SÃO PAULO e seu estilo
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SÃO PAULO e seu estilo
REALIZAÇÃO bookbrasil.com.br Copyright © 2003, Todos os direitos reservados ao Autor (a). Proibida a reprodução do conteúdo na sua integra ou em partes deste livro em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita do mesmo. SÃO PAULO Ao Leitor Querendo escrever sobre São Paulo e tendo consciência de sua grandiosidade, deparei-me com a frase de Goethe: “Tudo quanto puderes fazer, ou creias poder, começa. A ousadia tem gênio, poder e magia”. Coloquei firmeza na caneta e passei para o papel, na forma de algumas imagens de pensamento, detalhes sobre a cidade, autorizando-me a dar-lhe um nome - SÃO PAULO E SEU ESTILO. Controvertida ao extremo, a cidade não se repete e lembra os jesuítas no Pátio do Colégio para em seguida transpirar o novo nos edifícios da Berrini. Não deixa de entristecer-se com suas favelas, seus miseráveis e suas falhas, mas continua sempre com o jeito de terra prometida, de eldorado. São Paulo tem o poder de inspirar diferentes opiniões para cada observador e reinventa-se sempre através do Paulistano, que chamei aqui sistemáticamente de Paulista. Focalizo-o dentro do seu ambiente, vivendo a cidade através da fumaça que polui destruindo e que ao mesmo tempo constrói no progresso. Espero fazer com que cada um se encontre nas casas, nas ruas, nos bares, na realidade, nas emoções e nos labirintos dos sentimentos que a cidade expressa. Trato de situações usuais e espero que elas contribuam para seqüenciar em impressões, narrativas e estórias, a história de São Paulo e sua gente. MARIA ALCÉA STRECK SÃO PAULO ROTEIRO Na mistura de gostos, crenças, raças, artes e ofícios São Paulo se define. Descobre-se nas ruas sem saídas, acha a direção na contramão e mostra o paulista ocupado, controvertido, comovido, apressado ou atrasado, mas definitivamente decidido. Sem retoques, sem modelo. São Paulo é vista do meu jeito em 03 CAFÉ COM LEITE EM XÍCARA PEQUENA, orgulhosa na 07 AVENIDA PAULISTA, preocupada em 11 GAROTAS(OS) DE PROGRAMA, envolvente na 16 MADAME SÉCULO XX, sem limites no 20 CONSUMO COMPULSIVO, grandiosa na 25 INDÚSTRIA PAULISTA, muito saborosa no 29 CIRCUITO GASTRONÔMICO, responsável com o 37 EXECUTIVO E FUNCIONÁRIO EXEMPLAR, esportiva em 41 SUA MAJESTADE — A BOLA, literária 46 NAS CONTROVÉRSIAS DO VESTIBULAR, fascinante no 51 FIM DE TARDE, descontraída 55 QUANDO O PAULISTA TEM TEMPO e por fim agitada nas 60 MUDANÇAS NO TRANSITO. SÃO PAULO CAFÉ COM LEITE EM XÍCARA PEQUENA Sempre se quer chegar: Seja a algum lugar, objetivo, dedução ou razão, o fato é que o ser humano procura o lugar de chegada. E porque neste lugar deve haver tudo o que se almeja, ele é apropriadamente escolhido. São Paulo chama, acolhe e, ao seu modo, protege. A chegada propriamente dita pode acontecer em um aeroporto, terminal de ônibus, estação ferroviária, ou no portão de uma garagem. Então acontece o impacto proporcionado pela visão brutal da cidade, a insegurança aparece e é aí que a expectativa pode ou não ser atendida. Diante dessa situação é preciso a definição e com ela a coragem para ficar, enfrentar obstáculos, perceber novos horizontes e conquistar ao ser conquistado. E chega-se a São Paulo do Brás, onde o Adoniran se aborreceu com o “Arnesto”; do poluído Tietê; de Santo Amaro, que já foi boca de sertão para bandeirantes; dos movimentos artísticos, políticos e revolucionários: do progresso, das alternativas. Busca-se o grande em todos os sentidos. Moradias adequadas, empregos em profusão, fartura de alimentos, diversões, enfim, o tudo de cada um. Esquece-se a miséria. Com ela, poderá acontecer o oposto do que se busca. Quando a realidade tem que ser encarada e não é a esperada, esquece-se dela apoiando-se em um gole após o outro, ou detém-se na novela da televisão onde está a fantasia, o inesperado e a promessa do futuro, que traz de novo a vontade de continuar. Avaliar o universo do território ao qual pretendo ser capaz de integrar-me não é fácil. Ao mesmo tempo, este lugar quer se entregar inteiro, mas para isso quer ser compreendido. Valoriza a realidade, com mais intensidade do que o sonho, pois é aqui que acontece a transformação. Não é por mero acaso que a cidade aceita tanto o vagabundo quanto o operário; tem a certeza de que cada um deve ter a sua chance. Compreende o concreto e o abstrato. Este espaço é ao mesmo tempo luminoso, denso, inadequado e nobre, mas sobretudo especial. Existe, é real e se propõe ser um divisor de águas. Ao meu modo, não desisto. Enfrento o desafio. Foi de trem. Eu cheguei, esperança explodindo no peito, uma curiosidade sem disfarce, estranhando o calor de fevereiro na terra que já foi da garoa. Luz. A estação ferroviária não me pareceu merecer o nome que tem. De onde vim, Pitangueiras, a claridade exuberante circula através da plataforma quase sem obstáculos, com ventilação natural e constante. A diferença falou alto e acabou em um “será”?!, logo que comecei a subir as escadas. Eu subi. Pernas bambas e muita coragem, pois que já tinha havido pitangas demais na minha vida. O “s” mudou-se para a palavra susto ao ver a rua onde todos esbarravam em todos; agarrei a mala e sustentei a cabeça. Senti tudo muito junto, muito opressor, sem nobreza, com um odor de uma mistura que eu não soube individualizar. Então somei: almíscar, combustível, churrasquinho, fumaça, cachaça, borracha, suor. Um sinal débil e interior chegou ao meu cérebro, a princípio quase sem valor — olhe, sinta, escolha! Concordei com firmeza. O mel da fruta tinha agora que fazer parte do passado e o ar do campo já fortalecera meus pulmões. Caminhava alerta observando a fibra da cidade selvagemente cosmopolita. Sua gente, indistinta nas origens, mostrava situações novas para o meu mundo. O refrigerante, o cachorro quente, a pensão, o sono agitado, sonhos, o emprego na manhã seguinte. Telefones, recados, pedidos, sorrisos, irritações. Tudo misturado sem dosagem no meu aprendizado do escritório. Nunca havia sentido um dia passar tão depressa e meu estômago avisou, ao escurecer, que eu almoçara cedo demais. Os dias transferiram-se no calendário fantasticamente e já no sábado havia alguns “colegas-amigos”. Observo suas posições, seus atos, suas palavras a respeito da cidade que me fascina, mas que eu ainda não posso entender com os conceitos que trago na bagagem. Começo, então, a tentar “ver” através dos olhos dos paulistas. São Paulo é o antagonismo dentro da realidade. Os edifícios são sedutores, sinuosos, esguios. As mulheres concretas, fortes, exuberantes. Os homens são obstinados, dominantes e ao mesmo tempo sensíveis. Seus museus, teatros, bibliotecas e centros de cultura convivem pacientes com danceterias e botecos. Vejo nas filas para tomar a condução e nas fantásticas residências assaltadas, o mesmo clima de prevenção. No entanto, olho os parques, as lojas, as avenidas e sinto a liberdade exposta e colorida convidando ao descuido. Lamento os rios e apaixono-me pelo asfalto que os margeia. Tudo flui ali; encontra-se, dispersa-se, mistura-se. Então encontro a palavra e o sentimento: “Confundo-me” com São Paulo; seu jeito, seu cheiro, seu barulho, seu humor, suas mudanças, sua gente, sua força. Tomo um café com leite em xícara pequena, de passagem para meu próximo compromisso. Admiro a menina, olho a vitrine, penteio o cabelo nos espelhos dos elevadores, penso em comprar uma moto para ficar mais independente, mais ágil. Seguro pastas equilibrando-as, enfrento o tempo nas repartições públicas, saio de cinemas mascando goma, vou integrando-me. Preciso escrever para casa, atendendo aos reclamos, mas os dias são curtos e nas noites a cidade ilumina-se, parecendo piscar bem acordada, chamando para um continuísmo contagiante que termina no meu cansaço inadequado. E então eu durmo e deixo para escrever no dia seguinte. Amanhece, condenso-me nas igua1dades e nas novidades, no inesperado, e surpreendo-me, envolvo-me. Demoro-me estabelecendo as distinções. Depois aprendo rápido. São Paulo é o que não deve, mas pode. É o que quer e faz. Sinto-a feroz e sensível, verdadeira e utópica, mas inexplicavelmente inteira. São Paulo não se define. É o lugar das divergências, das chegadas e das saídas, dos pólos opostos, eu me defino e digo sim. Estou amando você. SÃO PAULO AVENIDA PAULISTA Visto pelas ruas, uniformizado nos jeans e camisetas, o paulista não é elegante, nem mesmo no inverno, quando se aquece usando bonitos agasalhos sintéticos. Compõe um colorido próprio e abusa nas mensagens estampadas nas roupas, que expõe sem cuidados, a qualquer hora e em qualquer local. Nestas, mostra a abertura total do pensamento, que São Paulo absorve tranqüilamente. Fala de ecologia respirando gases tóxicos, de política sem tomar posição, de filosofia sem o conhecimento. Não se repete nas piadas. Cria novas para cada situação, sempre com uma ironia séria, para que o raciocínio complete a intenção e o riso aconteça. Apresenta um autodidatismo peculiar sem perceber que a cidade é um manancial a ser consumido. As ruas de São Paulo, ao contarem sua história, têm vocabulário próprio, simples e compreensivo a qualquer pessoa. Evocam o passado, reproduzem o indivíduo, prevêem o futuro, sem que para isto haja necessidade de qualquer explicação. São claras e se deixam absorver. Têm aspectos personalizados em mudanças contínuas, como os das remodelagens incessante, seguidas de pedidos de desculpas pela inconveniência. O asfalto e o paralelepípedo ainda se confundem no chão, em mistura com os buracos, dificultando a vida do paulista e a durabilidade de seus veículos. Sua iluminação mostra o tempo, o atraso e o futuro, na inadequada fusão de formas, estilos e até de cores. Se o morador observasse os prédios, os monumentos, os detalhes, as diferenças e as simetrias, encontraria a seqüência dos anos de vida que a cidade tem. O paulista gosta das ruas, mas ainda não aprendeu a senti-las. Por enquanto apenas as admira, orgulha-se delas e quer nelas viver o máximo que pode. Não chega em casa sem a tradicional parada para refrescar a cabeça, entre uma prosa e uma pinga, ou uma compra e um café. Haverá um dia em que olhará e absorverá a história que as ruas seqüenciam e querem entregar, sem reserva, para sua gente. “Se esta rua fosse minha...” eu a tombaria como patrimônio histórico; ou então a deixaria estática. Não seria através de um documento ou por um fenômeno da física que isto se tornaria possível. Aconteceria pelo simples fato do querer. Como ela é de todos, deve permanecer no movimento que a caracteriza, apresentado pelo transeunte e também pelo morador. Esta rua prende, quebra regras, induz ao sonho, mas sempre retorna para a realidade com uma dureza na expressividade somente permitida para ela. Não é por acaso que favorece a experiência da contemplação, que se modifica através de cada olhar, pois é vista de maneira diferente por cada observador. Tem o dia e a noite em eterno conflito, pois não adormece ou, quando o faz, já está na hora de recomeçar. Ela é a mais paulista das avenidas. Não é a maior, nem a melhor; não é exemplo, nem referência. É única. Via de regra, o paulista não a define. Apenas a elegeu, pois cá para nós, quem se vê se reconhece. Local exato, topografia fácil, ela não esconde nada. Nem o pretende. Conserva e acompanha há muito tempo acontecimentos, emoções, razões. Já foi residencial, com palacetes que se rivalizavam em beleza na ostentação do poder de seus moradores. Dizem até que os “Barões do Café” se gabavam de admirar suas fazendas através das varandas de suas casas. Conquistou novos modelos. Torres de concreto e aço foram ferozes passaportes para a modernidade. Supera-se. Fica magnífica. Fez-se notável. É o progresso. De suas salas climatizadas, executivos brilhantes dominam o mercado de capitais e outros afins. Nada fácil, visto que abaixo da linha do Equador (e até acima) o que é capitalizável gira e flutua mais que as oferendas a Iemanjá. Paciente, ela deixa que na rua o ambulante também domine seus negócios: pipocas, amendoins, radinhos de pilha, perfumes “made in Paraguai”, roupas indianas feitas no Embu, adornos originários desde o Oiapoque até o Chuí, com um palavreado gaiato, receita feita com a mistura da gíria de todo o país. Convivem, lado a lado, carrinhos com sorvetes, “hot dog”, algodãodoce colorido, acrobatas, cantores com o chapéu no chão, anarquistas, ciganas lendo a “buena dicha”, freiras caminhando de cabeça baixa, barraquinhas variadas e incontáveis bancas de jornal. As bancas fascinam! Exibem jornais (da cidade e do planeta), livros, revistas, revistinhas, revistões, variedades, atualidades e cartões postais. É magnífico ver postais nas bancas da Paulista: é luz em papel, mais a argamassa, mais o verde, mais o simples, mais o composto, mais o todo. A avenida Paulista orgulha-se do Conjunto Nacional, que já foi grande e a representou. Também de suas salas de cinema, de seus centros de compras. É admiradora incondicional das ruas que a atravessam, porque essas conservam insuperável fascínio, apesar dos shoppings espalhados pela cidade. Não contente em ter o metro quadrado muito cobiçado, teve também o valor (e que valor) das obras do seu mundo subterrâneo calculado em discutíveis milímetros. Deixando de lado o poder dos recursos financeiros, o metrô avança rápido, encurta a distância, leva o paulista e exibe a Paulista. O usuário momentaneamente se esquece que vai para o trabalho com alguns trocados, que voltará com menos, estará cansado, que enfrentará o dia valentemente, tendo como contraponto pequenas ale grias, pois nos dias de hoje não existe o tempo para cultivar o que não possa ser útil instantaneamente. No entanto, dentro do metrô ele está bem, sente-se conduzido por um meio de transporte moderno e sobretudo individualizado, porque está sob a Avenida Paulista. Fica diferente. Soa soberano. Totalmente livre de estreitos preconceitos, a avenida Paulista não é discreta. Expõe as maravilhas do MASP, ao mesmo tempo em que deixa o espaço entre suas colunas de sustentação ser uma grande ilha de sucessivos acontecimentos: encontros, papos, comemorações, descansos e, de sobra, permite que o vão livre seja utilizado aos domingos para uma feirinha. E que “feirinha“! Também aos domingos, no outro la do da avenida, um festival de pastéis, sucos, lanches, convidam o pedestre a alegrar o estômago, pois que na Paulista pode-se comer caminhando e nem se lembrar dos sofisticados restaurantes que ficam lá no alto, bem perto das nuvens. E para não dizer que ela não fala de flores, o Trianon é verde, parece encantado. Colírio para olhos observadores, abriga passarinhos, tem grilos eventuais e cigarras que não aceitam o ruído dos motores. À noite, lanternas acesas. parece ter olhos de serpente e hipnotiza. A iluminação da avenida muda de século quando observada do chão para o céu e, nos pontos mais altos, passa para o terceiro milênio. A avenida Paulista é a diferença das diferenças. Ela determina isso, quando expõe estudantes, sentados nas escadas do edifício da Gazeta, alisando cabeças raspadas e abraçados a montanhas de fichários. Ela explica isso quando mostra os poderosos capitães de indústrias, ao descer de suas BMWs, esbarrarem em mãos que seguram valestransporte. Ela é a Paulista. E ponto final. SÂO PAULO GAROTAS (OS) DE PROGRAMA Quem chega a São Paulo chega sem resistência. Esta foi deixada de lado com a razão de atingir os objetivos que se tem. A cidade propicia definições. Talvez esta possibilidade esteja relacionada ao aspecto de solidez que São Paulo apresenta. Exposta em concreto e ligas metálicas sob qualquer ângulo em que possa ser observada, simboliza a estabilidade procurada. Quem chega ancora a esperança nos poucos pontos verdes e esta cresce no inverno, quando as azaléias florescem, mesmo que respirem toxinas durante todo o ano. A flor é tão resistente quanto a cidade. Enfeita São Paulo, é encontrada em todos os cantos, mesmo que no geral não tenha grandes proporções e suaviza sem ser exuberante. São Paulo é constantemente antagônica; parece uma dama feita de ferro que sempre encontra a maneira de mostrar o seu lado menos denso: ou são as flores, ou a tênue neblina, sua pouca garoa. a f alta de variedade em sua arte, ou o sentimento de seu povo. Esta proposta também é concreta, mas tenta assemelhar-se à suavidade do algodão. Com tantas fundações e raízes, a cidade, apesar de não ser arbitrária, se dá o direito de julgar a tudo e a todos. Tem uma resposta única ao que lhe é perguntado e continua na posição tomada até as últimas conseqüências. Quem espera o leve pode ser surpreendido com o peso da verdade. E a verdade, para muitos, é difícil de ser vivenciada: contrapõe-se ao querer, traz dificuldades. Saber se conduzir é uma arte difícil, um caminho com armadilhas e atalhos: a obstinação e a força da vontade são os meios de se obter um resultado positivo. São Paulo dá oportunidade. Incentiva, estimula, mas só devolve o que lhe é entregue. A intenção da cidade É a de guardar em seus arquivos somente o que deverá ficar como exemplo, quando estiver convenientemente aferido. Milhares de anos de civilização nos deixaram um legado de exemplos, formas de comportamento e tradições. A cultura egípcia, a helênica, a romana, outras anteriores e posteriores chegaram até nós e hoje seria utopia esquecer essa herança. A modernidade precisa atender ás necessidades globais do ser humano do presente — que é diferente do de ontem —, mas tem como finalidade a mesma razão de sempre: a felicidade de cada um. Neste período histórico parece que voltamos a viver como em Sodoma e muitos de nós se transformam em estátuas de sal. Entra no club noturno com jeito de primeira vez. Usa short curtíssimo, decote exagerado, unhas vermelhas, mas evidencia a inexperiência. (Será maldade não a enxergarmos como realmente é: iluminada.) O proprietário a distingue rápido e mais rápido ainda a retira dali. Percebe a preciosidade, mas não quer que ela saiba. Têm uma conversa breve (para ela não poder pensar) que ainda pode ser resumida: —“Clientes especiais, lugares acolhedores, cachês confortáveis, maior privacidade”. Ele fará contatos, acertará locais e ela será generosa (ele sente vontade de permanecer com ela e dizer que precisa testá-la; consegue controlar-se mantendo uma técnica impecável, digna de um gangster dos anos 40 diante de uma dama inatingível). — “Você entendeu, não é?” Ela entende, acha simples, preocupa-se. Guarda o endereço para um “programa” no dia seguinte. Informa que tem dezesseis anos, continua ouvindo, como se o som viesse através de um túnel em um tempo que era novidade para ela: —“De hoje em diante seu nome é Rita. Não a conheço. Vista-se como se fosse sair para fazer compras e corte as unhas”. O homem a faz sair pela porta dos fundos e foge dela, bloqueando a formação de pensamentos e desejos. O ar da rua é bom, ela respira profundamente, tendo a sensação de que quem entrou naquele lugar não é a mesma pessoa de agora. A opção havia sido feita. Um amigo seu tem proposta de vida semelhante. Entra para “batalhar” num clube de mulheres. É muito volúvel. Mulheres suspiram, mulheres o sustentam, o desejam, e ele se mantém alheio, acima delas, sente-se superior. Gasta o que ganha e sempre acaba brigando com alguém. Gênio danado, mas físico privilegiado. Uma, duas, várias vezes ele recomeçou e tudo ocorreu da mesma maneira. Não se pode dizer que ele não tentou. Passa a fazer ponto na Indianópolis. Conhece pessoas diferentes, escorrega nas emoções, vibra com o nada. irrita-se com o tudo. A areia desliza na ampulheta e ele só perde tempo. Ela percebe logo que as gorjetas são bem maiores que o cachê e desliga-se do club; muda de bairro, mantém clientes, arranja outros e aprende muito. Deixa adeusinhos escritos com batom nos espelhos dos motéis como qualquer vagabunda, mas sabe seduzir de forma quase infantil, com seios empinados e coxas de atleta olímpica. Toma água com gás fazendo de conta que bebe Martini “dry”; come azeitona e suspira, enquanto os parceiros contam suas vidas, que se repetem em homens diferentes. Incompreendidos, insatisfeitos, grandiosamente infelizes. Quanto mais elogiados, mais realizados e generosos. Fica mais refinada, solicitada, é quase respeitada por “clientes” delicados. Sua conta bancária cresce e, dentro das possibilidades, a sua autoestima também: chega até a recusar exclusividade a um fulano bem cuidado, carinhoso, para quem ousou dizer o seu verdadeiro nome. Naquele sábado, fazendo compras, encontra o amigo. Abraços, milk shake, passeio na moto (ele havia “arranjado” um velho cheio da grana que o presenteava e com quem estava vivendo). Fazia ginástica, estava mais magro, muito bem vestido, parecendo um modelo de “outdoor”. Oferece-lhe uma droga, insistindo brilhantemente: — “Experimente: é a viagem que você não fez. O orgasmo ideal. Você é linda, merece o prazer, o pleno!”. Ela recusa e não aconselha – não adiantaria. Continuam a se ver. Fazem confidências, firmam uma amizade que transparece nas expressões, nos olhos e nas preocupações mútuas. Ela não compactua com as escolhas na vida dele, contudo não as critica. Acha que não tem direito a isto. Fica contente quando sabe que ele vai viajar. Haiti, Atenas, Austrália, uma viagem excêntrica para alguém que tem os pés fora do chão. Ela continua a mesma, parecendo intocada. Fazendo um programa habitual, ouve de um parceiro que um dia vai tornar-se senhora, com sobrenome e casa própria. E, realista, não acalenta a idéia. Isto é passado, deixado para trás, na porta dos fundos do club noturno. Completa dezenove, mora sozinha em um apartamento bonitinho, tem poucos amigos, programas matutinos e vespertinos, não tem expectativas e, para descansar, vê televisão e come pipocas. Não pensa. Volta a ver o amigo fazendo ponto na Indianópolis; o tempo passou e ele não mudou. Não a procurou depois da viagem, mas o fará assim que sentir desamparado. Está vivendo. Ela cumpre o compromisso, volta cansada, tira as sandálias no elevador. Está com pena de si mesma e do fulano com quem saiu. Ele tinha tudo e não sabia. Pagava para ser ouvido. Deveria procurar um analista e tentar viver melhor. Ouve o telefone tocar e não quer atender. Diante da insistência, ela fala alô como sempre e ouve da voz conhecida uma notícia inesperada. Então fica sabendo que a areia tinha terminado de deslizar no tempo da vida do seu amigo. Foi mais depressa do que o esperado. Havia vivido intensa e intempestivamente conforme seus traços de personalidade e a proposta dele não correspondeu às expectativas. Ela não responde nada. Desliga o aparelho como se não houvesse ninguém do outro lado da linha. Começa a sentir-se com o cérebro magicamente desligado do resto do corpo, flutuando em uma mistura de azeite e água. Como a mistura não acontece, ela continua inteira, paralisada por um desespero mudo, mas repete frases soltas – a viagem terminou com a overdose, o orgasmo com a AIDS. Ele era bonito, mas tinha um gênio danado. Talvez esteja pleno. Precisa respirar e sentir que existe o ar, a vida, o futuro além daquele momento. Hesitante, dá alguns passos e abre a janela do apartamento. Vista do alto, do décimo terceiro andar, a cidade iluminada parece comemorar o sempre. Gira a cabeça e a comemoração continua em todo o seu campo de visão. Embaixo tudo escuro, visto em tamanho pequeno, não conta, parece não existir. Consegue ficar mais serena, volta para a sua própria realidade e escolhe o lado luminoso para poder continuar. Entende que é das escolhas feitas que depende o sucesso e de como prosseguir. Sabe que apesar de tudo São Paulo vai acordar claro, borbulhante, efervescente, para mais um dia de muitos programas. SÃO PAULO MADAME SÉCULO XX As mulheres do século XX saíram de casa, foram à luta, conservaram as unhas pintadas e cultivaram o cérebro. Querem aplausos. Por direitos e fatos. Pode-se observar, através das alterações das leis do código civil, que o ser humano evolui, tomando posições que modificam situações existentes, mas também por se fazer merecedor delas. Como as mulheres conseguem administrar a conquista do seu espaço? O fato real é que elas pegam leve, fazem de conta, se investem, mas não conseguiram ainda. A lei as protege, através de documentos oficiais, de palavras, mas na prática a dedicação e a obstinação não são suficientes para que elas se beneficiem dos direitos e também de salários condizentes com os esforços. São Paulo as admira. Lembra-se disto ao dizer o nome de Luiza Erundina, que foi prefeita de uma cidade tão difícil de administrar quanto um país. Ela não nasceu aqui, mas se fez paulista absorvendo a essência local. São Paulo poderia citar uma lista com inumeráveis nomes, onde estariam d.Carmem Prudente com sua valentia, d. Hortência Oliva, da bola a musa e rainha na bola, e por que não d. Hebe Camargo, com seu público perseverante? Mas a cidade é generosa, observadora e também quer prestigiar a Maria da Silva, que carrega sacolas em ônibus lotados, depois de um dia inteiro de trabalho na fábrica. Não quer esquecer a esposa do executivo, que está sempre apresentando um sorriso, mas tem tantos obstáculos a serem superados, que no final do dia está tão desgastada quanto a funcionária doméstica que lavou a roupa da casa. Compreende a prostituta, ou a mulher da segunda-feira, que ficam onde estão sem resistência, alvos fáceis de críticas, mas sem registro em carteira. São Paulo é mulher. Delicada, valente, obstinada, sofisticada ou relaxada, mas mulher, em todos os seus sentidos. E continua sempre lutando por seu lugar, mesmo que para isto tenha os dias tão ocupados a ponto de esquecer que pode ter outros direitos, como por exemplo, o de sonhar. Entre as Evas e as Marias estão as Lilyts. Se observarmos nossas tradições judaico-cristãs, as mulheres podem ser enquadradas no perfil de um desses três arquétipos estabelecidos. A sociedade as diferencia sem cuidados, mas o tempo está se encarregado de mudar este quadro. A consciência coletiva está tendo que admitir o empenho no crescimento individual, que é irreversível. Evas não querem ser submissas, Marias não querem ser endeusadas e Lilyts não gostam de “underground”. Começaremos com a liberação feminina. Pode parecer prosaico, excessivo, desnecessário; mas é real, quase planetário. Individualizaremos aqui uma mulher. Paulista de quatrocentos anos em gerações e quarenta indefinidos de idade. É atual e atuante, segura nas metas de vida estabelecidas e seguidas à risca. Seu nome é Lígia. Administra sua casa da melhor maneira possível quando a empregada ajuda e a receita empata com as despesas, coisa difícil, considerando-se os cheques pré-datados e os cartões de crédito. Nesta manhã em especial está tudo difícil e haja preparo físico para encarar o dia. A desarrumação da casa denuncia a reunião da noite anterior e a empregada avisou que estava atrasada, mas que viria com certeza. Ela apostou na certeza curtindo uma dor de cabeça, ressaca de cigarro, viciozinho safado que não conseguira controlar ainda. Depois de pronta, vestindo azul, vacilou no perfume. Passou os olhos pelos vidros coloridos e exóticos, tocou com os dedos sua formas diferentes e, apesar do horário, optou por uma fragrância forte, para afastar os maus fluidos. Precisava de sorte especialmente neste dia. Completando o “look”, brincos coloridos, sapatilhas e óculos escuro, que ninguém precisa expor as seqüelas da noite anterior. Saiu, fazendo o sinal da cruz sobre a casa e, dirigindo com cuidado, pensava no cheque que precisava ser prorrogado, dívida daquela roupinha linda, comprada dias atrás e usada ontem. Ah! fizera sucesso – estava demais – se fosse preciso compraria outra vez! Depois de alguns quilômetros, de vários faróis e trânsito pesado, Lígia estaciona o carro e se prepara para descer. Dará início a um movimento gravitacional que começa no apoio do pé e se completa na admiração do local em que vai entrar. O prédio pequeno é bem localizado e extremamente bem cuidado. A fachada em vidro deixa à mostra grande parte de seu interior. Objetos antigos, quadros e raridades denunciam o tipo de trabalho ao qual ela se dedica. Decoração. O nome escolhido para a loja confirma a intenção: “casa em cantos”. Quando ela entra, seu entusiasmo transparece no sorriso, no bom dia à funcionária esverdeada que parece fazer parte do estoque, no seu dedo passado sobre os pequenos móveis checando a poeira (no caso a falta dela), no ajeitar de alguns detalhes, em seu olhar. É ali que Lígia passa a maior parte do seu dia. Discute com comparadores a veracidade das peças exibidas, contando para isto com seu curso inacabado de História da Civilização. Mostra-se profunda conhecedora da cultura de povos, fala sobre persas ou egípcios até chegar às Minas Gerais, quando expõe objetos de ferro ou belíssimas cantoneiras de madeira. Isto não quer dizer que tudo o que está na loja seja autêntico ou raro, isto não. Mas o bom gosto é indiscutível nas compras e quando fala, ela está passando sua verdade, sem restrições ou dúvidas. Administra as vendas através do celular, usa caneta exclusiva, faz montanhas de anotações e fica assustada quando separa as lâminas das contas a pagar. O tempo passa rápido. Apressa-se ao olhar o relógio, sabendo que está na hora de começar a cumprir outros compromissos igualmente importantes. Antes de sair de casa retoca a maquiagem; transpõe uma porta onde a “bailarina do século XV” indica ser o toalete, voltando nova em folha; a bailarina parece inveja -la e querer estar no século XX, mas permanece imóvel tendo por companhia a funcionária esverdeada. Dentro do carro, Lígia memoriza o que terá de ser feito no dia seguinte. Explique-se: procurar novidades para atrair clientes, imaginar uma espécie de liquidação (encontrará um sinônimo sofisticado para substituir a palavra), negociar sua inadimplência com o gerente do banco, encontrar algum meio de obter maior fluxo de caixa, enfim continuar. Não consegue prorrogar o cheque e ainda tem que fazer supermercado, que a geladeira é só prateleiras e gelo: vai usar o cartão de crédito, pois não há tempo para um caixa automático. Sabe que vai ter que guardar as compras, aquecer o jantar, colocar a mesa, ouvir reclamações, tudo com uma ajuda mínima e ainda sentir o mau humor dos excelentes colaboradores. Inconscientemente, lembra-se de uma dama antiga representada pela bailarina e questiona o antes e o agora. Direitos e deveres, custos versus benefícios, terá valido a pena? Não há tempo para conclusões, pois o painel do carro avisa que o combustível está acabando. Ela dá meia volta, para no posto costumeiro e arrisca: “Posso abastecer e pagar na terça feira? Meu talão de cheques acabou e não havia outro à disposição”. O frentista, acostumado, sorri e concorda... a Madame é ponta firme. — SÃO PAULO CONSUMO COMPULSIVO Desodorante, creme de barbear, shampoo. Iniciada com produtos de uso pessoal, a lista de compras vai sendo composta por inumeráveis itens até chegar aos produtos usados na área de serviço. Supermercado feito, armários e geladeira0 devidamente organizados, salário criteriosamente comprometido e vai-se para a frente da televisão, com um amontoado de pacotes de salgadinhos, chocolates, sucos e refrigerantes, mais as novidades que fizeram a festa nas compras. O pai acaba cochilando, as crianças deixam sobras espalhadas, a mãe reclama, mas o paulista fez o seu programa predileto. Fazer compras em São Paulo parece ritual religioso. Pode ser na capela ou na sinagoga, no terreiro de umbanda, junto ao verde ou de frente para o Oriente, o que importa é cumprir. Seja pelo poder da mídia, por força do hábito ou da necessidade, o caso é que o consumo compulsivo do paulista é uma realidade às vésperas do ano 2000. O mercado é ágil e antecipa-se aos desejos em novidades, bem à maneira de São Paulo. Desenvolvem-se produtos para vendas em uma variedade de modalidades que assombra. Ovalor das pessoas passou a ser estimado pelo seu consumo. A melhor casa, o carro do ano, a camisa de grife ou a jóia com o design exclusivo são objetivos para o paulista de classe média alta, que nem existe mais, porém tenta representar. E desce-se vertiginosamente uma escada de poder aquisitivo, tendo os degraus ocupados por sonhos de compras e pesadelos de crediários. São Paulo foi invadida pelos importados numa festa de cores, cheiros e sabores que deslumbra. A durabilidade mudou, diminuiu, mas o paulista se adaptou, pois nunca é resistente às novas situações. Investiu no descartável, achou caro, mas, no final das contas, confortavelmente aceitável e prático. Os fantásticos Shopping Centers multiplicam-se, competem e estabelecem diferenças para atenderem a diversificação dos clientes. E não há de faltar nada! Do carro ao par de meias, passando pelas salas de cinema e centros de alimentação, São Paulo oferece tudo. Tem os estacionamentos sempre lotados e os corredores num eterno caminhar que só termina quase na hora de recomeçar. E fala-se em crise, na falta de dinheiro, em economizar, cortar despesas, mas no geral sempre se precisa de alguma coisa. Sociólogos explicam, terapeutas analisam, economistas defendem teses. Juntos sustentam suas idéias e expõem opiniões comuns. Colocam as palavras, terminologicarnente correspondentes às suas áreas e explicam: é o resultado da mudança de valores, do hábito, da globalização. Seja lá o que for é o que vivemos. E, na voracidade da oferta e da procura junto com a mudança de seus conceitos, em São Paulo compra-se também sonhos, emoções, sentimentos. A ilusão do simples mas concreto foi substituída pela do abstrato porém sedutor A emoção do ser mudou-se para a do ter e no desejo de realizações consome-se em nome da felicidade. E, sem interrupção, aposta-se em outras tantas modalidades de vendas que deixam o consumidor perdido com tantas opções. Em São Paulo compra-se por telefone, com entregas do possível ao quase irreal, tem-se a possibilidade de ter tudo e até querer mais. Pela televisão compra-se o que é útil, o indispensável, o segredo para o corpo perfeito. o milagre para o poder da mente e até os segredos do futuro. A cidade também não se esquece daqueles que não têm paciência, têm falta de memória ou são avessos às filas. Para isto existem as lojas de conveniência que surpreendem com variedades, correspondendo brilhantemente às exigências. Abertas vinte e quatro horas por dia, resolvem tudo imediatamente e voltam a ser necessárias na primeira emergência. Tem-se tudo, de todas as partes do mundo, do sofisticado ao simples, dependendo do bolso ou da cabeça, a toda hora. São Paulo comercializa-se por si própria, de forma seletiva, e também aí pode ser caracterizada como ímpar. O campo de ação do comércio é feito de um jogo de seduções, com trocas comprometidas entre os participantes. A mídia idealiza situações oportunas para comercializar o produto, fazendo sua parte: cria o universo do desejo. O comprador é o alvo que, movido pela fantasia, fixa o olhar, abre o cérebro, sonha o futuro, faz-se presente e sente-se ídolo, espectador e vencedor por possuir o que lhe foi imposto em nome do contentamento. É uma regra atual do mercado, que alcança seus propósitos jogando com as emoções. Deriva dai um dia a dia com qualidade duvidosa, pois a felicidade nem sempre é encontrada dentro de pacotes. Já é madrugada. Está chovendo. O porteiro do edifício faltou, a bateria do meu carro descarregou e justamente agora a rede de neurônios do meu cérebro avisou que eu precisaria de um achocolatado. Estou com uma dor de cabeça que incomoda, embora não seja forte. Não tenho aspirinas. O chá de ervas caseiras apresenta-se como solução. Através da embalagem oferece tantas promessas e nenhuma contra-indicação, que não é preciso esforço para tentar valer-me dele. Uma das promessas é de uma leve sonolência. Açúcar a gosto. Gotas de limão (que não tenho). A mistura fica bem doce para que assim me esqueça dos chocolates e o sono chegue. Enquanto a água ferve e eu espero, prometo-me que logo cedo vou fazer o desjejum na padaria da esquina. Ela oferece sequilhos especiais, patê de azeitonas com pão crocante e um bolo de fubá que até lembra um amanhecer no interior, por preços bem especiais. Também posso pegar o telefone e pedir uma cesta com café da manhã completo, que estará aqui antes que o dia amanheça. Esta cesta geralmente chega perfeita. Haverá geléias, queijos, frutas, tudo muito bem acondicionado, e se eu disser que estou fazendo aniversário poderá haver até um cartão cuidadosamente escrito, desejando-me felicidade. Tomarei o café em uma xícara nova, com um detalhe qualquer estampado na louça, para dar um toque diferente e me estimular em mais pedidos. Não duvidarei de que haja um pequeno ramo de flores indicando que se deve enfeitar a mesa. Só preciso escolher. Quanto às aspirinas, poderei pedi-las na farmácia de plantão, caso a minha dor de cabeça aumente e eu não consiga descansar. Inusitadamente para o horário, o telefone toca. Quase não acredito. Estou me sentindo sozinho e o som estridente parece música aos meus ouvidos desavisados. —Alô! —Boa noite Renato. É a FIávia. —Bom dia! Eu respondo, atualizando minha amiga quanto ao horário. Ela acaba rindo entre as lágrimas e já adivinho o que vou ouvir. Brigou com o namorado, não quer mais saber da vida, vai devolver todos os presentes e precisa do meu consolo. A Flávia sempre tem meu ombro amigo, pois é repetitiva nestas brigas. Não sabe, no entanto, que enquanto eu a conforto me sinto um “Cirranô de Bergerah”, pois tenho um nariz feio, mas sei fala r palavras bonitas. Estou apaixonado por ela e vivo esperando por uma briga definitiva. Ao saber que estou confinado dentro do apartamento, ela resolve a situação simplesmente dizendo que trará uma garrafa de vinho e que o tomaremos juntos. Isto, se ela não resolver que o melhor é deixar o carro em ponto morto, na decida de uma ladeira qualquer, para que um poste o encontre. Ela terá as mãos fora do volante para não poder tentar deter o impacto e não estará usando o cinto de segurança. Não me preocupo. Ela chegará inteira, um pouco molhada e trará duas taças lindas além do vinho. Vai colocar tudo na única mesa que tenho, arrumar com capricho e pedir gentilmente que eu abra a garrafa. Depois, vai experimentar ela mesma o vinho, avaliar o bouquet e o sabor e dizer que está ótimo. Tomará apenas um gole. Contará o fato que motivou a briga de hoje , que não será nada diferente das outras vezes. A Flávia vai chorar muito, repetir o nome dele até machucar os meus ouvidos. Vai acomodar-se no meu sofá e dormir soluçando como uma menina encolhida e desarmada. Eu vou pegar um acolchoado para agasalhar seu corpo, que continuará com leves tremores, apagar a luz, desligar o rádio e tomar toda a garrafa de vinho sozinho. Ficarei olhando para o nada, sabendo que ela está aqui, mas ao mesmo tempo tão longe, em um local onde não posso alcançá-la. Não vou pregar os olhos e sei que amanhã cedo ela vai acordar assustada, fazer comentários rápidos, me dar um beijo na bochecha e dizer que sou o melhor amigo do mundo. Vai sair correndo e expressando claramente que precisa saber se há algum recado na secretária eletrônica. Esquecerá as taças e deixará o aroma de seu perfume impregnado no sofá e também em todos os meus sentidos. Sei também que algumas horas mais tarde ela vai ligar e contar com sua voz cristalina que está tudo bem, que eu sou ótimo e que nunca mais haverá outra briga entre eles. Não vou acreditar, mas concordarei. A Flávia, o namorado e eu formamos um triângulo curioso. Ela parece com a água que ferve, aquecida pelo fogo que comparo ao namorado; e eu sou o vapor que vai se condensar quando alcançar o vidro da janela. Está tudo muito claro e ao mesmo tempo sem definição. Acabei de fazer o chá e começo a limpar o vidro para poder ver a chuva que continua persistente; paciente espero pela Flávia mas resolvo que desta vez será diferente. Vou esquecer meu nariz, não lembrar do belo tipo que é o namorado dela e depois pedir uma cesta de café da manhã para dois. Enfeitarei a mesa conforme a sugestão e quando ela acordar ficará surpresa. Direi tudo sobre o que quero com o discurso que prepararei durante a noite. Correrei o risco da decepção, mas tentarei. Afinal, tenho o motivo, criarei o clima e se der certo ela esquecerá o namorado que estará esperando ao acordar. Tomo o chá, faço o pedido e começo a memorizar as palavras que direi, com o cuidado de um adolescente que se apaixona pela primeira vez. A campainha toca e meu coração quer saltar pela boca. Não preciso nem apostar. É a Flávia. SÃO PAULO INDÚSTRIA PAULISTA Falar da Indústria Paulista é falar do poder, do talento, do progresso. São Paulo abriga o maior parque industrial do país e o faz com tanta competência, nem precisando acrescentar que hoje é o maior da América Latina e também do Hemisfério Sul. Imponentes multinacionais aliaram aos seus nomes a “Divisão Brasil” e encontraram aqui tanta força de trabalho, que as filiais passaram a ter consistência de valor por si mesmas, embora o mérito, na essência, seja atribuído totalmente às matrizes. Na São Paulo de tantos, tiveram a sustentação suficiente para exibir seus respeitados logotipos, legitimando ostensivamente seus princípios. Exuberantes em suas instalações, também obtiveram os incentivos necessários para se firmarem e serem absolutas como almejavam. Sempre vivendo o presente, reinventam-se em técnicas, que são absorvidas rapidamente, somando o novo às experiências anteriormente adquiridas. E terceirizam para diminuírem custos, fazem contenção de despesas para terem maior lucro, investem em equipamentos tecnologicamente oportunos para competir, aplicam a reengenharia para se atualizar, e crescem. Crescem também com a força evolutiva do ser humano, o paulista de todas as partes do Brasil, que se empenha, se integra, se dedica. Movimentam a cidade de norte a sul, de leste a oeste e em outros pontos cardeais que São Paulo tem só para ela. É estimulante ver a troca de turnos, que não é simbólica como a da guarda real inglesa, mas real no sentido próprio do termo. A cara da Indústria Paulista tem coroa. São Paulo, porém, não esquece que há o outro lado da moeda e que ela pesa em igualdade no valor. E mais uma vez a controvérsia se mostra presente, mesmo que o objetivo esteja na mesma direção. São as pequenas indústrias que se agigantam no final da soma, representam parte fundamental do parque paulista e lutam para se firmar. Fazem isto por si só, com uma força quase infinita. Geram mais empregos, proporcionam benefícios que nem poderiam, não tem incentivos e continuam esperando sempre pelo amanhã. As pequenas indústrias paulistas parecem contar com os poderes de “Macunaíma”, o super-herói brasileiro, concebido à revelia de qualquer realidade plausível. Tal como ele, as pequenas indústrias surpreendem com suas metamorfoses, sem as quais não teriam condições de realizar as proezas de que são capazes. Só com estes poderes especiais, por se situarem em São Paulo e aqui conjugarem trabalho e capital, transformando a matéria-prima em bens de consumo, é que se pode explicar a sua sobrevivência. Quando a roda aconteceu, ou foi criada, surpreendeu e impulsionou o homem. Da rústica invenção até os sofisticados “softwares’ que interligam origens, credos e poderes, passou o tempo e ficaram os haveres. Foi muito proveitoso o progresso no âmbito material, que hoje pode ser até comparável ao ilimitado. O espaço sideral é almejado e a conquista já foi iniciada. Parabéns!, provavelmente o Criador deve estar satisfeito com sua criatura. A inteligência está sendo devidamente aplicada. Resta agora iniciar o desenvolvimento da outra face. Esta, talvez por não ser palpável, portanto nada visível, foi deixada para depois. A harmonia, o entendimento e a fraternidade devem constituir o próximo passo a ser dado. Então os homens poderão prescindir da aprovação do Criador, porque também serão deuses. Maristela é secretária. Do Diretor da companhia como seria de se esperar e por méritos. Bilíngüe por nascimento graduou-se e aperfeiçoou-se nas escolas mais respeitadas e posteriormente, para completar sua formação profissional, fez grande parte dos cursos que existem no país e fora dele. Dedicou-se também à informática e hoje domina seu Pentium com uma habilidade que causaria surpresa ao próprio Bill Gates. Não é preciso dizer que ninguém toca nele e que os trabalhos feitos por ela são assinados sem conferências. Seus telefonemas, nacionais ou internacionais, são tão precisos que muitas vezes Maristela auxilia em assuntos específicos, para agilizar negociações ou amenizar situações que ficaram um pouco estremecidas. Ninguém lhe contesta a eficiência e a dedicação que transparece nos mínimos detalhes de trabalho e vai até a sua aparência irrepreensível. Veste-se sempre com cores discretas, mas que valorizam a cor da pele, o azul germânico dos seus grandes olhos e o dourado dos cabelos curtos. Os sapatos são confortáveis e combinam com as bolsas, sempre de tamanho pequeno, fazendo o contraponto com a pasta executiva e enorme, dentro da qual gira a sua vida profissional. Ela já beira os quarenta, é solteira, cheia de princípios, até arcaicos para tanta atualidade pessoal. Com todos estes requisitos, além de completa passou a ser perfeita. Voz unânime dentro do local de trabalho e também fora dele, pois que os comentários existem e para isto são usados. Dr. Teles é o Diretor. Tem sempre a cabeça cheia de problemas, responsabilidades nas decisões que só cabem a ele e as horas tomadas por reuniões desgastantes e necessárias. Ele nem pensa na possibilidade de ficar sem o auxilio de Maristela. Ela é seu braço direito, o esquerdo e um terceiro que existe imaginariamente, ainda mais eficaz que os dois primeiros. Maristela não é técnica, mas através do chefe passou a ler uma noção generalizada da Indústria como um todo e então pode conversar sobre tudo, até com certa propriedade. Sabe das difíceis situações que o chefe vive, em um mercado oportunista e desgastados; preocupa-se e torce pelo sucesso do Diretor. Deixa que sua mesa, gavetas e prateleiras estejam sempre organizadas e que as reuniões em sua sala causem inveja aos concorrentes. Nunca falta nada e nem sobra. Para isto as arrumadeiras são bastante exigidas, todo o material de boa qualidade e os serviços bem contratados. Se o palácio do Planalto Central não fosse a obra de arte que é sempre pronto para urna reunião emergencial, talvez o Presidente tivesse ouvido falar da eficiência dos serviços na sala do Dr. Teles. Brincadeiras à parte, a realidade é que tudo corre satisfazendo ás exigências ou bem melhor do que isto. Também a família do chefe é digna de cuidados. As flores para a esposa chegam nas datas certas, com cartões que Maristela rascunha e ele passa a limpo. Os presentes são adquiridos através de mostruários imensos e quem acaba escolhendo sempre é a secretária, pois ele está habitualmente com pressa e ela “entende melhor do assunto”. Para os filhos a situação se repete. Maristela faz com que os presentes comprados sejam colocados no carro do Dr. Teles para que ele não os esqueça e, de quebra, ainda faz um telefonema cumprimentando, sempre muito simpática. Ela se entende muito bem com d. Sílvia, com as crianças, e quando a família viaja vai verificar se tudo está em ordem na residência, cuidando até do cachorro. Naquela quinta-feira o representante da joalheria chegou, com seu inseparável mostruário, serviu-se de café e quando entrou na sala do Dr. Teles, Maristela foi surpreendida com a necessidade de passar um urgentíssimo fax para a Áustria. Deixou os dois a sós, fez o seu trabalho e quando voltou com a resposta, já encontrou o homem de saída e uma caixa sob a mesa do Diretor que demonstrava a compra feita. A embalagem dispensava enfeites. Reparou também que o 1ocal em que a caixa fora colocada não deixava espaço para esquecimentos. Recebeu instruções para ligar para a floricultura o pedir rosas vermelhas; ela também não pôde rascunhar o cartão. O Dr. Teles já o havia escrito. Estranhou, tentou lembrar se de alguma falha em outra qualquer ocasião e não encontrou. No dia seguinte ela esmerou-se ainda mais no trabalho, no vestir-se e até no perfume com leve cheiro de camomila. Quando o Dr. Teles chegou ela sentiu que ele estava feliz. Tinha sinais da noite bem dormida com pouco sono, detalhe que só ela percebeu. E percebeu-se afinal. No domingo, ao lado de todos os jornais que pode adquirir, ela procurou nos classificados dois tipos diferentes anúncios. O primeiro era um emprego. O segundo, e mais difícil, era para encontrar um homem com as seguintes características: ter mais de quarenta anos de idade, bom nível intelectual que, como ela, estivesse sozinho, carente, confuso e à procura de companhia. SÃO PAULO O CIRCUITO GASTRONÔMICO Se a “festa de Babeth” fosse realizada em São Paulo, a protagonista da estória não teria nenhuma dificuldade no que se refere à matéria prima para o seu banquete. Ela poderia ter outros contratempos, mas estaria devidamente abastecida. Como a referida festa foi em outra época e outro local, nós não podemos compreender suas dificuldades, pois nossa realidade é outra e outros os nossos interesses. No que diz respeito a alimentos, o interesse do paulista é ter tudo o que procura e a realidade é que ele o tem. O abastecimento da cidade satisfaz a qualquer exigência e atende brilhantemente ao circuito gastronômico aqui existente. Pode-se comer em São Paulo como em nenhum outro lugar e em seu livro caixa, entre débitos e créditos alimentícios, existe sempre alguma coisa em saldo positivo. Um gigantesco cinturão verde envolve a cidade em oferta contínua de frutas, verduras, legumes, raízes e grãos, tudo ornamentado com uma diversidade infinita de flores que se misturam nas entregas. É continua em São Paulo a entrada de caminhões, transportando todos os tipos de alimentos para que nada falte na grande mesa que é a própria cidade. São Paulo também não esquece de suprir-se através dos rios e oceanos; de todas as partes do nosso território e também do planeta chegam mercadorias em um incessante desembarcar. Isto feito, a cidade expõe o seu poder de oferta ostensivamente, sem nenhum roteiro específico, seqüência ou modéstia. As mercadorias expostas são variadas e coloridas. Os preços, exibidos de maneiras prosaicas ou originais, podem ainda ser negociados para a felicidade do bolso do comprador e para desespero dos chamados vigilantes do peso. Os estribilhos dos feirantes, ritmados e rimados para animar os clientes, alegram, divertem e por isto é impossível ir à feira e voltar de mau humor. A sacola poderá não estar tão cheia, mas a cabeça com certeza ficou mais leve. Aceitando-se o convite para se provar o abacaxi, a melancia ou o pedaço de queijo, na certa não haverá necessidade de um almoço, pois o infalível e delicioso pastel será saboreado a seguir, formando uma refeição invertida, nada conceitual, porém muito agradável. Se o comprador não gosta de acordar cedo, o abastecimento da casa fica resolvido através dos mercados municipais que permanecem abertos até as dezenove horas e não desapontam. Que o digam os freqüentadores do mercado de Pinheiros ou da Lapa ou de Santo Amaro, onde o Juscelino (que não é Kubitschek), com sua banca, “faz seu país”. Em solução de continuidade, os mega. hiper ou supermercados são completos, tendo o muito do todo que se precisa. Ultrapassam em oferecimentos diários as expectativas mais determinadas. As donas de casa também são apropriadamente auxiliadas por excelentes rotisseries, casas de congelados, comida macrobiótica, vegetariana ou natural, podendo ter extraordinária variedade de alimentos ao seu alcance e escolha. Os paulistas são também freqüentadores permanentes das padarias e a imagem das pessoas saindo de uma delas é comum, rotineira, quase despercebida, mas com um jeito de volto amanhã. As padarias paulistas fazem com que os consumidores aparentem ter profundo conhecimento do valor representativo do trigo para com a humanidade. Percebe-se isto claramente na Santa Marcelina, na Barcelona ou na do Sr. Benjamin Abrahão, que decorou a fachada de sua casa de pães com bandeiras, homenageando seus clientes. Percebe-se também esta valorização nas padarias de bairros mais simples onde o aroma do pãozinho francês perfuma o quarteirão. De padarias para botecos é só questão de público e de horário. Os botecos existem desde sempre, não perdem seu lugar, seu fascínio e oferecem junto com a aguardente ou o vermute, os apreciados ovos cozidos, com a casca colorida e seu interior sempre no ponto certo. Na mesma vitrine a bandeja com a sardinha frita, bem tostada e oleosa, forma o complemento perfeito e apresenta-se como o mais delicioso dos manjares, a qualquer hora do dia. A cidade atende às solicitações mais variadas. Traz a receita do almoço do caipira do centro do país para a mesa do executivo paulista, porque os dois se completam aqui. Cada um a seu modo aprecia o milho pilado, o toucinho e a carne-seca de porco, também os peixes que são conseguidos somente no Pantanal ou na Amazônia. Do Sul, a cidade recebe carnes genuínas, que são pouco temperadas para não ter seu sabor alterado; armazena o mate verdadeiro que será preparado em cuias artesanalmente lavradas e depois saboreado por meio de uma bombilha. São Paulo também não esquece que precisa oferecer ao morador procedente do Norte a carne de sol, a macaxeira e a farinha de mandioca bem grossa, ao lado da manteiga de garrafa. Para isto, dispõe de lugares específicos, para ainda mais específicos consumidores, que nunca esquecem de levar consigo uma garrafa pequena, com um rótulo simples onde está escrito “pinga coquinho”. Conhecer as culinárias regionais é uma deliciosa maneira de se aproximar da cultura do povo. Pelas grandes dimensões do país e pela distância também cultural que define cada região, a culinária brasileira é marcada por diferenças singulares. Talvez por isso a nossa cozinha não seja vista como um conjunto e perca muito na avaliação do seu conteúdo. A comida brasileira é variada, gostosa, colorida. No norte a culinária indígena teve urna influência determinante, enquanto a origem africana é visível na mesa da região nordeste: o sul foi vigorosamente marcado por imigrantes e os sertões somaram aos seus pratos os condimentos usados nos países vizinhos: tudo isto, com vida própria, junto aos molhos e temperos portugueses. Desta forma, a cozinha do nosso país compõe uma tela rara, rica e sobretudo muito saborosa, que aguça o paladar. São Paulo é o paraíso do exotismo e da simplicidade em restaurantes. Por isso, fazer na cidade algum tipo de recreação em que não exista o prazer da mesa é impossível. Para cada paulista, da própria capital ou que é natural de outro estado ou pais, a cidade tem uma mesa pronta, esperando para satisfazê-lo. Individualizando gastronomicamente São Paulo, podemos nos integrar a principio na alegria curiosa e barulhenta das cantinas italianas. A alma da origem mistura-se aos substanciosos antepastos, dispensando a continuidade da refeição. Porém ela acontece entre molhos, massas, polpetas, lingüiças, minestrones e até um pedaço de cabrito assado temperado com alecrim. O molho deve ser parágrafo à parte: à carbonara, à bolonhesa, ao sugo, ao pesto, bechamel, à moda da casa ou do “cheff” que, via de regra é italiano mesmo e orgulha-se de suas criações. Detalhando temperos, o tempo e o calor que coloca em seus pratos, ele passa de mesa em mesa alimentando também a emoção de cada um. O parmesão não falta e o vinho, questionado literalmente, complementa e enobrece a mesa em versões de branco, rosado ou tinto, sendo escolhido sempre com muita propriedade. Da Itália para a China é só uma questão da porta na qual se vai querer entrar. Se Marco Polo trouxe muito do Oriente para Roma, em São Paulo a comida chinesa tem característica própria, sem se mesclar com nenhuma outra e conta com o reconhecimento do apreciador. São Paulo adotou o frango xadrez sem alterá-lo, bem corno os bolinhos “Wang Tung” recheados com carne de porco, gengibre e cebolinha; ao comer, o chinês paulista lembrará da cor vermelha e, inconscientemente, de dragões. Isto pode acontecer em pacotes embalados para viagem, ou em requintados ambientes que chegam ao exagero do luxo. Os japoneses chegaram trazendo sua cultura milenar, conservam até hoje a filosofia de vida, trabalham, conquistam e formam em São Paulo uma colônia ímpar. Somente em Tóquio a população é mais numerosa e os costumes mais enraizados. Na arte culinária, japoneses marcam firmemente os dias e fazem São Paulo comer com pauzinhos. Também ensinam o paulista a apreciar devidamente o “sushi” e o “sashimi”, entre outras iguarias próprias da terra dos Samurais. Elas são servidas em locais adaptados, onde gueixas fazem a imaginação viajar, enquanto servem às mesas no próprio chão. Na cidade que adotaram também podem ouvir músicas típicas e nostálgicas e esquecer que por razões de respeito ou dignidade ainda chegam a atitudes como a prática do “hara kiri”. A disciplina peculiar do alemão adquire particularidades próprias em São Paulo. Aqui ele procura o ambiente adequado em lugares decorados com uma sofisticação indiscutível, onde sempre encontra alguma coisa que tenha de ser ajeitada. No entanto, após tomar um ou dois “Steinhäger” seguidos pelo chop e começar a escolher seu prato, já está mais para paulista que para germânico. Detém-se nos nomes dos pratos registrados nos cardápios e quase sempre pensa em “Kassler”, “Eisbein”, “Sauer-kraut”, mas acaba por pedir “Wurst mit Kartoffel”, ou “Wienner Schnitzel”. O restaurante será considerado excelente se estiver aromatizado à canela e maçã, que antecipam para o olfato a sobremesa invaria velmente acompanhada de creme, com um toque de baunilha. Quando termina a refeição, o número de canecas de bebida servida já é incontável e para o cliente o garçom mestiço parece ter olhos azuis. Normalmente o manobrista responde “Auf wiedersehen” sem saber direito o que está dizendo, quando despede-se e entrega a chave do carro ao cliente satisfeito. São Paulo continua pelo universo culinário e apresenta “Kibes”, “Tabules”, “Coalhadas”, “Esfihas”, fazendo com que os árabes se recordem de tendas e do sol causticante; no entanto vivem o momento como em um Oásis por força do nosso clima tropical ou com a climatização oferecida pelos recursos da tecnologia. Podem também saborear seus pratos em locais onde odaliscas rodeiam as mesas ou dançarinas exibem-se na cultuada dança do ventre. É difícil ir-se às touradas de Madri, mas fica fácil em São Paulo sentir a Espanha diante de uma lindíssima “Paella” que parece tocar castanholas. O espanhol aproveita então para dizer que não existem bruxas “pero”... é melhor tomar uma sangria. Ficam descontraídos e começam falar sobre os Mouros, enfatizar a valentia de “El Cid”, dominar um miúra como um valente toureiro, lembrar Nossa Senhora de Mont Serrat, das catedrais, de Velázquez e Dahli ou Picasso. A conversa muda de rumo ou a bebida aumenta quando “Guernica” é lembrada e não mencionada. O espanhol prefere ficar paulista e continuar a refeição. Aos portugueses a cidade oferece-se com referências de filha. Para eles canta poemas, toca o fado e prepara bacalhoadas que fariam com que Cabral se desviasse mais depressa do caminho para as índias. Seguindo o descobridor, São Paulo continua usando especiarias em seus pratos e faz mais: canta o Hino Nacional através do Museu do Ipiranga, relembrando o vínculo no passado com Portugal. Guarda os discos de Amália Rodrigues e, para nivelar o auge da emoção, reverte o quadro servindo o vinho verde com seu teor alcoólico mediano ou arremata a refeição com um clássico cálice de vinho do Porto. São Paulo faz com que os portugueses se sintam colonizados. Retornando magicamente no tempo, os corajosos “Wikings” descansam em restaurantes paulistas lembrando-se de bravatas, do frio, das eternas noites de sua terra ao lado da “Akvavit”, e de um delicioso “Smorgasbord”, com uma pitada de um tempero diferente chamado São Paulo. Os nórdicos também não resistem ao “Marzipam” paulista e acabam completando a refeição como todos, com café. Há aqueles dias em que a cidade ainda conserva a característica garoa fina e um friozinho tímido que congela e incomoda. Nestas ocasiões os paulistas franceses ou suíços fazem uma opção deliciosa para seu programa da noite. Com agasalhos pesados eles se propõem a sair, pois o “fondue” que os espera desarma a preguiça ou a vontade de ficar aconchegado em cobertores, em frente do aparelho de televisão. Os lugares escolhidos são caros, encantadores, tem o calor ideal e a alegria transparece nos rostos que ficam rosados quando iluminados indiretamente, ou com a circulação mais rápida do sangue conseguida através dos goles de vinho. Destes são discutidas as regiões de origem, a safra, ou marca com a convicção do conhecimento. Sempre agradando, São Paulo também oferece o “Kreplach”, o “Goulash de Jalafel”, a sopa “Mazze Ball” e a compota de frutas secas aos paulistas judeus ou húngaros que formam um porcentual considerável entre os moradores da cidade. Já o americano do norte trouxe os “Hamburgers” e os “Hot dogs” em sua bagagem e conquistou o paladar da cidade. São Paulo foi receptiva, respeitou a receita, mas foi adicionando seus próprios ingredientes e transformou-os devagar, dando-lhes características e particularidades que foram aceitas e aplaudidas. Para acompanhar a refeição optam por refrigerantes, sucos congelados ou qualquer outra bebida industrializada. E uma forma de alimentação que se firmou definitivamente, faz a festa das crianças e para os adultos é a solução em refeições rápidas, sempre necessárias, na correria comprometida com o tempo. Conquista a todos, pois parece ter a fórmula mágica saída de dentro de um caldeirão em um “halloween”. As churrascarias são o lugar ideal para quem não dispensa enormes quantidades de proteínas, através de churrascos ou carnes preparadas à moda paulista que surpreende pelas inovações. Tem acompanhamentos variados, sempre apreciados e conseqüentemente repetidos. Saindo do usual, o paulista pode alimentar-se com uma variedade de carnes nada habituais, como a do javali, jacaré, capivara, codorna, as quais aprecia muito mas, sem dúvida, retorna para o rodízio costumeiro. Nestes momentos o sul do país está presente nas churrascarias, visível nos espetos fumegantes e aromáticos, trazendo a lembrança pastagens, bombachas e até boleadeiras. Nos dias em que a alimentação deve ser mais leve, as casas de chá são a escolha perfeita. O serviço via de regra é impecável, traz à memória de qualquer um a elegância inglesa e o “fog” de Londres. Satisfaz ao inglês paulista mesmo que o tropicalismo esteja presente até no vestuário de algum cliente, que pode estar feliz com uma camisa igual à usada pelos componentes do grupo “Olodum”. Mesmo que tenha tantas opções o paulista não resiste às suas duas paixões. A primeira, por ordem alfabética e não de preferência, é a feijoada. Ela tem um passado bonito, interessante, brasileiro: saiu das senzalas, passando pelas salas de banquetes dos senhores de engenho e sem obstáculos chegou até nossos dias. Hoje é saboreada após uma caipirinha irresistível, indispensável, e complementada com uma laranja, que vem para a mesa descascada, em pedaços, seduzindo com sua cor dourada e sugestiva. Nas quartas-feiras São Paulo a serve apressadamente, porém aos sábados ela só termina mesmo porque não é possível continuar em ritmo de almoço quase na hora do jantar. A segunda paixão e a pizza. Nasceu muito longe mas aqui adquiriu modelos que só são próprios de São Paulo. Por esta razão, além da mussarela e do aliche que a princípio a caracterizavam, passou por metamorfoses constantes sendo servida em uma variedade que parece dizer: a gula é um sacramento. Em São Paulo ela continua em permanente modificação, que depende somente da imaginação de quem a faz, e vem para a mesa quente, colorida, aromatizada a orégano, pedindo para ser saboreada. Normalmente é acompanhada de cerveja ou chop e não do vinho, como seria apropriado. O objetivo é tornar a refeição mais leve para se poder repetir a bebida sem cuidados. Nas noites de sábado ela é quase obrigatória. É festiva: quer na tranqüilidade dos restaurantes ou nas agitadas “pizzerias” dos Jardins, onde os jovens se agrupam e entram pela madrugada do domingo sem pensar no desagradável som do despertador. O paulista comemora o seu fim de semana. Para encerrar a noite, ou melhor, já o amanhecer, é provável uma parada para um café. Pode ser tomado ás pressas, com a intenção de satisfazer o hábito, ou então ser saboreado tranqüilamente com creme ou menta. Na segunda hipótese a intenção é a de proporcionar a possibilidade de que aconteçam olhares, troca de idéias e talvez para muitos a proposta de um possível encontro no dia seguinte. SÃO PAULO EXECUTIVO E FUNCIONÁRIO EXEMPLAR Em São Paulo não se ouve mais o apito nas fábricas e os cartões magnéticos encontram seu espaço substituindo os do ponto. Diminui-se o número de funcionários e a formação especializada é, a cada dia, solicitada mais intensamente, sem distinção de áreas no mercado de trabalho. Robotizam-se as linhas de montagem, agitando linearmente a mão-de-obra em começo, meio e fim. A Internet liga pólos opostos, o mundo unifica-se em sistemas “on-line” e informa-se através de satélites. São Pauto integra-se no futuro que já chegou, privilegia-se dos conhecimentos externos, mas os faz paulistas. Parabéns! O homem fez a máquina, que hoje toma o lugar dele; não se arrepende, quer mais. E isto acontece porque acima de tudo, com defeitos e qualidades, o ser humano é surpreendente, extraordinário, admirável. Em momentos especiais, a cidade-máquina desliga seu cérebro, abre o coração e reverencia seu homem. Ele não tem pés de barro, luta pelo seu querer domina o próprio espaço. É grande o suficiente para recolher o lixo das casas com uma prestação de serviço exemplar assim como é corajoso para tomar posições que decidem parte da vida de seus semelhantes. Alguns dormem exaustos. Outros, por terem que tomar atitudes difíceis e polêmicas, terão suas noites atormentadas; mas estarão no dia seguinte com a cabeça erguida, porque o mundo que é São Paulo não pára e seus homens maravilhosos, com ou sem Ph., têm sempre que continuar. Os sucessos que obtemos diariamente são a soma de esforços múltiplos, que na maioria das vezes consideramos individualmente. No entanto, nunca é demais lembrar que sempre dependemos uns dos outros. Este conceito é antigo e até desatualizado para os padrões do momento; lá no fundo de cada um, porém, esta verdade é perene e imutável. Os desafios do cotidiano dificultam as relações humanas até mesmo na expressividade do agradecimento. O “muito obrigado” é dito por hábito, sem que as palavras exprimam o verdadeiro sentido. É seguro que casualmente a solidão se faz necessária como uma forma de proteção, para reflexões, ou um retorno interior de peso avaliativo, mas é a amizade que alimenta, a união que traz a força, a confiança que faz a paz. Ele vai caprichar muito no nó da gravata nova e vai errar. Terá que refazer. Quando se sentir satisfeito verificará documentos, agenda, caneta, chaves. Ato contínuo, segurará, com o dedo indicador, o paletó pela gola e rápido se dirigirá para a garagem do edifício. Quando nós o virmos dar a partida já teremos tido tempo de observá-lo melhor. E obstinado, disciplinado, convincente. É “doutor” em sua área de trabalho e tem um currículo com páginas e páginas que demonstram os seus conhecimentos e empenho. Não exibe seus títulos. Simplesmente sabe que os tem. Também saberemos que ele foi eleito o “Executivo do Ano”, em uma cidade onde não falta competência. Seu valor fez dele o típico homem de sucesso. Com certeza chegará ao centro de convenções do Anhembi, para a cerimônia de premiação, britanicamente na hora marcada. Ultrapassando a velocidade da luz, nos deslocarmos até a industrial Diadema, onde encontraremos outro homem. Este é atarracado, baixo, moreno. Está nervoso. Sente-se sem as mãos, como se as tivesse perdido em algum acidente no seu trabalho. Saberemos imediatamente que o que lhe falta são as ferramentas costumeiras, o galpão com suas fresas, tornos e plainas e a graxa escura, da qual sobram vestígios no dedo mínimo. Ele não vai querer sair, mas vai pegar a chave do carro como se ela pudesse substituir a chave de fenda. Terá então a coragem necessária para ligar o motor, precisamente regulado e dirigirá com habilidade incomum. Vai transpirar muito, umedecer a camisa limpa, mas desconhecerá o motivo. Tem os seus pensamentos voltados para o fato de ter sido escolhido o “Funcionário Exemplar” da Empresa e que terá que comparecer a uma solenidade onde se formalizará a escolha. Decidirá esfriar a garganta, entrará em um boteco e, de uma só vez, tomará uma dose de conhaque. Terá acabado então, juntamente com o líquido do copo, a fase de resistência. Vai dizer para si mesmo que somente neste momento é que se decidiu a ir. Daremos o tempo necessário e iremos encontrar nossos homens, sentados em lugares diferentes na mesma platéia. Eles já terão tido tempo de se acenarem ligeiramente com a cabeça e estarão ouvindo discursos cobertos de elogios. Mesmo que seja mera formalidade conceitual, o prêmio envaidece. Diferencia até aqueles se que acham superiores. Deixaremos que, por intenção dos organizadores do evento e, por fazerem parte da mesma equipe de trabalho, os nossos personagens recebam suas homenagens em seqüência; vão se esbarrar na subida da escada e tornarão a se tocar no meio dos cumprimentos. Estarão emocionados. Parecerá piegas, melodramático mesmo, mas isto acontece, aqui, em São Paulo, onde na disputa do mercado de trabalho, cada um estabelece domínios. Abraçam-se ainda no palco, entre aplausos impessoais, enquanto a platéia começa a se dispersar, dirigindo-se para o esperado “coffee-brake”. Conforme o que foi anteriormente combinado, eles irão se encontrar algum tempo depois em um barzinho conhecido, sozinhos, ou melhor, acompanhados de uma geladíssima “número um” ou número dois ou qualquer outra. A gravata já não estará no lugar, mas a chave do carro continuara retida na mão calejada. Estarão comentando sobre os acontecimentos do dia e os do dia -a-dia. Falarão das metas estabelecidas, as cumpridas e as não cumpridas, das decisões difíceis que tiram noites de sono de um, mas que sempre contam com a firmeza do apoio do outro. Seus olhos brilharão quando se lembrarem das conclusões. Relembrarão das salas de reuniões, das oficinas sempre com temperatura elevada, da hora das refeições e das horas extras. Eles terão o direito de pensarem em detalhes que não serão mencionados: as intolerâncias, as divergências, as dificuldades que se somam no campo de trabalho. O dono do bar, impaciente, começará a levantar as cadeiras e eles rirão do amontoado de garrafas vazias. Brigarão pela conta e deixarão uma gorjeta alta. Quando saírem, terão a certeza de que o dia seguinte será igual: um deles terá as mãos ocupadas por todos os grifos, as chaves, porcas e parafusos que puder carregar, mais as que puder por no bolso do uniforme, enquanto que o outro dará início a intermináveis reuniões, auxiliados por variados “papers”, usando a sua fascinante categoria. SÃO PAULO SUA MAJESTADE, A BOLA São Paulo não foi planejada. Aconteceu de maneira aleatória e cresceu superando qualquer expectativa. Aceitou a irregularidade do seu território porque a comparou ao povo. Cresce a cada dia, em uma viela a mais, em um beco escondido, ou na encosta de uma elevação. Cresce também com a chegada de muitos e na saída de uns poucos. Bastante consciente de sua sinuosidade, São Paulo admira um corpo esférico e faz da bola a sua estrela. Com ela crescem os meninos, vibram os homens, fazem-se amigos, criam-se sociedades esportivas e nascem os times de futebol. Estes se transformaram nas fantásticas empresas que hoje manipulam fortunas em Real, numa questão de pouco tempo. São Paulo tem público para sua estrela. Também atletas, que com talento fazem uso da luz da bola. O público é fiel. Sempre presente, aglomera seus torcedores e não muda de camisa nunca. A torcida, organizada, faz a festa, cria problemas, agita São Paulo e prestigia a agremiação que elegeu, até as últimas conseqüências. Têm uniformes definidos, lugares estabelecidos nos estádios, são técnicos, jogadores e juízes ao mesmo tempo: também administradores e mentores, em todas as áreas referentes ao esporte que fascina. Além de se uniformizarem, usam suas vozes e a imaginação, criando situações estimulantes para animar os atletas e conduzi-los à vitória. É empolgante ver o entusiasmo ora de um lado, ora do outro, sem interrupção durante o tempo que dura o espetáculo. Os torcedores ostentam também bandeiras gigantescas fazendo movimentos singulares nas arquibancadas; elas têm cores correspondentes a cada agremiação, são vivas, sugerem e estimulam a liberdade da emoção. Com esta liberação pode acontecer qualquer tipo de reação, desde a mais afetuosa até aquela que chega à violência. São Paulo lamenta a segunda forma de reação, embora dê a liberdade. Aplaude a primeira, emocionada com torcedores inspirados, que até criam hinos para seus times. Estes podem ser simplesmente refrões, mas também podem chegar ao nível de uma sinfonia. E fala-se em “Torcida Independente”, “Mancha Verde“, “Gaviões da Fiel”. “Torcedores da rua Javari”, “Leões da Fabulosa”, e vai-se por ai afora, em um denominar sem fim, na incessante rivalidade. Torce-se pelo Corinthians, junto com o admirável e obstinado Vicente Matheus; pelo Palmeiras, que já foi Palestra, não perdeu o verde e continua sendo a “Academia” que tem no Ademir da Guia seu exemplo eterno; pela Portuguesa com a força da colônia Lusa: pelo São Paulo Futebol Clube, o time da cidade: pelo Juventus de tradição perene, tudo com tanta emoção, que vai além do fanatismo. Facilmente se adota o atleta. O torcedor passa a integrá-lo de imediato, sem reservas, no quadro de seus ídolos, como se ele sempre estivesse estado ali. Valoriza apenas o seu talento; nunca o seu passado. O atleta só é fiel à bola. Não pode esperar. Sua vida profissional é curta. A princípio, ele só quer jogar. Conhece o passado de muitos e tenta seguir o exemplo dos que obtiveram sucesso. Isto quase sempre é teoria. Na prática, quando suas contas bancárias crescem juntamente com seu prestígio, sua cabeça rola como a bola. E muda o gramado, o amigo, a namorada, o time e o objetivo. Parece fácil usar o carro importado e, dentro dele, esquecer o ônibus de anteriormente, ou o pé descalço, ou o anonimato. Na fase em que se torna um ídolo, o homem tem que saber administrar a mudança de vida e de valores. Pode ter tudo o que a glória, o prestigio e o dinheiro oferecem. São Paulo dá espaço, condições, quer o progresso deles e que mudem para melhor. Deixa que outras cidades os conquistem aqui ou em qualquer outra parte do mundo. Só não pode fazer com que eles não se esqueçam de que os dribles, os gols, as defesas e o talento, sejam ofuscados por dificuldades de razões comportamentais ou de temperamento. Isto só compete a eles, que saíram do cinza para o azul e têm na bola o seu sol particular. Nos casos em que a profissão é uma paixão, a entrega do individuo é total porque isto faz parte de sua integridade pessoal. Não está em jogo apenas um modo de vida ou a maneira de ganhar o sustento. A emoção pesa muito mais do que a razão, tendo como companheiras tanto a felicidade quanto a dor. A paixão transforma a vida em arte, e então o artista sente que precisa ser independente da opinião alheia, embora esteja exposto às pressões. Sua vida particular é invadida, suas decisões questionadas, seus desejos polemizados. Na história da arte, em qualquer tempo ou área na qual colocarmos o artista, sempre nos depararemos com o conflito e a intensidade. Ele tem que insistir, oferecer resistência, saber dizer o sim e o não, porque a arte também é feita de sabedoria. Ela já adormeceu. Ele não consegue conciliar o sono. Sabe que precisa descansar, pois o jogo de amanhã é importante e decisivo para a sua carreira. Prometeu a si mesmo que fará o gol da vitória e não é seu hábito faltar às suas promessas. Depois de um copo de leite morno e bem açucarado, concentra-se em posição adequada e vai amolecendo até que suas pálpebras se fecham e o sono chega. Talvez pela tensão ou pela própria pretensão, não dorme tranqüilo; revira-se na cama e mesmo sem acordar parece estar vivenciando alguma situação desconfortável. E isto realmente acontece. Ele sonha, ou melhor, tem um pesadelo que o atormenta e torna sua noite inconveniente: “... Discutem. Ela se firmou na posição radical, definitiva. Posar para uma revista masculina. Ele esmurra o ar como se fosse pugilista, chuta o tapete, que com o movimento forma desenhos disformes, e sai batendo a porta. É assim que ela quer?, está acabado. Com a mochila nas costas vai para a concentração: pensa muito fala pouco, não ouve. No vestiário, vestido com a camisa dez, mistura as instruções do técnico, o ruído da galera, a decisão da mulher. (Por quê?, ela esta invadindo a linha de defesa.) Parece que ouve torcedores repetindo o nome dela quando entra em campo, numa ovação efervescente, que desrespeita o nono mandamento. Não é assim que acontece. Ele define o seu próprio nome, em um som circular contínuo, cada vez mais alto e claro. A verdade é que ela ainda não foi fotografada. Então explode: no peito, nas mãos, nas pernas, e a bola balança a rede em um gol único e seu! Num fracionário milésimo de segundo sua cabeça se transformará na primeira bola, girará nos primeiros elogios, nos muitos elogios, no primeiro uniforme, muitos outros, na chuteira que seria o passaporte para a divisão especial. Irá atravessar um espaço fantasma que fica onde a razão se mistura com a emoção, e pairar em um amontoado de sentimentos, que em passado recente tiveram que ser controlados com o apoio do técnico. Este foi guru, psicoterapeuta, assessor financeiro, professor, consultor sentimental, parceiro, amigo. Faz o cruzamento mais difícil que é o de voltar para a realidade, para aquele gol, no dia certo, no momento oportuno, no passe ideal, no drible que mais pareceu passo de balé e arrancaria aplausos até do próprio “Garrincha”. Em solução de continuidade, a bola rola tendo que ser perseguida, disputada, dividida e ele continua sua aventura levitacional sempre com as pernas alternadas, fazendo com que o terreno firme pareça apenas ser mais um detalhe. Fim de jogo. Vitória. Caminhos. Sucesso. Futuro. Fim de romance. Derrota. Frustrações. Passado. Ele saberá disfarçar. É o herói do dia. Volta para o vestiário entre aplausos intermináveis, entrevistas arrebatadas e fica diante de câmaras deixando que seu corpo clareie e escureça em ordem de seqüência, entregando-se às luzes e às sombras sem nenhum cuidado. O movimento é ímpar e passa a incomodá-lo. Os ruídos à sua volta ficam cada vez mais presentes, persistem e se modificam...” É o despertador. A linha imaginária, que separa o estar dormindo e o estar acordando lhe parece a marca da grande área, onde a defesa se atropela toda quando há a cobrança de um escanteio. Nesse momento o goleiro retesa-se, estica-se, contorce-se, tem o sistema nervoso todo exigido e quando a bola não entra ele relaxa, passando da angústia para a tranqüilidade. Ele se acalma, espreguiça e sorri. Ela não acorda (parece mesmo foto de revista). O dia apenas começou. E domingo, tem sol, calor e o gol... ainda tem que ser feito. SÃO PAULO NAS CONTROVÉRSIAS DO VESTIBULAR São Paulo orgulha-se de suas escolas. Fala sem reserva das Arcadas da São Francisco, onde a tradição e o futuro formam o hoje. Também da Poli, considerada o vértice dentro do vasto e complexo campo das Ciências Exatas. Admira todas as outras faculdades que formam a Universidade de São Paulo, uma cidade à parte, território pleno para um período da vida. Administra através da GV, não esquecendo a PUC, a FAAP, o Mackenzie e cura-se de dores pensando na Paulista, na Santa Casa e na Pinheiros. Brilha e vibra com todas as outras faculdades, escolas profissionalizantes e cursos, sentindo-se uma cidade literária. Sob certo aspecto, até o é. Em cada esquina, há uma especialização em alguma área, um curso a mais, oferecendo a possibilidade de progresso. As variantes são tantas, que podem até confundir, pois vão desde o corte e costura até os aperfeiçoamentos para pós-graduados, passando por todos os preparatórios, especializantes e complementares que possam existir. A qualidade é variada. E preciso escolher. Escolha feita, a cidade lava as mãos e o paulista administra o praticável ou factível. São Paulo lamenta não ter escolas. Aflige-se pela falta. Se as tivesse, para todos os que se beneficiariam delas, iria se sentir mais honesta. Mesmo que pequenas, simples, contando apenas com o indispensável para proporcionar o conhecimento em seu menor sentido, elas não dariam a oportunidade para a desigualdade que o analfabetismo propicia. Este existe, parece resistir ao tempo e aos intentos dos que querem fazer o agora. Não é fácil. Mais uma vez São Paulo se apresenta antagônica e contraditória. E também nesta controvérsia a cidade se movimenta. De um lado procura a professora para o aluno de sete anos e não tem o lugar adequado para ambos. Em vez de estar na escola, a criança pede um trocado, revira o lixo, não espera por nada. A professora vai trabalhar em algum banco, ou em uma loja, esquecendo-se da didática por deixar de usá-la. São Paulo quer mudanças. Pede por elas, insiste, mostra o óbvio, quer novos modelos que possam admirar os modelos passados. Não quer a clandestinidade de muitos, pela falta do saber se contrapondo ao intelecto elaborado de outros pelo poder da oportunidade. Insiste para que haja o progresso e o novo paulista possa emergir; pois a escola é o local onde o ser humano se fortalece e fica mais preparado para a vida. A coragem aqui é uma necessidade básica, mas deve ter como apoio o próprio meio. São Pauto espera encontrar nas pessoas a solução do impasse. Oferece as possibilidades para que isto aconteça hoje. E, como não tem represálias, aguarda, sonha, disfarça e mostra-se alegre a cada ano, com as colações de graus, com o início dos anos letivos e com os vestibulares, que se sucedem, num movimento intenso, como se São Paulo fosse naquele espaço de tempo a cidade do conhecimento. A juventude é um período de vida maravilhoso. Talvez por isso mesmo seja tão curto. Do passado tem-se pouco, enquanto que o futuro apresenta-se imenso, repleto de possibilidades, seguro e ilimitado. O jovem pode tudo. Não importa o que estiver á sua frente ou o que tiver que admitir, sempre contesta os exemplos existentes. Consegue ter a certeza absoluta de que, de alguma maneira, com ele tudo será melhor Cada dia de vida conta pouco, pois haverá muitos. É claro que existem momentos de insegurança que proporcionam dificuldades, e muitos. Mas no final é tudo superável na compreensão do pai, no colo da mãe, no carinho dos amores ou no consultório do terapeuta. Desta época sobrará a lembrança da procura do pote no fim do arco-íris e a consciência da grandiosidade que existe no sentido da palavra saudade. Ele se senta no meio da sala. A carteira é apertada e o calor sufocante. Os lugares vão sendo ocupados, por rapazes e moças que têm tudo em comum, embora nem se conheçam. São colegas casuais, de momento, e concorrentes reais amando-se, odiando-se e temendo-se, temporariamente. Ele coloca o copo descartável com água em um canto da carteira e equilibra, em cima, dois tabletes de chocolate. Analisa aqueles cujos rostos estão em ângulos favoráveis ao seu campo de visão, pois não se atreve a virar a cabeça. Alguns são dignos de aprovação, preparados. Outros parecem tolos, como aquele de camisa verde que é insondável. As moças, em menor número — com tamanha cabeleira! —, impossível imaginar-lhes os conhecimentos. Ele pensa nos objetivos que os une, naquela sala quente, onde ele se sente gelado. Lembra-se também da coragem que o impulsionou, que o sustentou nas horas de cansaço, e que foi companheira durante o tempo de confinamento. Admira-se por um segundo. Como ele se preparara! O ano todo, até esta manhã, seus olhos só viram livros e professores pela frente. A bicicleta, novinha, ficara esquecida, com suas dezoito marchas pedindo para serem usadas, poeira tomando conta, brilho embaciado, cor indefinida. Do futebol, com a sua bola redonda e irresistível, esquecera até as regras: os banhos de piscina foram banidos de sua vida. Os passeios nos dias de sol deixaram de existir. Havia ficado branco, quase como um funcionário de uma clínica médica conhecida, que era albino. Por fim, a namorada, suave e doce, com ares de manequim (sabia fazer caras e bocas que ele adorava), pedira um tempo, quando não puderam ir ver um filme com o Tom Cruise, porque a matéria de Química não estava em dia. Revê o ano e fica pesaroso, mas somente por um instante, pois a coragem permanece junto dele como amiga antiga e está forte, prontinho, quando os fiscais de prova entram. Eles ditam regras — um não pode e não deve infinitos, que eram conhecidos—, entregam os impressos, informando que ninguém mais entra na sala. Agora está com o papel nas mãos. A prova esperada, decisiva, querida, está ali! Começa então a temê-la. Já não consegue vê-la, segurá-la, nem senti-la. O ar começa a lhe faltar. Parece sufocar. Acha que vai desmaiar. Respira fundo, não desmaia, mas coloca a folha sobre a carteira, como se ela fizesse parte de um futuro que ficou passado. Um branco integral toma conta dele, completa e irreversivelmente. Um dos fiscais percebe c pergunta-lhe se está bem. Responde afirmativamente, verificando as cabeças abaixadas em silêncio; admira a firmeza com que dominam o ambiente na batalha apenas iniciada. Estando temporariamente voltado apenas para o presente, sente a coragem no passado e assim não pode continuar! Assina a prova em branco. Com um nome que nem parece seu. Levanta-se, aparentando calma, entrega a prova ao fiscal, que fala muitas coisas repetitivamente. Ele não ouve. Sai da sala, sob olhares curiosos, levando consigo o copo d’água e os tabletes de chocolate. Na rua, verifica que há pouco movimento e o domingo escorrega molemente como qualquer outro. Pensa na situação inusitada, toma a água, pisa em falso na guia e torce o pé, que dói, mas ele não sente. Nem se vê mais. Faz o percurso até a casa caminhando, na certeza do desabar de um temporal. Não desaba! (“Ele é novo, tem todo tempo pela frente; no próximo ano terá sucesso no vestibular, sem duvida!”) Nos comentários unânimes, ele avalia que ninguém entende nada; parece não falarem dele ou sobre ele. Agora suas costas ardem expostas ao sol forte. Depois de tantos meses, sua pele ficou fina e irá descascar na certa. Tenta desenferrujar a bicicleta e a si mesmo, sua muito, está doido! Sente que neste momento não há mais “branco”. Poderia fazer a prova agora, integralmente, pois sabe as respostas e pode discuti-las na certeza de seus conceitos. O que não entende ou explica é o seu comportamento, seu sentimento, suas emoções de horas atrás. Não vai conseguir esquecer os olhares sobre ele, o calor daquela sala e aquela prova entregue em branco. Procura polir a bicicleta com mais força, para se cansar, dormir e esquecer. No banho, a água do chuveiro é fria e parece querer arrebentálo inteiro. A toalha felpuda deixa-o seco e mais ardido; o desodorante... “ui”... desanima! — “Quem é que quer falar comigo”. berrou. — “Nossa, é o Fernando; como você está nervoso!” “Nervoso”, pensa ao pegar o telefone, “só nervoso?” — “Alô!” — “Oi, cara, você viu?, tanto sacrifício que a gente fez e acontece isto?, prova anulada!, problemas!, irregularidades!, eu não agüento ter que fazer outra prova, eu já estou casado!” Ele deixa o aparelho fora do gancho, com o fio enrolado esticando-se até o chão; o amigo desanimado continua a falar enquanto ele sorri, pensando nos comentários feitos anteriormente e passando-os para o momento presente. — “Ele é novo, tem todo o tempo pela frente. ‘Este ano’ terá sucesso no vestibular, sem dúvida”. SÃO PAULO FIM DE TARDE Admirar São Paulo através do Terraço Itália é uma experiência fascinante. Sentir esta emoção fica fácil, pois quem se abre para o novo e acha bom, pode senti-lo inteiro: faz isto sem pensar, sem julgamento, apenas pela observação. A cidade é contada em verso e prosa, usufruída pelo paulista e pelo cidadão do mundo e contínua em um contraponto de preservações e mudanças, atemorizando observadores desavisados. Do alto se pode compreender porque Caetano cantou o encontro da Ipiranga com a avenida São João e conseguiu a sonoridade de quem absorve o que vê, depois de entender. Percebe-se a iluminação invadindo a noite com o espetáculo da técnica e no chão, uma claridade em movimento sinuoso, através das curvas do asfalto, que surge com a luz baixa dos faróis dos carros. Dentro do Terraço há o oposto. Existe a privacidade, que pode ser oportuna e é obtida na distância do burburinho externo. Sente-se um aconchego sofisticado, na climatização do ambiente, e um feitiço exótico nas cores dos líquidos das garrafas expostas no bar. Também a sedução do flerte nas mesas, a descontração do executivo que encerrou o dia, a conversa jogada fora pelos amigos, ou a intimidade dos amantes. E indisfarçável a curiosidade da procura, a busca do encontro, o prazer na satisfação da exigência que o espírito tem de complementação. São Paulo, no fim de tarde, fica sensual e permite o prazer em qualquer sentido que a palavra possa ter. O ser humano enriquece o seu interior através do próprio semelhante ou junto dele. Isto em qualquer etapa, no transcorrer da vida. Só assim se percebe, se sente, se admite, se realiza. Ao observarmos a expressão das pessoas, até mesmo atrás da sabedoria dos velhos, diferenciaremos o seu estado interior. Aquelas que têm a companhia que as agradam, não se importam com a idade, pois não sentem o peso da solidão. Retornando no tempo para a idade em que os hormônios favorecem a procura de parceiros, a complementação só acontece se houver afeto. Quando existe este encontro, a felicidade é intensa, transcende o espaço de cada indivíduo, alcançando o universo. É um período de inteiração. Pode também acontecer o engano, pois estamos em um tempo de estímulos confusos, porém brilhantemente expostos. O sentimento real dá a impressão de ter pouco valor, enquanto que o da emoção sem fundamento — que proporciona o prazer do desconhecido, do proibido — aparenta ser nobre. Chegou primeiro. Apressada. Parece segura, mesmo ao dar inúmeras voltas por entre as mesas até encontrar um lugar adequado. Senta-se e aprova a escolha. A pouca iluminação, o volume baixo do som, o limite da distância que torna aquele espaço, momentaneamente, só seu. Não se preocupa em olhar ao redor. Não precisa fazer parte, somente estar ali. Automaticamente afasta os fios do cabelo de junto do rosto que, obstinados, voltam á posição anterior. Vê que suas mãos tremem, sob a claridade breve e amarelada, quando acende um cigarro. Tenta conter o temor, ao fazer um sinal de espera, quando o garçom solícito aproxima-se, mas tem que admitir a dificuldade. Não leva novamente o cigarro à boca. Ele fica queimando sozinho, solidário, esquecido no cinzeiro. Através das espirais de fumaça, ela vê o homem chegar e não se move, parecendo querer ficar invisível. As informações de que ele precisa são dadas mais rápido do que ela gostaria. É localizada e, com a espera, termina também a esperança. Ela sempre soube. Não pensava, mas sabia! Amor para alguns meses, para horas de sobra, retalhos de emoções que não somaram. — “Foi bom”, ele poderá dizer, lembrando-se de detalhes. Ela quer esquecer detalhes. Quer o inteiro, não a parte, mas sabe que nunca teve. Nem o tempo deles foi dela. Para que sofrer agora? Por que veio? Irá conhecer razões que não são verdadeiras como tudo o mais, e ouvirá. Ele sempre disse o que queria ou imaginava querer. Ela ouvia. Não ousou nunca pedir ou querer. Ela o sente aproximar-se e continua pensando: — pedir o quê? querer o quê? Nada lhe foi oferecido, nada foi claro, definido. Será que alguma coisa terá sido sentida? — “Olá!” O sorriso é o mesmo. Ele sorri com os olhos, com os lábios, com as rugas prematuras na pele bronzeada, com as mãos afrouxando o nó da gravata. Ele sorriu sempre. Não tira o paletó, nem mesmo depois de pedir dois drinques e examinar o ambiente. Olá!”, ele repete, simples mas afirmativo. Ela não responde e ele a sente insegura, machucada, sabendo o que iria acontecer sem que nada tivesse sido dito. Difícil. Constrangedor. Então os drinques são colocados sobre a mesa e, com o movimento da bandeja, flutuando na mão branca do garçom imperturbável, o momento é alterado e a angústia disfarçada. Ela aproveita para mexer com o dedo os cubos de gelo, que se amontoam sobre a bebida transparente. O ruído singular é comum aos dois. E relaxam. Então ela percebe que comum aos dois era o gelo no copo, com seu ruído peculiar que se dissolveria pouco depois, sem deixar sinal, sem marcar sua passagem, sem ter consistência em si mesmo, servindo apenas para o agora. Apenas o ruído talvez marcasse, mas seria abafado por qualquer som, mesmo o mais leve ou displicente. As pedras de gelo são femininas. Ela acaba sentindo-se uma delas e começa a se dissolver simultaneamente. Toma um gole, não para se encorajar; simplesmente quer que o gelo acabe depressa e com ele a desilusão, o medo, a falta. Quando ele quer começar a falar o copo dela está vazio, mas a cabeça ainda inexplicavelmente intacta. É difícil derreter. Mesmo assim, coloca dois dedos molhados nos próprios lábios, em sinal de silêncio. O “fim” acabou antes de começar, antes do gelo, antes dela. Foi bonito; sem dramas, sem pedidos, sem adeus. Acabou como aconteceu, sem explicações, sem heroína e sem vilão. Vêm mais dois copos, que não são tocados, pois já eram passado, enquanto um cantor elegante começa sua apresentação perfeita. Ela implode por dentro. Acha tudo perfeito demais, elegante demais, certinho demais. Quer gritar, quebrar copos, puxar a toalha, fazer um dramalhão. Não pode. Se fizer alguma coisa vai chorar. Consegue tentar afastar novamente os fios do cabelo, que naturalmente voltam ao lugar. E quando ele se levanta, depois de perguntar se ela quer sair primeiro, continua parada, quieta, insondável. Havia derretido. SÃO PAULO QUANDO OS PAULISTAS TÊM TEMPO Os cientistas afirmaram: “E a bíblia tinha razão”, quando questionaram e equacionaram algumas passagens mencionadas no livro; declararam estar corretas, diante de exaustivos estudos feitos a respeito. O paulista não discute muito estas situações. Com seus ouvidos desavisados faz adaptações para sua própria vida e, no que diz respeito ao livro, ele só se apega a alguns mandamentos, preceitos ou dogmas, quando acha necessário ou se isto lhe beneficia. Se o cansaço o aflige, lembra a criação do mundo e de que até Deus descansou no sétimo dia. Nestas horas ele é seguidor dos ensinamentos religiosos e das definições exatas dos mestres, tentando proteger-se da autopunição por querer valer-se do direito de descansar conforme o Exemplo. São Paulo faz de conta que está tudo corretamente compreendido, pois o paulista merece muito mais que compreensão quando tenta descontrair. Nem sempre isto pode acontecer: ou é o plantão, ou o combustível aumentou, ou um plano econômico amedrontou, ou choveu, ou a noitada durante a semana criou um clima inadequado para a possibilidade de seguir ensinamentos de qualquer ordem. No entanto, quando nada atrapalha, o homem se dá o direito de tirar o paletó ou o macacão, a mulher de calçar o tênis em vez do salto cinco e as crianças de aguardarem por novidades que as tirem da rotina. Procuram de alguma maneira atenuar a tensão, pois todos sabem das exigências do cotidiano. São Paulo autoriza a intenção e favorece a oportunidade. Nos círculos polares, que limitam as zonas glaciais, a sobrevivência é restrita, enquanto que no Equador alinhava-se a exuberância da existência com todo o seu esplendor. A diferença é sentida biologicamente em todo o planeta. A raça humana pode adaptar-se, mas é intensamente sensível às mudanças. Vive o calor do verão, tendo a oportunidade de servir-se dos dias livremente: quase hiberna quando a neve está presente e limita muitas atividades. Cria forças quando as flores cobrem regiões inteiras colorindo e perfumando, e entende a chuva mais adiante, que enriquece as bacias hidrográficas e também gera situações de catástrofes. A natureza vibra intensamente em cada dia do ano. Ela se exemplifica para o homem nas suas reproduções, nas constâncias e nas trocas, mostrando que para a renovação não existem reservas ou limites. Otimista e obstinado, o paulista acima de tudo é decididamente corajoso. Trabalha muito, descansa pouco, é parte da alavanca poderosa que impulsiona o país. Não mede esforços, mas deseja renovações. Espera por mudanças nos costumes sociais, na política e na economia, que o fariam viver melhor. Quer mais segurança, equilíbrio em seu orçamento, que se tornem efetivas as leis que existem no papel e que os descontos feitos em seus salários retornem para ele em forma de benefícios. O paulista compôs a própria imagem com o terno e a gravata. Mas também usa bermuda sem que com isto perca a expressão com que se definiu. É trabalhador mas quer compensações. Vamos viver com ele um momento em que este querer resume-se na expectativa de um fim de semana prolongado, ensolarado, para ser aproveitado em uma viagem curta para um descanso necessário. Se não parar um pouco, o empenho e o dinamismo do seu dia a dia podem ficar comprometidos. Será ótimo se os pneus do carro não estiverem carecas, pois já foi iniciada a discussão para a decisão do local ideal para a viagem programada. É uma maratona que quase sempre acaba na Imigrantes e que se diversifica em norte e sul à vontade do viajante e do seu “tempo” (entenda-se aqui por tempo: grana, money, argent). Do tempo que ele tem, vai depender o local, a bagagem, o humor. Mas o tempo real existe e tem que ser aproveitado ao máximo, pois isto é característico até no próprio relaxar de São Paulo. De acordo com as contas bancárias, os porta-malas ficam abarrotados, de formas diferenciadas. Explica-se: ou leva-se o bolo que a “vó” fez ou os cartões de crédito para um restaurante; uma canga comprada de um camelô ou um equipamento sofisticado de mergulho com uma filmadora de última geração. Os estudos comportamentais explicariam melhor as divergentes posições, mas o viajante está na estrada, o que já não era sem tempo, pois para paulista que se preza, tempo é dinheiro. Este, ou falta muito e tem que ser controlado, ou sobra muito e tem que ser bem aplicado. E para tudo isto conta o tempo. Pedágio com espera e ninguém nem aí, porque senão lá se vai todo o alto astral preparado. O calor aumenta e as camisetas vão para o encosto do banco, enquanto fivelas prendem cabelos, lisos ou encaracolados, mas todos devidamente “condicionados”. Narciso Vernise dá a previsão do tempo e paira a dúvida se a meteorologia determina instabilidade no período. Aplausos para o experiente “homem do tempo” se o sol fica presente e o calor for ultrapassar trinta graus. Dentro dos carros desenvolvem-se situações particulares: o caçula quer fazer xixi; a adolescente fica aborrecida porque esqueceu o maiô novinho que deixaria a galera de queixo caído e que, aqui entre nós, faria inveja às amigas mais queridas. E mais estrada e o cachorro enjoou e a enxaqueca ficou mais forte — a patroa tem oscilações de temperatura acompanhadas de dores na cabeça, pois menopausa é barra — e o celular tocou e o guarda multou e aí... o paulista chegou! Agora é descer a bagagem, que a montanha já foi a Maomé. E arrumar tudo onde não cabe quase nada, ou então dar um retoque total no visual porque o restante fica por conta dos caseiros. Uma volta para rever o mar é importante; depois, ou se come o bolo da “vó” que até amassou, ou se janta fora, pois afinal para que é que existem frutos do mar? Em seqüência surge um baralho, ou bate-papo ou bate-perna (isto é comum a todos, sem distinção de nada) e vai-se dormir ao amanhecer. Para levantar tem tempo, já que todos os dias o despertador funciona e hoje e sábado. A caipirinha vai ser tomada quando o sol já estiver quente e o bronzeado terá que ser controlado com um bloqueador solar na hora certa da hora imprópria. O banho de mar acaba às quatro, pois o almoço não pode esperar mais e então se verifica que acabou o dia. A expectativa fica por conta da noite, pois existe a danceteria ou o pagode na barraca do Betão. O paulista completa o seu programa e se diverte até as cinco da “matina”. O feriado voou. Choveu ou ensolarou e bateu-se papo, perna ou baralho; o caso é que agora é preciso arrumar a mala e subir a serra, porque amanhã é dia de branco. Alguém dirige; outros dormem, outros resmungam e tomam refrigerante (sobraram aqueles em lata). Além disto comem salgadinhos, mascam goma, ou devoram balinhas “splum”. Todos, sem exceção, encaram heroicamente o congestionamento que o rádio noticia minuto a minuto, para acabar chegando depois de três, quatro ou seis horas de viagem na volta do descanso. Vendo as primeiras luzes da capital, as pernas esticam-se e o coração desafoga. São Paulo não saiu do lugar e aplaude o regresso de quem saiu para relaxar, chegou cansado e pode se atrasar amanhã. A cidade estará lá em seu devido lugar, indiferente ao que aconteceu e como aconteceu e também independente do tempo e do que o “tempo” ofereceu. Por sua própria autonomia, compulsão pelo trabalho ou por força do hábito, o paulista cumprirá seus compromissos no dia seguinte e nos demais. Vai enfrentar congestionamentos, caminhar por ruas movimentadas, autenticar documentos, esperar conformado nos caixas dos bancos ou dirigir seus negócios sentado em confortáveis cadeiras giratórias. Também vai cuidar da casa. Levar as crianças para a escola e ler solicitações contínuas que já são esperadas. Quando comenta o fim-de-semana, esquece as situações inoportunas ou as transforma de maneira que fiquem mais satisfatórias, enfatizando as surpresas, os papos, as pessoas, como se tivesse viajado pela primeira vez. Não esquece a ressaca. Apenas modifica o fato, dando-lhe um sabor doce, meio anestésico, onde o sujeito é o artista do copo. Acha ótimo ter saído, aproveitado o seu tempo, mas tem a certeza de que é um privilégio estar em São Paulo, onde o espetáculo da vida tem sempre que continuar, com ou sem razões, pois o paulista se dá o tempo para o descompasso de esperar. SÃO PAULO MUDANCAS NO TRANSITO São Paulo certamente é protegida por deuses. Nativos, africanos, orientais ou desconhecidos, eles estão unidos entre si, pois a mistura dos povos concentrada na cidade propicia isto. São Pauto acolheu as pessoas e aceitou suas crenças e idéias. Nesta Babel asfáltica, o deus que se incumbiu de proteger o trânsito não tem tempo para seguir outros caminhos. Também não acredita nas estatísticas oficiais, que atestam existirem lugares no universo onde há maior numero de carros nas ruas e trânsito mais complicado. São Paulo passa a idéia de que a grande maioria dos seus mais ou menos quinze milhões de habitantes está nas ruas o tempo todo e, grande parte deles, dentro de algum tipo de veículo. Não é preciso esforço para concordar. O tempo que o paulista investe para se locomover chega a causar a neurose coletiva do trânsito, terminologia ausente até há pouco tempo dos compêndios de análises comportamentais. Deuses e conceitos à parte, o paulista tem também a oportunidade de ser testemunha de uma infinidade de acontecimentos, que são decorrentes do momento em que vivemos; dirige-se sem habilitação, em veículos sem condições adequadas, ou então voa-se no chão, tal a potência que os motores atingem e a competência dos habilitados. Os acidentes são um lado trágico na visão diária. Vitimas fatais são manchetes nos jornais e aumentam, minuto a minuto, como se isto fosse o normal nas ruas. O motorista não se conscientiza e o problema se agiganta sem perspectiva de melhora, assim como a impunidade. Fato preponderante colocado, pode-se partir para as variantes. São inumeráveis. Motos ziguezagueiam sem cuidado, pedestres se expõem sem necessidade, faróis deixam de funcionar auxiliando a desordem, ônibus e caminhões abusam com o seu tamanho e vai-se por avenidas e ruas sempre com atrasos. O rnetrô trouxe conforto, é extremamente usado e elogiado, mas deixa a desejar nas proporções. São Paulo precisa de muito mais. Algumas bicicletas resistem. São usadas (e não respeitadas) para pequenas distâncias ou em dias de folga, para passeios em lugares que pretendem ser especiais. E por falar nelas, por onde anda a bicicleta enfeitada que sempre se via na zona sul? Todos os dias, uma moça morena e forte, parecendo uma cigana ou uma hippie dos anos 60, pedalava a sua, enfeitada de flores e filas. Não media distância, nem escolhia paisagem. Era bom vê-la, colorida e alegre transpondo a ponte do Socorro, dia após dia, mudando apenas os enfeites, mas mantendo o ritmo. Não sei se casou ou se cansou. Só não a vejo mais e sinto saudades; deixou sua marca que persiste em uma cena imaginária. O que existe agora, subsistindo no universo do trânsito, são os garotos nos faróis pedindo alguma coisa. Além de pedirem podem também ser perigosos e agredirem o motorista, caso não consigam o que querem. Também há as garotas-propaganda dos investimentos da construção civil, que via de regra são lindas, chamativas e presenteiam o motorista com um sorriso, além do folheto específico. Os pedágios nas ruas não são muito comuns, mas acontecem, por motivos beneficentes ou por brincadeiras escolares. Ajudam a congestionar o já caótico trânsito paulista e irritar ainda mais o motorista extenuado e sem saída. Com tantos veículos circulando pela cidade é óbvio que não exista espaço para estacionar o de cada um. Por mais que se procure, acaba-se por deixá-lo aos cuidados do inevitável “guardador de carro”. Este se considera um trabalhador, via de regra chama a todos de “Doutor”, tenta ser simpático e coloca a própria vida à disposição do cliente, a troco de alguns Reais, para cuidar do veículo que chega. Tem ajudantes (vários) e é dono do próprio território onde trabalha. Sem alternativa, o paulista cala e consente, na tentativa de não ter o seu veículo roubado, riscado ou, encontrá-lo com os pneus furados para seguir em frente sem problemas evitáveis, no trânsito inevitável. Já foi terra de Tibiriçá. São Paulo recebeu este nome quando o cacique dos índios guaianazes auxiliou um grupo de jesuítas na construção do seu primeiro e pequeno aposento. Foi também Vila de São Paulo de Piratininga, quando tentou escravizar o indígena para impulsar o progresso. Recebeu os africanos, obteve sua mãode-obra e sofreu com eles o “banzo”, estranha moléstia que era um misto de loucura, revolta e saudade da pátria. Serviu de passagem para bandeirantes na entrada dos sertões em busca de metais e pedras preciosas. Alegrou-se com os imigrantes que trouxeram junto com a bagagem sonhos de prosperidade. E ela aconteceu. A visão do viaduto do Chá, construído em fins do século XIX, celebrou o avanço da nação; com ele a cidade expandiu-se na direção oeste e uniu-se à plantação de chá que se estendia no outro lado do rio Anhangabaú. A industrialização veio depois e teve inicio no lugar certo, com idéias concretas e o aval do poder financeiro externo. A próxima transformação só o futuro vai poder contar. No entanto, é apropriado ressaltar que certamente acontecerá em São Paulo, cidade que é o cérebro e o coração do país e que se envolve nos acontecimentos sempre no momento oportuno. O paulista não pode dizer que na época em que os portugueses chegaram ao Brasil, São Paulo desenhava-se para ser a metrópole que é. Ao contrario: teve menor relevância que outras capitanias situadas na costa brasileira. Os motivos foram variados e de preponderância justificada diante dos olhos dos colonizadores. Historiadores que registraram o descobrimento e a colonização deixaram marcados os acontecimentos em outras capitanias com ênfase; a proximidade delas junto ao oceano determinava incessantes cuidados, pois a extensão do território possibilitava a facilidade para a entrada de povos aventureiros que não tinham origem portuguesa. As invasões aconteciam e os descobridores precisaram de muita determinação para garantir o direito sobre a colônia. No entanto, uma característica comum em todo o território era a da riqueza do solo; a cobiça fez com que o fato fosse destacado de maneira absoluta em qualquer referência feita à terra descoberta, com alusões especificas ao ouro e às pedras preciosas. Em sua obra sobre o descobrimento e a colonização, “História do Brasil”, Frei Vicente do Salvador explica que lamentavelmente muito se perdeu deste período da história com o passar do tempo, mas deixa marcado em seus registros o potencial de São Paulo na forma que se segue: “... pelo sertão, a nove léguas do rio de São Vicente está a Vila de São Paulo. Ao redor desta vila estão quatro aldeias de índios amigos que os Jesuítas doutrinam, além de outros tantos que a cada dia chegam do interior aumentando a população da vila. O clima do lugar é frio e temperado como o da Espanha, porque o local já está fora da zona tórrida em vinte e quatro graus ou mais. A terra é sadia, fresca, de boas águas. Aqui foi o primeiro local onde se fez o açúcar e daqui se levou a planta da cana para as outras capitanias. Existe (sic) também a lavoura do trigo, da cevada e de grandes vinhas. Outros se dedicam à criação de vacas que se multiplicam muito. Os cevados são mais gordos que os da Espanha, porque se alimentam do milho zaburro e com pinhas de grandes pinhais agrestes, tão férteis e viçosos que cada pinha é como uma botija, e cada pinhão depois de limpo é como uma castanha ou belota de Portugal. Existem tantos cavalos que cada um deles vale apenas cinco ou seis tostões. O mais importante no entanto é o ouro, que exige muito trabalho porque é ouro de lavagem e muitas vezes não se encontra nada; em outras no entanto, se acha grãos tão grandes em peso e tamanho que deslumbram até a quem já se acostumou a vê-los. [...] A constância deste fato é tanta, que certa vez o responsável pelas minas enfiou os grãos em forma de um rosário, assim como eles saíam da lavagem, redondos, quadrados ou compridos e enviou de presente a Sua Majestade junto com amostras de pérolas que chegavam de Cananéia. Nesta oportunidade aproveitou para pedir provisões para fazer descer mais índios do sertão para que trabalhassem nas minas e em outras coisas necessárias...” Nos arquivos e documentários também se faz presente a religiosidade ativa da época que a riqueza se encarregava de ostentar. Pela importância, muito se fala também sobre a Companhia de Jesus, ordem conhecida por sua característica de catequizadores. Os jesuítas que chegaram eram poucos e tinham numerosos objetivos a cumprir. Estes objetivos eram divergentes. Os religiosos deviam atender às exigências da Coroa, ajudando a obter da colônia todo o lucro que ela oferecia e tentar sustentar os seus conceitos religiosos que na essência tinham a finalidade de doação, de entrega, de exemplo sem esperar por recompensa. A resignação de alguns, a firmeza de outros e a ambição de muitos se uniram no espírito da época para alcançar as metas almejadas. Tiveram todo tipo de dificuldade ao enfrentar os caminhos que os trouxeram à vila de São Paulo e passaram para a história como figuras corajosas, disciplinadas generosas, enfim irrepreensíveis. Nossa imaginação, porém, não pode deixar que os vejamos como seres comuns com todos os sentimentos e diversidades relativas à condição humana. Com certeza se deslumbraram com o sol e também com o tom de azul que o céu brasileiro apresenta. Devem ter absorvido a energia vinda através da espuma das águas nas cachoeiras que descem a serra e tirado suas batinas para se refrescar nos riachos que atravessaram. Não devem ter deixado de se sentirem atraídos pelos traços diferentes das índias brasileiras, por sua ingenuidade selvagem, por sua beleza rústica e incomum. A história não conta detalhes. Deixa em aberto a hipótese, mas resguarda os catequizadores, diferenciando-os do colonizador. Seu trabalho foi exploração pura. O medo do desconhecido, de armadilhas, dos animais e dos próprios nativos só podia ser enfrentado com a fé e a obstinação. Mas o planalto se apresentou propício e sólido e a conquista aconteceu; a troca entre o descobridor, a terra e o índio foi muda e gritante ao mesmo tempo. Os artifícios usados para esta união não podem ser avaliados hoje. No entanto, São Paulo, que conserva como marco de fundação o Pátio do Colégio, teve um início humilde mas deve ter sido moldada para ser a gigante cidade na qual vivemos sem que isto fosse previsível. Não passou despercebida a ninguém a índole diferente do silvícola que habitava a terra. O caráter era negligente, mas em algumas atitudes havia a revolta pela invasão; eles eram senhores da terra e mesmo vendo os colonizadores como deuses, em momentos de lucidez ou da falta dela, emergia neles a força do direito que o ser humano tem latente em si mesmo. Então acontecia a selvageria, que para o nativo era simplesmente o resgate da dignidade. Nesse espaço de tempo, São Paulo se preparava para querer ser e fazer As picadas feitas na época se transformaram, devido a um conjunto de mudanças ocorridas no curso do tempo. Surgiram ruas e avenidas cada dia mais evoluídas que hoje sustentam veículos e pessoas que se sucedem em chegadas para o mesmo lugar. O azul do céu ficou diferente, poluído, e a respiração comprometida com o crescimento efetivo e irreversível. A cidade cumpre o seu ciclo natural contando para isto com vias de tráfego subterrâneas, aéreas, convencionais ou de autocriatividade paulista. Acostumada às metamorfoses, São Paulo aguarda por ordem no seu todo e para isto depende fundamentalmente do progresso nos seus meios de transporte, em suas ruas e avenidas. Espera que elas sejam feitas rapidamente, repelindo a falta da modernidade em seus caminhos como foi feito com os invasores indesejáveis de outrora. E assim a cidade prossegue crescendo e conduzindo. Entra em cena a imaginação e traz junto com ela a confiança na conquista da renovação. São Paulo recomeça sempre, com a perseverança do paulista que sabe procurar e encontrar a prosperidade, nunca esquecendo a expressão de seu lema: “pelo Brasil seja feito o máximo”.