A Política Externa dos EUA: Continuidade ou Mudança?

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A Política Externa dos EUA: Continuidade ou Mudança?
A Política Externa dos EUA:
Continuidade ou Mudança?
Cristina Soreanu Pecequilo
Sumário
Introdução ..................................................................................................................................... 1
Testemunho do autor .................................................................................................................. 5
Debate .......................................................................................................................................... 15
Introdução
Neste início do século XXI, as Relações Internacionais vem sendo marcadas por
inúmeras incertezas e transformações que acentuam o caráter transitório do mundo do
pós-Guerra Fria cujo nascimento data de 1989. Apesar da supremacia dos Estados
Unidos e de que afirmemos que estamos vivendo a segunda era de dominação desta
hegemonia, consolidada a partir de 1945, podemos apresentar inúmeros
questionamentos a respeito de sua durabilidade e eficiência. Em particular, os atentados
de 11/09 e a atual orientação internacional republicana sugerem um processo
simultâneo de endurecimento e declínio desta liderança dada sua superextensão e o
consumo de seus recursos políticos e econômicos. A despeito de sua posição imperial, os
Estados Unidos podem estar, dentro deste momento de reordenamento de poder global,
estabelecendo os parâmetros de seu próprio desaparecimento como potência
hegemônica. Todavia, este não seria um movimento inédito, devendo-se atentar á
evolução da liderança americana e considerar de que forma os conteúdos presentes do
engajamento no pós-Guerra Fria são resultado de um processo de construção e formação
prévia.
A Política Externa dos Estados Unidos, Tese de Doutorado apresentada ao
Departamento da Ciência Política da FFLCH/USP em 2000, outorgada com o prêmio
Lourival Machado de melhor tese daquele ano pelo DCP, e editada em livro pela
Coleção Relações Internacionais e Integração da Ed. UFRGS em 20031 , busca justamente
analisar este processo de evolução e afirmação da identidade e do papel externo dos
Estados Unidos a partir de uma análise histórica de suas relações internacionais,
desvendando as raízes de seu poder e pensamento. Especificamente, observando-se este
processo podemos perceber que muitos dos temas atuais que orientam a atuação
americana são derivados de uma construção política anterior, sustentando-se em
tradições sólidas que emergiram desde a independência da nação em 1776 no século
XVIII. Argumentamos, no caso, que desde esta época estão sendo conformados os
padrões de ação global americana, havendo um quadro de idéias e comportamentos
cumulativo que, ao longo destes séculos, passou a definir as relações internacionais
passadas, presentes e futuras dos Estados Unidos.
Tal quadro, ao longo dos anos, certamente sofreu atualizações e ajustes dadas ás
transformações internas e as externas, mas seu núcleo de crenças e temas de
engajamento prioritários se manteve. A tradição externa americana preservou linhas
gerais e premissas que até hoje encontram-se presentes no imaginário e na prática dos
Estados Unidos. Dentre alguns elementos que podemos citar para exemplificar este
sentido de permanência está a crença na república como disseminadora da democracia e
da liberdade e do papel especial do país no mundo, temas ressaltados de George
Washington a George W. Bush. Outros pontos recorrentes que revelam continuidade
são os debates isolacionismo e internacionalismo, unilateralismo e multilateralismo,
1
PECEQUILO, Cristina Soreanu. A política externa dos Estados Unidos: continuidade ou mudança?. Porto Alegre,
Ed. UFRGS, 2003
1
declínio e renovação, referentes á definição do posicionamento americano no sistema,
seus recursos de poder e sua relação com seus parceiros, adversários e organismos
internacionais.
Para que possamos compreender a estratégia dos Estados Unidos, o perfil e o
conteúdo de sua liderança, é necessário avaliar o passado e o processo formativo da
nação americana e de sua projeção internacional. Aqui, vale lembrar o alerta de Jonathan
Clarke2 ao comentar um dos maiores erros que pode ser cometido no estudo da política
externa americana: a desconsideração de suas tradições e fatores históricos e o estudo de
suas dimensões contemporâneas unicamente. Ou seja, a compreensão do exercício do
poder dos Estados Unidos e de sua hegemonia depende de uma análise da construção
nacional e da evolução desta hegemonia, avaliando, retrospectivamente, o perfil de suas
relações internacionais.
Visando examinar este processo de evolução e formação de tradições, o estudo foi
organizado em três partes: Parte I- Origens e Evolução, 1776 a 1945, Parte II- A Guerra
Fria, 1947 a 1989 e Parte III- O Pós-Guerra Fria, 1989 em diante. Na primeira parte, dois
capítulos examinam os fundamentos da ação internacional dos Estados Unidos,
abordando a formação da nação e a passagem do isolacionismo ao internacionalismo,
englobando as primeiras iniciativas de política externa desde a fundação da República
em 1776 até o final da Segunda Guerra Mundial. Deve-se mencionar que este período é
subdividido em duas fases: 1776 a 1898, a consolidação nacional, e 1898 a 1945, quando
os Estados Unidos passam a atuar no sistema com uma projeção de poder sustentada
em sua emergente potência econômica e política. De posse destas avaliações,
elaboramos o Padrão Histórico, definindo os componentes e temas de engajamento da
época: experimento americano, isolacionismo e unilateralismo, a expansão das fronteiras
e o destino manifesto, o sistema americano e a esfera regional, o império americano e o
wilsonianismo.
Na Parte II, A Guerra Fria, 1947 a 1989, examinam-se os componentes básicos da
política externa contemporânea no sistema e na América Latina. Os capítulos 3 e 4
abordam a construção da nova ordem pós-Guerra e a criação da doutrina de contenção,
destacando suas prioridades e evolução ao longo da Guerra Fria. A Guerra Fria,
procura-se destacar, marca a presença definitiva dos Estados Unidos no sistema
internacional, apesar de não eliminar as prioridades estabelecidas em épocas anteriores.
Pela primeira vez em sua história, os Estados Unidos assumem, como hegemônicos, a
condução dos processos globais. Dentro da lógica do confronto entre as superpotências,
os Estados Unidos passam a estar presentes nos mais diversos teatros estratégicos,
Europa, Ásia, Américas, revendo suas prioridades e formas de atuação em torno do
referencial do conflito leste/oeste.
Com relação ao continente, no capítulo 5, A Política Externa para a América Latina,
mostra-se que, ao ser enquadrada no conflito bipolar, a política hemisférica assume uma
posição secundária. Ao longo da Guerra Fria, a região é bastante negligenciada,
2
CLARKE, Jonathan. "The conceptual poverty of foreign policy". The Atlantic Monthly, 272(3) Septemb er 1993.
p. 54-66
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havendo a concentração de esforços e iniciativas em outras áreas de interesse.
Acreditando ser esta sua zona de influência natural e incontestável, os Estados Unidos a
percebem como relativamente preservada de ameaças externas, não lhe direcionando
particular atenção. Embora com a Revolução Cubana em 1959 ocorra uma tentativa de
reversão desta política devido ao avanço da influência soviética, de modo geral o caráter
da ação americana não evoluiu, estando preso a padrões unilaterais e intervencionistas
que permaneceram até o fim da disputa bipolar em fases alternadas de maior e menor
intensidade. Fechando esta Parte II, é elaborado o primeiro dos padrões
contemporâneos da política externa americana referente à Guerra Fria, destacando-se
como componentes: a construção da ordem, a contenção e o sistema americano e a esfera
regional.
Posteriormente, na Parte III, O Pós-Guerra Fria, avaliamos os fluxos e tendências
centrais do sistema com uma análise do papel e da posição dos Estados Unidos,
tentando desenhar as principais tendências e debates sobre o cenário internacional e a
política externa americana nos anos 1990. Aqui, encontram-se capítulos mais específicos
sobre A Política Externa dos Estados Unidos com a análise dos esforços em direção ao
estabelecimento de um paradigma pós-contenção desde Bush até Clinton. Enfoca-se
ainda a política externa para a América Latina nestes governos, com a apresentação da
suposta agenda diferenciada que teria sido introduzida pela Iniciativa para as Américas
(IA), o NAFTA (Acordo de Livre Comércio entre Estados Unidos, Canadá e México) e a
Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). Como conclusão, estabelecemos o
padrão contemporâneo II, para o sistema internacional e a América Latina, definido
pelos seguintes temas de engajamento: a construção da ordem e o sistema americano e
esfera regional.
Adicionalmente, devido aos atentados de 11/09/2001, acrescentou-se ao trabalho
um capítulo final que explora as consequências dos ataques terroristas para os Estados
Unidos e sua política externa. A vulnerabilidade recém-descoberta pela América afetou
sua percepção de normalidade e força, demonstrando os limites práticos que se colocam
em um sistema em transição, ainda que o país seja a maior superpotência militar do
cenário e a condutora de seus processos políticos, sociais e econômicos.
Domesticamente, novas dimensões de segurança foram estabelecidas, revelando-se, por
enquanto, a prevalência da incerteza e do medo na sociedade americana, limitando-se
esta democracia.
Mais ainda, a guerra contra o terrorismo tem servido de justificativa para a
evolução do conservadorismo interno e externo nas ações dos Estados Unidos,
favorecendo os defensores do unilateralismo e da força em contraposição aos
multilateralistas (debate também identificado como a oposição falcões contra pombas,
hawks X doves no original). Na prática, isto se revelou na formulação e lançamento da
Doutrina Preventiva em Setembro de 2002 e no desequilíbrio interno entre republicanos
e democratas com a ascensão desta visão de direita em questões civis e sociais.
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Embora a atual presidência ainda faça uso de uma retórica tradicional3, sua postura
tática de apostar em instrumentos de guerra como forma de exercer domínio, em
detrimento dos mecanismos e canais cooperativos de poder como as organizações
internacionais e parcerias, traz um elemento preocupante para a estabilidade do cenário.
Diante deste contexto, e de nossas avaliações prévias, do estudo e da compreensão das
relações internacionais americanas, devemos, mais do que buscar respostas, nos
preocupar em examinar as indagações e tendências que nascem deste momento da
história dos Estados Unidos, analisando as consequências deste processo para o futuro
da hegemonia e seus impactos para o reordenamento e dinâmica do sistema
internacional. Será que Bush alterará o equilíbrio continuidade e mudança da política
externa?
Por fim, espera-se que este trabalho possa ajudar no caminho para a reflexão sobre
a política externa dos Estados Unidos de uma perspectiva histórica e analítica, a partir
de uma bibliografia e documentação americana, cobrindo espaços ainda não explorados
por nossa literatura. Deve-se destacar que o livro não tem a pretensão de esgotar o
debate, mas sim oferecer uma base de conhecimento que impulsione discussões e
pesquisas, permitindo um entendimento abrangente de temas americanos, entre
especialistas e o público em geral. Afinal, os Estados Unidos são um importante parceiro
e referencial da política externa do Brasil e, se desejarmos estabelecer intercâmbios
eficientes e produtivos com esta nação, adequados a nosso interesse nacional, devemos
compreendê-los tanto em seus defeitos, como em suas qualidades.
Cristina Soreanu Pecequilo
Mestre e Doutora em Ciência Política pela USP
Pesquisadora Associada NERINT/UFRGS
Colaboradora RELNET/UnB
Professora de Relações Internacionais UNIBERO
[email protected]
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Como vimos no caso do Iraque: Bush prometia libertar o país do jugo ditatorial de Saddam Hussein
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Testemunho do Autor
Vou falar um pouco sobre o conteúdo do livro, que revela a origem, a evolução e o
atual estado da política norte-americana. O que pretendi fazer foi uma apresentação do
que são os Estados Unidos, de que maneira os Estados Unidos pensam no exterior e de
que forma devemos ver isso. Acho que uma grande preocupação que todos os países
devem ter é conhecer os seus parceiros no mundo e, principalmente, conhecer aqueles
parceiros com os quais mais se relacionam. Os Estados Unidos são o parceiro mais
importante do Brasil, e nesse sentido o Brasil conhece pouco os Estados Unidos, então
existem muitos mitos. É um trabalho bastante abrangente, e que pretende oferecer essas
perspectivas.
O título do livro é a Política Externa dos Estados Unidos, Continuidade ou
Mudança? É uma pergunta e, antecipando um pouco a minha conclusão, a política
externa é uma mistura das duas coisas, uma mistura da continuidade, com uma
adaptação aos tempos. Nenhum país pode ficar parado ao longo da sua história, e muito
menos um país que ascendeu para uma posição de hegemonia que foi o caso dos
Estados Unidos.
O livro trata das origens e da evolução da política externa americana, pegando
desde a sua independência até o século XXI. Eu analiso esse processo trabalhando com
as tradições, as prioridades e os temas de engajamento americano, ou seja, como a
atuação externa americana se define desde o momento em que a sociedade nasce como
uma nação independente, até o ponto no qual estamos hoje em que ela é hegemônica.
Existe essa construção da nação e existe a construção da potência, então isso foi
examinado no livro.
A definição dessas prioridades da agenda externa americana vai ser acompanhada
de três pontos: da própria condição americana, dos recursos domésticos, e isso não é
específico dos Estados Unidos, qualquer país que deseja atuar no sistema internacional
tem que ter uma base para fazer isso, você não pode atuar no sistema internacional se
você não tem capacidade de projeção, se você não tem interesse definido, então muito
da política externa de um país vai depender da sua questão doméstica; também vai
depender do lugar que esse país ocupa no mundo, em nível global e em nível regional;
e, obviamente, das circunstâncias e do contexto internacional. Existe, lógico, o peso da
conjuntura, não podemos desmerecer isso, mas também existe o próprio momento.
Então, existe a conjuntura, existe o momento, existe o presente e existe o passado, isso
tudo foi trabalhado no livro.
Eu dividi a construção da política externa americana, ao longo do texto, em três
períodos, que chamei de Processo de Construção de Política Externa. O primeiro
período, que denominei Padrão Histórico, vai pegar de 1776 a 1945, ou seja, da
independência dos Estados Unidos até o final da Segunda Guerra Mundial. Esse é um
período excessivamente grande, então também o dividi porque existe uma diferença
entre o nascimento da nação americana nos séculos XVIII e XIX e a primeira metade do
século XX. Além disso, eu coloquei o Padrão Contemporâneo I que vai ser a Guerra Fria
e pega de 1947 a 1989, há um buraco - 1945 a 1947. Por que existe esse buraco? Porque é
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um momento de transição, é um momento no qual a política externa americana ainda
está definindo o seu rumo: será que os Estados Unidos vão se tornar, realmente, a
hegemonia que comanda ou eles vão voltar a ser um país normal como foram em toda a
sua história? Esse período 1945 a 1947 é dessa transição, mas depois com a Guerra Fria,
com a presidência Truman, entra-se de fato na fase da hegemonia americana.
No Padrão Contemporâneo II, que é o pós-Guerra Fria, 1989, há várias
interrogações. Existem algumas pessoas que dizem “11 de setembro já encerrou a
transição do pós-Guerra Fria, a guerra do Iraque já encerrou a transição do pós-Guerra
Fria”, mas eu discordo, acho que o processo que nós vivemos hoje é um capítulo dessa
transição iniciada em 1989, então nós já vivemos o primeiro capítulo, que foi de 1989 à
primeira Guerra do Golfo, depois vivemos um segundo capítulo com o governo Clinton
e agora estamos vivendo um terceiro capítulo com o governo George Bush. Pode ser
que, eventualmente, eu fale “haverá outro capí tulo que vai ser o capítulo pós-Iraque”,
mas por enquanto eu argumento que não houve uma mudança, porque no fundo a
hegemonia americana continua dominando o sistema sem contestação.
O Padrão Histórico 1776/1945. Segundo meu argumento e minha hipótese, toda
tradição da política externa americana está formada a partir de uma síntese de todas as
visões do Padrão Histórico. Nós temos aqui sete tradições, que formam o Padrão
Histórico e que depois, logicamente, ajustadas e repensadas, servirão como base para os
padrões da Guerra Fria e para o padrão do pós-Guerra Fria. Quais são essas tradições?
Primeiro período desse Padrão Histórico, 1776/1898, é o período que corresponde à
independência, à construção e afirmação nacional. Os Estados Unidos, como toda
colônia, incluindo o Brasil já que também fomos colônia, quando se torna independente
tem como preocupação: soberania e autonomia. Nesse período inicial temos neste país
uma visão clara e pragmática de que os Estados Unidos terão um futuro grandioso entre
todas as nações, mas que ainda não é o momento de se jogar no sistema internacional.
Prioridade é o que? Prioridade é a consolidação política e econômica/doméstica em um
mundo onde existe supremacia européia e existe o domínio do continente europeu. Qual
é a preocupação americana? Garantir a sua independência e garantir a sua autonomia. É
muito importante notar que nesse momento nasce o que podemos definir como sentido
de destino e excepcionalismo dos Estados Unidos, algo que o Brasil ainda precisa
aprender com os americanos, ou seja, se sentir especial e se ver especial pelo que o país
é. A partir do momento em que os Estados Unidos se tornam independentes e existia
um projeto nacional de democracia, de liberdade, um projeto diferente do absolutismo
do equilíbrio de poder europeu, temos uma visão de que o destino americano irá se
realizar em longo prazo, e é um destino excepcional. Os Estados Unidos ocuparão seu
lugar entre as grandes nações à medida que eles se tornam um estado nacional,
consolidado e poderoso.
Nesse primeiro momento, emergirão quatro tradições. Obviamente, tradições que
revelam a importância dessa consolidação política e econômica doméstica. Eles até estão
em ordem progressiva.
Primeira: experimento americano, uma tradição clássica da política externa
americana. Os Estados Unidos são o país modelo da democracia e da liberdade, fundam
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uma visão de relacionamento entre sociedade e cidadão, uma nova visão de república,
então aqui temos a tradição do experimento americano. Se pegarmos os discursos atuais
da presidência americana, a questão da disseminação da democracia e da liberdade
ainda estará presente, então qual é a tarefa americana no mundo? Ela é ligada à
colocação do seu experimento para o mundo. Obviamente nessa época qual era a
preocupação? Não era tanto exportar, mas fortalecer-se internamente, então vemos o
que a literatura americana chama de “ensinar pelo exemplo”, o teach by example, o city
upon the hill. A república americana surgiu no topo do mundo, e a partir do seu exemplo
e consolidação ela se espalha por todo o mundo, esse é o experimento americano. Desde
Wilson e Truman no século XX, e com Clinton e Bush no século XXI isto é presente, só
que agora ela tem uma posição ativista de agir para construir.
Segunda: isolacionismo e o multilateralismo. Aqui é a idéia de que os Estados
Unidos vão realizar o seu projeto, mas ainda buscando se fortalecer. A opção do
isolamento também é a opção do distanciamento para garantir a sua soberania e
autonomia, em um momento onde ainda não havia forte entidade nacional. A questão
do isolacionismo no caso da política externa americana não é um total descolamento do
mundo, isso seria muito enganoso. Às vezes fala-se: “Os Estados Unidos são
isolacionistas”, isso não quer dizer que eles estejam fora do mundo, mas que a atuação
se dá como um país normal, ou seja, atua e sai, não existe o que Washington chama de
engajamento permanente. Eles têm o isolacionismo e a visão do unilateralismo.
Unilateralismo, o que é? É a visão da margem de manobra plena, os Estados Unidos só
vão agir a partir do comando dos seus interesses e das suas possibilidades, não é uma
novidade, então o que vemos hoje é a definição da autonomia e da margem de manobra
plena. Isso acontece no século XVIII.
Entrando no século XIX, ainda na questão da consolidação nacional, vamos ter o
que chamamos destino manifesto e a expansão das fronteiras, que é a colocação do caminho
natural e a tarefa de expansão continental americana que se torna a terceira tradição.
Existe na história americana o que chamamos de mito da fronteira. Qual é o mito da
fronteira? O mito do país que cresce, que prospera, a partir do momento em que ele se
expande, isso nasce no século XIX e está sustentado numa ideologia política, mas
também numa ideologia religiosa chamada de destino manifesto, na verdade os Estados
Unidos se expandem não por interesse próprio, mas por uma tarefa, um dever de
disseminar democracia e liberdade pelo continente. Os Estados Unidos nascem somente
na costa leste, as 13 colônias no Atlântico. Em menos de um século o país toma todo o
continente, sobe e desce, chegando às fronteiras com o Canadá e às atuais fronteiras com
o México. Então há, realmente, uma expansão e uma idéia de que a expansão natural
dos Estados Unidos é essencial para a sua prosperidade e crescimento, mas,
principalmente, uma tarefa, um direito, uma necessidade para disseminar a democracia
e liberdade. Então veja, o experimento aqui já começa a virar uma coisa prática não só
pelo exemplo.
Quarta: o sistema americano e a esfera regional . Esse é um tema que nasce em 1823
com o encerramento do processo de libertação das antigas colônias portuguesas e
espanholas na América Latina. Os Estados Unidos são um país diferente dentre todas as
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nações, por serem democráticos e livres, mas eles também estão num hemisfério de
países diferentes. A Doutrina Monroe, que é a idéia da “América para os americanos”,
vai ser uma colocação ante uma recolonização do continente pelos europeus, e uma
maneira de excluir os poderes extra continentais da região. A questão da Doutrina
Monroe, a idéia da América como um hemisfério único, uma esfera separada, diferente
da Europa, nasce em 1823 e continua até hoje, na Guerra Fria e no pós-Guerra Fria.
Sobre a questão da ALCA, por exemplo, diz-se sempre que “a ALCA é uma ultrarenovação na política externa americana, é uma total mudança de viés da política
externa americana”. Eu defendo que não. Eu defendo que ela é apenas uma nova
maneira se ver essa idéia do hemisfério como outra esfera dentro do mundo, uma esfera
de zona de influência americana. Em algumas oportunidades o padrão de cooperação
vai ser melhor, então os Estados Unidos e a América Latina cooperam, em outras
oportunidades prevalece o intervencionismo dos Estados Unidos na América Latina,
mas no fundo a Doutrina Monroe continua até hoje conosco, em 2003. Esse é um
argumento que eu defendo, mas há controvérsias.
Chegando em 1823 tem continuidade o processo de expansão e consolidação, então
vemos a criação de uma nova potência no mundo, os Estados Unidos então, finalmente,
consolidam a sua nação e chegam a uma nova visão de mundo sobre si mesmos, é
aquela idéia de que agora os Estados Unidos são fortes e podem ter uma atuação no
sistema internacional compatível com a sua nova personalidade. A divisão 1898 a 1945
se dá devido á Guerra Hispano-americana, a intervenção em Cuba, que faz com que os
Estados Unidos iniciem sua atuação no sistema internacional. Esse período é um
período de transição hegemônica, de decadência européia e crescimento americano,
uma transição muito pouco pacífica. Primeira e Segunda Guerra Mundial e também a
questão da ascensão, isolamento e crise. Então, 1929 a Grande Depressão, 1930, também
ascensão do nazi-fascismo, é uma época conturbada porque existe um rearranjo de
poder, os Estados Unidos são grandes, a Alemanha é grande e eles buscam seus espaços.
A Alemanha busca através da guerra e os Estados Unidos através da expansão pacífica,
então há essa convergência e o período de transição hegemônica.
Três tradições nascem aqui, a tradição do império americano, que é a idéia de um
império informal, então, fechado o continente os Estados Unidos começam a atuar no
hemisfério ocidental, descem no seu hemisfério e saem para o Pacífico, é a época de
expansão das fronteiras externas. Se a idéia do mito da fronteira se aplicou para o
continente ela também pode se aplicar para o mundo. Existe um autor muito
interessante, William Appleman Williams, que fala da tragédia da diplomacia
americana, “quando acabarem as fronteiras, para onde vão os Estados Unidos, o que
faremos a partir de então?”. Mas aqui o império é diferente, ele não é um império que
domina formalmente, mas que, apenas, coloca alguns parâmetros.
Em segundo lugar, associada a essa questão, teremos a expansão externa aquilo
que chamamos de “portas abertas”. Esse é um termo que vem também num documento
oficial do governo americano, chamado Open Door Policy, que diante do risco da partilha
da China pelas potências européias, como as potências européias já haviam partilhado
África e Ásia entre si, os Estados Unidos declaram via sua presidência, via seu
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departamento comercial e Ministério das Relações Exteriores, a intenção de que todos os
países têm que ter os mesmos direitos e possibilidades no mundo, então por isso portas
abertas. Eu costumo chamar isso do direito constitucional de ir e vir no sistema
internacional. Ninguém pode ser colonizado, ninguém pode estar sob o jugo de outro
país e não pode haver uma redivisão de territórios, deve haver, realmente,
oportunidades e visões iguais, então direito e oportunidades iguais, caminhos livres
para expansão e troca de intercâmbio.
Por fim a tradição, que talvez seja uma das mais importante desse período, senão a
mais importante, porque ela lança a base da Guerra Fria, que é a tradição do
wilsonianismo. Wilsonianismo ou idealismo wilsoniano trabalha com a idéia de
sistematização ativa de todas as outras tradições, democracia, expansão, segurança,
isolamento, unilateralismo, de maneira ativa e lançando isso para uma ação direta dos
Estados Unidos. A Europa havia criado a destruição e agora teríamos uma nova visão
americana de relações internacionais, que acabava com o equilíbrio de poder, que trazia
uma nova ordem para o mundo. Então, os Estados Unidos, já como maior potência do
mundo, vão assumir a tarefa de construção desse mundo, que é a tarefa que chamo de
construção da ordem, que seria disseminar a democracia, disseminar a liberdade e
disseminar o comércio livre a partir da sua ação. Não vamos esperar os outros agirem,
vamos agir nós, então, fica a idéia de que a tarefa da construção da ordem é essencial
para a prosperidade americana e a expansão dos Estados Unidos.
Aqui temos três pilares: democracia, autodeterminação e segurança coletiva, que é
a base da Liga das Nações. A Liga das Nações é a mãe da ONU, a partir dela que se
desenvolve a idéia da ONU, ou seja, a idéia de que o sistema internacional pode ser
controlado, pode ser administrado dentro de uma visão pacífica, e a visão do idealismo
wilsoniano. Só que havia um pequeno problema, a sociedade americana ainda não
estava preparada para esse tipo de ação, a disputa interna era muito grande e além de
tudo havia disputas européias paralelas. Existe, às vezes, uma certa ingenuidade, as
pessoas dizem “olha, a ordem mundial não funcionou em 1918 porque os Estados
Unidos foram irresponsáveis e saíram da Liga das Nações”. Esta é uma parte da história,
mas de fato a partir do momento que se está numa transição hegemônica e o maior
poder desiste de participar, ele volta àquela posição de isolamento, obviamente o
sistema vai sofrer uma fase de instabilidade, que aconteceu. Então entramos, 1929, como
eu mencionei grande depressão, 1930 ascensão do nazi-fascismo estourando, em 1939,
na Segunda Guerra Mundial que só acaba em 1945. Os Estados Unidos entram na
Guerra, novamente, atrasados, em 1941, mas com uma visão bastante específica do que
querem a partir do Roosevelt, uma visão multilateral, uma visão de construção da
ordem. Assim, concluo a primeira fase do estudo – O Padrão Histórico, composto por
todas as tradições apresentadas.
Entramos no que chamo de Padrão Contemporâneo I, que é o padrão da Guerra
Fria. Nós vamos ter a ascensão hegemônica e o nascimento do primeiro século
americano. A Guerra Fria vai de 1947 a 1989 e entre 1945 e 1947 os Estados Unidos,
internamente, fazem aquilo que o Wilson não fez, constroem um consenso de política
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externa, a partir de uma visão de mundo do que vão fazer e de quem são seus amigos e
inimigos no sistema internacional.
Começamos, especificamente, com a tradição da construção da ordem, que é a
tradição wilsoniana, mas a idéia é que os Estados Unidos para estabilizar o sistema
precisam, de fato, participar ativamente do sistema. Na verdade, essa idéia não começa
em 1947, ela já vem ao longo do conflito da Segunda Guerra Mundial (somando-se ao
sistema americano e a esfera regional). Lembrem-se, entre 1944 e 1945 as potências
aliadas, incluindo a União Soviética, já se reuniam em várias conferências para construir
a ordem do pós-guerra, então esse processo de construção de ordem antecede à própria
Guerra Fria, só que a visão do Roosevelt era uma visão menos engajada, menos belicista
do que a visão de Truman, e quando Truman entra, em 1945, com a morte do FDR, há
uma nova visão para o papel dos Estados Unidos, e os Estados Unidos começam,
realmente, a construir a ordem ativamente.
A idéia da hegemonia americana como hegemonia liberal, é, na verdade, não
apenas idéia, mas a realidade da hegemonia americana fundada neste momento, é uma
hegemonia que, obviamente, se sustenta na força, mas que se sustenta também no poder
das instituições e nos princípios. Para quem conhece aquela terminologia do Nye Jr. é a
combinação do hard e do soft power, então aqui temos, realmente, o domínio, mas um
domínio benigno, um domínio cooperativo, logicamente, existe uma distinção de poder,
existe o comando, mas não é um comando opressivo, não é um comando que afeta o
adversário ou afeta o aliado, é um comando que coopera. O império benigno, império
da liberdade.
Em 1947 assistimos ao nascimento da Doutrina Truman, que é a doutrina da
contenção, a idéia de que há no mundo dois inimigos, na verdade a União Soviética e o
comunismo estão juntos, a União Soviética é comunista, então qual é a tarefa da política
externa americana? Combater o inimigo. São modelos incompatíveis e o comunismo tem
que ser combatido a todo o custo, então à construção da ordem se junta a idéia de
construir a democracia e a liberdade, e também a idéia de contenção do inimigo.
Também importante, e que se reflete até no Samuel Huntington, é a questão do outro,
mais do que a contenção, a contenção também foi definidora da identidade americana
por 42 anos, nós somos o que eles não são, e a União Soviética também! O que eram os
americanos? O americano era aquilo que o soviético não era. Aqui já se entra numa
discussão meio sociológica, eu e o outro, mas a busca do outro, a identificação do
inimigo ajuda na definição do eu. Hoje, com o final da Guerra Fria existe, de certa
maneira, uma busca do outro, uma busca de quem será parte do consenso e quem será
elemento de combate. Já passamos pelo Japão, já passamos pela China, já passamos pela
Al-Qaeda, já passamos por Saddam Hussein, já passamos pelo choque, vamos ver até
onde vamos passar, se bem que hoje ainda estamos no choque, no Samuel Huntington.
Encerrada a Guerra Fria com a vitória do modelo americano, há uma necessidade
de repensar a estratégia. A estratégia foi bem sucedida, a ordem em que vivemos hoje é
a ordem construída em 1945, ONU, OMC, que são produto desta realidade construída
desde o final da Segunda Guerra Mundial, só que a política de contenção não existe
mais, porque o inimigo não existe mais. Então, o que os Estados Unidos, depois de 42
10
anos, farão? Entra-se no Padrão Contemporâneo II, o pós-Guerra Fria. Mantém-se a
idéia da construção da ordem, do sistema americano e da esfera regional, mas inúmeros
questionamentos reais para exercício da liderança, da hegemonia, são colocados. Esses
questionamentos são naturais, por exemplo, durante 42 anos uma estratégia funcionou,
de repente a sua estratégia foi bem sucedida, por um lado ótimo, parabéns, sucesso, mas
por outro o que fazer? Qual é o próximo caminho? Dois debates se colocaram entre 1989
e 1998: o debate declinismo/renovacionismo; e isolacionismo/internacionalismo; então
governo George Bush pai e depois governo Clinton. O resultado foi à vitória do debate
internacionalista e do renovacionista, mas havia um questionamento dos recursos. O
debate declinismo/renovacionismo era o seguinte: será que os Estados Unidos depois
de encerrada a Guerra Fria terão vontade e recursos para continuar dominando o
sistema? Alguns como Paul Kennedy diziam não, não existe mais isso, todas as
potências decaem e agora chegou à hora americana, e o mundo caminhará para uma
multipolaridade. Por outro lado havia os renovacionistas dizendo: realmente, nós
tivemos uma mobilização para a guerra, embora fria a Guerra Fria foi uma guerra, então
houve custos sociais, econômicos, políticos e militares para os Estados Unidos, que
trouxeram problemas para a sua sociedade, déficit, problemas de relacionamento no
sistema internacional, excesso de compromissos. Mas para isso basta reajustar a agenda,
os Estados Unidos continuam fortes e têm vontade de líder, e precisam liderar para,
principalmente, continuarem mantendo sua expans ão. É importante lembrar que não
existiam desafiadores, então se a hegemonia tinha problemas, ela tinha uma coisa muito
importante, tinha tempo para se recuperar. A União Soviética não existia mais, os
aliados eram aliados, Japão, Europa Ocidental, a China não representava uma ameaça
real, então havia tempo, e esse tempo, realmente, o Clinton comprou e ganhou. Quando
o Clinton disputou a eleição com o Bush, o Bush estava saindo da guerra Golfo com 90%
de popularidade, e o que aconteceu, ele ganhou a eleição? Não! Por que? Porque a
economia americana ia mal, porque a sociedade americana não se sentia representada
pelo seu presidente. Essa eleição George Bush/Clinton foi vencida pelos conservadores,
Bush e Ross Perot, que passou à história como uma figura folclórica, mas tirou a eleição
do Bush aqui, como Ralph Nader tirou a eleição do Gore em 2000. Então, juntando os
votos do Bush e do Perot consegue-se um número superior aos votos do Clinton, mas
como o sistema tem aquele funcionamento específico o Clinton acabou ganhando.
Por que os conservadores estavam na frente? Porque havia um discurso do Perot
um discurso muito populista, muito limitado, que era um discurso isolacionista, mas
não naquela tradição que eu mencionei anteriormente, a tradição de falar bobagem
mesmo do tipo “olha, o NAFTA vai tirar emprego dos americanos e levar para os
mexicanos, o NAFTA é uma coisa ruim, o mundo é uma coisa ruim para os Estados
Unidos”. Isso teve, na época, uma certa receptividade, então este foi o debate
isolacionista que trazia o peso do declinismo. O próprio Clinton ganhou a eleição com
aquele jargão, que vocês lembram “It’s the economy stupid”, ele saiu da presidência como
um grande vencedor da hegemonia americana, aquele que recuperou a hegemonia para
o século XXI, mas no fundo ele ganhou com uma plataforma doméstica, com a questão
da economia. Mesmo assim, existia uma outra corrente internacionalista que dizia: a
11
tarefa se cumpriu em certa medida, mas não podemos sair do mundo, os Estados
Unidos precisam do mundo e o mundo precisa dos Estados Unidos. Então, novamente,
teremos a vitória da renovação e do internacionalismo.
Com a reemergência da hegemonia e sua recuperação renovada, entramos em
outro debate e onde me estenderei um pouco mais, o debate de como exercer o
internacionalismo, o internacionalismo com Clinton e o internacionalismo hoje, com
Bush. A hegemonia cresceu, estamos diante do segundo século americano. Quem
prevalece? As pombas ou os falcões, os doves ou os hawks?
Clinton. Qual era o exercício da hegemonia do Clinton? Era um exercício
multilateral, benigno, de baixo perfil e já dividindo tarefas, por que? Porque custa caro
liderar politicamente, moralmente e economicamente, então é uma hegemonia que
coopera, mas que também divide, então engagement e enlargement, são uma parceria para
liderança, disseminar democracia e liberdade, mas ao mesmo tempo cooperar
preparando a transição. É uma transição, vamos administrá-la do melhor jeito que
pudermos. Um exemplo que eu sempre dou é o Tratado de Kioto. Quando Bush subiu
ao poder falou “eu não vou assinar Kioto”, abriu a gaveta e jogou lá. O Clinton falou “eu
vou assinar Kioto”. Pergunto a vocês: em 8 anos ele assinou alguma coisa, efetivamente?
Não! É o exercício da liderança que difere, e outra coisa, dentro dos Estados Unidos não
é só a presidência faz política externa, mas sim a presidência e o Congresso, então há
sempre uma negociação, um balanço, um equilíbrio, então não é o George Bush só que
manda, ele manda, mas existe o Congresso, se a guerra não fosse autorizada pelo
Congresso o que teria acontecido, será que ela estaria existindo hoje? E o fast track? O
Clinton nunca conseguiu o fast track, o Bush conseguiu. Então é uma dupla, presidência
e Congresso americano fazem política externa juntos, só que existe um certo mito de que
o presidente americano manda tudo e pode tudo, é um pouco diferente.
De qualquer forma, a questão era a maneira como o poder era exercido. Neste
momento o poder era exercido via o canal do soft power, só que desde o início da
presidência Bush há uma outra tendência dentro da presidência americana, dentro do
pensamento estratégico americano, que é uma tendência mais agressiva, uma tendência,
realmente, unilateral. Onde o exercício de poder via cooperação não tem real validade.
Então prevalece esta corrente que hoje é, de fato, representada pelo Rumsfeld, Cheney,
pela Rice, e que já estava funcionando desde 1992. Houve um intervalo durante o
governo Clinton, mas agora volta com uma intensa visão unilateral, que é o exercício
pleno, agressivo e total da hegemonia, superioridade militar convencional e avançada,
segundo plano dos temas de poder suave.
Então veja, experimento americano, não é que não se coloca essas tradições, mas a
maneira como são colocadas é diferente, e vejo um problema nisso. No fundo, talvez,
isso pode levar a um desmerecimento das tradições anteriores, porque o domínio
americano sempre foi baseado no convencimento e na força, não só na força, e para
convencer você precisa de um trabalho bastante elaborado que às vezes não é feito hoje.
Então hoje, o que predomina é essa visão unilateral porque os democratas perderam a
eleição em 2000. Nem vamos entrar nessa eleição, mas a visão que predomina é a visão
unilateral. Essa visão unilateral foi sistematizada na famosa Doutrina Bush, que é a
12
estratégia de segurança nacional de 2002, lançada através do National Security Council.
Clinton também lançou uma doutrina de segurança, todas as presidências lançam
doutrinas de segurança, mas por que todo mundo prestou mais atenção nessa? Onze de
setembro e o comportamento da política americana. Erro comum: atribuir ao 11 de
setembro a doutrina Bush. Não. 11 de setembro, muito mencionado ao longo da
doutrina, não foi motivo único, as motivações vem desde a era Reagan, desde os falcões
de Reagan, império do mal, eixo do mal. Então, o que temos aqui é que 11 de setembro,
obviamente, acelerou o processo porque houve uma nova percepção na América, uma
percepção inédita, que é a percepção da vulnerabilidade, então a maior potência do
mundo, a hegemonia, se viu vulnerável, se viu atacada por quatro aviões, inédito isso. O
que, realmente, serviu como válvula de escape para aquela estratégia.
O grande problema que vejo: é uma estratégia preventiva, ela não é uma estratégia
de contenção, não é uma estratégia de dissuasão, age-se antes para prevenir perigos,
mas como julgar perigos, os perigos hoje são tão voláteis! Se falava num ataque externo,
o ataque veio de dentro. E isso não responde, pelo contrário gera uma situação de maior
instabilidade.
Na doutrina Bush a idéia é preventive action, que sugere antecipação dos perigos e
das intervenções preventivas, uma reavaliação da doutrina nuclear, também muito
preocupante, pois possibilita o uso de armas nucleares. A potência que cria não pode se
comportar como os outros países normais, a hegemonia tem uma condição superior, não
estou defendendo nem atacando os Estados Unidos, o que quero mostrar é que o país
que comanda tem uma responsabilidade maior, então ele não pode dizer, como a Coréia
do Norte, “eu vou usar uma arma nuclear”, deve haver uma autocontenção, porque
existe muito poder e poder mal usado, mal administrado é mais perigoso do que às
vezes o próprio inimigo. Então, essa questão está na doutrina Bush, superioridade
militar incondicional, ameaças tradicionais e transnacionais, a periferia dos estados
terroristas, autoritários e as ADMs, complicam o núcleo de paz, pois propõe que haja
ação antes de um ataque.
Outras prioridades, uma inédita, a segurança doméstica. Muito raramente isso
aparecia, realmente, só veio a aparecer pós 11 de setembro; alianças e coalizões flexíveis,
economia e ajuda humanitária. Estamos vivendo hoje a primeira guerra preventiva, que
é a guerra do Iraque. Essa guerra foi feita à revelia das instituições internacionais,
embora se use a justificativa americana de que a adoção da resolução 1441, da ONU, já
validaria o ataque. Como se costuma dizer, tecnicidade, legalismos, não se pode ficar
preso a isso. O papel de liderança deve ser exercido com parcimônia, realmente é uma
grande questão. Quais são então as questões hoje? Olhando a política externa hoje, em
perspectiva, como estamos? Será que estamos observando uma quebra dos padrões
tradicionais da política externa americana, aqueles que nasceram no século XVIII por
causa de Bush e seus falcões? Como será o futuro das OIGs daqui em diante? O pessoal
gosta de falar “e a ONU, como é que a ONU sai disso?”, para mim, ou ela sai mais fraca,
ou mais forte, a famosa resposta do muro. Acho que uma coisa é uma coisa e outra coisa
é outra coisa, como dizia já o grande filósofo grego. Hoje temos muitas perguntas e
poucas respostas. Será que nós temos ensaios de coalizões anti-hegemônicas? Temos,
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Rússia, França, China, Alemanha, parceiros, de repente, vão se converter em inimigos
americanos? Como fazer? Isso acelera a multipolaridade? Isso eu posso responder: acho
que acelera. Então, acho que os próprios americanos estão colocando em risco o seu
império. Império, novamente, não é uma conotação negativa, é uma conotação que dá
idéia do domínio. Aí as minhas perguntas, será que os Estados Unidos hoje refutam o
seu papel de império da liberdade por sua postura agressiva? Será que vale a pena
construir a ordem pela força? Será que hoje não assistimos, na verdade, novos caminhos,
mas, principalmente, perigosos precedentes sendo abertos, perigosos precedentes que
podem levar a duas tendências contraditórias, por um lado o aumento e a superextensão
do poder imperial americano, mas por outro, uma maior instabilidade mundial e
contestação do poder americano? A superextensão do império pode causar um aumento
dos bárbaros, dentro e fora dos Estados Unidos. Será que não estamos vivendo o risco
de uma nova era de violência? E as crises econômicas, e as crises políticas? Será que se
resolve a miséria com uma guerra, será que se resolve a falta de democracia com uma
guerra? Nem sempre! Então essas são as questões. Aí, só para fechar, como será que isso
vai ficar para o ano que vem? Como nos Estados Unidos governam presidente e
Congresso, e o ano que vem, como vai ser? Temos eleições presidenciais, governos,
senado, câmara, deputados. Como é que fica? Será que nós vamos ter o auge do
conservadorismo ou um renascimento democrata? E se houver um renascimento
democrata isso se mantém ou isso se quebra? Pode ser que daqui a dois anos a gente
esteja falando numa nova doutrina. O sonho do democrata hoje é Clinton 2004, porque
seria o indicado para dar um novo caminho, é uma pessoa carismática, e que talvez
conseguisse colocar o país no rumo. Será que os resultados da guerra influirão na
eleição? Não sabemos! Então, hoje, vivemos um momento que considero preocupante,
mas não vamos fazer juízo de valor. Uma das minhas grandes preocupações nesse
momento é que você teve a questão do antiamericanismo sendo colocada como um próSaddam Hussein. Saddam Hussein nunca foi santo, então, de repente, se tem que
questionar qual o valor com que estamos trabalhando! Então, temos que pensar isso e
tentar observar a história americana e pensar que, de repente, isso é uma fase que pode
mudar. Pode ser que não mude e se não mudar aí eu acho que caminharemos para um
século XXI cada vez menos americano, passaremos a ter uma confrontação maior e uma
instabilidade maior. Não significa que decaindo os Estados Unidos uma nova potência
surja, pode surgir a instabilidade no vácuo, então não sabemos se o século XXI
terminará americano. Esperemos que as coisas possam ser mais otimistas daqui alguns
anos. Vou encerrando por aqui, fiz uma exposição um pouquinho maior, mas agradeço
a atenção de vocês e estou a disposição para perguntas para retomar algum tema que
talvez tenha ficado muito rápido. Agradeço.
14
Debate
Pergunta
Boa noite professora. Em primeiro lugar cumprimentos pela sua exposição. Nesse
momento em que se procura uma bola de cristal para verificar o que vai acontecer nesse
século XXI, a senhora foi muito clara na evolução da política externa americana e
mostra, claramente, que ainda é difícil definir qual será o futuro dos Estados Unidos,
qual será o futuro do mundo.
Há um ponto que a senhora mencionou na sua exposição, muito interessante, que é
o desmerecimento dos valores que os Estados Unidos exportam, portanto, democracia e
liberdade. Efetivamente é difícil, hoje, aceitar-se que os Estados Unidos são, realmente,
paladinos da liberdade e da democracia pela ação deles no Iraque. Passaram sobre o
Conselho de Segurança das Nações Unidas, não esperaram o término da descoberta ou
não das armas de destruição em massa feita pelos peritos das Nações Unidas, enfim, foi
uma tarefa incompleta e que levou uma grande inquietação em todos os países. Estamos
vendo, diariamente, acompanhando na televisão, o que está ocorrendo. Será que a
hegemonia continuará em 2003, 2004?
Há duas questões muito importantes aí: será que seguirá o presidente Bush o
destino do seu antecessor, conservador, que perdeu eleições apesar de ter ganho a
guerra? Isso é uma hipótese. Segunda hipótese: os Estados Unidos não têm hoje
adversário no campo da tecnologia e nessa extraordinária indústria militar que eles
possuem, de forma que, aparentemente, eles podem manter, realmente, a hegemonia
por algum tempo ainda. A minha pergunta é a seguinte: qual é a sua impressão sobre o
aspecto moral desta situação dos Estados Unidos, defensores da liberdade e da
democracia, mas que não as pratica porque impõem a sua vontade?
Cristina Soreanu Pecequilo
Não gosto muito de fazer julgamentos morais. Acho que quando se fala em política
existem mais interesses e aí retomamos o Maquiavel: política não é bem ou mal, é aquela
questão do meio e do fim. O que me preocupa é que os Estados Unidos sempre
trabalharam muito com os valores e eles próprios criaram o sistema a partir do qual
exerciam seu poder, e desrespeitaram esse sistema, então, de repente, você tem o mesmo
comportamento na Liga das Nações. Hoje me preocupa o estado da atual política
americana, não somente o mundo desvaloriza o papel que os Estados Unidos tiveram ao
longo da história no combate ao autoritarismo de Hitler, às ditaduras, mas o próprio
americano, o próprio país desvaloriza sua tradição histórica de ser o império da
liberdade. Logicamente não vamos ser ingênuos e dizer que isso nunca foi feito com
violência, isso nunca foi feito com imposição de valores, mas isso a Inglaterra já fazia,
Portugal e Espanha também já fizeram. Considero - às vezes, as pessoas não gostam
quando falamos isso –que é uma formação normal do mundo: existe o dominante e
existe o dominado, existe o padrão. O que me preocupa é a maneira como o padrão é
colocado, existe um desmerecimento da tradição histórica dos Estados Unidos dentro e
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fora, e a partir daí se aquele que criou as regras não respeita mais as regras não vai
existir mais limite. A Coréia do Norte é um exemplo que gosto de usar. A Coréia do
Norte pega a doutrina Bush, do ataque preventivo, e instrumentaliza isso em seu favor
de uma maneira perfeita, que é exatamente o mesmo argumento. Então você está dando
oportunidade para um estado autoritário usar isso, e outra coisa também, deve haver o
respeito, existe o valor ocidental e existe o valor da outra sociedade, então não podemos
querer a universalização das idéias, deve haver a diferença.
Pergunta
Queria fazer três comentários e pegar a sua impressão relativa a dois, talvez. O
primeiro é um comentário bastante sucinto e rápido, em relação ao próprio título do
livro, de que a política externa americana seria caracterizada por uma continuidade ou
mudança e você sustenta a tese de que seria um misto dos dois. Ultimamente, até
corroborando a avaliação do embaixador, nós estaríamos talvez em mais uma
expectativa de que estaria havendo uma contradição, que não implica nem mudança e
nem continuidade, porque mudança e continuidade implica, digamos, um projeto
histórico, um projeto não meramente conjuntural, mas que está coadunado com o
sistema no qual o país pretende operar. Os exemplos são múltiplos, não dá para
alinhavar todos os exemplos de contradições recentes da política externa americana, não
só em relação a Bush/Clinton, mas quanto ao próprio governo Bush. Mencionando
apenas dois para ilustrar, por exemplo, o fato de ser um país que prega a democracia,
que tem a democracia como valor basilar da sua constituição política/jurídica, mas por
outro lado, por exemplo, tem uma grande relutância e hesitação em condenar a tentativa
de golpe na Venezuela, por exemplo, ou no plano econômico a idéia é de apoiar o
próprio governo Bush em determinado momento, apoiar relutantemente a lei de
falências para países em desenvolvimento, após isso ter sido avançado e consolidado
retira-se a proposta de maneira até hoje inexplicável, não se sabe como andou. O
segundo seria relativo à própria inserção do atual governo Bush, no chamado Padrão III
de Desenvolvimento da política externa americana. Eu contestaria isso pela seguinte
maneira: o que parece mais, quer dizer, que essa avaliação do Padrão pós 1989 seria
uma avaliação meramente cronológica, enquanto acho que há uma questão mais
profunda, até de ordem filosófica nesse governo Bush agora, que seria, digamos, um
próprio retrocesso ao Padrão II, a um padrão da era confrontacionista, da era bipolar.
Nesse ponto o governo Bush pai é fundamentalmente diferente do governo Bush filho,
na medida em que o governo Bush pai procurou, renitentemente, a legitimação das suas
ações externas, ao passo que o governo Bush agiu em sentido contrário, tal como
ocorria, por exemplo, durante os anos 1980 do governo Reagan, nas ações militares,
intervenções justificadas e ilegais em vários recantos do mundo. O que parece é que
nesse caso haveria sim uma certa nostalgia confrontacionista dos Estados Unidos em
relação ao período da Guerra Fria, e que não se consubstancia, digamos, numa nova
etapa, mas sim uma tentativa ou um ímpeto inconsciente de retrocesso de buscar um
novo inimigo, seria talvez o fundamentalismo islâmico em substituição à União
16
Soviética, quando o padrão das relações internacionais é substancialmente distinto
depois de 1989. O último é quanto à própria questão, isso sim acho fundamental deixar
claro, a questão do caráter ilegal dessa intervenção dos Estados Unidos no Iraque, à
sombra e acima de qualquer dúvida e de qualquer suspeita, a resolução 1441, embora se
mencionou que talvez os tecnicismos, legalismos, possam ser um pouco decepcionantes
diante da crueza do quadro, mas existe uma seção 12, dessa resolução 1441 que indica
que a ação armada dos Estados Unidos teria que, claramente, ser submetida a um
conselho de segurança após um parecer inequívoco da Agência Nacional de Energia
Atômica, indicando que o Iraque possuía essas armas. Uma impressão geral minha é
que realmente há uma dificuldade grande de inserção do atual governo Bush em
qualquer padrão histórico da política externa americana, que os Estados Unidos, na
verdade, são um país que aprendemos a admirar, aprendemos a respeitar, inclusive o
Brasil deve todas as suas tradições republicanas e históricas aos Estados Unidos, o
próprio sistema multilateral deve muito isso aos Estados Unidos e em grande medida
nós estamos vendo que a despeito de alguns hiatos na história dos Estados Unidos,
talvez o machartismo, talvez um pouco o período do governo Reagan, mas ao que
parece agora estar havendo, realmente, uma ruptura, um padrão, a altura de um padrão
determinado de legitimação mínima da política externa americana. Não sei se você
concorda com essa avaliação.
Cristina Soreanu Pecequilo
Vou começar por esse último ponto. Acho que estamos muito perto do objeto para
fazer uma afirmação, ainda, se vai ser quebra ou não da tradição do terceiro nível, por
isso que coloquei a possibilidade de daqui a um ano minha análise ser diferente e eu
afirmar: “existiu uma quebra com relação à guerra do Iraque”, mas por enquanto acho
que pode estar havendo uma quebra, mas não vou fazer a hipótese de que existe a
quebra. Existe um padrão diferente, um padrão unilateral, mas é um padrão clássico da
política externa americana, só que com um nível de agressividade que até hoje nós
nunca tínhamos visto, e um nível de trabalhar sem legalidade ou legitimidade.
Preocupa-me, ainda estarmos muito perto do objeto, é uma análise, eu não tenho nada
contra análise de conjuntura. Se vocês pegam meus artigos no site do Nerint, no site do
Relnet, eu trabalho com isso, temos que lançar perguntas, então estou lançando a
pergunta: será que o Bush vai representar ou não uma quebra?
A 1441 é bastante controversa, concordo com você, existe esse elemento, mas o
elemento que está sendo jogado pela diplomacia americana é a questão das
conseqüências graves, é um pouco aquela idéia de como ser um bom político realista,
então, dependendo da onde você está, você vai justificar sua ação da maneira que você
consegue, dentro daquela lei. Para o realista a lei é apenas um instrumento, então se a
Europa vai usar isso de um jeito, os Estados Unidos vão usar de outro. Na verdade acho
que o processo de negociação deixou isso em aberto e os próprios Estados Unidos ao
tirarem a 1441 já acharam que o processo diplomático estava encerrado, então houve
também uma superestimação na 1441, mas ela ainda é usada para justificar a guerra.
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Isso também é algo que a própria ONU vai ter que repensar, não podemos colocar
resoluções com válvulas de escape, ou você diz sim ou você diz não, não se pode dizer
sim e não ao mesmo tempo. É algo que às vezes eu costumo falar sobre a medida
provisória no Brasil. No Brasil você tem uma constituição que diz “legislativo faz as leis
e ajuda o executivo”, só que o executivo pode fazer lei com a medida provisória. É uma
situação ambígua e dúbia. Acho que a 1441 é ambígua e pode ser manipulada por todos,
por aqueles que querem a guerra e por aqueles que não querem a guerra.
Com relação à questão dos falcões isso, realmente, devido à velocidade da
exposição não deu para entrar em detalhes, e foi bom você ter levantado, porque a
maioria dos representantes da antiga presidência Bush, os que efetivamente estavam no
governo, James Baker, Lawrence Eagleburger, têm uma posição diferente da atual
presidência, só que temos que trabalhar também com a visão desses conservadores
vindos do Reagan. Eu cheguei a citar a comparação do império do mal com o eixo do
mal, existem indicações que às vezes são até os mesmos speechwriters da época do
Reagan que estão trabalhando agora, e existe além de tudo essa necessidade do outro,
Samuel Huntington já trabalhou com essa idéia do outro no choque, e existe essa busca
do conservador. Na verdade, eu faria mais referência específica aquele documento do
Pentágono de 1992, sobre a questão da hegemonia incondicional. Aqui também não vejo
quebra, porque se você pega toda a estratégia do engagement e do enlargement do
Clinton, existe uma parte clara no qual ele diz que os Estados Unidos não permitirão o
surgimento de qualquer hegemonia regional amiga ou hostil em qualquer região. Isso
está em todas as estratégias nacionais, não todas, estou exagerando, mas se puxarem as
estratégias nacionais, existe essa colocação. Voltando para o começo da pergunta, o que
a gente vai ter que ver daqui a alguns anos vai ser o seguinte, o que mudou mais, o
conteúdo ou mudou a atitude? Eu acho que o que está mudando mais, por enquanto, é a
atitude, o conteúdo não mudou tanto. O problema, a grande mudança que vejo, é essa
idéia da prevenção, os Estados Unidos nunca e em nenhum momento se dispuseram a
iniciar uma guerra em nome de qualquer outra coisa, em nome de qualquer coisa, na
verdade, e agora eles iniciaram uma guerra sobre uma justificativa que não convenceu a
comunidade internacional e, de repente, nem convenceu a eles mesmos, então isso é
algo que temos que repensar. Mas a questão do outro eu acho fundamental, como você
falou, é uma questão filosófica, até mencionei também sociológica. Como havia
mencionado, nós nos definimos muito mais pelo outro do que pelo que somos, então
nós somos o que o outro não é e isso falta à política externa americana desde 1989. Dessa
forma, acho que ainda vivemos a transição do pós-Guerra Fria, e devemos analisar se
existe essa mudança grave que vejo na prevenção. Mas no fundo, no fundo, é uma
grande continuidade com uma mudança muito grave de atitude e isso realmente me
preocupa, mas pode ser que daqui a cinco anos esteja falando alguma coisa diferente.
Pergunta
Sobre o que a senhora está comentando agora, a respeito da identificação do outro.
Uma indagação que todos vêm fazendo, essa seria a minha primeira indagação, estamos
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diante apenas da primeira ação preventiva, quer dizer, o primeiro conflito, ou outros
virão por aí? Há por trás de toda a atual estratégia política externa americana um
objetivo claro de um, digamos, um apaziguamento da região? A segunda indagação é a
respeito da relação entre a situação da economia americana com as formulações de
política externa. Foi comentado pela senhora que durante o governo Bush, como todos
sabemos, o Bush pai não pode ser eleito tendo em consideração todo o quadro recessivo
da economia americana, e claro que é muito difícil trabalhar hipoteticamente, mas
colocando a questão só para estabelecer um sentido do que quero perguntar: se o
governo Clinton não tivesse ido tão bem na economia será que teria tido a mesma
atitude não beligerante, digamos assim, que teve Bush pai, que tem agora Bush filho?
Então queria comentários seus a respeito dessa relação na formulação da política externa
americana entre o quadro econômico doméstico, e o que isso influencia a política
externa dos Estados Unidos, como isso define a política externa americana? Finalmente,
a terceira indagação, a respeito da mudança que se operou no discurso, agora ao longo
da guerra, em relação aos falcões, como são chamados. Foi colocado desde o início,
muito enfatizado, toda a discussão prévia ao conflito girou em torno da existência ou
das armas de destruição em massa, e agora o que vem se enxergando gradualmente no
discurso é uma ênfase nos valores democráticos, nos valores de liberdade. Por que essa
mudança se operou, essa estratégia de discurso, essa mudança na estratégia de
discurso? Ela já era deliberada ou foi uma adaptação forçada pelas contingências?
Cristina Soreanu Pecequilo
Obrigada pelas perguntas. A questão da guerra preventiva considero como o
grande risco, de repente poderá haver novos países sendo objeto de guerra, uma vez
que foi aberto o precedente da prevenção para qualquer ameaça que se coloque aos
Estados Unidos. As declarações do Rumsfeld sobre o Irã e a Síria causam bastante
preocupação, causa bastante preocupação a questão da Coréia do Norte, então o
precedente está aberto e pode acontecer. Só gostaria de acrescentar uma outra coisa que
acabamos não conversando. Falei bastante rápido de que hoje, os perigos não são tanto
os Estados nacionais, eles são fenômenos transnacionais voláteis, só que as guerras
ainda estão sendo feitas Estado/Estado, dessa maneira temos que questionar o seguinte:
será que essa guerra preventiva contra um Estado é efetiva para domar a instabilidade
do mundo, que efetivamente ameaça os Estados Unidos e o restante desse sistema
internacional? Eu diria que não, porque na verdade você não está conseguindo atingir o
objeto. Com relação ao objetivo da guerra, obviamente ninguém vai ser ingênuo e falar
que o petróleo não está envolvido, e já pularia para a sua terceira questão, a questão
energética. A questão energéti ca está envolvida, a questão da construção da ordem no
Oriente Médio está envolvida também, a dominação da Eurásia, você já tem a campanha
militar no Afeganistão, de repente não falamos mais de Afeganistão, estamos falando
apenas de Saddam Hussein, mas existe uma presença militar americana no Afeganistão,
então existe interesse, isso é geopolítica clássica. Desde séculos atrás se dizia “o país que
dominar a Eurásia vai dominar uma quantidade de recursos tão significativa que,
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efetivamente, ninguém vai poder contestá-lo no sistema”. Acho que existe esse interesse
factual, o interesse nessa questão e, obviamente, existe essa questão da liberdade, existe
a questão das ADMs, então é uma campanha multidimensional.
Por que houve essa alteração no discurso? Primeiro, as duas coisas caminhavam
juntas no discurso, só que quando estava sendo negociado na ONU o que aparecia mais
era, realmente, a questão das ADMs porque era isso que estava sendo discutido com
relação à resolução 1441, mas desde o primeiro discurso, na semana que começou a
guerra, desde o discurso que o Bush fez na segunda-feira até o discurso da guerra, a
questão da liberação do Iraque se colocou, tanto que a operação se chama Operação
Iraque Freedom, Liberdade do Iraque. Então, estavam caminhando juntos, logicamente
o discurso varia ao longo do tempo, mas os dois elementos já estavam presentes e,
mesmo assim, os motivos da guerra são multidimensionais. Passando para a sua
segunda questão, a questão econômica. Existem algumas hipóteses de que a guerra é
uma guerra para recuperar a economia. Todas as guerras, na verdade, para economias
que estariam em situação de recessão seriam válvulas de escape para recuperação. Não
concordo muito com isso, porque acho que o custo da guerra é muito elevado para, de
repente, se tomar a guerra como um instrumento de recuperação econômica, mas a
questão da economia e política externa é profunda, porque a economia é uma questão
doméstica, e como conversamos, política externa nos Estados Unidos é presidência e
congresso, e a sociedade, quando que uma sociedade se mobiliza? Não só nos Estados
Unidos, mas no Brasil também, a sociedade se mobiliza quando ela tem um interesse
específico, a massa, a opinião pública geral, não pensa política externa 24 horas por dia,
nós até pensamos porque trabalhamos com isso, somos analistas, mas a massa não é, a
massa pensa “eu tenho emprego?”, “Como está a minha vida hoje?”, “O sistema
previdenciário, a aposentadoria?”, então existe um risco de lidar-se muito com uma
questão externa e pouco com uma questão interna. O George Bush na campanha
também foi acusado, não diretamente pelo Clinton, mas de ser o presidente da política
externa, então ele era o foreign policy president, que ele não ligava para o povo americano.
Logicamente um exagero, mas em campanha eleitoral são essas as coisas manipuladas
pelos marqueteiros. Preocupa-me o déficit gerado hoje, e me preocupa também que, de
repente, estamos vivendo uma nova era Reagan. Então, existe um aumento de gastos,
um corte de impostos muito grande e uma necessidade de repensar. O Clinton deixou o
orçamento equilibrado, agora o orçamento já está com déficit de novo, então essa
questão certamente será colocada durante as eleições no próximo ano, mas um dos
grandes problemas é que hoje a oposição está desorganizada, por isso que eu brinquei e
falei “Clinton 2004”, porque os democratas hoje não têm um projeto real de política
externa, não têm um projeto de política interna que está ressoando, hoje a guerra é o
grande tema. Estamos em abril de 2003, vamos aguardar, mas a economia com certeza
influencia muito na política externa porque ela influencia a política doméstica que nos
Estados Unidos influencia a política externa.
Pergunta
20
Vou aproveitar para fazer um comentário ou talvez alguns comentários, pelo
menos alguns pontos que me chamaram atenção no livro. Em algum momento você fala
da durabilidade de alguns objetivos e fala da dualidade de orientação da política
externa americana, entre realista e idealista. Eu tenho, de certa forma, uma visão
própria, e queria ver o que você acha. Na verdade acho que o que existe de durabilidade
é a própria dualidade, e nesse sentido a política americana tem de comum entre hoje e o
passado um pragmatismo bastante particular, ou seja, a capacidade de identificar
situações específicas, interesses específicos e agir apesar de conceitos e princípios que
conhecemos, a democracia, direitos humanos, esses princípios que são universais, a
natureza é universal, portanto, o apelo deveria também ser universal e tende a ser.
Apesar da defesa dos princípios o que nós vemos é que existe um dualismo com relação
a todos os princípios, na política externa, eu sempre lembro Jeanne Kirkpatrick, que foi
também secretária de estados nos anos 1980, que dizia que a questão não é se o governo
é uma ditadura ou não, a questão é se é uma ditadura amiga aos interesses norteamericanos. Ela falou isso claramente e isso é uma doutrina que podemos identificar na
prática, não é um segredo, então acho que é um pouco simplista dizer que existe, de
fato, uma tendência, talvez uma durabilidade de alguns objetivos. Não vejo que seja um
objetivo, mas durabilidade no discurso talvez, agora, uma extrema e enorme capacidade
de adaptar esse discurso e esses princípios à necessidade pontual do momento que eles
têm, e para não dizer multilateralismo, unilateralismo, por exemplo, quando se vê mais
claramente a posição americana em vários setores, sobretudo no setor comercial, e esse é
o meu segundo comentário. Você comentou sobre como a ALCA, de certa forma, reflete
muito do que a doutrina Monroe já tinha como princípio, como objetivo, e também no
livro você fala da Conferência Pan-americana de 1889, que teve, de fato, um foco muito
comercial, ou seja, como se a doutrina fosse o aspecto político, ou seja, politicamente
dizer que as Américas seriam melhores americanas mesmo e não ter muito
envolvimento e intervenção européia e isso é, então, uma espécie de aprofundamento na
área econômica com a Conferência Pan-americana de 1889. E você diz que, de certa
forma, a ALCA representa um pouco disso, uma certa política da Doutrina Monroe. A
minha tendência é discordar porque vejo a questão comercial nos Estados Unidos, hoje
em dia, muito mais inserida num contexto do que regularmente, e um parêntese aqui,
política comercial é, de fato, um capítulo um pouco especial de política externa, mesmo
no caso dos que Estados Unidos têm uma dinâmica própria. Para explicar isso se deve
observar muito mais o que tem sido a política comercial americana com relação ao resto
do mundo. O que nós observamos é que em todo o período pós-guerra houve, de fato,
uma defesa do multilateralismo, ou seja, multilateralismo através do GATT, livre
comércio, mas isso enquanto fosse interessante para os interesses específicos comerciais
americanos, ou seja, enquanto se conseguia, dentro dos Estados Unidos ter apoio do
lado exportador para abrir outros mercados e com isso ter um comércio que seria
favorável ao interesse americano, então havia um apoio claro e ostensivo ao
multilateralismo. Hoje em dia, o que vemos, é que os mercados já se abriram, as
reformas já foram feitas, o consenso de Washington está sendo um pouco revistado,
reinterpretado, existe ainda alguma coisa evoluindo sobre isso, mas a verdade é que o
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interesse americano em abrir mercados de uma forma mu ltilateral não é o mesmo que
foi no passado, a prova disso é que não existe apoio dos setores exportadores dos
Estados Unidos, eles não estão apoiando, por exemplo, a Rodada de Doha, e esse é o
maior problema, os americanos não vão liderar essa briga e os europeus não vão fazer
nada, vão até achar ótimo que não haja um empenho americano e a coisa vai ficar solta.
Além disso, os americanos começaram a ver que, de fato, pode ser interessante um
método mais bilateral, mais regional, porque se você senta do outro lado da mesa dos
Estados Unidos para negociar seja lá o que for seu poder é, no mínimo, 20 vezes menor,
dependendo do país que você é. Isso você viu já na própria região, a questão do
NAFTA, o Canadá é um caso a parte, mas hoje em dia há acordo com a região do Chile,
enquanto Jordânia e Israel têm acordos antigos. Existe uma tendência de bilateralizar a
negociação, porque é muito mais fácil se conseguir o que quer sem ter que ceder naquilo
que não quer, e esse é o custo do multilateralismo, então nesse sentido acho que é um
caso um pouco à parte e não vejo que reflita os grandes princípios da doutrina,
considero esta uma questão importante.
Sobre valores é um paradoxo haver um país que defende tanto valores universais e
que na verdade acaba se dando tão mal nessa defesa, ou seja, que a coisa acabe
parecendo uma coisa um pouco maniqueísta, quer dizer, nós defendemos valores
universais só que esses valores têm que ser os nossos valores universais, então tudo é
muito cheio de contradições e paradoxos e esse é um problema. Finalmente a última
coisa é a sua opinião sobre a possibilidade de alternância de poder nos Estados Unidos.
Como você falou, temos mais perguntas do que respostas atualmente, mas eu tenho
uma certa confiança, que vai depender muito do povo americano, que está
surpreendendo. Acho que nessa guerra, é lógico que tivemos 11 de setembro para
redefinir uma série de coisas, uma série de receios norte-americanos, o povo não estava
acostumado com esse tipo de coisa, reagiu, e acredita no que esse governo fala, que é
uma coisa muito especial. Que possibilidade haveria talvez de uma alternância com base
numa interpretação de que a guerra, afinal de contas, não foi uma coisa tão válida, e no
contexto econômico, eu diria que o Bush filho estará pior do que o Bush pai esteve,
claramente não havia sequer uma recessão na época do Bush pai. O que houve foi uma
falta de marketing econômico, que na verdade esse governo é muito melhor talvez do
que o governo do pai. Mas o Bush filho conseguiu não deixar de lado os vários setores
dos quais ele precisa de apoio como o fundamentalismo cristão, ou vários setores do
partido republicano, ele fez esse trabalho, mas na área econômica, por exemplo, essa
reforma tributária, esse corte de impostos é tão tendencioso a favor dos mais ricos que
além de causar um problema político, alguém vai notar isso em algum momento, e
haverá um problema econômico porque não terá o efeito econômico necessário de tornar
a economia, novamente mais próspera, impositiva.
Cristina Soreanu Pecequilo
Vamos começar pelo fim. A questão das eleições, ainda está em aberto. Acho que a
possibilidade de alternância no poder é grande porque é uma tradição dos Estados
Unidos, mas como você mesmo disse, 11 de setembro alterou a percepção do americano
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sobre o seu próprio país, que é a questão da vulnerabilidade, então existe um elemento
novo em jogo e esse novo elemento pode vir a ser manipulado com mais facilidade do
que, de repente, o índice de desemprego em 10% pelos democratas. Novamente vou sair
pela tangente. Existe a possibilidade, é uma democracia. Na verdade, em toda
democracia hoje a participação ainda é baixa, existe uma diminuição do interesse, no
Brasil se falou “nossa todo mundo foi votar o ano passado!”, só que tem um problema: o
voto no Brasil é obrigatório, vamos ver quando ele não for obrigatório se vai haver esse
comparecimento maciço às urnas. Isso é uma coisa normal das democracias avançadas,
quando o voto não é obrigatório há pouca participação. Vai depender do estágio de
mobilização da sociedade.
Quanto à questão comercial eu diria que as atitudes são reflexo, na verdade, da
própria mudança estratégica de uma visão geral, então se a presidência, em geral,
independente do setor, pretende trabalhar unilateralmente e forçar o poder como
elemento negociador, isso vai se refletir no campo comercial. Já se reflete, e é uma
discussão que às vezes preocupa muito porque ela costuma colocar em evidência as
opções OMC ou ALCA! Primeiro, quem é mais importante? OMC. A OMC é o órgão
global multilateral, a ALCA é um arranjo regional específico, então ela teria que estar
subordinada. Eu diria, acrescentando mais um problema, não é nem só a estratégia
preferencial de negociar bilateralmente hoje, eu diria que também é uma diminuição da
importância da questão comercial para o atual staff de defesa e relações exteriores em
comparação com as questões militares estratégicas tradicionais. Acho que a questão
comercial está hoje em segundo plano, Clinton tinha uma política muito mais ativa, uma
política muito mais agressiva, não conseguiu o fast track por problemas de disputa com o
congresso, mas a política dele era uma política mais direcionada ao desenvolvimento
dessas fronteiras externas, então acho que é um problema de visão governamental hoje e
que pode ter custos, inclusive, para a própria economia americana. Já li alguns artigos
que falavam que os Estados Unidos vendem tão pouco para o mundo que não precisam
do mundo, o que é uma coisa muito absurda, mas vem daquele pessoal mais radical,
daquela tendência mais radical, então acho que é um problema da falta de visão da
importância do comércio na agenda hoje, estamos diante de um grupo, de um staff, de
um Establishment, que tem uma inclinação conservadora belicista, então a questão
comercial vai ser vista da mesma forma que é visto todo o resto, ela é apenas uma parte
da agenda e eu diria que não é a prioritária.
Com relação à questão dos valores, realismo, idealismo, isso é uma tradição
clássica americana, e que nunca vai mudar. Só que o pragmatismo sempre tem o
idealismo ao lado, o livro do Kissinger “Diplomacia”, é um exemplo excelente disso,
porque o Kissinger ao mesmo tempo em que fala muito mal dos idealistas, às vezes,
define os Estados Unidos de uma maneira puramente idealista. Dessa forma os Estados
Unidos sempre tiveram isso, as vezes você ouve “os Estados Unidos são hipócritas
quando dizem que valorizam a democracia e a liberdade e impõe isso no mundo”. Eu
acho que não, acho que existe uma crença muito forte no papel missionário dos Estados
Unidos e isso é que ao longo dos anos tornou o poder americano mais aceitável e às
vezes menos contestável. Então veja, é paradoxal, é um país que trabalha com as duas
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coisas, ele trabalha com poder e com princípio, e na verdade acho que nenhuma
diplomacia é pura, toda diplomacia é uma mescla e a tradição americana vai ser sempre
essa. Existe sim a crença, ela é elemento central, é uma tradição, o destino manifesto já
vinha com isso e a gente tem que ver que não é só uma hipocrisia, até eu costumo
brincar assim “quando você está fazendo alguma coisa, o mais perigoso, você consegue
fazer, quando você acredita naquilo que você quer”, então não basta só ter o poder, mas
a crença de fato, e isso é uma mistura que dá muita força e dá muita longevidade a uma
hegemonia. O que me preocupa hoje, como eu disse, vocês vêem que estou muito
preocupada, estou preocupada com tudo, é que essa crença está sendo até mais
manipulada do que foi em outras vezes, a crença hoje é menor do que era há alguns
anos atrás. Existe uma crença missionária, mas não no sentido do Wilson, não no sentido
do Roosevelt, daquele discurso das quatro liberdades, que é um discurso muito bonito, e
volta a ser o ponto, uma questão de tática, e continuo achando que vivemos
continuidade. Como falei no início, são tradições cumulativas, logicamente o que se
pensava no século XVIII muda, são diferentes visões, são diferentes vertentes, ninguém
continua pensando do mesmo jeito sempre, mas são coisas que ninguém perde, como
nos livros de Geografia que têm as camadas, cenozóica, paleozóica, a política externa
americana tem todas essas camadas e a construção da ordem é esse último padrão que
está na Guerra Fria e no pós Guerra Fria, é o símbolo perfeito disso, a questão da
democracia, a questão da liberdade, a questão da estabilidade, a questão da porta aberta,
e fechando com a questão comercial. Eles sempre defenderam a “porta aberta” para eles
e para todo mundo, só que hoje essa preferência pelo bilateralismo e essa tendência à
agressividade e unilateralismo têm coibido a ação positiva, porque no fundo a ação da
política externa americana sempre, como todo país pequeno, grande, médio,
médio/pequeno, seja lá qual for o tamanho dele, age no sistema internacional visando
seus interesses. Existe a crença? Existe, mas existem interesses, então os Estados Unidos
agem segundo seus interesses como também nós agimos, mas como fazer isso é que é o
grande problema!
Pergunta
Meu comentário está um pouco ligado com o que você acabou de responder em
relação ao idealismo. Eu acho que você tocou, realmente, no ponto. Acho que a
característica mais fundamental da política externa está nessa questão de idealismo
mesmo. Geralmente temos a presença dessa questão idealista em política externa, que
muitas vezes pode ser vista como algo positivo, mas acho que temos que tomar cuidado
e enxergar o lado negativo disso, no sentido até do que você comentou em relação aos
valores. Os valores são os meus, mas é claro, se você é idealista você não aceita o outro,
você acha que está certo e o outro está errado, deve ser convencido disso, e nesse sentido
acho que você está perfeita em caracterizar o momento atual mais como um momento
de continuidade. Nos anos 1940 quando a União Soviética começou a se mostrar como
adversário americano, já existiam setores dentro da política externa americana que
pregavam a guerra preventiva. Isso não foi adiante, justamente porque além de serem
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diferentes tinham poder bélico substancial e parece que a coisa ficou, simplesmente,
num gueto. Ligando à questão atual, vivemos um momento perigoso, no sentido de que
não conseguimos enxergar uma contra prestação militar a esse poder americano, e
quando a política externa se assume como idealista, o mais grave, é o que você colocou.
Não é simplesmente hipócrita, quando ele fala na televisão ele acredita no que está
falando, existe uma mistura de questões, aí em relação a interesses e valores, mas o mote
dos valores não deve ser de forma alguma deixado de lado, não é a toa que o historiador
Hobsbawm, naquele brilhante livro do século XX, tentou imputar a alguém a culpa da
Guerra Fria, ele disse “olha, tudo bem, realmente havia uma situação bipolar, dois
modelos ideológicos antagônicos que não poderiam conviver, agora, a União Soviética,
o Stalin, o stalinismo, tinha um maior controle sobre o Estado e ele lidava com a questão
da política externa de uma forma mais realista, enquanto os americanos foram
obrigados a jogar a política externa para dentro do país, e nesse sentido foram os
maiores responsáveis pela situação da Guerra Fria, tal qual se apresentou”.
Cristina Soreanu Pecequilo
É interessante a sua colocação. Vou começar por uma coisa que tinha esquecido de
mencionar, você falou da Kirkpatrick. Até podemos falar que quando o Nixon foi
negociar com a China, a China era comunista tanto quanto a União Soviética, então isso
foi uma atitude que, teoricamente, questionou a contenção, mas ao mesmo tempo visou
o interesse. Acho que existe uma busca hoje, da política externa americana, dessa visão
idealista, mas existe também um pragmatismo que nunca vai acabar. O próprio Brasil,
se você pega alguns textos com referência à nossa política na Bacia do Prata, de repente
você acha coisas assim “olha, o Brasil tinha uma missão civilizatória na Bacia do
Prata...”.
Não sei se vocês chegaram a ver um artigo, acho que do Kagan, um artigo que saiu
na Policy Review , e saiu um livro também sobre isso, a respeito da diferença entre o
poder da Europa e o poder dos Estados Unidos, afirmando que a Europa estaria hoje
num outro nível de poder, um poder supranacional, e os Estados Unidos ainda estariam
trabalhando num nível de poder normal, tradicional militar, o que estaria levando a
tantos conflitos, uma vez que a Europa não teria a mesma visão americana como tinha
há 40 anos atrás. Isso que estaria provocando tantos choques de interesse, mas,
preferencialmente, esse choque não aconteceria se eles estivessem caminhando ainda no
ritmo do Clinton. Fala-se ritmo do Clinton para fazer o ajuste, mas na verdade é o ritmo
daquela tendência que defende o multilateralismo, aquele multilateralismo que eu falei,
equilíbrio de poder é sempre isso, é multipolar, mas sempre tem alguém que manda e
pega a teoria da estabilidade hegemônica, então existe a hegemonia benigna e a
maligna. A maligna acaba mais rápido, a benigna tem uma duração bastante longa,
pegando o Arrighi, na verdade a hegemonia americana comparada com todas as outras
também é uma hegemonia curta, então de repente pode ser que a gente, de fato, esteja
vendo uma contestação hoje por meios outros que não o militar.
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Pergunta
A respeito de uma especulação sobre o motivo da guerra em cima da mudança do
padrão dólar para o padrão euro, na comercialização do petróleo. Eu queria saber se na
sua opinião isso faz sentido, se essa seria uma motivação até mais importante que o
petróleo!
Cristina Soreanu Pecequilo
Logicamente a questão do euro é bastante preocupante para os Estados Unidos. Se
você pega o último livro do Nye Jr., O Paradoxo do Poder Americano, ele considera que o
único possível desafiador dos Estados Unidos, no médio e longo prazo, seria a Europa,
não por causa do poder militar, mas, principalmente, por causa dessa força econômica,
só que quando há guerra surgem muitas teorias, eu costumo falar teorias conspiratórias,
Arquivo X, mas certamente é algo que está sendo colocado. A questão da disputa
euro/dólar veja, o dólar preocupa o americano, preocupa a economia dos Estados
Unidos, a sua viabilidade. Aqui no Brasil, tem crise, todo mundo fala “vou comprar
dólar e vou botar embaixo da cama”, e se de repente as pessoas começarem a falar
“agora vou comprar euro”, isso, certamente, passa pela cabeça. Existe esse ponto, mas
também precisamos tomar cuidado com muita teoria conspiratória senão ficamos
loucos, mas são motivos multidimensionais.
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O CEBRI Tese é uma publicação baseada
na apresentação e no debate, no CEBRI, de
teses ou dissertações acadêmicas em relações
internacionais e política externa brasileira,
elaboradas por brasileiros e defendidas e
aprovadas em instituições de ensino superior
no Brasil ou no exterior .
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