VIDA SUBTERRÂNEA – Pedro Cardoso
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VIDA SUBTERRÂNEA – Pedro Cardoso
VIDA SUBTERRÂNEA – Pedro Cardoso _______________________________ "Se nas cavernas não se encontram os dragões e outros animais terríveis das lendas antigas, não se deve crer, no entanto, como a maioria dos turistas, que o mundo subterrâneo é um deserto no qual só existem minerais." B. Gèze (1968). Vida subterrânea O ecossistema subterrâneo é no mínimo singular, quando não bizarro, em variados aspectos, completamente diferente de qualquer ecossistema de superfície, nas características apresentadas pelas suas comunidades e espécies que as compõem. Os produtores primários são praticamente inexistentes, com excepção de eventuais bactérias quimiotróficas, não dependentes da luz. Os organismos na base da pirâmide passam a ser quase em exclusividade os decompositores, dependentes de matéria orgânica proveniente do exterior. Mas, primeiro que tudo, é preciso compreender as diferenças entre os grandes grupos de organismos cavernícolas: Troglóbios - organismos inteiramente dependentes de um tipo de vida cavernícola durante todo o seu ciclo de vida. Eutroglófilos - organismos que habitam preferencialmente o meio subterrâneo mas que também se podem adaptar a locais de características semelhantes fora de cavernas. Subtroglófilos - organismos dependentes do exterior, pelo menos durante parte do seu ciclo de vida. Trogloxenos - apenas ocupam cavernas de forma ocasional. Dentro destes grupos, provavelmente os mais interessantes são os troglóbios, os verdadeiros cavernícolas que não sobrevivem no exterior. Entre eles podemos contar maioritariamente com artrópodes (aranhas, pseudoescorpiões, palpígrados, diplópodes, colêmbolos, dipluros, coleópteros, isópodes, decápodes, anfípodes, etc.) mas também com anfíbios (e.g. Proteus do karst Esloveno) ou peixes (presentes em cavernas de quase todo o mundo, ausentes no entanto na Europa). Frequentemente apresentam modificações morfológicas, comportamentais e fisiológicas adaptadas ao meio, modificações essas que permitem vingar em ambiente tão aparentemente inóspito como é o meio subterrâneo. Pode-se assim verificar, em maior ou menor grau, as seguintes modificações: Anoftalmia (ausência de olhos); Despigmentação; Desenvolvimento acentuado dos apêndices; Desenvolvimento de estruturas sensoriais alternativas à visão; Não existência de ciclos diários ou mesmo anuais; Baixo metabolismo; Prolongada longevidade. Foto: Francisco Rasteiro – NECA E o que tem o ambiente numa caverna de tão particular que leva a tais modificações? Primeiro que tudo, e o mais óbvio, a falta de luz. Sem luz os animais deixam de precisar de olhos ou de camuflagem (pigmentação) e passam a depender exclusivamente de outros sentidos. Quando existe supressão da visão ou da pigmentação numa espécie, esta é provavelmente devida a motivos de ordem energética. Isto é, ao não usarem energia na construção e manutenção de órgãos desnecessários, os indivíduos estão a reservá-la para outras funções, factor especialmente crítico no ambiente cavernícola como veremos adiante. Outra diferença fundamental com o ambiente exterior é a menor flutuação das condições físicas. As flutuações entre noite e dia, Verão e Inverno, calor e frio, chuva e seca são bastante atenuadas, sendo tal atenuação tanto maior quanto maior a profundidade, podendo mesmo ser total em zonas de grande profundidade. A luminosidade não existe, excepto nas zonas mais superficiais com Foto: Francisco Rasteiro – NECA abertura para o exterior. A temperatura é normalmente bastante constante, aproximando-se da temperatura média anual registada no exterior. A humidade tende a ser bastante elevada, provavelmente com flutuações mas sempre próxima da saturação. Uma terceira diferença é a baixa quantidade de energia (principalmente na forma de matéria orgânica) de que uma comunidade cavernícola dispõe para seu usufruto. Qualquer ecossistema necessita de um input regular de energia para se manter. Em habitats de superfície essa energia é fornecida pela luz do Sol, energia essa que é aproveitada pelas plantas através da fotossíntese, que por sua vez são o suporte de toda a restante vida. Num habitat cavernícola não há luz e consequentemente não há fotossíntese ou plantas. Em zonas próximas à superfície o material orgânico consegue chegar, seja através do ar, de escorrências, ou das próprias raízes que chegam a profundidades consideráveis. A zona de profundidade já a matéria orgânica não consegue chegar de forma Foto: Francisco Rasteiro – NECA directa. E no entanto a vida mantém-se. Um dos principais inputs de energia passa a ser, por exemplo, o guano, não mais que excrementos de morcegos. Enquanto este for em quantidade suficiente, e havendo oportunidade, muitos organismos detritívoros podem-se alimentar de tão rica fonte de energia. E outros organismos surgem que deles se alimentam, criando uma autêntica comunidade subterrânea baseada no guano. O mesmo pode acontecer quando rios se infiltram no subsolo trazendo consigo bastante matéria orgânica ou toda uma variedade de organismos que podem manter um verdadeiro ecossistema subterrâneo. Os troglóbios estão assim sempre dependentes do exterior, mesmo que não consigam sobreviver fora do ambiente cavernícola. O ambiente cavernícola, ao contrário do que se possa pensar, não é estanque, e por esta razão o que quer que aconteça no exterior, de positivo ou negativo em termos ambientais, afecta necessariamente o meio subterrâneo, um meio não estanque mas sim dependente. A baixa disponibilidade de recursos é ainda responsável por um metabolismo reduzido de muitos dos organismos cavernícolas, visto que estes têm de poupar toda a energia possível, e muitas vezes são sujeitos a longos períodos sem um input suficiente de energia que permita manter a comunidade Foto: Francisco Rasteiro – NECA em total actividade. Um baixo metabolismo implica um crescimento lento de cada indivíduo, o que obriga a uma grande longevidade média de muitas das espécies. Pode-se ainda acrescentar uma quarta diferença com o exterior, a acentuação do factor isolamento. Qualquer caverna, do ponto de vista biológico, é uma ilha. Um sistema cavernícola pode ser considerado como um arquipélago. Tal como nas ilhas oceânicas, as populações estão sujeitas a um isolamento mais ou menos acentuado de outras populações da mesma espécie, pois o ambiente que rodeia o seu habitat é-lhes inóspito e muitas vezes impossível de transpor. Assim, muitas populações de espécies troglóbias permanecem isoladas do contacto com outras populações da mesma espécie, o que com o passar do tempo (milhares ou milhões de anos) e o consequente afastamento a nível genético dá origem a especiação, ou seja, formação de novas espécies já sem capacidade de se cruzarem. Estas espécies muito provavelmente apresentarão características morfológicas bastante distintas, nomeadamente nos órgãos reprodutores. Estão ainda muitas vezes confinadas a uma caverna ou sistema cavernícola, contando com um número relativamente restrito de populações ou mesmo de indivíduos. Cumprem assim as três formas de raridade reconhecidas, com baixa abundância, distribuição limitada e habitat restrito. Dada esta raridade natural das espécies e fragilidade de tais sistemas, estando ainda para mais dependentes do exterior, é fácil perceber porque uma grande parte das espécies mais ameaçadas a nível mundial em muitos grupos animais são cavernícolas. Para além da sua raridade e vulnerabilidade, os troglóbios são extremamente úteis para se perceber muitos dos mecanismos de evolução e especiação, permitindo dar novas perspectivas a muitas das questões mais pertinentes que se têm posto. Cada gruta pode assim ser considerada um autêntico laboratório vivo, laboratório esse, que ademais, constitui sempre um novo e único desafio para os investigadores. Por tudo isto, nunca é demais enfatizar a importância dos ecossistemas cavernícolas para qualquer estratégia de conservação e outros campos científicos relacionados. Texto: Pedro Cardoso – CCient.FPE/AES/NECA Fotos: Francisco Rasteiro - NECA
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