras e tantas
outras músicas do mesmo autor, que se ouviam em lindas
serenatas, por noites tranquilas ungidas de luar que nunca
faltava, no sortilégio dessas noites saudosas…
O grupo que ali se encontrava já não era desse
tempo, mas fazia lembrá-lo, no eco das canções que essas,
Contos Serranos -- 79
sim, eram desse tempo feliz, no doce lirismo da sua incomparável melodia.
Seguiu-se o lanche para o qual todos contribuíram,
trazendo de casa a sua parcela de queijo, de presunto, chouriço, doce e outros pitéus que tão bem sabiam naquele lugar
aprazível, não tendo faltado uns bons garrafões do tinto que
animaram, adentro do razoável, aquela rapaziada alegre e
buliçosa.
Recitaram-se algumas poesias, houve ditos oportunos e de efeito cómico e, em tudo, reinou a alegria e boa
disposição que estreitam ainda mais os laços de amizade e
simpatia que uniam toda i aquela gente.
Mas foi forçoso dar fim àquele convívio agradável,
porque o sol desaparecera há muito e não tardaria que as
sombras da tarde anunciassem o crepúsculo...
Recolhidos os restos do lanche nos respectivos cabazes ou cestos, tomaram os seus lugares na camioneta e
alguns carros particulares e todos regressaram à vila, bemhumorados e com a melhor das impressões.
Maria da Conceição ficara a pensar naquela declaração imprevista do Joaquim Pedro, que estava longe de
suspeitar, embora trabalhassem os dois na mesma fábrica e,
portanto, nas melhores condições para ela se aperceber.
Mas nunca tal coisa lhe viera à mente, entregue ao
seu labor de operária cumpridora e um pouco alheia às curiosidades femininas da sua idade.
Pensando bem, também gostava dele, do seu aspecto de rapaz ajuizado, da expressão inteligente da sua fisionomia e da simpatia que irradiava da sua pessoa, sobretudo quando o via, em certos domingos festivos, com a sua
farda de escuteiro e com o seu grupo, ladear o altar-mor da
sua igreja. E depois vê-los a todos a comungar, quase no fim
da missa, sem respeitos humanos e com o garbo característico dos verdadeiros escutistas.
80 -- João Isabel
Sensibilizaram-na estes testemunhos de fé e pensava que o que une verdadeiramente as pessoas é terem as
mesmas ideias, os mesmos sentimentos, sobretudo de ordem religiosa, que têm mais força do que as afinidades de
raça ou até dos próprios laços de sangue.
Depois de comunicar o caso ao seu pároco e director espiritual que achou muito bem aquele namoro e futuro casamento (o Joaquim Pedro era um bom rapaz, sério e trabalhador), ela então disse que sim, passados uns dias e o namoro começou, com bons auspícios e com agrado geral.
Só houve, ao que parecia, uma excepção: a Maria
de Lourdes, que não gostou do namoro e tentou prejudicálo e destrui-lo, de qualquer maneira. No fim do trabalho, à
tarde, Joaquim Pedro e a São reuniam-se, à saída, e vinham
os dois, de conversa, até à vila, separando-se na proximidade das casas onde habitavam.
E a despedida era, quase sempre, deste teor:
-- Adeus querida... Amo-te muito...
-- Adeus Joaquim Pedro, até amanhã.
Os pais da São gostavam deste namoro, dizendo
que o Joaquim Pedro era um bom rapaz e vinha de boa gente, portanto nada havia que dizer e para diante é que eram
o caminho.
O tempo foi decorrendo, sem incidente de maior,
esperando-se apenas o tempo da tropa para, depois dela
feita, se realizar o casamento.
Um dia, no regresso da fábrica, no decorrer da conversa e já perto da vila, a São disse assim ao namorado:
-- Ouve lá, Joaquim Pedro: talvez me possas dizer.
Que bicho terá mordido à Lourdes para deixar de me falar?
Vira a cara para o lado, quando passa por mim... E eu nunca
lhe fiz mal. Que mal lhe podia eu fazer?! Nem a ela nem a
ninguém.
Contos Serranos -- 81
-- Perguntas-me a mim? -- respondeu ele, um pouco admirado. -- Eu sei lá o que se passa por aquela cabeça!
Só te digo que ela é maluca e o melhor é não ligares.
-- Não é tanto assim... Estas coisas custam um pouco.
-- Deixa lá que eu vou averiguar e depois digo-te.
Calhou encontrar-se com a Lourdes, passados dias,
cerca da meia-noite, à saída do trabalho do serão e trocadas
algumas palavras de saudação, a Lourdes atirou:
-- Então Joaquim Pedro, quando é esse casório?
Disseram-me que ias casar breve. Eu nem acreditei.
-- Interessa-te muito saber? Mas não acreditaste
porquê? Pode-se também saber?
A Lourdes que não esperava uma resposta tão interrogativa, calou-se um pouco, mas logo continuou:
-- Interessa-me saber que sou tua amiga e gostava
que acertasses. Demais que vais casar com uma rapariga
muito à antiga, que não admite divórcios e o caso torna-se
muito mais sério.
-- Divórcios?! -- atalhou o Joaquim Pedro. -- Então
ainda nem casei e já estás a falar em divórcios?! Tu és de
todo, Lourdes.
Nunca se sabe... -- retorquiu esta, de má sombra. -E queres que te fale com toda a franqueza?
-- Diz lá, rapariga.
-- Futura-me o coração que não vais ser feliz, com
ela.
-- Mas porquê?
-- Tu desculpa. Mas achoa-a muito beata, muito delambida... Tu és um rapaz inteligente, esperto, com ideias
arejadas. E ela tem ideias acanhadas, antigas, que já se não
usam...
Joaquim Pedro calou-se, a saborear o diálogo e a
achar a Lourdes um tudo nada venenosa e perversa. Tratava-se apenas de uma grande de cotovelo e, por isso, ripostou:
82 -- João Isabel
-- Bem, o que for soará. Mas só te digo uma coisa,
Lourdes. Tomara muita gente ter os sentimentos e as qualidades que tem a São. Adeus, boa noite.
-- Melhores do que os meus?!
-- Não sei. Deus é que sabe.
-- Deu? -- exclamou a Lourdes, desdenhosamente. - Deus não é chamado para estas coisas.
-- Não? Então quem é? És tu?!
A Lourdes sentiu-se amachucada e humilhada por
ele e achando-se em terreno pouco favorável, preferiu calar-se.
Aguardaria melhor oportunidade para desfechar os
seus golpes e não faltariam ocasiões. Até ao lavar dos cestos
é vindima, como o povo dizia.
Despediram-se friamente e se há sentimentos piores do que a raiva e o ódio, é o que a Lourdes sentia naquela
hora.
O namoro continuou, imperturbável e sereno, ficando bem assente que o casamento seria feito logo a seguir à tropa, cuja recruta começaria no prazo dum mês.
Chegou finalmente a hora da partida. Joaquim Pedro foi despedir-se da São a sua casa, aproveitando para
despedir-se da senhora Josefa, a mãe dela, que logo o mandou entrar para falarem mais à vontade.
-- Então Joaquim Pedro, sempre vais para a tropa?
– perguntou a senhora Josefa, na lida do trabalho doméstico.
-- Que remédio, senhora Josefa, que remédio tenho
eu senão ir! Sabe Deus o que me custa! Mas tem de ser. É
lei geral para todos.
-- E para onde vais?
-- Para Lisboa, base naval do Alfeite. Fui apurado
para a Marinha e escalado para essa base. Mas quero ver se
venho mais cedo, pelo amparo que dou a minha mãe.
Contos Serranos -- 83
-- Deus queira que consigas. Vais fazer-lhe muita
falta. Mas diz-lhe a ela que sempre que precise de nós, venha sem receio. Cá estaremos para a ajudar.
-- Obrigado, senhora Josefa. São favores que se não
pagam.
-- Quais favores?! Temos de nos ajudar uns aos outros enquanto cá andarmos. E agora conversem à vontade,
pois tenho de ir à cozinha fazer umas coisas.
Ficando a sós, a São disse a Joaquim Pedro, com os
olhos humedecidos:
-- Espero que me escrevas, logo que lá chegues.
Tomando-lhe as mãos, enternecido, ele respondeu:
-- Hei-de escrever-te muitas vezes e lembrar-me
muito de ti. Esteja onde eu estiver, estarás comigo, a toda a
hora e momento. Terei muitas saudades tuas, São, e dos
momentos tão felizes que passámos um com o outro desde
que nos namoramos.
-- Mas dizem que Lisboa é uma terra tão má para a
gente nova e sobretudo para os rapazes da tua idade... Tenho ouvido tantas coisas...
-- O quê, São?!
-- Que há lá muitas tentações, maus encontros,
muito mal... Sei lá, uma terra onde os rapazes se desnorteiam com facilidade.
-- Mas Deus há-de ajudar-me e tu vais rezar muito
por mim.
-- Sim, vou rezar muito por ti. Mas para que Deus te
ajude, tu hás-de fazer por isso, cumprindo a sua vontade,
cumprindo os seus mandamentos. E vais prometer-me, Joaquim Pedro, uma promessa solene...
-- Diz, São...
-- De ires sempre à missa e de nunca deixares a
comunhão.
Joaquim Pedro baixou a cabeça e respondeu:
-- Prometo, São.
84 -- João Isabel
Se assim for, -- retorquiu ela, -- Deus há-de ajudarte e nunca te abandonará.
Despediram-se com lágrimas e com um beijo e, no
outro dia de manhã, Joaquim Pedro entrou na camioneta da
carreira para ir tomar o comboio à próxima estação do caminho de ferro, com destino a Lisboa.
A São ficou triste e desolada com a ausência do
namorado. Mas sentia-se amparada com a presença de
Deus na sua vida de católica e praticante.
O Joaquim Pedro escreveu logo que chegou a Lisboa, como tinha prometido e as cartas sucederam-se, com
regularidade, às quais a São respondia, com regularidade
também, pedindo-lhe que andasse sempre por bom caminho e fosse fiel à promessa que lhe fizera.
Passaram as semanas, os meses... Entretanto a São
continuava com o seu trabalho na fábrica, na igreja e a ajudar a mãe na faina do trabalho doméstico. Um dia disse a
esta num tom de confidência:
-- A mãe lembra-se daquela rapariga de quem lhe
falei uma vez, a Lourdes Chocalhota, como lhe chamam, que
deixou de me falar por causa do Joaquim Pedro e que dizia
mal de mim por todo o lado?
-- Sim, filha e depois?
-- Disseram-me que vai deixar a fábrica e que quer
ir para Lisboa, para junto das irmãs. Passa-me pela cabeça
que ela vai para Lisboa por causa do Joaquim Pedro. Se assim for, as intenções dela não devem ser muito boas... Que
lhe parece, mãe?
--Julgo que sim, que tens razão. Mas que lhe hás-de
fazer?! Olha filha, entrega tudo nas mãos de Deus.
Mas, daí em diante, a São começou a andar preocupada e apreensiva. As cartas de Joaquim Pedro deram então em ser mais espaçadas e mais curtas, e talvez menos
ternas nas suas expressões de carinho. Talvez fosse impressão dela, mas parecia-lhe que o Joaquim Pedro estava a pas-
Contos Serranos -- 85
sar por qualquer transformação e já não era o mesmo que
dali saíra.
Lisboa, terra de muitas e desvairadas gentes, como
dissera o cronista, devia estar a desgastar a fé que o Joaquim Pedro levara. E uma vez esta atrofiada ou desaparecida, é fácil entrar na via larga das paixões e desvairamentos
ou navegar nas águas turvas do mal, sem norte e sem rumo.
A São pensava nisto tudo com certa dose de pessimismo, talvez, até que um dia recebeu uma carta de Joaquim Pedro a comunicar-lhe que brevemente viria vê-la,
aproveitando dez dias de dispensa que lhe tinham dado.
E esse dia da chegada dele não se fez esperar.
Na véspera a São recebeu um telegrama que dizia:
“Chego amanhã camionete correio. Saudades -- Joaquim
Pedro".
Ficou cheia de alegria e esperou ansiosamente que
ele aparecesse à entrada da porta, vindo varias vezes à janela para o ver surgir. E esse momento chegou, finalmente.
Bateram à porta duas ligeiras pancadas e logo que ela pronunciou as palavras: -- Faça favor de abrir..., a porta entreabriu-se e Joaquim Pedro destacou-se na luz da rua, que espargia pelo pavimento o primeiro lanço da escada.
Subiu este rapidamente e o Joaquim Pedro abraçou
a São que ali o esperava, comovida e trémula.
-- Pensei que nunca mais chegasses! -- murmurou
ela, afogueada e de lágrimas nos olhos, naquele instante feliz.
Sentaram-se junto da mesa, a olhar-se mutuamente e a atropelar as perguntas que ambos tinham para fazer.
-- Estás queimado e mais forte. Nem pareces o
mesmo...
-- É da ginastica e do ar do mar. Pratica-se muito
desporto e tudo isto desenvolve e faz muito bem.
-- E a mim como me achas?
-- Muito bem, São. E sempre linda, como és.
86 -- João Isabel
-- Obrigada, Joaquim Pedro. Mas não faças pouco,
peço-te. Lá em Lisboa devem ser mais bonitas...
-- Há lá de tudo, como em toda a parte.
-- Mas arranjam-se melhor, vestem bem, pintamse. Nós aqui...
-- Aqui também já há muitas que se pintam, como
sabes. A evolução chega a toda a parte. Porque a humanidade evolui, as sociedades mudam...
-- Às vezes para pior... -- disse a São, baixando os
olhos, com modéstia, para não contrariar muito a opinião
dele.
-- Mas é necessário que mudem. Ai de nós se ficássemos sempre com uma sociedade como a de hoje. Há tantas injustiças, tanta miséria e, ao mesmo tempo, tanta riqueza...
-- O que é preciso é que se não mude para pior. E
que as mudanças se não façam por meios ilícitos e antihumanos...
-- Sabes muito disto, -- retorquiu ele, um pouco
admirado.
-- Nos retiros que tenho feito fala-se, às vezes, destes problemas. Como sabes estes retiros são feitos por padres bastante cultos e competentes. E temos um livro, um
grande livro, onde a verdade é apresentada por inteiro: o
Evangelho. E lá vem que há-de sempre haver pobres, no
meio de nós...
-- Mas Cristo era comunista.
-- Sim, mas sem ódio, sem vingança, sem punho fechado... Um comunista que só pregou o amor e a caridade,
entre os homens. Somos todos irmãos, filhos do mesmo Pai.
-- Mas as sociedades não mudam senão pela violência. A burguesia não larga o que tem senão pela força.
Por isso é necessária a revolução, mesmo com sangue.
-- E és tu um cristão, um católico, Joaquim Pedro?
Quem te ouvisse havia de pensar que lá em Lisboa te deram
volta à cabeça.
Contos Serranos -- 87
88 -- João Isabel
-- Revi as minhas ideias, li muito, aprendi coisas que
não esperava...
-- Também eu não esperava que estivesses tão mudado, tão diferente do que eras quando saíste daqui. Tenho
muita pena, Joaquim Pedro! Gostava que falasses com o senhor padre António, que esse pode responder a essas coisas
que aprendeste lá por Lisboa. Eu não, que sou para aqui
uma ignorante, em certos assuntos.
-- Mas espero que a modificação nas minhas ideias
não tenha a menor influência no nosso amor e no nosso
namoro.
--Infelizmente tem, Joaquim Pedro. Tem e muita.
Eu nunca poderia casar com um homem que não fosse cristão, como eu. Quando casar quero que os meus filhos tenham um pai que os conduza no caminho de Cristo, o único
seguro, para mim. Mas vejo que tu já não segues este. Tens
lá outro, muito diferente.
-- Mas tu, São, não das aos outros a liberdade de
pensarem como quiserem?!
-- Com certeza que dou. Com a condição de eu
também usufruir dessa mesma liberdade. Ou o sol quando
nasce não é para todos?
-- Sim, -- aquiesceu ele. -- Tens roda a razão.
-- Então se assim é, nós seguimos, a partir de hoje,
caminhos diferentes. Pelo meu, já não queres andar. Pelo
que segues, nós nunca nos poderíamos entender.
-- Olha, São, eu acho que tu exageras. Vou ter com
o padre António e expor-lhe o caso. Penso que ele há-de vêlo de outra maneira.
-- Então vai, Joaquim Pedro.
E despediram-se um pouco contrafeitos, com menos afecto e mais distanciados um do outro.
O padre António recebeu-o de braços abertos, na
sacristia, onde trabalhava. Joaquim Pedro contou-lhe o caso
Contos Serranos -- 89
da São, do diálogo e desfecho que tivera com ela. O pároco
ficou pensativo uns momentos, fitou o rapaz e retorquiu:
-- É claro que eu sabia do vosso namoro. A São informou-me de tudo, pediu o meu parecer e eu não lhe pus a
menor objecção. Mas com essa mudança nas tuas ideias, o
caso muda muito de figura. A São pretende casar com um
homem cristão, com um católico praticante e tu, pelo que
acabas de me dizer, já o não és. Estás virado para o partido
comunista e isso é precisamente o oposto das ideias dela.
Não vos poderíeis entender. A harmonia dum lar assenta
fundamentalmente na harmonia das ideias do marido e mulher e é muito difícil manter essa harmonia, com ideias diferentes um do outro, sobretudo em matéria grave.
-- Mas então o comunismo não é um sistema sério,
como é o cristianismo, indo contra as injustiças do mundo,
contra o capitalismo e seus opressores, contra a miséria e
riqueza paralelas e defendendo as classes trabalhadoras do
despotismo e da exploração? Não têm todos os mesmos direitos e não desejamos nós uma sociedade justa, sem classes?
-- O comunismo é essencialmente um sistema materialista e ateu, combatendo, pela violência, tudo o que se
oponha aos seus dogmas. É o crê ou morres, do maior despotismo, a ponto de liquidar os seus próprios adeptos, se
eles desertam das suas fileiras. Veja-se o que se passou com
Trotsky, Pasternak, Soljenitzine, Sakarov e tantos milhões de
pessoas que Staline mandou matar, fora os milhões que estão presos na Sibéria e noutros campos de concentração. E
se o comunismo assim defende os direitos e interesses das
massas trabalhadoras, porque persegue agora nove milhões
de trabalhadores na Polónia, que não querem o comunismo,
nem o seu jugo? Por que esmagou, com a maior crueldade e
cinismo, o povo do Afeganistão, que vivia calmo e tranquilo,
na sua própria casa? Gostara a Rússia que amanhã lhe façam o mesmo, com direito igual? Não nego que haja injusti-
90 -- João Isabel
ças e opressão, nas sociedades actuais. E claro que existem
e é necessário debelá-las. Mas na Rússia não há também desigualdades e classes privilegiadas, como as dos mandões do
partido, dos militares e dos governantes? E, a respeito de
capitalismo, diz-me: o capital não é necessário para haver
sempre empresas, feitura de obras, fomento, desenvolvimento dum país? Só com esta diferença: quando o capital
está nas mãos do Estado, que passa a ser o grande e único
capitalista, o capital rende menos, porque o patrão está longe e as obras e empresas regem-se em condições menos favoráveis. Ao passo que se o capital é particular e o patrão
está perto, este escolhe bons funcionários e dirigentes, com
boa competência técnica e vê e fiscaliza o mesmo trabalho e
produção. E por isso que em regimes socialistas, as empresas nacionalizadas acabam quase todas por dar prejuízo,
porque são dirigidas por pessoas incompetentes e que só lá
estão para encher as algibeiras. E, por isso, o socialismo e
comunismo falham, porque não há verdadeira produção. Vê
o que se passa na Alemanha, Inglaterra e até na própria
França. Lá estão a repudiar o socialismo, porque na prática
não resulta. É uma utopia, ultrapassada pela experiência, e
contra factos não há argumentos, como é costume dizer-se.
O padre calou-se e Joaquim Pedro, dominado pela
argumentação do padre, não sabia o que dizer.
-- Tenho muita pena que tenhas caído no domínio
dessas ideias, -- continuou o sacerdote. -- Perdeste a amarra
de Deus e da fé e mal tu sabes a falta que te vai fazer na tua
vida. Quem terás na hora amarga do sofrimento, da doença
incurável e da própria morte?! Deus é insubstituível e só Ele
nos conforta e nos liberta: do nosso egoísmo, das nossas
paixões, de todo o mal. E é isto que escraviza o homem e o
faz infeliz -- o pecado. E Ele veio ao mundo e se fez homem
para o livrar e remir desta escravidão. É este o alto sentido
da vida, o grande negócio que não podemos deixar perder.
Tudo o mais é secundário, acessório. Há gente que toma a
nuvem por Juno e troca as farinhas pelo farelo. São aqueles
Contos Serranos -- 91
que vendem a alma por um prato de lentilhas. Eu não queria
que fosses desses, Joaquim Pedro. Vais perder a São, que é
uma jóia de rapariga e a troco de quê, não me dirás?
Cabisbaixo e pensativo, Joaquim Pedro redarguiu:
-- Mas eu não quero perder a São. E ela que não é
razoável, afastando-me de si.
-- Tem paciência Joaquim Pedro, o que ela não
quer, e está no seu direito, é casar com um homem ateu.
Pois um comunista não é, de facto, um ateu? Lenine não
disse que Deus era o primeiro inimigo a abater? Por que finges ignorar isto? Tu deves escolher entre Deus e Satã. Não
há outra alternativa. E Deus diz no seu Evangelho, que quem
não é por mim, é contra mim. Todos os comunistas estão
contra Ele. Porque estão do lado do ódio. Mas, como diz
Buda, nunca o ódio pode vencer o ódio. Só o amor pode
vencer o ódio. Pensa nisto, Joaquim Pedro. Ainda estás muito a tempo. E adeus. Até amanhã.
Despediram-se e Joaquim Pedro foi ruminar no que o padre
dissera, pensando que estes problemas são mais complexos
do que parecem à primeira vista e, que, como critério de
avaliação, as árvores se conhecem pelos seus frutos... Não
tivera ainda a coragem de dizer à São que a Lourdes o tinha
procurado, por diversas vezes, em Lisboa, a solicitar a sua
companhia e a oferecer-lhe as facilidades da sua conduta...
Isto explicava já bastante da sua mudança de vida, nos últimos tempos, e a razão de já não ir à igreja e à comunhão
como antigamente. Que diferença entre a São e a Lourdes,
no aspecto moral e nas ideias e procedimentos, duma e
doutra!
E, no entanto, ele afastava-se bastante da São para
se aproximar mais da Lourdes, tal como se distanciava dos
princípios cristãos para ir cair no comunismo.
Era lógico que assim fosse, mas via já, pelos maus
resultados, que seguia caminho errado. A Lourdes não lhe
oferecia garantias bastantes para poder casar com ela. Era
92 -- João Isabel
uma aventura, como outra qualquer. A São exigia caminhos
direitos e princípios bem definidos.
Não havia que hesitar. Procurou o seu pároco, no
dia a seguir, e o diálogo travou-se novamente na sacristia,
onde o padre batia o teclado da máquina de escrever.
Bateu ligeiramente à porta e perguntou:
-- Dá licença?
O padre veio abrir e encarando o recém-chegado, exclamou:
-- Ohl és tu, Joaquim Pedro! Entra e senta-te aqui.
E ofereceu-lhe uma cadeira, na qual este se sentou.
-- Venho procurá-lo, senhor padre António, para dizer-lhe o seguinte: meditei bastante na conversa que aqui
tivemos e cheguei à conclusão de que eu estava errado e de
que o senhor padre é que tem razão. O seu a seu dono e eu
quero lealmente confessar o meu erro. Há muitos meses
que deixei de frequentar a igreja e eu desejo confessar-me,
ainda hoje.
O padre levantou-se, muito comovido, a abraçá-lo,
e disse-lhe estas palavras:
-- Parabéns, Joaquim Pedro! Nem avalias a grande
alegria que me dás!
E confessou-o, logo a seguir, dando ainda margem
a uma troca de impressões referentes ao seu namoro com a
São, que ficara desolada, uns dias antes.
-- Mas agora vai ficar radiante, a pobre rapariga!
-- Se ela me acreditar... -- ponderou o Joaquim Pedro, com um certo receio.
-- Por que não acreditar?! Deixa o caso comigo. Eu
vou falar com ela. E agora, Joaquim Pedro, diz-me: quando
acabas a tropa?
-- O mais tardar, daqui por seis meses. Mas eu quero ver se venho antes, por causa da falta que faço a minha
mãe.
-- Então arranja lá isso, o mais depressa que puderes.
Contos Serranos -- 93
O padre António falou com a São que estava triste e
renitente em acreditar. Mas teve de render-se à evidência
porque o pároco lhe garantiu que, após a confissão efectuada, não havia lugar a dúvidas.
Na véspera da partida, o Joaquim Pedro foi à igreja
despedir-se do seu bom pároco.
-- Sei que vais fazer um casamento cristão, um casamento católico, com uma rapariga que é uma das pérolas
da minha freguesia, -- disse o padre António. -- Quando o
casamento é assim, com pessoas cristãs e bem conscientes
do que vão fazer, constitui um dos melhores remédios contra o divórcio, um flagelo que está tanto na moda mas que
nem por isso deixa de ser um grande flagelo, um dos males
que mais atenta contra a família e, por isso, contra a sociedade. Hoje o divórcio é a moda, a praga que alastra por todo
o lado e que acontece por dá cá aquela palha, por uma leviandade qualquer. E o mal recai sobretudo sobre os filhos
que não têm culpa das leviandades dos pais. Os filhos são as
grandes vítimas, pois eles necessitam dos pais como as plantas do sol, para vingarem e crescerem. Necessitam no dia-adia, do seu carinho, da sua protecção, do seu amor. Ainda
há dias tive conhecimento do triste caso duma pequenita de
dez anos, que eu conheço, por sinal muito viva e espertinha,
que ficou sem o pai porque este deixou a mãe para ir viver
com outra mulher e que um dia disse assim à avó, a quem
ela muito ama: -- “Olha, avó. Se não fosses tu, eu já me tinha matado”. E num diário que vai fazendo, escreveu estas
palavras: “O meu pai abandonou-me quando eu tinha nove
anos”. Como isto faz doer a quem tem um mínimo de sensibilidade! Como é possível que um pai abandone assim uma
filha, uma pobre criança de nove anos, para ir viver com
uma amásia qualquer?! Com que direito se faz uma coisa
destas?! E são certas ideias que defendem o divórcio, o
aborto, o amor livre, que conduzem a estes bons resultados.
E há quem torça por elas, quem as julgue as melhores de
todas, porque infelizmente, como diz o Eclesiastes, é infinito
94 -- João Isabel
o número de néscios. Ou o número de loucos, com mais
verdade talvez. Mas não te quero prender mais, Joaquim
Pedro. Vai à tua vida e, como última recomendação, peço-te
que nunca abandones a grande amarra da fé. Ela vale um
tesouro, para não dizer que ela é o grande e verdadeiro tesouro.
Abraçaram-se comovidamente e, passados alguns meses,
Joaquim Pedro casava com a São, na linda igreja da sua freguesia.
Manteigas, 25-6-1983
Contos Serranos -- 95
JOÃO BRANDÃO
João Brandão rondava, algumas vezes, por certos
sítios da serra, perto de Manteigas, mais a sua quadrilha.
Era um bandido temível, de maus instintos, que aos
doze anos de idade matou um pobre pastor de Gouveia
apenas para exercitar a pontaria. O pai, mais celerado do
que ele, ficou muito contente com a façanha e a quadrilha
era constituída por irmãos, primos e sobrinhos daquele progenitor.
Não se sabe bem porquê, as autoridades protegiam-no, talvez por medo das suas vinganças ou pela grande
influência que tinha no partido político que ele protegesse.
Praticou muitos homicídios e o último na pessoa do
Padre José da Anunciação Portugal, na Várzea da Candosa,
com prisão efectuada, com grandes riscos, pelo administrador do concelho de Oliveira do Hospital, foi seguida do seu
degredo para a África, donde nunca mais voltou.
Vinha de longe, de Midões, terra da sua naturalidade, para assaltar viandantes, em especial lavradores e industriais de Manteigas, que tinham de atravessar a Serra, montados em cavalgaduras, para irem vender os seus produtos a
mercados distantes.
Duma das vezes calhou a sorte a Manuel da Cunha,
industrial de Manteigas que, na véspera à noite, dissera a
mulher:
-- Vou amanhã a Mangualde fazer o mercado. Diz
ao José Massano que tenha os cavalos preparados para
sairmos daqui às quatro da manhã. Ele vai comigo. Que tenha os fardos carregados e não se esqueça das pistolas nos
coldres. Eu vou-me já deitar, pois estou a cair de sono.
-- Ó Manuel, -- retorquiu a esposa. -- Tenho tanto
medo destas viagens! Dizem que anda aí o João Brandão
com a sua quadrilha. Não sei o que me diz o coração. Não
vás amanhã, peço-te.
96 -- João Isabel
-- Mas tenho de ir, filha. Estão lá os fregueses a espera das fazendas e ficavam aborrecidos comigo. O João
Brandão há muito tempo que não dá qualquer sinal. Deve
andar lá muito longe.
-- Pois enganas-te. Ainda não há muitos dias que
ele foi visto por pastores, ao pé do Sabugueiro. Viram-no de
longe, mas conheceram-no.
-- Ai, meu Deus! -- disse Manuel da Cunha. - Mas eu
tenho de ir, Cristina. Tu não vês que eu tenho de ir?
D. Cristina calou-se durante uns momentos, ficou
pensativa e, por fim, respondeu:
-- Bem, então vai. Que Deus vá contigo e te tenha
sempre na Sua mão. Cá fico a rezar por ti.
De manhã cedo, ainda noite cerrada, saíram de
Manteigas o Manuel da Cunha e o criado, montados em cavalos e um macho carregado de fardos de fazenda. Seguiram o caminho da Carvalheira, à luz das estrelas, pois a lua,
em quarto minguante, já tinha desaparecido para os lados
da Fraga da Cruz. No silêncio da noite, apenas se ouvia, com
o passo dos animais, o sussurro do vento na folhagem das
árvores e, de vez em quando, o piar do mocho e o cantar lúgubre e agoirento da coruja.
A Serra parecia dormir, num sono maciço e pesado, livre de
pesadelos.
Ao raiar da aurora estavam no Observatório e era já manhã
clara quando chegaram à Ponte de Cabaços, sem qualquer
incidente. O sol começava a romper, como hóstia em sangue.
A essa hora, na Casa da Praça, D. Cristina ajoelhada
na sua capela diante do altar, rezava pelo seu marido. Para
que Nossa Senhora o livrasse de maus encontros e o trouxesse, vivo e salvo, como tinha saído.
E eis que, de repente, surgiram, detrás duma fraga,
quatro homens membrudos, armados de bacamartes, que
apontavam aos dois viandantes.
Contos Serranos -- 97
98 -- João Isabel
Contos Serranos -- 99
-- Façam alto!, -- intimou um dos assaltantes, de
barba negra e hirsuta, que parecia ser o chefe.
Os dois viandantes pararam e o mesmo assaltante
continuou:
-- O que levam aí e quem são vocês?
Manuel da Cunha, bastante calmo, respondeu:
-- Eu sou um industrial de Manteigas e este é o meu
criado. Levamos fazendas para ir vender ao mercado de
Mangualde.
Entretanto, o chefe da quadrilha ia observando
Manuel da Cunha que também usava barba preta e bastante
sorridente, diz-lhe:
-- Mas você é muito parecido comigo. Nem que fosse meu irmão. Terei algum em Manteigas, sem eu saber?
E, voltando-se para os companheiros, perguntou:
-- Que vos parece, ó rapazes?
E um deles respondeu:
-- Pode ser. Talvez teu pai tenha andado por estes
lados.
-- Seja como for. Nós não fazemos mal a este homem, -- disse João Brandão. -- Mas vamos fazer um contrato. De hoje em diante, nós deixamos-lhe passar toda a mercadoria e você, em troca, manda-nos mantimentos de Manteigas, quando os precisarmos. Aceita o negócio?
-- Sim, senhor -- aquiesceu o industrial. -- Com todo
o prazer. E tenha a certeza de que não lhe faltarão cá mantimentos. E só mandar-me recado.
-- Óptimo -- retorquiu João Brandão. -- Mas ainda
não disse o seu nome.
-- Manuel da Cunha.
-- O meu é João Brandão, como já adivinhou. E agora, pode seguir. Cá ficamos para o que for preciso.
Manuel da Cunha continuou a sua viagem, mal refeito do susto e a pensar no que a mulher lhe tinha dito, na
véspera.
100 -- João Isabel
As mulheres lá tinham um dedo que lhes adivinhava. Mas talvez fosse assim melhor. Tinha ali um amigo, no
João Brandão, e isso era muito para o que viesse a precisar.
-- Deus seja louvado, -- murmurou ele, benzendose.
-- E sua Mãe Santíssima..., -- respondeu o criado,
ainda sem pinga de sangue, descobrindo-se, com o maior
respeito.
De regresso a Manteigas, já não encontraram, na
Serra, a quadrilha do João Brandão. Tinha desaparecido, ou
estava alapardada, em qualquer sítio alto, a vigiar quem
passava.
Passado algum tempo ia, pela Serra fora, um rapaz
de Manteigas, o Luís Romão, que transportava o correio daquela vila para Gouveia, a pé, todos os dias e carregado com
as respectivas malas.
Perto do Mondeguinho, surgem-lhe três homens
detrás dum penedo, armados de bacamartes, que lhe mandam fazer alto.
-- Que levas contigo? -- perguntou um dos assaltantes, de barba negra, que parecia ser o chefe.
-- Estas malas e uns cobres no bolso, para uma bucha.
Depois de revistado e confirmado o que dizia, João
Brandão, pois era ele, continuou:
-- Bem. Onde é que tu vais?
-- A Gouveia, levar o correio de Manteigas.
-- E quando voltas?
-- Logo à tarde, pelas seis horas.
-- Toma lá este dinheiro, -- disse o chefe, entregando-lhe uma quantia. -- Compras lá trinta maços de cigarros,
da marca que houver, e entrega-los aqui, quando voltares, a
esta hora. Mas não digas para quem é. Escusam de saber.
Contos Serranos -- 101
E, entregando-lhe uma navalha, acrescentou:
-- Se te mandarem parar, no caminho, mostras esta
navalha e logo te deixarão seguir.
Luís Romão, um pouco recuperado do susto, balbuciou:
-- Fique Vossa Senhoria descansado. Cá estarei a
essa hora.
E o chefe, olhando-o duramente, rematou:
-- Podes seguir. E não dês à língua. Tem muito cuidado com o que disseres e fizeres. Senão...
-- Com sua licença, -- disse o Luís Romão.
E prosseguiu a sua viagem, de malas às costas, ainda mais confuso.
No alto de Alfátima, surgem-lhe dois homens, também armados de bacamartes, que o obrigam a parar. Mas,
ao mostrar-lhes a navalha, logo disseram, sem mais rodeios:
-- Pode seguir.
E ele continuou a andar, carregado no corpo e na
alma e aturdido com aqueles encontros.
Chegou a Gouveia pela uma da tarde e, a beber um
copo numa tasca, pensou em ficar por ali e não regressar a
Manteigas, com medo do que pudesse acontecer. Mas logo
viu que era pior e que não tinha outro remédio do que regressar pelo mesmo caminho. Comprou o tabaco que lhe
haviam encomendado e, a hora combinada e no mesmo sítio do Mondeguinho, o entregou ao João Brandão.
-- Bem rapaz -- disse este. -- Toma lá para beberes
uma pinga.
E agora, escuta. Tu conheces, lá em Manteigas, um
senhor rico, industrial, chamado Manuel da Cunha?
-- Conheço sim, senhor. É um senhor de barbas que
mora numa casa grande, à Praça.
-- Esse mesmo. É assim um homem parecido comigo.
-- Isso, isso... -- acrescentou o Luís Romão, a sorrir
da semelhança.
102 -- João Isabel
-- Pois diz-lhe lá, a esse senhor, que me mande
amanhã de manhã, sem falta, algum mantimento: pão, vinho, azeite, carne, queijo e o mais que puder. Que mande
aqui ao Mondeguinho. Que os amigos agradecem e cá estão
para o que for preciso.
O Luís Romão chegou à vila, ao anoitecer, cansado
e coberto de suor. Ia triste e desmoralizado, mas foi logo à
Casa da Praça desembaraçar-se da incumbência.
-- Que desejas, ó Luís? -- perguntou a criada, a Maria Prata.
-- Desejo falar ao Senhor Manuel da Cunha.
-- Não está -- disse a criada. -- Foi a Belmonte e só
deve chegar amanhã à tarde.
-- Ai a minha vida - exclamou o Luís, contrariado. -Trago um recado do Sr. João Brandão e queria dar-lho a ele.
-- Mas não tem dúvida. Diz lá o recado que eu vou
dá-lo à Senhora e é a mesma coisa.
Luís Romão pensou um pouco e depois continuou:
-- Então diga lá à Senhora, pelas almas de quem lá
tem, que o Sr. João Brandão manda pedir mantimentos:
pão, vinho, azeite, queijo, carne e o mais que puderem, para
lhe mandarem, sem falta, amanhã de manhã. Que lho mandem para o Mondeguinho, aonde estão à espera. Mas sem
falta nenhuma, amanhã de manhã. E que os amigos lá estão,
para o que for preciso.
-- Fica descansado, ó Luís. Vou já dizer à Senhora e
amanhã de manhã, no sítio do Mondeguinho, lá estarão os
mantimentos. São as ordens que temos, do Sr. Manuel da
Cunha.
-- Sim, sra. Maria Prata. No sítio do Mondeguinho,
não se esqueça.
-- Está bem, fica entregue. Podes dormir descansado.
A criada, a sorrir daquela insistência, foi transmitir
o recado a D. Cristina a qual, avisada pelo marido, deu logo
ordens para que fosse tudo acondicionado de modo a que o
Contos Serranos -- 103
criado saísse, de manhã muito cedo, com o macho carregado de mantimentos, a caminho do local combinado.
De resto, a D. Cristina, além de ser rica, era muito
amiga da pobreza. Dava muitas esmolas e, no pote dos pobres nunca se acabava o azeite. Aos sábados, era uma bicha
de gente a bater à sua porta, e ela dava a todos, sobretudo
aos mais necessitados.
E dava com um sorriso e sempre com boas palavras, o que tornava a esmola maior e, sobretudo, melhor.
Um dia foi ao pote do azeite, o dos pobres, levantou a tampa e viu que estava quase cheio. Ficou admirada
porque, dias antes, reparara que estava pelo meio.
-- Ó Maria -- perguntou a criada. -- Deitaste algum
azeite no pote dos pobres, nestes dias?
-- Eu não, minha senhora -- respondeu a criada.
-- Pois está quase cheio e não estava!
-- Não me admiro -- disse a criada. -- Os bens desta
casa são aumentados por Deus.
D. Cristina calou-se uns momentos e depois acrescentou:
-- Pois é, filha. Deus dá e tira, quando quer. Que Ele
seja sempre louvado e sua Mãe, Maria Santíssima...
Desde aquele dia do mau encontro do marido com
a quadrilha do João Brandão, D. Cristina rezava todos os dias, além das habituais intenções, pela conversão daqueles
homens da Serra, que andavam por caminhos errados a
condenar a sua alma e nunca se esquecia de pedir também
por todos aqueles que andavam em perigo, sobre as ondas
do mar...
Numa manhã estava ela na capela da sua casa, ajoelhada e a rezar fervorosamente, quando reparou, de repente, junto ao altar, que o vestido de Nossa Senhora, tão
lindo, bordado a ouro e comprido até aos pés, encontravase todo molhado.
Ficou admirada mas, logo assaltada por certo pressentimento, exclamou:
104 -- João Isabel
Onde foste, ó rabudinha
Que vens toda rnolhadinha?
Nossa Senhora não respondia mas parecia sorrir,
com muito carinho, à sua alma piedosa e simples...
Passado algum tempo vieram bater, quatro homens, a porta da Casa da Praça, como era conhecida, a perguntar se não era ali que se encontrava uma imagem de
Nossa Senhora do Rosário que os tinha livrado dum grande
naufrágio, no mar da Nazaré.
-- Eu não sei... -- disse D. Cristina. -- Tenho ali uma
capela. Venham ver.
Foram até à capela, ao fundo do corredor. Logo que
entraram e viram a imagem no altar, exclamaram impressionados:
-- Foi esta! Foi esta que nós vimos, na proa do nosso navio, quase a naufragar.
Ajoelhados e comovidos, olhando a imagem, começaram a rezar:
Salve Rainha
Mãe de misericórdia
E aqueles homens rudes, tisnados do ar marítimo,
tinham os olhos marejados de lágrimas...
Ainda hoje se encontra, na igreja de Santa Maria
daquela vila, um cálice de altar, adornado de lindas campainhas que foi oferta desses homens em memória daquele milagre.
Manteigas, 18-7-982
Contos Serranos -- 105
O PATAQUINHO
Chamavam-lhe assim porque no seu ofício de carregador de malotes, quando lhe perguntavam quanto lhe
deviam por qualquer trabalho, ele respondia:
-- Dê lá o que vossemecê “quijér”.
Mas ao insistirem com ele para que dissesse e não
estivesse com meias aquelas, ele então invariavelmente retorquia:
-- Então dê lá um pataquinho.
E ficara-lhe essa alcunha que condizia com o seu tipo magro e baixote, de meio homem, embora fosse capaz
de transportar sacos de cem quilos sem dificuldade de maior.
Donde lhe vinha a força para estas proezas e outras
de igual teor, isso é que não era fácil de explicar. Talvez do
seu treino de muitos anos a alombar carregos ou à posse
duma musculatura rara e privilegiada que fazia inveja a homens de porte maior.
Era uma figura típica no meio em que vivia, uma vila modesta encravada entre serras, e que se prestava a ser
desfrutada até pela garotada, sobretudo quando o Pataquinho, já muito pingado, ia a fazer sss pela rua fora.
A garotada, vendo-o assim, apupava-o e ria:
-- Quantos já hoje, ó Pataquinho?
E levavam as mãos à boca, num gesto significativo
de beber.
E ele respondia com o seu estribilho habitual:
-- Mia!
Muito alegre e sorridente, a cantarolar ou a cantar,
lá seguia ele, cambaleando e dançando, em demanda da taberna do Dâmaso.
A mãe morrera-lhe quando ainda era pequeno, mal
se lembrava dela, e o pai, o ti Manuel Morte, quando ele,
Pataquinho, entrara nas sortes.
106 -- João Isabel
Ficara sozinho no mundo, apenas com uns vagos
parentes que lhe não ligavam nenhuma. E como não tinha
casa, nem eira nem beira, dormia no forno de cozer o pão,
por caridade da dona, sobre os molhos da lenha, de esteva
ou carqueja, coberto com uma manta que uma boa alma lhe
tinha dado. E era o que lhe valia, aquele forno quentinho
nas noites gélidas de inverno, quando a neve ou a chuva
caiam em abundância ou o vento bramia lúgubre, em fortes
rajadas, sacudindo as portas e janelas e fazendo voar as telhas dos telhados.
Logo de manhã cedo esfregava os olhos, atirava
com a manta, punha a boina de pala, comia uma bucha de
pão com azeitonas, e ala que se faz tarde, lá ia ele para a taberna do Dâmaso beber a sua litrada.
-- Mia! -- dizia ele, junto ao balcão da tasca. -- Bóte
lá meio litro, ó ti Damas.
Tirava uns magros cobres da algibeira das calças,
que espalhava sobre o balcão e bebia a meia litrada quase
sem parar. Um dia o Dâmaso, para tirar palhinha com ele,
atirou-lhe com esta:
-- O que tu precisas, ó Pataquinho, é de te casar.
Assim sozinho, não andas bem.
O Pataquinho reflectiu, ajeitou a boina, sacudiu os
ombros e respondeu:
-- Diz bem, ti Damas, diz até bem. Fazia-me jeito
uma mulher, lá isso fazia. Mas onde está ela?
E o Dâmaso, muito sério:
-- Ó homem, há tantas por aí... Pensa bem, que
descobres.
E tanto pensou e repensou que o Pataquinho um
dia, ao levar uma encomenda à D. Delfina, não teve mão em
si que lhe não dissesse:
-- A Senhora podia dar-me a sua criada para eu casar com ela. Era um favor que me fazia. Olhe que eu sou
homem para tratar bem uma mulher, tenha a certeza.
Contos Serranos -- 107
108 -- João Isabel
A D. Delfina que não esperava aquilo, respondeu
apenas:
-- Ó rapaz, que dúvida há nisso? Assim ela queira.
Fala com ela e depois se verá.
Ele falou, de facto, e a Lucília, a rir, quase às gargalhadas, disse-lhe que depois se veria, mais tarde, que tudo
podia acontecer. E ele aborrecido e de lágrima no olho, retorquiu:
-- A mangar não vale. Falo a sério e a menina ri-se.
Pois olhe que eu sou homem p'ras curvas. Se casasse comigo não se havia de arrepender. Digo-lhe eu.
E a compor a boina e a sacudir os ombros, lá se foi
embora, monco caído, um pouco tristonho, a pensar num
bom quartilho do tinto, remédio infalível para aquela e outras situações.
Mas não desistia do seu propósito. Quando calhava
de encontrar a Lucília, logo lhe perguntava:
-- Então, já resolveu?
-- Ando cá a pensar, -- respondia ela, a rir. -- Depois
lhe darei a resposta.
-- Então resolva, -- tornava ele. -- Olhe que se arrepende, digo-lho eu. Depois não se queixe. Se me dissesse
que sim, dava-lhe uma prenda “boua”. Rais me partam se
havia alguém que a tratasse melhor do que eu. Está-se a rir?
E ela, a fungar e a despedir, lá foi dizendo:
-- Depois... depois...
Vendo-a sumir ao longe, ele estacava um bocado e
em breve monólogo, exclamava:
-- Ah! mulher dum raio. Nem sabes o que perdes, tu
nem sabes o que perdes. Tanto como tanto, mas melhor do
que eu, não dou licença a ninguém. Ainda há-de nascer o
primeiro, juro-to eu.
Ajeitou a boina, pensou um pouco e como quem
toma uma resolução, exclamou:
-- Mia!
Contos Serranos -- 109
E lá se foi aos bordos, rua abaixo, no fadário do costume a
cumprir o seu destino de ser primário e infeliz. E talvez fosse
mais feliz do que os outros, os que troçavam dele, os que se
riam da sua bondade lorpa e faziam pouco da sua miséria.
Pouco a pouco se foi apagando aquela ideia de casar com a Lucília que, de facto, casou, a curto prazo, com o
Zé Mimoso, logo que este regressou de fazer o serviço militar.
Quando os via, marido e mulher, aos domingos, a
caminho da missa ou em qualquer festa, ele dizia, entre
dentes, a ruminar a sua mágoa:
-- Não era para os teus dentes, podengo do inferno.
Mas saiu-te a sorte, está visto. Tens mais sorte que o Facadas. Má hora em que te vi, mulher reles. Mas não sabes o
que perdeste, não sabes, digo-to eu.
E os olhos enevoavam-se-lhe de lágrimas, duma dor
sem remédio. E lá foi curtindo e combatendo o seu sofrer
com as inevitáveis e contínuas libações que lhe iam diminuindo as forças e encurtando a vida.
Um dia, uns amigos de mil diabos, que os há em todas as terras, lembraram-se de se divertir, convidando-o para beber uma boa pinga numa das farmácias da terra. Primeiro deram-lhe uns copos do tinto e, logo a seguir, álcool
em quantidade elevada para verem o efeito que faria.
-- Então que tal, ó Pataquinho? -- perguntou um deles.
-- Mia! -- ainda ele respondeu, com a voz entaramelada e os olhos semicerrados e turvos. Caiu no chão, sem
acordo.
Quiseram acordá-lo, despertá-lo daquele estado de
inconsciência e torpor. Mas foi tudo inútil. Chamaram o médico à pressa mas, apesar de todos os esforços, persistiu o
seu estado de coma. Passadas algumas horas, deixou de
respirar e de sofrer.
110 -- João Isabel
Assim morreu o Pataquinho, pobre homem de tão triste sina, figura curiosa e popular dos meus tempos de juventude,
na vila serrana onde eu nasci.
Contos Serranos -- 111
NOITE DE CONSOADA
Zé Isidro saíra de Casegas já muito tarde.
Entretido a beber uns copitos na taberna do Dâmaso, com alguns conhecidos, só deu conta de si quando já
eram cinco da tarde.
-- Eh raio, - disse ele, vendo o relógio. -- Deixa-me lá
ir.
E, agarrando rápido os alforjes e o cajado, dispôs-se
a fazer viagem. Um dos amigos ainda alvitrou:
-- Ficas cá hoje, Zé Isidro. Não vás tão tarde. Dormes cá esta noite e vais amanhã de manhã.
-- Cal quê, -- respondeu ele, ajeitando os alforjes. -Então a patroa e os filhos estão lá à minha espera e eu havia
de aqui ficar? Isso sim. Temos de comer as filhós todos juntos e por isso hei-de ir, dê lá por onde der.
E, açodado e preocupado, deu as boas tardes e saiu, porta fora.
Era véspera de Natal. A tarde estava fria e nublada,
ameaçando chuva ou neve, mas, para um homem como Zé
Isidro, pastor de profissão e criado na serra, não havia qualquer problema.
E começou a subir, por caminho pedregoso e cheio
de cascalho, apoiado ao bordão, fiel companheiro de jornadas e de guarda ao rebanho, pensando que a companheira e
os filhos o esperavam, sentados a lareira, com a ceia e as
respectivas filhós, nessa noite de consoada.
Grandes penedos surgiam a ladear o caminho e,
por entre eles, via, em baixo, quase na perpendicular, a
imensa planura em retalhos verdes e polícromos e, em plano de fundo, muito ao longe, contrafortes de serras negras,
coroadas de nuvens escuras que as faziam mais altas e dominadoras.
Subindo sempre, Zé Isidro sentia o ar cada vez mais
frio, até que, por altura dos Piornos, começou a nevar, em
112 -- João Isabel
flocos pequenos e raros e, dentro em pouco, mais densos e
abundantes, sinal de grande nevão.
Entretanto anoitecia e, quase de repente, surgiu o
nevoeiro, primeiro em cortina ligeira e intermitente, depois
em muralha espessa e cerrada, a barrar o caminho.
Pensou voltar para trás, com receio de avançar
mais, mas estando já tão longe, não era fácil retroceder.
A neve continuava a cair, cada vez mais abundante,
em flocos grandes e pastosos, a colarem-se-lhe à cara e a
tornar-lhe pesado o largo chapéu que tinha de sacudir, de
vez em quando, para o aliviar do peso. O chão tornava-se
mole e cada vez mais fofo a medida que avançava e tacteava, através da noite e do nevoeiro. Lá mais para diante, os
pés enterravam-se profundamente na neve e o que lhe valia
era ter trazido as botas de cano alto e os safões de pele de
borrego que quase nunca o abandonavam. Parava, de vez
em quando, para ouvir qualquer ruído e orientar-se no caminho. Mas nada via ou ouvia, naquele imenso deserto. Só a
aragem assobiava baixinho, por vezes, uma ária sibilina a
acentuar o silêncio que se lhe seguia.
Calculava estar a chegar ao alto da serra e, dentro
em pouco, desceria a vertente oposta, prestes a chegar à
Nave de Santo António, distanciada, ainda assim, alguns quilómetros da vila.
Continuou a caminhar, desnorteado, `as cegas.
Enterrado na neve até à cintura, o que lhe valia era
ser muito alto, mesmo conhecido pela alcunha de Gigante
sobretudo entre os pastores. Escorregando e caindo, em risco de resvalar por qualquer precipício, de repente sentiu-se
mergulhar dentro de água quase até ao pescoço, agarrandose providencialmente a uns ramos delgados e flexíveis que
lhe pareceram ser de salgueiro. Aferrado a esses ramos, no
instinto da conservação, tacteou com um dos pés o fundo
da água, encontrando a elevação duma pedra para a qual
subiu.
Contos Serranos -- 113
114 -- João Isabel
Depois, palpando a margem, conseguiu agarrar-se a
um sólido tronco e içou-se a pulso, duplicando as forças, na
ânsia da salvação.
Valera-lhe também a samarra e os safões que não
deixavam entrar a água. Novamente na neve, derivou às cegas, sem cajado e sem alforjes, perdidos quando mergulhara
na água e procurou alcançar qualquer rochedo ou poio onde
pudesse encostar-se e abrigar-se o melhor possível. Por fim
lá divisou, por entre o nevoeiro, uma massa escura que lhe
pareceu uma fraga e a ela se achegou com custo e a tremer
de frio e de desânimo.
Lembrou-se do Alfredo Morais e do Zé Patola que lá
tinham ficado na neve, a caminho de Gouveia. Então rezou
com fervor, ao Senhor do Esquife e à Senhora da Graça, para
que lhe acudissem naquela aflição e o não deixassem morrer ali.
Rezou também a sua mãe, morta a muitos anos,
para que o ouvisse e lhe valesse na amargura daquela hora.
Continuava a nevar, abundante e persistentemente, a aumentar a espessura daquela imensa mortalha. Resolveu ficar ali, encostado àquela rocha, até que o dia rompesse ou antes, até que Deus determinasse o que fosse da
Sua vontade. Estava nas mãos d’Ele, por isso resolveu esperar pacientemente a sua sorte.
Àquela hora, a mulher e os filhos, angustiados com
a sua ausência, dariam largas à aflição, chorando e rezando
por ele. Não pudera acompanhá-los, naquela noite de consoada.
Boas contas fazemos nós! Mas Deus não quisera,
não o permitira e o que Deus determina tem de forçosamente cumprir-se. Ele era um pastor da serra, afeito às borrascas e intempéries, a muitos perigos e dificuldades, mas o
poder de Deus era maior.
Transido de fome e de frio, sentindo o sono entorpecê-lo e a pesar-lhe nas pálpebras, Zé Isidro reagiu pondo-
Contos Serranos -- 115
se em pé, não permitindo que o sono o dominasse e esperando que o tempo decorresse até ao romper da manhã.
Quanto tempo esperara ele? Não o sabia dizer,
porque o tempo dir-se-ia ter parado e tudo aquilo lhe parecia uma eternidade. Até que o dia rompeu numa frouxa e
débil claridade, a luz da qual viu tudo branco à sua volta, e
percebeu, pelos declives e configuração da serra, que ele estava no Covão da Ametade junto à base dos Cântaros. Louvado seja Deus, já sabia onde se encontrava!
Mas poderia sair dali? Bloqueado completamente
pela neve tão alta, o que iria suceder?
Dispôs-se a abrir caminho, de qualquer forma,
quando subitamente ouviu sons indistintos, muito ao longe,
que, a breve trecho, lhe pareceram gritos ou chamamentos:
-Oi......oi......
Calculou que chamassem por ele, que andassem à
sua procura e ele então gritou também, com todas as forças:
- Oi .... ..oi......
Começou a romper pela neve, em direcção à estrada. Breve divisou uns vultos escuros, muito ao longe, que se
moviam e aumentavam de tamanho à medida que se aproximavam. Pelas faces de Zé Isidro, tisnadas e endurecidas,
deslizavam lágrimas de alegria. Até que os vultos se aproximaram mais e ele conseguiu distinguir quatro homens e
uma mulher que vinham ao seu encontro. A mulher era a
dele, que não pudera ficar em casa e assim se arriscara a
procura do seu homem.
Quando chegaram ao pé, vencendo a custo a distância que os separava, ela abraçou-se a ele, em choro convulso:
-- Pensei que tinhas morrido... que não te via
mais... mas Nossa Senhora ouviu-me. Ouviu as minhas súplicas e teve dó dos meus filhos... teve dó de mim e dos meus
filhos... Bem hajas, Senhor!...
116 -- João Isabel
Tu és Pai de misericórdia e nunca deixas de atender os desgraçados...
E continuava a chorar, banhada em lágrimas, com a
cabeça encostada ao ombro do marido.
-- Mas como foi isto, ó Zé Isidro? -- perguntou um
dos pastores. -- P'ra que te meteste à serra, com um tempo
destes?
E Zé Isidro, bebendo uma golada de aguardente rija
que os companheiros tinham trazido, explicou:
-- Foi o cão do nevoeiro. Se não fosse ele, eu botava
cá, de qualquer maneira. Mas vocês não imaginam. Não se
via um palmo adiante do nariz e então desorientei-me, já
não sabia onde andava. Foi o cabo dos trabalhos e então,
vendo-me perdido, apeguei-me ao Senhor do Esquife e à
Senhora da Graça, já que ninguém mais me podia valer.
Nem ao maior inimigo desejo a noite que aqui passei.
Meteram todos pela estrada fora e só no fim de
três horas chegaram à vila, cansados e cheios de suor.
Quando Zé Isidro entrou em casa, os filhos rodearam-no,
contentes e festivos, como se viesse duma grande viagem. E
que viagem aquela, que ele fizera! Sentaram-se todos em
volta da mesa de pinho e ele disse à mulher que trouxesse
de comer e mandasse buscar um garrafão de cinco litros à
taberna do Passe-e-Ande, ali perto. Haviam de beber todos,
até os mais pequenos.
-- Vê lá, homem, -- disse ela. -- Os mais pequenos,
não.
-- Hão-de beber todos, já disse, -- insistiu ele. -Uma vez não são vezes.
-- Pois olha, homem, -- continuou ela, trazendo para a mesa queijo, chouriça, triga milha e as filhós. -- No meio
da minha aflição prometi ao Senhor do Esquife irmos todos
a alumiar à procissão na primeira que houver, e à Senhora
da Graça que lhe havíamos de dar duas borregas, das mais
bonitas do nosso rebanho. Que é que tu dizes?
Contos Serranos -- 117
-- Fizeste bem, mulher. Nem que fosse o rebanho
todo. Antes isso do que ficar por lá, teso como um carapau,
debaixo daquela neve.
E na primeira procissão que houve ao Senhor do
Esquife, procissão de penitência que passou, a noite, em silêncio, pelas ruas da vila, ao compasso marcado pelo som
cavo das caixas dos bombeiros, lá se via o Zé Isidro mais a
mulher e os filhos, todos a alumiar, com velas da sua altura,
a cumprirem a promessa de ele não ter morrido naquela
noite medonha, de neve e nevoeiro, em plena serra e em
pleno inverno, junto à base dos Cântaros, no Covão da Ametade.
118 -- João Isabel
trabalho realizado
por @ JORAGA
Vale de Milhaços, Corroios, Seixal
2015 SETEMBRO / OUTUBRO
JORAGA
Contos Serranos -- 119
120 -- João Isabel
9
A Abrir
17
Um Pastor da Serra
25
33
45
53
65
77
95
105
111
Bairrismo
Rosa Maria
Dois Parceiros
A Ti CIotilde
O Compadre e o Sr. Prior
Deus e Satã
João Brandão
O Pataquinho
Noite de Consoada
GUARDA, Dezembro de 1987
24-11-1971
Manteigas 22-6-1980
Manteigas, 30 de Maio de 1983
Manteigas, 25-6-1983
Manteigas, 18-7-982
(uma digitalização de www.joraga.net com pistas de leitura… 2015 10)