Link para a Tese - Programa de Pós
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO ANDERSON ROCHA DA SILVA A LICENCIATURA EM QUÍMICA NA UFF: O QUE DIZEM OS PROFESSORES UNIVERSITÁRIOS? CONCEPÇÕES, QUESTÕES E DESAFIOS Tese de Doutorado apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Título de Doutor em Educação. Campo de confluência: Ciências, Sociedade e Educação. ORIENTADORA: Profa. Dra. GLORIA REGINA PESSÔA CAMPELLO QUEIROZ Niterói 2011 S586 Silva, Anderson Rocha da. A licenciatura em química na UFF: o que dizem os professores universitários? Concepções, questões e desafios / Anderson Rocha da Silva. – 2010. 193 f. Orientador: Gloria Regina Pessôa Campello Queiroz. Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Faculdade de Educação, 2010. Bibliografia: f. 149-153. 1. Formação de professor. 2. Professor de Química. 3. Ensino Superior. 4. Pedagogia. I. Queiroz, Gloria Regina Pessôa Campello. II. Universidade Federal Fluminense. Faculdade de Educação. III. Título. CDD 370.71 1. 371.010981 Substituir pela ata de aprovação ANDERSON ROCHA DA SILVA A LICENCIATURA EM QUÍMICA NA UFF: O QUE DIZEM OS PROFESSORES UNIVERSITÁRIOS? CONCEPÇÕES, QUESTÕES E DESAFIOS Tese de Doutorado apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Título de Doutor em Educação. Campo de confluência: Ciências, Sociedade e Educação. Aprovada em 29 de agosto de 2011, BANCA EXAMINADORA ______________________________________________________________________ Profª. Dra. GLORIA REGINA PESSÔA CAMPELLO QUEIROZ - Orientadora UFF ______________________________________________________________________ Profª. Dra. EDITH IONE DOS SANTOS FRIGOTTO UFF ______________________________________________________________________ Prof. Dr. EVERARDO PAIVA ANDRADE UFF ______________________________________________________________________ Profª. Dra. HERMENGARDA ALVES LUDKE PUC-RJ ______________________________________________________________________ Prof. Dr. JORGE CARDOSO MESSEDER IFRJ ______________________________________________________________________ Profª. Dra. CECILIA GOULART (SUPLENTE) UFF ______________________________________________________________________ Profª. Dra. ALCINA MARIA TESTA BRÁZ DA SILVA (SUPLENTE) IFRJ Niterói 2010 AGRADECIMENTOS O meu Deus ocupa o primeiro lugar nesses agradecimentos, pois sem sua misericórdia não poderia fazer parte de uma família tão abençoada nem ter amores e amigos tão significativos como os que eu tenho. Agradeço ao meu pai, Evelson Rocha da Silva, pelo exemplo de homem distinto, manso e honesto e à minha mãe, Maria José Rocha da Silva, pelo exemplo de luta, força, franqueza e dedicação à família, pessoas em que me espelho para administrar meus momentos de tormenta. Gostaria de agradecer também: À minha tia Jussara e minha prima Fernanda pelo companheirismo e amor, à minha velhinha Guiomar (minha avó), matriarca dessa família, a quem amo e desejo um final de velhice cercado de amor por todos os seus entes queridos. Ao meu amor Adriana Firmiana, que ouve meus desabafos, aceita minhas limitações, aconselha-me e ampara-me (sempre com muito amor) nos momentos difíceis dessa caminhada. Aos meus amigos: Antônio Marcelo Maciel, pelas observações contundentes e significativas, Rose Mari Latini, pelos incentivos e observações amáveis, Fabiane Demier, pelos infinitos desabafos, Marcus Vinícius, pelas parcerias, aprendizagens e cervejas, Márcio Gomes, Catarina Tinoco e Carla Vianna, pela amizade e Marccio Alcaide, pelos momentos de descontração, e às amigas: Isa Costa, Giselle Faur, Heloize Charret e Cris Callai, pela amizade, pelos exemplos, pelas aprendizagens e pelas publicações. À professora e orientadora Glória Queiroz, pela aposta e confiança em minha capacidade e pela sua forma de conduzir a orientação desse trabalho, dando-me autonomia para produzir e, ao mesmo tempo, lapidando meus escritos. Aos professores de minha trajetória formativa e aos colegas da turma de Doutorado da FEUFF 2007. Muito obrigado a todos! "e disse: Até aqui nos ajudou o Senhor" (I Samuel 7:12) RESUMO Esta Tese é o resultado de uma pesquisa qualitativa para a qual confluem os Saberes Docentes, a Pedagogia Universitária e a Formação inicial de Professores, e se estrutura a partir de entrevistas realizadas com quatro professores do curso de Licenciatura em Química da Universidade Federal Fluminense (UFF), dos quais investigo: os saberes, as concepções sobre a docência, sobre o processo formativo de que participam, sobre os condicionantes que permeiam seu cotidiano profissional e sobre a universidade. Acerca dos referenciais teóricos desse estudo, esta tese se engendra a partir de dois autores principais: Maurice Tardif, para entender a natureza dos saberes que permeiam a atividade docente e Mikhail Bakhtin, para uma análise mais lúcida dos discursos das entrevistas realizadas, sendo esse último caracterizado como o referencial teóricometodológico desse estudo. O percurso analítico das entrevistas foi dividido em quatro momentos: as impressões digitais, em que analiso as trajetórias singulares dos professores; o ser professor, em que as concepções sobre a atividade docente são aludidas; o que vejo desse cenário? em que busco as relações de como as instâncias Pesquisa, Ensino e Extensão afetam o cotidiano desses professores e, por fim, o arremate, momento em que as concepções de universidade e as concepções sobre os papéis do professor universitário e do professor do Ensino Médio são relacionadas. A análise dos resultados revela questões cruciais que afetam a formação inicial da Licenciatura em Química da UFF e levantam desafios para o aprimoramento dessa formação. Ademais, esta tese localiza experiências bem sucedidas no nível universitário em diferentes regiões do Brasil, com a pretensão de contribuir com reflexões sobre o processo de formação inicial dessa Licenciatura e suscitar, tanto nos professores entrevistados quanto nos seus pares de profissão (os demais professores do curso), subsídios para se repensar significativamente o processo formativo do professor de Química na UFF. ABSTRACT This thesis is the result of a qualitative research to which are gathered faculty knowledge, university education and initial teaching formation; it is sourced in interviews held with four professors from the Chemistry Undergraduate course at Universidade Federal Fluminense (UFF), from whom I look into: their knowledge, their conceptions on their teaching practice, the formative process in which they take part, the conditions that go through their daily professional routine and the University itself. Concerning the theoretical references of this study, this thesis is based on two main authors: Maurice Tardif, to understand the nature of the knowledge which pass through the teaching activity and Mikhail Bakhtin, for a more accurate analysis of the speeches from the interviews carried on, the latest being characterizes as a theoreticalmethodological reference for this study. The analytic path of the interviews was divided into four moments: the digital impressions, where I analyze the single paths of the professors; the being a professor, where the conceptions about the teaching practice are dealt with; what I see in this scenery, where I search for relations among research, teaching and extension and their effects on the daily practice of those professors and, at last, the closure, where the conceptions of the university and those of the roles of the college professor and the ensino médio teacher are related. The analysis of the results reveals crucial issues which affect the initial formation in the Chemistry Undergraduate course at Universidade Federal Fluminense (UFF) and raise challenges to the improvement of that formation. Furthermore, this thesis spots successful experiences in academic level in different Brazilian regions under the pretension of contributing with reflections in the process of initial teaching in this under graduation and sprouting, both in the interviewed professors and in their peers (the other professors in the course), subsides to significantly rethink the formative process of the chemistry professor at UFF. RESUMEN Esta Tesis es el resultado de una pesquisa cualitativa para la cual confluyen los Saberes Docentes, la Pedagogía Universitaria y la Formación inicial de Profesores, y se estructura a partir de encuestas realizadas con cuatro profesores del curso de Licenciatura en Química de la Universidad Federal Fluminense (UFF), de los cuales investigo: sus saberes, sus concepciones sobre la docencia, sobre el proceso formativo de que participan, sobre los condicionantes de su cotidiano profesional y sobre la universidad. Acerca de los referenciales teóricos de ese estudio, esta tesis se engendra a partir de dos autores principales: Maurice Tardif, para entender la naturaleza de los saberes que se introducen en la actividad docente y Mikhail Bakhtin, para un análisis más lúcido de los discursos de las encuestas realizadas, siendo ese último caracterizado como el referencial teórico-metodológico de ese estudio. El trayecto analítico de las encuestas fue dividido en cuatro momentos: las impresiones digitales, donde analizo los trayectos singulares de los profesores; el ser profesor, donde las concepciones sobre la actividad docente son aludidas; lo que veo de ese escenario?, donde busco las relaciones de cómo las instancias Pesquisa, Enseñanza y Ampliación afectan el cotidiano de eses profesores; y, por fin, el arremate, donde las concepciones de universidad y las concepciones sobre los papeles del profesor universitario y del profesor de la Enseñanza Media son relacionadas. El análisis de los resultados revela cuestiones cruciales que afectan la formación inicial de la Licenciatura en Química de la UFF y levantan desafíos para el perfeccionamiento de esa formación. Además, esa tesis localiza experiencias bien sucedidas en el nivel universitario en diferentes regiones de Brasil con la intención de contribuir con reflexiones sobre el proceso de formación inicial de esa Licenciatura y suscitar, tanto en los profesores encuestados como en sus pares de profesión (los otros profesores del curso), subsidios para repensarse significativamente el proceso formativo del profesor de Química en la UFF. SUMÁRIO CAPÍTULO zero A pesquisa que teço... ....................................................................................................... 5 CAPÍTULO 1 A universidade, o cenário... .............................................................................................. 9 1.1) A Universidade Federal Fluminense e a Licenciatura ................................... 18 CAPÍTULO 2 Meus protagonistas, seus saberes... ................................................................................ 24 2.1) Breve histórico das pesquisas educacionais................................................... 24 2.2) Por que Tardif? ............................................................................................. 29 2.3) Os saberes docentes na perspectiva de Tardif .............................................. 34 2.4) O professor universitário e a pesquisa em pedagogia universitária .............. 45 CAPÍTULO 3 As lentes de leitura... ...................................................................................................... 49 Alguns pressupostos bakhtinianos relevantes para essa pesquisa .................................. 49 CAPÍTULO 4 O caminho da conversa .................................................................................................. 59 4.1) Plano piloto de entrevista, minhas escolhas e intencionalidades ................... 59 4.2) A Transcrição das entrevistas ........................................................................ 63 CAPÍTULO 5 Nossos dizeres e seus significados I: as impressões digitais e o ser professor .......................................................................... 64 5.1) Meus protagonistas, impressão digital ........................................................... 65 a) Professora Maria ........................................................................................ 65 b) Professora Ana ........................................................................................... 65 c) Professor José ............................................................................................ 66 d) Professora Lucia ........................................................................................ 66 e) Relações entre as impressões digitais ........................................................ 67 5.2) ser professor é... ............................................................................................. 68 a) Professora Maria ........................................................................................ 68 b) Professora Ana ........................................................................................... 74 c) Professor José ............................................................................................ 81 d) Professora Lucia ........................................................................................ 86 e) Relação entre os professores nesse episódio .............................................. 91 CAPÍTULO 6 Nossos dizeres e seus significados II: o que vejo neste cenário e o arremate ............................................................................. 98 6.1) O que vejo neste cenário... ............................................................................. 98 a) Professora Maria ........................................................................................ 98 b) Professora Ana ......................................................................................... 104 c) Professor José .......................................................................................... 110 d) Professora Lucia ...................................................................................... 114 e) Relação entre os professores nesse episódio ............................................ 119 6.1) O arremate.................................................................................................... 124 a) Professora Maria ...................................................................................... 124 b) Professora Ana ......................................................................................... 126 c) Professor José .......................................................................................... 128 d) Professora Lucia ...................................................................................... 129 e) Relação entre as professoras nesse episódio ............................................ 130 CAPÍTULO 7 Aonde essas leituras me levaram? Considerações finais .............................................. 133 CAPÍTULO 8 Aonde esse estudo pode levar? Propostas e esperanças ............................................... 138 8.1) A experiência na Universidade Federal de Goiás (UFG) ............................ 138 8.2) A experiência na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e na Fundação Universidade Federal de Rio Grande (FURG). .................... 140 8.3) A experiência na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ). ............................................................................................. 142 8.4) A experiência na Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC) ................ 143 8.5) Meu grito: o que esses relatos podem contribuir para a melhoria da formação inicial da Licenciatura em Química da UFF? ............................................................... 144 CRÉDITOS Referencias Bibliográficas ............................................................................................ 148 LISTA DE TABELAS E FIGURAS TABELA 1 – CRONOGRAMA DE EXECUÇÃO DE MUDANÇAS NAS GRADUAÇÕES (UFF, 2007. P.26)................................................................................23 TABELA 2 – Os saberes dos professores.......................................................................36 TABELA 3 – Os perfis dos entrevistados.......................................................................60 TABELA 4 – Os 4 momentos do plano piloto de entrevista...........................................62 ANEXOS ANEXO 1 – FLUXOGRAMA DA LICENCIATURA.................................................152 ANEXO 2 TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA 1 – PROFESSORA MARIA..................153 TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA 2 – PROFESSORA ANA.......................160 TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA 3 – PROFESSOR JOSÉ..........................170 TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA 4 – PROFESSORA LUCIA................... 178 zero CAPÍTULO A pesquisa que teço... Do que sei sou ignorante. Do que sinto não ignoro. Não me entendo e ajo como se entendesse. Clarice Lispector1 Toda pesquisa é movida por sentimentos particulares, problemas complexos que nos fazem refletir e repensar nossa prática. Considero que a falta de identificação da atividade docente com muitas teorias sociológicas, didáticas e pedagógicas apreendidas na universidade da minha época de formação2, associada à complexidade inerente à sala de aula e aos compromissos objetivos (burocráticos) e subjetivos (ideológicos) que rondam essa atividade, engendraram os sentimentos precursores das muitas interrogações que eclodiram e puseram minha formação em cheque. Essa posição a tornou sedutora fonte de investigação e potencializou minha busca por entendimento, mergulho no desconhecido (ignorante), mas movido pelos incômodos que não ignorei, como supõe a epígrafe de Clarice Lispector. Esse movimento me proporcionou os primeiros contatos com autorespesquisadores que abordavam temas como: os saberes docentes, o Ensino de Química e a formação docente, conduzindo-me a veredas que foram pouco a pouco delimitando meu tema de pesquisa, a pedagogia universitária e, consequentemente, meus protagonistas: os professores universitários do curso de Licenciatura em Química da Universidade Federal Fluminense, dos quais busco investigar seus saberes, suas concepções sobre a docência, sobre o processo de formativo de que participam, sobre os condicionantes que permeiam seu cotidiano profissional e sobre a Universidade. Essas Questões irão permear o tecido de minhas discussões e conclusões sobre a formação docente inicial, na Universidade Federal Fluminense. 1 Frase retirada da exposição “A hora da Estrela”, sobre a autora no Centro Cultural Banco do Brasil (RJ), em agosto de 2008. 2 Sou licenciado e bacharel em Química pela Universidade Federal Fluminense, desde 2002. 5 Essa temática depurada de minhas interrogações é tão ampla que pode dar a ideia de que pesquisá-la é uma tarefa irrealizável, devido à complexidade de elementos que podem ser explorados e considerados, sendo assim, começar a tecê-la requer assumir, de antemão, o rasgo que se instaura. Creio que, no exercício da escrita, somos tecelões inábeis se – seduzidos pela racionalidade clássica e pela vaidade acadêmica3 – supusermos a captura do todo por nossas agulhadas sem perceber o puir natural das linhas lógicas e limitadas que cosemos no frágil tecido que costuramos. Concordante com essa ideia sobre o pesquisador e o ato de pesquisar, Clarice Nunes coloca: [...] O pesquisador transita por um circuito múltiplo de instituições, tradições teóricas, fontes e resultados de pesquisa num esforço contínuo através do qual constrói seu campo de significação, isto é, constitui suas leituras, suas estratégias e táticas interpretativas. A pesquisa exige uma postura sistematicamente ativa que permite ao pesquisador construir um sistema de relações posto à prova na trajetória da pesquisa, mas também alargar seus limites de fato (que resultam das condições da própria pesquisa) e os seus limites de direito (aqueles que resultam das formas de conhecer e das teorias utilizadas) [...] (1995, p.54) Essa tomada de consciência, no exercício da escrita e da leitura, pode me liberar (não libertar) dos cárceres teóricos da minha trajetória acadêmica e acredito que essa postura diferencia pesquisadores de adeptos ou crentes (NUNES, 1995). Nesse sentido, esse difícil exercício que farei ao tentar emergir dessa grande diversidade de ideias, reflexões, tradições teóricas e interpretações, uma suposta ordem ou – seguindo a metáfora – o tecido que pretendo escrever nessa pesquisa, é um movimento único e incompleto, pois a cisão já foi instaurada desde as primeiras linhas. Tudo que tecerei está relacionado com o que eu for capaz de enxergar, com lentes que focam temas consonantes com meu repertório e que relegam outros. No entanto, mesmo que esse recorte seja incompleto – pela impossibilidade de enxergar todos os condicionantes que permeiam meus protagonistas e seu cenário de atuação (a Universidade Federal Fluminense) e todos os desmembramentos dessa relação na formação docente inicial dos professores de Química – isso não deprecia as potencialidades dessa pesquisa, situadas na pretensão de contribuir com reflexões sobre 3 Categorizo aqui como vaidade acadêmica a posição assumida por alguns pesquisadores que durante sua trajetória acadêmica não revisitam seus conceitos, supervalorizando suas matrizes teóricas e desconsiderando “a verdade como processo” que resulta dos balanços históricos de cada campo de conhecimento (BRANDÃO, 1992). 6 o processo de formação inicial do professor de Química do Ensino Médio, visto de uma perspectiva ainda pouco explorada, a dos formadores de formadores. Para isso esta tese se organiza em oito capítulos. No primeiro, abordo o cenário de minha pesquisa, apresentando um panorama sobre a crise das universidades latino-americanas, num plano mais continental e, passando para um plano mais local, abordo as universidades brasileiras, as características comuns do movimento de reforma, convergindo meu olhar para a Universidade Federal Fluminense. No segundo capítulo, os protagonistas da pesquisa, os professores universitários, são focalizados. Nesse capítulo realizo um breve histórico das pesquisas educacionais centradas no professor, nos seus fazeres e nos seus saberes, e elenco os principais referenciais teóricos da introdução dessa temática no Brasil, justificando a escolha do referencial de Maurice Tardif (2002) sobre os saberes docentes, que é posteriormente apresentado em seus principais pressupostos. O referencial teórico-metodológico desta pesquisa é apresentado no terceiro capítulo. A análise mais lúcida das entrevistas realizadas durante esta pesquisa trouxe a necessidade de um conhecimento mais profundo sobre a linguagem, sobre os enunciados4, sobre as intencionalidades presentes no discurso, sobre o gênero do discurso e, nesse sentido, Bakhtin (2006) se inscreve como minhas lentes de leitura. Neste capítulo apresento alguns dos conceitos-chave que utilizo na interpretação de meus resultados. No capítulo quatro, apresento os critérios de escolha dos sujeitos da tese (os professores universitários) e a forma como os dados foram coletados, ou seja, as entrevistas semi-estruturadas, além das convenções textuais para transcrição das entrevistas. Os episódios coletados dos resultados foram analisados em dois capítulos, o quinto e o sexto. O quinto centra-se na análise das concepções dos professores universitários sobre o “ser professor” e sobre o processo formativo da Licenciatura e o sexto, na análise das concepções desses sobre a universidade e como esse cenário influencia suas atividades docentes. 4 Bakhtin considera como enunciados as expressões (orais ou escritas) formalizadas de utilização da língua. 7 Os dois últimos capítulos que encerram esta tese abordam as considerações finais sobre as análises – capítulo sétimo – e, diante dessas considerações, no capítulo oito, apresento exemplos de iniciativas bem-sucedidas em outras universidades brasileiras que aprimoraram a formação inicial oferecida, inspirando-me a tecer sugestões sobre a formação inicial na UFF. Minha expectativa com esta tese é suscitar nos professores entrevistados e nos seus pares de profissão (os demais professores do curso) mais questionamentos e reflexões que contemplem sua própria prática, condição fundamental para se repensar significativamente o processo formativo de modo a aprimorá-lo cada vez mais. 8 1 CAPÍTULO A universidade, o cenário... Tenho uma boa e uma má notícia: a má, é que somos cárceres e a boa, é que somos os nossos carcereiros. Elisa Lucinda5 O tema universidade precisa ser abordado com uma escrita vigilante a fim de evitar caminhos que desemboquem em áreas distantes dos limites do meu problema6 e que poderiam configurar, por si só, o todo de uma outra tese, e não apenas um capítulo. O fato é que, reconhecidamente, os estudos recentes sobre esse cenário apontam para uma crise institucional que vem crescendo e tornou-se muito evidente a partir da década de 80, desencadeando o movimento de reformas de âmbito mundial e ganhando força na América Latina, na década de 90 (TRINDADE, 2003). Sendo assim, buscarei situar-me na linha tênue entre a superficialidade e a profundidade, apresentando sucintamente, num plano mais continental (dos países latino-americanos) a crise que a universidade atravessa e, noutro plano, mais próximo do meu cenário, a universidade brasileira, centrando na Universidade Federal Fluminense e sua relação com o curso de Licenciatura, com a intenção de fornecer subsídios para o melhor entendimento do cenário de atuação de meus protagonistas, cárceres e carcereiros7 desse tipo de instituição secular. Em todo o mundo, as universidades se encontram num momento em que estão ocorrendo mudanças profundas tanto em suas estruturas de Ensino quanto na sua posição e sentido social. Não que essas instituições tenham permanecido imutáveis durante os seus vários séculos de existência, mas a grande velocidade das transformações vivenciadas nesse último meio século em termos científicos e 5 A frase que uso como epígrafe foi dita pela autora durante seu monólogo “Parem de falar mal da Rotina”, apresentado em dezembro de 2007, no Teatro da Associação Médica Fluminense, Niterói – RJ. 6 Considero que os limites do meu problema no caso desse capítulo é abordar os fatores externos que “moldaram” o cenário universitário (como as reformas e as políticas públicas) e como eles afetam o fazer dos professores universitários. 7 Considero os professores universitários com essa dualidade por reconhecer sua autonomia para reformar seu pensamento (libertando-se das prisões ideológicas anteriores, atuando como seus carcereiros) ou por manter a forma de pensar (atuando como um cárcere de suas próprias ideologias). 9 tecnológicos, associadas a outras demandas como a massificação8 dos estudantes, a crescente globalização e internacionalização dos estudos e a redução de investimentos do governo são fatores que repercutiram de forma substancial e incisiva nas relações que as instituições universitárias estabelecem com seus professores e os demais coadjuvantes desse cenário (funcionários, alunos, comunidades, escolas e outras instituições) (ZABALZA, 2004). As universidades estão revendo o modo como organizam seus recursos, sua estrutura, seus conteúdos e, principalmente, suas propostas de formação, com o objetivo de enfrentar os novos desafios que as pressões sociais e mercadológicas lhes obrigaram a assumir (op. cited.). Nos países latino-americanos, a reforma foi introduzida sob o discurso da modernização das universidades, como aponta Denise Leite: Sob o discurso da modernização, do controle e diminuição de gastos estatais com vistas à melhoria da qualidade do Ensino, erige-se o programa de reformas da educação superior na maioria dos estados latino-americanos. O discurso das reformas em geral se inicia pela associação da grande imprensa com o estado, patrocinando para a opinião pública uma visão das universidades públicas marcada pela improdutividade, pelo custo excessivo e pela baixa qualidade da formação oferecida. (2003, p.182) Nesse sentido, a evolução dos movimentos reformistas da educação superior na América Latina pode ser resumida sob duas vertentes: massificação e privatização, mesmo que nos países de língua espanhola e portuguesa a relação entre essas tenham ocorrido de formas bastante diferenciadas. Nos países de língua espanhola, ocorreu a expansão de universidades públicas que se massificaram progressivamente, com o crescimento de instituições privadas, observado a partir da década de 90 (privatização). No Brasil, a expansão e consolidação das universidades públicas ocorreram entre 1930 (com a criação das primeiras universidades brasileiras) e 1970 (com o advento do “milagre econômico” da década de 70), e a partir daí se dá uma expansão espetacular das instituições privadas que absorvem atualmente dois terços das matrículas no Ensino Superior (TRINDADE, 2003). 8 A massificação é tida aqui como um aumento substancial do número de alunos nas universidades, consequência da diversificação de cursos e de políticas públicas que buscam tornar a educação superior acessível a um número cada vez maior de cidadãos. O quantitativo de estudantes matriculados em universidades em todo o mundo, na década de 90, é o sêxtuplo da década de 60 (TRINDADE, 2003). 10 Cabem aqui algumas considerações sobre essa precoce expansão do Ensino público brasileiro, quando comparada com a dos países latino-americanos, ainda que isso exija uma escrita a rédeas curtas, para não cair no vasto terreno de domínio da História da Educação. Segundo a historiografia corrente, o Brasil da década de 50 e início da de 60 viveu uma época de grandes transformações, sendo essa época conhecida como “Anos Dourados”, devido à mobilização de ações políticas em torno da modernização do país, mesclada com os sentimentos de alívio geral (pois o mundo acabara de passar por uma grande guerra), além da expectativa, por parte de alguns intelectuais brasileiros, de superação da dependência econômica e emancipação social (TRINDADE, 2007). Nessa atmosfera, projetos que visavam a articular a industrialização, o desenvolvimento científico e a renovação educacional reorientaram as políticas de Estado e fizeram emergir o ideário desenvolvimentista (MENDONÇA, 2006). Isso potencializou também o resgate e a expansão de outro ideário, o da Escola Nova, oficializado na década de 30 pelo “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”, que influenciou a Constituição de 1934 e que pode ser considerado como um primeiro esboço para um Plano de Educação Nacional, que subsidiou a proposta da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB9), aprovada em dezembro de 1961, como resultado do trabalho de dois grupos de posições doutrinárias distintas. Neste mesmo ano, era criado o Conselho Federal de Educação (CFE), iniciando a expansão desordenada do Ensino Superior brasileiro, com a criação de faculdades (em especial de iniciativa privada, alicerçadas pela LDB recém-aprovada) muitas vezes atendendo a interesses políticos locais ou a um incipiente empresariado escolar mais atento aos lucros que à mobilização cultural, ao Ensino e à pesquisa (FÁVERO; BRITTO, 2002). Juntamente com isso, o clima de descontentamento pela aprovação da LDB10, a inflação como consequência do desenvolvimento às custas da injeção de capital estrangeiro (que contribuíram para o colapso do populismo), a polarização de grupos sociais e instituições (suscitando greves e movimentos sindicais) e de organizações 9 A LDB iniciou sua tramitação em 1948, dois anos após a promulgação da Constituição de 1946; deste ano até 1959, o ponto principal de discussão do anteprojeto consistiu na centralização ou descentralização do sistema de Ensino; na segunda fase de discussão do projeto, o enfoque era a liberdade de Ensino, quando educadores e intelectuais leigos e católicos ligados aos empresários do Ensino privado reivindicavam igualdade de condições da escola privada em relação à escola pública, fazendo emergir a Campanha em defesa da escola pública (ALVAREZ, 2004). 10 Ocorreu o descontentamento de muitos intelectuais da educação brasileira, pois a LDB foi aprovada nos moldes retrógrados suscitados nas suas primeiras discussões da década de 30. 11 políticas e partidos (disputas partidárias acirradas) configuraram a truculência do começo da década de 60 e o Golpe Militar de 64 (ALVAREZ, 2004). É oportuno ressaltar que, comparada às outras ditaduras que eclodiram nos países do cone sul da América Latina na mesma época, as universidades, que foram um dos alvos principais de violência e repressão nos outros países, tiveram seu desenvolvimento impulsionado no Brasil, mesmo diante da exoneração de um número significativo de lideranças intelectuais que não compactuavam com o regime militar em vigor. Segundo Helgio Trindade, Os militares – influenciados por uma elite civil, científica e universitária – foram persuadidos de que a construção do “Brasil-potência” exigia universidades capazes de formar pesquisadores de alto nível, através da pósgraduação e do financiamento da pesquisa. (2007, p.19) Nesse sentido ocorreu o “grande paradoxo do regime militar: intervir nas universidades para afastar os professores e estudantes ‘subversivos’ e depois impor o seu próprio projeto” (2007, p.19), que foi alicerçado em parte por propostas que emergiram da luta universitária e das experiências do período anterior ao Golpe. Pressionados pelo movimento estudantil, ressurgido em 68, os militares organizaram o “Seminário de Educação e Segurança Nacional”11, medida que representava o seu ingresso direto no processo de reforma e tentativa de atenuar as pressões internas pela disposição de debater temas concernentes aos Ensinos Superior e Médio. Desse processo, surgiu um “Anteprojeto de lei sobre a organização e funcionamento do Ensino Superior”, elaborado pelo “Grupo de Trabalho da Reforma Universitária (GRTU)12”, que apontava, entre outros fatores, a necessidade da reforma universitária advinda do entrechoque entre Estado, Universidade e Comunidade (intitulada “tríplice dialética”) e a capacidade de a universidade reformar-se por suas próprias forças, tratando também num âmbito mais geral da tentativa de estabelecer a 11 Esse seminário reunia a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECME) e a Universidade do Estado da Guanabara (atualmente conhecida como Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ). Nessa época surgiu a proposta de introdução do curso de Moral e Cívica e o Projeto Rondon, que buscava estender este curso a todos os níveis (TRINDADE, 2007). 12 O GRTU foi estabelecido no governo Costa e Silva (1967-1969), com intuito de estudar a reforma da universidade brasileira, visando a sua eficiência, modernização, flexibilidade administrativa e formação de recursos humanos de alto nível para o desenvolvimento do país e, ao mesmo tempo com outras intenções, como a de desmobilizar os intelectuais que expressavam uma postura crítica e inovadora ao regime, além de tentar conter as manifestações estudantis, uma vez que as intervenções da polícia militar já não eram suficientes para conter os protestos (TRINDADE, 2007). 12 autonomia universitária. Desse anteprojeto, surgiu a lei universitária n° 5.540, de 1968 (TRINDADE, 2007), que criou o exame vestibular. Com a proposta de atualizar a LDB de 1961, surgiu a LDB de 1971, que abordava com mais profundidade as questões curriculares, além do incentivo à criação de mais escolas técnicas (GANDOLFI & ROSSI, 2008), e sua mais recente atualização, a LDB de 1996, que pode ser considerada marco documental das reformas universitárias suscitadas e intensificadas na década de 90. Sendo assim, após esse breve panorama das reformas educacionais brasileiras13 feito pelos referenciais supracitados, é que o processo de expansão e consolidação precoce do Ensino Superior público brasileiro pode ser justificado, comparado aos de outros países da América Latina, seguido de uma expansão espetacular das instituições privadas de Ensino Superior, a partir da década de 70. Isso caracteriza uma reforma que difere da dos outros países latino-americanos em relação às vertentes massificação e privatização, mas, ainda assim, apresentam características comuns. Antes de elencar as principais características que nortearam as reformas das universidades brasileiras na década de 90, cabe diferenciar as duas esferas de universidades públicas: as universidades estaduais, que gozam de plena autonomia, e as universidades federais (foco desse capítulo), que gozam de uma autonomia relativa, pois estão sujeitas às reformas implantadas pelo Governo Federal (LEITE, 2003). Segundo Denise Leite, são características da reforma universitária brasileira: • diversificação da missão das instituições: Universidades (Ensino, Pesquisa, Extensão, Pós-graduação), Centros Universitários (Ensino preferencial e Pesquisa), Institutos Superiores, Faculdades Integradas e Escolas Superiores; • aumento do número de instituições privadas em progressão acelerada (estima-se que de janeiro a março de 2001 criaram-se 2,5 instituições/dia); • ampliação do número de matrículas e de cursos, inclusive nas universidades públicas federais onde vigora o numerus clausus14, e uma matriz orçamentária inelástica; • flexibilização da oferta curricular – introdução dos cursos sequenciais15 – curta duração; 13 Assumo a arbitrariedade em iniciar minha abordagem do contexto universitário brasileiro a partir da década de 50 do século XX. Considero essa época ímpar, pela conjugação de fatores, como: o ajuste ao novo paradigma mundial do pós-guerra, a influência da recém-criada Organização das Nações Unidas (ONU) e de sua vertente educacional: Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), o surgimento do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), a revitalização do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), a criação da Campanha Nacional de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), mesmo sabendo que existem outros fatores relevantes no contexto da história da Educação no Brasil antes desse período. 14 Em latim “número restrito” para fazer alusão à quantidade de vagas disponibilizadas, que são restritas e publicadas nos editais de seleção. 13 • diversificação do financiamento – ampliação do sistema de fundos concursáveis (FINEP, PRONEX, BNDES, Fundos Setoriais e outros); abertura para serviços, convênios e outros; • realocação de recursos – dos 4,7% do PIB para educação em 1997, 3,1 foram para Ensino fundamental e médio e 1,1 para a educação terciária (Table B4.1, in OECD, 2001); • diferenciação salarial dos acadêmicos das instituições públicas – ao lado da carreira docente e da carreira como pesquisador– intensifica-se a contratação temporária (professor substituto), as aposentadorias (que levam o docente preparado para a universidade privada); institui-se a GED –Gratificação de Estímulo à Docência, espécie de sistema “merit pay” para docentes do sistema público federal; • Lei da Inovação (a partir de 2001) – deverá favorecer e legalizar o segundo emprego do docente – na empresa privada ou estatal não universidade; • avaliação intensiva, em diferentes modalidades, sob controle do estado desde 1996 (avaliação da Pós-graduação, desde 1977; auto-avaliações autônomas das universidades, desde 1986; modelo PAIUB, desde 1994;) Sistema de avaliação pública inclui: Provão – Exame Nacional de Cursos, seguido de ranking nacional (atual ENADE); ENEM – Exame do Ensino Médio; avaliação das Condições de Oferta, avaliação externa de especialistas; ênfase na recolha e utilização de dados estatísticos e dos Censos – transformação do INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas) em órgão responsável pelas avaliações e censos educacionais. (grifo meu, 2003, p.185186) Essas características, mesmo que sucintas, confirmam o que diferentes autores vêm demonstrando como consequências desses movimentos de reforma: o crescimento do sistema com forte apoio do setor privado, a submissão das políticas de estado para educação às recomendações de órgãos financeiros internacionais (educacional submisso ao econômico), ênfase do controle do estado sobre o sistema de educação superior através de avaliação. Essas consequências de âmbito macro educacional afetam a universidade localmente, redesenhando suas funções para novas direções (LEITE, 2003), em que nem sempre o papel formativo ocupa o primeiro plano. Embora a consideração do papel formativo da universidade pareça óbvia e indissociável dessa instituição, as circunstâncias instáveis atuais de funcionamento, manutenção e sobrevivência dessas instituições desvirtuam esse papel essencial. As universidades atuais se aproximam cada vez mais do perfil de centros de pesquisa, onde o nível de qualidade está associado aos indicadores de produção científica, como: patentes, projetos de pesquisa subvencionados, publicações, 15 Os cursos sequenciais são cursos oferecidos no nível superior, mas que não são graduações. Podem ser definidos como uma formação específica em um dado "campo do saber", num prazo relativamente curto, sem a necessidade de ingresso em uma graduação. Esses cursos podem ser feitos por alunos egressos do Ensino Médio ou por universitários (durante ou após sua formação), dependendo das especificidades do curso. 14 congressos, etc., enquanto o caráter formativo constitui uma variável de menor valorização (ALVAREZ, 2004). O quadro docente das universidades públicas é um reflexo dessa nova tendência. Nos concursos públicos, para admissão de novos professores, fica evidente, na estrutura avaliativa, o peso maior atribuído às publicações, patentes e títulos do candidato, em detrimento da sua formação pedagógica (que em alguns casos é dispensada16), o que fica evidente no peso dado à prova de aula. A universidade parece por vezes estar interessada em “pesquisadoresprofessores” e não “professores-pesquisadores”17, e isso afeta, em alguma medida, os cursos de graduação, principalmente as Licenciaturas, em que os professores universitários (formadores de formadores) nem sempre atuam buscando despertar a visão crítica, a reflexão e a integralização18 daquilo que está sendo ensinado aos seus licenciandos, quesitos correntes nas diretrizes curriculares para formação docente de diferentes universidades públicas federais (incluindo a universidade que abordo nessa pesquisa). Ademais, seria limitado de minha parte não mencionar as tarefas que rondam a produção científica e pedagógica dos professores universitários, tarefas nem sempre visíveis aos sistemas de avaliação, mas que ocupam boa parte da jornada de trabalho desses professores, como, por exemplo, “as atividades referentes à captação de verbas, que incluem a elaboração de projetos, acompanhamento de processos, administração financeira e prestação de contas” (ALVAREZ, 2004, p.152), a elaboração de relatórios e pareceres aos órgãos de fomento à pesquisa, as reuniões de departamento e de colegiado, a participação de comissões de graduação, de departamentos, de jornadas de iniciação científica, as coordenações de departamentos, a direção de unidades e/ou institutos, orientações e participações em bancas de concursos públicos, exames de 16 Cabe ressaltar que a formação pedagógica para a atuação docente no Ensino Superior não é uma exigência legislativa da LDB, que coloca no artigo 52°, incisos II e III, que um terço do corpo docente deve ter, pelo menos, titulação de mestrado ou doutorado, e que esse mesmo montante deve trabalhar em regime de dedicação exclusiva. 17 Tomo aqui essas nomenclaturas pesquisadores-professores e professores-pesquisadores, pois nesse trecho refiro-me ao juízo de valor entre pesquisa e docência nos interesses de contratação das universidades atuais. Ressalto que a última nomenclatura empregada não está relacionada com o professor que pesquisa em sua própria prática. 18 Cabe definir esses três termos: a visão crítica e a reflexão podem ser aludidas de forma conjunta e considero apropriado para essa definição o viés de Giroux, que considera a reflexão como extrato da crítica, pondo os professores na posição de intelectuais questionadores, capazes de “levantar questões acerca dos princípios que subjazem os diferentes métodos didáticos, técnicas de pesquisa e teorias da educação” (1997, p. 159). A integralização pode ser definida como o movimento de conectar os conteúdos, de rasgar os envelopes disciplinares. 15 qualificação, de dissertações de mestrado, teses de doutorado, a avaliação de artigos para revistas da sua área de pesquisa, etc. Para os professores que realizam pesquisas experimentais, posso ainda elencar outras tarefas, como a colocação do laboratório em funcionamento, que envolve contato com fornecedores, avaliação de orçamentos, manutenção de equipamentos, etc. Todas essas atividades que integram o cotidiano do professor universitário nem sempre são “contabilizadas” pelos sistemas de avaliação e, mesmo que muitas delas sejam sazonais, seu conjunto tem muita importância nos calendários desses professores (ALVAREZ, 2004) e, consequentemente, afeta, em alguma medida, a atividade docente desenvolvida em sala de aula e todas as outras tarefas que essa atividade também exige, podendo comprometer a qualidade educativa das aulas ministradas. Esses desmembramentos da reforma universitária de 90, no cotidiano do professor universitário, se mantiveram e agregaram outras nuances com o mais recente movimento de reforma universitária empreendido pelo governo Lula, em 2007, o REUNI (Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais). Apresentando de forma sucinta, o REUNI foi divulgado pelo governo Lula através de um Decreto Presidencial (6096/07) e se engendra num contexto de empresariamento da Educação Superior (NEVES, 2002 apud LIMA, 2009) iniciado com o Governo Collor/Itamar (1990-1992/1992-1995), ganhando nova roupagem nos dois mandatos do governo FHC19 (1995-1998 / 1999-2002), quando a educação foi incluída no setor de atividades não exclusivas do Estado (SILVA & SGUISSARD, 1999 apud LIMA, 2009) e conduzida no atual governo, num duplo mecanismo, o da amplificação do número de cursos privados e o da privatização interna das instituições públicas (LIMA, 2008 apud LIMA, 2009). Tais mecanismos favoreceram a “burguesia de serviços educacionais” (BOITO JR, 1999 apud LIMA, 2009) devido à ampliação da isenção fiscal realizada pelo FIES (Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior) e pelo PROUNI (Programa Universidade para Todos) e pela possibilidade de reconhecer diplomas de Mestrado e Doutorado expedidos por instituições estrangeiras, competência antes atribuída somente às universidades públicas. 19 Fernando Henrique Cardoso 16 Além disso, ocorre a abertura para a participação do capital estrangeiro na educação brasileira e o estabelecimento de parcerias e/ou compra de pacotes educacionais para viabilização da Educação Superior a distância, conduzida pelo governo federal (LIMA, 2007 apud LIMA, 2009). Os objetivos do REUNI, que deverão ser cumpridos num prazo máximo de 5 anos, são: elevar a taxa de conclusão dos cursos de graduação para 90%; aumentar o número de estudantes de graduação nas universidades federais; aumentar o número de alunos por professor em cada sala de aula da graduação; diversificar as modalidades dos cursos de graduação através da flexibilização dos currículos, da criação dos cursos de curta duração e/ou ciclos (básico e profissional) e da educação a distância, incentivando a criação de um novo sistema de títulos e a mobilidade estudantil entre as instituições (públicas e/ou privadas) de Ensino. Segundo Lima, A adesão das universidades federais ao REUNI implica diretamente dois níveis de precarização: a da formação profissional e do trabalho docente. A precarização da formação ocorre através do atendimento de um maior número de alunos por turma, da criação de cursos de curta duração e/ou ciclos (básico e profissionalizante), representando uma formação aligeirada e desvinculada da pesquisa. Considerando a necessidade do cumprimento das metas de “expansão” indicadas no decreto, através do aumento do número de turmas, de cursos e da relação professor-aluno em sala de aula da graduação, a dinâmica de contratação de professores nas universidades está pautada no “banco de professores-equivalentes”, precarizando ainda mais as condições de trabalho docente. (2009, p.5) O “banco de professores-equivalentes” está sendo operacionalizado desde 31/12/2006 e dá a cada docente em exercício um peso diferenciado segundo seu regime de trabalho. Como a expansão do Ensino de graduação é uma das prioridades do REUNI, fica evidente o estímulo à contratação de professores em regime de trabalho de 20 horas, esvaziando o sentido do regime de trabalho em dedicação exclusiva, o que afeta a tríade: Ensino, Pesquisa e Extensão, configurando-se assim um retrocesso. Cabe agora afunilar o tema até aqui debatido, tentando estabelecer conexões do que foi apontado com o cenário de atuação dos meus protagonistas de pesquisa, a Universidade Federal Fluminense (UFF). 17 1.1) A Universidade Federal Fluminense e a Licenciatura Seguindo o referencial cronológico da década de 90, aproveitando a contextualização realizada sobre as reformas e, finalmente, o REUNI, buscarei imergir na UFF. Sendo mais preciso em meu mergulho, focarei a estruturação das Licenciaturas, em especial a Licenciatura em Química. Sendo assim, localizo a criação da Coordenação das Licenciaturas (CL) em 1994, órgão assessor da Pró-reitoria de Assuntos Acadêmicos (PROAC)20, como um marco fundamental para a institucionalização das discussões e elaboração de propostas para a formação de professores na UFF. A composição da CL incluía: coordenadores de cursos de graduação que oferecem Licenciatura; representantes da Faculdade de Educação; representantes da PROAC. Em 1999, alguns de seus membros compuseram um grupo de trabalho que redigiu o documento Diretrizes para a Política de Graduação na UFF (UFF, 1999), que mais especificamente no item 4.2, Diretrizes curriculares da UFF para as Licenciaturas-graduação plena, concebe a Licenciatura na UFF: como o curso de formação do educador-pesquisador para atuar na escola e nos espaços alternativos educacionais. Pressupõe-se que este curso proporcione uma sólida formação teórica em todas as atividades curriculares – nos conhecimentos específicos a serem ensinados pela escola básica e nos conhecimentos pedagógicos – tendo a pesquisa educacional como princípio embasador. (1999, p. 23) O direcionamento para formação do educador-pesquisador no documento de 99 revela a interligação do grupo de trabalho com as pesquisas desenvolvidas no campo da formação docente daquela época (final do século XX). Expressões e conceitos novos referentes aos professores, sua formação e seu trabalho foram incorporados de outros referenciais teóricos, como: epistemologia da prática (TARDIF, LAHAYE & LESSARD, 1991), professor-reflexivo (SCHÖN, 1983), prática-reflexiva (GIROUX, 1997), professor-pesquisador (STENHOUSE, 1985), saberes docentes (TARDIF & LESSARD, 1999) e rapidamente compuseram o vocabulário dessa área (ALVES, 2007). 20 Órgão da administração central da UFF, que gerencia o acesso, a criação e a avaliação dos cursos de graduação, bem como todas as atividades acadêmicas (monitoria e estágios) e administrativas (expedição de certificados e diplomas) discentes. 18 Apreciados ou não, esses termos ainda são correntes nos debates sobre educação e formação de professores, e aparecem em outros trechos que destaco desse documento de 99. Para além dessa constatação de influência das pesquisas da época na redação do documento supracitado, cabe ressaltar o tom inovador desse texto, no sentido de promover o professor à instância de sujeito participante e crítico do seu cenário de atuação, e não um mero reprodutor de conhecimentos e orientações transmitidas da universidade, ideologia da racionalidade técnica (CONTRERAS, 2002). Sobre a organização curricular, esse documento, no seu item 4.3, estabelece: A formação pedagógica precisa iniciar-se a partir dos primeiros períodos, tendo em vista que o saber docente não se constrói apenas através de complementação, sendo um processo construtivo pelo qual se dá a incorporação do pedagógico no futuro educador. A pesquisa pedagógica se institui como componente curricular ao longo do curso, a fim de contribuir para a formação do professor crítico-reflexivo, possibilitando a atitude investigativa como condição inerente ao exercício do magistério. (1999, p. 24) Ainda no mesmo documento, era proposto que 3 tipos de conteúdos fossem ministrados: os específicos, os articuladores (teoria-prática, ensino-pesquisa) e os pedagógicos e humanísticos. Assim, dividindo-se o curso em 3 momentos, era indicado que no primeiro fossem oferecidos 75% de componentes específicos e 25% dos demais tipos; no segundo, 70% específicos e 30% dos outros; e, no terceiro, 70% dos pedagógicos, humanísticos e articuladores e 30% dos específicos. A diretriz da prática pedagógica concebida desde os primeiros períodos pode ser encarada como uma tentativa de romper, pelo menos em estrutura curricular, com o modelo 3+121 de formação, e essa formação pedagógica inclui a prática, também contemplada nessas diretrizes: [...] Entende-se que não se deva tornar uma prática burocrática, cumpridora apenas de normas legais. Pelo contrário, ela deve ser desenvolvida com a conotação de uma prática articulada à pesquisa, a fim de que o aluno [licenciando] vivencie as realidades educacionais. Esta prática deverá pautarse nas vivências reflexivas críticas da gestão e da organização escolar, na dinâmica da sala de aula, na análise curricular e nos processos avaliativos. (1999, p. 25) 21 Esse modelo formativo é caracterizado pela desarticulação entre o núcleo de saberes de natureza específica e os saberes que fundamentam a prática educativa (saberes pedagógicos). Essa nomenclatura (3+1) faz alusão aos três anos de formação específica e ao último ano de formação pedagógica. 19 A aproximação do futuro professor da pesquisa ratifica a intenção de orientar a prática pedagógica nas escolas como uma vivência encharcada de aprendizagens, colocando o licenciando como parte integrante daquele cenário, refletindo, pesquisando e aprendendo com outros professores. Essa intenção reflete também a de afastamento de um fazer característico da racionalidade técnica que considera a observação passiva para detecção dos problemas escolares vividos por aquela comunidade escolhida pelo licenciando, para o encaminhamento de soluções preconcebidas, protocolos forjados nas universidades. Entre 1999 e 2002, a CL aprofundou estudos e elaborou um texto com fundamentação teórica mais consistente e ampliada, específico para as Licenciaturas: as Diretrizes para formação de professores na UFF (UFF, 2002). Muitas dessas orientações são reelaborações das encontradas no item 4.2. Diretrizes curriculares da UFF para as Licenciaturas-graduação plena do documento de 99. Um dos itens dessas diretrizes formaliza a prática e o estágio curricular supervisionado, orientando que “devem ser desenvolvidos com a conotação de uma prática e um estágio articulados à pesquisa [...]” (p. 17 e 18). Dentre outras orientações norteadoras da publicação de 2002, destaco: -criar modelos curriculares amplos, capazes de construir conhecimentos em ‘rede’ numa ação articulada entre Bacharelado e Licenciatura, privilegiando tanto a interdisciplinaridade quanto a transdisciplinaridade; [...] -proporcionar a educação inicial e continuada, através das três funções da universidade: Ensino, Pesquisa e Extensão; -preparar o profissional para o exercício da prática do trabalho, da cidadania e da vida cultural; [...] (p. 15 e 16) Esses pressupostos ratificam um perfil de profissional docente já apontado no documento de 99, que coloca a pesquisa associada ao exercício crítico, reflexivo e investigativo das realidades educacionais como instâncias a serem priorizadas no processo formativo. No que tange ao currículo, segue a mesma tendência de aprofundar e detalhar pressupostos já apontados no documento de 99. Apesar de essas diretrizes nortearem uma formação docente que se aproxima da considerada adequada pelos pesquisadores na área para a sociedade, o desmembramento e a internalização desses apontamentos nas especificidades de cada curso produziram intensos debates nos colegiados, em busca de um denominador comum. 20 Na Licenciatura em Química, durante alguns meses, esses debates mobilizaram professores e estudantes do curso22, com boa parte das discussões girando em torno da criação de uma identidade para o curso de Licenciatura em Química. Para isso, eram necessárias mudanças estruturais, como a criação, supressão e/ou modificação das disciplinas obrigatórias existentes no quadro curricular da Licenciatura (que antes continha todas as disciplinas do curso de Bacharelado em Química), além do esforço de estruturar os três momentos da formação do licenciado supracitados, articulando os três tipos de conteúdos (os específicos, os articuladores e os pedagógicos/humanísticos), sem perder o vínculo com o bacharelado. Destaco do documento de 2002 o seguinte trecho: “manter permanente interação entre os bacharelados e Licenciaturas em cada área do conhecimento” (UFF, 2002, p. 25), que é colocado como um dos desafios da reestruturação das Licenciaturas e que vem ao encontro do que acabamos de discutir. Diante da apresentação feita sobre as diretrizes curriculares para Licenciatura da UFF, frente à contextualização das reformas universitárias brasileiras, cabe agora oferecer mais um componente para tornar o cenário em análise menos nebuloso, que é o fluxograma da Licenciatura em Química pós-reforma de 90 (ANEXO 1). Considero esse fluxograma ferramenta importante na constatação da forma que as diretrizes tomaram, ou seja, na estrutura curricular adotada, além de mapear as conexões entre as disciplinas em cada período do curso. Esse fluxograma deverá ainda ser mais uma vez alterado por influência das ações do REUNI. O Projeto Pedagógico Institucional (PPI23), publicado em 2002, e o Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI24), publicado em 2004, já preconizavam como prioridades institucionais a expansão da graduação, da pós-graduação e da extensão, bem como a redução da retenção e evasão de estudantes, juntamente com a criação dos cursos noturnos e a criação de novos cursos presenciais e a distância, medidas concordantes com os objetivos do REUNI, publicados em 2007. Sendo assim, esses documentos foram considerados os eixos centrais da reformulação político-pedagógica em curso na UFF, desde a adesão ao REUNI, sendo 22 Afirmo isso por ter sido representante dos alunos da Licenciatura em Química nas reuniões de colegiado, por intermédio do Diretório Acadêmico de Química. 23 O PPI constitui-se em um plano de referência para o trabalho pedagógico desenvolvido na universidade. 24 O PDI visa a criar condições de operacionalização das políticas pautadas no PPI, no cotidiano institucional. 21 explicitados nos seguintes documentos: o Projeto de Adesão da UFF ao REUNI25 e o novo Regulamento dos Cursos de Graduação da UFF26. A análise desses documentos é tão densa que poderia ser muito mais que um capítulo da tese, portanto, apontarei sucintamente tópicos consonantes com meu tema. Começo com um aspecto negativo desse movimento, destacando um trecho do Projeto de Adesão da UFF ao REUNI onde percebo uma forte intenção de aligeirar a formação oferecida na UFF, A organização dos cursos em turnos mais concentrados permitirá a otimização de espaços físicos e, portanto, maior oferta de vagas, além de facilitar para o aluno a organização de seu tempo. Também seria interessante perguntar qual o estímulo que oferecemos aos bons alunos para que aprofundem e acelerem seus estudos. Se um estudante, por sua própria conta, estudar determinado tema, que contenha a matéria de uma ou mais disciplinas, não existem, hoje, instrumentos para que seja dispensado delas [...] que cada aluno possa cursar suas disciplinas/atividades no menor número possível de turnos e que sejam criados mecanismos de aprofundamento e aceleração de estudos para os bons alunos. (UFF, 2007, p.23) O documento ainda critica a rigidez curricular, pontuando o elevado número de pré-requisitos, correquisitos e a baixa relação entre disciplinas optativas e obrigatórias, apontando para uma estrutura curricular em que o aluno possa escolher seu próprio “itinerário formativo”, buscando aumentar a integração acadêmica de áreas afins (LIMA, 2009). Sendo assim, o referido documento aponta para que os cursos reduzam seus prérequisitos e correquisitos, que possam compartilhar algumas disciplinas obrigatórias com outros cursos e aumentar o número de disciplinas optativas. As estratégias para alcance dessas metas são anunciadas pela TABELA 1. O avanço cronológico dessa reestruturação das graduações vem impactando e impactará mais ainda o cotidiano do professor universitário da UFF, pelo aumento substancial de alunos por sala nas disciplinas que irá lecionar, além da crescente heterogeneidade de alunos que, em alguns casos, cursarão uma disciplina advindos de cursos distintos. 25 26 Aprovado por Conselho universitário em novembro de 2007. Divulgado pela PROAC e aprovado pelo Conselho de Ensino e Pesquisa, em 2008. 22 TABELA 1 – CRONOGRAMA DE EXECUÇÃO DE MUDANÇAS NAS GRADUAÇÕES (UFF, 2007, p.26) 2008 2009 2010 2011 2012 Redução dos pré- Pelo menos 2% Pelo menos 4% Pelo menos 6% Pelo menos 8% Pelo requisitos dos cursos dos cursos dos cursos dos cursos 10% dos cursos Compartilhamento Pelo menos 6% Pelo Pelo Pelo Pelo de alguma disciplina dos cursos 12% dos cursos 18% dos cursos 24% dos cursos 30% dos cursos Aumento da relação Pelo menos 2% Pelo menos 4% Pelo menos 6% Pelo menos 8% Pelo optativas/obrigatórias dos cursos dos cursos dos cursos dos cursos 10% dos cursos obrigatória menos menos menos menos menos entre cursos afins menos Como colocado anteriormente, se a sala de aula (que representa o papel formativo da universidade) é por vezes posta em segundo plano pelas demandas de pesquisa dos professores universitários, agora, com a intenção de massificá-la, a tendência é torná-la menos atrativa ainda, trazendo consequências negativas para formação dos licenciandos (LIMA, 2009). Em todo esse esforço de escrita que fiz nesse capítulo, reside a tentativa de fornecer às minhas lentes e às dos leitores, subsídios essenciais (mas nunca suficientes) para o melhor entendimento do cenário de atuação dos professores universitários: como ele se constituiu, seus elementos, suas marcas históricas advindas das reformas e seus desmembramentos no espaço cênico da prática docente, além de oferecer suporte às minhas escolhas teórico-metodológicas. 23 2 CAPÍTULO Meus protagonistas, seus saberes... Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina. Cora Coralina27 Como visto no capítulo anterior, as ações políticas provenientes da reforma universitária de 90 e, mais recentemente, do REUNI (em 2007), buscam cada vez mais avaliar a universidade em suas dimensões – Ensino, Pesquisa, Extensão e Pósgraduação – e esse movimento tem posto a formação oferecida por essas instituições na berlinda e, consequentemente, as atividades realizadas pelos professores universitários. O protagonismo exercido pelo professor universitário na definição da prática pedagógica do Ensino Superior é incontestável, embora ele não seja o único elemento significativo do processo, ele é o principal ator das decisões universitárias dessa dimensão (CUNHA, 2005). Entendê-lo como um sujeito histórico, revelador de um contexto social e engajado (de forma consciente ou não) a um projeto político é essencial para que a universidade alcance novos patamares de qualidade formativa, sendo desse entendimento que se engendram questões sobre a natureza dos saberes docentes, suas bases e suas relações com a atividade educativa, alicerce deste capítulo. 2.1) Breve histórico das pesquisas educacionais Como fio condutor para as pesquisas que envolvem essa temática, utilizarei nas linhas que se seguem a crise profissional que há tempos atravessa o magistério, a fim de oportunizar uma visão panorâmica da evolução das pesquisas educacionais sobre a atividade docente. A ideia do ofício de professor atrelada a uma dimensão sociopolítica, entendida como parte integrante da estrutura de poder explicitada pela organização da sociedade, é bastante recente. A compreensão desse ofício como uma missão, acima dos interesses de base material da sociedade, perdurou até boa parte do século XX e tem suas origens 27 Do poema Exaltação de Aninha (O Professor), de Cora Coralina. 24 ancoradas na história da construção do magistério, anteriores ao século das luzes (XVIII)28, tido como uma forma de sacerdócio, associado a um “dom intrínseco” aos envolvidos nesse fazer. Nessa época, esse ofício extrapolava a condição da transmissão dos conhecimentos, sendo o professor visto como um guardião dos bons costumes, um orientador das novas gerações para o caminho do bem e da razão, além de possuir grande prestígio social (CUNHA, 2007). No caminho temporal do desenvolvimento desse ofício, o paradigma positivista influenciou, em alguma medida, sua função. O positivismo foi desenvolvido a partir das ideias suscitadas da revolução científica ocorrida a partir do século XVI29, que instaurou o paradigma da racionalidade clássica que presidiu a ciência moderna, inaugurando uma “nova” forma de investigação: o “método científico”, que passou a assumir uma centralidade cada vez maior entre as Ciências, trazendo duas consequências drásticas para o ideário do conhecimento científico emergente da modernidade. A primeira: conhecer significa quantificar; o que não é quantificável é irrelevante; e a segunda: o rigor científico é aferido pelo rigor das medições (SANTOS, 2004). Mais do que isso, a fonte de todo o conhecimento está nos dados. Esse ideário positivista entrou em crise em meados do século XX, mas deixou cicatrizes aparentes no ofício docente. A substituição do dogma religioso que permeava a função docente pelo poder da ciência, a emergência do estado republicano30, a expansão da escola pública e a democratização do acesso à escolarização (massificação de estudantes), exigiam um profissional comprometido com o desenvolvimento cognitivo dos alunos (CUNHA, 2007). Somam-se a essas exigências os fortes mecanismos de controle sobre o exercício profissional, como a adoção obrigatória de materiais didáticos, de programas decididos por agentes externos, a obrigatoriedade dos treinamentos generalizadores e compulsórios e a aplicação de avaliações externas aos professores. Esses condicionantes emergentes da sociedade moderna afetaram o papel do professor, como complementa Campos, 28 Ressalto o século das Luzes por considerá-lo marcante no que tange ao estabelecimento do paradigma da racionalidade clássica. 29 Conduzida pelas mãos de Copérnico, Galileu e Newton (BOAVENTURA, 2004). 30 Nos Estados Unidos, a República foi proclamada no século XVIII, enquanto, na América Latina, no século XIX. 25 [...] A sociedade moderna passa a exigir professor papéis contraditórios, na medida em que delega atribuições antes conferidas à família, ampliando assim seu papel e, por outro lado considera-o especialista em alguma coisa imprecisamente esboçada (p.40, 1983 apud CANDAU, 1987) E revelam um processo de crescente desprestígio, que repercutiram nos índices de remuneração do magistério. Sobre a questão do reconhecimento dos professores, acrescenta Nóvoa, Os professores nunca viram o seu saber específico devidamente reconhecido. Mesmo que se reitere a importância de sua missão, a tendência é considerar sempre que lhes basta dominar bem sua matéria de Ensino e ter uma certa aptidão para comunicação, para o trabalho com os alunos. O resto não é indispensável. (p.227, NÓVOA apud TARDIF & LESSARD, 2008) Nesse sentido, o movimento de profissionalização do Ensino e da formação de professores pode ser considerado como uma das alternativas de resistência ao desprestígio e à falta de reconhecimento dos seus saberes, ocorrendo inicialmente por intermédio dos sindicatos e representações docentes ligadas à defesa dos planos de carreira e da valorização da meritocracia para progressão funcional. Depois dessas conquistas, o movimento passou a focar a formação docente e a recuperação do seu status social, movimentação subsidiada por “uma crescente produção de pesquisas etno-sociológicas sobre a condição do professor e de seu trabalho, procurando a construção de referenciais que favorecessem uma nova possibilidade de atuação” (CUNHA, 2007, p.13). Destaco que, à sombra dessa intenção profissionalizante, a lógica liberalmercadológica desenvolveu a chamada metodologia da Qualidade Total (que usa princípios de gerência empresarial nas instâncias educacionais), processo tratado no capítulo precedente como empresariamento da Educação Superior e que pode conduzir à tecnização do Ensino e favorecer ainda mais a proletarização do magistério por interferência externa, situação desfavorável à busca de uma identidade necessária à profissão (op. cited). Agora, depois de destacar alguns aspectos históricos, cabe esboçar uma evolução cronológica das pesquisas sobre Ensino, professores e os saberes envolvidos a partir do século XX, para situar algumas considerações já realizadas e embasar outras futuras. Durante as décadas do pós-guerra (1940-1950), como nos anos anteriores, os enfoques preconizados nas pesquisas sobre Ensino e professores eram psicológicos e 26 psicopedagógicos. O professor ocupava um papel coadjuvante, que influenciava a aprendizagem através de seu comportamento diante dos protagonistas (os alunos). Nos países anglo-saxônicos, essas pesquisas são marcadamente influenciadas pelo behaviorismo31, pela avaliação do “efeito docente”, ou seja, da eficácia do comportamento do professor na aprendizagem dos estudantes (BORGES & TARDIF, 2001), sendo essas pesquisas categorizadas por esses autores como “processo-produto”. Nas décadas seguintes (1960-1970), apesar de o movimento de pesquisa sobre esse tema ter se amplificado, a reincidência da mesma tipologia processo-produto provocou o surgimento das primeiras sínteses críticas a essas produções, apontando as fragilidades dos resultados anteriores das pesquisas sobre Ensino e deflagrando a necessidade de se constituir uma sólida tradição de pesquisa sobre a questão da atividade docente (op. cited.). Gauthier (1998) identifica mais duas tipologias nessa época de produção de pesquisas, embora aponte que a maioria delas pertença à do tipo processo-produto, são elas: as pesquisas etnometodológicas e simbólico-interacionistas (que diferentes do enfoque do processo produto, o comportamento do professor é interpretado de acordo com a sua significação para os alunos, não de acordo com seu desempenho) e as pesquisas cognitivistas (que centram o comportamento do professor em suas ideias). Na década de 80, os Estados Unidos e Canadá empreenderam um movimento de reforma na formação inicial de professores da Educação Básica, que alimentou as expectativas das duas décadas precedentes, no que tange à constituição de um repertório de conhecimentos profissionais para o Ensino, a Knowledge Base32. Borges e Tardif complementam que Para os partidários desse movimento é de fato urgente que os professores, em seu trabalho cotidiano, possam se apoiar num repertório de conhecimentos validado pela pesquisa e susceptível de garantir a legitimidade e a eficácia de sua ação. A profissão médica é tomada aqui voluntariamente como modelo de referência pelos promotores da profissionalização: como o médico, o professor deve possuir saberes expertos eficientes que lhe permitam, com toda a consciência, organizar as condições ideais de aprendizagem para os alunos. (2001, p.13) Entretanto, como ressalta Tardif, “nos últimos vinte anos, a profissionalização da área educacional se desenvolveu em meio a uma crise geral do profissionalismo e 31 Lógica de raízes positivistas. Segundo Shulman, essa base pode ser definida como corpo de compreensões, conhecimentos, habilidades e disposições de que um professor necessita para atuar efetivamente numa dada situação de Ensino (1986, p. 13) e é parte integrante do escopo do movimento de profissionalização. 32 27 das profissões” (2002, p. 250) e esse autor resume essa crise em quatro pontos que desenvolvo a seguir. O primeiro, a crise de perícia profissional, provém da emergência de problemas complexos, que as técnicas e estratégias profissionais (derivadas da racionalidade técnica situada no capítulo 1) não conseguem solucionar. Esse “fim das certezas”33 deriva da crise do paradigma positivista dos meados do século XX e fez com que essa perícia docente perdesse progressivamente sua áurea de ciência aplicada – com receitas prontas para resolução de problemas previsíveis – para se aproximar de um saber muito mais ambíguo, instável, construído e localizado social e culturalmente com suas dimensões éticas indissociáveis (especialmente quando se aplica a seres humanos). Essa crise suscitou controvérsias a respeito dos fundamentos epistemológicos das práticas profissionais, e a falta de confluência dessas diferentes correntes de pensamento fissurou os cânones que creditavam às profissões a estabilidade de um repertório de saberes legitimado, consensual e portador de imputabilidade (op. cited). O impacto dessas fissuras na formação profissional configura o segundo ponto, que se manifesta por meio de uma grande insatisfação e de críticas contra a formação universitária oferecida nas faculdades e institutos profissionais (CLARK & NEAVE, 1992; LESSARD & TARDIF, 1998 apud TARDIF, 2002). Complementa o autor que em muitos países se pergunta se as universidades, dominadas por culturas disciplinares (que são, além disso, e acima de tudo, culturas “monodisciplinares”) e por imperativos de produção de conhecimentos ainda são realmente capazes de proporcionar uma formação profissional de qualidade, ou seja, uma formação assentada na realidade do mundo do trabalho profissional (op. cited. p. 252) Colocando um curto aposto nesse ponto, já que a universidade foi aludida no capítulo anterior, considero o paradigma “uni-versal” ainda muito presente no currículo e nos fazeres docentes da universidade, enquanto o cotidiano profissional é “pluriversal”, o que ratifica as apostas em propostas de formação que priorizem a vivência do formando com seus cotidianos profissionais34. 33 Faço alusão ao livro do prêmio Nobel Ilya Prigogine O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza, que aborda entre outras questões o abalo nas “verdades científicas” produzidas pelo método científico. 34 O plural revela meu entendimento que, no caso da formação docente, o licenciando deve estar em contado com diferentes cotidianos escolares que permeiam as diferentes escolas públicas e privadas. 28 Abalar a estabilidade do repertório dos conhecimentos profissionais e por em cheque a formação oferecida afeta a confiança35 profissional do docente pela sua clientela (alunos e responsáveis) e caracteriza o terceiro ponto. O quarto e último ponto sedimenta os anteriores por apontar uma crise na ética profissional, ou seja, dos valores que guiam os profissionais, situação que vai ficando mais drástica para as profissões que trabalham com o humano (como é o caso do magistério). Esses valores, que devem nortear o agir profissional, não são mais evidentes, dessa forma, a prática deverá, inevitavelmente, estar associada à reflexão sobre os fins almejados em contraste aos meios, associando a questão da ética ao discernimento profissional a ser exercido na prática cotidiana e que coconstitui essa prática. Em suma, desde a reforma de 80, os pesquisadores da área educacional buscam uma legitimação de um repertório de saberes para profissionalização, numa atmosfera em que profissões já legitimadas estão em crise (TARDIF, 2002). Esse aspecto provocou a profusão e multiplicação de pesquisas sobre trabalho e saberes docentes, numa tipologia distinta daquela identificada como processo-produto, pesquisas que valorizavam a história individual e da profissionalização do professor, utilizando uma abordagem teórico-metodológica que dá voz a ele, envolvendo as dimensões pessoal, profissional e organizacional dessa profissão e que vem ganhando destaque devido ao seu potencial no desenvolvimento de ações formativas que abarcam essas dimensões (RAMALHO, NÚÑEZ & GAUTHIER, 2003). No Brasil, a introdução dessa temática (saberes docentes) no cenário educacional ocorre na década de 90, especialmente, pelas obras de Tardif e, posteriormente, pelas obras de Gauthier, Shulman e Schön, embora esse tema já estivesse sendo tratado direta e indiretamente por autores como Philipe Perrenoud, Antônio Nóvoa e Keneth Zeichner (ALMEIDA & BIAJONE, 2007). 2.2) Por que Tardif? Nesse ponto, após o percurso cronológico realizado anteriormente sobre as pesquisas educacionais que culmina na busca de novos paradigmas para compreensão da atividade docente e seus saberes, apresento três referenciais que são correntemente citados tanto nas pesquisas acadêmicas quanto nas diretrizes para formação de 35 Tanto no sentido político quanto no de competência. 29 professores, além de terem sido os precursores (juntamente com Tardif) da introdução da temática saberes docentes no Brasil e a partir desse breve histórico justificar meu apreço pelo referencial teórico de Maurice Tardif. Inicio com um dos autores mais citados internacionalmente no que se refere à temática dos conhecimentos do professor, o norte-americano Lee Shulman, que, como pesquisador do programa knowledge base, tem sido referência para as reformas educacionais em todo o mundo (FIORENTINI, SOUZA JR. & MELO, 1998). Shulman, a partir da análise36 de pesquisas acadêmicas e dos processos seletivos para professores37, constata a grande incidência de questões didático-pedagógicas de natureza geral ou técnicas em comparação à baixa incidência de questões relacionadas aos conteúdos específicos de Ensino e à forma de trabalhá-los pedagogicamente em sala de aula. Diante desse descompasso, denominado pelo autor de “paradigma perdido”, Shulman propõe o resgate do conteúdo e da pedagogia na formação do professor e, com seus colaboradores, dedicou-se a investigar a mobilização dos saberes passíveis de Ensino apontando três tipos de conhecimento que compõem o saber docente: o conhecimento do conteúdo da matéria ensinada, o conhecimento pedagógico da matéria e o conhecimento curricular (ALMEIDA & BIAJONE, 2007). A especificação desses três tipos de conhecimentos é feita a seguir. O primeiro, conhecimento de conteúdo, está relacionado ao saber que o professor possui na área na qual é especialista, ou seja, as compreensões do professor sobre a estrutura de sua disciplina, de como ele organiza cognitivamente o conhecimento da matéria que será objeto de Ensino (GONÇALVES E OLIVER GONÇALVES, 1998). O segundo, conhecimento pedagógico, consiste nos modos de formular e apresentar a matéria para torná-la compreensível aos alunos. Nesse movimento incluemse as analogias, ilustrações, exemplos, explanações e demonstrações, sendo esse conhecimento complementar ao primeiro na atividade docente, pois corresponde a um 36 Acrescento que essa análise se inscreve em um contexto de crítica à pesquisa desenvolvida até aquele momento e segundo Borges (2001), segue, pode-se dizer, os passos iniciados por seus antecessores Gage (1963) e Doyle (1977), cujos trabalhos constituem referências fundamentais em se tratando de uma verdadeira revisão crítica das pesquisas sobre o Ensino. 37 Destaco seu trabalho de 1986 - Those Who Understand: Knowledge Growth in Teaching. Educational – no qual o autor analisa testes de concursos estaduais e municipais para seleção de professores no período de um século (1875-1975). Nesse trabalho, dois momentos foram apontados: na fase inicial, a ênfase aos conteúdos disciplinares em detrimento aos pedagógicos e na fase final a ênfase às questões de ordem pedagógica e o desaparecimento das questões ligadas aos conteúdos disciplinares (GONÇALVES E OLIVER GONÇALVES, 1998). 30 saber pedagógico específico da matéria a ser ensinada e não um conhecimento pedagógico generalista (op. cited). O terceiro, o conhecimento curricular, engloba tanto o conjunto de programas elaborados para o Ensino de assuntos e tópicos específicos de um dado nível quanto a variedade de materiais instrucionais (livros, vídeos, jogos, etc.) correspondentes à disciplina na qual o docente leciona (op. cited). Segundo Sztajn (2002 apud ALMEIDA & BIAJONE, 2007), os trabalhos de posteriores a Shulman contemplaram uma revisão dessas três tipologias de conhecimento, ora propondo novas ora eliminando algumas, mas por fim mantendo as propostas originárias do seu trabalho de 1986. O trabalho de Shulman é anterior ao de Tardif e, embora esse autor tenha desenvolvido uma tipologia bastante elaborada que busca dar conta das instâncias relativas aos conhecimentos mobilizados e criados pelos professores na atividade docente durante seu ofício e de ter contribuído de forma relevante quanto aos instrumentos de investigação da ação docente (MONTEIRO, 2001), algumas críticas são direcionadas à sua perspectiva. Uma dessas críticas diz respeito ao conhecimento pedagógico da matéria por desconsiderar o conhecimento contextual dos docentes (aspecto sociológico) e focalizar somente a relação entre conhecimento do conteúdo e os métodos de Ensino, distorcendo a natureza do conhecimento prático (ELIOT, 1998). Além disso, elementos éticos, sociais, políticos, culturais, afetivos e emocionais que fazem parte do conhecimento em ação, da complexidade da prática pedagógica, estão alheios à perspectiva desse autor (FIORENTINI, SOUZA JR. & MELO, 1998). A tríade de conhecimentos proposta por Shulman para compreensão dos saberes docentes é proveniente de uma esfera exterior à escola, o que limitaria o cotidiano do fazer docente como apenas lugar de aplicação de saberes. Em busca de dar conta da forma pela qual os professores enfrentam aquelas situações que não se resolvem por meio de repertórios técnicos ou de conhecimentos do conteúdo, pedagógicos ou curriculares precedentes, apresento o próximo referencial, de um dos autores que investem na ideia de que dentre os saberes que os professores mobilizam ou criam existe um saber que emerge da prática profissional, ou seja, que o 31 saber docente nem sempre precede a ação, mas se elabora na ação. Falo de Donald Schön (1983)38. As contribuições de Schön ganham destaque a partir da década de 90, num momento em que se buscava uma reorientação para o modelo de formação docente americano, e o termo “professor reflexivo”, introduzido por ele, sedimenta seu pensamento: o da prática profissional vista como um momento de elaboração de conhecimentos, que se dá a partir da reflexão, exame e problematização do próprio agir, valorizando a experiência e a reflexão na experiência (PIMENTA, 2002). A proposta de Schön (1983) se encontra centrada em três ideias fundamentais: o conhecimento na ação, a reflexão na ação e a reflexão sobre a reflexão na ação. O professor, além do conhecimento específico que transmite aos alunos, precursor de sua ação, é um profissional que acumula um repertório de vivências que se desenvolve na medida em que enfrenta, repetidamente, determinados tipos de situações ou casos em sala de aula. Isso define o conhecimento na ação, um tipo de conhecimento marcado pela crença em respostas exatas (CONTRERAS, 2002). No entanto, existem problemas para os quais não são válidas as soluções já acumuladas no repertório de casos do professor e que, consequentemente, demandam atitudes reflexivas desses profissionais para criação de novas soluções, o que define a segunda ideia, a reflexão na ação (SCHÖN, 1983 apud CONTRERAS, 2002). Essa reflexão pode gerar, por sua vez, um conhecimento sistematizado, o que caracteriza a reflexão sobre a reflexão na ação, um movimento em espiral que avalia e tenta produzir uma descrição verbal da reflexão na ação, descrição que influencia diretamente as ações futuras, gerando novas compreensões do problema (CAMPOS E PESSOA, 1998). Dessa forma, pode-se perceber que a formação profissional no paradigma do professor reflexivo de Schön é pautada numa epistemologia da prática, ideia que foi apropriada por diferentes países e colaborou para a produção de uma série de pesquisas concernentes à área de formação docente (PIMENTA, 2002). Não obstante a contribuição desse autor para o campo educacional, destaco algumas críticas ao seu paradigma de formação docente, começando pelo “praticismo” permeado nessa perspectiva, considerado por alguns autores como uma radicalização da importância da prática, o que poderia incorrer num espontaneísmo empirista, pois 38 A proposta de Schön foi delineada de forma abrangente em dois livros: O profissional reflexivo (The Reflective Practitioner), de 1983, e Educando o Profissional Reflexivo (Educating the Reflective Practitioner), de 1987. 32 coloca a prática como modo de pesquisar, de experimentar com a situação para elaborar novas compreensões adequadas ao caso (MONTEIRO, 2001). Ademais, ocorre uma supervalorização do professor como indivíduo, sendo desconsideradas as dimensões contextuais e sociais a que a sua prática se relaciona (PIMENTA, 2008; CAMPOS E PESSOA, 1998), podendo esse movimento gerar a falsa ideia de que o saber do professor é individual e de que por meio de uma introspecção ele pode obter elementos suficientes para dominar sua prática (GAUTHIER, 1998). Com o intuito de esboçar uma teoria geral da pedagogia, apresento o último referencial, Clermont Gauthier39, que realizou estudos das pesquisas sobre o Ensino, com objetivo de identificar convergências em relação aos saberes mobilizados na ação pedagógica. O autor usa a máxima “conhece-te a ti mesmo” do oráculo de Delfos40, para apontar que se conhece muito pouco a respeito dos fenômenos inerentes ao Ensino (ALMEIDA & BIAJONE, 2007). Segundo Gauthier, “ao contrário dos outros ofícios que desenvolveram um corpus de saberes, o ensino tarda a refletir sobre si mesmo” (1998, p.20), e complementa que o avanço nas pesquisas que buscam um repertório de conhecimentos possibilita o enfrentamento de dois obstáculos que historicamente se interpuseram à pedagogia: de um ofício sem saberes e de saberes sem ofício (op. cited.). O primeiro obstáculo está associado à própria atividade docente que é exercida sem que seus saberes sejam revelados e são ideias de que ensinar consiste apenas em transmitir conhecimentos – bastando ao professor somente conhecer o conteúdo objeto de Ensino, ou que é uma questão de talento, bom senso, intuição, experiência ou cultura – que contribuem para que o Ensino permaneça nessa cegueira conceitual. Isso não quer dizer que os saberes referentes ao conteúdo, à experiência e à cultura não sejam essenciais no exercício da atividade docente, mas tomá-los como exclusivos é contribuir para manter o Ensino na ignorância (GAUTHIER, 1998). O segundo obstáculo, os saberes sem ofício, tem sua origem nas Ciências da Educação e diz respeito aos conhecimentos produzidos nos centros acadêmicos sem considerar as condições concretas da prática docente, reduzindo sua complexidade de tal 39 Juntamente com seus colaboradores. Situado na Grécia na extinta cidade de Delfos, esse oráculo consiste num complexo de construções num terreno considerado sagrado para os antigos gregos, onde as sacerdotizas de Apolo (Deus grego) faziam suas profecias. 40 33 modo que esses conhecimentos não mais encontram relação com a realidade. Para Gauthier, esse obstáculo contribuiu para desprofissionalização da atividade docente, na medida em que reforçou a ideia de que a pesquisa universitária não lhes podia fornecer nada de realmente útil. Nesse sentido, o desafio da profissionalização docente segundo esse autor deve evitar esses dois obstáculos, e em seu livro Por uma teoria da Pedagogia (op.cited.), define o Ensino como a mobilização de vários saberes que formam uma espécie de reservatório que é utilizado para responder a exigências das situações concretas de ensino. Em sua teoria, Gauthier classifica os saberes em: disciplinares, referentes ao conteúdo que deve ser ensinado; curriculares, relativos à transformação da disciplina em programa de ensino; das ciências da educação, relacionado ao saber profissional específico que não está diretamente relacionado com a ação pedagógica; da tradição pedagógica, relativo ao saber de dar aulas, que será adaptado e modificado pelo saber experiencial e que pode ser validado pelo saber da ação pedagógica, referente ao saber experiencial tornado público e testado (ALMEIDA & BIAJONE, 2007). Embora existam muitas semelhanças entre as propostas de Gauthier e Tardif, acredito, concordante com Tardif, que não seria possível procurar uma unidade teórica geral no conjunto de saberes do professor, uma vez que esses saberes são plurais e heterogêneos, pois agregam conhecimentos e um saber-fazer advindos de fontes variadas e de naturezas distintas. 2.3) Os saberes docentes na perspectiva de Tardif Segundo Tardif (2002), os saberes docentes são constituídos por um conjunto de saberes, um repertório dinâmico que não pode ser tratado como uma categoria autônoma, dissociada das esferas sociais, organizacionais e humanas em que os professores se encontram imersos. Dessa forma, o estudo dos saberes docentes, segundo Tardif (2002), deve ser tratado procurando superar a dicotomia excludente que tradicionalmente os aborda e os polariza, ou numa perspectiva de micro, alicerçada nas atividades cognitivas individuais, denominadas de mentalismo ou, numa perspectiva macro, que tende a eliminar totalmente a contribuição dos atores na construção destes saberes, atrelando a responsabilidade a mecanismos sociais externos à própria escola, como: ideologias 34 pedagógicas, lutas de classe e cultura dominante, reducionismo sociológico, denominado pelo autor de sociologismo. Em resposta aos equívocos da primeira abordagem, Tardif coloca que os saberes docentes são sociais, pois “o professor nunca se define sozinho” (2002, p.12), sendo seu saber partilhado por todo um grupo de professores (seus pares de profissão) com uma formação comum, apesar de suas especificidades, legitimada por instituições subordinadas ao Ministério da Educação (MEC) e que garantem o direito legal de exercício dessa atividade. Além disso, esses saberes são sociais, pois lidam com objetos sociais “ensinar é agir com outros seres humanos” (op. cited, p.13), se modificam com o tempo e as mudanças de uma sociedade (são históricos e culturais) e são adquiridos no contexto de uma socialização profissional onde eles são incorporados, modificados, adaptados em função dos momentos e das fases de uma carreira. Sobre o outro equívoco, o sociologismo, Tardif considera ainda que os saberes docentes são também saberes individuais na medida em que [...] é impossível compreender a natureza do saber dos professores sem colocá-lo em íntima relação com o que os professores, nos espaços de trabalho cotidianos, são, fazem, pensam e dizem41. O saber dos professores é profundamente social e é, ao mesmo tempo, o saber dos atores individuais que o possuem e o incorporam à sua prática profissional para a ela adaptá-lo e para transformá-lo. (grifo meu, 2002, p.15) Dessa forma, esse autor tenta se situar entre os aspectos sociais e individuais, entre o sujeito e o sistema, e é desse entrelugar que é possível uma abordagem efetiva dos saberes docentes e, para tal, ele considera alguns fios condutores como: a relação entre saber e trabalho, a diversidade do saber, a temporalidade do saber, a experiência de trabalho enquanto fundamento do saber, os saberes humanos a respeito dos seres humanos, os saberes e formação de professores. Sobre a relação entre o saber e o trabalho, o primeiro fio condutor, Tardif (2002) esclarece que, embora os professores utilizem diferentes saberes, essa utilização se dá em função do seu trabalho, “o saber está a serviço do trabalho” (op.cited. p. 17) e esses saberes são produzidos e remodelados por ele, ou seja, esses saberes são do trabalho e não sobre o trabalho. 41 Ressalto a palavra “dizem” na citação acima com a intenção de fazer alusão ao meu referencial teóricometodológico que será explicitado no próximo capítulo, Mikhael Bakhtin. 35 Além disso, os saberes docentes são plurais e heterogêneos, pois agregam conhecimentos e um saber-fazer advindos de fontes variadas e de naturezas distintas. A partir desse fio condutor – a diversidade do saber – Tardif propõe um modelo tipológico para identificar e classificar os saberes dos professores, tentando dar conta do pluralismo do saber profissional, conforme descrito na TABELA 2 (2002, p.63). TABELA 2 – os saberes dos professores Saberes dos professores Saberes pessoais dos professores Saberes provenientes da formação escolar anterior Fontes sociais de aquisição A família, o ambiente de vida, a educação no sentido lato, etc. A escola primária e secundária, os estudos pós-secundários não especializados, etc. Modos de integração no trabalho docente Pela história de vida e pela socialização primária Pela formação e pela socialização préprofissionais Saberes provenientes da formação profissional para o magistério Os estabelecimentos de formação de professores, os estágios, os cursos de reciclagem, etc. Pela formação e pela socialização profissionais nas instituições de formação de professores Saberes provenientes dos programas e livros didáticos usados no trabalho A utilização das “ferramentas” dos professores: programas, livros didáticos, cadernos de exercícios, fichas, etc. Pela utilização de “ferramentas” de trabalho, sua adaptação às tarefas Saberes provenientes de sua própria experiência na profissão, na sala de aula e na escola A prática do ofício na escola e na sala de aula, experiência dos pares, etc. Pela prática do trabalho e pela socialização profissional Destaco aqui duas críticas de Tardif que aludem aos dois referenciais localizados no tópico anterior: a primeira deriva de sua proposta tipológica, em que o autor critica autores que discriminam e compartimentalizam os saberes em categorias disciplinares ou cognitivas diferentes como conhecimentos pedagógicos, conhecimento da matéria, saberes teóricos e procedimentais, etc. crítica que se enquadra ao trabalho de Shulman e, a segunda, centra na constatação (ainda por sua proposta) de que os diversos saberes dos professores estão longe de serem todos produzidos diretamente por eles, ou seja, vários deles são “exteriores” ao ofício de ensinar, pois provêm de lugares anteriores à carreira ou fora do trabalho cotidiano, crítica que se enquadra ao trabalho de Schön. Como a tabela sugere, existe um sincretismo do saber docente que significa: em primeiro lugar, que não seria possível procurar uma unidade teórica nesse conjunto de 36 conhecimentos, um professor não possui uma única concepção de sua prática; em segundo lugar, que a relação entre os saberes e o trabalho docente não pode ser concebida segundo o modelo aplicacionista, os saberes dos professores não são oriundos sobretudo da pesquisa e, em terceiro lugar, que em sua ação cotidiana, o professor utiliza um vasto leque de saberes compósitos, os saberes-na-ação (nos termos de Schön) caracterizados pelo “poliformismo do raciocínio” (GEORGE, 1997 apud TARDIF, 2002), ou seja, pelo uso de raciocínios, conhecimentos, regras, normas e procedimentos variados, decorrentes dos tipos de ação nas quais o professor se envolve. Além desse sincretismo, existe a temporalidade do saber, terceiro fio condutor apontado por Tardif, associado ao fato de que os saberes docentes são adquiridos no contexto de uma história de vida e de uma carreira profissional, “antes mesmo de começarem a ensinar oficialmente, os professores já sabem, de muitas maneiras, o que é o ensino por causa de toda sua história escolar anterior” (2002, p.20) e essas experiências anteriores assumem um peso na definição do que seja ensino para os professores. O quarto fio condutor, a experiência de trabalho enquanto fundamento do saber, traz a questão da hierarquização dos saberes, que são oriundos de diferentes fontes e momentos da história de vida e carreira do professor, em função de sua utilidade no ensino. Nessa perspectiva, os saberes provenientes da experiência do trabalho parecem constituir o alicerce da prática e da competência profissional, permitindo a avaliação e a hierarquização dos outros saberes. Outro ponto abordado por Tardif se relaciona ao fato de que o trabalho do professor é interativo e, no caso do professor, o seu objeto de trabalho são seres humanos, por isso os saberes humanos a respeito dos seres humanos é um aspecto que diferencia o trabalho docente de outras profissões, pois esses objetos, os alunos, são seres sociais com características socioculturais, influenciados pelas mais variadas fontes de sua trajetória de vida, que respondem às intenções do professor e interagem com elas, podendo oferecer resistência ou não ao trabalho dele, despertando nele também atitudes e julgamentos de valor. Soma-se a isso o fato de que, na relação entre os seres humanos, o componente afetivo está inevitavelmente presente. Decorrente dos fios condutores anteriores, os saberes e formação de professores, Tardif aponta a necessidade de repensar a formação docente, levando em conta os saberes dos professores e as realidades específicas de seu trabalho cotidiano, buscando “um novo equilíbrio entre os conhecimentos produzidos pelas universidades a respeito 37 do ensino e os saberes desenvolvidos pelos professores em suas práticas cotidianas (op.cited, p.23). A partir desses fios condutores, Tardif categoriza em disciplinares, curriculares, da formação profissional e experienciais os saberes que compõem esse amálgama mais ou menos coerente de saberes docentes (TARDIF, 2002). Cabem aqui duas considerações, a primeira é sobre a tênue diferenciação que o autor sugere entre conhecimentos e saberes docentes, mesmo que essa não seja bem definida na literatura (JORDÃO, 2005). Tardif define o saber como algo de “sentido amplo, que engloba os conhecimentos, as competências, as habilidades (ou aptidões) e as atitudes, isto é, aquilo que muitas vezes foi chamado de saber, saber-fazer e saberser” (2002, p. 255). A segunda é que esses saberes não são autônomos, sendo tênues as fronteiras que delimitam essas categorias, o que me faz considerá-los como cristais diminutos (cristalitos) de um sedimento maior. Esses saberes integram um retículo dinâmico e não comportam os envelopes que o racionalismo clássico impõe, mas apresentam contribuições específicas para o todo, revelando outros saberes que emergem dessa relação. Por isso, mesmo que ressaltem nas linhas sequentes as características essenciais de cada tipo de saber, não busco uma categorização envelopante que aprisione esses saberes como se esses fossem desconexos. Começo pelos saberes disciplinares que correspondem aos diversos campos do conhecimento (arte, filosofia, literatura, matemática) e integram igualmente a prática docente, através da formação (inicial ou continuada) dos professores. Esses saberes são sociais, definidos e selecionados pela universidade em nossa trajetória formativa e transmitidos aos professores nos cursos e departamentos quase sempre isoladamente das faculdades de Educação ou dos cursos de formação de professores. O conjunto de saberes transmitidos pelas instituições de formação de professores são identificados como saberes da formação profissional, que podem ser definidos como repertório de conhecimentos atrelados às ciências da educação, que procuram não só produzi-los, mas incorporá-los à prática docente, transformando-os em saberes destinados à formação científica e erudita dos professores e que são internalizados por esses profissionais sob a influência dos saberes disciplinares (op. cited.). Os saberes profissionais que são mobilizados na prática docente podem ser categorizados como saberes pedagógicos e são definidos pelo autor como 38 [...] doutrinas ou concepções provenientes de reflexões sobre a prática educativa no sentido amplo do termo, reflexões racionais e normativas que conduzem a sistemas mais ou menos coerentes de representação e de orientação da atividade educativa [...] essas doutrinas pedagógicas são incorporadas à formação profissional dos professores, fornecendo, por um lado, um arcabouço ideológico à profissão e, por outro, algumas formas de saber-fazer e algumas técnicas. (2002, p.37) Os saberes pedagógicos são parte integrante dos saberes da formação profissional e padecem do mesmo mal que o corpo de conhecimentos específicos da Química: a fragmentação. Essa isola conteúdos muitas vezes conexos, vistos e revistos por diferentes disciplinas42, alargando ainda mais o hiato entre a teoria e a prática, o mundo acadêmico e o mundo cotidiano (SCHÖN apud MALDANER, 2003). No caso das Licenciaturas, essa fragmentação dos saberes profissionais é um agravante, uma vez que a sociedade exige dos docentes uma inter e, muitas vezes, multidisciplinaridade – não potencializadas nos cursos de formação – não só para resolução dos problemas que emergem no cotidiano escolar, mas para propiciar aos futuros alunos dos licenciandos a possibilidade de uma aprendizagem em rede, capaz de conectar assuntos aprisionados em disciplinas distintas. Essa prática interdisciplinar deve ser desenvolvida na formação inicial do licenciando, em todas as disciplinas de sua trajetória, mas depende da disposição de outros professores (os universitários) e de condições propícias do cenário (a universidade) para ser posta em prática. Mesmo após a reforma curricular de 90, as grades da Licenciatura evidenciam uma integração somente documental, que é rara e às vezes inexistente no cotidiano escolar dos licenciandos em sua trajetória formativa. As marcas produzidas por essa formação fragmentada ficam aparentes quando o licenciando se depara com os problemas complexos do cotidiano escolar, revelando os hiatos entre a teoria e a prática citados anteriormente. A internalização desses hiatos pode ocorrer de diferentes formas pelo professor. Para Schön, esse é o dilema do abandono ou alienação, quando o professor abandona o conhecimento recebido na academia ou tenta aplicá-lo sem ter o domínio sobre ele (SCHÖN apud MALDANER, 2003). Uma interpretação menos dicotomizada e radical desse movimento nos é oferecida por Tardif (2002), que considera que 42 Aprisionando esse corpo de conhecimentos que compõem a erudição do professor de Química em envelopes distintos dessa ciência, como a Química Analítica, Inorgânica, Orgânica ou Físico-Química. 39 [...] a prática profissional nunca é um espaço de aplicação dos conhecimentos universitários. Ela é, na melhor das hipóteses, um processo de filtração que dilui e transforma em função das exigências de trabalho; ela é, na pior das hipóteses, um muro contra o qual vêm se jogar e morrer conhecimentos universitários considerados inúteis, sem relação com a realidade do trabalho docente diário nem com os contextos concretos do exercício da função docente. (2002, p.257) Nessa perspectiva, considerando os dois extremos, o professor pode, nas formas mais atenuadas de lidar com os incômodos cognitivos pedagógicos43 emergentes, adaptar-se, transformando e selecionando alguns conhecimentos universitários, a fim de incorporá-los à sua prática profissional ou, se a relação com esses incômodos passar pela rejeição (nas formas mais drásticas de relação), chegar à ruptura com sua formação teórica. Além dos saberes disciplinares e da formação profissional, existem os saberes curriculares, provenientes da atmosfera de trabalho do docente, ou seja, ao longo de sua carreira, ele se apropria dos discursos, objetivos, conteúdos e métodos presentes nas instituições escolares em que trabalha. Esses saberes curriculares, entendidos aqui como saberes associados à carreira, estão atrelados à forma que determinada instituição escolar seleciona e categoriza os saberes sociais, por ela definidos como modelos da cultura erudita e de formação da cultura erudita, formalizados nos programas das disciplinas que integram os segmentos dos diferentes níveis de Ensino (op. cited). A maioria das instituições de Ensino permanece com os mesmos conteúdos disciplinares, discursos e objetivos dos séculos anteriores, e esse engessamento está associado ao peso do tradicionalismo cultural que nos atravessa. No caso dos conteúdos da Química, muitos ainda se revelam dogmáticos, descontextualizados e inúteis às demandas da sociedade atual (CHASSOT, 2004). Ademais, localizo outra mazela das instituições escolares do nível básico, a meritocracia escolar. Ranço do método lancasteriano (séc. XIX), que inoculou a competitividade no meio educacional (NARODOWSKY, 2001), a meritocracia escolar dá o tom de “eterna preparação” aos níveis de Ensino, ratificando a permanência de conteúdos inadequados pelo argumento avaliativo (que atualmente culmina no vestibular). 43 Categorizo como incômodo cognitivo-pedagógico o momento em que diante da prática o professor recorre aos conhecimentos transmitidos em sua trajetória formativa precedente, aproveitando ou não esses conhecimentos. 40 Essa situação conduz ao desenvolvimento de uma lógica de consumo dos saberes escolares, afastando-os de seu papel de formação de cidadãos e aproximando-os do papel de mercado que oferece aos seus consumidores (alunos, pais de alunos, adultos em processo de formação ou reciclagem) os saberes-instrumentos ou saberes-meios, considerados “moedas” de informações mais ou menos úteis para o seu futuro posicionamento no mercado de trabalho e sua adaptação à vida social (MALDANER, 2003). Cabe aqui um breve adendo sobre as últimas medidas do Ministério da Educação no que diz respeito ao ingresso dos alunos ao Nível Superior. O Exame Nacional do Ensino Médio (o ENEM), além de ter substituído, na maioria das universidades, o vestibular44, tem tido em suas últimas edições um perfil de avaliação que se aproxima da almejada formação cidadã, com questões formuladas a partir de eixos cognitivos45 como: dominar linguagens (incluindo o uso das linguagens matemática, artística e científica), compreender fenômenos, enfrentar situações-problema, construir argumentação e elaborar propostas. Tal posicionamento busca reverter essa lógica de consumo de saberes escolares. Evitando fazer desse tema, os saberes curriculares, uma rota de desvio da apresentação dos saberes que compõem o ofício docente, finalizo minhas considerações com a constatação de que atualmente o Ensino Fundamental apresenta um perfil de preparação para o Ensino Médio e este para o Superior, e a definição e a seleção dos saberes escolares dependem das pressões exercidas pelos consumidores e da evolução mais ou menos tortuosa do mercado. Essa hierarquização mantém os privilégios das classes mais abastadas, na medida em que o mercado absorve prioritariamente os maratonistas vencedores desse quilométrico percurso escolar, aqueles que conseguem superar todas as etapas e alcançam o nível superior, ou ainda, o da pós-graduação. Os níveis de Ensino ainda padecem de autonomia, de fins em si próprios, apesar dessas intenções estarem oficializadas na LDB (CHASSOT, 2004). Juntamente com os conflitos que emergem da relação que o professor estabelece com os saberes profissionais e curriculares – o primeiro nem sempre adequado à prática e aos problemas que dela surgem e o segundo que conforma os discursos, objetivos e 44 A maioria das universidades aderiu ao ENEM como único exame vestibular, as poucas outras estão considerando esse exame como parte integrante do processo seletivo. 45 Eixos consultados a partir do documento que estabelece a “Matriz de Referência para o ENEM 2009” consultado do site do Ministério da Educação (MEC): http://portal.mec.gov.br/enem. 41 conteúdos do cotidiano escolar complexo no qual o profissional atua – o professor acumula seus saberes experienciais, saberes adquiridos no fazer profissional, que inclui as relações existentes com os agentes do cotidiano escolar (alunos, pares de profissão, inspetores, diretores, etc.). Eles são definidos por Tardif, como: [...] o conjunto de saberes atualizados, adquiridos e necessários no âmbito da prática da profissão docente que não provêm das instituições de formação nem dos currículos. Estes saberes não se encontram sistematizados em doutrinas ou teorias. São saberes práticos (e não da prática: eles não se superpõem à prática para melhor conhecê-la, mas se integram a ela e dela são partes constituintes enquanto prática docente) e formam um conjunto de representações [...] elas constituem, por assim dizer, a cultura docente em ação. (2002, p. 48-49) Os saberes experienciais são desenvolvidos num contexto de múltiplas interações, com condicionantes diferenciados e concretos do cotidiano escolar, exigindo dos professores improvisação e habilidade pessoal. O acúmulo dessas vivências permite o desenvolvimento do habitus46 que integra o repertório que esse docente adquire no decorrer de sua carreira e sedimenta gradativamente sua identidade ou, segundo o autor, sua “personalidade profissional” (op. cited., 2002, p. 49). Esse habitus se manifesta entre o saber-ser e o saber-fazer pessoal e profissional e está associado às regularidades práticas do tecido complexo do cotidiano escolar. O conceito de rotinização proposto por Giddens (GIDDENS apud TARDIF, 2002) está relacionado com um grande número de estudos que evidenciam a importância das rotinas para compreender a vida na sala de aula e o trabalho do professor. A ideia que permeia esses estudos concebe a rotina como o conjunto de estratégias para gerir a complexidade das situações de interação, diminuindo o investimento cognitivo do professor no controle dos acontecimentos. Entretanto, acredito, assim como Tardif, que essas rotinas são mais que mecanismos de controle na sala de aula, são atuações localizadas temporalmente, parte integrante de um esforço que o ator47 faz para reproduzir suas atividades, nesse ambiente com tantas variáveis, muitas vezes de entendimento conflitante e parcial, conjugando suas maneiras de ser, seu estilo e sua personalidade profissional. 46 No viés de Bourdieu, o defino como “matriz de percepções e apreciações. [...] princípio gerador duravelmente armado de improvisações regradas.” (BOURDIEU, 1983 apud NOGUEIRA, 2009, p. 25). 47 Essa definição de professor como ator é tão consonante com meu ideário, que o leitor pode perceber as metáforas cênicas que utilizo, tomando professores como “protagonistas” e a universidade como “cenário”. 42 Com relação à palavra ator utilizada no parágrafo anterior, Tardif coloca o professor de profissão como ator racional por considerar que este não é somente alguém que aplica conhecimentos produzidos por outros (visão tecnicista), nem é somente um agente determinado por mecanismos sociais (visão sociologista): é um ator no sentido forte do termo, ou seja, um sujeito que assume sua prática a partir dos significados que ele mesmo lhe dá, um sujeito que possui conhecimentos e um saberfazer provenientes de sua própria atividade e a partir dos quais ele a estrutura e a orienta. Polarizar os professores nas duas visões anteriores é considerá-lo como um boneco de ventríloquo: ou por aplicar os saberes produzidos por peritos que detêm a verdade a respeito de seu trabalho ou por ser um brinquedo inconsciente no jogo das forças sociais (conhecidas e produzidas pelos cientistas sociais) que determinam seu agir (TARDIF, 2002). Essa conjugação que constitui a rotina produz uma estabilização dependente do controle da ação que o professor possui, na sua experiência de palco, nas interiorizações de regras implícitas de ação adquiridas com e na experiência da ação. Dessa forma, os saberes experienciais ocupam uma posição relevante no mosaico que constitui os saberes docentes, identificados pelos próprios docentes como o núcleo a partir do qual tentam transformar suas relações de exterioridade em relações de interioridade. Os saberes experienciais são constituídos por todos os outros saberes, que são estruturados, retraduzidos, internalizados e/ou eliminados pelas certezas produzidas pela atuação. Nesse sentido, as múltiplas articulações que esses saberes realizam fazem dos professores um grupo social e profissional que tem como condição sine qua non o domínio, a integração e a mobilização desses saberes, num processo contínuo de aprendizagem, viés temporal que ratifica a importância da construção de uma epistemologia da prática, entendida como “o estudo do conjunto de saberes utilizados realmente pelos profissionais em seu espaço de trabalho cotidiano para desempenhar suas tarefas” (ALMEIDA & BIAJONE, 2007, p. 286). Segundo Tardif, o propósito de uma epistemologia da prática profissional é revelar esses saberes, compreender como são integrados concretamente nas tarefas dos profissionais e como estes os incorporam, produzem, utilizam, aplicam e transformam em função dos limites e dos recursos inerentes às suas atividades de trabalho. Ela também visa compreender a natureza desses saberes, assim como o papel que desempenham tanto no processo de trabalho 43 docente quanto em relação à identidade profissional dos professores. (TARDIF, 2002, p. 256) Essa perspectiva epistemológica promove os saberes citados anteriormente a um status permanente de coevolução e copertencimento, associados a situações e práticas de ensino, deslocando o viés de estudo que aborda o trabalho docente como objeto observado para atividade que se realiza. Os desmembramentos dessa perspectiva epistêmica se estendem às metodologias de pesquisa, exigindo o que Tardif categoriza como distanciamento etnográfico em relação aos conhecimentos universitários. Essa movimentação requer do pesquisador uma disposição para vivenciar e (re)construir suas questões de pesquisas nos locais onde os profissionais de ensino trabalham e não apoiados nos cárceres teóricos de suas publicações e de seus colegas “que definem a natureza do ensino, os grandes valores educativos ou as leis da aprendizagem” (op. cited., p. 258) Portanto, fica claro que a proposta para compreensão dos saberes docentes na perspectiva de Tardif requer, ou melhor, exige a adoção de metodologias que dêem voz ao professor, para que de fato se possa desenvolver a epistemologia da prática e contribuir com estudos que contemplem caminhos distintos dos tradicionais trilhados pela didática, pedagogia ou psicopedagogia. É uma perspectiva que potencializa a emersão de construções dos saberes docentes que agreguem categorias conceituais dos próprios professores, categorias essas constituídas no e por meio do seu trabalho cotidiano. Embora esse trabalho não busque o desenvolvimento de uma epistemologia da prática, o entendimento dos saberes docentes no viés tardifiano permite considerar as várias dimensões que integram a atividade docente do professor universitário em seu cotidiano, contemplando com equilíbrio, desde aspectos da realidade microssocial (das relações com seus pares de profissão, alunos e funcionários do ambiente universitário) aos aspectos macrossociais (das relações políticas institucionais) e fornecendo uma leitura mais lúcida dos aspectos que pretendo investigar dos meus protagonistas. Dessa forma, as críticas tecidas às abordagens realizadas pelos outros referenciais localizados no final do tópico anterior, juntamente com a explicitação da perspectiva de Tardif realizada nesse tópico fornecem subsídios que justificam meu apreço por esse referencial sobre saberes docentes. Primeiro pela consonância entre as minhas concepções e as dele sobre a profissão docente, maior que outros referenciais lidos em minha trajetória acadêmica, 44 segundo, por acreditar, como o referido autor, no valor da experiência (mas não só ela), da pluraridade e da heterogeneidade dos saberes docentes, e terceiro, por perceber que as produções de outros referenciais sobre essa temática acabam sendo, em certa medida, reducionistas, por focar alguns aspectos e excluir outros. Não quero dizer com isso que Tardif seja um referencial teórico “completo”, pois a completude é inalcançável, como aludida no capítulo zero, mas diria que dentre os circuitos múltiplos de tradições teóricas que transitei48, esse é o que mais agrega tijolos ao meu campo de significação, ou seja, considero Tardif o referencial “menos incompleto”. 2.4) O professor universitário e a pesquisa em pedagogia universitária Finalizo esse capítulo com um tópico destinado aos meus protagonistas, e pretendo, com ele: apontar algumas características comuns dos professores universitários levantadas por pesquisas e localizar a pesquisa na área de Pedagogia Universitária, com intuito de fornecer subsídios às minhas análises posteriores. Segundo Castanho (apud CUNHA, 2007), persiste ao longo de todas essas décadas a existência de docentes do Ensino Superior que não têm qualquer formação pedagógica para o exercício da docência e, como localizado no capítulo anterior, essa formação didático-pedagógica, que caracteriza esse profissional, não é requerida do ponto de vista formal, com o devido respaldo legal. Abrindo um pequeno adendo sobre as bases legais, destaco dois trechos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei n° 9.394/96), o primeiro é o artigo 52 sobre o ingresso no magistério superior, Serão considerados, em caráter preferencial, para o ingresso e a promoção na carreira docente do magistério superior, os títulos universitários e o teor científico dos trabalhos dos candidatos. Como é possível perceber, não há nenhuma alusão à formação didáticopedagógica como pré-requisito para o ingresso e promoção na carreira docente no magistério superior (VASCONCELOS, 2009). O segundo trecho da LDB ratifica essa lacuna com relação à exigência de formação didático-pedagógica, mas agora nos incisos do artigo 64 da nova Lei de 48 Coloco em itálico, pois estou parafraseando a citação de Clarice Nunes, localizada no capítulo zero. 45 Diretrizes e Bases da Educação (n° 1.258-C de 1988, ainda em tramitação no Congresso Nacional) que aborda os requisitos mínimos para a constituição de universidades, a saber: I - institucionalização da pesquisa pura e aplicada; II- pluralidade de áreas do conhecimento na oferta de Ensino de graduação e organização multi e interdisciplinar, admitida a ênfase em determinadas áreas do saber; III - produção científica comprovada; IV- um terço do corpo docente, pelo menos, com titulação acadêmica de mestrado e doutorado; V - capacitação para ampliar o número de docentes com titulação de mestrado e doutorado. Como colocado, o professor do magistério superior precisa ter preferencialmente (e não obrigatoriamente) uma formação em nível de pós-graduação do tipo stricto sensu, e a formação pedagógica continua sem espaço no currículo desse docente (CUNHA, 2007). Destaco outra questão, a dos profissionais que exercem a docência do Ensino Superior e que cursaram Licenciatura em suas graduações. Embora esses docentes tenham tido a chamada “formação pedagógica”, o enfoque dado em seus cursos é voltado ao processo de ensino-aprendizagem da criança e do adolescente, deixando de lado o adulto a quem o professor deverá ensinar no magistério superior. Ademais, a universidade, principal instituição de produção e distribuição de conhecimento, tem sido também o lugar de reprodução dos modos de fazer ciência que afetam a dimensão do ensino, mesmo que muitas vezes esses modos nem cheguem mesmo a ser conscientemente escolhidos. Segundo Cunha (2005), “a maior parte da comunidade universitária e, em especial, os docentes, explicita a ideia de que há indissociabilidade quando o professor faz ensino e tem projetos próprios de pesquisa e extensão”. No entanto, a ideia de indissociabilidade deve ser compreendida como algo que ultrapasse a noção de mera coexistência da Pesquisa e do Ensino no corpo de atividades que o docente realiza para se concretizar no trânsito de experiências e conhecimentos que o professor leva aos alunos, como resultado de suas vivências acadêmicas, dimensão que se configura atualmente como um desafio para a universidade atual. A autora complementa que, 46 Mesmo considerando um ganho de qualidade o fato do professor se envolver com as três dimensões da vida universitária – o que ainda não é muito comum na maioria das universidades brasileiras – é pelo menos questionável entender desta forma a indissociabilidade. (2005, p.9) Independente da corrente a que for filiada, a teoria pedagógica dos últimos anos tem colocado o aluno como centro do processo de ensino e aprendizagem e é nele que as estruturas de ensino precisam se formar. Nesse sentido, é difícil colocar o professor como o principal agente da indissociabilidade do Ensino, da Pesquisa e da Extensão e, segundo a autora, é preciso retomar a reflexão teórico-prática rigorosa sobre o ensino e a aprendizagem, para que se possa avançar na questão da prática pedagógica que se dá na universidade em direção à indissociabilidade49. O panorama usual dos cursos de graduação nega, quase sempre, a ideia do Ensino com Pesquisa e mostra que neles normalmente está presente a concepção positivista de Ciência, marcada pelas prescrições e certezas, com a ideia de Ensino associada a dar aulas, dominar bem o conteúdo, sem considerar a forma como esses conhecimentos foram adquiridos, ou seja, às estruturas epistemológicas que fundamentam cada ciência. Nessa perspectiva, destaco a partir dos trabalhos de Cunha (2005) alguns pressupostos que caracterizam o ensino tradicional no que tange a forma pela qual a informação é repassada ao estudante, a saber: O conhecimento é tido como acabado e sem raízes, isto é descontextualizado historicamente, ou seja, as atividades de ensino-aprendizagem desenvolvidas não são tratadas como processo, não se analisando as condições históricas nem se dando o tom de produção social ao conhecimento. A disciplina intelectual é tomada como reprodução das palavras, textos e experiências do professor, há um privilégio da memória, valorizando a precisão e a segurança. O desejo de dominação e o autoritarismo que permeiam a relação pedagógica definem a disciplina como a obediência e o pensamento convergente juntamente com a reprodução como características do “bom aluno”. No currículo, cada disciplina é concebida como um espaço próprio de domínio do conhecimento que luta por quantidade de aulas para poder ter “toda matéria dada”. O espaço da especialidade é regiamente definido, há uma certa 49 Tida aqui como uma relação simbiótica entre essas três instâncias: Ensino, Pesquisa e Extensão. 47 “propriedade de saberes” que não admite invasões disciplinares, sendo a interdisciplinaridade no Ensino, inviável nessa lógica. O professor é a principal fonte de informação e sente-se desconfortável quando não tem todas as respostas prontas para os alunos. Nessa lógica tradicional a competência de um professor é medida através de suas habilidades de transferir informações com precisão e segurança. A pesquisa é vista como atividade para iniciados, fora do alcance de alunos de graduação, onde o aparato metodológico e os instrumentos de certezas se sobrepõem à capacidade intelectiva de se trabalhar com a dúvida. Sendo a aprendizagem tida na visão tradicional como um ato de repetição e certezas, não há lugar para a dúvida intelectual que move a pesquisa. Esses questionamentos só podem ser levantados, na melhor das hipóteses, por iniciados na pesquisa e não por iniciantes. Esses pressupostos apontam para uma ideia de que o Ensino só será indissociado da pesquisa, quando for construído um novo paradigma de ensinar e aprender na universidade. Segundo Cunha (2005), não se trata apenas de uma nova didática, mas uma ruptura mais profunda com as formas de entender o conhecimento e o mundo. Complementa Castanho (apud CUNHA, 2007) que “a universidade ensina, forma, profissionaliza e, no entanto, a dimensão mais esquecida e desprezada é a do Ensino”. A busca da indissociabilidade entre pesquisa e Ensino ainda não é uma realidade presente, uma vez que muitas instituições ainda se encontram imersas nesses pressupostos tradicionais supracitados. Dessa forma, somente a partir das contribuições de pesquisas que tomam essa temática como foco (a pedagogia universitária) será possível aprimorar a formação oferecida na universidade atual. 48 3 CAPÍTULO As lentes de leitura... Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se sente como ontem se sentiu: sentir hoje o mesmo que ontem não é sentir - é lembrar hoje o que se sentiu ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem foi a vida perdida. Fernando Pessoa50 Sobre a escolha do referencial teórico-metodológico de análise, acredito que esta perspectiva cênica, que coloca o professor na posição de ator racional e competente localizada no capítulo anterior, é que inscreve Bakhtin como as lentes de leitura dessa pesquisa, pois seus escritos sobre a linguagem, seus modos de utilização e interações apontam para uma heterogeneidade, diversidade e rizomaticidade51 dos gêneros de discurso (BAKHTIN, 2006) comparáveis aos saberes docentes na perspectiva tardifiana. Ademais, segundo Bakhtin, uma das características do enunciado52 é o fato de ser sempre um novo acontecimento, um evento único e irrepetível, da mesma forma que Fernando Pessoa define o viver na epígrafe desse capítulo. A vida, assim como o discurso, são eventos únicos, localizados social, histórica e culturalmente, pois emergem da conjugação única de outras categorias no ato de sua mobilização. Alguns pressupostos bakhtinianos relevantes para essa pesquisa Ratificando a importância da análise discursiva para essa pesquisa, destaco um trecho em que Tardif ressalta a importância do discurso como viés investigativo: [...] eu falo ou ajo racionalmente quando sou capaz de justificar, por meio de razões, de declarações, de procedimentos, etc., o meu discurso ou a minha ação diante de um outro ator que me questiona sobre a pertinência, o valor deles, etc. Essa capacidade ou essa competência é verificada na argumentação, isto é, num discurso em que me proponho razões para justificar meus atos. Essas razões são discutíveis, criticáveis e revisáveis. (2002, p. 199). 50 Citação do autor retirada do site: www.citador.pt. Se me permitem o neologismo, rizomaticidade (termo derivado da biologia utilizado para categorizar caules de vegetais que crescem horizontalmente e com ramificações) é a capacidade de realizar conexões, romper fronteiras existentes. 52 Vou discorrer mais adiante sobre o conceito de enunciado, por agora, irei defini-lo como a unidade da comunicação discursiva. 51 49 Como situado no capítulo dois, considero o professor um ator racional e competente que conjuga simultaneamente os planos inter e intrapsicológico nas ações que realiza. Nesse sentido, o referencial bakhtiniano ganha relevância, pelo esforço de conjugação desses planos (WERTSCH, 1991). Na perspectiva bakhtiniana, é dessa relação que emerge o nexo essencial do cenário cultural, histórico e institucional com o sujeito do ato, e essa ação emprega “instrumentos mediadores”, dentre os quais a linguagem se destaca, como ressalta Brait em seus escritos sobre Bakhtin, [...] a observação da linguagem não apenas no que ela tem de sistemático, abstrato, invariável, ou, por outro lado, no que de fato tem de individual e absolutamente variável e criativo, mas de observá-la em uso, na combinatória dessas duas dimensões, como uma forma de conhecer o ser humano, suas atividades, sua condição de sujeito múltiplo, sua inserção na história, no social, no cultural pela linguagem, pelas linguagens. (2006, p. 23) É possível perceber no trecho acima uma tensão dialógica entre duas correntes linguísticas de sua época, o Objetivismo Abstrato (“no que ela tem de sistemática, abstrata, invariável) e o Subjetivismo Idealista (“no que de fato tem de individual e absolutamente variável e criativa”) e essa tensão orientou a concepção Bakhtiniana de linguagem. Passo a expor, brevemente, seus principais pressupostos. Os representantes do Objetivismo Abstrato tomam o sistema linguístico como algo que se configura de forma externa à consciência individual, sendo independente dela. A língua é vista como um sistema de normas rígidas e imutáveis, submetidas a leis essencialmente linguísticas, desconsiderando aspectos ideológicos ou históricos (BAKHTIN, 1981). A segunda corrente citada, o Subjetivismo Idealista, situa-se no extremo oposto à primeira, tomando a língua como uma atividade individual resultante de um processo criativo ininterrupto do falante. O psiquismo individual constitui a fonte da língua, da criação linguística comparável à criação artística (op cited.). De forma semelhante a Tardif, que buscou tratar os saberes docentes escapando das correntes mentalistas e sociologistas, Bakhtin inaugura uma terceira direção para o entendimento de linguagem, a da interação verbal, que se situa entre o Objetivismo Abstrato e o Subjetivismo Idealista, e toma a enunciação como elemento central na abordagem da língua, considerada fio condutor que aglutina no discurso diferentes vozes que revelam o pano de fundo ideológico do sujeito. 50 Nesse sentido, Bakhtin considera como “enunciados” (orais e escritos) as expressões formalizadas de utilização da língua, provenientes da necessidade do homem exteriorizar-se, e esses apresentam algumas características, como: o fato de o enunciado ser sempre um novo acontecimento, um evento único e irrepetível na comunicação discursiva; possuir autor e destinatário; possuir uma dimensão verbal e extraverbal; apresentar em seu escopo uma entonação expressiva e valorativa da situação de produção e de seu auditório; ser ao mesmo tempo um produto (acontecimento) e um processo, pois se configura como elo na comunicação discursiva. Nas linhas que seguem, discorro sobre esses aspectos. Como apontado, o ato da enunciação é único e irreprodutível, pois o que foi dito num determinado momento, para um determinado destinatário, permeado por aspectos sociais e culturais presentes nas condições reais desse ato, o tornam um todo individual, singular e historicamente único. Os enunciados produzidos na enunciação têm sentidos definidos e únicos naquela situação de interação específica, sendo portanto não reiteráveis. Utilizo esse caráter não reiterável do enunciado como fio condutor para os conceitos de tema e significação. O tema está associado ao sentido completo da enunciação, tomado em toda sua amplitude concreta, tão concreta quanto o instante histórico ao qual ele pertence. Ademais, o tema da enunciação é determinado não só pelas formas linguísticas que entram na composição (as palavras, as formas morfológicas ou sintáticas, os sons, as entonações), mas igualmente pelos elementos não verbais da situação (BAKHTIN, 1981, p. 128). No interior do tema, a enunciação é igualmente dotada de significação que, diferente do tema, é constituída por elementos estáveis, reiteráveis e idênticos a cada vez que são repetidos, ou seja, as formas fixas da língua. Essas duas instâncias estabelecem uma relação de interdependência, impossibilitando a delimitação de fronteiras precisas entre ambos. Nessa inter-relação, o tema é considerado como “o estágio superior real da capacidade linguística de significar” enquanto que a significação é considerada “o estágio inferior da capacidade de significar” (op. cited, p. 131). A nomenclatura utilizada para formular a inter-relação entre tema e significação: o primeiro, como “estágio superior” e o segundo, como “estágio inferior”, pode ser entendida da seguinte forma nas palavras de Bakhtin, “apenas o tema significa de maneira determinada. [...] A significação não quer dizer nada em si mesma, é apenas 51 um potencial, uma possibilidade de significar no interior de um tema concreto.” (grifo meu, op.cited, p.131). O tema e a significação pertencem a toda palavra usada no discurso (oral ou escrito), que possui também seus acentos de valor ou apreciativos, marcos do discurso que o tornam único e que revelam o que tem sentido e importância aos olhos de um determinado grupo social. Esses acentos estão relacionados a outro elemento constitutivo do enunciado, a entonação. Esta se configura como uma expressão valorativa por parte do falante da própria situação social de produção do enunciado e também de seu auditório. Uma mesma palavra pronunciada com uma entonação diferente apresenta também um significado diferente. Esse elemento só se manifesta no plano da língua como discurso; a palavra ou oração no plano da língua como sistema são desprovidas desse elemento. Ademais, sendo o enunciado algo sempre inédito, engendrado na inter-relação discursiva, ele não pode ser considerado o começo nem o fim de uma cadeia discursiva, mas um elo, uma fração da corrente de comunicação verbal ininterrupta, como considera Bakhtin, Qualquer enunciação, por mais significativa e completa que seja, constitui apenas uma fração de uma corrente de comunicação verbal ininterrupta (concernente à vida cotidiana, à literatura, ao conhecimento, à política, etc.). Mas essa comunicação verbal ininterrupta constitui, por sua vez, apenas um momento na evolução contínua, em todas as direções, de um grupo social determinado. (BAKHTIN, 1986, p.123, grifos do autor) E dessa forma todo enunciado vai confirmar, refutar, complementar, reavaliar outros enunciados reais ou supostos e será a partir deles que novos enunciados se constituirão. Para Bakhtin, as experiências individuais de qualquer sujeito vão se desenvolver em uma interação constante com enunciados alheios53, caracterizado como um processo de assimilação do discurso de outrem54, situação marcadamente social. Abrindo aqui um breve adendo sobre as formas de assimilação do discurso, Bakhtin destaca a palavra autoritária e a palavra internamente persuasiva e esclarece que o conflito dessas duas modalidades é que determina a consciência ideológica de cada 53 A identidade do falante se dá por alteridade, concepção que parte do pressuposto de que todo indivíduo interage e interdepende de outros, é a existência do eu-individual condicionada ao contato com o outro (indivíduo ou cultura social). A perspectiva bakhtiniana complementa essa ideia como processo de significação do objeto na tríade: eu-para-mim, outro-para-mim e eu-para-outro (BAKHTIN, 2006). 54 Nesse sentido, as palavras estão sempre carregadas de sentidos alheios, que são assimilados e recriados pelos sujeitos que as enunciam novamente, dando-lhes um novo tom, um novo acento apreciativo. 52 sujeito (BAKHTIN, 1998). A diferença entre essas modalidades de palavras está no fato de a primeira, a autoritária, exigir do sujeito seu reconhecimento total e incondicional, pois se comporta como uma massa compacta e indivisível que penetra na consciência. Tal característica coloca o sujeito em uma situação de aceitação ou negação completa, ou seja, é possível desobedecer a um discurso autoritário, mas enquanto permanece autoritário não se pode discutir com ele (MORSON & EMERSON, 2008). Já a palavra internamente persuasiva alcança um grau interativo com as vozes internas de um sujeito e, segundo Bakhtin, a transformação da consciência ideológica do homem se dá nessa disputa entre os diferentes pontos de vista verbo-ideológicos55 (op. cited). Retomando aos aspectos que caracterizam o enunciado, destaco nas linhas que seguem a noção de autor e destinatário na construção dos enunciados, que carrega consigo a questão dos limites do enunciado no processo de comunicação discursiva. Para Bakhtin, os limites de cada enunciado completo como unidade da comunicação discursiva são definidos pela alternância dos sujeitos (falantes) no fluxo do discurso – que emoldura o enunciado e cria para ele a massa firme e delimitada dos outros enunciados a ele vinculados – e pela conclusibilidade específica do enunciado, uma espécie de aspecto interno da alternância dos sujeitos que pretendo abordar mais adiante no texto. Cada falante (ou agente do enunciado) é um sujeito polifônico56, pois tece seu discurso pela conjugação e disputa das vozes que o constitui, vozes que ressoam de formas consonantes ou dissonantes57 durante essa elaboração e, ao proferi-lo, o ouvinte (futuro falante da interação dialógica), adota, para compreensão e significação do discurso dito, uma atitude responsiva ativa, como coloca Bakthin, [...] toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo, é de natureza ativamente responsiva (embora o grau desse ativismo seja bastante diverso) e prenhe de resposta, [...] o ouvinte se torna falante. A compreensão passiva do significado do discurso ouvido é apenas um momento abstrato da 55 Ressalto que essas modalidades são vivas e, portanto, mutáveis. Da mesma forma que um discurso autoritário pode perder sua autoridade ao longo da vida discursiva do sujeito, o discurso internamente persuasivo pode se tornar menos persuasivo. 56 A polifonia na perspectiva bakhtiniana pode ser considerada como um caleidoscópio de individualidades em um único indivíduo, em outras palavras, são as várias vozes que disputam a emersão para engajamento no ato discursivo, vozes que foram apropriadas na trajetória temporal do indivíduo nas esferas sociais que ele frequenta e nas atividades que realiza. 57 No mesmo tom dos encontros e desencontros discursivos permeados pelas relações de poder da linha foucaultiana (FOUCAULT, 2007). 53 compreensão ativamente responsiva real e plena, que se atualiza na subsequente resposta em voz real alta. (2006, p. 271) Contudo, isso não quer dizer que a atitude responsiva ativa seja impulsionada logo após o enunciado proferido pelo falante. Essa pode ser imediata ou não, mas, se foi compreendida, cedo ou tarde o ouvinte responderá, ou nos discursos subsequentes ou no seu comportamento. Nessa expectativa de resposta está presente na intenção do falante, que não deseja simplesmente ouvir a dublagem de seu pensamento em voz alheia, mas uma participação, uma concordância ou discordância (total ou parcial), um encontro de suas ideias com as ideias reveladas no movimento de significação do dito, atravessado pela bagagem cultural58 do ouvinte (BAKHTIN, 2006). Ademais, essa atitude responsiva apresenta uma direcionalidade, uma orientação social, conceito que ressalta o ouvinte (o destinatário do discurso) nas construções dos enunciados, “nenhum enunciado em geral pode ser atribuído apenas ao locutor: ele é produto da interação dos interlocutores e, num sentido mais amplo, produto de toda esta situação social complexa, em que ele surgiu” (BAKHTIN, apud DAHLET, op. cited., p. 57). Esses elos discursivos que a atitude responsiva proporciona são considerados pontes inacabáveis entre os interlocutores, pois suscitam a construção de infinitas outras pontes a cada recorte feito, significado e rebatido. Nesse movimento, é preciso considerar o fundo aperceptível da percepção do discurso do falante pelo destinatário, como complementa Bakhtin, Ao falar sempre levo em conta o fundo aperceptível da percepção do meu discurso pelo destinatário: até que ponto ele está a par da situação, dispõe de conhecimentos especiais de um dado campo cultural da comunicação; levo em conta as suas concepções e convicções, os seus preconceitos (do meu ponto de vista), as suas simpatias e antipatias [...]. (2006, p .303) Nesse sentido, as contrapalavras que trazemos à tona em atitude responsiva ao enunciado proferido podem mensurar nossa compreensão, como ressalta o autor, Para cada palavra do enunciado que estamos em processo de compreender propomos, por assim dizer, um conjunto de palavras nossas como resposta. 58 Chamo de bagagem cultural o sistema complexo, mutável, dinâmico e rizomático de vivências que um indivíduo traz consigo e que o faz plural e singular, plural por todos os elementos que o permeiam, singular, na conjugação única que tece entre esses elementos. 54 Quanto maior for seu número e sua importância, mais profunda e substancial deverá ser nossa compreensão (BAKTHIN, 1986 apud WERTSCH, 1991, p. 72). Se o ouvinte não possui palavras em seu repertório para que haja compreensão de determinado enunciado, o uso desse enunciado em futuras manifestações verbais se converterá em uma ventrilocução, ou seja, um ato de fala sem intencionalidade ou apropriação por quem o escuta. Além disso, Wertsch (1991) ressalta a importância do cenário cultural (meio extraverbal) no viés bakhtiniano que permeia os enunciados quando complementa que “nenhum enunciado, e consequentemente nenhuma de nossas ações, se encontra isento das determinações que os cenários socioculturais59, através dos instrumentos mediadores que eles mesmos provêm, nos impõem” (grifo meu, 1991 p.13). Esse horizonte extraverbal do enunciado é constituído por três aspectos: o primeiro diz respeito ao espaço e ao tempo, ou seja, “onde” e “quando” os enunciados são produzidos, aspecto histórico. O tema do qual o enunciado trata refere-se ao segundo aspecto; e o terceiro está centrado na atitude valorativa dos participantes da situação frente ao que ocorre. Esses aspectos constituem a dimensão não visível do enunciado, que se situa entre o verbal (visível) e o extraverbal, e o remete a situação vivida, de modo que ele não seja plenamente compreendido por quem desconheça as condições em que foi produzido. Outro aspecto que compõe e delimita os enunciados é sua conclusibilidade específica que, como dito anteriormente, se caracteriza como algo interno, uma espécie de fator intrínseco ao mesmo, que pode ser identificado como “tudo que o falante quis dizer em um dado momento ou sob dadas condições” (BAKHTIN, 2006, p.280), ao perceber esse dixi60 conclusivo do falante, o interlocutor assume a atitude responsiva em relação ao enunciado. Essa possibilidade de responder ao outro, de suscitar uma atitude responsiva, é considerada um critério de conclusibilidade, de inteireza do enunciado, e é determinada por três fatores intimamente ligados ao todo orgânico do enunciado: a euxarabilidade do objeto e do sentido, o projeto discursivo ou vontade discursiva do falante e as formas típicas e composicionais e de gêneros de acabamento. 59 No meu caso: a universidade. Expressão derivada do latim que pode ser traduzida como “tenho dito” ou “tenho falado”, que pode ser associada aqui à conclusão temporária do discurso de um falante no diálogo. 60 55 O primeiro fator é extremamente diverso nos diferentes campos de comunicação discursiva, sendo sua plenitude alcançada somente em algumas modalidades discursivas primárias, isentas do elemento criativo (como as ordens militares). Nas outras modalidades em que a criação se manifesta, essa exaurabilidade nunca é plena. No campo científico, nas publicações acadêmicas (como essa, por exemplo), os discursos secundários elaborados podem ter uma conclusibilidade relativa, um acabamento mínimo definido pelo autor, mas o objeto é objetivamente inexaurível (BAKHTIN, 2006). O projeto de discurso ou vontade discursiva, segundo fator, está intimamente ligado ao primeiro, pois caracteriza-se pelos objetivos colocados pelo autor, delineados por seu ideário, sua intenção discursiva, que determina o todo do enunciado, o seu volume e suas fronteiras. Como situado anteriormente, essa intenção está associada ao fundo aperceptível da percepção do meu discurso pelo destinatário, enquanto o destinatário imagina em sua audição o que o falante quer dizer e mensura a conclusibilidade do enunciado proferido. Essa movimentação nos leva ao último fator: as formas típicas composicionais de gêneros de acabamento, os gêneros discursivos, que podem ser definidos como a escolha de uma forma de comunicação e expressão específica advinda da relação da atitude responsiva e do meio extraverbal no ato comunicativo e são, por sua vez, determinados pelo menos por quatro elementos: a esfera de comunicação discursiva, a temática, a situação concreta de interação e a composição do auditório ao qual o enunciado é dirigido. Esses gêneros são escolhidos e moldados na audição, pois Quando ouvimos o discurso alheio, já adivinhamos o seu gênero pelas primeiras palavras, adivinhamos um determinado volume (isto é, uma extensão aproximada do conjunto do discurso), uma determinada construção composicional, prevemos o fim, isto é, desde o início temos a sensação do conjunto do discurso que em seguida apenas se diferencia no processo da fala. (BAKHTIN, 2006, p. 283) Ainda sobre os gêneros discursivos, acrescenta Bakhtin que Esses gêneros de discurso nos são dados quase que da mesma forma que nos é dada a língua materna, a qual dominamos livremente até iniciarmos o estudo teórico da gramática. A língua materna – sua composição vocabular e sua estrutura gramatical – não chega ao nosso conhecimento a partir de dicionários e gramáticas, mas de enunciações concretas que nós mesmos ouvimos e nós mesmos reproduzimos na comunicação discursiva viva com as pessoas que nos rodeiam (op. cited., p.283) 56 Como diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem, e por ser inesgotável e multiforme essa atividade, Bakhtin considera infinita a riqueza e a diversidade dos gêneros discursivos (orais ou escritos). E acrescenta que esse repertório de gêneros discursivos cresce e se diferencia na medida em que se desenvolve e complexifica determinado campo da atividade humana. Desse modo, todos os indivíduos que participam de uma determinada cultura compartilham de um rico repertório de gêneros, o qual permite a comunicação. O desconhecimento em relação às formas da língua não impede que um sujeito participe de forma satisfatória de uma situação de interação verbal (oral o escrita), mas sim o desconhecimento dos gêneros que circulam uma dada esfera da comunicação. Para Bakhtin, esses gêneros discursivos são relativamente estáveis e o marco da individualidade do falante se manifesta na sua entonação expressiva, no tom que é atribuído à sua estrutura e nos acentos de que o falante se utiliza para expressar sua intenção e se fazer compreendido. Esses fatores integram o conjunto de condicionantes a serem analisadas no discurso. Aprofundando um pouco mais a noção de gêneros61, Bakhtin propõe uma distinção entre gêneros primários (simples) e secundários (complexos). O primeiro tipo está relacionado à comunicação discursiva imediata, como conversas, relatos, cartas, etc. Já os de segundo tipo são desenvolvidos em comunicações culturais mais complexas, sendo sistematizados no âmbito dos sistemas ideológicos constituídos, como a esfera científica, religiosa, artística, etc. As teses, os romances são exemplos de gêneros secundários62. Ademais, Bakhtin considera o conteúdo temático, o estilo e a construção composicional os elementos constituintes dos gêneros discursivos e dessa tríade essencial e indissolúvel é que emerge o todo do enunciado. Ressalto que não abordarei essas instâncias, pois as mesmas fogem dos objetivos desta pesquisa. 61 Ressalto que nesse trabalho o tratamento dado aos gêneros discursivos é basal e que o mergulho consistente nessa temática poderia configurar outro capítulo de estudo, devido aos aspectos a serem abordados. No entanto, de pouco valeria essa profundidade para os objetivos dessa investigação. 62 Embora a forma de materialização do enunciado, oral o escrito, também possa se constituir como traço distintivo entre os gêneros primários e secundários, a oralidade não é um fator determinante de classificação para os primários da mesma forma que a escrita não é um fator determinante de classificação para os secundários, uma palestra, por exemplo, é um exemplo de gênero discursivo secundário e, da mesma forma, um bilhete é um exemplo de gênero discursivo primário (BARBOSA, 2001). 57 Considerando, então, o papel que a perspectiva bakhtiniana ocupa neste trabalho e a dificuldade de apresentar alguns dos pressupostos teóricos mais relevantes para o mesmo, finalizo com um pressuposto teórico que irá compor a lente de leitura de minhas análises discursivas, a exotopia. A exotopia pode ser definida como o esforço de deslocar-me do meu lugar na interação discursiva para o lugar do outro, na tentativa de captar suas visões e concepções de mundo. Obviamente que esse movimento exotópico é limitado, uma vez que não somos o outro, e essas duas instâncias, “eu” e o “outro”, não são muito legíveis entre si. Retratar aquilo que se vê a partir do que se supõe que o outro viu já abarca interpretações nem sempre consonantes com as visões do outro. Essa tensão dialógica de perspectivas deve permear o ato da análise dos dados e sua escrita63, evitando que o texto64 do pesquisador emudeça o texto do pesquisado ou que o texto do pesquisado faça desaparecer o texto do pesquisador, sendo preciso que a pesquisa se esforce por não realizar nenhum tipo de fusão dos dois pontos de vista, mas que mantenha sempre o caráter dialógico (AMORIM apud BRAIT, 2006). 63 Postura adotada na escrita dos capítulos 5 e 6. Na perspectiva Bakhtiniana, “as Ciências Humanas são entendidas como ciências do texto, pois o que há de fundamentalmente humano no homem é o fato de ser um sujeito falante, produtor de textos. Pesquisador e sujeito pesquisado são ambos produtores de texto.”(p.98, AMORIM apud BRAIT, 2006) 64 58 4 CAPÍTULO O caminho da conversa ... Um procura um parteiro para os seus pensamentos, outro alguém a quem possa ajudar: é assim que nasce uma boa conversa. Friedrich Nietzsche65 No capítulo 2, ressaltei a importância de metodologias que dão voz ao professor, no capítulo 3, apresentei o referencial teórico-metodológico que suportará as discussões sobre os dados coletados a partir das entrevistas que realizei, e nesse breve capítulo apresento o caminho da conversa, aspectos metodológicos pensados para alcançar os objetivos da minha investigação. Nesse sentido, a entrevista semiestruturada66 (categorizada aqui como planopiloto de entrevista) é o instrumento que utilizo para tentar compreender, através da análise discursiva, o cotidiano dos docentes entrevistados, seus atos, suas motivações, suas ideologias, seus valores e objetivos. Essa subjetividade dos dados, produzidos no diálogo entre dois indivíduos, é um dos fatores que enquadram essa pesquisa na linha qualitativa. 4.1) Plano piloto de entrevista, minhas escolhas e intencionalidades Como exposto, meus protagonistas, os professores universitários do curso de Licenciatura em Química, da Universidade Federal Fluminense, serão os sujeitos da minha tese. No entanto, na impossibilidade de entrevistar todos os profissionais envolvidos no processo formativo dos licenciandos em Química, apresento aqui os critérios que utilizei para seleção desses professores. Como aludido no capítulo 1, considero o fluxograma atual da Licenciatura em Química da UFF (ANEXO 1) a tentativa de “corporificação” dos novos paradigmas apontados na reforma universitária da década de 90, e resgato desse capítulo o apontamento dos três momentos formativos que devem articular os três tipos de conteúdos curriculares (os específicos, os articuladores e os pedagógicos/humanísticos) 65 Citação do autor retirada do site: www.citador.pt. A entrevista semi-estruturada é um “roteiro de questões-guia que dão cobertura ao interesse da pesquisa” (DUARTE, 2005, p. 66). 66 59 para que, respaldado por esses momentos, justifique os professores escolhidos para a entrevista. Nesse sentido, considerei relevante entrevistar um professor envolvido com disciplinas sobre Ensino de Química (como a Pesquisa e Práticas de Ensino I, II, III e IV) além de um professor para cada um dos 3 momentos do curso. Esse trio de professores leciona disciplinas da Química específica67, localizadas no início (como a Química Geral e a Química Inorgânica fundamental), no meio (como a Químicas Orgânicas I, II e III) e no fim do fluxograma (como as Físico-Químicas IV e V). Além disso, desse quarteto, dois professores lecionam as ditas disciplinas articuladoras (como as tutorias I, II, III e IV) e dois são licenciados em Química, sendo minha intenção com isso a de me aproximar da heterogeneidade das disciplinas e perfis profissionais que permeiam a Licenciatura em Química. A TABELA 3 abaixo resume o perfil de cada entrevistado. TABELA 3 – Os perfis dos entrevistados Sujeitos68 Localização das disciplinas Tipo de disciplinas que leciona69 Formação Trabalhos na área de educação Prof. Ana Início do Fluxograma Química específica e articuladoras Licenciada em Química Possui Prof. José Meio do fluxograma Química específica Bacharel em Química Não possui Prof. Maria Final do fluxograma Química específica e articuladoras Engenheira Química Possui Prof. Lucia Meio ao final do fluxograma Pedagógicas Licenciada em Química Possui Sendo assim, passemos para a segunda etapa da proposta, o plano piloto das entrevistas que realizei. Vou expor, nas linhas que se seguem, as perguntas que fiz, bem 67 Categorizo como Química específica os conteúdos de Química avançada, lecionados na graduação, conteúdos que nem sempre apresentam sua versão mais acessível aos alunos do Ensino Médio, mas necessários para uma compreensão mais consistente da Química. Chassot utiliza a nomenclatura Quimica Hard para definir esse tipo de disciplina (CHASSOT, 2004). 68 Por questões éticas, todos os nomes são fictícios. 69 No fluxograma do ANEXO 1, localizo as disciplinas que já foram lecionadas pelos 4 professores. 60 como as intenções que as subsidiam. Para isso, apresentarei na TABELA 4 os quatro momentos do fluxo das duas entrevistas realizadas. Obviamente que a estrutura resumida nessa tabela se trata de um “esboço de caminho discursivo” (ou caminho da conversa como sugere o título) que pretendo tecer, mas a imprevisibilidade do ato da entrevista pode conduzir a novos questionamentos, ou deslocar os momentos pré-concebidos, dependendo de minha percepção ao aprofundar algum assunto abordado. Depreendo, no entanto, que esse planejamento é essencial, mesmo à sombra da imprevisibilidade de respostas e contrarrespostas ditas no percurso discursivo, pois com ele posso me situar com mais lucidez no que procuro investigar de cada sujeito e atuar com mais competência no esforço balizante que farei para continuar no meu objeto de pesquisa: os saberes docentes dos professores universitários e as suas influências na formação dos licenciandos. Um adendo, a última pergunta do segundo momento da entrevista está destacada, pois não foi uma pergunta que integrou o escopo de perguntas das professoras Ana e Maria (as primeiras entrevistadas no percurso de pesquisa), mas como foram assuntos levantados por elas, achei prudente acrescentar essa questão para os outros dois professores por sua relevância. 61 TABELA 4 – Os 4 momentos do plano piloto de entrevista O que pretendo arguir... 1° momento: Impressão digital... Minhas intenções... Qual sua formação acadêmica? Quais são as disciplinas que leciona ou lecionou na Licenciatura em Química? E a quanto tempo leciona? Quais são as áreas de pesquisa em que atua? Quais funções, além da docência, já desempenhou na universidade? Identificar se o entrevistado é licenciado (pois isso baliza o segundo momento da entrevista). Sondar como o entrevistado valora a pesquisa e a docência na sua profissão. Em que medida as disciplinas em que ele atua se aproximam do seu perfil curricular de pesquisador. Quais são as outras funções que ele desempenha. 2° momento: ser professor é... Para os professores licenciados: Você teve, em sua formação inicial, contato com disciplinas pedagógicas. De que forma elas contribuíram para sua atuação em sala de aula? Para os professores não licenciados: Você não teve, em sua formação inicial, contato com disciplinas pedagógicas. Como isso afeta sua atuação em sala de aula? Como professor de sua disciplina, quais são os conhecimentos necessários para lecioná-la? Qual a importância de sua disciplina para atuação do futuro professor de Química do Ensino Médio? O que você considera importante para formar um bom professor de Química? Comparando sua atuação em sala com a dos professores que lecionaram para você em sua graduação, quais são as semelhanças e as diferenças? Qual o papel da escola na formação dos professores? Sondar como o entrevistado valora os conhecimentos pedagógicos na atividade docente. Em que medida as disciplinas em que ele atua se aproximam do seu perfil curricular. Sondar o que ele considera relevante e quais as pontes que ele realiza com as disciplinas do Ensino Médio. Sondar as concepções sobre a formação docente do entrevistado. Sondar como ele se situa como professor em comparação aos professores que passaram por sua trajetória acadêmica, quais as marcas que estes professores imprimiram no fazer do entrevistado. 3° momento: o que vejo neste cenário... Quais são os pontos positivos e negativos da formação universitária para a Licenciatura oferecida atualmente na UFF? Considerando o tempo que você atua nessa Universidade, no seu entendimento, as reformas realizadas na Licenciatura melhoraram ou pioraram a formação dos futuros professores de Química? Sobre o seu cotidiano, quais as exigências profissionais que o professor universitário enfrenta atualmente? De que forma essas demandas influenciam a sua atuação em sala de aula? Pesquisa, Ensino e extensão universitárias, como você ordena essas dimensões da universidade em grau de importância? Como ele avalia a formação oferecida em seus aspectos positivos e negativos? Sondar as impressões sobre a reforma curricular e como ele relaciona essas impressões ao processo formativo (melhorando ou piorando o mesmo) Sondar as exigências profissionais de outro tipo (não relacionadas diretamente com a sala de aula) que ele consegue vislumbrar na sua profissão de professor universitário. Em que medida, essas exigências que a universidade impõe são apontadas como entraves à atividade docente. Sondar como ele valora as dimensões de pesquisa, Ensino e extensão universitários. 4° momento: o arremate... Para você, qual o papel do professor universitário e do professor de Ensino Médio na sociedade brasileira? Qual o papel das universidades na sociedade brasileira? Sondar como ele categoriza esses dois segmentos de atuação do professor, suas concepções sobre o professor do Ensino Médio. Sondar suas concepções sobre a universidade, se aquelas se aproximam desta como centro de formação e/ou como centro de pesquisas. 62 4.2) A Transcrição das entrevistas As entrevistas foram gravadas em áudio e, para estruturar a análise discursiva, todo o material foi transcrito, sendo minhas falas representadas nessa transcrição pelo personagem “P.” do texto, enquanto que as dos demais professores aparecem com os respectivos nomes fictícios apresentados anteriormente (Ana, Maria, Lucia e José). No entanto, esse processo de transcrição apresenta limitações, cria um texto novo com relações problemáticas com os dados originais, como destaca Lemke (1998): [...]O que é preservado? O que é perdido? O que é alterado? É exatamente a mudança de meio da fala para a escrita que altera nossas expectativas e percepção da linguagem. O que soa perfeitamente sensato e coerente pode ser percebido na transcrição (qualquer transcrição) como confuso e desorganizado. O que passa através da fala muito rapidamente pode não ser anotado, ou é substituído pela expectativa do ouvinte sobre o que pode ter sido dito, é congelado e aumentado na transcrição. A linguagem falada é plena de hesitações, repetições, falso começo, trocas de construção gramatical na maneira de falar, [...] A tendência na transcrição é “limpar”, repudiando muitas dessas características como irrelevantes. (p.1176-7 apud BARBOSA-LIMA, 2001) Consciente dessas limitações utilizei a metodologia proposta por Lemke70 para a transcrição das entrevistas em áudio, com a intenção de minimizar os problemas acima destacados. Além disso, outra limitação destacada por esse autor diz respeito ao atitudinal do entrevistado, os aspectos não verbais que agregam valor interpretativo no viés bakhtiniano, aspecto que também foi considerado na transcrição, [...]As transcrições no nível da palavra também apagam informações sobre ênfase, valores de orientação, graus de certeza ou dúvida, atitude de surpresa ou expectativa, ironia, humor, força emocional, identidade e dialética do orador ou seu conhecimento da linguagem... (p.1176-7 apud BARBOSALIMA, 2001) Diante da movimentação realizada nesse capítulo de caracterização do tipo de pesquisa e justificativa da escolha dos professores entrevistados, não cabe discutir os resultados que emergem da avaliação das entrevistas, tema que fica para os próximos capítulos. 70 Discorro nesta nota as convenções textuais importadas de Lemke (1997) para transcrição das entrevistas: o uso das vírgulas significam as breves pausas (menos de um segundo) que o entrevistado ou entrevistador realizam, já as reticências indicam pausas maiores (mais de dois segundos). A escrita em itálico representa as ênfases verbais e os diálogos superpostos, em que a fala do interlocutor que sobrepôs a fala do outro ou vice-versa, são sinalizados pelo deslocamento mais para direita no texto. Ressalto que essas convenções textuais não seguem as regras gramaticais e o ponto aparece quando o entrevistador ou o entrevistado concluem uma fala. 63 5 CAPÍTULO Nossos dizeres e seus significados I: as impressões digitais e o ser professor Não sei quantas almas tenho. Cada momento mudei. Continuamente me estranho. Nunca me vi nem acabei. Fernando Pessoa71 O plano piloto de entrevista do capítulo anterior serviu de apoio à organização das análises discursivas dos dados gerados, divididos em dois capítulos: este, em que analiso os dois primeiros momentos da entrevista e o próximo capítulo (capítulo 6), no qual analiso os dois últimos momentos da entrevista. No que tange à estrutura, os capítulos 5 e 6 têm um formato semelhante, primeiramente são apresentadas as análises da entrevista de cada sujeito com algumas discussões pontuais e posteriormente as relações e as discussões que podem ser estabelecidas no quarteto dos sujeitos da pesquisa dentro de um mesmo episódio. Sobre os episódios, cabe destacar que essa noção agrupa os enunciados72 produzidos no diálogo pelo seu conteúdo semântico (MORTIMER et. al., 2005), autorizando-me a coleta de enunciados ligados a um mesmo assunto, ditos num mesmo momento ou em momentos distintos da entrevista, facilitando as análises e discussões. Ressalto que, nos episódios que analiso, quando necessito extrair um trecho transcrito da entrevista, o faço mantendo as convenções descritas no capítulo quatro. Entretanto, nas hipóteses que formulo no movimento de análise discursiva, posso retomar frases ou palavras do trecho citado para subsidiar minha argumentação e, nesse caso, as frases ou palavras são escritas seguindo as normas correntes de citação direta, com as entonações discursivas em negrito. 71 72 Trecho do Poema “Não sei quantas almas tenho” de Fernando Pessoa. A definição de enunciado e seus limites no viés bakhtiniano já foram expostas no capítulo 3. 64 5.1) Meus protagonistas, impressão digital Sendo assim, inicio a análise dos dados com a caracterização sucinta dos meus quatro sujeitos de pesquisa, momento que categorizo como impressão digital, pois, como tal, é único, como a trajetória profissional deles. Após essa breve localização dos sujeitos de minha pesquisa, discorro sobre as análises que realizei desse momento inicial e defino os demais episódios de análise. a) Professora Maria A professora Maria possui formação básica em Engenharia Química, possui Mestrado em Físico-Química e Doutorado em Geoquímica, lecionando para diferentes públicos: alunos das três modalidades da Química (Bacharel, Licenciatura e Industrial), alunos do curso de Farmácia e para alunos de Engenharia de Petróleo (esse último, mais recentemente). Ademais, a professora atuou em outras atividades da UFF, distintas da docência, tendo sido em dois momentos chefe de departamento e, em três, subchefe, além da participação em colegiados. Há mais de 30 anos na UFF, essa professora atua como pesquisadora na área da Físico-Química ambiental e, mais recentemente, após a conclusão do seu doutorado (em 2000), agregou, por intermédio do curso de especialização em Ensino de Ciências, a área de Educação. No que tange à sua atuação no currículo do curso de Licenciatura, as disciplinas que leciona de Química específica estão situadas mais para o final do fluxograma do curso (ANEXO 1), excetuando as tutorias, disciplinas sequenciais que ocorrem desde o primeiro período, e que serão aludidas mais adiante. b) Professora Ana A professora Ana possui formação básica em Química nas duas modalidades: Licenciatura e Bacharelado, além de ter Mestrado em Geoquímica e Doutorado em Química. Já atuou como chefe e subchefe de departamento e também como coordenadora do curso de Química da UFF. Ainda sobre sua trajetória, a professora contextualiza que na época de sua formação existia a “carreira universitária” e logo que se integrou ao corpo docente da 65 UFF, buscou centrar-se em disciplinas experimentais73, mas um semestre depois, teve sua primeira de muitas turmas de disciplinas teóricas, em que lecionou para turmas de Química nas três modalidades (Bacharel, Licenciatura e Industrial), além das turmas de farmácia. Há mais de 30 anos na UFF, a professora Ana atuou74 como pesquisadora em uma área de Química Inorgânica e, mais recentemente, na área de Ensino, com publicações nessa área a partir de 200375. No que tange à sua atuação no currículo do curso de Licenciatura, as disciplinas que lecionou de Química específica estão situadas no inicio até o meio do fluxograma do curso (ANEXO 1), além de ter atuado também nas tutorias. c) Professor José O professor José possui formação básica em Química com atribuições tecnológicas (Químico Industrial), Mestrado, Doutorado e Pós-Doutorado em Química Orgânica e já atuou como subchefe de departamento. Ademais, o professor lecionou para turmas de Licenciatura e Bacharelado em Química, Química Industrial, Engenharia Química, Farmácia, Veterinária e para as turmas do curso de pós-graduação em Química Orgânica da UFF. Há mais de 20 anos na UFF, o professor José atua como pesquisador em Química, apresentando uma alta produtividade em termos de artigos completos, resumos de congressos e capítulos em livros e não possuindo publicações relacionadas à área de Ensino de Ciências ou de Ensino de Química76. No que tange à sua atuação no currículo do curso de Licenciatura, as disciplinas que lecionou de Química específica estão situadas no meio do fluxograma do curso (ANEXO 1). d) Professora Lucia A professora Lucia leciona há 38 anos, tendo começado como professora das séries iniciais, já tendo sido professora do Ensino Médio e da educação profissional, possuindo graduações em duas áreas: uma em Química (Bacharel e Licenciatura) e 73 Ressalto que as disciplinas experimentais são aquelas constituídas de práticas em laboratórios, com instrumentação específica. 74 Uso o verbo no passado, pois essa professora se aposentou em 2009. 75 Informações extraídas pela análise do currículo Lattes da entrevistada. 76 Informações extraídas pela análise do currículo Lattes do entrevistado. 66 outra em Pedagogia. Fez uma especialização em Ensino de Ciências, Mestrado em Educação na área de formação de professores e Doutorado na mesma área da especialização. Apesar dessa vasta experiência no magistério, sua experiência como professora da UFF ainda é recente. Apesar de atuar há pouco tempo como professora da UFF, foi professora em outra instituição de ensino público superior onde desempenhou papéis relevantes, como a direção de instituto e chefias de departamentos. Ademais, a professora Lucia atua como pesquisadora na área de educação, possuindo uma grande produtividade em termos de artigos completos e resumos em congressos77. As disciplinas nas quais atua no curso de Licenciatura se situam do meio para o final do fluxograma do curso (ANEXO 1). e) Relações entre as impressões digitais Diante das impressões digitais dos professores, destaco as relações que emergem desse primeiro momento e que sugerem a riqueza que pode ser explorada nos demais episódios: Com exceção da professora Lucia, os demais professores possuem uma longa vivência no cenário em que desenvolvo meu estudo, apresentando pelo menos 20 anos de UFF. Essa grande vivência institucional pode ser explorada, principalmente no que diz respeito às opiniões dos docentes sobre o cotidiano do professor universitário, sobre as reformas ocorridas nesse cenário e seus desmembramentos. Os perfis de formação básica são distintos: a professora Maria é Engenheira Química pós-graduada na área da Química específica; as professoras Ana e Lucia possuem Licenciatura em Química78; o professor José é Químico Industrial pós-graduado na área da Química específica. Dessa forma, os professores entrevistados apresentam vivências distintas de carreira em áreas da Química específica, sendo que três agregaram a área educacional aos seus currículos, enquanto um deles não. Essa heterogeneidade possibilita também explorar concepções sobre a docência advindas de lugares distintos. 77 Informações extraídas pela análise do currículo Lattes do entrevistado. A primeira seguiu na pós-graduação uma área da Química específica, enquanto a outra, a área da Educação. 78 67 Os professores atuam em regiões distintas do currículo da Licenciatura em Química. Essa característica pode potencializar a exploração de impressões sobre conexões e desconexões entre as disciplinas de pontos distintos do currículo. Além disso, com exceção da professora Lucia, que representa as disciplinas de formação pedagógica em Química, cada um dos outros professores representa uma frente da Química específica do Ensino Médio, a saber: Química Geral - Professora Ana, FísicoQuímica - Professora Maria e Química Orgânica - Professor José, o que pode oportunizar também a exploração de como eles percebem a importância de suas disciplinas na formação dos professores do Ensino Médio. Sendo assim, diante de todas essas potencialidades levantadas pelas relações entre as trajetórias profissionais singulares dos professores (suas impressões digitais), parto para a análise do primeiro episódio: “ser professor é...”. 5.2) Ser professor é... Nesse episódio, busco investigar as concepções dos professores entrevistados sobre a atividade docente: como relatam sua primeira experiência em sala de aula, como valoram e situam as disciplinas que lecionam no processo formativo do professor, os quesitos que consideram relevantes para formar um bom professor, suas concepções sobre o papel do professor de Ensino Médio, sobre a transposição didática de conteúdos e sobre o papel da escola. Esses aspectos gravitam na atmosfera do ser professor. a) Professora Maria Inicio essa análise, destacando o momento da entrevista em que pergunto para professora Maria, como o fato de não ter tido contato com as disciplinas pedagógicas da Licenciatura em Química afetou sua relação com a sala de aula: Prof. Maria: Eu acho que foi tudo muito feito por intuição, né? Eu sempre procurei dar o melhor, uma melhor maneira tanto de repassar o conhecimento, como de avaliar, tudo isso. Sempre questionei muito isso, mas feito sem base nenhuma teórica. Até adquirir essa... um pouco, né, dessa base, quando eu fui... me envolvi no curso de 68 especialização, aí passei a fazer uma leitura de Ensino de Ciências entendeu? P: em Ensino de Ciências Prof. Maria: aí eu passei a ter uma leitura voltada pra essa área que até então a formação era mais pesquisa em radioquímica ou mesmo na área de ambiental. (entrevista 1, linha 53 à 59) A entonação expressiva dada à expressão “por intuição” pode estar associada aos incômodos e questionamentos vivenciados pela profa. Maria, ao lecionar, interrogações resolvidas por ela durante o seu fazer em sala de aula, mas sem uma base teórica legitimada79 de conhecimentos pedagógicos. Essa hipótese se ratifica no segundo momento da fala, quando coloca “Sempre questionei muito isso, mas feito sem base nenhuma teórica”. Ainda que essa professora tenha uma postura que busque uma excelência no seu ofício docente, como coloca em suas palavras: “Eu sempre procurei dar o melhor, uma melhor maneira tanto de repassar o conhecimento, como de avaliar, tudo isso”, a compreensão de seu papel de professor estava, no início de sua carreira, no senso comum, associada às experiências positivas com professores de sua trajetória escolar e/ou de seus pares de profissão da UFF (MALDANER, 2003). Nesse caminho, destaco como fator relevante o contato em sua trajetória profissional com o curso de Especialização em Ensino de Ciências, que lhe proporcionou “uma leitura de Ensino de ciências”, mas que, segundo ela, ainda não a coloca, pelo menos num primeiro plano de consciência, como uma professora com uma base de conhecimentos pedagógicos vasta, ideia confirmada pela hesitação seguida da entonação dada à palavra “Até adquirir essa... um pouco, né, dessa base”. Mesmo que essa base de conhecimentos comuns (knowledge base – SHULMAN, 1986) e necessários para o Ensino não tenha se constituído, o contato dessa professora com as pesquisas educacionais agregou conhecimentos que afetaram seus saberes experienciais, modificando sua visão sobre o Ensino de Ciências. Sua cautela pode estar associada ao fato de que esse curso de Especialização tenha como foco as questões do Ensino de Ciências no Ensino Médio e não do magistério superior e dessa forma os conhecimentos e reflexões que esse curso agregou modificaram, em alguma medida (mesmo que seja um pouco), seu agir em sala de aula. Obviamente que a direcionalidade deve aqui ser considerada. Acredito que o endereçamento desse enunciado tenha sido ao entrevistador, pesquisador na área de 79 Legitimada por um título de Licenciatura. 69 Educação, fazendo com que a professora, mesmo que hoje conheça as concepções mais atuais sobre Ensino de Ciências e que tenha aperfeiçoado seu agir em sala, analisando, pesquisando e publicando artigos na área educacional, não se sinta à vontade para ocupar esse lugar de “professor competente de ciências80”, talvez por não haver direcionado sua formação inicial para a docência. No momento da entrevista em que adentrei na questão das disciplinas de Química específica que leciona (as Físico-Químicas), procurei avaliar a noção que ela trazia sobre a importância de sua disciplina na grade curricular da Licenciatura, como destacado: P: [...] como professora de Físico-Química, possivelmente nesse percurso a senhora deu aula para licenciados. Para essa disciplina de Físico-Química, né, que é uma disciplina inclusive que a gente percebe que também está presente no Ensino Médio, quais são os conhecimentos necessários na sua opinião, pra lecionar FísicoQuímica no nível superior? Prof. Maria: Bom, nível superior, Físico-Química pela característica dela, ela vem a explicar os fenômenos e através de modelos. E esses modelos são todos elaborados em cima de modelos matemáticos, então, eu vejo que a maior dificuldade, principalmente pro aluno de farmácia que não traz essa bagagem, é o formalismo, quando a coisa é só fenomenológica, eles vão bem. Agora, quando parte pro modelo, pro formalismo matemático, aí você sabe que fica perdido, que já tem dificuldade mesmo. (entrevista 1, linha 70 à 78) Cabe acrescentar que a disciplina de Físico-Química da Licenciatura em Química da UFF apresenta uma turma mista, com alunos do curso de Farmácia81, Química Industrial, Bacharelado e Licenciatura em Química, o que torna mais difícil o esforço de contextualizar essa disciplina para essa variedade de perfis profissionais em sala, questão que será abordada mais adiante. Retomando a análise do trecho, a professora ressalta os modelos matemáticos como uma das grandes dificuldades de entendimento de sua disciplina (destacando os alunos de Farmácia) em comparação aos aspectos fenomenológicos. Parece que, para a professora, a matematização dos fenômenos e a operacionalização dessas equações para resolução dos problemas ainda ocupam um grau de importância maior do que: as questões conceituais, a crítica das fragilidades 80 Categorizo esse perfil ao professor que busca pesquisar assuntos associados à atividade docente, refletindo e agregando novos saberes aos seus fazeres pedagógicos, consciente da dimensão de sua posição em sala. 81 Os alunos desse curso possuem, comparativamente, uma carga horária menor de disciplinas de matemática que os dos cursos de Química e as Engenharias. 70 matemáticas dessas equações82, a exposição de suas raízes epistemológicas e seu entendimento como modelos advindos do método científico. Essa hipótese pode ser reforçada nas próprias palavras da professora, pois ao definir a função da disciplina que leciona (Físico-Química) ela coloca “explicar os fenômenos e através de modelos. E esses modelos são todos elaborados em cima de modelos matemáticos”, não colocando em nenhum momento em seu discurso as fragilidades das equações que leciona, indícios da visão positivista, que engessa e coloca a ciência como algo acabado, e não em constante desenvolvimento (MALDANER, 2003). Essas concepções que afetam a formação docente trazem consequências para o Ensino Médio e, nesse sentido, destaco o trecho em que a professora estabelece a relação de importância da disciplina que leciona no nível superior para a atuação do futuro professor desse segmento, P: E assim, com relação ao professor de Química do Ensino Médio, qual a importância, na sua opinião, dessa disciplina Físico-Química, pra esse futuro professor de Ensino Médio? A Físico-Química que ele aprende aqui na faculdade, que integra o currículo dele. Qual a importância dessa disciplina pra sua formação, enquanto futuro professor do Ensino Médio? Prof. Maria: É, pelo fato dele explicar. Então, você pode usar exemplos desde um gás liberado de uma garrafa de refrigerante, porque o céu é azul, todas as explicações da natureza, tudo isso, todas elas têm uma explicação Físico-Química, então, eu hoje vejo que é super importante o licenciando sair com essa bagagem entendeu? P: Mesmo que às vezes essa bagagem esteja impregnada de formalismo matemático? Prof. Maria: Que ele não precisa aplicar no Ensino Médio, mas que faz parte do entendimento de um todo entendeu? (entrevista 1, linha 79 à 89) Destaco como a concepção positivista de ciência se revela no discurso da professora: “todas as explicações da natureza, tudo isso, todas elas têm uma explicação Físico-Química” e, como aludido anteriormente, essas explicações são modeladas matematicamente, um formalismo que, segundo ela, não precisa permear o Ensino Médio, mas ocupa um lugar importante no nível superior. 82 Considero como fragilidades todas as aproximações, os condicionantes desprezados e as considerações arbitrárias que são apresentadas para que essas equações possam ser resolvíveis, o que configura sempre um sistema ideal (utópico) nunca um real. 71 Sendo assim, se o licenciando em Química em sua formação tem uma disciplina que se caracteriza pela presença de um formalismo matemático e esse é por vezes inacessível83 ao Ensino Médio, conduzi meus questionamentos para a transposição didática, como destacado a seguir: P: Precisa então no caso de que o estudante [licenciando] tenha uma capacidade pra adaptar o conteúdo de Físico-Química pro Ensino Médio. Prof. Maria: É. P: E nesse sentido assim, por essa adaptação, por essa transposição didática, na sua opinião, quais são as formas que isso poderia ser feito? O estudante, ele vai desenvolver isso, ele pode desenvolver isso em que disciplina? Na própria disciplina de Físico-Química, numa disciplina da área pedagógica, numa disciplina de interface entre a pedagogia e a Química? Prof. Maria: Eu acho que numa disciplina pedagógica, porque a disciplina de Físico-Química precisa ser cobrada com todo o seu formalismo, né? Você tem a Química quântica, que é dentro da Físico-Química, que tem um formalismo matemático muito rígido; a termodinâmica; a radioquímica, que faz parte do currículo, né, ele precisa ser cobrado enquanto aluno de graduação. (inserção minha, entrevista 1, linha 90 à 100) Retomando a análise do trecho, ao atribuir a responsabilidade da transposição didática a uma disciplina pedagógica, a professora Maria, apesar de atuar num currículo pós-reforma, em que o modelo 3+1 foi estruturalmente desfeito e de pesquisar e publicar na área educacional (na qual esse modelo é correntemente criticado), deixa transparecer em seu discurso que algumas de suas concepções sobre a disciplina FísicoQuímica na graduação ainda estão permeadas por essa lógica curricular que setoriza a formação docente em um grupo de disciplinas específicas. As pontes que podem ser realizadas entre os conteúdos específicos da graduação e do Ensino Médio parecem, para a professora, tarefas que desviam o objetivo da disciplina que “precisa ser cobrada com todo o seu formalismo”. Diante desse discurso que setoriza a formação pedagógica, perguntei para a professora Maria o que ela considera importante para formar um bom professor de Química do Ensino Médio, tendo ela ressaltado o papel essencial da escola na formação docente, da presença do licenciado no ambiente escolar, afirmando que procura 83 Essa inacessibilidade ocorre, pois as equações formuladas na graduação são (em sua maioria) equações diferenciais, ou seja, equações que são permeadas por Derivadas e Integrais. Essas funções matemáticas constituem o cálculo do nível superior e aparecem por vezes nas disciplinas específicas da Química por representarem (na linguagem matemática) descrições formais dos fenômenos. 72 potencializar a reflexão sobre esse ambiente nos trabalhos de conclusão de curso que orienta. Apesar de transparecerem em seu discurso lógicas que remetem ao currículo 3+1, a professora Maria se esforça na contextualização de sua disciplina para parte do público84 que leciona e coloca essa contextualização como uma questão de compromisso, contradição talvez engendrada pelo seu contato com pesquisas em Ensino de Ciências. Em suas palavras: Prof. Maria: Um compromisso entendeu, um compromisso de realmente mostrar até pro aluno, principalmente de farmácia. Mostrando que, primeiro discurso a fala é única. Pra que eu preciso de físico-Química? Aí eu começo, aqui, aqui, aqui... em tudo, um creme que você passa no rosto tem a parte cosmética, a parte de todos os fármacos, estabilidade de fármacos, começo todas mostrando, “Olha, físico-Química é uma ferramenta”. Então, eu procuro esse tipo entendeu, de mostrar a importância da disciplina, ambiental é uma coisa que eu adoro, então também é uma coisa que eu valorizo, sem ser aquela ambientalista piegas, aquela coisa assim, mas mostrando que o químico é um ator que pode atuar firme, e tem muita gente na área de ambiental que não sabe os porquês, entendeu? Então, eu sempre falo é um campo de falhas porque vocês, além de ter o conhecimento que todos os outros geógrafos, biólogos, vão adquirir, vocês sabem explicar o porquê está acontecendo o efeito estufa, ou o porquê do aquecimento global entendeu, toda essa bagagem. (entrevista 1, linha 169 à 179) A questão da contextualização com a realidade profissional tida como compromisso se revelou quando, no caminho discursivo da entrevista, pedi para que ela comparasse sua atuação com os demais professores que passaram por sua trajetória acadêmica e, nos exemplos citados, dois grupos foram elencados: os alunos de Farmácia e os Bacharéis em Química, o que não significa que os alunos da Licenciatura não sejam alvo do seu esforço de contextualização. Porém, acredito que estes não sejam a sua prioridade, até por explicitar que essa contextualização não seja função de sua disciplina. Além disso, ela destacou o referido compromisso num tom que se afasta da valorização do formalismo matemático dado anteriormente, Prof. Maria: [...] Então eu procuro mostrar a necessidade do conhecimento, entendeu, que não é aquela coisa assim, formal, de botar derivada pra tudo quanto é lado, integral, sempre mostrado que 84 Os exemplos de contextualização ditos na entrevista foram para os alunos de farmácia e bacharéis. 73 faz parte, mas que tem algo além, que é super prático entendeu? (entrevista 1, linha 179 à 181) o que aponta para concepções que buscam aproximar a teoria da prática profissional, buscando dar utilidade ao conhecimento ensinado. Além disso, a professora Maria declara um fazer em sala de aula que procura dar voz aos questionamentos do aluno, “[...] Pra que eu preciso de Físico-Química? Aí eu começo, aqui, aqui, aqui... em tudo, um creme que você passa no rosto tem a parte cosmética, a parte de todos os fármacos, estabilidade de fármacos [...]”, concepção construtivista de aprendizagem, além de revelar a visão de professor como mediador, Prof. Maria: [...] “Olha, vocês que vão aprender Físico-Química, eu estou aqui pra ajudar” (entrevista 1, linha 156) Esses trechos destacados são indícios que apontam para uma influência da pesquisa em Ensino de Ciências nas concepções sobre o papel do professor e seus fazeres em sala de aula, promovendo conflitos que se revelaram nas contradições relatadas e que retratam uma professora que vem agregando, aos poucos, saberes pedagógicos aos seus saberes experienciais, advindos da pesquisa na área de Ensino de Ciências, validados nas outras disciplinas com currículos mais flexíveis que leciona, como a “instrumentação para o Ensino de Química” e as tutorias. Sobre essas últimas, a professora Maria as ressalta como ponto positivo da reforma curricular, e por isso serão discutidas no próximo episódio, quando essas questões serão retomadas e multiplicadas, analisando as concepções da professora sobre seu cenário de atuação. b) Professora Ana Diferente da professora Maria, a professora Ana teve contato com as disciplinas pedagógicas em sua formação inicial, mas ainda assim sua primeira experiência em sala pareceu ter o mesmo tom intuitivo da professora Maria, pois ela comenta, Prof. Ana: Aí 50 alunos, eu me vi ali em cima ... né...e foi! E aí depois que eu comecei a dar aula eu não quis saber de outra coisa, né? (entrevista 2, linha 31 à 32) 74 O acento dado a “eu não quis saber de outra coisa” revela que a primeira experiência com a sala de aula foi positiva e, como a professora Ana possui Licenciatura, perguntei sobre a contribuição que essas disciplinas tiveram para sua atuação em sala de aula, P: [...] A senhora teve na sua formação inicial contato com essas disciplinas, né? De que forma a senhora acha que essas disciplinas contribuíram para a sua atuação em sala de aula. Prof. Ana: Você vai criar um problema com a faculdade de educação, você vai ter que cortar essa resposta daí... [risos] Prof. Ana: Não contribuiu em nada! (entrevista 2, linha 85 à 90) No momento em que a professora coloca “Você vai criar um problema com a faculdade de educação”, fica evidente o direcionamento do discurso aos professores da Faculdade de Educação que participam da formação de professores e lecionam na pósgraduação, hipótese reforçada no trecho “você vai ter que cortar essa resposta daí”. Numa reflexão mais profunda, posso conjecturar também que conscientemente a professora anuncia que sua próxima declaração deveria ser cortada de meu estudo, por não dizer aquilo que os professores da Faculdade de Educação gostariam de ouvir, expondo aqui uma cautela que talvez passe pela dimensão política no que tange à repercussão de um trabalho que critique o processo formativo da mesma faculdade onde curso o Doutorado. Num breve adendo, exponho as conexões que inevitavelmente realizei com minha vivência no Mestrado em Química85 ao reler esse trecho da entrevista. No Mestrado, os “dados” que exibiam comportamentos experimentais inesperados de acordo com a literatura deviam ser suprimidos86 da apresentação e discussão da dissertação, postura que ratifica uma tradição científica de reprodução. Comparativamente e guardadas as devidas proporções, a professora Ana considera essa declaração “Não contribuiu em nada!” como um dado inesperado e contraditório para ser dito a um pesquisador da área de Educação, evidências do endereçamento de seu discurso. 85 Fiz Mestrado em Química na UFRJ, na área de Química de materiais na linha de nanotecnologia, estudo completamente alicerçado por experimentos que envolviam instrumentação específica e sofisticada. 86 Sombra do método científico que busca e reprodutividade dos dados e comportamentos exibidos nos estudos. 75 Apesar de ter sido enfática em dizer que não contribuiu em nada, essa contribuição pode ter sido mínima, mas não inexistente, pois diante da minha insistência na confirmação de que não houve contribuição, a professora Ana trouxe à tona uma professora de prática de Ensino (Madalena da Silva, nome fictício) de sua época formativa, P: Em nada? Prof. Ana: Em nada, em nada, apesar de que tem que abrir um parênteses tá, que na época a professora de Prática de Ensino, que era a Madalena da Silva. P: Era uma Prática de Ensino específica para Química. Prof. Ana: Era específica para Química. Ela, apesar de não ter formação na área de Química, ela era uma pessoa que em termos teóricos, né, de preparar, como que se prepara uma aula, e, era é uma pessoa muito séria, então, nós tínhamos realmente a carga horária de Prática de Ensino, a gente ia pra Faculdade de Educação e tinha aula, tá, então, isso era a realidade da minha época, na psicologia de educação, tem as disciplinas ate hoje, tem a psicologia da adolescência a gente lia e tinha que debater, né... E a prática de Ensino, toda a parte teórica, elaboração de planos de aula, né? E a gente ia pra frente, fazia fichinha, toda aquela dinâmica, né? Nós tivemos, porque ela não era, ela não tinha formação na área de Química né, então obviamente, mas ela era uma pessoa muito, como professora era muito boa né? [...] Então, da minha época eu não posso dizer mal das aulas, a qualidade da aula pelo menos eles cumpriam, direitinho, agora, não significou quase nada porque no currículo você tem aqui a marca de conhecimento ideal, é na área específica você ter três, quatro disciplinas, na verdade eram quatro, estrutura de funcionamento do 2° grau, psicologia e duas práticas eram 4 disciplinas... e não significou praticamente nada... Eu aprendi a dar aula, na sala de aula. P: Na prática mesmo. Prof. Ana: Na prática mesmo, então, a minha experiência foi na sala de aula... (entrevista 2, linha 91 à 112) A professora Ana, reconhece que a professora de Prática de Ensino em Química não tinha formação específica na área, mas “em termos teóricos, né, de preparar, como que se prepara uma aula, e, era é uma pessoa muito séria [...]” o que revela uma concepção de formação docente associada ao racionalismo técnico, das “receitas” de como dar aula, em voga na época formativa da professora. Apesar de reconhecer o esforço dos professores da área de Educação, pois cumpriram “direitinho” o programa, aquilo não significou praticamente nada para ela, que afirma ter aprendido “a dar aula na sala de aula”. Acredito que por trás dessa declaração existe também uma falta de identificação que culmina na Prática de Ensino específica dada por uma professora que não era Química. 76 Antecedendo a minha pergunta, a professora complementa sobre a situação atual do processo formativo da Licenciatura em Química. Nesse momento, acredito que sua experiência na frente da coordenação do curso, associada à percepção de minha intenção discursiva, impulsionou esse complemento espontâneo, Prof. Ana: E eu acho que piorou um pouquinho na medida em que o comprometimento das pessoas lá do... Infelizmente, apesar de ser amiga pessoal de alguns professores, eu acho que o comprometimento deles com a área de Ensino para as Licenciaturas, ela foi começar na pedagogia, a faculdade de educação, eu acho que o grande problema é esse, a visão deles é que eles formam pedagogos, e as Licenciaturas, “ah não isso aí bota o professor tal” e... P: segundo plano, né? Prof. Ana: Fica em segundo plano... (entrevista 2, linha 114 à 120) Nesse trecho, o comprometimento remete ao trecho citado anteriormente, quando ela coloca que na sua época formativa “a gente ia pra faculdade de educação e tinha aula” e o endereçamento do discurso é novamente anunciado com a ressalva que faz “apesar de ser amiga pessoal de alguns professores” , talvez por imaginar que esses professores lerão o estudo que realizo, além de considerar o que represento nesse diálogo, a figura da faculdade de Educação. A professora Ana coloca sua impressão de que o foco da faculdade de Educação seja a formação de pedagogos, sendo as Licenciaturas a última alternativa de escolha dos professores. Por outro lado, um estudo realizado por Maldaner (2003) revelou que os professores das faculdades de Educação se queixam do despreparo e da falta de motivação que os licenciandos manifestam nas disciplinas pedagógicas, o que pode contribuir para esse suposto preterimento por parte dos professores da faculdade de Educação. Esse despreparo pode ser consequência de uma visão pedagógica restrita que os licenciandos internalizam no contato com os professores das disciplinas de Química específica da universidade e do Ensino Médio. Essa perspectiva que centra na cobrança dos conteúdos conceituais é um comportamento declarado e considerado positivo pela professora Ana, pois ela se define como uma professora da “ala mais rígida” (entrevista 2, linha 269), não muito querida pelos alunos, mas comprometida em “passar o conteúdo e pedir ao aluno o retorno” (entrevista 2, linha 270). 77 Essa supervalorização dos conteúdos específicos conceituais da Química frente aos pedagógicos se revela em outras falas da professora Ana, quando questiono sobre a disciplina de Química Geral que lecionou, como destaco no trecho: P: [...] Na verdade eu sei que a senhora já foi professora de Química geral, inorg I, inorg II, inorg IV, mas para disciplina de Química geral que é um tipo de disciplina que você percebe muitos daqueles tópicos, daqueles conteúdos no Ensino Médio, né? Para essa disciplina, primeiro pra parte do nível superior, quais são os conhecimentos necessários que a senhora acha para lecionar essa disciplina no nível superior? Prof. Ana: Se eu fosse um professor da disciplina, ele tem que ter uma base muito grande, muito boa em Química inorgânica né? Eu acho que tem que saber muita Química inorgânica, tem que saber orgânica, porque eu acho que para você fazer determinadas relações, né, e a Química geral, como diz, ela está vinculada a um departamento de inorgânica onde na verdade ela deveria ser uma disciplina... P: Que é de todos né, todos os departamentos. Prof. Ana: É né, de todos, o próprio nome já diz né? é Química geral... P: É, a ideia é dar aquela visão panorâmica Prof. Ana: Exatamente, então, além de uma boa base de inorgânica ele realmente tem que ter uma visão geral, tem que ter uma boa base em Orgânica, em Físico-Química, e aí eu digo a você, que eu acho que eu passei a ser uma professora muito melhor de Química Geral quando eu percebi isso, porque como ela está vinculada à área de Inorgânica normalmente o professor de Química Geral se preocupa em dar aula de Química Geral para preparar para a Inorgânica, quando na verdade, né, você está preparando o aluno para todas as outras disciplinas. A grande base que ele tem pra poder ir em frente, para poder pensar as outras disciplinas. (entrevista 2, linha 121 à 139) Cabe ressaltar que mesmo que sua visão sobre as disciplinas de Química Geral (lecionadas no início da graduação) seja interdisciplinar, o que pode potencializar fazeres que conduzam os licenciandos a uma visão mais panorâmica e conexa da Química, percebo no discurso da professora o valor dado somente aos conteúdos específicos conceituais. Em nenhum momento, os saberes pedagógicos (que integram a docência) foram elencados como necessários, nem no momento em que ela retoma para destacar a importância da percepção dessa conectividade, dessa interdisciplinaridade. Essa perspectiva conteudista se ratifica quando a professora foi questionada sobre o papel do professor do Ensino Médio e nesse caminho discursivo ela localiza a transposição didática. 78 P: Entendi, e assim, qual seria a importância dessa disciplina de Química Geral, para a atuação do futuro professor de Química do Ensino Médio, pra senhora, na sua opinião? Prof. Ana: Eu acho que se ele tem uma boa visão dentro da Química Geral de estrutura atômica, ligação Química, tabela periódica, ele pode transportar e fazer a transposição para o Ensino Médio com qualidade, porque, ele tem que ter, ele tem que saber mais do que ele vai ensinar, né? Então, se ele tem uma boa base de Química geral, e consegue realmente entender todos os conceitos, ele pode fazer essa transposição de uma maneira muito mais agradável ao aluno e levando pro aluno que realmente precisa saber, não daquela maneira que você normalmente vê no Ensino Médio que o aluno tem que decorar determinadas coisas, mas, entender determinados conceitos, né? Para que ele possa chegar na universidade, independente da área em que ele vá atuar, não necessariamente precisa ser Química, pra que ele tenha uma visão de Química agradável, começando por alguma coisa que ele está presente em todo o cotidiano dele. (entrevista 2, linha 140 à 151) Os conhecimentos pedagógicos são irrelevantes no movimento da transposição didática segundo a professora Ana, como podemos perceber na entonação discursiva dada ao trecho “se ele tem uma boa base de Química geral [...] ele pode fazer essa transposição[...] levando pro aluno que realmente precisa saber”. Nesse sentido, o próximo questionamento (similar ao realizado com a professora Maria) foi sobre esse tema, a transposição didática. Questionei onde essa transposição poderia ser trabalhada e dei opções (assim como fiz com a professora Maria) para analisar suas concepções, como destacado abaixo: P: [...] Isso poderia ser feito na própria disciplina de Química geral, isso poderia ser feito nas disciplinas da área de educação? Ou isso poderia ser feito em disciplinas de interface, Química geral com educação. Pra senhora essa transposição poderia ser trabalhada em que disciplinas? Prof. Ana: É, o ideal é que a transposição fosse trabalhada em todas as disciplinas, essa é a visão das diretrizes curriculares, né? Que você tenha a disciplina com a parte teórica e que você dentro da própria disciplina você vá trabalhando isso, então, por exemplo, você faz uma estrutura atômica para o seu aluno e aí você tem um espaço dentro desta disciplina para que você possa trabalhar com ele, bom, eu estou lidando com os conhecimentos de estrutura atômica nesse nível, como você vai preparar uma aula, como você vai pegar esses seus conhecimentos, que são conhecimentos [...] mais avançados, como é que você vai passar isso para o aluno de Ensino Médio que tem uma maturidade ainda [...]em crescimento (entrevista 2, linha 155 à 164) A professora Ana, diferentemente da professora Maria, coloca como ideal que a transposição didática seja trabalhada em todas as disciplinas da Química específica o 79 que demonstra um certo conhecimento sobre as Diretrizes Curriculares para graduação e que serão discutidas posteriormente. Apesar de colocar essa prática como ideal a professora Ana apresenta, mais adiante na entrevista, os entraves para esse fazer dentro da universidade no curso diurno, destacando a possibilidade de fazê-lo no noturno, mas também com outras dificuldades, Prof. Ana: [...] só que é impossível você fazer isso dentro da universidade, por quê? Porque, porque você vai ter uma disciplina de licenciados, não é disciplina, uma turma de licenciados muito pequena. P: Então, assim, na própria logística da universidade as disciplinas acabam sendo mistas, porque... Prof. Ana: Não adianta, nós conseguimos com a reforma curricular manter turmas só de Química, não sei até quando... [...] Agora, na Licenciatura noturna daria para fazer, se as pessoas estivessem também preparadas para fazer isso,. P: [risos] É outra questão delicada né Prof. Ana: É outra questão delicada, então, o professor ele se prepara para, eu digo comum, não vejo separação não, eu vou ser de Química, eu vou me preparar, vou pegar vários livros para passar o conteúdo, tá? Então, o professor, eu acho que não é só na área de Química não, em todas as áreas, ele é conteudista mesmo, ele quer é passar o conteúdo, né? Agora, a aplicação disso deixa lá para a faculdade de educação, que por sua vez quando chega lá o professor da faculdade de educação ele está muito mais preocupado em como ensinar ele a dar aula... “Não você vai fazer assim, você vai fazer... A metodologia é essa, é aquela, não sei o quê”... e aí também não junta. Não, qual é o conteúdo que você tem, como é que eu vou pegar esse conteúdo agora e vou passar esse conteúdo para o meu aluno? Ninguém faz isso. (entrevista 2, linha 174 à 191) Destaco no trecho “eu vou me preparar, vou pegar vários livros para passar o conteúdo, tá? Então, o professor, eu acho que não é só na área de Química não, em todas as áreas, ele é conteudista mesmo ele quer é passar o conteúdo, né?” a professora não só reconhece seu perfil conteudista como naturaliza o mesmo na universidade. Apesar de um currículo reformado, a professora Ana ressalta a dificuldade em manter turmas constituídas somente por licenciandos na graduação diurna e na colocação “Agora, a aplicação disso deixa lá para a faculdade de educação”, a professora Ana externaliza, num tom crítico, de discordância, não só a opinião da professora Maria como a de seus outros pares de profissão que atuam na Química específica, no que tange à responsabilidade da formação docente. 80 E na sequência localiza o desencontro que ainda ocorre entre os saberes da Química específica e os pedagógicos (ambos saberes da formação profissional), quando finaliza com a declaração: “e aí também não junta”. Além de revelar suas concepções sobre a formação docente na faculdade de educação permeada, prioritariamente, por metodologias de Ensino, “quando chega lá o professor da faculdade de educação ele está muito mais preocupado em como ensinar ele a dar aula...”, sua opinião é afetada por sua vivência de formação, impregnada pelo racionalismo técnico e sem uma identificação com as disciplinas da pedagogia. Ademais, percebo a lacuna existente na dimensão formativa do futuro professor de Química, pois a transposição didática dos conteúdos específicos da Química parece, nas palavras da professora, algo que “Ninguém faz”. Retomo aqui o reconhecimento dessa transposição realizada nas disciplinas específicas como algo ideal, como declarado nas falas iniciais da professora Ana, mas que esbarram em dificuldades que vão desde a logística de distribuições das turmas da Universidade até o despreparo dos professores, justificativas direcionadas para mim, o pesquisador em Educação. c) Professor José O professor José, Químico com atribuições tecnológicas, não teve contato em sua formação inicial com disciplinas de cunho pedagógico e dessa forma inicio essa análise destacando o momento da entrevista em que pergunto para esse professor como isso afetou sua primeira experiência em sala de aula, acrescentando: P: [...]Como o senhor avalia esse primeiro... essa primeira experiência em sala de aula? Prof. José: Certamente teria sido muito interessante ter tido uma formação em Licenciatura também. Mas a UFRJ, ela não tinha essa opção de químico com Licenciatura, então eu tive que aprender para ministrar aula, especialmente na graduação, foi no dia a dia, né? P: Entendi. Prof. José: E, claro, lendo bastante, muitos livros, muitos artigos, isso pôde ter, eu espero, parcialmente solucionado, né? Mas a formação de Licenciatura, realmente é muito importante. (entrevista 3, linha 40 à 49) O professor José, assim como as professoras Maria e Ana, coloca que os seus conhecimentos necessários para lecionar foram adquiridos na prática, no dia a dia como docente. E mesmo que tenha ratificado em dois momentos do seu discurso a 81 importância da formação em Licenciatura, em um deles, inclusive declarando que seria interessante ter tido essa possibilidade de formação, acredito que essa valorização tenha ocorrido por efeito da direcionalidade discursiva, pois o mesmo coloca mais adiante no fluxo da entrevista que acredita que a leitura de livros e artigos, cujo assunto ele não detalha, possa ter solucionado essa carência formativa, indícios que esboçam um perfil conteudista a ser confirmado em outros trechos da análise. Acrescenta ainda que essa carência formativa teve algum peso, principalmente no começo, mas que um professor compromissado com a questão didática pode superar essa carência, como coloca, Prof. José: [...] quando você está preocupado não só com a qualidade, com a questão técnica, com a questão de ministrar os conceitos; quando você tá preocupado também com a questão didática, né, muita coisa você consegue passar para o aluno, acredito que passei bem as coisas, né, os conceitos, porque você se coloca na posição do aluno, você está ali sem conhecer nada do assunto, e você precisa conhecer o conceito e saber aplicar o conceito. P: E aí, se colocando no lugar do aluno, traçar as estratégias de como... Prof. José: De como ensinar aquilo, né, e como fazer o estudante, como motivar o estudante a estudar aquilo, mesmo aquele estudante que não gosta do tema, você tenta deixar o estudante bem [...] motivado, para estudar aquele tema. Você fala da importância do tema, né, para a vida profissional dele, como a vida profissional de um modo geral, e começa a ministrar aquilo partindo da completa, ou quase completa, ausência de conhecimentos sobre o conteúdo. (entrevista 3, linha 53 à 65) Em sua fala, o professor elenca alguns quesitos que possibilitam uma boa aprendizagem, como a “questão técnica”, a motivação e a contextualização do conteúdo, e é possível perceber a racionalidade técnica que permeia esse discurso, a valorização da didática numa perspectiva instrumental ratificada no trecho “e começa a ministrar aquilo partindo da completa, ou quase completa, ausência de conhecimentos sobre o conteúdo” não considerando que os licenciandos geralmente apresentam algum conhecimento, mesmo que muito superficial ou alternativo87, sobre Química orgânica88 e esses conteúdos poderiam servir de pontes para aprendizagem significativa, 87 As concepções alternativas são aquelas apresentadas pelos estudantes sobre um determinado assunto e que diferem das concepções aceitas pela comunidade científica. 88 Conhecimentos advindos do Ensino Médio e avaliados a partir de um exame discursivo específico de conhecimentos de Química e Matemática que integram a segunda fase do vestibular. 82 ressignificação e/ou aprofundamento, o que requer uma postura que permita o protagonismo dos alunos. Quando perguntado sobre os conhecimentos necessários para lecionar as disciplinas de Química Orgânica da graduação, o professor ressalta sua formação nas pós-graduações, colocando que esses cursos aprofundaram e amplificaram sua visão sobre a Química e oportunizaram também uma visão mais inserida no cotidiano. Sobre esse último aspecto, coloca que o professor deve, com o estudante de maneira geral, fazer com que “ele compreenda o conceito, saiba usar o conceito” (entrevista 3, linha 93 à 94) e identifique esses conceitos no dia a dia e aponta uma lacuna formativa nessa questão: “os estudantes89 conhecem o conceito, mas não sabem identificar no dia a dia. Isso é um buraco enorme” (nota minha, entrevista 3, linha 97 à 98). Esse tom aplicacionista do Ensino, na perspectiva do professor José, deve permear também os fazeres dos professores do Ensino Médio, pois ele coloca que esse professor Prof. José: [...] tem que conhecer os conteúdos, tá, não tem duvida, tem que conhecer a parte didática. Mas eu acho que ele tem que aprender a aplicação daquilo, porque realmente só conhece um conteúdo quando você sabe aplicar. (entrevista 3, linha 130 à 132). No trecho “porque realmente só conhece um conteúdo quando você sabe aplicar” o professor traz à tona um dos objetivos mais almejados no Ensino de Química para formar o cidadão, que é muni-lo de informações científicas encharcadas de realidade, possibilitando a tomada de decisões e a emissão de opiniões comprometidas com seu contexto social. Obviamente que essa consideração só faz sentido se levo em conta que o valor da aplicação dado pelo professor supera a dimensão puramente tecnológica para abarcar também as dimensões sociais, políticas, históricas, econômicas e culturais (CHASSOT, 2004). A crítica direcionada aos conteúdos curriculares da Química no Ensino Médio: “há de se fazer um filtro muito grande no conteúdo do Ensino médio, e mostrar como a Química está inserida no dia a dia das pessoas” (entrevista 3, linha 136 à 137) são indícios de que essa aplicabilidade vem ao encontro dessas dimensões. 89 Aqui ele faz referência aos alunos da graduação. 83 No entanto, para o professor, essa visão mais profunda e aplicada da Química só pode ser alcançada se o professor do Ensino Médio buscar uma formação em nível de pós-graduação, Prof. José: [...] Eu acho que o professor do Ensino Médio também deveria fazer uma pós-graduação, é fundamental, porque ele vai ver alguns conceitos mais modernos que explicam alguns passos que ele não conseguia explicar com os conceitos que ele aprendeu na graduação. Isso é muito comum, que a graduação nós não conseguimos passar todos os conceitos pro estudante, porque a primeira vez que ele tá aprendendo aquele tema ali como Química Orgânica, ele não tem maturidade pra absorver todos os conceitos, nós temos que saber trabalhar com o momento das pessoas, né? E alguns conceitos são realmente um pouco mais difíceis, né? Então, o estudante tem uma dificuldade, né? Então, se ele levar apenas essa visão para ensinar ao professor do Ensino Médio, ele certamente vai deixar alguns buracos, né, algumas coisas sem explicação. (entrevista 3, linha 162 à 170) O professor José valoriza a pós-graduação no que tange ao aprofundamento dos conhecimentos específicos, o que traz, consequentemente para ele, o aprimoramento do fazer profissional do professor. Na perspectiva do professor, sem a pós-graduação, o professor deixaria “alguns buracos” ao lecionar. Ainda na questão dos conhecimentos do professor de Ensino Médio, perguntei ao professor José em que momento a transposição didática entre os conhecimentos do Ensino Superior e do Ensino Médio poderia ser trabalhada com o licenciando em formação, e num primeiro momento o professor colocou, P: [...]Pensando numa formação ideal, quais seriam as disciplinas que poderiam trabalhar essa transposição didática? Prof. José: É, bom, a Química Geral e Inorgânica e Físico-Química, Orgânica, seriam certamente disciplinas que poderiam fazer isso, né? Agora, eu sinto um pouco da falta da inserção da Bioquímica nisso aí tudo, até pra ensinar a biologia ao estudante do Ensino Médio, tá? (entrevista 3, linha 209 à 215) Nesse momento o professor se coloca sobre a importância da interação entre a Bioquímica e a Química Orgânica. Buscando confirmar sua ideia sobre em que momento a transposição didática poderia ser trabalhada, retomo a pergunta, P: a transposição didática poderia ser feita em cada disciplina durante a Licenciatura, ou a transposição didática, ela vai ficar na verdade a cargo da responsabilidade das áreas pedagógicas? 84 Prof. José: É. Olha só, tem um problema, quando você se forma em Licenciatura, né, você está apto para trabalhar não só no Ensino Médio, como também numa universidade particular, ou até universidade pública. [...] Então, você não pode deixar de ter aquele conteúdo básico que você pode querer trabalhar assim nas universidades. Então, você cortar conteúdo, você vai estar limitando a pessoa na questão de um segmento de atuação, seria dar aula em universidades, tá? Agora, para trabalhar isso visando ao Ensino Médio, eu acho que na faculdade de educação, poderia se pegar alguns conceitos e contextualizá-los no Ensino Médio. (entrevista 3, linha 230 à 241) No trecho, “quando você se forma em Licenciatura, né, você está apto para trabalhar não só no Ensino Médio, como também numa universidade particular, ou até universidade pública” (grifo meu) fica evidente a ideia de que para o professor a formação oferecida para o licenciando não é adequada para ele atuar nas universidades públicas, locus consolidado de uma formação de excelência. Assim como a professora Maria, o professor José remete a transposição didática para as faculdades de educação, contradizendo a ideia expressa no primeiro momento em que pergunto sobre a transposição didática. Além disso, o professor compartilha da noção de que as contextualizações e adaptações que podem ser realizadas nos conteúdos do nível superior são, necessariamente, fazeres que “cortam” outros conteúdos e que limitam a atuação do profissional, visão ratificada no trecho abaixo, Prof. José: Na faculdade de educação, eu acredito. Eu sei que ali tem suas necessidades, né? Mas eu acho que esse tipo de coisa trabalhado lá, junto com os educadores, eu acho que daria mais resultado do que aqui. Nós podemos fazer isso aqui, não é o problema, a questão é o número de horas que nós temos pra administrar... pra ministrar uma carga horária muito grande, com muito conteúdo e como é que nós vamos ainda fazer isso. É muito difícil. (entrevista 3, linha 244 à 248) Interessante perceber que a aplicabilidade dos conhecimentos tão valorizada pelo professor José não tem lugar quando o foco é o licenciando, e que o mesmo se exclui do grupo de educadores envolvidos nesse processo formativo do professor de Química por acreditar que esse papel surta mais resultado “lá, junto com educadores”. Outro aspecto que será discutido posteriormente é o trecho em que ele destaca o número de horas que o professor universitário tem de administrar. Acrescento que, quando perguntado sobre o papel da escola na formação do licenciando, o professor não só coloca como fundamental, como considera que essa experiência no estágio supervisionado deve estar fortemente ligada à faculdade de 85 educação, ratificando a responsabilidade da transposição didática no trecho “visando justamente contextualizar o conceito que o estudante aprendeu aqui, e como ele vai passar para o Ensino médio” (entrevista 3, linha 263 à 264). A partir de suas considerações é possível perceber que a questão do conteúdo é de extrema importância para o professor José e que o mesmo considera que a formação do futuro professor de Química deva ocorrer na Faculdade de Educação. d) Professora Lucia A professora Lucia apresenta duas graduações, uma em Licenciatura em Química e outra em Pedagogia. Diferente das outras análises onde iniciei perguntando sobre a primeira experiência em sala de aula, questionei nesse caso, se sua ida à Pedagogia ocorreu por alguma deficiência encontrada na formação da Licenciatura, ao que ela responde: Prof. Lucia: Não. P: Ou foi um desejo pessoal mesmo de... Prof. Lucia: Foi assim, foi... O que acontece? Como eu tenho essa carreira tão diversificada, eu na época, eu precisei trabalhar cedo. Então, eu fui professora com 18 anos, fiz a faculdade de Química enquanto trabalhava. Quando concluí meu curso, estava procurando emprego, e demorei um pouco a conseguir um emprego como professora de Química, nesse intervalo, eu percebi que no município do Rio de Janeiro onde eu era empregada, se eu tivesse um curso de Pedagogia, eu sairia da condição de professora das séries iniciais para o cargo de nível superior. Então, isso pra mim foi vantajoso. (entrevista 4, linha 55 à 64) Apesar da procura pelo curso de Pedagogia ter sido motivada por interesses de carreira como funcionária municipal, essa busca agregou mais conhecimentos à prática da professora que, ao perceber minha intenção discursiva, complementa sobre sua formação na Licenciatura em Química, Prof. Lucia: Se você me perguntar pela qualidade da minha formação pedagógica no curso de Química, eu diria pra você que eu sinto sim, que haveria muitas deficiências, muitas defasagens. P: Essa é a próxima pergunta [...] Já que você teve formação inicial, esse contato com as áreas, com as disciplinas pedagógicas como no seu curso de Licenciatura em Química, em que medida essas disciplinas contribuíram pra sua atuação como professora de Química no Ensino Médio? Prof. Lucia: Pouco, na verdade, pouco. Por quê? Lá na escola normal que eu tinha cursado ainda muito jovem, eu já tinha, eu já obtive uma formação pedagógica que eu considero relevante, e eu já tinha uma experiência docente. Quando fui fazer a Licenciatura, ainda era aquele 86 tradicional modelo 3+1, que hoje em dia já caiu em desuso, felizmente né, então a gente ia pra Faculdade de Educação, olhar para os fundamentos da educação pra atuar como professor ou professora, assim, de uma forma muito descasada da formação de químico, a não ser a parte de prática de Ensino propriamente, mas que ainda assim era... um pouco superficial, era vamos dizer... era mais raro. Os encontros com a professora de prática eram poucos, eram no Colégio de Aplicação, o meu foi feito na UFRJ [...] com a obrigação de dar uma aula. Então, aí que você vai pros fundamentos, Psicologia da Educação, aquela aula de Psicologia da Educação, ela não me adiantava muito porque eu já tinha feito Psicologia da Educação antes e de uma forma bem interessante. Filosofia da Educação; Fundamentos, fundamentos não, a parte de estrutura, legislação e tudo mais, então essa parte do meu curso, na formação de licenciada em Química, não foi boa não, não foi boa. E depois a Pedagogia, me ajudou muito. Quando eu fui pra Pedagogia, aí aprendi mais um monte de coisas, mas a formação para lecionar, ela era muito secundária na minha formação como um todo. (entrevista 4, linha 68 à 89) Assim como a professora Ana, a professora Lucia coloca as mazelas de seu processo formativo na Licenciatura em Química, como a superficialidade da Prática de Ensino e a falta de identificação das disciplinas que fundamentam a Educação com as disciplinas da formação específica da Química. Sobre os conhecimentos valorizados ao lecionar a sua disciplina, pesquisa e prática de Ensino, a professora indica a importância da linguagem, do conhecimento pedagógico e das especificidades do Ensino de Ciências na abordagem CTS (Ciência, Tecnologia e Sociedade), além do conhecimento epistemológico pelo professor, Prof. Lucia: [...] o professor é profissional que lida com a fala, com o texto escrito, não é? Se você não se comunica bem com o seu aluno, se você não vai de fato ter uma linguagem que o auxilie a construir o conhecimento, ajudá-lo a se desenvolver, não dá. Você tem que ser um professor que compreenda que o estudante ele reelabora conhecimento, então esses aspectos da psicologia da aprendizagem é tão importante conhecer. ... a epistemologia é fundamental, história e filosofia das ciências é fundamental, a questão do envolvimento... desse novo paradigma que a gente tá elaborando, das relações ciência sociedade. A ciência é parte da cultura, o homem constrói ciência, a ciência impacta a vida do homem, eu acho que a gente pra ser professor de Ciências, tem que estar aberto a isso, sem contar a questão da própria construção do conhecimento científico, sair do empirismo ... para estar numa experimentação de uma forma mais construtiva de fato; elaborar hipóteses; testar hipótese. Esses conhecimentos todos eu acho que tem que estar presentes na formação do professor. (entrevista 4, linha 102 à 113) 87 A professora Lucia, deixa claro em seu discurso que está a par das discussões mais recentes da área de Ensino de Ciências, pelo conjunto de contrapalavras que utiliza para responder a essa pergunta. Quando desloco o foco para a importância dessa disciplina para o futuro professor de Química, a professora a coloca como fundamental, uma vez que pode potencializar a formação do professor que reflete sobre sua própria prática. Prof. Lucia: [...] Então, quando a gente fala de professor reflexivo, professor que questiona sua própria prática, que aprende com ela, né, que reflete no sentido de se autoavaliar, de avaliar durante o seu percurso docente, frente as suas turmas, que impacto que a sua aula tem. Formar um professor que reflete sobre a sua própria prática, que constrói, elabora conhecimento da prática com isso, eu acho que é super importante. E a prática de Ensino está aí pra isso. Então, como é que eu vejo um percurso interessante na disciplina prática de Ensino? Começando por aí, fundamentar a reflexão do futuro professor. A gente trazer conhecimentos que sejam a base dessa reflexão, pra que a reflexão não seja achismo. Você reflete, mas reflete porque tem base pra avaliar sua própria atuação. Então eu acho que é isso, respondi? (entrevista 4, linha 124 à 132) A direcionalidade do discurso aqui proferido deve ser considerada. A professora já havia respondido que considerava sua disciplina fundamental para a formação do professor reflexivo, mas resolve detalhar sua concepção de professor reflexivo, buscando da minha parte uma resposta, saber se estava respondendo àquilo que eu gostaria de ouvir, fato marcado pela entonação expressiva dada ao “respondi?” no final de sua fala. Retomando o fato de que essa professora criticou sua formação inicial, centrada no currículo (3+1), e que essa modalidade formativa permeou durante anos a universidade, pergunto: P: [...] Agora, como professora atuante de prática de Ensino, o que a senhora faz pra tentar afastar essa formação que durante um bom tempo dominou a universidade? Essa formação, digamos, fragmentada. Só um adendo, eu entrevistei alguns professores, todos eles, também como a senhora, com uma larga experiência no Ensino, né? E eles colocaram também essa deficiência da área pedagógica. Então, hoje, o que a senhora faz pra tentar ser diferente nessa formação? Prof. Lucia: Eu busco resgatar um pouco, quer dizer, recorrer aos conhecimentos que eu acredito que estejam nas outras disciplinas da base pedagógica da formação. Então justamente, a psicologia da aprendizagem, a didática, e a estrutura de Ensino, a organização de Ensino. Então, a gente vai trabalhando e recorrendo. Agora, é claro 88 que tem um plano pra minha disciplina, né? Então nesse plano da disciplina, da forma como eu a tenho construído, e sem dúvida que eu recorro às ementas que a universidade preparou, mas não fui eu que preparei, não me afasto daquilo. Mas, claro que cada um de nós, tem uma interpretação e dá o seu toque. (entrevista 4, linha 135 à 147) Nesse primeiro momento, a professora coloca em seu discurso que procura resgatar das outras disciplinas os conhecimentos da base pedagógica sem fugir da ementa proposta para sua disciplina, admitindo que a dimensão pessoal faz parte da profissão docente, dando “seu toque” à disciplina e complementa posteriormente – agora de forma mais específica – falando de seus fazeres. A professora descreve uma metodologia em que o aluno exerce o tempo todo o protagonismo e segundo ela é levado a refletir sobre sua atuação, ou debatendo os artigos levados para os encontros ou relatando suas experiências na instituição de Ensino onde estão estagiando. Nesse movimento, outras questões são colocadas ao aluno, como as inovações para o Ensino de Química, o papel do professor, Prof. Lucia: [...] eles vão conhecer a instituição escolar, vão conhecer a aula, vão conhecer os recursos didáticos, as questões de inovação que a gente traz ainda aquela coisa de professor, de fato, que só transmite, porque isso tá muito na linguagem, a gente aprende muito como aluno, né, a gente se forma professor sendo aluno. Então, quando o estudante, ela fala: Ah, professora, eu preciso aprender a transmitir a matéria. A gente começa a desmistificar um pouco isso, que transmitir, você não vai transmitir não, você é um auxiliar do aluno, é ele que tá aprendendo. Então, como é que você vai ajudá-lo a aprender? O que vai fazer pra ajudar? Não é transmitir. Há um momento da transmissão, você é fonte de conhecimento, o professor é fonte de conhecimento, ele não pode sonegar isso. Mas ele não é só fonte de conhecimento, ele tem que ajudar o aluno a recorrer a outras fontes. Olha o livro didático, olha a internet, enfim, um filme... (entrevista 4, linha 153 à 162) Importante destacar a busca da professora em conscientizar o licenciando de que o professor não é um mero transmissor de informações, e sim um mediador, o que revela suas concepções construtivistas de ensino, como podemos observar no trecho, “Ah, professora, eu preciso aprender a transmitir a matéria. A gente começa a desmistificar um pouco isso, que transmitir, você não vai transmitir não, você é um auxiliar do aluno, é ele que tá aprendendo”. A professora continua descrevendo os momentos das práticas de Ensino, onde o primeiro está centrado na observação do ambiente escolar, como a aula se organiza, as 89 metodologias que o professor utiliza e o que os alunos apontam de positivo e negativo nesse exercício de observação supervisionada. Na sequência, coloca a importância dos projetos, como eles se estruturam, a questão do Ensino em espaços não formais, como museus e centros de ciências, e culmina no estímulo à escrita de artigos, como produto de todo projeto desenvolvido no decorrer das disciplinas. Percebo na estrutura descrita pela professora uma intenção de formar professores que estejam não só atualizados com as pesquisas educacionais, mas que também produzam pesquisas educacionais, vindo ao encontro do perfil de professor-pesquisador colocado nas Diretrizes para formação de professores na UFF. Com relação à questão da transposição didática, apresento a questão do aluno do curso de Licenciatura em Química passar durante sua formação por uma série de disciplinas que encontram eco no Ensino Médio, perguntando qual disciplina ou quais ela considera que devem ser responsáveis pela transposição didática, P: [...] Onde se faz a transposição didática? Eu gostaria de saber qual é a sua opinião a respeito disso, onde se deve trabalhar a transposição didática? Prof. Lucia: Eu acho que devia ser compartilhado. Por quê? Se deixar por conta da didática, a didática vai... A didática vai auxiliar, vai pontuar alguns aspectos importantes pra que o centro de referência faça sentido com a ciência escolar.[...] Mas ela não pode estar sozinha, é aquilo que eu falei a você, os professores das disciplinas que compõem a ciência de referência, aquela parte específica, eles já podiam estar [...] trabalhando essa questão do sentido que eu acho que falta muitas vezes, né? Como um professor está trabalhando, propriedades coligativas ou questões da termodinâmica. Ele já não pode dentro da estrutura daquilo que ele... dentro da sua ciência específica, já não pode estar buscando trazer o sentido? Eu acho que ele pode estar trazendo o sentido, porque senão depois fica descolado. Que horas que a didática vai fazer, a que horas, quando, que a didática vai fazer isso, né? Que horas que a prática de Ensino vai fazer isso? Seria preciso buscar oportunidades, seria preciso que a prática de Ensino e a didática, buscassem oportunidade, quando lá na ciência de referência, a oportunidade vai aparecendo, porque já está estudando aspectos químicos. Por que não trabalhar de alguma forma a reflexão, o conhecimento, de que sentido aquilo faz... para as pessoas em geral? [...] Parece que... Que é muito pura, é uma ciência muito pura, mas ela não é tão pura assim, visto que ela pode ser importante pra todas as pessoas. Naquela hora ali que tem que procurar e ir trabalhando, fala rapidinho, mas fala. (entrevista 4, linha 463 à 494) A professora Lucia considera que a transposição didática deveria ser trabalhada de forma compartilhada com a sua disciplina e considera que a disciplina de 90 “referência” (nomenclatura dada pela professora para as disciplinas específicas de Química) tem oportunidades para isso. No entanto, no trecho “fala rapidinho mas fala” fica claro a percepção que a professora recém chegada à UFF possui sobre sua atmosfera de trabalho, permeada pelo Ensino tradicional, em que debates como esses são encarados como perda de tempo diante do volume de “matéria” a ser lecionada pelas disciplinas da Química específica. Segundo a professora, é preciso “conscientizar mais os professores universitários de que eles também são professores” (entrevista 4, linha 282 à 283) e sugere que os professores se envolvam em cursos de aperfeiçoamento, palestras e debates sobre a prática docente para que a formação oferecida melhore. Culmino esse debate inicial perguntando para a professora Lucia sobre o papel da escola na formação dos professores, Prof. Lucia: Ah, é fundamental. Pro bem, pro mal, tem aluno que vem pra escola, que recebe bem, que o professor é um bom exemplo, onde eles aprendem nessa observação, muitos truques do cotidiano docente e serão muito bem vindos. Outros não, outros vão pra escola, mas eles observam um monte de problemas. Mas até isso também faz parte da formação, desde que a gente dialogue, na prática de Ensino leve os meninos a dialogarem, com todo respeito à ética, é claro. Mesmo que a gente às vezes critique algum ocorrido, eles precisam ser orientados de que essa observação crítica se existe, ela vai ficar fechada em quatro paredes, porque a escola nos recebe bem, nos acolhe, e contribui pra formação deles mostrando qualidade e defeitos, mostrando onde acerta e mostrando onde erra. Então, temos que respeitar isso todo tempo. Agora, se eles não estiverem na escola, como é que eles vão aprender isso? Então, essa parceria com a escola é fundamental, fundamental. (entrevista 4, linha 299 à 308) Assim como a professora Maria e o professor José, a professora Lucia coloca o papel da escola como fundamental. No entanto, ela sugere uma situação que difere daquela colocada por Maria, onde o estagiário se apresenta apenas como espectador, sem estar inserido na rotina escolar. e) Relação entre os professores nesse episódio Após a análise das opiniões do quarteto de professores entrevistados nesse episódio, posso perceber algumas similaridades e diferenças, colocadas aqui na forma de tópicos seguidos das discussões, da mesma forma que realizei pontes entre as suas 91 “impressões digitais”, e que poderão ser retomadas para subsidiarem novas discussões; são elas: A professora Maria e o Professor José, Engenheira Química e Químico com atribuições tecnológicas respectivamente, pautaram seus primeiros fazeres em sala intuitivamente, postura semelhante à da professora Ana, quando descreve sua primeira experiência em sala de aula. A ausência das disciplinas pedagógicas na formação inicial e no início da carreira desses professores não significa, necessariamente, que eles tenham realizado mediações inadequadas em sala de aula, mas potencializa essa possibilidade e pode ter trazido lacunas formativas para os licenciandos (MALDANER, 2003). Outra consequência da ausência dessas disciplinas é – dependendo da trajetória formativa do professor e da influência da comunidade docente da Universidade – a permanência de uma visão pedagógica restrita da atividade docente, que centra o processo de Ensino de Ciências na transmissão e cobrança de conteúdos científicos prontos, acabados e inquestionáveis, em que não há lugar para problemas de Ensino já que é atribuída ao licenciando a responsabilidade pela ineficiência desse processo (SCHNETZLER,1994, apud MALDANER, 2003). Ademais, suponho que, inicialmente, o saber experiencial desses professores foi se constituindo permeado prioritariamente pelos saberes disciplinares (de sua trajetória escolar) e curriculares (da atmosfera de fazeres dos seus pares de profissão da UFF), sendo enriquecido por outros saberes durante sua carreira. Um adendo sobre a professora Maria: essa professora teve contato com o curso de Especialização em Ensino de Ciências, que oxigenou em parte suas concepções sobre Ensino. Coloco em parte devido a hesitação já comentada no início de sua análise sobre a base de conhecimentos pedagógicos e que se confirma, em outros momentos, por algumas posições tradicionais com relação à funcionalidade de sua disciplina para o professor de Ensino Médio. As duas professoras Licenciadas (Ana e Lucia) consideram que sua formação inicial foi deficiente para sua atuação em sala de aula, consequência da formação pedagógica setorizada à qual as professoras foram submetidas. 92 Essas professoras viveram o dilema do “abandono ou da alienação” citado por Schön90, no viés do abandono, pois mesmo tendo uma formação direcionada para Licenciatura, no início de suas carreiras, seus fazeres estavam permeados prioritariamente pelos saberes disciplinares e curriculares como os professores não licenciados e acredito que o fato de sua Licenciatura ter sido direcionada ao Ensino Médio tenha contribuído em alguma medida para esse abandono. A Universidade carece de cursos de formação continuada para seus próprios professores, cursos que debatam as especificidades do Magistério Superior, que ponham em cheque o processo de ensinar e aprender que acontece na prática universitária e que estimulem a criação coletiva de propostas desvinculadas dos pressupostos que caracterizam o Ensino tradicional91. A transposição didática dos conteúdos para a professora Maria e para o professor José é de responsabilidade das disciplinas pedagógicas, devido ao formalismo que permeia as disciplinas do nível superior. Segundo o professor José, um dos fatores que contribuem para que essa transposição didática não seja realizada nas disciplinas específicas é “o número de horas que nós temos pra administrar... pra ministrar uma carga horária muito grande, com muito conteúdo e como é que nós vamos ainda fazer isso. É muito difícil”. Essa falta de tempo é uma fala que permeia os discursos de muitos professores e engessa as possibilidades de melhoria da qualidade educativa. Entender esse movimento como algo que rouba um “tempo precioso” para ministrar os conteúdos é também consequência da visão pedagógica restrita aludida no tópico anterior associada à visão tradicionalista de Ensino, que concebe cada disciplina como um espaço próprio de domínio de um conhecimento específico, que não admite “invasões disciplinares” e que – permeados pela lógica de que o aluno aprende ouvindo e reproduzindo – defende a necessidade de muitas horas de aula para o desenvolvimento da matéria “em todo seu formalismo” (como disse a profa. Maria). Segundo a profa Maria, a matematização92 dos fenômenos é uma característica da disciplina de Físico-Química. No entanto, retomo que todas as equações associadas a esses apresentam limitações. Afinal, ao contrário do que supuseram os positivistas, a 90 Explicado no tópico 2.3. Localizados no tópico 2.4. 92 Em outras palavras, a formulação de equações matemáticas que descrevem os fenômenos naturais com o auxílio de variáveis mensuráveis experimentalmente. 91 93 natureza não é perfeitamente legível e nem previsível, mas sim complexa. Todos esses modelos matemáticos apresentam raízes epistemológicas que se debatidas poderiam levar os alunos à compreensão das limitações de cada formulação, mas, pelo que parece, essa discussão não faz parte do escopo de conteúdos debatidos na disciplina. Todo conhecimento apresenta raízes epistemológicas que precisam ser debatidas e contextualizadas historicamente, o conhecimento deve ser percebido como algo provisório, relativo e transitório. Corroborando com essa visão Chalmers coloca sobre a ciência aos fenômenos naturais afirmando que, [...] não há palavra final sobre os fatos e os fenômenos que ela (ciência) procura explicar. As explicações mudam. Os cientistas sempre estão dispostos a rediscutir o que “já foi descoberto” e descrever e interpretar sob novos enfoques o que já era tido como conhecimento, bem como reelaborar e reinterpretar a sua história. Parece não haver explicação definitiva sobre nada que diz respeito a algo tão “objetivo” como a natureza. (p. 98, 1993 apud MALDANER 2003) Mesmo que vivamos hoje num universo de incertezas em que a complexidade esteja sempre presente, os futuros professores ainda carecem de uma formação para esse novo paradigma que estabelece novas relações que contemplam desde os conteúdos até as formas de lecioná-los. A impressão é que ainda persistem ideias de ciência imutável e acrítica em muitas disciplinas da Química específica. Para a professora Ana, a transposição didática deveria ser realizada (em uma situação ideal) em todas as disciplinas da Química específica, e a professora Lucia acrescenta que essa transposição deveria ser compartilhada entre sua disciplina e as disciplinas da Química específica (categorizada por ela de disciplinas de referência). As professoras apresentam uma opinião que vem ao encontro dos princípios norteadores das Diretrizes Curriculares para Graduação, que, em seu parecer nº CNE/CES 583/2001 (publicado em Diário Oficial no dia 29/10/2001), assinalam alguns princípios para formação docente no nível superior, entre esses princípios, o item 7: Fortalecer a articulação da teoria com a prática, valorizando a pesquisa individual e coletiva, assim como os estágios e a participação em atividades de extensão; Essa questão de como o licenciando pode transpor os conhecimentos “mais avançados” (nas palavras da profa. Ana) de uma determinada disciplina para um 94 público com maturidade ainda em formação (que é o caso dos alunos do Ensino Médio) pode servir como um incentivo à pesquisa pedagógica e contribuir para a formação do professor crítico-reflexivo, como apontado nas Diretrizes para a Política de Graduação na UFF93. No entanto, isso requer um maior comprometimento por parte dos professores universitários com a formação pedagógica dos licenciandos, pois, segundo Maldaner, Os professores universitários se comprometem pouco, muito aquém do necessário, com essa questão da formação de professores e com a sua autoformação pedagógica, deixando para um outro grupo, geralmente externo ao curso, a formação didático-pedagógica de seus alunos que desejam se licenciar e exercer o magistério. (2003, p.47) A professora Lucia, concordante com essa questão, colocou que é preciso “conscientizar mais os professores universitários de que eles também são professores”, o que ratifica a ideia de que esse comprometimento com a formação pedagógica ainda não é uma realidade na Licenciatura da UFF. As professoras Ana, Maria e o professor José (atuantes das disciplinas de Química específica) apresentam um perfil de valorização ao conteúdo e revelam em seus discursos um esforço para contextualizar os conhecimentos específicos. No entanto, com exceção da profa. Ana, essa contextualização não alcança a realidade dos licenciandos, a sala de aula, e a falta dessas pontes entre esses saberes profissionais, ou seja, essa fragmentação, potencializa hiatos na formação docente. Esse preterimento no que tange à contextualização pode estar associado à crise profissional que o magistério atravessa (localizado no capítulo 2) e que afeta em alguma medida as prioridades de contextualização profissional nas salas de aula com turmas mistas. Ainda que o licenciando seja preterido, o esforço em contextualizar o assunto é uma atitude que não só potencializa aprendizagens significativas para o exercício profissional do licenciando, como também provoca reflexões fundamentais nesse licenciando sobre o currículo do Ensino Médio. Ademais, pensando nos desmembramentos dessa atitude, formar professores que refletem sobre os conteúdos ensinados no Ensino Médio contribui não só para a melhoria dos modos como esses conteúdos são ensinados, como contempla a avaliação 93 Situado no tópico 1.1, desta Tese. 95 mais lúcida, por parte dos professores, dos obstáculos presentes nos materiais didáticos oferecidos no mercado. A professora Lucia (atuante da disciplina prática de Ensino) confirma esse perfil conteudista dos professores das disciplinas específicas da Química e coloca que falta “dar sentido” ao que é ensinado aos alunos do curso. As ideias expressadas pela professora Lucia refletem a influência dos artigos mais recentes sobre questões em debate no cenário educacional no que tange à formação inicial de docentes. Nos últimos 30 anos, essas pesquisas colocam a necessidade de articular teoria e prática através de um processo contínuo de reflexão crítica de sua prática (GERALDI et al, 1998; PERRENOUD, 2002; NÓVOA, 1992). Além disso, “dar sentido” ao que está sendo ensinado (como já colocado no tópico que alude a transposição didática) passa por uma postura de debate das raízes epistemológicas daquele determinado conhecimento, para que o licenciando possa ter uma consciência maior sobre os aspectos históricos e culturais que rondaram a sua produção e possa desmistificá-lo, percebendo seus sentidos. O trio de professores das disciplinas da Química específica (Ana, Maria e José) valorou suas pós-graduações como momentos da trajetória profissional de aprofundamento e conexão de conhecimentos da Química; o professor José acredita inclusive que todo professor do Ensino Médio deva fazer uma pósgraduação. No entanto, o professor do Ensino Médio é um profissional que lida com três frentes da Química: Química Inorgânica, Química Orgânica e Físico-Química, e seria inviável para esse profissional cursar tantas pós-graduações. Ademais, por trás desse discurso existe a concepção de que cada nível não possua um objetivo em si mesmo, e que a formação inicial só se torna “completa” com uma pós-graduação, e o professor bem preparado é aquele que supera essa maratona que acumula títulos desde o início de sua vida escolar. Acredito que a formação inicial do professor deveria ser suficiente para que ele pudesse atuar em sala de aula e que os problemas que surgirão desse cotidiano complexo poderiam ser discutidos e refletidos por esses profissionais em encontros com seus pares de profissão em cursos ou programas de formação continuada. 96 Os tópicos levantados aqui buscam retomar conexões relevantes da análise individual de cada professor entrevistado no episódio em questão, e podem servir de subsídios para discussões posteriores. 97 6 CAPÍTULO Nossos dizeres e seus significados II: o que vejo neste cenário e o arremate “O quadro é único, a moldura é que é diferente” Florbela Espanca94 A exploração do cenário de atuação do professor universitário, tema da análise desse episódio, busca dimensionar a influência da universidade e suas exigências na atividade docente, amparando algumas considerações já realizadas e suscitando outras. 6.1) O que vejo neste cenário... Nesse episódio, destaco dos professores entrevistados suas opiniões: sobre o impacto da reforma curricular no processo formativo docente, sobre seu cenário de atuação, sobre as dificuldades e demandas que permeiam seu cotidiano de trabalho e em que medida esses condicionantes influenciam sua atividade docente. Além disso, busco investigar suas concepções sobre Pesquisa, Ensino e Extensão, de que forma eles compreendem e valoram essa tríade na Universidade em que atuam e suas considerações sobre as últimas reformas universitárias. a) Professora Maria No caminho discursivo da entrevista, apresento o primeiro momento em que a professora Maria destaca os aspectos negativos da formação oferecida na UFF após reforma curricular. Segundo ela, a escola apresenta um papel formativo fundamental para o licenciando (como dito no episódio anterior). No entanto, Prof. Maria: [...] O que eu sinto falta é que a universidade, parece que fica num patamar acima, e aí não há uma interação do aluno que está sendo formado, com o Ensino Médio, com a escola, digo que tem que ter o aluno na escola [...] a menos praquele aluno que vai se virar, vai dar aula no cursinho, no pré-vestibular, pré-vestibular comunitário. Mas aquela vivência de um projeto, do aluno estar na 94 Florbela Espanca foi uma poetisa portuguesa, frase retirada do site: http://www.citador.pt. 98 escola, vivenciando a escola antes da graduação, né, da apropriação do grau, eu acho isso importantíssimo entendeu, porque cria um compromisso. (entrevista 1, linha 116 à 122) Em seu discurso, a professora coloca a universidade como uma instituição que ocupa um “patamar acima”, que interage muito pouco com a escola e que se encontra ainda muito aquém do ideal em termos de projetos que envolvam o licenciando nesse ambiente. E responsabiliza os estágios supervisionados por não proporcionarem aos alunos essa inserção reflexiva no cotidiano escolar; em suas palavras, Prof. Maria: É. Porque os estágios supervisionados passam muito longe da realidade, acaba sendo assim, sendo Ensino público é meio que ‘tapa buraco’. E uma escola particular, o estagiário, que seria o bolsista, né, ele não tem acesso à rotina mesmo de uma programação de aula, uma lista de exercício, ele é mais observador entendeu? Então, eu sinto essa lacuna. P: Ele ainda está suspenso... Prof. Maria: É, não está inserido, ele não sabe ainda o que é o dia-adia da profissão. Sai com o título e aí muitas vezes, muitos se chocam, e aí como tem sempre a possibilidade de fazer complementação pra Química industrial, pra Licenciatura, eles retornam. Até alunos que tem potencial, que saíram com uma inspiração... P: Alguns até abandonam o magistério... Prof. Maria: É, o magistério, acho que se isso fosse encaminhado desde algumas disciplinas da educação, da pedagogia da educação, eu acho que seria um link entendeu, porque ia ajudar muito na formação... (entrevista 1, linha 127 à 139) Nos enunciados proferidos pela professora, é possível perceber seu descontentamento com a forma como os estágios supervisionados são conduzidos, e ela coloca uma parcela de responsabilidade sobre esses estágios no que tange à evasão dos alunos do magistério do Ensino Médio. Ressalto que as impressões da profa. Maria sobre o andamento dos estágios supervisionados na UFF foram obtidas de forma indireta, através dos alunos que orientou nos Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC). Ainda sobre os aspectos negativos, a professora coloca, Prof. Maria: [...] acho que como negativo é a falta - até não vão gostar do que vou falar - mas é a falta de um trabalho conjunto das disciplinas da Química com as disciplinas da educação. Então, eu sinto que não há uma coisa conjunta de “vamos trabalhar dessa forma” ou todo mundo vai... Sabe, até a gente que não é... Principalmente eu, que sou engenheira Química, na hora de escrever um artigo, eu gostaria de ter um colega da área de Educação dando um 99 suporte pra me explicar como é que eu faço uma análise de discurso, que a gente acha que faz ou tenta fazer da melhor forma possível, eu não tenho aquela vivência, a experiência. Então, a parceria que eu acho que falta, tanto na formação deles, quanto no próprio curso aqui de especialização entendeu, é como se fossem duas coisas estanques. P: E essa parceria, ela é uma carência que no seu ponto de vista acontece só entre as disciplinas específicas da UFF e as pedagógicas, ou existe também, às vezes, a falta dessa parceria entre as próprias disciplinas da formação específica? Prof. Maria: Também, acredito que também. Não há uma política, uma visão, como que vai, se quer formar esse profissional, né? Porque assim, acho que é tudo muito feito na intuição [...] (entrevista 1, linha 235 à 247) Nesse trecho, a direcionalidade do discurso aos outros professores de graduação é clara na parte “até não vão gostar do que vou falar” e, consciente de que sua entrevista seria analisada, retoma a questão de sua formação inicial apedagógica e seu desejo por um “suporte” advindo de uma colaboração de outros pares de profissão da área de Educação. A professora Maria abre uma exceção enquanto elencava os aspectos negativos da reforma curricular, quando fala sobre a disciplina tutoria, Prof. Maria: [...] Mas uma coisa muito positiva que eu vi no curso, nessa reforma curricular, foi que nós criamos tutorias. Então, tem seis tutorias além da monografia de conclusão de curso. Então, o aluno, ele vai aprendendo nessas tutorias, a parte de didática também, a parte de pesquisa, como preparar um pôster, como preparar, usar um data show, um Power point, seminários. Então, tudo isso de certa forma é treinado num primeiro momento, em grupo de 4, 5, e aí você fica acompanhando aquele aluno um ano, na tutoria I e II, depois você já vai trabalhando mais individualizado. Aí, normalmente o que se faz? É trazer esse aluno pro seu grupo de pesquisa. Porque você já trabalhou com ele, aí que vai, o interessante que aí leva esse aluno pra escola, vai fazer um trabalho de campo, aprende a fazer um questionário, então acaba realmente criando aquele aluno, professor/aluno/pesquisador, ele já vai entendendo como se faz uma pesquisa na área de Ensino, esse tipo de coisa, né, laboratório, escola entendeu? (entrevista 1, linha 198 à 207) Ao descrever a funcionalidade dessa disciplina95, a professora valoriza a instrumentação “como preparar um pôster, como preparar, usar um data show, um Powerpoint, seminários” e a transposição didática96: “a parte didática também”. E 95 A tutoria é caracterizada como uma disciplina articuladora (definida no capítulo 1). Destaco que a atribuição da transposição didática à Tutoria, só foi mencionada quando a professora refletiu sobre os aspectos positivos da reforma curricular. No primeiro momento em que o assunto transposição didática foi aludido (episódio “ser professor”), a professora não mencionou essa disciplina. 96 100 sugere um caminho de individualização que culmina em uma iniciação científica na área educacional, pressuposto essencial para formação do professor pesquisador e que demonstra, por parte da professora, um certo conhecimento das Diretrizes para formação de professores na UFF. Retomando aos aspectos negativos da formação, segundo a professora Maria, Prof. Maria: É. Em termos do curso de Química aqui da UFF, eu acho que negativo é esse currículo que você está tentando agora adequar, enxugando mais, né? (entrevista 1, linha 216 à 217) Esse enxugamento ao qual a professora se refere será discutido mais adiante, após a relação com a opinião dos outros professores. Na sequência, a professora destacou ainda a desvalorização do profissional, fazendo uma crítica aos órgãos de fomento à pesquisa que, segundo ela, se mantiveram reticentes por muito tempo com relação aos projetos na área de Ensino, Prof. Maria: [...] hoje a FAPERJ já dá bolsa de iniciação científica pra quem faz trabalho na área de Ensino de ciência. Até pouco tempo atrás, até 2008, não tinha. Então, que que o aluno licenciando, ele não ia buscar trabalhar no projeto na área de Ensino, porque o projeto não tinha bolsa. Uma minoria até que ia, a gente tinha outros meios de ter uma bolsa de trabalho, alguma coisa assim, mas não era uma bolsa oficial PBIC? com reconhecimento... (entrevista 1, linha 218 à 222) Como aspecto positivo, além da já mencionada tutoria, ela coloca o corpo docente que é formado em sua maioria por ex-alunos, que “vestem a camisa” e buscam uma formação de qualidade, apesar da falta de integração. Partindo para outro aspecto que permeia o cenário de atuação dos professores, pergunto sobre as exigências que o professor universitário enfrenta em seu cotidiano, e a tríade Ensino, Pesquisa e Extensão emerge nesse momento, Prof. Maria: Bom, eu vejo a universidade - eu ouvi essa frase e vou repetir - a universidade são três pilares: Ensino, Pesquisa e Extensão. Então eu acho que, principalmente na universidade pública, né? Tem que ter o compromisso com a Extensão, porque afinal de contas está recebendo dinheiro do contribuinte, né, na forma de salário, na forma de equipamento, tudo isso. Então, esses três pilares têm que estar muito bem equilibrados, né, tem que ter a parte administrativa.[...] (entrevista 1, linha 255 à 259) No trecho “eu ouvi essa frase e vou repetir”, a professora busca legitimar sua declaração trazendo as vozes de seus outros pares de profissão, caracterizando a polifonia em seu discurso e num movimento permeado pela direcionalidade discursiva 101 coloca a Extensão como uma questão de compromisso que a universidade pública deve ter com a sociedade, sem perder o equilíbrio com os outros pilares (Ensino e Pesquisa) e se esforça para manter essa ideia de equivalência dessas dimensões, pois ao questionar sobre um possível ordenamento ela responde como destacado abaixo, P: [...] Como você ordena esses três pilares em grau de importância pra você? Prof. Maria: Não tem, é universidade. (entrevista 1, linha 295 à 296) No entanto, essa aparente opinião de equivalência é revelada como irreal, pela própria conjugação do verbo na resposta seguinte a minha insistência, P: então não tem ordenamento? Prof. Maria: Você teria que ter o equilíbrio, é lógico que é característica de cada um ter mais facilidade, valorizar até mais, mas de uma maneira geral pra coisa ser harmoniosa, era que todos atuassem nas três áreas. Extensão é uma coisa complicada pra fazer então em termos gerais de UFF, eu vejo que o mais fraco é a extensão, entendeu? Porque acaba ficando... Se der tempo, entendeu? (grifo meu, entrevista 1, linha 297 à 301) A dimensão no primeiro momento valorizada como compromisso da universidade, parece, segundo a professora Maria, a menos presente na universidade. Além disso, a professora parece encontrar dificuldades para visualizar suas atividades de pesquisa pura97 com a extensão, principalmente quando relata sua experiência na comissão de extensão da universidade, Prof. Maria: [...] pra uma pesquisa mais pura, mais acadêmica a nível de laboratório, não estou dizendo que a outra seja mais importante, mas o perfil é diferente. E aí fica difícil fazer a extensão, né? Eu fui até representante na UFF, da comissão de extensão da universidade, entrava muda e saía calada, porque eu achava que o que eu podia estar fazendo ali, o pessoal da área de humanas tinha muito mais a ver com a extensão do que uma Química podia contribuir. Então, muitas vezes achava os projetos maravilhosos e não conseguia me enquadrar ali como sendo... e hoje não, né? CTSA tá aí pra isso, né? Agora você tem ciência, tecnologia sociedade e ambiente. (entrevista 1, linha 304 à 310) A professora revela em seu discurso a dificuldade enfrentada por ela na visualização do retorno que as pesquisas ditas “mais puras” têm para com a sociedade na forma de projetos de extensão e relata que o movimento CTSA auxiliou-a nessas reflexões. 97 De acordo com seu próprio discurso, a pesquisa pura se enquadra nas atividades de pesquisa realizadas em laboratórios acadêmicos. 102 Ademais, é importante comentar que a professora demonstra conhecimento sobre o movimento reconhecidamente importante na área de Educação em Química, denominado Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente98 e o valora como uma iniciativa importante nessa conexão entre a universidade e a sociedade. Percebendo o juízo de valor com relação à Extensão, procurei fazer com que a professora mensurasse o grau de relevância do Ensino e da Pesquisa, P: Se nesse sentido mais fraco é a Extensão, qual seria o mais forte? Pesquisa ou Ensino? Prof. Maria: Olha, em captação de recursos é pesquisa, porque ainda é quem banca a universidade. (entrevista 1, linha 311 à 312) Diante do apontamento da pesquisa como responsável pela captação de recursos para universidade, retomo o trecho da entrevista em que a professora localiza a cobrança dos relatórios de avaliação institucional (comentados no capítulo 1) e os incentivos salariais (pró-labores) oriundos dos projetos de pesquisa e suas consequências na atividade docente, Prof. Maria: [...] Mas hoje, a cobrança, né, porque os indicadores todos hoje, é produto, é trabalho publicado. Então, o que acontece, ainda tem a bolsa do CNPQ, né? Que muitas vezes na forma de melhorar o salário, o rendimento, é pleitear bolsa do CNPQ, e aí você tem que estar em outro patamar de publicação, então você tem. Mas, pra alcançar isso, você tem que fechar os olhos pras outras atividades. Então, você não quer dar mais do que oito horas, você às vezes quer escolher disciplinas, então você fica um tempo enorme na mesma disciplina, porque aquilo já está incorporado, já tá no DNA, né, então você já não tem o mesmo trabalho do que um curso novo né, exige você preparar. Então, é um complicador a questão, não digo que ele não é importante não, ele é importante sim. Acho que qualquer coisa tem que ser avaliado, qualquer coisa tem que ser mensurado, mas tem que ser dosado, né? (entrevista 1, linha 263 à 272) Como relatado pela professora, as instituições de fomento à pesquisa exigem, para conceder bolsas de pesquisa, um nível de publicações que despende tempo e dedicação dos docentes, e “fecha os olhos” desses profissionais para outras atividades (como o Ensino), fazendo com que os mesmos escolham disciplinas que já lecionaram, para evitar a preparação de novas aulas. Mesmo diante da forte influência da pesquisa na diminuição da dedicação do docente ao Ensino, a professora destaca que ainda assim essa influência é positiva, pois 98 Esse movimento, permeado por pressupostos construtivistas, busca problematizar nos currículos ensinados (através de novas propostas e projetos de ensino) os impactos da Ciência, da Tecnologia e dos modos de vida contemporâneos no meio ambiente e na sociedade (CHASSOT, 2004). 103 agrega informações de vanguarda à área em que o professor atua, e essas atualizações podem ser compartilhadas em sala de aula, como colocado no trecho, P: Você acha que de alguma forma prejudica a atividade docente, com relação à preparação ou coisa do tipo, como é que a senhora avalia isso? Prof. Maria: Não assim, sempre contribui, porque eu acho que a partir do momento que você está fazendo pesquisa, seja em que área for, ou na questão só de didática ou na pesquisa pura de Química, né? Você faz coisa de ponta, e aí você tem oportunidade de levar pra sala de aula, não uma Química do século retrasado, mas levar nanopartícula entendeu, levar uma coisa que é atual. Então eu acho que isso só tem a contribuir. Tem aqueles colegas que não querem, só enxergam pesquisa e que acha que é dissociado, né? mas eu acho que você tem sempre a contribuir com novidades, que você está na área de educação, você está lendo e aí você está sempre trazendo alguma coisa nova, né? (entrevista 1, linha 285 à 293) A professora em seu discurso considera que a pesquisa e o ensino são indissociáveis, uma vez que a primeira contribui para atualização dos conteúdos pelo advento das publicações sobre um determinado assunto e destaca a presença de professores que não conseguem realizar essa articulação entre ensino e pesquisa. No último tópico de discussão conjunta das entrevistas, retomarei esse ponto da indissociabilidade. b) Professora Ana A professora Ana atuava como coordenadora do curso na época das reformas curriculares e conduziu todas as discussões colegiadas sobre essa reforma, sendo, por essa razão, imediata a sua resposta quanto aos aspectos positivos e negativos da formação docente oferecida, P: [...] no seu entendimento, as reformas realizadas na Licenciatura, melhoraram, pioraram, ficou a mesma coisa, com relação à formação dos professores? Prof. Ana: Bom, eu sou suspeita para falar, porque aquele currículo era, foi mais um filho meu né, então, eu realmente me dediquei àquela reforma curricular né, bati de frente com muita gente ali né, criei, no final eu acho que não, no final eu tinha vários amigos né, mas no início foi uma coisa assim, eu achei que eles iam me destituir do cargo, foi uma guerra muito grande, mas, eu, na minha opinião, melhorou muito, a qualidade, não só de Licenciatura, dos cursos [...] (entrevista 2, linha 286 à 293) 104 Quando inicia com “eu sou suspeita para falar”, ela já assume que sua resposta é influenciada pelo seu grande envolvimento e dedicação no processo, defendendo a proposta de reforma diante de muitos professores resistentes. A professora justifica essa grande melhora, pois, com a reformulação curricular, o aluno do instituto de Química passou a ter identidade, a reconhecer o instituto como sua “casa”, e essa mudança na relação proporcionou um aumento considerável de alunos envolvidos em monitorias e iniciações científicas, também potencializado pela obrigatoriedade de orientadores para os Trabalhos de Conclusão de Curso dos licenciandos, aumentando o vínculo desses alunos com os professores. Em suas palavras: Prof. Ana: [...] Então, ele não tinha identidade, ele não reconhecia o instituto de Química como sendo a casa dele, ele não tinha espaço para monitoria, pra iniciação científica, e com a reforma curricular a gente abriu esse diálogo, então, se você for ver, fizer um levantamento de quantos monitores nós tínhamos e de quantos alunos de iniciação científica que nós tínhamos, antes e depois da reforma, isso foi um crescimento, assim, muito grande, porque? Por mais que as pessoas critiquem, “ah, porque é uma perda de tempo, era isso e aquilo”, mas era onde a gente abria espaço, o aluno tinha que fazer a monografia e tinha que ter um orientador e aí ele tinha, e aí ele... P: Acabava se envolvendo... Prof. Ana: Desenvolvendo, e ele ia se envolvendo, e aí você tinha em termos de Química muitos alunos, a iniciação científica assim foi um negócio muito interessante, como aumentou a quantidade de alunos né, na iniciação. É, o aluno de Química passou a ser exigente dentro do curso tá, porque agora era a casa dele, era o curso dele... (entrevista 2, linha 298 à 309) Além desse aumento no envolvimento de professores e alunos, a professora colocou outros ganhos, como disciplinas formadas só por alunos de Química (Bacharel e Licenciatura) e dá um tom negativo às turmas mistas constituídas por outros alunos (como os da turma de farmácia), talvez por entender que as turmas mistas dificultam a construção dessa identidade pretendida pelo novo currículo. Os ganhos para os licenciandos foram muito mais pronunciados, pois, segundo a professora, o licenciando tinha “vergonha” de fazer o curso, Prof. Ana: [...] era vergonha fazer Licenciatura né? Então, eu acho que a reforma curricular o principal ganho foi esse, o aluno de Química realmente se integrou ao curso de Química, em relação à Licenciatura, eu não tenho dúvidas tá, enquanto você tinha alunos com vergonha de dizer que eram licenciados, assim,“eu faço Licenciatura porque você sabe como é que é né?” . Ele não admitia que ele estava fazendo Licenciatura, [...] Depois de um tempo: “eu 105 vou fazer Licenciatura, eu quero fazer Licenciatura”, porque desde o primeiro momento ele já estava se envolvendo né, ele começou fazendo a psicologia da educação e a estrutura de funcionamento lá nos primeiros semestres, então, no início ele já estava na faculdade de educação, e mais a carga aqui com a gente né e ia municiando, “você quer fazer Licenciatura, então, como é que a gente vai trabalhar isso”, colocando disciplinas de metodologias de instrumentação dentro do currículo que não existia, né? Então, ele tinha na Faculdade de Educação e tinha o instituto [...] eu acho que para o licenciado foi um ganho muito grande. (entrevista 2, linha 316 à 327) Outro aspecto mencionado foi o fato de nesse novo currículo o aluno estabelecer contato com as disciplinas pedagógicas nos semestres iniciais, possibilitando uma relação maior entre os conteúdos da Química e da Pedagogia e o maior envolvimento dos professores com a Licenciatura, potencializando algumas parcerias entre os conteúdos das disciplinas específicas de Química e das pedagógicas (se posicionando de forma contrária à professora Maria). Houve um aumento de projetos entre professores e alunos nas Licenciaturas, e a professora coloca os investimentos governamentais como um dos fatores importantes para esse crescimento, Prof. Ana: Bom, os pontos positivos, essa relação que começou a haver entre os conteúdos de Química e os conteúdos pedagógicos P: que antes não existia... Prof. Ana: que antes não existia, a integração de alguns professores que realmente perceberam a importância disso e começaram a se envolver com a Licenciatura.[...] E teve uma coisa que ajudou nesse ponto, também. Isso ajuda a qualquer projeto universitário. Na hora em que você tem dinheiro rolando fácil numa determinada área, você vê que você tem um crescimento naquela área. E o governo investiu muito nos projetos, né, de formação por conta da grande deficiência [...] (entrevista 2, linha 347 à 358) Como aspecto negativo, a professora destaca alguns professores que mesmo diante da reforma e dos incentivos governamentais para o envolvimento com a Licenciatura se mantiveram reticentes a todo o processo. Prof. Ana: [...] Aspectos negativos, alguns professores estiveram muito reticentes a isso, e eu realmente fico muito preocupada com o futuro da Licenciatura, se não tiver pessoas dentro da unidade, em qualquer universidade, que realmente continuem engajadas nesse processo de valorização do magistério de uma visão diferente, uma visão de realmente de formação de professores, eu tenho uma preocupação grande que isso... P: Comece... 106 Prof. Ana: 380) Comece a reverter (entrevista 2, linha 374 à A professora acredita, mesmo diante dessa preocupação no que tange à falta de engajamento de alguns professores, que se os investimentos na área de educação forem mantidos, é provável que essa reversão não ocorra, como apontado no trecho, Prof. Ana: [...] se bem que foi o que te falei, enquanto o governo tiver injetando dinheiro na formação de professores, os próprios pesquisadores estão percebendo isso e estão, então você tem hoje um número de, vários professores envolvidos, né? Na educação, porque? é onde você tem, você tem bolsa pra professor, você tem bolsa pra projetos, você tem projetos com valores altíssimos de financiamento para formação de professor, foi um incentivo bastante grande...[risos] (entrevista 2, linha 383 à 387) Finalizo a análise dos aspectos positivos e negativos do currículo, resgatando a questão da disciplina tutoria, por perceber que as professoras que ministraram essa disciplina (Ana e Maria) apresentavam uma conversa comum sobre sua funcionalidade. Da mesma forma que a professora Maria, a professora Ana coloca a tutoria como um aspecto positivo do currículo, pela possibilidade de realizar as transposições didáticas no turno noturno, Prof. Ana: [...] que eu fazia na tutoria? eu pegava um tópico de Química geral, dividia a turma em grupos de dois alunos né, dava um tópico de Química geral, que a tutoria I e tutoria II estavam vendo Química Geral e logo depois iam ver a Química Orgânica, então, a gente tinha o conteúdo e aí a gente trabalhava durante o semestre inteiro, como transformar aquele conteúdo que eles estavam aprendendo, como é que eles dariam a aula, então, entregavam um trabalho e faziam um seminário, né? [...] então, era uma disciplina que começava no primeiro semestre, então a gente ia, em um primeiro momento a gente fazia um seminário, em um segundo momento eles tinham que fazer aquilo sobre a forma de um pôster, em um terceiro momento era só um trabalho de escrita e a gente vai montando a complexidade (entrevista 2, linha 197 à 206). A trajetória metodológica descrita pela profa. Ana sobre a tutoria é bem próxima à descrita pela profa. Maria. Essa disciplina é classificada pela profa. Ana como “uma espiral durante o curso que acabavam culminando com a monografia, aonde você vai fazendo a formação dos professores” (entrevista 2 – linha 230 a 232), o que demonstra seu conhecimento sobre a função articuladora desse componente curricular. 107 No entanto, a professora destaca que, no que tange à atuação do Instituto de Química e à Faculdade de Educação, houve um descompasso entre a proposta inicial (de integração entre esses dois institutos) e o que se desenvolveu na prática, como colocado no trecho, Prof. Ana: [...] isso em conjunto com o Instituto e a Faculdade de Educação. Foi muito mais o Instituto do que a Faculdade de Educação... foi muito mais o Instituto de Química do que a Faculdade de Educação, na verdade eu consegui levar algumas pessoas para dar palestras, enfim, mas a ideia era essa, era juntar o Instituto com a Faculdade de Educação e desde o início a gente ir fazendo esse trabalho com eles, entendeu. Leitura de artigos de educação, trabalhos aonde ele pegasse o conteúdo e tentasse transpor para o Ensino Médio, a ideia era muito boa mas a aplicação foi meio, P: Não foi tão, Prof. Ana: Não, não. (entrevista 2, linha 231 à 239) Mais adiante, no tópico em que analiso o conjunto das análises desse episódio, retomarei essa questão da falta de integração. Partindo para a questão da tríade Ensino, Pesquisa e Extensão, diferente da professora Maria, que buscou de início retratar na equivalência dessas dimensões o princípio para o funcionamento harmonioso da universidade, a professora Ana ordena essas dimensões de forma direta como podemos perceber no trecho, Prof. Ana: Pra universidade hoje? Eu acho que a importância maior e que gera mais recursos pra universidade e o que ela está mais interessada é a pesquisa, não tenha dúvidas, isso em função basicamente do... né? Então em primeiro lugar você tem a pesquisa, que traz recursos pra universidade, que projeta o professor na comunidade, isso é para o professor extremamente importante né, então eu acho que ele dá muito mais importância à pesquisa, por ser uma coisa maior, mais importante, mais bem vista né? Em segundo lugar, o Ensino né, que ele obrigatoriamente ele tem que dar aula, independente se ele está dando aula na graduação ou pós graduação ele tem que ter uma carga horária, né? Obrigatória... E a extensão...eu acho que é considerada a menos importante, até um pouco depreciada, apesar de que em determinadas áreas, eu acho que a extensão seja extremamente importante... (entrevista 2, linha 478 à 490) O ordenamento proposto pela professora Ana foi o mesmo da professora Maria, colocando a extensão como a atividade que ocupa o último grau de importância. Interessante notar que a professora Ana destaca a projeção que a pesquisa proporciona ao professor junto à comunidade acadêmica, colocando o Ensino como uma atividade obrigatória do professor, mas situada entre a pesquisa e a extensão. 108 Diante da importância dada à Pesquisa, retomo o trecho em que a professora relata a evolução dos processos seletivos na universidade, destacando a importância essencial do doutorado nos processos atuais e as consequências dessas novas exigências, Prof. Ana: [...] Hoje, pra você ser um professor universitário, e aí por que determinadas áreas optaram por isso, justamente pra você não pegar um professor lá no início da... com a graduação e aí ele vai passando por tempo independente de ter uma formação ou não, em determinadas áreas, principalmente determinadas áreas com pesquisa muito forte, você só tem concurso pra adjunto, no mínimo, tem que ter o doutorado, e pra pesquisa é muito bom, você já pega o pesquisador pronto, porque não só tem que ter o doutorado como ele tem que ter um projeto de pesquisa, defender um projeto de pesquisa, que é o que ele vai implantar na hora que ele entrar lá dentro. Mas tem um lado muito negativo. A gente está contratando professores que não sabem dar aula, porque assim como eu entrei graduada, peguei uma turma de 50 e tinha lá minha fichinha, né? e tinha que estudar e tinha que pegar 300 livros pra preparar a aula, porque, eu tinha o conteúdo mas não tinha a experiência, Como que eu vou passar isso pro aluno? Como é que eu vou preparar a aula, juntar vários conhecimentos? Fazer o aluno perceber, pensar? Então, tem pesquisador que passou a vida dele inteira ali: graduação, mestrado, doutorado, só na área de pesquisa, nunca deu uma aula, ou se deu foram 6 meses 1 ano de aula, aí ele acha que o aluno né? de Química geral tem que entender mecânica quântica... (entrevista 2, linha 416 à 429) Em seu discurso, a professora ressalta que essa valorização da titulação traz benefícios para a universidade, pois agrega ao seu corpo docente “o pesquisador pronto” mas traz um ônus, “A gente está contratando professores que não sabem dar aula”. Interessante notar que a profa. Ana ratifica a ideia de que para saber dar aula é preciso somente um bom conhecimento da matéria e organização para reproduzir os conteúdos, como destacado no trecho “porque assim como eu entrei graduada, peguei uma turma de 50 e tinha lá minha fichinha, né? e tinha que estudar e tinha que pegar 300 livros pra preparar a aula, porque, eu tinha o conteúdo mas não tinha a experiência”. Com relação ao desmembramento dessa tríade no cotidiano docente, a professora Ana coloca que o professor envolvido com projetos de pesquisa traz investimentos para a universidade e acaba tendo sua carga horária em sala de aula reduzida, ainda mais se o mesmo complementar sua carga nos cursos de pós-graduação, diminuindo consideravelmente seu envolvimento com os licenciandos. Nesse sentido, pergunto se isso não influencia (num tom negativo) a atuação do professor em sala de aula, como colocado, 109 P: Isso então influencia de forma direta, na atuação desse professor em sala de aula? Prof. Ana: Influencia, Anderson... Mas depende muito do professor... P: Entendi Prof. Ana: Você tem excelentes pesquisadores e aí na hora que você tem um professor, que acredito eu que é uma pessoa inteligente, uma pessoa acessível que tem cultura para também se formar um bom e ser um bom professor então eu acho, do ponto de vista do meu departamento, que a gente tem conseguido isso, porque também pensar naquele professor que está mais dedicado à sala de aula e por isso ele vai ser um bom professor, pelo menos no meu departamento a gente não vê isso, aqueles professores que não estão envolvidos em pesquisa, independente de ser na área de educação ou na área de Química, são professores que dão aula, aula, são professores que são escalados pra engenharia básica, porque eles também não estão envolvidos... Eu sinceramente, quando eu fazia minha distribuição de carga horária eu dizia, não quero esse, esse e esse professor dando aula pra Química. Porque apesar de serem professores que tinham uma alta carga horária na graduação, porque não faziam pesquisa, queriam lecionar? Muito pelo contrário. Então eu acho que o modelo apesar das discussões, ainda é melhor do que o modelo que nós tivemos durante um certo tempo. Que você tinha um graduado entrando e não sendo obrigado a se formar, progredindo... P: progredindo por tempo e não por, entre aspas, merecimento (entrevista 2, linha 456 à 472) A professora Ana, assim como a professora Maria, aponta para a diminuição do envolvimento do professor com a sala de aula de graduação devido à pesquisa que realiza e, concordante com Maria, acredita que, apesar disso, esse fator favorece para uma boa atuação em sala de aula, pois como relatado pela professora Ana o pesquisador é “uma pessoa inteligente, uma pessoa acessível que tem cultura para também se formar um bom e ser um bom professor”, o que reforça a ideologia de que o professor pode aprender a dar aula somente na prática, sem conhecimentos pedagógicos prévios. Segundo a professora, o professor que atua somente em sala de aula na universidade é escalado para disciplinas de formação mais panorâmica, por não demonstrar um envolvimento, uma preocupação com a qualidade de suas aulas. c) Professor José A questão do conteúdo é marcadamente importante para o professor. Quando perguntado sobre os aspectos positivos e negativos da reforma curricular, ele ressalta os negativos, 110 Prof. José: Olha, eu acho que a questão assim, negativa, é que os cursos de Química, e também Farmácia, ficaram muito generalistas, generalistas em excesso, né? E, com isso daí, isso claro, com orientação governamental, né, levou aos estudantes, aí não só de Licenciatura tá, até o de bacharelado, levou os estudantes a terem uma formação um pouco mais fraca, porque eles são mais generalistas e não sabem explicar pontos mais específicos, e ele precisa fazer isso para depois saber como vai proceder para ministrar a aula no segundo grau, né? Então, eu acho que o grande problema tem sido esse daí tá, algum currículo que está generalista demais, e comprometeu seriamente, na minha opinião, a qualidade e formação do estudante, tá? Isso eu tô falando da parte de Química, e a parte de Licenciatura eu não conheço. Mas, em Química eu noto muito isso, não foi só com o pessoal de Licenciatura. E na questão de Licenciatura, por exemplo, eu vou citar uma disciplina que eu não entendo até hoje porque é ministrada para Licenciatura, é aquela Química Quântica. Você certamente não vai ensinar hoje, no Ensino médio tá, não vai ministrar qualquer conceito de Química Quântica. Então, não concordo que essa disciplina seja obrigatória para um estudante de Licenciatura em Química. (entrevista 3, linha 181 à 193) O que foi destacado como um movimento de busca de identidade curricular pela professora Ana foi colocado como um movimento empobrecedor em termos de conteúdos pelo professor José e pela professora Maria, mesmo com a presença de um conteúdo muito presente nas tecnologias atuais, como a Química Quântica. O professor, em outro momento da entrevista, retoma essa crítica quando eu o questiono sobre a reforma curricular no currículo da Licenciatura em Química, Prof. José: Olha, a reforma, ela tornou a formação mais generalista, diminuiu sem dúvida o conteúdo. E quando diminuiu o conteúdo, eu tenho detectado claramente que os estudantes, e depois claro, futuros profissionais, eles saem com problemas sérios de formação. Eu tive estudante aqui tentando recristalizar líquido [...] a formação generalista, ela tá suprimindo alguns conceitos que são fundamentais pra Química. (entrevista 3, linha 270 à 279). Segundo o professor, esse movimento de enxugamento dos conteúdos além de empobrecedor compromete e muito a formação do futuro professor de Química, que deveria ser formado como um Bacharel. A adequação do currículo que busca atender às demandas profissionais do futuro professor de Química é um dos principais problemas ocasionados pela reforma curricular, Prof. José: [...] Porque essa pessoa que se forma em Licenciatura, ele pode ser formado também em bacharel, ela pode querer de hoje pra amanhã trabalhar numa indústria, por que não, né? [...] 111 P: Nesse movimento então de adequação ao perfil, o senhor acredita que foram retirados muitos conteúdos da formação do químico que eram essenciais então. Só pra fechar. Prof. José: Sem dúvida. Esse pra mim é o principal problema ocasionado pela reforma curricular. (entrevista 3, linha 281 à 296) Apesar de acreditar que era necessária uma reforma curricular, o professor defende uma reforma de outro tipo, segundo ele, o resultado dessa reforma não foi satisfatório em termos formativos e considera que esse movimento tenha sido uma imposição do MEC, semelhante ao que está ocorrendo na pós-graduação, com uma tendência de aligeirar a formação do pós-graduando. Entretanto, a reforma curricular nas Licenciaturas foi desencadeada por uma necessidade apontada em diversas pesquisas no que tange à vivência do licenciando no ambiente escolar, buscando uma formação que se afaste da setorização dessa vivência apenas nos estágios supervisionados. Esse movimento subsidiado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996) e pelo Parecer do Conselho Nacional de Bases da Educação Nacional (NNE/CP 28/2001) estende a carga horária destinada à prática de Ensino e ao estágio supervisionado para 400 horas cada, obrigando as universidades a se adequarem às novas exigências. No que diz respeito ao seu cotidiano, o professor José coloca que o professor universitário hoje tem que estar em constante atualização, e essa se dá por intermédio da pesquisa científica, pela bagagem de leituras atuais que ela proporciona sobre um determinado assunto, melhorando a qualidade da aula. E justifica a contratação de professores doutores como um movimento de valorização da pesquisa na universidade que gera conhecimento. Nesse viés, perguntei sobre as outras atividades que o professor universitário desempenha em seu cotidiano, P: Além da pesquisa assim, no seu cotidiano, quais são as outras atribuições que tomam tempo do professor universitário? Prof. José: Nossa! Olha, eu não vou colocar as aulas, porque aula não encaro como tomar tempo, aula é um prazer sempre, é muito gostoso ministrar aula, é uma hora que na verdade a gente, vamos dizer assim, relaxa entre aspas. Na verdade, não é relaxar, você tem responsabilidade enorme, mas eu encaro como sempre um prazer falar em Química [...] o que me leva um bom tempo pra fazer isso, é que eu gosto de preparar a aula, então minhas aulas são sempre preparadas, sempre atualizadas de semestre a semestre, eu não repito aula, eu gosto de fazer isso, gosto de propor novos experimentos, novos métodos. Então eu sempre estou lendo, tá, lendo livros, lendo artigos, fazendo de tudo para ministrar uma aula mais interessante. 112 P: Fora isso, deve ter possivelmente os projetos... Prof. José: Claro, gestão de projetos de pesquisa, contratar pessoal de pós-graduação, tem cargos na universidade, tem cargos na Sociedade Brasileira de Química, nós temos muitas, mais muitas, muitas, atribuições essas sim nos tomam um tempo muito grande, eu acho que, por exemplo, um chefe de departamento não deve ficar olhando pra ver onde está o vazamento no banheiro. Vazamento no banheiro, você pode botar um administrador no instituto, isso é a função dele. Os chefes de departamento deveriam fazer o quê? Ao invés de ficar olhando vazamento em banheiro, se tem luz ou não? Pensar em políticas educacionais catalisar discussões nesse sentido, não só chefe do departamento, mas diretores do instituto, né? (entrevista 3, linha 326 à 344) Mesmo que a docência seja apontada pelo professor José como um prazer, ele mesmo a coloca como uma atividade que requer leituras para o aperfeiçoamento da aula e após ouvi-lo elencar as inúmeras outras atividades que rondam seu cotidiano – algumas inclusive que fogem das atribuições do professor – perguntei em que medida essas demandas influenciam sua atividade em sala de aula, Prof. José: Enfim, sem dúvida, vão atrapalhar, porque são papéis que eu não deveria estar fazendo. É claro, se eu estou fazendo esse tipo de trabalho, eu hoje estou lendo menos. (entrevista 3, linha 354 à 364) Segundo o professor, essas atividades atrapalham inclusive sua preparação para aula. Caminhando para as dimensões Pesquisa, Ensino e Extensão presentes na universidade, pergunto ao professor como ele as ordena, Prof. José: Todos as três são igualmente importantes, igualmente. Eu não vejo uma mais importante do que a outra. Eu gosto mais de Pesquisa, mas entendo que o Ensino e a Extensão também são fundamentais. A Extensão que todo mundo fala menos, né, é a bela oportunidade que a universidade tem, né, de exteriorizar tudo aquilo que ela faz, né, e de mostrar às pessoas para que nós servimos, então... P: O senhor coloca essas três dimensões no mesmo patamar. Prof. José: No mesmo patamar. (entrevista 3, linha 374 à 379) O professor José, da mesma forma que a professora Maria, não hierarquiza essas dimensões num primeiro momento, mas coloca seu apreço pela pesquisa e acha que a extensão tem um papel importante, “A Extensão que todo mundo fala menos, né, é a bela oportunidade que a universidade tem, né, de exteriorizar tudo aquilo que ela faz, né, e de mostrar às pessoas para que nós servimos”. No entanto, ao perguntar se esse equilíbrio existe na universidade atualmente, o professor retruca, 113 Prof. José: Ah [risos], aí agora é outra pergunta. Não, claro que não. O patamar principal hoje, que as pessoas veem a universidade na qual eu não concordo, não concordo com essa posição, é pesquisa científica. Todo mundo hoje só fala em pesquisa científica, porque essa é que na verdade traz dinheiro pra universidade, tá? Então, é basicamente... P: Pesquisa é a que move... Prof. José: Pesquisa é o que move a universidade, né? Até porque o financiamento do Governo Federal dá no ato. Nisso a extensão ficou como algo que tem poucas pessoas dedicadas à extensão, e o Ensino quase que como um castigo, quem não faz pesquisa que vá dá aula. (entrevista 3, linha 380 à 388) Concordante com as professoras Ana e Maria, o professor aponta que na realidade universitária atual, a pesquisa é a prioridade. Não que essa dimensão não mereça destaque, mas o papel formativo é por vezes deixado de lado ou, como colocado pelo professor José, valorado como castigo para os professores que não atuam na pesquisa, “quem não faz pesquisa que vá dá aula”. d) Professora Lucia A professora Lucia não viveu a época da reforma curricular da Licenciatura em Química da UFF, no entanto, o trabalho desenvolvido por sua disciplina requer parcerias, seja com outras instituições de Ensino (como escolas e colégios de nível médio) seja com outras disciplinas da área de Química. Dessa forma, utilizei esse tema como fio condutor para as questões do cenário universitário, P: ... como a senhora avalia a participação, as parcerias com outros professores e outras disciplinas que estão presentes na formação do... Prof. Lucia: Dentro da universidade? P: É, na Licenciatura em Química... Prof. Lucia: Infelizmente elas são pequenas [...] Essa interface... a estrutura da universidade não ajuda. Nós estamos muito mais isolados no nosso próprio trabalho dentro da universidade, do que um professor de Ensino médio. O professor de Ensino médio, a escola ainda faz algum movimento, tem reunião pra discutir. A universidade deixa a gente mais, vamos dizer, livre, mas o ser livre também é ser sozinho. (entrevista 4, linha 190 à 199) A professora Lucia levanta uma questão importante que acaba influenciando os fazeres na universidade, a autonomia docente na universidade. No entanto, essa autonomia acaba dificultando conversas, como colocado pela professora, 114 Prof. Lucia: Não conversa. Essa autonomia implica em isolamento, você quase não dialoga com o outro, a não ser que haja realmente uma afinidade às vezes pessoal. Então, eu já tenho pensado em recorrer à professora de Psicologia pra me ajudar com algumas coisas, pra gente ter uma interface, mas são iniciativas independentes da estrutura própria da universidade. P: E a senhora acha que isso se agrava nas disciplinas de formação específica de Química? Eu falo das Físico-Químicas, das analíticas, das orgânicas. Isso se agrava? Prof. Lucia: Pelo que eu conheço, lá então é mais solto ainda, né? E assim, há muitos problemas na formação, na formação específica, na ciência que eles vão lecionar, eu vejo um distanciamento muito grande, justamente naquilo que eles vão lecionar. É uma Química muito dura, ainda muito dissociada das questões sociais que a gente gostaria de vê-los abordando no Ensino Médio, é uma questão muito difícil, eles não vão ensinar aquilo que eles não aprenderam. (entrevista 4, linha 201 à 211) No trecho, “É uma Química muito dura, ainda muito dissociada das questões sociais que a gente gostaria de vê-los abordando no Ensino Médio” a professora coloca que as Químicas específicas (Físico-Química, Química Inorgânica, Química Orgânica e Química Analítica) ainda são lecionadas de forma asséptica, dogmática e a-histórica, contribuindo negativamente com a formação dos licenciandos, os afastando de uma formação conectadas às questões políticas, sociais e epistemológicas, e consequentemente potencializando a internalização de fazeres distantes daqueles que buscam formar o cidadão (CHASSOT, 2006). A carência de parcerias, a falta de integração entre os pares de profissão na universidade é um aspecto destacado também pelas professoras Ana e Maria. Nesse sentido, perguntei para a professora Lucia, formada em um currículo do tipo “3+1”, se ela ainda percebia na UFF, com um fluxograma estruturalmente distinto desse modelo, a presença dessa lógica, Prof. Lucia: Tá. Tá. Porque... talvez menos, mas ainda muito, porque assim, você aprende estrutura da organização da educação no Brasil, uma disciplina na universidade, se eu não me engano está no primeiro período. Isso ajuda pra conscientizar o estudante de que ele está desde sempre, num curso que forma professores, isso ajuda [...] depois ele vai aprender psicologia da aprendizagem, didática também, nos primeiros períodos. Integrado com as disciplinas da ciência de referência, tá muito pouco, muito pouco relacionado. Mas, com fundamentos que possibilitam ao estudante fazer conexões por ele mesmo. Mesmo que as disciplinas não estejam realizando bem essa conexão, né, o estudante tá recebendo o instrumental pra fazer, pra elaborar por si mesmo. Então, não é irrelevante você ter uma matriz curricular onde a formação docente percorre o curso, por que o 115 instrumental pra que o estudante elabore em si, na sua prática, relações entre a ciência que ele aprende, a ciência de referência, e a ciência pedagógica, e até pra prática profissional também quando ele vai pro estágio, aquilo está disponível, está colocado pra ele. É muito diferente do três mais um. (entrevista 4, linha 500 à 513) Segundo o discurso da professora, a mudança estrutural no currículo da Licenciatura ajuda a “conscientizar o estudante de que ele está desde sempre, num curso que forma professores”, mas, em termos de integração, a professora ainda considera as disciplinas muito pouco integradas, o licenciando precisa fazer as conexões por ele mesmo, movimento difícil diante da bagagem de ensino tradicional que normalmente esses alunos trazem. Apesar desse descompasso entre os professores, a professora Lucia destaca como positiva a formação específica de Química do licenciando da UFF, “o conhecimento duro do nosso aluno aqui na Licenciatura em Química da UFF, é um conhecimento profundo, eles sabem Química. São profissionais, nesse ponto de vista, muito bem informados”(entrevista 4, linha 274 à 275), mas coloca como aspecto negativo a falta de “sentido” dessa formação na própria graduação, Prof. Lucia: [...] Falta justamente é dar sentido a essa formação na própria graduação, porque acaba que eles às vezes revelam coisas do tipo assim: Professora, alguns professores nossos dizem que a gente não sabe Química. Nós vamos nos formar sem saber Química, porque nós não sabemos aplicar isso, nós estamos aprendendo nós não sabemos aonde isso está. Como se aplica? No meu cotidiano, onde é que isso está? Bom, isso é uma deficiência da formação, né? (entrevista 4, linha 276 à 280) No trecho em que a professora resgata a voz dos seus alunos, “Professora, alguns professores nossos dizem que a gente não sabe Química. Nós vamos nos formar sem saber Química”, posso conjeturar que essas falas dos licenciandos possam estar influenciadas pelos discursos de professores insatisfeitos com a reforma curricular e que acreditam que essa reforma empobreceu o currículo químico da Licenciatura. Justifico essa hipótese devido ao eco no discurso do professor José que acredita que os alunos de hoje, que estão nesse currículo reformado, não possuem um conhecimento químico profundo, mesmo que essa profundidade careça de sentido, pois ainda na fala trazida pela professora, colocam os licenciandos: “nós não sabemos aplicar isso, nós estamos aprendendo nós não sabemos aonde isso está. Como se aplica? No meu cotidiano, onde é que isso está?”. 116 Retomo aqui a questão da transposição didática por acreditar que esse movimento de “dar sentido à formação” se enquadre nesse movimento de justificar para o futuro professor a razão da presença daquele conteúdo em sua trajetória formativa, viés defendido apenas pelas professoras Ana e Lucia. A professora Maria e o professor José setorizam essa responsabilidade para as disciplinas pedagógicas. A professora Lucia acredita que os professores universitários precisam tomar a consciência de que são professores e, nesse sentido, a universidade precisa mobilizá-los através de cursos de formação, palestras, debates sobre a prática docente, etc. Realidade ainda distante do corpo docente da UFF. Quando perguntada sobre as exigências do professor universitário, a professora coloca que o ritmo é exaustivo e que a universidade está assentada em um quadripé (apresentando a gestão como mais uma dimensão da tríade Pesquisa, Ensino e Extensão), nas suas palavras, Prof. Lucia: Arranca o couro... Olha, é uma loucura porque... Num outro dia disse um colega aqui, na faculdade de educação, a gente tem um quadripé... Não é um tripé, não, é um quadripé. Você é um professor universitário, você tem que ter propostas para o Ensino, pra pesquisa, pra extensão, e para a gestão. Porque a estrutura da universidade pública no Brasil, é de gestão democrática, então você tem que tratar de organismos colegiados e tudo mais. Onde você vai ter um monte de orientações... você vai ter as suas aulas, vai preparar, ter material, leitura, enfim, e metodologias e tudo mais. Você tem que pesquisar, você tem que publicar, você tem que levar o produto do seu trabalho pra sociedade, você tem uma dívida social que você tem que retribuir, então você tem que ter proposta de extensão. Vou falar publicar de novo, porque publicar é obrigação que mais a gente vê enquanto instituição acadêmica, né? Enfim, talvez a extensão faça um papel tão relevante ou mais que a publicação em termos de abrilhantar resultados do trabalho da universidade, da sociedade. Mas a publicação é aquela obrigação que somos cobrados. Então você tem muito trabalho, muito trabalho. (entrevista 4, linha 359 à 370) A professora traz a voz de um de seus pares de profissão “Num outro dia disse um colega aqui, na faculdade de educação, a gente tem um quadripé... Não é um tripé, não, é um quadripé” para ratificar, nesse movimento polifônico, que sua opinião sobre as dimensões que atravessam o professor universitário confluem com outras vozes. Ademais, dentre as atividades exercidas pelo professor, a professora realça a publicação como a instância mais cobrada no ambiente acadêmico, como é possível observar no trecho: “Vou falar publicar de novo, porque publicar é obrigação que mais 117 a gente vê enquanto instituição acadêmica, né?[...] a publicação é aquela obrigação que somos cobrados”. Na sequência, perguntei em que medida essas demandas influenciam a atuação da professora em sala de aula. Segundo a professora Lucia, essas demandas contribuem, mesmo que às vezes ela se sinta sobrecarregada, e localiza os “prazos” como os principais fatores do estresse do cotidiano do professor universitário, que afetam inclusive a qualidade da pesquisa, Prof. Lucia: [...] quando você tem a obrigação de apresentar resultado num tempo curto, às vezes acontece de os dados não amadurecerem. Então, eu não sei, acho que esse é um modo muito cruel de buscar qualidade para universidade, porque nem sempre resulta em qualidade; resulta sobrecarga, aligeiramento. É preciso ter muito cuidado, sabe? E a gente tem que ter muito jogo de cintura pra de fato fazer com que uma determinada atividade que você realize, seja contributiva pra outra, porque se você for se desdobrar, aí fica tudo mal feito e as coisas mal feitas não servem né? (entrevista 4, linha 375 à 380) Como colocado pela professora, um dos desafios dos professores universitários atualmente é alinhar suas atividades para que elas possam contribuir com os índices avaliativos que a universidade e os órgãos de fomento à pesquisa impõem, como destacado no trecho: “E a gente tem que ter muito jogo de cintura pra de fato fazer com que uma determinada atividade que você realize, seja contributiva pra outra, porque se você for se desdobrar, aí fica tudo mal feito e as coisas mal feitas não servem né?”. Quando perguntada sobre como ela hierarquiza as dimensões Pesquisa, Ensino e Extensão, a professora coloca que, como seu cargo é de docente, o Ensino, em uma situação ideal, deveria ser o mais importante, e complementa, Prof. Lucia: [...] eu acho que deveria ser o Ensino. Acho que o Ensino deveria ser a base pra sua pesquisa, acho que a sua pesquisa pode contribuir para o seu Ensino, desde que você não faça do seu Ensino, reprodução de suas pesquisas, não é? Porque também você não pode levar pra sua sala de aula, aquilo que você pesquisar senão você limita muito. Mas, eu acho que tudo o que a gente produz precisa reverter para o Ensino. Acho que, quando a gente propõe uma atividade de extensão, ela tem que ser uma atividade que ensine. Porque é pouco eu ser, ou o professor ser doutor, pesquisador, pra um projeto de extensão. Eu quero formar um monte de pessoas que saibam realizar bem as duas tarefas, e que as multipliquem em coisas boas. Então, eu acho que o Ensino deveria ser o alvo principal. Você pesquisa, pra você formar conhecimento, você orienta pesquisa pra que outras pessoas formem conhecimento, isso é super relevante, e não só na pós-graduação. Se você tem a pesquisa como um princípio 118 educativo, o seu aluno é levado a pesquisar, né, a ter conclusões sobre o que ele foi buscar. Isso é formador. Então, eu acho que a dimensão de maior importância é o Ensino. (entrevista 4, linha 387 à 398) Segundo a professora, em uma situação ideal, o Ensino deveria permear todas as atividades na universidade, no sentido de formar multiplicadores que saibam executar bem suas tarefas e propaguem em coisas boas para sociedade, mas ressalta que o ensino não pode ser mera reprodução de pesquisas, por considerar esse movimento muito limitado, como destacado no trecho: “desde que você não faça do seu Ensino, reprodução de suas pesquisas, não é? Porque também você não pode levar pra sua sala de aula, aquilo que você pesquisar senão você limita muito”. No entanto, pensando na cultura acadêmica atual, ela coloca a Pesquisa como a dimensão mais importante, o Ensino em segundo lugar e a Extensão por último, assim como os demais professores valoraram. e) Relação entre os professores nesse episódio Após a análise, da mesma forma que no outro episódio, percebo algumas conexões e/ou desconexões que considero relevantes: A reforma curricular da Licenciatura em Química para o professor José e para a professora Maria tornou o curso mais generalista, empobrecido nos conhecimentos Químicos, devido ao “enxugamento curricular” sofrido. O professor José inclusive considera esse enxugamento como um dos principais problemas ocasionados pela reforma pois “essa pessoa que se forma em Licenciatura, ele pode ser formado também em bacharel, ela pode querer de hoje pra amanhã trabalhar numa indústria, por que não, né?”, como se esse movimento restringisse o campo de atuação do licenciando. Esse “enxugamento” ao qual os professores se referem diz respeito à retirada, acréscimo e reformulação das disciplinas do antigo currículo da Licenciatura ocorrido na última reforma e busca a construção de um currículo com identidade (como destacado pela professora Ana), voltado para Licenciatura, que busca se afastar do antigo perfil de “complementação do bacharelado”, e esse movimento tem sido valorado na literatura de pesquisa em Ensino como um aspecto positivo, ao contrário do apontado pelos professores José e Maria, o que pode revelar lógicas de pensamento que colocam em segundo plano qualquer disciplina que não seja da formação específica, ou seja, para formar um bom professor de Química, basta saber bem o conteúdo Químico. 119 Outra congruência interessante entre os professores José e Maria é sua visão restrita sobre a disciplina “Introdução à Química Quântica” e “Química Quântica aplicada”, ambos destacaram que não percebem a utilidade dessas disciplinas (implementadas após a reforma curricular) para o licenciando. No entanto, esse conceito é fundamental e inclusive permeou alguns temas dos minicursos oferecidos no evento XXIX ENEQUI99 (um dos eventos de grande destaque entre os pesquisadores da área de Ensino em Química), pois, além de embasar uma série de outros conceitos na Química como a Eletrosfera Atômica, as Ligações Químicas e Geometria Molecular, permite o entendimento de diversas tecnologias que permeiam a sociedade como: os Raios X, o raio Laser (leitores de CD e DVD e códigos de barra), a comunicação via satélite ou antena (funcionamento de televisores, rádios e telefones celulares), o forno de micro-ondas, etc. Portanto, ao contrario da valoração dada a essa disciplina por esses professores, considero que essa seja relevante para formação do Licenciado. Todos ordenaram a tríade Pesquisa/Ensino/Extensão na mesma escala de importância, em primeiro lugar a Pesquisa, em segundo o Ensino e por último, e ainda de forma pouco expressiva, a Extensão. A UFF apresenta a pós-graduação stricto sensu consolidada100 e os discursos analisados revelaram uma escala hierárquica de importância atribuída a essas atividades da universidade. No topo, a Pesquisa, no meio, o Ensino, que ainda pode ser dividido em ensino de graduação e pós-graduação101 e por fim a Extensão, por vezes confundida como “prestação de serviços” (SGUISSARDI, 2009). Sobre a graduação (foco desta tese), Sguissardi coloca, Na graduação, mais do que a aula propriamente dita, valoriza-se a iniciação científica, em especial quando se tem em vista preparar futuros candidatos ao mestrado e ao doutorado nos programas da instituição em que atuam esses professores e ali garantem o essencial de seu trabalho e prestígio acadêmicos. (p.143, 2009) 99 Vigésimo nono Encontro Nacional de Ensino de Química, realizado em Curitiba-PR, detalhes dos temas dos minicursos e palestras consultados no site: http://www.enequi2011.ct.utfpr.edu.br/index.html, acessado em 11 de Julho de 2011. 100 A UFF, em levantamento feito no ano de 2005, oferecia 63 cursos de graduação, 40 cursos de Mestrado e 22 de Doutorado e apresentava em seu quadro permanente 48,9% de doutores (SGUISSARDI, 2009). 101 Vinculam-se nessa divisão do ensino as atividades de orientação de mestrandos e doutorandos, visando à produção de suas dissertações e teses, que poderão ser antecedidas, acompanhadas ou seguidas de “trabalhos” para congressos e artigos para revistas científicas, quesitos bastante valorizados no mercado acadêmico (SGUISSARD, 2009). 120 Uma consequência da Pesquisa como ápice das atividades docentes foi a gradativa desvalorização do ensino de graduação. Essa desvalorização não alcança ainda o patamar da extensão, mas já é considerada, em algumas graduações, como espaço prioritário de atuação dos professores substitutos102, uma espécie de exército de reverva103 para suprir as vagas produzidas e não preenchidas das políticas oficiais para as Instituições Federais de Ensino Superior104. Afinal de contas, cada dia mais os professores efetivos se encontram ocupados e preocupados com seus respectivos diretórios de pesquisa, do CNPq105, com seus vínculos a grupos de pesquisa nacionais e internacionais e com a produção intelectual requerida (op. cited). Com relação a essa produção intelectual supracitada, a professora Lucia levanta a questão dos prazos dos produtos de pesquisa, colocando-os como fatores que tornam por vezes o cotidiano docente massacrante. Além disso, segundo a professora Maria, as instituições de fomento à pesquisa exigem um nível de publicações que despende tempo e dedicação dos docentes e que “fecha os olhos” desses profissionais para outras atividades (como o Ensino) e relata que, devido ao tempo que essa atividade toma, muitos professores preferem lecionar por anos a mesma disciplina para evitar a preparação de novas aulas. Finalizo esses entraves provocados pela supervalorização da pesquisa nas atividades docentes com o professor José, que coloca que a pesquisa diminui seu tempo para preparação de aulas. Entretanto, mesmo diante de todas esses entraves que os professores relatam sobre a influência da Pesquisa na sala de aula, todos apostam na Pesquisa como fator que melhora esse ambiente, por trazer conteúdos sempre atualizados aos alunos. Cabe destacar que nem sempre a Pesquisa que o professor realiza na universidade conversa com a disciplina que ele leciona em sala, o que pode tornar esse argumento falho. Ademais, essa defesa da Pesquisa (principalmente as suportadas pelos órgãos de fomento à pesquisa) pode estar associada à ideologia do empreendedorismo que 102 Os professores substitutos são professores contratados por tempo determinado, sem plano de carreira e mal-remunerados (SGUISSARDI, 2009). 103 Com soldados inexperientes, recém-formados que às vezes assumem cargas horárias altas em diferentes disciplinas da graduação. 104 Um adendo sobre a situação na UFF no que tange às vagas não preenchidas citadas nesse parágrafo, entre 1995 e 2005, essa universidade aumentou o número de cursos de graduação em 40%, o número de cursos de Mestrado em 48,1% e número dos cursos de Doutorado em espetaculares 266,7% (Tabela 22, p.94, SGUISSARDI, 2009), enquanto o quadro docente dessa universidade no mesmo período (1995/2005) sofreu uma involução com uma diminuição de 10% no quantitativo de seu corpo docente efetivo (Tabela 38, p.105, SGUISSARDI, 2009). 105 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. 121 permeia as universidades atuais, uma vez que o “funcionamento cotidiano das faculdades e cursos depende cada vez mais da iniciativa de suas professores na busca de recursos extra-orçamentários de todas as fontes” (p.159, SGUISSARDI, 2009). Outra consequência da valorização da pesquisa ocorre, como colocado no discurso da professora Ana, nos processos seletivos para professores efetivos nas universidades, que ao mesmo tempo que procura “pesquisadores prontos” aprovam professores que não “sabem dar aula”. A professora traz um problema atual na universidade: os alunos de Bacharelado percorrem uma trajetória formativa em que, em muitos casos, a sala de aula (e as questões pedagógicas que a permeiam) não é abordada. Essa formação pedagógica não é nem proporcionada ao bacharel e nem exigida pela legislação oficial ao docente de Ensino Superior, o que afeta o desempenho desses professores em sala de aula, que esperam que os alunos atinjam metas inalcançáveis pra eles em determinadas etapas do curso. Para minimizar essa defasagem no que tange à formação pedagógica, os programas de pós-graduação estão exigindo (mais recentemente) vivências em sala de aula de seus pós-graduandos, que atuam em sala com outros professores numa espécie de estágio docente. Algumas instituições particulares oferecem o curso de “docência superior” que licencia o bacharel para lecionar no nível superior. Finalizo com um breve adendo sobre o relato dos professores Maria e José, que supõem numa situação ideal que a universidade deveria conjugar Ensino, Pesquisa e Extensão num mesmo tom. Situação, por todas as evidências colocadas nesse tópico, muito distante da real. Se já existe uma notória dificuldade prática de uma adequada associação entre Ensino e Pesquisa, mais difícil ainda seria uma adequada associação entre Pesquisa, Ensino e Extensão, ainda mais quando esses dois últimos, em tempos de produtivismo acadêmico não soem ter o prestígio da produção científica e sua divulgação nos veículos Qualis A ou B nacionais e/ou internacionais106. As professoras Ana, Maria e Lucia apontaram um desencontro de objetivos comuns entre os professores que lecionam as disciplinas da formação 106 O Qualis é uma classificação feita pela CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) dos veículos utilizados pelos programas de pós-graduação para a divulgação da produção intelectual de seus docentes e alunos, cujo objetivo é atender às necessidades específicas da avaliação da pós-graduação realizada por esta agência. 122 profissional da Licenciatura, abarcando tanto as disciplinas da Química específica como as relações entre essas disciplinas e as da Faculdade de Educação. Essa falta dessa integração reproduz o mesmo ideário do currículo 3+1 numa estrutura reformada. Obviamente que as razões desse descompasso não podem ser tomadas aqui num tom meramente emocional, de “má vontade” por parte dos professores imbricados nesse processo. Como colocado no tópico anterior, existem outros condicionantes que tornam o cotidiano do professor universitário complexo e, para alguns, massacrante, dificultando ações que busquem a integração desses docentes. Acho oportuno localizar a publicação “Novos rumos da Licenciatura” organizada por Vera Candau (1987) e que reúne pesquisas realizadas na década de 80 sobre a temática da formação docente. Apesar de sua idade, esse documento faz considerações relevantes sobre a falta de integração ocorrida nas licenciaturas desde os primórdios de sua existência. Segundo Fenelon (1983 apud CANDAU, 1987), a falta de integração entre os professores imbricados na formação do licenciando deve-se ao fato de que “não conseguimos pensar a educação como algo global e único, mas que tem especificidades que não sabemos como preservar senão quando cada um demarca seu campo e não permite a entrada de outros” (p.1258, 1983 apud CANDAU, 1987). Ademais destaco que no relato da professora Maria de que os objetivos formativos de cada disciplina e do curso como um todo são nebulosos, “tudo muito feito na intuição”, não pode ser considerado algo de dimensão documental, pois a Licenciatura em Química da UFF apresenta um Plano Político Pedagógico que norteia os objetivos dessa graduação. Sendo assim, essa nebulosidade ganha talvez uma dimensão pragmática, fazendo emergir questões como: até que ponto esse plano foi divulgado, debatido e incorporado aos fazeres dos professores? Será que os professores que atuam nas disciplinas de formação básica e profissional da Licenciatura (Química específica) sabem os objetivos de suas disciplinas e de outras no processo formativo do licenciando? A ideia de objetivos intuitivos revela um possível desconhecimento desse plano, e se os licenciandos são formados sem objetivos compartilhados entre as disciplinas, que perfil profissional está sendo construído? Mesmo diante da inviabilidade de entrevistar todos os professores da universidade, o quarteto de professores selecionados atua em diferentes momentos e 123 áreas da trajetória formativa oferecida aos licenciandos e, desta forma, diante do desencontro destacado por todos eles, posso amplificar minhas impressões e concluir que essas questões não foram debatidas também com os outros professores da Licenciatura e, por conta disso, os professores da Licenciatura não sabem com clareza qual o perfil profissional que o curso pretende formar. 6.2) O arremate... Busco nessa seção sondar as concepções dos professores sobre o papel do professor universitário e do professor de Ensino Médio na sociedade, bem como sobre o papel da instituição universidade e juntamente com os apontamentos já realizados nos outros momentos, contribuir com reflexões sobre a formação de professores de Química oferecida pela UFF. a) Professora Maria Quando perguntada sobre o papel do professor universitário e o papel do professor de Ensino Médio, a professora Maria inicia seu discurso localizando os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) como marcos de uma mudança no perfil formativo do professor e acredita que a universidade deva estar preparada para formar esse novo profissional, Prof. Maria: Olha, a gente tem PCN, né, PCN do Ensino Médio. Se você vê aquele PCN, você vê a tua geração pra trás não foi formada pra usar aquele PCN. O ENEM nesses novos moldes, também vejo que fica muito difícil, pro professor de Ensino Médio que não batalha, que não corre atrás, não continua numa formação, se adequar ao ENEM, senão ele vai ficar, pesquisa de Google, “Control C, Control V”, copiando textos que ele mesmo não tem noção, não entende, não sabe por quê. Então eu vejo que o papel da universidade é que começa pra poder formar aquele profissional, pra se adequar à legislação, educação ambiental é lei e não é aplicada. Ninguém tem na formação ou alguma disciplina... Você vê, primeiro já começa a lei dizendo que educação ambiental não pode ser uma disciplina, pela interdisciplinaridade, por todas as trans-disciplinaridades, por isso. Mas, quem é que vai formar um profissional pra atuar em educação ambiental? Se ele não teve a sua formação na graduação, aí ele vai fazer o que? Uma feira de ciências, né, uma catação selecionada de lixo e vai achar que aquilo é educação ambiental entendeu? Então, o início é universidade. Então, a universidade é que tem que preparar o profissional pra atuar nos PCN’s, na legislação. (entrevista 1, linha 337 à 349) 124 No discurso da professora Maria, fica claro o entendimento da dificuldade que os professores de Ensino Médio, na visão da professora, que não buscam uma formação continuada “que não batalha, que não corre atrás, não continua numa formação, se adequar ao ENEM” despertarem dessa lógica de reprodução de conhecimentos sem reflexão “senão ele vai ficar, pesquisa de Google, “Control C, Control V”, copiando textos que ele mesmo não tem noção, não entende, não sabe por quê” e complementa citando alguns projetos comumente desenvolvidos nas escolas como as “feiras de ciências” e a “catação selecionada de lixo” que não alcançam os objetivos, no seu entendimento, de educação ambiental. Nesse sentido, segundo a professora, o professor universitário deve se preparar para saber formar esse novo profissional que o mercado exige, como coloca, Prof. Maria: Eu não tive essa formação, você não teve. Então, o que tem que ser feito? Preparar pra mostrar que existe algo além, que não é só uma feira de ciências e dizer que...Isso é educação ambiental, por exemplo, estou dando um exemplo, né? mesma coisa do ENEM, o ENEM semestre passado, está tendo curso da especialização, e os professores perdidos, pesquisa de internet direto, entendeu? Ainda falava assim, “Você acha que é por aí?” Nos livros textos tem tudo, num nível, e se você for pra internet, tem coisas boas, tem coisas ruins, mas será que o aluno do Ensino Médio está preparado praquele texto da internet? Enquanto você também não está. Entendeu? Então o que eu via tinha que preparar lista de exercícios aquele afã (affair) de modelo ENEM, entendeu? Eu fiquei muito chocada com essa coisa, a cobrança das escolas, cobrando uma nova maneira de cobrar os exercícios, num modelo, que não foi formado, nem coordenador, nem ninguém, que está copiando uma receita... Entendeu? Criou essa confusão toda... (entrevista 1, linha 356 à 366) A professora Maria levanta um ponto interessante de discussão: a maior parte das escolas ainda está permeada por um tipo de Ensino propedêutico e disciplinar, no qual temas que atravessam diferentes disciplinas não costumam ser abordados de forma interdisciplinar. O ENEM procurou, em algumas de suas questões, trabalhar com a interdisciplinaridade e isso deixou muitos professores perdidos, talvez por não terem sido formados com esse paradigma. Já o papel do professor de Ensino Médio, segundo a professora, é formar o cidadão, indivíduo capaz de entender o mundo em que ele está inserido, e prepará-lo para uma formação técnica ou para a universidade, opinião influenciada por suas leituras na área de Ensino. Caminhando para o papel da universidade na sociedade, a professora coloca, 125 Prof. Maria: É, de formar profissionais capazes, né, num país com essa divergência que a gente tem aí entre estados, entre regiões, né, o papel da universidade é realmente formar uma elite pensante. A universidade ainda é para uma elite, não uma elite social, não tem nada a ver com cota, nada disso, mas tem que ser pra pessoas que realmente têm uma capacidade intelectual de ir além, porque também na universidade os currículos são muito engessados. [...] E eu acho que é o papel da universidade, realmente formar uma elite pensante como qualquer outro país do mundo, né, e aqui as divergências regionais são complicadas, porque você não tem o mesmo perfil em todos os locais. (entrevista 1, linha 375 à 383) O direcionamento discursivo fica claro com sua preocupação em esclarecer para o pesquisador na área de educação que sua visão de elite não está associada à questão social das cotas, mas à questão de “capacidade intelectual de ir além”, essa última declaração me remete às já superadas concepções inatistas107 no que tange aos alunos. A professora Maria critica o engessamento curricular que permeia a universidade, alheia às particularidades de cada região e aposta na universidade como espaço de formação de uma elite pensante que coopere para a diminuição das divergências entre estados e regiões. Essa última posição revela uma concepção contrária às pressões exercida pelos movimentos sociais brasileiros pela democratização do acesso ao nível superior; cito o programa “Universidade para Todos” (PROUNI), lançado pelo governo Lula no primeiro semestre de 2004, como um dos marcos em termos de políticas públicas nesse sentido. b) Professora Ana A professora Ana, ao ser perguntada sobre o papel do professor universitário, valoriza o envolvimento desses profissionais com as Licenciaturas por acreditar que esses profissionais podem contribuir com a formação dos licenciados, mas adverte, Prof. Ana: [...] O professor está preocupado com o conteúdo, agora com o conhecimento muito grande na área dele, de Química, de física, de matemática, a contribuição que ele pode dar pra formação do licenciado é extremamente... é muito grande, porque ele pode trabalhar aquele conteúdo com licenciado, ensinando, ou ajudando ele a aprender [...] Mas para isso a gente vai esbarrar em outros problemas, que o próprio professor universitário tem que aprender a ser professor antes de passar isso para o aluno, então você conta com 107 Essa perspectiva entende que o ser humano é um sujeito fechado em si mesmo, nasce com potencialidades, com dons e aptidões que serão desenvolvidos de acordo com seu amadurecimento biológico. 126 professores com mais envolvimento pra poder ajudar na Licenciatura, os novos não têm condições.(entrevista 2, linha 514 à 522) A professora Ana endereça sua resposta a um grupo de professores que atuam na área da Química específica, profissionais que, segundo ela, são conteudistas “O professor está preocupado com o conteúdo” e precisam aprender a serem professores. Essa observação nos remete aos apontamentos da professora Lucia, que da mesma forma coloca que os alunos do curso de Química apresentam uma boa formação em termos de conteúdos, mas falta “dar sentido” a esses conteúdos, e atribui essa lacuna a esse fato, a falta de conscientização de que os professores universitários são professores. Caminhando sobre o papel do professor do Ensino Médio, a professora ainda se mantém vinculada ao processo formativo em seu discurso e responde com relação à função do professor do Ensino Médio como agente de troca de saberes nas escolas, como peça fundamental do processo formativo do licenciando. E conclui afirmando que esse professor deve saber estimular, motivar o aluno para aprender o conteúdo. Sobre o papel da universidade na sociedade, ela coloca, Prof. Ana: Eu acho que é de fundamental importância. Na universidade que se desenvolve novas tecnologias que vão ser repassadas para benefício da sociedade, é a universidade que desenvolve, né? que forma os novos profissionais que vão contribuir para sociedade... Então eu acho que a universidade, ela é o motor que move toda a sociedade o desenvolvimento de um país, né? Porque se não houver uma boa formação dentro da universidade desses profissionais e dessas novas tecnologias, você não tem como contribuir para evolução da sociedade, ela não tem como contribuir para uma qualidade melhor de vida né? das pessoas, das diferenças sociais, né? Atuar, melhorar o nível de pobreza, eu acho que a universidade ela tem um papel importante no momento que ela forma e esse profissional dá o retorno à sociedade e no desenvolvimento das novas tecnologias... (entrevista 2, linha 541 à 549) A professora Ana retrata a universidade como o motor que “move toda a sociedade e o desenvolvimento de um país” na medida em que forma profissionais capacitados ou, como sugere a professora Maria, a “elite pensante” da sociedade. O retorno desses profissionais no que tange à evolução da sociedade é uma questão de compromisso devido aos impostos que mantêm a instituição. 127 c) Professor José O professor José, quando perguntado sobre o papel do professor universitário, afirma que esse profissional além de ter a capacidade de estimular o estudante para a aprendizagem do assunto, precisa ter uma visão geral de mercado, em suas palavras, Prof. José: [...] ele tem que saber que ele não vai formar só pesquisadores, ou só profissionais para a indústria, ou só professores do Ensino médio. Então ele tem que dar uma formação ampla a essas pessoas, uma formação com conteúdo, com didática. (entrevista 3, linha 392 à 396) Enquanto o professor universitário, segundo o professor José, deva estar preparado para formar diferentes perfis de graduandos, o que simplifica a complexidade inerente de cada perfil profissional, a definição do papel do professor do Ensino Médio é posta a partir de uma perspectiva de chegada à universidade, pois o professor indica em seu discurso que Prof. José: O professor do Ensino médio, né, o que eu gostaria é que ele... que o estudante viesse pra cá, com conceitos bem sedimentados. Não precisaria ser conceitos amplos [...] O que ele precisa, que eu gostaria que ele soubesse do Ensino médio quando viesse pra cá, é saber que uma concentração de solução, isso ele pode usar lá fora, ele pode usar no seu cotidiano, como preparar uma solução a 10%. Ou o conceito de ácidos e bases [...] mas isso bem sedimentado. Você pode ministrar menos quantidade no Ensino médio, menos quantidade, menos conteúdo, mas ministrados de forma bem sedimentada. Porque isso vai fazer com que o profissional que vai fazer advocacia, conheça a Química que ele precisa pro dia a dia. Ah, e o pessoal que vai fazer Química? Ah, ele vai aprender o resto aqui (entrevista 3, linha 396 à 405) O professor não menciona a formação cidadã como um dos papéis do professor do Ensino Médio e o coloca a serviço da universidade, como preparador dos alunos ingressantes desse nível. Com relação a essa formação cidadã, acredito que ele não a mencione talvez por acreditar que a universidade deveria estar inserida o suficiente nas cidades para formar o cidadão através de projetos de Ensino e extensão, como ele coloca quando perguntado sobre o papel das universidades na sociedade brasileira, Prof. José: Olha, as universidades na Europa, elas estão fortemente inseridas nas cidades. Tem cidades que basicamente vivem em função de universidades. Por exemplo: a Arihant, na Espanha, em função da universidade de Arihant, a Grenoble, na França, né, vive em função da 128 universidade também, são cidades universitárias, né? Então, quando você tem uma universidade fortemente inserida numa sociedade, e isso ela pode fazer através de projetos não só de Ensino, mas também de Extensão, até a Pesquisa contribui pra isso, né, você acaba tendo uma população culturalmente melhor. Então, essa população culturalmente melhor, mais preparada, ela certamente não vai tomar atitudes, né, como acho que nós vemos sendo tomadas hoje em muitos países, no Brasil por exemplo. Tanta má educação, no trânsito, tantos problemas sociais que nós temos, isso é facilmente resolvível com a educação, e isso é o papel da universidade, ela se inserir bem na comunidade, na sociedade, para que várias pessoas tenham um outro tipo de padrão de comportamento, inclusive de valores; valores éticos; valores de cidadania. Isso a universidade tem que fazer, tá, na questão cidadã mesmo, na questão política, a universidade tem que se inserir bem na sociedade, mostrar a sociedade, discutir com a sociedade, todas essas questões éticas, de cidadania, política. Política ela até faz alguma coisa, mas nem sempre é bem compreendida. Mas eu acho que falta trabalhar mais nisso. (entrevista 3, linha 410 à 424) A universidade na concepção do professor José deveria estar inserida na vida das cidades ou das regiões do entorno da instituição, no entanto, cabe ressaltar que na Europa algumas universidades são seculares e suas histórias se confundem com as origens dos centros urbanos, no Brasil, as universidades chegaram tardiamente, no que se refere à estruturação dos centros urbanos, o que não impede que as mesmas se insiram na vida desses centros, mas, para isso, as atividades de extensão deveriam se fortalecer muito mais. Outro aspecto interessante é que, ao contrário do que foi sugerido pelo professor José, as pesquisas na área de Educação e os Parâmetros Curriculares Nacionais creditam a responsabilidade pela formação cidadã às instituições de Ensino básico, o que não impede que as universidades auxiliem, através de parcerias, esse processo. d) Professora Lucia A professora Lucia considera que o papel do professor universitário é formar o profissional, “o professor da universidade prepara alguém capaz de executar com qualidade, com competência, suas atividades profissionais” (entrevista 4, linha 421 à 423). Já o professor de Ensino Médio, Prof. Lucia: [...] o professor do Ensino médio forma as pessoas para as múltiplas facetas da sua vida, enquanto ser social. Então ele precisa ter conhecimentos para o cotidiano, no caso da Química, existe muita coisa no cotidiano que ele poderia tá conhecendo melhor, né, a gente lida com produtos químicos o tempo todo, parar com essa bobagem de dizer: “Ah, essa aqui não tem Química, por isso que é boa”. Isso é 129 natural, é natural, é ótimo, né? “Ah, essa água nem tem cloro, ela é pura”. E eu como Química tenho vontade de dizer assim: “Ai meu Deus! Tinha que ter”. Então, eu acho que formar as pessoas para viverem melhor em aspectos corriqueiros, cotidianos, né, nas suas vidas, para saberem lidar melhor uns com os outros... [...] Isso é contribuírem para sua comunidade, pra fazer parte de um grupo, e até pra se preparar com o trabalho, mas preparar para um trabalho é algo mais genérico do que formar um profissional. Preparar para o trabalho, é você ter um monte de aptidões, de conhecimentos, né, mais gerais, é saber usar um computador, é saber trabalhar em equipe, é saber aproveitar bem de uma leitura, expressar bem por escrito. Enfim, preparar essa pessoa, a pessoa estará apta para exercer atividades profissionais, e que não significa ter conhecimento profissional. Então, essa formação mais ampla do Ensino médio, eu acho muito importante pra formar as pessoas, e pra conhecerem as profissões. (entrevista 4, linha 423 à 439) As ideias expressas pela professora com relação ao papel do professor do Ensino Médio vão ao encontro dos apontamentos mais atuais das pesquisas em Ensino de Ciências, que orienta essa educação para as questões e problemas sociais que terão que ser enfrentados pela humanidade no século XXI, como: a crise ambiental global, a injustiça social global e a opressão e injustiça invisíveis para com os mais jovens, questões que buscam contribuir para melhora da vida social (LEMKE, 2005). No que tange ao papel da universidade, a professora acha importantíssimo e complementa, Prof. Lucia: Então, eu tenho plena certeza até de que um jovem de que não passa pela universidade, ele sabe menos da vida, de tudo, não só da profissão não, porque tem todo também um modo de vivência, a própria cultura, a maneira de ser e de estar na universidade, também ensina. Então, a universidade é muito importante, importante pra formação de profissionais, importante pela constituição de conhecimentos, pela parte da pesquisa, importante pelo retorno que dá à sociedade, tanto na divulgação, temos acesso à produção acadêmica, quanto nos projetos de extensão. A universidade é fundamental pra constituição de uma sociedade mais equilibrada, enfim, ela tem muito a oferecer, a universidade tem muito a oferecer. (entrevista 4, linha 447 à 453). A professora coloca a universidade como espaço de complementação de formação do jovem que extrapola a questão profissional e a considera como parte constituinte de uma sociedade mais equilibrada. e) Relação entre as professoras nesse episódio 130 Exponho nas linhas que seguem algumas conexões e/ou desconexões que considero relevantes na análise desse episódio: Ser um profissional preparado para formar bons profissionais é o papel do professor universitário segundo as professoras Maria e Lucia e o professor José. Esse último acrescenta que o professor deva ser capaz de estimular o estudante e oferecer ampla formação ao mesmo. A professora Ana coloca que o professor universitário deve estar envolvido com a Licenciatura. Todos assumidamente creditam a responsabilidade de formar bons profissionais aos professores universitários, mas seus discursos revelam fazeres em que essa dimensão, o ensino, não é prioridade. O papel do professor do Ensino Médio para as professoras Maria e Lucia é formar o cidadão, enquanto que o professor José e a professora Ana definem a função desse professor com foco na universidade: o professor José em função de como ele gostaria que o estudante chegasse ao nível universitário e a professora Ana em função da importância do mesmo na troca de saberes com o licenciando. Interessante destacar que somente as professoras que tiveram contato com a área de Pesquisa em educação (Maria e Lucia) colocaram a formação cidadã como uma das atribuições do professor do Ensino Médio, enquanto o professor José e a professora Ana colocaram esses professores subordinados à universidade, o que pode revelar a concepção desse professor como transmissor e reprodutor de conhecimentos produzidos na universidade. No que tange ao papel da universidade, as professoras Maria e Ana consideram essa instituição como um espaço para formação de profissionais capazes de contribuir com a evolução da sociedade. A professor José coloca que a universidade deveria estar inserida na cidade, ajudando no desenvolvimento da mesma e auxiliando a formação cidadã. A professora Lucia retrata essa instituição como espaço de complementação da formação do jovem, que ultrapassa a questão profissional. Todos apontaram para o papel formativo das universidades, no entanto, embora essa consideração pareça óbvia e indissociável dessa instituição, as circunstâncias instáveis atuais de funcionamento, sua manutenção e sobrevivência desvirtuam esse 131 papel essencial. As universidades atuais se aproximam cada vez mais do perfil de centros de pesquisa, em que o nível de qualidade está associado aos indicadores de produção científica, como: patentes, projetos de pesquisa subvencionados, publicações, congressos, etc., enquanto o caráter formativo constitui uma variável de menor importância (ALVAREZ, 2004). O capítulo seis, bem como o anterior (cinco), integra as análises dos quatro momentos da entrevista anunciados no capítulo quatro e, diante dessas leituras e discussões, fui conduzido a algumas considerações sobre o processo formativo oferecido na Licenciatura em Química da UFF e que serão elencadas no próximo capítulo, nas considerações finais. 132 7 CAPÍTULO Aonde essas leituras me levaram? Considerações finais Enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas... continuarei a escrever Clarice Lispector108 O estudo que realizei e formalizo nesta tese abordou algumas temáticas como: os Saberes Docentes, a Pedagogia Universitária, a Universidade e Formação inicial de Professores de Química e foi se constituindo a partir de um ponto de vista ainda pouco abordado na literatura, a dos professores universitários. Algumas indagações principais alicerçaram esta pesquisa desde seu primeiro esboço, são elas: Quais as concepções dos professores universitários sobre a atividade docente? Quais são suas concepções sobre o Ensino? Como ele identifica e valora sua disciplina no processo formativo do Licenciando? Como ele avalia a formação inicial na qual ele está imbricado? Como ele valora a tríade Pesquisa, Ensino e Extensão na universidade? Como essa tríade afeta suas atividades docentes? Quais são suas concepções sobre o papel dos professores de Ensino Médio? E sobre os professores universitários? Qual o papel da universidade? Essas questões foram diluídas, multiplicadas e agrupadas nos quatro episódios analisados nos capítulos cinco e seis desta tese e é a partir do capítulo cinco, onde apresento a rica trajetória acadêmica dos meus quatro sujeitos de pesquisa e suas concepções sobre o “ser professor”, que começo a tecer – com as análises realizadas respostas a essas indagações e que embasarão o texto dessas considerações finais. Os quatro professores apresentam trajetórias formativas e profissionais longas e singulares, todos apresentam mais de 20 anos em sala de aula, e três dos quatro entrevistados apresentam essa vivência somente na UFF. No quarteto entrevistado, duas professoras (Ana e Lucia) são formadas em Licenciatura em Química, em uma época em que vigorava o já explicitado currículo do tipo “3+1” e, por essa razão, seus relatos foram num tom de desvalorização dessa formação pedagógica, considerada por elas deficiente para atuação em sala de aula. 108 Frase retirada da exposição “A hora da Estrela”, sobre a autora, no Centro Cultural Banco do Brasil (RJ), em agosto de 2008. 133 Cabe ressaltar que essa formação foi direcionada para a atuação no nível Médio e não no Superior. Os outros dois professores entrevistados, Maria e José, não possuem Licenciatura e pautaram seus fazeres em sala intuitivamente – da mesma forma que a professora Ana descreve sua primeira experiência em sala de aula – e mesmo que a ausência dessas disciplinas não seja garantia de mediações inadequadas, a formação inicial dos licenciandos pôde, de alguma forma, ter sido prejudicada. Esse entrave da formação apedagógica dos professores da universidade tem suporte legal, como já exposto no capítulo 2, a LDB exige apenas que um terço do corpo docente da universidade pública seja composto por mestres e doutores, o que também não garante a formação pedagógica. Nesse sentido, considero que a universidade carece de cursos de formação continuada para os seus próprios professores, cursos em que sejam debatidas as especificidades do Magistério Superior, que ponham em cheque o processo de ensinar e aprender na prática docente universitária, que estimulem a criação coletiva de propostas desvinculadas dos pressupostos que caracterizam o ensino tradicional, e que valorizem os saberes pedagógicos. Esse preterimento dos saberes pedagógicos, essa noção de que o professor só aprende na prática e que, para ser um bom professor de Química, é preciso ter um bom conteúdo ficou mais evidente quando o professor José e a professora Maria expressaram suas concepções sobre a transposição didática109 dos conteúdos de suas disciplinas, associando essa responsabilidade às disciplinas pedagógicas, diferente das professoras Ana e Lucia que defendem que estas deveriam ser trabalhadas nas próprias disciplinas da Química específica. Ademais, outra concepção que reforça esse perfil conteudista é a noção de que o trio de professores da Química específica compartilha das pós-graduações, como momentos da trajetória profissional de aprofundamento e conexão de conhecimentos da Química. Não obstante esse valor, acredito que as conexões deveriam ser potencializadas na graduação, que deveria ser suficiente para formar o professor de Ensino Médio. 109 Retomo aqui que considero essa transposição didática um movimento de contextualizações e adaptações que podem ser realizadas junto aos conteúdos do nível superior (saberes já ensináveis), para que esses sejam lecionáveis para os alunos do Ensino Médio 134 Retomando a questão da transposição didática, para o Licenciando, que estruturalmente cursa um currículo pensado para atender às necessidades do professor, o debate sobre como os conteúdos do nível superior pode ser lecionado e adaptado ao nível médio é essencial, além de refutar a setorização da formação pedagógica a um pequeno grupo de disciplinas. Todos os professores das disciplinas específicas do conteúdo químico (Maria, Ana e José) apresentam um perfil conteudista e mesmo que apresentem em seu discurso um esforço para contextualização desses conteúdos, essa não alcança a realidade dos licenciandos, pois questões que aludem como esses conteúdos do nível superior se estruturam no Ensino Médio não são contempladas. A ausência dessas pontes com o Ensino Médio provoca hiatos na formação docente e potencializa a formação de profissionais que refletem muito pouco sobre sua prática, sobre o que ensinam e sobre o currículo ensinado, podendo tornar esses futuros professores reprodutores de conteúdos prescritos nos livros didáticos. De forma contrária, o “dar sentido” aos conteúdos ensinados nas disciplinas específicas da Química, colocado pela professora Lucia, passa por uma postura não só de contextualização dos conteúdos para sala de aula, mas de debate de suas raízes epistemológicas. O objetivo é proporcionar ao licenciando uma consciência maior sobre os aspectos históricos e culturais que rondaram a produção daquele conhecimento, para que ele possa desmistificá-lo, percebendo seus sentidos. Além disso, é preciso que as disciplinas estejam mais engajadas em uma proposta nítida de formação docente, pois esse descompasso, esse desencontro de objetivos entre as disciplinas da formação profissional da Licenciatura, que ocorre tanto dentro do Instituto de Química quanto entre o Instituto e a Faculdade de Educação da UFF, reproduz o mesmo ideário do currículo “3+1”. No que tange aos aspectos do cenário acadêmico, inicio com a questão da reforma curricular, por perceber a conexão do perfil conteudista dos professores da Química específica (com exceção da professora Ana) com suas opiniões sobre a reforma curricular da Licenciatura em Química. Esse movimento que buscou dar identidade à formação do professor, acrescentando, retirando ou reformulando disciplinas, foi considerado empobrecedor pelos professores José e Maria. O professor José chega até mesmo a ressaltar que o licenciando deveria ser formado também em Bacharel. Essa última afirmativa remete à valorização da Pesquisa na graduação e, diante disso, discorro sobre a discussão da tríade Pesquisa/Ensino/Extensão no cotidiano dos 135 professores entrevistados, que classificaram a Pesquisa como ápice das atividades docentes, colocando o Ensino em segundo plano e a Extensão como a dimensão menos valorizada. Com relação ao Ensino, todos apontaram que a Pesquisa abarca de forma considerável o tempo e a dedicação do professor universitário em sala de aula, parecendo esses professores estarem atados às engrenagens de uma máquina conduzida pelos órgãos de fomento à pesquisa e pelos sistemas avaliativos da própria universidade, onde a produção acadêmica, como: publicações, projetos de pesquisa, patentes e orientações, entre outras atividades, são moedas de troca para que o professor alcance reconhecimento e gratificações salariais. Mesmo diante dessa precarização da formação pela desvalorização do Ensino, todos os professores consideram que existe nesse movimento de supervalorização da pesquisa uma melhora nas atividades de ensino, por considerarem que essas atividades são indissociáveis. No entanto, cabe ressaltar que essa noção é duvidosa, uma vez que não é a mera coexistência dessas instâncias (Pesquisa e Ensino) que garante a almejada indissociabilidade. A ideia de indissociabilidade deve ser compreendida como algo que ultrapasse a noção de mera coexistência da Pesquisa e do Ensino no corpo de atividades que o docente realiza para se concretizar no trânsito de experiências e conhecimentos que o professor leva aos alunos, como resultado de suas vivências acadêmicas. Essa dimensão se configura atualmente como um desafio para a universidade atual. Assim sendo, é preciso retomar a reflexão teórico-prática rigorosa sobre o ensino e a aprendizagem, para que se possa avançar na questão da prática pedagógica que se dá na universidade em direção da indissociabilidade. No que concerne ao papel do professor universitário e do professor do Ensino Médio, todos os professores definem que o primeiro deva ser um profissional preparado para formar bons profissionais, mesmo que seus discursos revelem fazeres em que essa dimensão, a do ensino, não seja prioridade. Enquanto os professores de Ensino Médio apresentam papéis diferenciados entre os professores entrevistados: para as professoras Maria e Lúcia, o papel de formar o cidadão, e, para os professores José e Ana, uma atribuição de dependência com a universidade, sendo o de preparar bem o aluno para a universidade na visão do professor José e, na visão da professora Ana, a de troca de conhecimentos com os licenciandos. 136 Nesse interim, o papel da universidade, segundo os professores, também possui definições distintas. As professoras Maria e Ana consideram essa instituição um espaço para formação de profissionais capazes de contribuir com a evolução da sociedade. Já o professor José considera que a universidade deveria estar inserida na cidade, ajudando no seu desenvolvimento e auxiliando a formação cidadã. A professora Lucia configura essa instituição como espaço de complementação da formação do jovem, que ultrapassa a questão profissional. As concepções expressas por esses professores sobre os papéis da universidade esboçam um quadro que valora, pelo menos nos discursos, o papel formativo dessas instituições. No entanto, como coloca Zabalza (2004), as universidades apresentam, há tempos, um perfil, cujos aspectos formativos não são colocados em primeiro plano. A precarização do trabalho docente diante da busca de recursos para manter essas instituições através da Pesquisa está prejudicando de forma incisiva os cursos de formação docente. No caso da Licenciatura em Química da UFF, essa lógica não é diferente. Diante da análise dos discursos dos professores que atuam nessa Licenciatura, é possível perceber que essa universidade carece de projetos e iniciativas que aprimorem a formação inicial de professores, tema do último capítulo desta tese. 137 8 CAPÍTULO Aonde esse estudo pode levar? Propostas e esperanças Porque há o direito ao grito. então eu grito. Clarice Lispector110 Diante do quadro esboçado no capítulo anterior sobre a Licenciatura em Química da UFF, exponho nas linhas que seguem alguns exemplos de iniciativas que ocorreram a nível universitário, em diferentes regiões do Brasil, e que aprimoraram a formação inicial dos professores de Química e, no final dos relatos, uma breve conclusão dessas experiências. 8.1) A experiência na Universidade Federal de Goiás (UFG) Nessa instituição, a reforma curricular ocorreu a partir do Projeto PolíticoPedagógico (PPP), reformulado em 2003 e posto em prática em 2004. O ideário que permeia o PPP vai de encontro às políticas que, em virtude da necessidade urgente de se habilitar novos docentes, propõem um aligeiramento do processo formativo sem que os formandos se apropriem dos conhecimentos adequados nem realizem pesquisas fundamentais à formação docente. Busca, contribuir também, de forma efetiva para a dinamização da capacidade de intervenção no coletivo escolar dos alunos e professores envolvidos (ECHEVERRÍA, BENITE & SOARES, 2010). Para isso, o PPP dessa instituição instituiu disciplinas que privilegiam a reflexão coletiva, a troca de experiências, a contextualização e o desenvolvimento de ações conjuntas entre os futuros professores e os professores formadores. Ademais, foi criado o Núcleo de Pesquisa em Ensino de Ciências – NUPEC. O NUPEC é constituído por professores formadores do Instituto de Química (da área de Educação em Química e das disciplinas específicas de Química) além de professores dos Institutos de Física e Biologia, alunos de graduação e pós graduação e professores do Ensino Médio. Segundo Echeverría, Benite & Soares, 110 Frase retirada da exposição “A hora da Estrela”, sobre a autora, no Centro Cultural Banco do Brasil (RJ), em agosto de 2008. 138 A ideia que fundamenta o Núcleo é a de promover interações comunicativas tendo a prática pedagógica como objeto de estudo. Essa articulação é um desafio a ser vencido constantemente. No Nupec fomentamos ativamente a participação dos professores, mas essa participação é muito complexa e deve ser constantemente estimulada pelos professores formadores, pois a criação de uma nova cultura escolar fomentada com base na problematização da prática educativa concorre com o peso da “mesmice cotidiana” das escolas, pobre em discussões teóricas, e com a visão da racionalidade técnica que formou a todos nós alunos e professores, e que está “impregnada” no tecido das instituições escolares em todos os níveis. (2010, p.33 apud ECHEVERRIA & ZANON, 2010) Os autores colocam ainda que, ao longo de seis anos de trabalho, foi possível redimensionar uma série de atividades, de desconstruir e reconstruir práticas pedagógicas e cita um período111 desse núcleo que foi dedicado à elaboração de projetos de Ensino a serem desenvolvidos em escolas públicas de Ensino Médio nas quais os professores do grupo trabalhavam. Esses projetos eram inicialmente formulados individualmente pelos professores e debatidos coletivamente, para seu aperfeiçoamento e/ou reelaboração, para só assim serem executados com o acompanhamento e a intervenção constante dos professores formadores. Complementam os mesmos que, por entraves burocráticos e/ou resistência de alguns gestores – que possuem a lógica enraizada de distanciamento entre a universidade e escola, alguns projetos não puderam ser desenvolvidos. No entanto, concordante com os autores, acredito que essa dinâmica empreendida por esses projetos que levam a universidade para dentro da escola e forçam mudanças de “cima para baixo” e de “baixo para cima” é que rompem com a solidão do professor e potencializam, por um processo de valorização do profissional, a efetiva participação do professor em atividades coletivas e interdisciplinares, além de mobilizarem os professores formadores. No que tange à pesquisa educacional, o PPP do curso de Licenciatura em Química, da Universidade Federal coloca o Estágio de Licenciatura dividido em três disciplinas, com ementas e objetivos distintos e que perfazem um total de 400 horas, como exigido por lei. Segundo a descrição dos autores, no estágio de Licenciatura I (100 h) o futuro professor é iniciado na pesquisa em Ensino de Química e é convidado a debater sobre os seus enfoques epistemológicos e seus fundamentos teóricos, além de ser apresentado 111 Segundo semestre de 2005 e primeiro semestre de 2006. 139 aos objetos de estudo da área, seus métodos e instrumentos. Nessa etapa o alunos é convidado112 a participar do Nupec. Nos estágios seguintes, II (100 h) e III (200 h), os alunos, já iniciados na pesquisa, se juntam aos professores do Ensino Médio participantes do Nupec e desenvolvem com eles a pesquisa nas escolas. Os autores colocam que nem todos os alunos fazem seus estágios supervisionados em parceria com o Nupec, pois algumas escolas para as quais eles são encaminhados não apresentam professores participantes do núcleo. Independentemente disso, os alunos realizam pesquisa, orientados pelos professores da área de Educação em Química, e apresentam suas monografias de final de curso, no final do estágio III. Outras atividades estão inseridas no planejamento pedagógico do Instituto, entre elas, os grupos de estudo entre calouros (alunos do primeiro período) e veteranos. Nesses grupos, a participação é voluntária, e dois veteranos (orientados por professores formadores) coordenam os encontros com um grupo de calouros, para debaterem conceitos fundamentais da Química. Esses encontros são filmados em VHS, as entrevistas são gravadas em áudio, e os questionários respondidos pelos calouros são guardados. Todo esse material é analisado pelos veteranos juntamente com os professores formadores (op. cited.). Todo esse conjunto de ações e ideias, na perspectiva de criar uma nova cultura de formação de professores, requer um tempo de sedimentação e, nesse sentido, a vontade, o “planejamento escrupuloso do sonho” (p.43, op cited) e a constante construção e reelaboração coletiva são imprescindíveis. 8.2) A experiência na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e na Fundação Universidade Federal de Rio Grande (FURG) Nessas instituições, Ramos, Galiazzi & Moraes (2010 apud ECHEVERRÍA & ZANON) destacam que a interação dos licenciandos e dos docentes com os professores e alunos das escolas é dada desde o início do curso, num processo de imersão gradativa do licenciando na escola. 112 Os autores ressaltam que, embora convidados, nem todos os alunos comparecem às reuniões do Nupec. E os motivos são variados, mas um deles é o horário, e sinalizam que para todos os alunos participarem seria necessário que não houvesse aulas de nenhuma disciplina sexta à tarde. Acredito que essa medida poderia ser tomada, se as coordenações vinculadas à Licenciatura acordassem entre elas essa condição. 140 Segundo os autores, o conceito de tutoramento, que perpassa as várias disciplinas de formação pedagógica, é definido como “o processo de aprender com o outro, numa relação de reciprocidade, no espaço/tempo da escola e da Universidade”, (p.48, op. cited.) envolvendo todos os saberes categorizados por Tardif. E complementam que, para que ocorram aprendizagens relevantes associadas ao “ser professor”, é necessária a interação dos quatro elementos fundamentais do processo de formação inicial: os professores universitários, os licenciados, os professores da escola e seus alunos. Em relação à matriz curricular, o curso da PUCRS se assemelha às demais matrizes reformadas113, com disciplinas pedagógicas desde o primeiro período, e iniciando as atividades de prática de Ensino por intermédio das disciplinas Tutoramento em Prática de Ensino I, II, III e IV que culminam no Estágio Supervisionado, no penúltimo período. Assim como na experiência relatada da UFG, cada “Tutoramento em Prática de Ensino” na PUCRS também tem um objetivo: o primeiro propõe-se ao reconhecimento e à problematização da realidade escolar e da sala de aula; o segundo visa ao estudo da experimentação no Ensino de Química; o terceiro, ao estudo e aprofundamento dessas questões experimentais do Ensino de Química pela integração com outras áreas, pelo desenvolvimento de projetos com alunos e atividades integradoras com o Museu da PUCRS, da pesquisa de novas atividades experimentais e da produção escrita sobre o trabalho desenvolvido. O último propõe-se ao planejamento e à organização de recursos para as atividades futuras do Estágio Supervisionado (op. cited.). Esses tutoramentos têm, portanto, caráter de estágio, uma vez que, segundo os autores, ocorrem no campo real de trabalho, com a supervisão e interação dos docentes da universidade e os demais licenciados das escolas. No caso do curso da FURG, com estrutura semelhante ao da PUCRS, os estágios supervisionados são realizados em cinco momentos semestrais, a partir da metade do segundo ano do curso, e a proposta desses estágios está sustentada em educar pela pesquisa. Sendo assim, cada estágio cumpre um objetivo: no Estágio I, a ênfase é no regresso do aluno à escola agora numa perspectiva profissional em que ele observa e 113 A partir desse ponto, categorizo matrizes reformadas como todas aquelas que, após a publicação das Diretrizes para formação inicial de professores da Educação Básica em Cursos de Nível Superior (BRASIL, 2001), reformularam ou criaram seus currículos pautados na desvinculação da Licenciatura e do Bacharel e na introdução a disciplinas articuladoras e pedagógicas desde o começo do curso de Licenciatura. 141 conhece a escola e seu contexto e registra essas observações em portifólios; no estágio II, o enfoque é experimentação no Ensino Médio e sua natureza pedagógica e epistemológica; no estágio III, o aluno analisa os livros didáticos via pesquisa coletiva; no estágio IV, o licenciando apresenta um envolvimento com a escola que o encaminha para o planejamento de seu trabalho, junto com o professor tutor das atividades que serão desenvolvidas no estágio V, no qual ele assume uma sala de aula durante um semestre. Em ambos os exemplos, o que as instituições têm procurado reforçar é a articulação entre professores universitários, licenciandos, professores das escolas e seus alunos e os processos de formação permanente em que se busca a articulação dessa formação com o desenvolvimento curricular. 8.3) A experiência na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ) A Licenciatura em Química, na UNIJUÍ, apresenta um currículo reformado e este relato está centrado em dois componentes curriculares dessa matriz curricular: Pesquisa em Ensino de Química I e II, apropriados e usados pelos licenciandos enquanto vivência formativa. Nesses componentes curriculares, os licenciados aprendem e vivenciam todos os passos da execução de uma pesquisa, desde a construção de uma questão de pesquisa, a elaboração de um projeto, até a sua execução no contexto escolar incluindo, também, a escrita de um relatório final no formato de um artigo em que o aluno submete seus resultados de pesquisa à validação no curso ou em eventos fora dele (WENZEL, ZANON & MALDANER, 2010). Essas ações constam no plano de Ensino da universidade e são consideradas um aprender coletivo, segundo os autores (op. cited.), onde os licenciandos atuam em pequenos grupos e contam com a sistemática mediação dos professores orientadores. Os objetivos do trabalho superam a mera descrição da prática da pesquisa e focalizam principalmente a interpretação de tal prática, como os licenciandos vão vivenciando os passos do fazer pesquisa em sua formação e constituindo-se professores pesquisadores. A construção e análise dos dados de pesquisa partem da aplicação de questionários e da realização de entrevistas semiestruturadas (gravadas em áudio e posteriormente transcritas) com os licenciandos que cursaram os componentes 142 curriculares que servem de campo empírico para investigação. A base teórica principal é o referencial histórico-cultural, tendo Vygotsky como precursor, cujo cerne consiste na visão de que o indivíduo é resultado de um processo mediado histórica e culturalmente, nas interações sociais, enfatizando o papel da linguagem e da aprendizagem no desenvolvimento humano. Com base nesse entendimento e concordante com os autores, ratifico suas considerações no que tange à pesquisa como prática: o professor em formação inicial (ou continuada) não irá aprender a pesquisar, nem compreender a importância da pesquisa se não vivenciá-la em situações práticas que potencializem tal aprendizado (op. cited.). Os resultados obtidos são muito promissores e reforçam a ideia de que a prática do fazer pesquisa necessita ser ensinada e mediada por um orientador, pois um pesquisador se constitui pela apropriação de instrumentos culturais como: leitura, escrita e fala (parte da socialização da pesquisa) e pelo uso da linguagem específica da pesquisa (deslocando o aluno da ventrilocução114 dos termos que permeiam a área de educação). Esse tipo de formação é condição essencial na constituição de um professor com iniciativa de procurar diferentes fontes de informação, capaz de construir e reconstruir conhecimentos. 8.4) A experiência na Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC) O curso de Licenciatura em Química da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), situada no estado da Bahia, possui, assim como as outras universidades selecionadas nesse capítulo, seu currículo reformado desde 2004, a partir de um novo Projeto Acadêmico Curricular (PAC), alinhado com as orientações gerais para os cursos de formação docente e com as experiências da própria universidade na formação de professores (WARTHA & GRAMACHO, 2010). Segundo os autores, o PAC foi estruturado, buscando uma formação mais abrangente e humana, permitindo ao aluno o contato com disciplinas relacionadas à problemática da educação desde o início do curso. Ademais, foram desenvolvidas disciplinas de outras áreas do conhecimento com um perfil mais significativo para o aluno do curso de Química, como Geometria Aplicada à Química e Informática aplicada à formação do professor. 114 No viés bakthiniano, é o ato da fala (que aqui estendo a escrita) sem a apropriação do significado. 143 O PAC criou também as disciplinas Pesquisa e Ensino de Química I e II, ministradas nos dois últimos semestres dos cursos e com o propósito de oferecer ao aluno o aprofundamento de algumas questões discutidas ao longo da formação, mediante a elaboração e execução de projetos de Pesquisa em Ensino de Química e que subsidiarão a elaboração do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Além dessas modificações, o corpo docente do curso tem buscado ampliar os projetos de extensão que objetivam fortalecer o vínculo permanente entre a universidade e a escola básica, procurando proporcionar espaços de interação entre o licenciando e os professores de Química do Ensino Médio. Segundo os autores, essa necessidade de criação de novos espaços de interação profissional, dentro e fora da universidade, impulsionou o desenvolvimento de ações de formação docente inicial em que professores de escolas atuem em aulas/disciplinas, na universidade, em parceria com professores formadores. Em disciplinas como Experimentação no Ensino de Química, Dificuldades de Ensino, Aprendizagem em Química, Contextualização e Interdisciplinaridade no Ensino de Química, um ou mais professores do Ensino Médio são convidados a participar do planejamento e execução de aulas da Licenciatura em Química. Mesmo que assumam que o curso ainda se encontra distante do esperado, os autores consideram que estejam construindo mudanças significativas na formação de futuros professores de Química e finalizam destacando algumas conquistas proporcionadas pelo PAC, como: a formação pedagógica articulada com a formação Química durante todo o tempo do curso; a formação inicial articulada à continuada; a mobilização de todos os docentes do curso e a conjugação Pesquisa, Ensino e Extensão realizada na prática através dos projetos de formação continuada dos professores de Química. 8.5) Meu grito: em que esses relatos podem contribuir para melhoria da formação inicial da Licenciatura em Química da UFF? Os relatos descritos nesse capítulo são exemplos de iniciativas tomadas em algumas universidades no Brasil para aprimorar o processo formativo de seus licenciados e esses apresentam alguns movimentos similares que podem apontar tendências para o aperfeiçoamento da Licenciatura em Química da UFF, o cenário desta pesquisa. 144 Em todas as propostas aqui apresentadas, a primeira característica comum foi a criação nos currículos reformados apresentados de disciplinas que privilegiem reflexões coletivas que articulem os professores universitários, os licenciandos e os professores do Ensino Médio. Essas são as articulações horizontais que poderiam ser coordenadas por professores da área de Ensino de Química, juntamente com o coordenador do curso. Além disso, algumas propostas valorizam também as articulações verticais, entre os integrantes da instituição, e apostam nos grupos de estudo entre calouros e veteranos, para debate sobre conceitos fundamentais da Química, com supervisão de professores universitários e alunos de pós-graduação. Essas duas modalidades de articulação requerem das instituições a criação e legitimação de espaços para essas interações, inserindo essa atividade na organização dos tempos e espaços acadêmicos. Além disso, é preciso criar mecanismos que incentivem o envolvimento dos professores universitários nessas propostas. Com base nas entrevistas analisadas, vimos que, na UFF, formalmente se tenta fazer a primeira articulação, que fica sob a responsabilidade da disciplina lecionada pela professora Lucia (Pesquisa e Práticas de Ensino I, II, III e IV), que se esforça para potencializar a articulação com os professores das escolas, mas ainda se declara isolada com relação à articulação pretendida com os outros professores universitários imbricados no processo formativo da licenciatura, seus pares de profissão. A segunda característica em comum se manifesta no esforço das propostas em oferecer uma rota formativa de estágio supervisionado que culmine na formação do professor pesquisador, o que também é descrito como um dos fazeres das disciplinas de Pesquisa e Prática de Ensino da UFF. No entanto, em algumas propostas, houve a criação de disciplinas que tratam somente dessa questão do fazer pesquisa, aproveitando as próprias vivências dos licenciandos como dados para futuras pesquisas por eles desenvolvidas. Essa ideia que contribui para a associação da prática de pesquisa à prática de ensino e possibilita por parte do licenciando uma postura de ensino diferenciada. A criação dessas disciplinas se assemelha à criação do NUPEC na proposta apresentada da UFG. Um núcleo de pesquisa que mobiliza diferentes professores das Licenciaturas, professores do Ensino Médio e licenciandos, articulando essas relações, e também subsidia essas discussões sobre o como fazer pesquisa na área de Ensino. Essa articulação é perfeitamente possível na UFF, o que falta são ações que procurem integrar os professores os quais, de forma isolada, desenvolvem pesquisas 145 relacionadas ao Ensino. Nesse ambiente, as parecerias ainda são estabelecidas, considerando a empatia entre os professores ou a proximidade de seus departamentos ou institutos. Nesse sentido, considero necessária a criação de mais eventos ou projetos com propósitos que superem a apresentação e partam para a integração. Eventos já instituídos como: “Semana de Extensão”, “Jornada de Iniciação Científica” e o “Prêmio Vasconcelos Torres”115 que incentivam a apresentação do rico corpo docente da universidade e seus projetos de pesquisa, poderiam abarcar também outros objetivos, através de debates ou dinâmicas propostas nesses encontros que buscassem diminuir a sensação de isolamento que permeia, por vezes, os próprios professores de disciplinas afins. E os já conhecidos “Seminário Interativo de Prática Pedagógica Discente” e a “Mostra de iniciação à docência” poderiam abarcar também outros objetivos, convocando os diferentes professores que não estão envolvidos diretamente com os trabalhos apresentados para os debates, provocando nesses professores a reflexão e a autocrítica de suas práticas pedagógicas e de suas concepções sobre docência, corroborando também para uma integração da comunidade docente de formadores da UFF. Por fim, outra característica fortemente presente nos relatos apresentados foi a elaboração de Projetos de Ensino em constante interação com as escolas públicas. Esses contam com a participação efetiva dos professores do Ensino Médio, dos professores universitários e dos licenciandos e são propostas cada vez mais valorizadas pelas pesquisas educacionais no que tange à formação docente. A subcoordenadoria de iniciação à docência da UFF, setor vinculado à PROAC116, tem concedido desde 2006, devido aos recursos do programa PRODOCÊNCIA117 do MEC, bolsas para alunos de licenciatura atuarem em projetos com perfis próximos aos supracitados, o que mostra um avanço para melhoria da formação docente. Acrescento que essas iniciativas proporcionam o reconhecimento e a problematização da realidade escolar e da sala de aula, valoram os professores do 115 Premiação aos melhores projetos de pesquisa, que são avaliados por uma comissão científica da própria UFF. 116 Pró-Reitoria de Assuntos Acadêmicos, atualmente PROGRAD – Pró-Reitoria de Graduação. 117 Programa de Consolidação das Licenciaturas implementado pela CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) em 2006. 146 Ensino Médio como membros efetivos da comunidade de pesquisadores em Educação, potencializam reflexões por parte dos professores universitários sobre o seu papel no processo formativo e das disciplinas que lecionam. Estimulam também a vivência da pesquisa em todos os seus passos de execução por parte dos licenciandos e por fim, fortalecem a atividade de extensão, fortalecendo o vínculo permanente entre a universidade e a escola básica. Para os três professores entrevistados, a atividade de extensão foi assumidamente aquela menos valorada. Essa realidade pode começar a mudar na medida em que o corpo docente da Licenciatura for estimulado para formulação de novos Projetos de Extensão dirigidos para a formação de professores, em parcerias com a escola básica, ou, ainda, que o corpo docente seja estimulado a conhecer e participar dos Projetos desse tipo, que se encontram em andamento na universidade, coordenados pela Pró-Reitoria de extensão da UFF. Portanto, a partir das similaridades encontradas nas experiências relatadas pelas instituições para a melhoria de suas Licenciaturas e diante das mazelas reveladas sobre o processo formativo oferecido na UFF, sedimento minhas expectativas de suscitar, através da publicação desta Tese, o debate e a criação – e não a importação – de iniciativas apropriadas à realidade da UFF, que aprimorem a formação inicial da Licenciatura em Química dessa instituição. 147 CRÉDITOS Referencias Bibliográficas ALMEIDA, P. C. A. de. BIAJONE, J. Saberes Docentes e Formação Inicial de Professores: implicações e desafios para as propostas de formação. Educação e Pesquisa, SP, V.33, n.2, p. 281-295, mai/ago. 2007. ALVAREZ, D. Cimento não é concreto, tamborim não é pandeiro, pensamento não é dinheiro! Para onde vai a produção acadêmica? Rio de Janeiro: MYRRHA, 2004. ALVES, W. F. A formação de professores e as teorias do saber docente: contextos, dúvidas e desafios. 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Ela vai ser preservada, é, então, nesse primeiro momento, queria que você, se apresentasse assim, né, expondo sua formação acadêmica, as disciplinas que você lecionou na Licenciatura em Química, as funções que desempenha ou desempenhou aqui na universidade. Prof. Maria: Bom, minha formação básica é engenharia Química, e ingressei... Fui monitora do departamento de físico-Química, e ingressei na universidade em 79, e logo depois comecei o mestrado na UFRJ em físico-Química, depois eu não emendei logo o doutorado, comecei a trabalhar nessa parte de físico-Química analítica, trabalhando com eletrodo seletivo, que tava começando, no começo dos anos 80, então comecei a trabalhar mais voltada pra análise na área ambiental, e fiz o doutorado então em geoQuímica ambiental, acabei em 2000. Paralelamente, vinha trabalhando com essa questão do Ensino no curso de especialização em Ensino de ciências, dando aula... No primeiro momento, não dava aula, só montava o projeto, alguma coisa assim, material de apoio, e depois passei a dar a instrumentação de Ensino na área de físico-Química. P: Esse curso de especialização foi o primeiro contato com a sala de aula na universidade que a senhora teve? Prof. Maria: Não, na sala de aula não, pra o Ensino Médio. Na sala de aula eu comecei desde 79. Então dei aula de físico-Química I, físico-Química II, físico-Química V, os laboratórios todos do departamento. P: Naquela época o currículo ainda era comum, né? Então na verdade a senhora deu pra... tanto com bacharel como pros licenciados. Prof. Maria: Isso. Pra farmácia também, engenharia Química, hoje, a engenharia de petróleo. E aí depois, principalmente depois que eu estive afastada pro doutorado, quando eu retornei, introduzi uma disciplina de Química ambiental, aí até já tinha um início, eu dei uma reformulada, comecei e se criaram então duas disciplinas de análise ambiental, então, depois eu passei a dar... [fomos interrompidos] P: Então, a senhora falava da disciplina de Química ambiental. Prof. Maria: Isso. Aí essa disciplina primeiro era uma disciplina optativa. Então, a clientela era Química, né, tanto bacharel quanto licenciado, industrial também. Depois, o pessoal da engenharia Química passou a procurar, e quando houve a reforma curricular dos cursos de Química, essa disciplina passou a ser obrigatória, então ela mudou um pouco o enfoque, ela passou a ser - embora tenha o nome de introdução a Química ambiental - ela passou a ser mais Química e em seguir, eu passei, fiz uma outra disciplina, que a demanda é muito grande até hoje, uma disciplina chamada Química ambiental. E essa disciplina Química ambiental atende biologia, atende geografia, vários cursos. Então, essa é optativa, e, então, como eu também criei depois uma disciplina de gerenciamento de resíduos de laboratório, então fica um semestre sim, um semestre não, essas duas optativas, né? P: Ou com Química ambiental ou... Prof. Maria: ...ambiental ou gerenciamento de resíduos de laboratório. P: Entendi. E assim, fora a sala de aula, as outras funções que a senhora desempenhou, a senhora já foi coordenadora, já foi... Prof. Maria: É, eu já fui chefe de departamento várias vezes, sub-chefe. Então, a primeira vez que eu fui subchefe, bem no começo houve uma vacância aqui, acabei ficando como subchefe, aí logo depois teve a eleição, tudo isso, mudou todo o esquema, passou a ser um cargo eletivo, aí eu me candidatei, fui chefe durante dois anos. Depois fiz dobradinha com outras colegas de vice, várias vezes. Então, chefe mesmo, duas vezes, dois mandatos, e como vice-chefe departamento umas três vezes mais ou menos. P: Está certo, é... Prof. Maria: fora colegiados, né, de cursos, especialização, colegiado de unidade. Sempre me vi mais ou menos envolvida nessa parte administrativa. P: Então a senhora, pelo que a senhora falou, você tem a graduação de engenharia Química, mas desde que entrou na universidade, teve contato com a sala de aula, pelo fato de ter tido uma graduação em engenharia Química, você não teve um contato direto com essas disciplinas pedagógicas, né? Eu queria saber de que forma isso afetou ou não a sua relação na sala de aula? Prof. Maria: Eu acho que foi tudo muito feito por intuição, né? Eu sempre procurei dar o melhor, uma melhor maneira tanto de repassar o conhecimento, como de avaliar, tudo isso. Sempre questionei muito isso, mas feito sem base nenhuma teórica. Até adquirir essa... um pouco, né, dessa base, quando eu fui... me envolvi no curso de especialização, aí passei a fazer uma leitura de Ensino de ciências entendeu, P: em Ensino de ciências Prof. Maria: aí eu passei a ter uma leitura voltada pra essa área que até então a formação era mais pesquisa em radioQuímica ou mesmo na área de ambiental. 154 ANEXO 2 – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS ENTREVISTA 1 – PROFESSORA MARIA 60 65 70 75 80 85 90 95 100 105 110 115 P: Em que momento a senhora passou a se envolver com essa especialização de Ensino de ciências? Foi logo no início quando a senhora começou a dar aula de físico-Química, tal, ou foi mais no meio do percurso, como é que foi? Prof. Maria: Bom, eu considero como marco, digamos assim, depois que eu acabei o doutorado, porque no começo eu tinha uma participação meio sem compromisso, né? Então, depois, aí tive que me afastar mesmo que o foco era outro, a prioridade era o doutorado mesmo, então depois de 2000 é que eu realmente passei a publicar na área entendeu, fazer parte do projeto. Então, praticamente, eu considero esse o marco. P: E aí a área de Ensino realmente entrou oficialmente no seu currículo. Prof. Maria: Isso, oficialmente. P: Ah, entendi, e, como professora de físico Química, possivelmente nesse percurso a senhora deu aula pra licenciados. Pra essa disciplina de físico-Química, né, que é uma disciplina inclusive que a gente percebe que também está presente no Ensino Médio, quais são os conhecimentos necessários na sua opinião, pra lecionar físico-Química no nível superior? Prof. Maria: Bom, nível superior, físico-Química pela característica dela, ela vem a explicar os fenômenos e através de modelos. E esses modelos são todos elaborados em cima de modelos matemáticos, então, eu vejo que a maior dificuldade, principalmente pro aluno de farmácia que não traz essa bagagem, é o formalismo, quando a coisa é só fenomenológica, eles vão bem. Agora, quando parte pro modelo, pro formalismo matemático, aí você sabe que fica perdido, que já tem dificuldade mesmo. P: E assim, com relação ao professor de Química do Ensino Médio, qual a importância, na sua opinião, dessa disciplina físico-Química, pra esse futuro professor de Ensino Médio? A físico-Química que ele aprende aqui na faculdade, que integra o currículo dele. Qual a importância dessa disciplina pra sua formação, enquanto futuro professor do Ensino Médio? Prof. Maria: É, pelo fato dele explicar. Então, você pode usar exemplos desde um gás liberado de uma garrafa de refrigerante, por que o céu é azul, todas as explicações da natureza, tudo isso, todas elas tem uma explicação físico-Química, então, eu hoje vejo que é super importante o licenciando sair com essa bagagem entendeu? P: Mesmo que as vezes essa bagagem esteja impregnada de formalismo matemático? Prof. Maria: Que ele não precisa aplicar no Ensino Médio, mas que faz parte do entendimento de um todo entendeu? P: Precisa então no caso de que o estudante tenha uma capacidade pra adaptar o conteúdo de físicoQuímica pro Ensino Médio. Prof. Maria: É. P: E nesse sentido assim, por essa adaptação, por essa transposição didática, na sua opinião, quais são as formas que isso poderia ser feito? O estudante, ele vai desenvolver isso, ele pode desenvolver isso em que disciplina? Na própria disciplina de físico-Química, numa disciplina da área pedagógica, numa disciplina de interface entre a pedagogia e a Química? Prof. Maria: Eu acho que numa disciplina pedagógica, porque a disciplina de físico-Química precisa ser cobrada com todo o seu formalismo, né? Você tem a Química quântica, que é dentro da físico-Química, que tem um formalismo matemático muito rígido; a termodinâmica; a radioQuímica, que faz parte do currículo, né, ele precisa ser cobrado enquanto aluno de graduação. P: Uma série de exigências que essa disciplina requer... Prof. Maria: É, requer. Agora, a aplicação dela, desse profissional, aí até acho que no currículo do Ensino Médio, não precisaria de tanto formalismo, acho que deveria voltar sim, pra essa questão mais fenomenológica que a físico-Química tem resposta entendeu? P: Entendi. Prof. Maria: Afastar um pouco desse formalismo de tanto cálculo, de soluções. O aluno do Ensino Médio não vai fazer uma solução entendeu? Então... P: E assim, nesse sentido, já que estamos falando aqui do professor de Ensino Médio, a senhora atuou tanto tempo como professora. O que a senhora acha, o que a senhora considera importante pra formar um bom professor de Química? O que a senhora acha que deveria ser imprescindível, fundamental, pra um bom professor de Química na sua formação? Prof. Maria: O que eu vejo hoje, eu já fiz vários trabalhos, ultimamente tenho feito até mais de alunos de Licenciatura e monografia de conclusão de curso. Então, esses alunos estão indo as escolas de Ensino Médio. E até pra surpresa, esses alunos que passaram por mim, por outros colegas que tem a mesma prática, passam em concursos, são comprometidos com Ensino, porque vão ter uma vivência prática. O que eu sinto falta é que a universidade, parece que fica num patamar acima, e aí não há uma interação do aluno que está sendo formado, com o Ensino Médio, com a escola, digo que tem que ter o aluno na escola. Meus títulos são sempre assim, o olhar do licenciando entendeu? Sempre focando a presença desse licenciando na escola, porque forma-se licenciandos, a menos praquele aluno que vai se virar, vai 155 ANEXO 2 – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS ENTREVISTA 1 – PROFESSORA MARIA 120 125 130 135 140 145 150 155 160 165 170 175 dar aula no cursinho, no pré-vestibular, pré-vestibular comunitário. Mas aquela vivência de um projeto, do aluno estar na escola, vivenciando a escola antes da graduação, né, da apropriação do grau, eu acho isso importantíssimo entendeu, porque cria um compromisso. P: Então a senhora aponta então ainda uma carência de parcerias... Prof. Maria: de parcerias... P: Entre a universidade e a escola. Pelo que a senhora colocou, parece que o aluno licenciando, precisaria viver mais na escola pra poder desenvolver esses conhecimentos... Prof. Maria: É. Porque os estágios supervisionados, passam muito longe da realidade, acaba sendo assim, sendo Ensino público é meio que ‘tapa buraco’. E uma escola particular, o estagiário, que seria o bolsista, né, ele não tem acesso a rotina mesmo de uma programação de aula, uma lista de exercício, ele é mais observador entendeu? Então, eu sinto essa lacuna. P: Ele ainda está suspenso... Prof. Maria: É, não está inserido, ele não sabe ainda o que é o dia-a-dia da profissão. Sai com o título e aí muitas vezes, muitos se chocam, e aí como tem sempre a possibilidade de fazer complementação pra Química industrial, pra Licenciatura, eles retornam. Até alunos que tem potencial, que saíram com uma inspiração... P: Alguns até abandonam o magistério... Prof. Maria: É, o magistério, acho que se isso fosse encaminhado desde algumas disciplinas da educação, da pedagogia da educação, eu acho que seria um link entendeu, porque ia ajudar muito na formação... P: pra evitar esse tipo de problema, de evasão para outras áreas, e agora, uma pergunta que vai fazer a senhora viajar um pouco no tempo. A senhora teve assim, na sua graduação de engenharia Química, uma série de professores passaram por sua vida, por sua formação acadêmica, e a senhora logo depois, veio também ser professora da universidade e tal... Então assim, comparando a sua atuação em sala de aula, com a dos professores que lecionaram pra você na sua época de graduação, quais são as semelhanças e as diferenças que a senhora pode apontar? Prof. Maria: Tem sempre aqueles que você identifica que você não quer, não quer ser aquele espelho... P: Aquele perfil, né? Prof. Maria: Não quer ter aquele perfil, né? Eu fiz uma vez uma vez uma prova de concurso que caiu uma parte de uma matéria, um professor até muito legal, sabe a história daquele professor muito falante, todo mundo gostava dele, mas depois quando se espremeu não ficou nada do curso dele, uma prova que caiu muita coisa. Então, eu sinto que é uma falha da minha formação, é essa parte da engenharia Química, por conta que foi uma brincadeira, um curso levado sem compromisso nenhum entendeu? Então, sempre e eu acho que o aluno, ele num primeiro momento ele pode não gostar do professor que cobre, mas depois ele reconhece que aquele professor acrescentou alguma coisa na vida profissional dele, na formação dele. Então, eu sempre procuro, né, eu sempre brinco, eu digo assim: “Olha, vocês que vão aprender físico-Química, eu estou aqui pra ajudar”. Mas eu sinto que aqueles que realmente correm atrás, mesmo os de farmácia que tem realmente uma grande dificuldade, principalmente com físico-Química I, que é mais formal, que é mais assim, abstrato, os que realmente levam a sério e frequentam o curso direito, eles acabam se superando, aí depois de um certo nível, iguala todo mundo entendeu? Tanto é de Química, como de farmácia; não vejo diferença nenhuma, num primeiro momento sim, depois não. Então, sempre procurei ajudar esses alunos de farmácia, embora não sendo farmacêutica, sabendo dessa real dificuldade entendeu? Não sei se eu fugi da resposta. P: É, eu vou voltar. Comparando a essa atuação, então. Se você pudesse se definir, que perfil a Professora Maria tem em suas aulas de físico-Química? Comparando até com formadores, professores que já passaram na sua vida acadêmica, naquela que você colocou ali o exemplo do professor que era muito carismático, mas que ele levou o curso inteiro na brincadeira e aí no final da graduação, a senhora percebeu que espremendo ali não ficou quase nada. Então nisso, como é que a Professora Maria iria se definir? Que tipo de perfil ia ela ia assumir? Prof. Maria: Um compromisso entendeu, um compromisso de realmente mostrar até pro aluno, principalmente de farmácia. Mostrando que, primeiro discurso a fala é única. Pra que eu preciso de físico-Química? Aí eu começo, aqui, aqui, aqui... em tudo, um creme que você passa no rosto tem a parte cosmética, a parte de todos os fármacos, estabilidade de fármacos, começo todas mostrando, “Olha, físico-Química é uma ferramenta”. Então, eu procuro esse tipo entendeu, de mostrar a importância da disciplina, ambiental é uma coisa que eu adoro, então também é uma coisa que eu valorizo, sem ser aquela ambientalista piegas, aquela coisa assim, mas mostrando que o químico é um ator que pode atuar firme, e tem muita gente na área de ambiental que não sabe os porquês, entendeu? Então, eu sempre falo é um campo de falhas porque vocês, além de ter o conhecimento que todos os outros geógrafos, biólogos, vão adquirir, vocês sabem explicar o porquê está acontecendo o efeito estufa, ou o porquê do aquecimento global entendeu, toda essa bagagem. Então eu procuro mostrar a necessidade do 156 ANEXO 2 – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS ENTREVISTA 1 – PROFESSORA MARIA 180 185 190 195 200 205 210 215 220 225 230 235 conhecimento, entendeu, que não é aquela coisa assim, formal, de botar derivada pra tudo quanto é lado, integral, sempre mostrado que faz parte, mas que tem algo além, que é super prático entendeu? P: Entendi. Prof. Maria: Que é uma disciplina muito prática P: Bom, agora indo mais pra UFF em si, né? Considerando o tempo que a senhora atua aqui na UFF, no seu entendimento, as reformas curriculares que foram realizadas na Licenciatura, melhoraram, pioraram, ficou a mesma coisa, com relação a formação dos futuros professores de Química? Prof. Maria: Já estou aqui, vai fazer trinta e um anos agora, né, dando aula de Química e teve projetos, e projetos de mudança de curso e fui até de comissões, a coisa não andou, mas a última reforma foi muito abrangente, eu acho que teve uma resposta muito boa, tanto a nível dos profissionais que saíram, que fizeram concurso, tem alunos que estão muito bem colocados, tanto em prova pra estado, primeiro, você também é um exemplo. Quer dizer, você vê que é lógico, que tem pontos fora da reta, tanto pra mais quanto pra menos, mas de uma maneira geral, a maioria dos alunos estão se colocando bem. Então, eu acho que a reforma, foi até ambiciosa demais, nós estamos em fase de começar a mexer no currículo, nós estamos na segunda modificação e acho que pode ter uns ajustes, principalmente pro licenciando que ficou muito pesado, essa parte de Química quântica entendeu, espectroscopia. Então, pra que um licenciando precisa... até precisa de uma noção, pra poder ter o além pra poder explicar o básico, né? Por que ocorre uma ligação... Mas, nós vamos dar uma enxugada em alguns tópicos, alguma coisa que foi além. Mas uma coisa muito positiva que eu vi no curso, nessa reforma curricular, foi que nós criamos tutorias. Então, tem seis tutorias além da monografia de conclusão de curso. Então, o aluno, ele vai aprendendo nessas tutorias, a parte de didática também, a parte de pesquisa, como preparar um pôster, como preparar, usar um data show, um Power point, seminários. Então, tudo isso de certa forma é treinado num primeiro momento, em grupo de4, 5, e aí você fica acompanhando aquele aluno um ano, na tutoria I e II, depois você já vai trabalhando mais individualizado. Aí, normalmente o que que se faz? É trazer esse aluno pro seu grupo de pesquisa. Porque você já trabalhou com ele, aí que vai, o interessante que aí leva esse aluno pra escola, vai fazer um trabalho de campo, aprende a fazer um questionário, então acaba realmente criando aquele aluno, professor/aluno/pesquisador, ele já vai entendendo como se faz uma pesquisa na área de Ensino, esse tipo de coisa, né, laboratório, escola entendeu? P: Então, nesse sentido assim, quais são os pontos positivos e os pontos negativos, se é que existem, né? Que a senhora pode destacar na formação universitária oferecida pro licenciando atualmente? Prof. Maria: ... P: Você levantou a questão da tutoria né? Prof. Maria: aham P: Então, já que comentou a tutoria de forma positiva, pro aluno, pra ensiná-lo algumas coisas a mais, né? Quais são outros pontos positivos ou algum ponto negativo que a senhora enxergue que ainda precise mudar na formação oferecida atualmente na universidade, pós-reforma, né? Prof. Maria: É. Em termos do curso de Química aqui da UFF, eu acho que negativo é esse currículo que você está tentando agora adequar, enxugando mais, né? Mas eu acho que é valorização mesmo do profissional, do aluno que ele acaba é... hoje a FAPERJ já da bolsa de iniciação científica pra quem faz trabalho na área de Ensino de ciência. Até pouco tempo atrás, até 2008, não tinha. Então, que que o aluno licenciando, ele não ia buscar trabalhar no projeto na área de Ensino, porque o projeto não tinha bolsa. Uma minoria até que ia, a gente tinha outros meios de ter uma bolsa de trabalho, alguma coisa assim, mas não era uma bolsa oficial PBIC? com reconhecimento... Então, o que fazia esse aluno? Ele ia fazer iniciação científica, em laboratórios, não tem nada contra, mas não tinha aquela valorização do profissional. Hoje a FAPERJ é o único órgão de fomento que dá bolsa pro licenciando. Então, acho que isso passou a ser uma valorização do aluno licenciado entendeu? P: Uma valorização que foi na verdade, inovadora pra um órgão de fomento a pesquisa, e, com relação a UFF em si, né, a estrutura da UFF assim, né, a formação que a UFF oferece. Por que o órgão de fomento a pesquisa, a gente sabe que na verdade, todo projeto tem um professor por trás, o professor da UFF submete um projeto com o aluno, tal, mas com relação a estrutura da UFF com relação aos professores que lecionam o curso de Licenciatura, com as reformas, essa mudança que houve no currículo, esse enxugamento enfim, todos esses condicionantes, o que a senhora pode destacar de positivo e de negativo? Prof. Maria: De positivo eu acho que como também o corpo docente aqui é de muito ex-aluno, existe uma coisa de vestir a camisa mesmo. Então, se busca mesmo uma formação de qualidade, embora ainda acho que como negativo é a falta - até não vão gostar do que vou falar - mas é a falta de um trabalho conjunto das disciplinas da Química com as disciplinas da educação. Então, eu sinto que não há uma coisa conjunta de “vamos trabalhar dessa forma” ou todo mundo vai... Sabe, até a gente que não é... Principalmente eu, que sou engenheira Química, na hora de escrever um artigo, eu gostaria de ter um colega da área de educação dando um suporte pra me explicar como é que eu faço uma análise em 157 ANEXO 2 – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS ENTREVISTA 1 – PROFESSORA MARIA 240 245 250 255 260 265 270 275 280 285 290 295 discurso, que a gente acha que faz ou tenta fazer da melhor forma possível, eu não tenho aquela vivência, a experiência. Então, a parceria que eu acho que falta, tanto na formação deles, quanto no próprio curso aqui de especialização entendeu, é como se fosse duas coisas estanques. P: E essa parceria, ela é uma carência que nos eu ponto de vista acontece só entre as disciplinas específicas da UFF e as pedagógicas, ou existe também, às vezes, a falta dessa parceria entre as próprias disciplinas da formação específica? Prof. Maria: Também, acredito que também. Não há uma política, uma visão, como que vai se quer formar esse profissional, né? Porque assim, acho que é tudo muito feito na intuição, nós queremos um profissional com esse perfil, aí a coisa fica... Ou um ou outro, se eu conheço uma pessoa, há uma coisa individual, né, uma coisa formal, uma coisa de nível institucional. P: Entendi, então, trazendo agora mais pro seu cotidiano professora. Quais as exigências que o professor universitário vive na universidade atualmente? Todo mundo sabe que o professor, ele muitas vezes além da sala de aula, ele também gerencia projetos, como a senhora mesmo falou no início da nossa entrevista, né, a senhora foi chefe de departamento. Então assim, o professor universitário hoje na UFF, né, quais são as exigências que esse professor enfrenta no seu cotidiano profissional? Prof. Maria: Bom, eu vejo a universidade - eu ouvi essa frase e vou repetir - a universidade são três pilares: Ensino, pesquisa e extensão. Então eu acho que, principalmente na universidade pública, né? Tem que ter o compromisso com a extensão, porque afinal de contas está recebendo dinheiro do contribuinte, né, na forma de salário, na forma de equipamento, tudo isso. Então, esses três pilares têm que estar muito bem equilibrado, né, tem que ter a parte administrativa. Eu acho que faz parte da vida profissional, passar por todos esses segmentos entendeu? Eu vejo até colegas, às vezes, reclamando de um colega que está chefe, ou que está diretor, e aí você diz: “Ah, a coisa não é bem assim”. Você precisa ser chefe pra ver as dificuldades com funcionários, com isso, com aquilo. Têm vários problemas, né, uns mais graves, menos importantes, mas tem, então, antes de criticar é preciso ter vivência, né? Mas hoje, a cobrança, né, porque os indicadores todos hoje, é produto, é trabalho publicado. Então, o que acontece, ainda tem a bolsa do CNPQ, né? Que muitas vezes na forma de melhorar o salário, o rendimento, é pleitear bolsa do CNPQ, e aí você tem que estar em outro patamar de publicação, então você tem. Mas, pra alcançar isso, você tem que fechar os olhos pras outras atividades. Então, você não quer dar mais do que oito horas, você às vezes quer escolher disciplinas, então você fica um tempo enorme na mesma disciplina, porque aquilo já está incorporado, já tá no DNA, né, então você já não tem o mesmo trabalho do que um curso novo né, exige você preparar. Então, é um complicador a questão, não digo que ele não é importante não, ele é importante sim. Acho que qualquer coisa tem que ser avaliado, qualquer coisa tem que ser mensurado, mas tem que ser dosado, né? P: A própria resposta da senhora já respondeu a próxima pergunta, né, mas eu vou fazer de qualquer forma. Eu ia perguntar, de que forma essas demandas influenciam na atuação em sala de aula? Pelo que a senhora colocou, a senhora até falou isso várias vezes, a gente está tão tomado de outras coisas, que temos que fechar os olhos pra outra atividade. Tem que as vezes dar uma disciplina, a mesma disciplina ou o que já está acostumado com a dinâmica da disciplina, as vezes não tem tempo pra... e como é que a senhora acha que isso poderia ser amenizado, ou se isso é uma coisa que, por exemplo, o fato da senhora administrar, com relação ao cotidiano? [fomos interrompidos] Então professora, continuando. Então como é que a senhora colocaria assim, de que forma essas outras demandas, influenciam a atuação na sala de aula do professor universitário? Prof. Maria: É complicado entendeu, você na verdade tem que ter tempo pra tudo, não é só pesquisador, você... Mas também não pode ser só professor. Então tem que realmente ser... se desdobrar como critério né... P: Você acha que de alguma forma prejudica a atividade docente, com relação à preparação ou coisa do tipo, como é que a senhora avalia isso? Prof. Maria: Não assim, sempre contribui, porque eu acho que a partir do momento que você está fazendo pesquisa, seja em que área for, ou na questão só de didática ou na pesquisa pura de Química, né? Você faz coisa de ponta, e aí você tem oportunidade de levar pra sala de aula, não uma Química do século retrasado, mas levar nanopartícula entendeu, levar uma coisa que é atual. Então eu acho que isso só tem a contribuir. Tem aqueles colegas que não querem, só enxergam pesquisa e que acha que é dissociado, né? mas eu acho que você tem sempre a contribuir com novidades, que você está na área de educação, você está lendo e aí você está sempre trazendo alguma coisa nova, né? P: Durante uma das suas respostas, a senhora localizou logo no início os três pilares da universidade, né? Pesquisa, extensão e Ensino. Como você ordena esses três pilares em grau de importância pra você? Prof. Maria: Não tem, é universidade. P: então não tem ordenamento? Prof. Maria: Você teria que ter o equilíbrio, é lógico que é característica de cada um ter mais facilidade, valorizar até mais, mas de uma maneira geral pra coisa ser harmoniosa, era que todos 158 ANEXO 2 – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS ENTREVISTA 1 – PROFESSORA MARIA 300 305 310 315 320 325 330 335 340 345 350 355 atuassem nas três áreas. Extensão é uma coisa complicada pra fazer então em termos gerais de UFF, eu vejo que o mais fraco é a extensão, entendeu? Porque acaba ficando... Se der tempo, entendeu? Hoje é chamada já de projetos, já está permitindo, né, a saída da escola por exemplo, em educação, você não deixa de estar fazendo uma extensão. Saindo dos muros da universidade, você está contribuindo dessa forma. Mas, pra uma pesquisa mais pura, mais acadêmica a nível de laboratório, não estou dizendo que a outra seja mais importante, mas o perfil é diferente. E aí fica difícil fazer a extensão, né? Eu fui até representante na UFF, da comissão de extensão da universidade, entrava muda e saia calada, porque eu achava que o que eu podia estar fazendo ali, o pessoal da área de humanas tinha muito mais a ver com a extensão do que uma Química podia contribuir. Então, muitas vezes achava os projetos maravilhosos e não conseguia me enquadrar ali como sendo... e hoje não, né, CTSA tá aí pra isso, né? Agora você tem ciência, tecnologia sociedade e ambiente. P: Se nesse sentido mais fraco é a extensão, qual seria o mais forte? Pesquisa ou Ensino? Prof. Maria: Olha, em captação de recursos é pesquisa, porque ainda é quem banca a universidade. Posso dizer, que nesse segundo Governo Lula, como Hadad como ministro da educação, e com a implantação da REUNI, o REUNI teve algumas falhas e teve uma contrapartida ruim pra universidade, mas é inegável que injetou dinheiro na universidade, em todas elas. É claro que foi uma negociação, em troca de vaga, em troca daquilo, mas houve uma injeção de verba na universidade, pra infra-estrutura, pra prédio, pra instalações elétricas, pra conforto, pra laboratório de graduação, então teve o seu lado bom. Porque até então, muitas vezes os laboratórios de graduação funcionavam por conta das migalhas que sobravam da pesquisa, eram reagentes que chefe de departamento pedia entendeu? Então, quer dizer, existem duas histórias entendeu? uma antes e outra depois. Então, antes a pesquisa era responsável pela injeção de dinheiro. Tem ela então, uma universidade forte, uma URFJ, uma UNICAMP, uma USP, pra ter muita verba. A UFF nessa corrida por verbas e a CNPQ, tinha que brigar feio porque o número de doutores era inferiores e tudo... a contrapartida da universidade era muito ruim, né, então isso está mudando, então agora a gente já está conseguindo brigar de igual pra igual, conseguindo verba de outros órgãos, sem ser órgãos de fomento tradicionais públicos como Petrobrás entendeu, já que tem convênios sem ser público, sem ser uma instituição. P: Isso passou a ocorrer pós REUNI, né? Prof. Maria: Eu acredito que sim, porque se passou a conseguir dar uma contrapartida, porque na hora... P: Meio que equilibrou, equiparou as universidades pra... Prof. Maria: Tá acontecendo né?, não aconteceu, né, tem muita obra... a UFF está num campo de obra, né, está assim muita obra, acho que pra melhor. P: Então nesse sentido assim, já que falamos muito da universidade, dos pilares que sustentam a universidade, na sua opinião professora, qual o papel do professor universitário na Licenciatura e na sequência, qual seria o papel do professor de Ensino Médio na sua opinião? Essas duas modalidades de professor: professor universitário, professor de Ensino Médio. Qual o papel de cada um na sua opinião? Prof. Maria: Olha, a gente tem PCN, né, PCN do Ensino Médio. Se você vê aquele PCN, você vê a tua geração pra trás não foi formada pra usar aquele PCN. O ENEM nesses novos moldes, também vejo que fica muito difícil, pro professor de Ensino Médio que não batalha, que não corre atrás, não continua numa formação se adequar ao ENEM, senão ele vai ficar, pesquisa de Google, “Control C, Control V”, copiando textos que ele mesmo não tem noção, não entende, não sabe por quê. Então eu vejo que o papel da universidade é que começa pra poder formar aquele profissional, pra se adequar a legislação, educação ambiental é lei e não é aplicada. Ninguém tem na formação ou alguma disciplina... Você vê, primeiro já começa a lei dizendo que educação ambiental não pode ser uma disciplina, pela interdisciplinaridade, por todas as trans-disciplinariedades, por isso. Mas, quem é que vai formar um profissional pra atuar em educação ambiental? Se ele não teve a sua formação na graduação, aí ele vai fazer o que? Uma feira de ciências, né, uma catação selecionada de lixo e vai achar que aquilo é educação ambiental entendeu? Então, o início é universidade. Então, a universidade é que tem que preparar o profissional pra atuar nos PCN’s, na legislação. Por que? Como a geração pra trás não foi preparada, hoje que... P: É o papel da universidade. Prof. Maria: Com certeza. P: E o professor como sendo parte integrante desse corpo chamado universidade, qual seria o papel dele? Prof. Maria: Se preparar pra fazer isso, porque ele também não teve essa formação. Entendeu? P: Entendi Prof. Maria: Eu não tive essa formação, você não teve. Então, o que tem que ser feito? Preparar pra mostrar que existe algo além, que não é só uma feira de ciências e dizer que...Isso é educação ambiental, por exemplo, estou dando um exemplo, né? mesma coisa do ENEM, o ENEM semestre passado, está tendo curso da especialização, e os professores perdidos, pesquisa de internet direto, entendeu? Ainda 159 ANEXO 2 – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS ENTREVISTA 1 – PROFESSORA MARIA 360 365 370 375 380 385 390 395 falava assim, “Você acha que é por aí?” Nos livros textos tem tudo, num nível, e se você for pra internet, tem coisas boas, tem coisas ruins, mas será que o aluno do Ensino Médio está preparado praquele texto da internet? Enquanto você também não está. Entendeu? Então o que eu via tinha que preparar lista de exercícios aquele afã (affair) de modelo ENEM, entendeu? Eu fiquei muito chocada com essa coisa, a cobrança das escolas, cobrando uma nova maneira de cobrar os exercícios, num modelo, que não foi formado, nem coordenador, nem ninguém, que está copiando uma receita... Entendeu? Criou essa confusão toda... P: O ENEM foi realmente bem polêmico nessa mudança de perfil. Nesse sentido, na sua opinião, o professor de Ensino Médio, ele desempenha... vem desempenhar que papel da nossa sociedade? Prof. Maria: Formação de cidadãos. Formação básica, ele teria que preparar o conteúdo pra fazer curso técnico pra ir pra universidade, mas também com toda a preparação de entender o mundo que ele está inserido. P: Sem querer ser redundante, que eu acho que a senhora até já respondeu essa próxima pergunta, mas só pra retomar mesmo, então, qual seria o papel das universidades na sociedade brasileira? Prof. Maria: É, de formar profissionais capazes, né, num país com essa divergência que a gente tem aí entre estados, entre regiões, né, o papel da universidade é realmente formar uma elite pensante. A universidade ainda é para uma elite, não uma elite social, não tem nada a ver com cota, nada disso, mas tem que ser pra pessoas que realmente tem uma capacidade intelectual de ir além, porque também na universidade os currículos são muito engessados. Então, você não pode ir, tem que cumprir, né, um programa analítico, tem que ser cumprido e aí o resto, aquela coisa a mais, aquela discussão, aquela formação além da sala de aula, fica muito expulsada por questão do tempo. E eu acho que é o papel da universidade, realmente formar uma elite pensante como qualquer outro país do mundo, né, e aqui as divergências regionais são complicadas, porque você não tem o mesmo perfil em todos os locais. P: Então professora, muito obrigado pela entrevista. Prof. Maria: Não sei se eu contribuir com alguma coisa. P: Com certeza, contribuiu. Prof. Maria: É um assunto delicado. P: É. É um assunto delicado sim, mas é isso, acho que da mesma forma que existe essa mudança de perfil em muitos segmentos da sociedade, essa minha pesquisa ela está tentando contribuir nesse sentido, dar voz ao professor universitário pra saber suas opiniões, seus conflitos, seu cotidiano, pra que a gente comece num estudo desse novo cotidiano, desse novo universo, enquanto pesquisa contribuir com a melhoria, né? Prof. Maria: É, não pode ficar só naquele discurso: “Ah, atua mal porque ganha mal”, entendeu? Eu acho que isso também é um paradigma que tem que ser quebrado. Entendeu? “Ah, você quis”, vamos lá, vamos correr atrás, vamos mudar de outra forma, vamos pressionar dessa maneira entendeu? P: Então, queria agradecer a senhora pela atenção. Obrigado! Valeu mesmo. [Fim] 160 ANEXO 2 – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS ENTREVISTA 2 – PROFESSORA ANA 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50 55 P: Primeiro queria - nesse momento que a gente está gravando - deixar claro que essa entrevista é para fins de estudo, né? Na tese ou nos artigos que ela pode resultar em nenhum momento a sua identidade vai ser revelada e é isso, ela vai dar suporte a essa construção da minha tese. Então, nesse primeiro momento, eu queria que a senhora começasse se apresentando, falando da sua formação acadêmica, as disciplinas que a senhora lecionou na universidade, é, as funções que desempenhou. Prof. Ana: Bom, o meu nome você já sabe, né? Não sei se sabe todo, [risos e declara seu nome completo] mas você disse que isso aí não vai ser colocado [risos]...Bom, minha via inteira foi na Universidade Federal Fluminense, eu fiz vestibular para a UFF em 1970, fiz o curso de Química lá e fui licenciada em Química, e ao terminar o curso de Química que era bacharelado e Licenciatura, na verdade quando eu entrei era só Licenciatura, durante o curso, né, é que nós tivemos um adicional na carga horária e ele passou também a ser bacharelado. A minha vontade era empreender, eu nunca pensei em dar aula na minha vida, eu era muito, sempre fui, você já deve ter percebido, muito tímida né, não tinha... Enfrentar uma sala de aula para mim era uma coisa terrível, enfim... Então, eu comecei a fazer entrevistas para indústria e um ex-professor meu resolveu fazer mestrado em geoQuímica lá na UFF, né? E pediu para que eu apresentasse na época, o professor José que era o coordenador do mestrado em geoQuímica, né, me conheceu e conversando lá com ele, ele virou para mim e falou assim “Professora Ana vai ter concurso, você não quer fazer?” Não eu não quero dar aula, né, eu quero ir pra indústria, ele: faz! Eu conheço uma pessoa que está lá fazendo, né, conheço a pessoa que te entrevistou e pediu referencias suas, né? Mas infelizmente - que tinha outra menina fazendo a entrevista comigo - a pessoa que estava com você tinha um “Quem Indique”. P: Ah tá! Um QI a mais né... [risos] Prof. Ana: Bom, e aí ele insistiu e insistiu eu falei, está bem, eu vou fazer o concurso, e fiz o concurso... passei... Daí passei, no princípio queria área experimental fazer ambiental, naquela época existia a carreira universitária, você entrava como auxiliar de Ensino, tinha quatro anos para fazer o mestrado, depois de quatro anos você tinha que fazer um outro concurso público para assistente, e aí com seis meses ele me deu uma turma teórica... e aí encarei uma turma de Química geral III... P: Caramba! E assim, já era para a Licenciatura naquela época também... Prof. Ana: Não, era para Química e engenharia Química, era assim misturado durante muito anos... P: Foram turmas mistas... Prof. Ana: Aí 50 alunos, eu me vi ali em cima ... né...e foi! E aí depois que eu comecei a dar aula eu não quis saber de outra coisa, né? Bom, aí durante esse tempo fiz mestrado lá nas práticas de Ensino defendi a tese e logo depois da defesa da tese houve um concurso, eu fiz o concurso novamente... P: pra assistente, né? Prof. Ana: foi para assistente, então, eu tenho a satisfação de dizer que eu fiz dois concursos...[risos] Bom, aí como assistente, eu continuei dando as aulas, na maior parte do tempo eu atendia sempre Química e engenharia Química, foram poucas as turmas que eu peguei de... P: Licenciatura... Prof. Ana: Não! de farmácia, P: de farmácia... Prof. Ana: É, pois é, porque naquela época, Anderson, você não tinha essa divisão... P: o currículo era... é... exatamente.... Prof. Ana: Você dava aula pra Química, porque na verdade você tinha os três, era Licenciatura, bacharelado e industrial, e mais que engenharia Química que nas disciplinas de inorgânica e Química geral você tinha turma mista com engenharia Química, ao contrário da físicoQuímica que a turma mista era com a farmácia, P: Com a farmácia é... Prof. Ana: Então, o curso de Química ele ia tapando buraco, ele não tinha uma identidade, você lembra disso, P: É verdade, Prof. Ana: Então, você não tinha algo em Licenciatura, e até porque o aluno que entrava pra Química, não queria fazer Licenciatura, ele queria fazer bacharelado, o que entrava para industrial sabia que queria área industrial, o que entrava pra Química, na verdade a ideia dele era fazer bacharelado, Licenciatura era um apêndice ali no final, aquelas disciplinas que fazer porque era obrigado a fazer... né? Então, durante a minha vida lecionando, as disciplinas que eu dei: Química geral III, Química geral IV, inorgânica I, inorgânica II e as experimentais, né? Então, nas experimentais eventualmente tinha uma turma de farmácia que era aquela Química geral II experimental e inorgânica II experimental, na verdade eu dei aula de todas as disciplinas do departamento, a gente fez um, P: Rodízio. 161 ANEXO 2 – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS ENTREVISTA 2 – PROFESSORA ANA 60 65 70 75 80 85 90 95 100 105 110 115 Prof. Ana: Rodízio né? Bom, e aí, quando eu, levei um certo tempo para iniciar o meu doutorado, até porque eu com três filhos fica meio complicado, mas finalmente eu resolvi fazer doutorado e fiz o doutorado na UFRJ... e digo que meu doutorado foi em Química, porque apesar de eu estar vinculada ao departamento de orgânica, a minha tese ela era... é, envolvia né: inorgânica, orgânica, porque eu estava estudando a atividade de uma molécula que complexava metais, então, era uma molécula orgânica que complexava metais e todo meu desenvolvimento, toda pesquisa tinha o comportamento físico-químico dessa espécie, P: Entendi... Prof. Ana: da reação e da atividade dela, então, foi muito rico pra mim, porque eu que estava na área de inorgânica né, tive que relembrar muita coisa de orgânica, porque quando você vai se afastando e isso vai acontecer com você, P: é... [risos] Prof. Ana: você acaba deixando para lá, principalmente a orgânica e a inorgânica. P: é... Prof. Ana: Aí foi bom porque eu tive que estudar orgânica de novo, todas as disciplinas que eram de Química orgânica P: Química orgânica avançada e tal... Prof. Ana: e a físico-Química né, então, eu digo que depois que eu terminei o meu doutorado a minha visão da área de Química ficou muito mais abrangente não tinha... P: você podia fazer muito mais elos, né? Prof. Ana: Aquele assunto que eu não pudesse ler e entender e relacionar, quer dizer, foi bastante interessante...bom esqueci... P: Não é isso... está apresentada! [risos] Bom, e pelo que a senhora falou, a senhora na verdade fez uma graduação e Licenciatura, naquela época ainda estava misturada, eu também vivi parte deste currículo, aquele currículo estilo 3 +1, e aí nesse sentido eu queria fazer uma pergunta para a senhora que diz respeito às disciplinas pedagógicas, né? A senhora teve na sua formação inicial contato com essas disciplinas, né? De que forma a senhora acha que essas disciplinas contribuíram para a sua atuação em sala de aula. Prof. Ana: Você vai criar um problema com a faculdade de educação, você vai ter que cortar essa resposta daí... [risos] Prof. Ana: Não contribuiu em nada! P: Em nada? Prof. Ana: Em nada, em nada, apesar de que tem que abrir um parênteses tá, que na época a professora de prática de Ensino, que era a Madalena da Silva. P: Era uma pratica de Ensino específica para Química. Prof. Ana: Era específica para Química. Ela apesar de não ter formação na área de Química, ela era uma pessoa que em termos teóricos, né, de preparar, como que se prepara um aula, e era é uma pessoa muito séria, então, nós tínhamos realmente a carga horária de prática de Ensino, a gente ia pra faculdade de educação e tinha aula, tá, então, isso era a realidade da minha época, na psicologia de educação, tem as disciplinas ate hoje, tem a psicologia da adolescência a gente lia e tinha que debater, né... E a prática de Ensino, toda a parte teórica, elaboração de planos de aula, né? E a gente ia pra frente, fazia fichinha, toda aquela dinâmica, né? Nós tivemos, porque ela não era, ela não tinha formação na área de Química né, então obviamente, mas ela era uma pessoa muito, como professora era muito boa né? Então, ela levava a gente para a escola e fez um estágio, na prática no Liceu, eles estavam montando o laboratório na época no Liceu, o Liceu já teve um laboratório de Química que foi maravilhoso, hoje está tudo guardado nas bancadas né...a gente fez a prática de Ensino lá no Liceu... Então, da minha época eu não posso dizer mal das aulas, a qualidade da aula pelo menos eles cumpriam, diretinho, agora, não significou quase nada porque no currículo você tem aqui a marca de conhecimento ideal, é na área específica você ter três, quatro disciplinas, na verdade eram quatro, estrutura de funcionamento do 2° grau, psicologia e duas práticas eram 4 disciplinas... e não significou praticamente nada... Eu aprendi a dar aula, na sala de aula. P: Na prática mesmo. Prof. Ana: Na prática mesmo, então, a minha experiência foi na sala de aula... P: Entendi... Prof. Ana: E eu acho que piorou um pouquinho na medida em que o comprometimento das pessoas lá do... Infelizmente, apesar de ser amiga pessoal de alguns professores, eu acho que o comprometimento deles com a área de Ensino para as Licenciaturas, ela foi começar na pedagogia, a faculdade de educação, eu acho que o grande problema é esse, a visão deles é que eles formam pedagogos, e as Licenciaturas, “ah não isso aí bota o professor tal” e... P: segundo plano, né? 162 ANEXO 2 – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS ENTREVISTA 2 – PROFESSORA ANA 120 125 130 135 140 145 150 155 160 165 170 175 Prof. Ana: Fica em segundo plano... P: E assim, como professora de Química geral, né? Na verdade eu sei que a senhora já foi professora de Química geral, inorg I, inorg II, inorg IV, mas para disciplina de Química geral que é um tipo de disciplina que você percebe muitos daqueles tópicos, daqueles conteúdos no Ensino Médio, né? Para essa disciplinas, primeiro pra parte do nível superior, quais são os conhecimentos necessários que a senhora acha para lecionar essa disciplina no nível superior? Prof. Ana: Se eu fosse um professor da disciplina, ele tem que ter uma base muito grande, muito boa em Química inorgânica né? Eu acho que tem que saber muita Química inorgânica, tem que saber orgânica, porque eu acho que para você fazer determinadas relações, né, e a Química geral, como diz, ela está vinculada a um departamento de inorgânica onde na verdade ela deveria ser uma disciplina... P: Que é de todos né, todos os departamentos. Prof. Ana: É né, de todos, o próprio nome já diz né? é Química geral... P: É, a ideia é dar aquela visão panorâmica Prof. Ana: Exatamente, então, além de uma boa base de inorgânica ele realmente tem que ter uma visão geral, tem que ter uma boa base em orgânica, em físico-Química, e aí eu digo a você, que eu acho que eu passei a ser uma professora muito melhor de Química geral quando eu percebi isso, porque como ela esta vinculada a área de inorgânica normalmente o professor de Química geral se preocupa em dar aula de Química geral para preparar para o inorgânica, quando na verdade, né, você está preparando o aluno para todas as outras disciplinas. A grande base que ele tem pra poder ir em frente, para poder pensar as outras disciplinas. P: Entendi, e assim, qual seria a importância dessa disciplina de Química geral, para a atuação do futuro professor de Química do Ensino Médio, pra senhora, na sua opinião? Prof. Ana: Eu acho que se ele tem uma boa visão dentro da Química geral de estrutura atômica, ligação Química, tabela periódica, ele pode transportar e fazer a transposição para o Ensino Médio com qualidade, porque, ele tem que ter, ele tem que saber mais do que ele vai ensinar, né? Então, se ele tem uma boa base de Química geral, e consegue realmente entender todos os conceitos, ele pode fazer essa transposição de uma maneira muito mais agradável ao aluno e levando pro aluno que realmente precisa saber, não daquela maneira que você normalmente vê no Ensino Médio que o aluno tem que decorar determinadas coisas, mas, entender determinados conceitos, né? Para que ele possa chegar na universidade, independente da área em que ele vá atuar, não necessariamente precisa ser Química, pra que ele tenha uma visão de Química agradável, começando por alguma coisa que ele está presente em todo o cotidiano dele. P: E nesse sentido, assim, a senhora comentou sobre a questão da transposição né, ele vai ter contato com uma Química geral que é lecionada obviamente em um nível mais avançado que no Ensino Médio e ele vai fazer a transposição, é, na sua opinião, se tivéssemos que eleger uma disciplina, qual disciplina é responsável por essa transposição? Isso poderia ser feito na própria disciplina de Química geral, isso poderia ser feito nas disciplinas da área de educação? Ou isso poderia ser feito em disciplinas de interface, Química geral com educação. Pra senhora essa transposição poderia ser trabalhada em que disciplinas? Prof. Ana: É, o ideal é que a transposição fosse trabalhada em todas as disciplinas, essa é a visão das diretrizes curriculares, né? Que você tenha a disciplina com a parte teórica e que você dentro da própria disciplina você vá trabalhando isso, então, por exemplo, você faz uma estrutura atômica para o seu aluno e aí você tem um espaço dentro desta disciplina para que você possa trabalhar com ele, bom, eu estou lidando com os conhecimentos de estrutura atômica nesse nível, como você vai preparar uma aula, como você vai pegar esses seus conhecimentos, que são conhecimentos,. P: Mais avançados, Prof. Ana: Mais avançados, como é que você vai passar isso para o aluno de Ensino Médio que tem uma maturidade ainda, P: Em crescimento, Prof. Ana: Em crescimento, é, não tem lá o seu raciocínio muito bem estabelecido, então, como é que você vai passar isso para ele sem que ele ache isso um horror, uma coisa chata, né? E como é que ele vai poder absorver esse conhecimento, então, dentro da própria disciplina você ia fazendo isso, Chega na inorgânica, você tem, algumas disciplinas na inorgânica, ácido-base, a própria ligação Química, você vai mais fundo, como é que você vai trabalhar isso com o seu aluno, então, essa é a visão das diretrizes, só que é impossível você fazer isso dentro da universidade, porque? Porque, porque você vai ter uma disciplina de licenciados, não é disciplina, uma turma de licenciados muito pequena. P: Então, assim, na própria logística da universidade as disciplinas acabam sendo mistas, porque... Prof. Ana: Não adianta, nós conseguimos com a reforma curricular manter turmas só de Química, não sei ate quando... P: Na verdade são Químicas mistas entre as modalidades de Química. 163 ANEXO 2 – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS ENTREVISTA 2 – PROFESSORA ANA 180 185 190 195 200 205 210 215 220 225 230 235 Prof. Ana: É, entre as modalidades da Química, porque senão você teria uma turma de licenciados de quinze alunos no máximo, isso eu já estou sendo assim, otimista né. Agora, na Licenciatura noturna daria para fazer, se as pessoas estivessem também preparadas para fazer isso,. P: [risos] É outra questão delicada né Prof. Ana: É outra questão delicada, então, o professor ele se prepara para, eu digo comum, não vejo separação não, eu vou ser de Química, eu vou me preparar, vou pegar vários livros para passar o conteúdo, tá? Então, o professor, eu acho que não é só na área de Química não, em todas as áreas, ele é conteudista mesmo ele quer é passar o conteúdo, né? Agora, a aplicação disso deixa lá para a faculdade de educação, que por sua vez quando chega lá o professor da faculdade de educação ele está muito mais preocupado em como ensinar ele a dar aula... “Não você vai fazer assim, você vai fazer... A metodologia é essa, é aquela, não sei o quê”... e aí também não junta. Não, qual é o conteúdo que você tem, como é que eu vou pegar esse conteúdo agora e vou passar esse conteúdo para o meu aluno? Ninguém faz isso. P: Acabam ficando dois conteúdos que não conversam, né? Prof. Ana: que não conversam, que não conversam... P: Porque é uma área específica que é dada na faculdade e aí uma outra área específica da faculdade de educação e parece que não existe um encontro... Prof. Ana: Não existe um encontro. Eu tentei fazer isso e consegui, em parte, na Licenciatura noturna pela disciplina tutoria, que eu fazia na tutoria? eu pegava um tópico de Química geral, dividia a turma em grupos de dois alunos né, dava um tópico de Química geral, que a tutoria I e tutoria II estavam vendo Química geral e logo depois iam ver a Química orgânica, então, a gente tinha o conteúdo e aí a gente trabalhava durante o semestre inteiro, como transformar aquele conteúdo que eles estavam aprendendo, como é que eles dariam a aula, então, entregavam um trabalho e faziam um seminário, né? Onde eles preparavam uma aula, enfim, então, durante algum tempo eu consegui fazer isso, como eu que dava as disciplinas da noite, então, eu consegui fazer isso no noturno, então, era uma disciplina que começava no primeiro semestre, então a gente ia, em um primeiro momento a gente fazia um seminário, em um segundo momento eles tinham que fazer aquilo sobre a forma de um pôster, em um terceiro momento era só um trabalho de escrita e a gente vai montando a complexidade, P: A complexidade da coisa. E assim, já que estamos falando dessa questão de transposição didática, de preparação de professores, o que a senhora considera importante para formar um bom professor de Química, o que é imprescindível, na sua opinião, para formar um bom profissional de Química, um bom professor de Química? Prof. Ana: Bom, não tenha dúvida de que ele tem que ter um conteúdo bastante sólido né, ele tem que realmente ter feito um bom curso de Química, porque o conteúdo você não pode abrir mão, não pense que sem conteúdo você vai conseguir dar uma boa aula né, ele tem que ter conteúdo. Agora, ao longo do curso ele tem que ser trabalhado ele tem que ser formado para ser um professor. Então, a ideia quando a gente fez a reforma curricular, atendendo as diretrizes que eu acho que realmente, eu acho que a visão foi muito boa, apesar de não conhecer nenhuma universidade que esteja conseguindo atender, tá, até porque justamente a estrutura é muito rígida, então, você... eu sofri muito né, era crítica em cima de crítica e queriam culpar alguém, então “tutoria não serve pra nada”, mas era onde a gente conseguia, a tentativa de, P: Oxigenar aquele currículo... Prof. Ana: Exatamente, e puxar, quer dizer juntar o conteúdo com a formação do professor. P: Entendi. Prof. Ana: Então, a gente fazia debates, eles tinham que ler sobre as diretrizes, eles tinham que ler artigos, P: A tutoria acabava se estruturando como uma verdadeira disciplina de inter-face. Prof. Ana: Era, era de inter-face isso a gente escutou muito essa palavra, quando tinha colocar quatrocentas horas de prática né, bom, como é que ia fazer isso? quatrocentas horas de prática mais quatrocentas, na verdade eram oitocentas, como é que você vai fazer isso num currículo que já tem um conteúdo pesado? Vamos fazer o seguinte, as quatrocentas de prática não tem jeito tem que ficar nos 4 últimos semestres, as outras quatrocentas vamos tentar fazer uma espiral durante o curso que acabavam culminando com a monografia, aonde você vai fazendo a formação dos professores, né, isso em conjunto com o instituto e a faculdade de educação. Foi muito mais o instituto do que a faculdade de educação... foi muito mais o instituto de Química do que a faculdade de educação, na verdade eu consegui levar algumas pessoas para dar palestras, enfim, mas a ideia era essa, era juntar o instituto com a faculdade de educação e desde o início a gente ir fazendo esse trabalho com eles, entendeu. Leitura de artigos de educação, trabalhos aonde ele pegasse o conteúdo e tentasse transpor para o Ensino Médio, a ideia era muito boa mais a aplicação foi meia, P: Não foi tão, 164 ANEXO 2 – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS ENTREVISTA 2 – PROFESSORA ANA 240 245 250 255 260 265 270 275 280 285 290 295 Prof. Ana: Não, não. Porque enquanto eu estava envolvida né, e eu só conseguia fazer isso a noite porque de dia era misturado, como íamos pegar um grupo de alunos, pra fazer, o que a gente pensava em fazer na tutoria, era colocar os alunos de Licenciatura com orientadores que estavam envolvidos com a área de educação: Joana, Lúcia, enfim, aqueles que tinham um pouquinho mais de habilidade nessa área. P: Entendi. E assim, é interessante que a senhora conta pra mim um percurso, em que fez a Licenciatura e que depois ainda estava um pouco resistente para ir para a sala de aula e depois que entrou na sala de aula viu que era aquilo que queria mesmo e que gostava e tal, e aí nesse sentido uma pergunta que vai nos levar a outros tempos assim né. A senhora quando estava fazendo a graduação, teve e, sua formação uma série de professores que passaram por ela, e eu queria que a senhora então, comparasse né. Comparando a sua atuação na sala de aula com a dos professores que lecionaram para a senhora na graduação, quais são as semelhanças que a senhora percebe que quais são as diferenças? Prof. Ana: ...Deixa eu ver, em termos de conteúdo né, eu tive como professor o Sandro, o professor Paulo Eduardo da área de Química geral, quer dizer, na verdade Paulo Eduardo e Sandro eram de físicoQuímica e eram professores muito bons, na área de orgânica também o sempre teve uma estrutura muito boa em termos de professores né, em termos de conteúdo na área de orgânica também eu tive excelentes professores, e tive professores medíocres também, isso aí eu acho que em todo curso, não é uma prerrogativa da UFF, da UFRJ em todo curso você tem... Agora, durante o meu curso, e como a gente, novamente, na minha época era um pouquinho mais crítico né, porque só entravam vinte alunos, desistiam dez no meio do caminho né, na minha turma, por exemplo, a primeira turma foram cinco formandos só, tá, em uma turma de vinte. E aí a gente estava super misturado né no meio da engenharia, da farmácia né, então, basicamente os professores passavam o conteúdo, uns passavam muito bem e outros muito mal né? Em termos de semelhanças eu posso dizer que, uma coisa que eu sempre vejo nos primeiros semestres já com a minha própria experiência e tendo que fazer anotação para dar aula né, enfim, aquela toda insegurança do início, eu tento sempre, eu procurei fazer o meu trabalho com a mais alta qualidade, dentro das minhas possibilidades. No início, um pouco mais insegura e depois na medida que eu fui aprendendo, eu fui melhorando. Então, em termos de semelhança, eu acho que, eu vejo a seriedade, em termos de dar uma boa aula, em termos de melhorar... P: de comprometimento. Prof. Ana: Em termos de melhorar né, preocupados com o aluno né, as vezes um pouco rígido demais, sempre fui da ala mais rígida, nunca fui uma professora lá muito querida, mas porque achava que realmente você tinha que passar o conteúdo e pedir do aluno o retorno né? Então, as semelhanças eu vejo com alguns professores que eu tive. P: Aham, e a as diferenças? Prof. Ana: Em termos de diferenças eu acho que ao longo da minha carreira eu procurei evoluir, né? Então... P: Evoluir na área de Ensino mesmo, né? Prof. Ana: De Ensino, então, eu que era uma professora muito conteudista, então, tinha que ensinar tudo, então, a minha filosofia na época era, professor de Química pra dar aula, de que, que precisa? De Química! Ta? e ao longo do tempo apesar de ter feito mestrado, doutorado, quer dizer, participo de uma área mais de pesquisa né? Eu percebi que o professor pra ser professor ele não precisava só de conteúdo, e aí eu fui moldando a minha maneira de dar aula, de conviver com os alunos, eu acho que nos últimos oito anos que foi quando eu assumi a coordenação, eu fiz questão de não sair da sala de aula, eu não admitia um coordenador né, não está na sala de aula pra saber o que, que estava acontecendo no curso né? eu acho que o meu crescimento foi muito grande, porque, eu acho que eu evoluí né... P: Oxigenando os seus próprios conceitos de... É, então, assim, considerando o tempo em que a senhora atuou na UFF, né? No seu entendimento, né? Que a senhora comentou no contexto das reformas, no seu entendimento as reformas realizadas na Licenciatura, melhoraram, pioraram, ficou a mesma coisa, com relação à formação dos professores? Prof. Ana: Bom, eu sou suspeita para falar, porque aquele currículo era, foi mais um filho meu né, então, eu realmente me dediquei a aquela reforma curricular né, bati de frente com muita gente ali né, criei, no final eu acho que não, no final eu tinha vários amigos né, mas no início foi uma coisa assim, eu achei que eles iam me destituir do cargo, foi uma guerra muito grande, mas, eu, na minha opinião, melhorou muito, a qualidade, não só de Licenciatura, dos cursos, te digo porque. Os alunos de Química, vou te dar primeiro em uma visão geral para depois falar específico em Licenciatura. Qual era um dos grandes problemas do aluno de Química dentro do instituto de Química? Ele não tinha identidade, o instituto de Química ele trabalhava para a engenharia Química e para a farmácia, porque aluno de Química como eu te disse ele preenchia buraco, “Ah, tem tantas vagas sobrando, vai pra Química, tá”. Então, ele não tinha identidade, ele não reconhecia o instituto de Química como sendo a casa de le, ele 165 ANEXO 2 – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS ENTREVISTA 2 – PROFESSORA ANA 300 305 310 315 320 325 330 335 340 345 350 355 não tinha espaço para monitoria, pra iniciação científica, e com a reforma curricular a gente abriu esse diálogo, então, se você for ver, fizer um levantamento de quantos monitores nós tínhamos e de quantos alunos de iniciação científica que nós tínhamos, antes e depois da reforma, isso foi um crescimento, assim, muito grande, porque? Por mais que as pessoas critiquem, “ah, porque é uma perda de tempo, era isso e aquilo”, mas era onde a gente abria espaço, o aluno tinha que fazer a monografia e tinha que ter um orientador e aí ele tinha, e aí ele... P: Acabava se envolvendo... Prof. Ana: Desenvolvendo, e ele ia se envolvendo, e aí você tinha em termos de Química muitos alunos, a iniciação científica assim foi um negócio muito interessante, como aumentou a quantidade de alunos né, na iniciação. É, o aluno de Química passou a ser exigente dentro do curso tá, porque agora era a casa dele, era o curso dele... P: Legal Prof. Ana: Nós conseguimos ter muitas disciplinas só de turmas de Química, então, ele não é mais um aluno a mais ali dentro, e aí o aluno de farmácia despontando né com as maiores notas, e o de Química lá coitadinho, né? super envergonhado né? de fazer Química, o licenciado, então, você perguntava ele nem respondia que era licenciado né? P: [risos] Prof. Ana: O quê? era vergonha fazer Licenciatura né? Então, eu acho que a reforma curricular o principal ganho foi esse, o aluno de Química realmente se integrou ao curso de Química, em relação à Licenciatura, eu não tenho dúvidas tá, enquanto você tinha alunos com vergonha de dizer que eram licenciados, assim,“eu faço Licenciatura porque você sabe como é que é né?” . Ele não admitia que ele estava fazendo Licenciatura, rara eram as exceções, você era uma. Depois de um tempo: “eu vou fazer Licenciatura, eu quero fazer Licenciatura”, porque desde o primeiro momento ele já estava se envolvendo né, ele começou fazendo a psicologia da educação e a estrutura de funcionamento lá nos primeiros semestres, então, no início ele já estava na faculdade de educação, e mais a carga aqui com a gente né e ia municiando, “você quer fazer Licenciatura, então, como é que a gente vai trabalhar isso”, colocando disciplinas de metodologias de instrumentação dentro do currículo que não existia, né? Então, ele tinha na faculdade de educação e tinha o instituto. Então, eu acho que ele criticar, (inaudível – 35:48), então, eu acho que para o licenciado foi um ganho muito grande. P: Acabou forçando uma parceria que antes não existia. Prof. Ana: Não existia, e aí gente via aluno que dizia “estou fazendo Licenciatura”, ele tinha orgulho de dizer, não a monografia vai ser... E como o currículo do bacharel, e aí a gente conseguiu realmente dividir industrial é industrial, com pesquisa industrial, licenciado ficou sendo licenciado, e o bacharel é o pesquisador não é? então, não vamos fazer o seguinte, e aí foi uma coisa de doido as tais das 630 horas de optativas que ele tinha que fazer para definir a linha de pesquisa dele né, porque ele não é pesquisador? só que isso não deu certo, porque os departamentos não tinham disciplinas, não oferecia a quantidade de disciplinas suficiente para que ele justamente procurasse, P: Pudesse escolher qual área ele ia se aprofundar... Prof. Ana: Qual área ele ia se aprofundar né, por conta do curso de Química, com poucos alunos, você dar uma disciplina optativa com cinco, seis alunos, era um professor né? e aí bate em toda estrutura da universidade né, de carga horária, então, o bacharel nesse ponto ficou, é, o objetivo da formação ficou prejudicado, porque na verdade eles faziam as disciplinas na físico-Química porque ela é que tinha o maior número de optativas para oferecer, então aquele objetivo da formação de pesquisadores realmente não foi alcançado, Agora, para o licenciado eu não tenho dúvidas que o ganho foi muito grande, foi muito grande em termos de você ter uma quantidade de horas a onde o aluno podia vivenciar aquela parte de educação e poder relacionar os conteúdos com, P: Então, assim, sem querer ser redundante, mas já sendo, quais são os pontos positivos e negativos que a senhora destaca na formação universitária para a Licenciatura atualmente. Prof. Ana: Bom, os pontos positivos, essa relação que começou a haver entre os conteúdos de Química e os conteúdos pedagógicos P: que antes não existia... Prof. Ana: que antes não existia, a integração de alguns professores que realmente perceberam a importância disso e começaram a se envolver com a Licenciatura. A gente tinha algumas pessoas que já faziam isso, mas a gente teve um número de professores aderindo ao, P: Que antes eles não tinham, às vezes, até por ignorância, por não conhecer, né? Prof. Ana: Isso, porque, pra eles, era algo que continuava sendo, professor de Química era professor de Química. E, aí, a medida que eles foram percebendo, né? E teve uma coisa que ajudou nesse ponto, também. Isso ajuda a qualquer projeto universitário. Na hora em que você tem dinheiro rolando fácil numa determinada área, você vê que você tem um crescimento naquela área. E o governo investiu muito nos projetos, né, de formação por conta da grande deficiência, que eu considero, e não é só por 166 ANEXO 2 – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS ENTREVISTA 2 – PROFESSORA ANA 360 365 370 375 380 385 390 395 400 405 410 415 conta da formação do professor, mas nenhum professor, né? você sabe disso, né? Vai fazer 4 anos de Licenciatura, que tem que dar a vida pra se formar, pra depois, ganhar R$ 500,00 P: é... Prof. Ana: Então, eu acho que a falta de professor no Ensino Médio, acho que passa, também, por aí. P: Por essa questão da valorização. Prof. Ana: Da valorização né? Você pode formar milhões de professores né, mas se não tiver um grande salário... até porque ele tem uma boa formação, ele é profissional qualificado, ele vai se submeter a ganhar R$ 500,00? Dar aula em múltiplos colégios pra juntar um salário decente, não. P: É complicado mesmo. Prof. Ana: Muito complicado. Então, em termos de pontos positivos, voltando, né? pra não fugir, os professores que se integraram, a autoestima do aluno que aumentou e muito, a vocação que determinados alunos mostraram, apresentaram, né? Para serem professores, isso você decidia ao longo do curso, passava e você não via, ia ser um bom professor e continuou lá ralando em sala de aula como eu, né? Mas não durante o curso você não sentia aquela vocação, a gente viu essa vocação e aparecendo lá com os alunos, realmente muito empolgados e com os projetos frequentando as escolas, projetos dentro da própria universidades, enfim todos aspectos muito positivos. Aspectos negativos, alguns professores estiveram muito reticentes a isso, e eu realmente fico muito preocupada com o futuro da Licenciatura, se não tiver pessoas dentro da unidade, em qualquer universidade, que realmente continuem engajadas nesse processo de valorização do magistrado de uma visão diferente, uma visão de realmente de formação de professores, eu tenho uma preocupação grande que isso... P: Comece... Prof. Ana: Comece a reverter P: Se avançou muito estruturalmente e talvez o que mais ameace hoje, é talvez a persistência de alguns professores de... Prof. Ana: de alguns professores, se bem que foi o que te falei, enquanto o governo tiver injetando dinheiro na formação de professores, os próprios pesquisadores estão percebendo isso e estão, então você tem hoje um número de, vários professores envolvidos, né? Na educação, porque? é onde você tem, você tem bolsa pra professor, você tem bolsa pra projetos, você tem projetos com valores altíssimos de financiamento para formação de professor, foi um incentivo bastante grande...[risos] P: Entendi [risos]... Bom, e agora assim, lembrando mais do seu cotidiano por exemplo. Que você enfrentou na universidade, dando aula enfim, já foi coordenadora do curso de Química. Enfim... sobre o cotidiano, quais são as exigências profissionais, que o professor universitário enfrenta hoje? Prof. Ana: Bem, na minha época, você tinha carreira universitária. Então, você entrava pra universidade como auxiliar de Ensino, você trabalhava junto ao professor titular, né? Que ia contribuindo pra sua formação, ele ia aprendendo a ser professor universitário né, a partir dessa vivência com outros professores né? Então, como eu te falei, em 4 anos você tinha que ter o seu mestrado pra poder fazer um concurso de assistente, mais 4 anos você tinha que fazer doutorado pra adjunto, então existia essa carreira universitária, que não era uma carreira que você crescia mudando de... P: De nível Prof. Ana: De nível por tempo, mas por formação. P: Entendi... Prof. Ana: Em 1980 houve uma coisa que eu achei que foi extremamente danosa para universidade, que foi o projeto, o grande projeto do... na época, o Ministro da Educação, que era o Portela, tanto que o projeto passou a se chamar “portelão”, em 1980 a gente começou ter uma falta muito grande, onde você não tinha vagas pra universidade. Então, os substitutos na época era até muito contratados e chamados de bóia fria né? era muito grande. Pra resolver isso, esse projeto absorveu esses professores todos, sem concurso, tá? E acabou com o plano de carreira, você, ele manteve os níveis, mas agora você tinha uma progressão por tempo e por avaliação interna. E aí, foi o grande “bonde da alegria”, porque depois de 4 anos você fazia um relatório, “ah dei tantas aulas, não sei o quê” independente de ter mestrado ou não, mas se você está dando muito e não teve tempo de fazer um mestrado, poxa você era bonzinho, está trabalhando bastante vamos promovê-lo para assistente, né? Agora o pessoal está começando a barrar, pra adjunto não! Tem até uma briga lá interna de um professor que não tem doutorado dele e quer ir pra adjunto, e o departamento tá... Mas é uma questão de tempo. Existe toda uma, como todo serviço público, é como uma família né? P: O paternalismo... Prof. Ana: O paternalismo é muito grande né? Então isso existia dentro da universidade e eu acho que era muito positivo. Hoje, pra você ser um professor universitário, e aí por que determinadas áreas optaram por isso, justamente pra você não pegar um professor lá no início da... com a graduação e aí ele vai passando por tempo independente de ter uma formação ou não, em determinadas áreas, 167 ANEXO 2 – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS ENTREVISTA 2 – PROFESSORA ANA 420 425 430 435 440 445 450 455 460 465 470 475 principalmente determinadas áreas com pesquisa muito forte, você só tem concurso pra adjunto, no mínimo, tem que ter o doutorado, e pra pesquisa é muito bom, você já pega o pesquisador pronto, porque não só tem que ter o doutorado como ele tem que ter um projeto de pesquisa, defender um projeto de pesquisa, que é o que ele vai implantar na hora que ele entrar lá dentro. Mas tem um lado muito negativo. A gente está contratando professores que não sabem dar aula, porque assim como eu entrei graduada, peguei uma turma de 50 e tinha lá minha fichinha, né? e tinha que estudar e tinha que pegar 300 livros pra preparar a aula, porque, eu tinha o conteúdo mas não tinha a experiência, Como que eu vou passar isso pro aluno? Como é que eu vou preparar a aula, juntar vários conhecimentos? Fazer o aluno perceber, pensar? Então, tem pesquisadores que passou a vida dele intera ali: graduação, mestrado, doutorado, só na área de pesquisa, nunca deu uma aula, ou se deu foi 6 meses 1 ano de aula, aí ele acha que o aluno né? de Química geral tem que entender mecânica quântica... P: [risos] Prof. Ana: ou tem que entender espectroscopia...Afinal de contas é a área dele, temos vários casos do professor chegar na sala de aula, aula, aula, aula...e o aluno ficar olhando pra cara dele... “o que ele tá falando”... como não entendi? né? ... como distribuição eletrônica, porque? No nível que ele tá ele acha que isso... mas durante a graduação dele não sabia nada daquilo, então ele quer que o aluno aprenda a Química geral no nível dele, então esse é que é o grande problema que a gente tá tendo... P: E isso com certeza traz reflexos pro, pra formação... Prof. Ana: Pra formação do aluno, na área básica, ele é um pesquisador. Agora, nós temos tido sorte dentro do departamento, a gente tem contratado professores que apesar da falta de experiência, a gente tem um departamento, que é um departamento unido, envolvido, enfim, eles vão, depois de um certo tempo, eles vão entrando no ritmo. P: Normalmente o professor quando, pelo que a senhora colocou, quando entra na universidade, a universidade está procurando um professor que tenha doutorado, um pesquisador pronto, né? Obviamente para poder exercer, assim que entrar na universidade essa função de pesquisador também... Prof. Ana: de pesquisador P: Na universidade a gente tem a pesquisa, a extensão, o Ensino, ali muito presente no cotidiano do professor. Como é que a senhora avalia esse professor atualmente? O cotidiano do professor universitário, como ele se desdobra, como a senhora poderia avaliar ele? Prof. Ana: É, normalmente o que acontece com o pesquisador, se ele tem pesquisas, ele tem projetos e ele no relatório dele, ele mostra isso, traz investimentos pra universidade através de projetos, ele tem sua carga horária reduzida na graduação, tá? Então ele vai ter uma carga reduzida na graduação você hoje tem, a maioria das universidades tem as pós graduações, então ele vai ter uma outra, vai complementar sua carga horária na pós graduação e restante com pesquisa, então é um professor que tem menos envolvimento com a graduação... P: na sala de aula... Prof. Ana: na sala de aula P: Isso então, influencia de forma direta, na atuação desse professor em sala de aula? Prof. Ana: Influencia, Anderson... Mas depende muito do professor... P: Entendi Prof. Ana: Você tem excelentes pesquisadores e aí na hora que você tem um professor, que acredito eu que é uma pessoa inteligente, uma pessoa acessível que tem cultura para também se formar um bom e ser um bom professor então eu acho, do ponto de vista do meu departamento, que a gente tem conseguido isso, porque também pensar naquele professor que está mais dedicado a sala de aula e por isso ele vai ser um bom professor, pelo menos no meu departamento a gente não vê isso, aqueles professores que não estão envolvidos em pesquisa, independente de ser na área de educação ou na área de Química, são professores que dão aula, aula, são professores que são escalados pra engenharia básica, porque eles também não estão envolvidos... Eu sinceramente, quando eu fazia minha distribuição de carga horária eu dizia, não quero esse, esse e esse professor dando aula pra Química, Porque apesar de serem professores que tinham uma alta carga horária na graduação, porque não faziam pesquisa, queriam lecionar? Muito pelo contrário. Então eu acho que o modelo apesar das discussões, ainda é melhor do que o modelo que nós tivemos durante um certo tempo. Que você tinha um graduado entrando e não sendo obrigado a se formar, progredindo... P: progredindo por tempo e não por, entre aspas, merecimento Prof. Ana: progredindo por tempo... exatamente P: ou por título de pesquisa, um título... Prof. Ana: Se houvesse ainda carreira universitária, eu acho que você teria, ai sim você poderia ir formando, com tempo... mas no modelo atual, você ainda admitir pesquisadores ainda acho que é o caminho melhor... 168 ANEXO 2 – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS ENTREVISTA 2 – PROFESSORA ANA 480 485 490 495 500 505 510 515 520 525 530 535 P: Bom professora, com relação à pesquisa, o Ensino e a extensão que estão presentes na universidade, como a senhora ordenaria esses três condicionantes presentes na universidade em grau de importância pra universidade hoje? Prof. Ana: Pra universidade hoje? Eu acho que a importância maior e que gera mais recursos pra universidade e o que ela está mais interessada é a pesquisa, não tenha dúvidas, isso em função basicamente do... né? Então em primeiro lugar você tem a pesquisa, que traz recursos pra universidade, que projeta o professor na comunidade, isso é para o professor extremamente importante né, então eu acho que ele dá muito mais importância a pesquisa, por ser uma coisa maior, mais importante, mais bem vista né? Em segundo lugar, o Ensino né, que ele obrigatoriamente ele tem que dar aula, independente se ele está dando aula na graduação ou pós graduação ele tem que ter uma carga horária, né? Obrigatória... E a extensão...eu acho que é considerada a menos importante, até um pouco depreciada, apesar de que em determinadas áreas, eu acho que a extensão seja extremamente importante... P: Aham... Prof. Ana: na área médica que poderia estar fazendo programas de extensão para comunidade e nas próprias áreas exatas hoje, eu acho que com a formação de professores, eu acho que você pode estar fazendo um trabalho muito grande com as escolas, com a comunidade, né? Em termos projetos de extensão, né? de projetos com o aluno, não é só no Ensino Médio não, no Ensino fundamental, fazendo o aluno gostar de ciências, de matemática, de... Isso só incentiva o aluno e se houvesse mais essa integração, teríamos menos alunos com problemas em matemática, problemas em física, né? Então, agora, tem muita gente envolvida nisso, a física com a casa da descoberta, né? Com projetos la com a Química... Agora também porque? Porque hoje você tem dinheiro envolvido... P: [risos]...sendo injetado ali, dando um incentivo, então assim, dessas três dimensões, pesquisa, Ensino e extensão e dessa forma que o professor universitário hoje se relaciona com elas, diante desse contexto, desse cenário, pra senhora, qual o papel do professor universitário na Licenciatura? Prof. Ana: ...deixa eu entender a sua... P: Assim, a gente veio construindo o cotidiano do professor né? como ele se desmembra na universidade diante da pesquisa, da extensão, qual seria o papel desse professor universitário na universidade hoje... Prof. Ana: Ah! entendi! Importantíssimo quisera eu que todos os professores dentro dos institutos, tivessem envolvidos com Licenciatura, eu não estou falando só de professores de Química não, acho que na área de exatas isso é muito mais crítico. Porque de alguma maneira nas áreas é, sociais, nas áreas é, P: Humanas Prof. Ana: Humanas, você tem um... isso passa um pouco mais fácil... pelo menos eu acredito, agora na área exatas isso é muito complicado né? O professor está preocupado com o conteúdo, agora com o conhecimento muito grande na área dele, de Química, de física, de matemática, a contribuição que ele pode dar pra formação do licenciado, é extremamente... é muito grande, porque ele pode trabalhar aquele conteúdo com licenciado, ensinando, ou ajudando ele aprender, ensinando não porque ninguém ensina nada a ninguém, ajudando ele aprender como é que ele vai ser um professor, ele vai se tornar um professor. Mas para isso a gente vai esbarrar em outros problemas, que o próprio professor universitário tem que aprender a ser professor antes de passar isso para o aluno, então você conta com professores com mais envolvimento pra poder ajudar na Licenciatura, os novos não tem condições. P: Assim, mudando um pouco da modalidade né? Então você colocou da importância do professor universitário na Licenciatura, Qual a importância do professor de Ensino Médio, para sociedade? Prof. Ana: Eu acho que assim, um processo fundamental na hora que você, se conseguir realmente trabalhar as 400 horas da prática. Por que? Pratica é prática, o aluno tem que saber ir a escola, tem que conhecer a escola, tem que vivenciar a escola e tem que aprender com os outros professores de Ensino Médio que tá lá todo dia, e a gente sabe que não é fácil tá, como ele será um professor igual ou melhor ainda que aquele professor que tá lá, então, o professor de Ensino Médio tem um papel muito importante ao receber o aluno na escola e ajudar esse aluno a entender, compreender, os problemas da escola, os problemas dos alunos, como é que vai trabalhar isso né? Você sabe que tem escolas aí, você trabalhou em uma que ficava no pé de morro né? Quais são os problemas né? Se tem um professor lá dentro né. que tem essa vivências que sabe como é que vai chegar no aluno, como é que vai motivar o aluno pra aprender né, ou então ele vai desviar pro tráfico, qual a importância dessa situação pra ele e pra o crescimento da sociedade, então eu acho que se o aluno tem a oportunidade de viver na escola com o professor de Ensino Médio, eu acho que o papel do professor na formação dele é fantástica... P: É fundamental... 169 ANEXO 2 – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS ENTREVISTA 2 – PROFESSORA ANA 540 545 550 555 560 565 570 575 Prof. Ana: eu acho que o papel do professor na formação dele é... fundamental... P: Então pra gente encerrar, já que falamos da Licenciatura da universidade, das vertentes que permeiam a universidade, na sua opinião, qual o papel da universidade na sociedade? Prof. Ana: Eu acho que é de fundamental importância. A universidade que se desenvolve novas tecnologias que vão ser repassadas para benefício da sociedade, é a universidade que desenvolve, né? que forma os novos profissionais que vão contribuir para sociedade... Então eu acho que a universidade, ela é o motor que move toda a sociedade o desenvolvimento de um país, né? Porque se não houver uma boa formação dentro da universidade desses profissionais e dessas novas tecnologias, você não tem como contribuir para evolução da sociedade, ela não tem como contribuir para uma qualidade melhor de vida né? das pessoas, das diferenças sociais, né? Atuar, melhorar o nível de pobreza, eu acho que a universidade ela tem um papel importante no momento que ela forma e esse profissional dá o retorno à sociedade e no desenvolvimento das novas tecnologias... P: Nada mais justo né? Afinal de contas as universidades que forma profissionais, às custas dos próprios contribuintes, né? Prof. Ana: Exatamente, o retorno tem que aparecer... P: É a expectativa de que cria pela própria... Prof. Ana: Exatamente, porque tudo aquilo é mantido com o dinheiro dos impostos da contribuição... e aí, eu sempre falava pros alunos isso, as minhas falas nos primeiros semestres, né? E eu acho que eu consegui alguma coisa, né? era deles acharem que aquilo tudo era de graça... Porque o aluno achava, “não” e largava o curso e ficava não sei quantos anos sem fazer o curso ali dentro e não era de graça, é tudo muito caro...a universidade é muito cara para ser mantida... então acho que esse reforço é fundamental porque é um custo muito alto para manter essa estrutura... P: Então tá professora, eu agradeço... Prof. Ana: Espero que eu tenha... P: Eu Acho que ajudou muito, essa minha entrevista, na verdade a senhora está sendo a segunda entrevistada, essa minha entrevista na realidade ela tem muito a ver com minha história pessoal como eu me relacionei com tudo na minha graduação, movido por vários questionamentos eu resolvi ao invés de pegar o caminho comum onde as pessoas começam a estudar as dificuldades do Ensino Médio, do professor do Ensino Médio, eu resolvi colocar o foco em outro lugar, as dificuldades do professor universitário o que ele enfrenta, como isso afeta a própria relação que ele tem com os futuros professores, isso é uma pesquisa que ta me dando na verdade muito prazer por que é aquela pesquisa que a gente faz com verdade, com sentimento, na verdade eu fiz essa mudança, essa guinada de carreira, de uma carreira acadêmica que ia acabar lá na Química inorgânica mesmo, também uma matéria que eu gosto muito, mas eu fui ficando envolvido cada vez mais com a educação com a sala de aula e eu só tenho a agradecer a senhora mesmo a senhora, por toda essa contribuição, esse material vai me ajudar muito a entender melhor o nosso cotidiano, uma vez que agora eu também sou professor universitário. Então é isso professora, muito obrigado. Prof. Ana: Obrigada você. [Fim] 170 ANEXO 2 – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS ENTREVISTA 3 – PROFESSOR JOSÉ 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50 55 60 P: Primeiro, assim, deixar claro, uma gravação que os dados dessa entrevista, eles serão utilizados num trabalho de tese do doutorado, e que as publicações que esses dados possam produzir em todas essas publicações, em nenhum momento essa identidade vai ser revelada, né, por questões éticas, então, o senhor fica tranquilo com relação a isso. E aí, nesse primeiro momento, eu gostaria que o senhor se apresentasse expondo a sua formação acadêmica, sua graduação e tal; e suas pós-graduações; as disciplinas que o senhor leciona ou lecionou na Licenciatura em Química; as funções que desempenha ou desempenhou aqui na UFF. Prof. José: Bom, eu sou Químico pela... formado pela UFRJ em 1991... em 81, fui formado pela UFRJ em novembro de 81. P: Bacharel? Prof. José: Lá é Químico com atribuições tecnológicas. P: Ah, entendi, é como se fosse a Química Industrial. Prof. José: Exatamente, é como se fosse a Química Industrial. Até hoje não me é claro que atribuições tecnológicas são essas, né? Após isso, eu fiz o mestrado em Química de produtos naturais, pela UFRJ também, defendi a tese na área de síntese Orgânica em 1985. De imediato, já comecei doutorado, também pelo Instituto de Química da UFRJ, na área de Química Orgânica, também na área de síntese orgânica assimétrica, comprovando estereoQuímica, e defendi a tese em 1991. P: Certo. Prof. José: Incontinente, eu parti para o pós doutorado na França, aonde eu trabalhei durante um ano na École Supérieure de Physique et Chimie Industrielles de Paris, supervisão do Profº Jean D’Angelo, também na área de síntese assimétrica. Nesse interim eu já tinha vindo para UFF, comecei aqui em 1987, né? Eu estudava no processo de doutorado, comecei a trabalhar aqui, dando... ministrando aulas pra graduação, na época, aos cursos de Química, tanto Licenciatura, como bacharelado, né, Farmácia também, Veterinária, Química Industrial. E, quando voltei do pós-doutorado, nós estávamos criando cursos de pós-graduação aqui na UFF, então eu fui um dos fundadores da pós-graduação aqui, né, e na pós-graduação eu comecei a desenvolver atividades de pesquisa, na área de síntese assimétrica, hoje também trabalho ainda na área de síntese assimétricas, mas também no desenvolvimento de novas substâncias visando a determinar as atividades fisiológicas, farmacológicas, né, de uma substância, né? Tenho ministrado aulas na pós-graduação, tendo algumas disciplinas que eu ministro lá estereoQuímica, síntese orgânica e síntese assimétrica. E nesse interim também, eu venho ministrando aulas para os cursos de Química Industrial, Licenciatura em Química, Farmácia, Engenharia Química e também nutrição, né, o que eu tenho feito aqui. Em 2006, eu tive a oportunidade de ir para a Universidade de Aveiro em Portugal, onde eu fiquei seis meses como professor associado dessa universidade, em atividade intempestiva. Eu tenho várias colaborações científicas, sou pesquisador do CNPQ, de produtividade, tenho um grupo de pesquisa razoavelmente grande, produtivo né, que tem saído muitas teses de mestrado, de doutorado, tem... nós temos já um bom número de publicações em revistas, em periódicos internacionais, e algumas patentes já que nós depositamos. P: Tá certo. Perfeito. É, então, como o senhor colocou na sua formação, o senhor é Químico formado pela UFRJ, com atribuições tecnológicas, possivelmente em sua formação não teve contato com disciplinas de cunho pedagógico, né, essas são disciplinas que caracterizam a graduação em Licenciatura. E aí, eu gostaria de perguntar pro senhor, que não teve na sua formação inicial um contato com essas disciplinas, como isso afetou, e se afetou, a sua primeira atuação em sala de aula na graduação? Como o senhor avalia esse primeiro... essa primeira experiência em sala de aula? Prof. José: Certamente teria sido muito interessante ter tido uma formação em Licenciatura também. Mas a UFRJ, ela não tinha essa opção de químico com Licenciatura, então eu tive que aprender para ministrar aula, especialmente na graduação, foi no dia a dia, né? P: Entendi. Prof. José: E, claro, lendo bastante, muitos livros, muitos artigos, isso pôde ter, eu espero, parcialmente solucionado, né? Mas a formação de Licenciatura, realmente é muito importante. P: Certo. Então assim, o senhor avalia que nesse primeiro momento em sala de aula que o senhor teve, obviamente teve um comprometimento com qualidade, leitura de artigo e tudo mais, mas seria importante que de repente essa formação de Licenciatura, ou pra graduação isso não teve muito peso? Então... Prof. José: Teve algum peso, especialmente no começo, tá? Mas, quando você está preocupado não só com a qualidade, com a questão técnica, com a questão de ministrar os conceitos; quando você tá preocupado também com a questão didática, né, muita coisa você consegue passar para o aluno, acredito que passei bem as coisas, né, os conceitos, porque você se coloca na posição do aluno, você está ali sem conhecer nada do assunto, e você precisa conhecer o conceito e saber aplicar o conceito. P: E aí, se colocando no lugar do aluno, traçar as estratégias de como... Prof. José: De como ensinar aquilo, né, e como fazer o estudante, como motivar o estudante a estudar aquilo, mesmo aquele estudante que não gosta do tema, você tenta deixar o estudante bem... 171 ANEXO 2 – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS ENTREVISTA 3 – PROFESSOR JOSÉ 65 70 75 80 85 90 95 100 105 110 115 120 P: A vontade? Prof. José: A vontade não é bem o termo... motivado, para estudar aquele tema. Você fala da importância do tema, né, para a vida profissional dele, como a vida profissional de um modo geral, e começa a ministrar aquilo partindo da completa, ou quase completa, ausência de conhecimentos sobre o conteúdo. P: Tá certo. E como professor de sua disciplina lá na graduação, o senhor é professor, pelo que eu li no seu currículo, professor de Química Orgânica, e lecionou pra diversas turmas de Química, né? Quais são os conhecimentos necessários pra lecionar, por exemplo, as Químicas orgânicas? Fala um pouco sobre essa estrutura da Química Orgânica na graduação. Prof. José: Vamos ver se eu entendi a pergunta. Você quer o conteúdo... P: É. Sobre o conteúdo, quais são os conhecimentos necessários pra lecionar as disciplinas que... Prof. José: São conhecimentos meus ou do estudante? P: Não. Dos seus. Prof. José: Meus. P: Isso. Prof. José: O conhecimento que eu tive como graduação, como estudante em graduação, ele me deu uma base, claro. Mas, é muito importante o fato deu ter feito pós-graduações, né? Essas especializações todas que eu fiz, que eu falei no início, né, elas não me deram uma visão muito mais ampla da Química, inclusive, a inserção dos conceitos da Química no dia a dia. Porque é muito fácil você dizer: “Olha, o conceito de tal tema é esse”. Mas você procurar ver aquilo aonde o estudante usa no dia a dia, isso é muito importante. Não adianta ele saber o conceito, e não saber identificar esse conceito no seu dia a dia. Algum tempo atrás, eu fiz parte da banca de organização de provas no vestibular da UFF. P: Hum, hum. Prof. José: E nessa época, eu lembro de cenas no vestibular de Química Orgânica, incluíam reações de Grignard. Eu coloquei, olha, pra que um advogado vai querer saber o que é reação de Grignard? Não é muito mais interessante o advogado saber o equilíbrio ácido base, por exemplo, cloreto de sódio mais... por exemplo, ácido clorídrico mais hidróxido de sódio? Dando cloreto de sódio mais água. É muito mais interessante ele saber que quando ele vai à praia, ele não morre, porque o equilíbrio entre ácido clorídrico e hidróxido de sódio, está deslocado para um cloreto de sódio mais água, que é o que nós temos na água do mar. P: Hum, hum. Prof. José: Se o equilíbrio tivesse deslocado no sentido contrário, a pessoa estaria morta, né? Então, eu acho muito mais interessante você, para o estudante em geral, fazer com que ele compreenda o conceito, saiba usar o conceito, mas identifica esses conceitos no dia a dia. Eu tenho uma colega aqui que está fazendo um questionário muito interessante, sobre o que o estudante consegue identificar do conceito em Química orgânica no seu dia a dia. E por incrível que pareça, os estudantes, conhecem o conceito, mas não sabem identificar no dia a dia. Isso é um buraco enorme. P: Bom, professor, então trazendo... já que o senhor tocou com essa questão do questionário, trazendo um pouco mais pra realidade da Licenciatura, o senhor foi professor de Química Orgânica I, Química Orgânica II... [fomos interrompidos por um barulho ambiente] ... Repetindo, o senhor foi professor de Química Orgânica I, II, III, V, enfim, várias Químicas né? E essas orgânicas constituem o escopo de disciplinas da Licenciatura em Química. Eu queria saber se na sua opinião, qual a importância das disciplinas de Química Orgânica pra atuação do futuro professor de Química do Ensino médio? Prof. José: Realmente ele tem que conhecer esses conceitos, porque, especialmente os novos conceitos que vão aparecendo. Porque ainda por incrível que pareça, você ainda vê professor no Ensino médio, chamando a ligação de hidrogênio de ponte de hidrogênio. Existe muito professor, não só no Ensino médio, mas como também na universidade, falando em ligação covalente dativa. Isso nunca existiu. P: É verdade. Prof. José: Então, eu acho fundamental, tá, que inclusive os professores universitários se atualizem para passar aos estudantes, os novos conceitos de forma correta, né, que ele possa trabalhar com isso, melhor no Ensino médio. Por exemplo, o Ensino médio é muito comum o professor, pelo menos a mim foi ensinado assim, ensinar os orbitais s, p, d, f e faz aquela distribuição toda de elétrons, e o estudante fica perguntando, e daí? Pra que isso? No Ensino médio é muito comum isso P: Hum, hum. Prof. José: Pra que, que ensina aquilo? Eu acho que tem que mostrar a coisa de uma forma mais geral, tá, e menos específica, para o Ensino médio. P: Certo. Prof. José: Claro, que pra isso, o estudante da universidade, de Licenciatura, ao longo de sua formatura, ele tem que conhecer, saber aplicar bem esses conceitos. P: Conhecer profundamente os conceitos. 172 ANEXO 2 – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS ENTREVISTA 3 – PROFESSOR JOSÉ 125 130 135 140 145 150 155 160 165 170 175 180 Prof. José: Conhecer profundamente os conceitos. Não adianta você ter didática, se você não ter conteúdo. P: É verdade. Prof. José: Como também não é desejável ter conteúdo e não ter didática. P: É, tem que ter o equilíbrio aí, né? Prof. José: O equilíbrio. P: E o que você considera, nesse sentido, importante pra formar o bom professor de Química? Prof. José: Um bom professor de Química em nível médio, né? P: Nível médio. Prof. José: É, claro, tem... Ele tem que conhecer os conteúdos, tá, não tem duvida, tem que conhecer a parte didática. Mas eu acho que ele tem que aprender a aplicação daquilo, porque realmente só conhece um conteúdo quando você sabe aplicar. Eu tenho visto muito que as pessoas, por exemplo, sabem todas as definições de acides e basicidade, que é o tema central da Química, né? Mas ela não sabe aplicar aquilo, não sabe como aplicar os conceitos de acidez e basicidade no seu dia a dia. Então eu acho que o professor de Ensino médio, ele deve estar apto e motivado, preparado e motivado para ensinar não só os conceitos, agora os conceitos principais, há de se fazer um filtro muito grande no conteúdo do Ensino médio, e mostrar como a Química está inserida no dia a dia das pessoas. P: Hum, hum. Prof. José: Todo mundo, por exemplo, quando fala em polímero, elas pensam o quê? Em teflon, polietileno, mas ninguém fala em proteína, que é o principal polímero, é o polímero da vida. P: Essencial. Prof. José: Essencial. Então, esse tipo de coisa a gente tem que alertar no Ensino médio, porque isso vai ficar como formação cultural, uma formação geral, para estudante que queira fazer quaisquer carreira: advogado, administrador de empresa, até teatro, cinema. Esse tipo de coisa fica... P: De uma formação geral, mas contextualizada a realidade. Prof. José: Contextualizada. Não adianta ele ter um conhecimento e não saber aplicar, ele não enxergar aquele conceito no dia a dia. Não é só pra Química é pra Física também, não é verdade? P: É verdade... Então professor, indo agora mais pra uma dimensão pessoal assim, comparando a sua atuação em sala de aula com a dos professores que lecionavam pra você na sua graduação, fazendo um resgate da memória, quais são as semelhanças e diferenças que o senhor pode apontar, pro senhor proceder em sala de aula? Prof. José: Olha, a gente tem sempre uma tendência, qualquer setor de atividade, né, a se espelhar nos profissionais que mais nos chamaram atenção, né? Claro, eu me espelhei em alguns profissionais assim, ótimos profissionais, né? Professores bastante motivadores, professores que tinham essa visão de aplicação, professores que não tinham essa visão de aplicação, então você vai fazendo uma mistura deles. Evidente, tinha conhecido professores que não influenciam muito nos temas, né, e isso vem desde o meu Ensino médio, eu tive muito professor que estava caindo ali pra falar alguma coisa que ele não conhecia. Agora, o que eu acho importante nisso daí, é o professor ter feito uma pós-graduação, porque a pósgraduação, ela deixa, né, a pessoa com uma visão muito mais ampla do que um estudante que acabou a graduação. Isso é normal, né? P: Independente do nível, ou o senhor está falando só dos professores universitários? Prof. José: Independente do nível. Eu acho que o professor do Ensino médio, também deveria fazer uma pós-graduação, é fundamental, porque ele vai ver alguns conceitos mais modernos que explicam alguns passos que ele não conseguia explicar com os conceitos que ele aprendeu na graduação. Isso é muito comum, que a graduação nós não conseguimos passar todos os conceitos pro estudante, porque a primeira vez que ele tá aprendendo aquele tema ali como Química Orgânica, ele não tem maturidade pra absorver todos os conceitos, nós temos que saber trabalhar com o momento das pessoas, né? E alguns conceitos são realmente um pouco mais difíceis, né? Então, o estudante tem uma dificuldade, né? Então, se ele levar apenas essa visão para ensinar ao professor do Ensino médio, ele certamente vai deixar alguns buracos, né, algumas coisas sem explicação. P: Certo. Prof. José: Então, é importante que pro professor fazer a pós-graduação. Eu acho que quando fiz a pósgraduação misturando com os bons, os grandes professores que eu tive, certamente foi um bom número, aí nisso me moldou, moldou meu estilo de trabalho. P: De trabalho. Tá certo, professor. E assim, o senhor... gostaria que o senhor apontasse pontos positivos e pontos negativos que o senhor visualize, na formação universitária oferecida pra Licenciatura, né? Se o senhor percebe alguma deficiência. Nessa experiência que o senhor teve aqui, há mais de vinte anos de UFF lecionando pra diferentes turmas, o senhor consegue identificar pontos positivos e negativos, inclusive eu sei de sua participação também como professor no colegiado e tal, nos cursos. O que o senhor pode dizer sobre isso? 173 ANEXO 2 – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS ENTREVISTA 3 – PROFESSOR JOSÉ 185 190 195 200 205 210 215 220 225 230 235 Prof. José: Olha, eu acho que a questão assim, negativa, é que os cursos de Química, e também farmácia, ficaram muito generalistas, generalistas em excesso, né? E, com isso daí, isso claro, com orientação governamental, né, levou aos estudantes, aí não só de Licenciatura tá, até o de bacharelado, levou os estudantes a terem uma formação um pouco mais fraca, porque eles são mais generalistas e não sabem explicar pontos mais específicos, e ele precisa fazer isso para depois saber como vai proceder para ministrar a aula no segundo grau, né? Então, eu acho que o grande problema tem sido esse daí tá, algum currículo que está generalista demais, e comprometeu seriamente, na minha opinião, a qualidade e formação do estudante, tá? Isso eu tô falando da parte de Química, e a parte de Licenciatura eu não conheço. Mas, em Química eu noto muito isso, não foi só com o pessoal de Licenciatura. E na questão de Licenciatura, por exemplo, eu vou citar uma disciplina que eu não entendo até hoje porque é ministrada para Licenciatura, é aquela Química quântica. Você certamente não vai ensinar hoje, no Ensino médio tá, não vai ministrar qualquer conceito de Química quântica. Então, não concordo que essa disciplina seja obrigatória para um estudante de Licenciatura em Química. P: Certo. Prof. José: Eu acho que deveria se repensar o que você espera de um professor de Química, e não apenas do professor, mas o que você espera que o estudante do Ensino médio precise saber para o seu conhecimento geral. E com base nisso você vai formar o professor de Química, mas com conteúdo um pouco maior do que ele precisa dar. Mas, que seja o conteúdo tá, que seja temas que ele vá ministrar no segundo grau. P: Entendi. Prof. José: Do Ensino médio. Ele vai ministrar aquele tema, ele tem que saber um pouco mais aquele tema. P: É uma formação mais direcionada. Prof. José: Ele ter uma formação um pouquinho mais elevada, para poder ter até instrumentos de poder montar aulas com experimentos no segundo grau, que ensine melhor o estudante. P: Bom, já que o senhor tocou nesse assunto do Ensino médio, o professor de Química e o licenciado durante a sua formação ele tem contato com estudante de Físico-Química, de Química Geral e Inorgânica, disciplinas de Química Orgânica, que são temas que estão presentes no Ensino médio, não é? Nesse sentido, eu pergunto pro senhor com relação a essa adaptação da Química do nível superior para a Química do nível médio, essa transposição didática, o senhor acha que, quais as disciplinas poderiam trabalhar essa transposição didática? Pensando numa formação ideal, quais seriam as disciplinas que poderiam trabalhar essa transposição didática? Prof. José: É, bom, a Química geral e inorgânica e físico-Química, orgânica, seriam certamente disciplinas poderiam fazer isso, né? Agora, eu sinto um pouco da falta da inserção da BioQuímica nisso aí tudo, até pra ensinar a biologia ao estudante do Ensino médio, tá? P: Certo. Prof. José: Se o professor de Química, ele conhecer as reações da BioQuímica sob o ponto de vista da Química Orgânica, por exemplo, ele vai poder ensinar muito melhor ao aluno do Ensino médio tá, mostrando pequenas reações básicas, enxugando, você não vai chegar no Ensino médio, e mostrar todas as reações da Química Orgânica, não isso é bobagem. P: Certo. Prof. José: Você vai mostrar aquelas reações da Química Orgânica que vão ser importantes para alguma coisa, por exemplo, para os processos bioquímicos. E aí, poderia ter uma ressonância entre a biologia e a Química Orgânica no Ensino médio, faria o estudante conhecer muito mais biologia, e depois de bioQuímica, e veria que a Química orgânica está contextualizada aí. P: Então nesse sentido assim, então devemos colocar da seguinte maneira, porque no currículo da Licenciatura, há pouco tempo atrás nós vivíamos uma realidade de setorização da parte didática. Então, eu por exemplo fui formado dessa maneira, eu fiz o curso inteiro como um bacharel... depois eu fiz né, o chamado currículo três mais um. Fiz lá o complemento na área didática e ali também ocorreu a pedagogização de alguns conteúdos. Só pra retomar, professor, então, o senhor dizendo pra mim, por exemplo, que a grande transposição didática poderia ser feita em cada disciplina durante a Licenciatura, ou a transposição didática, ela vai ficar na verdade a cargo da responsabilidade das áreas pedagógicas? Prof. José: É. Olha só, tem um problema, quando você se forma em Licenciatura, né, você está apto para trabalhar não só no Ensino médio, como também numa universidade particular, ou até universidade pública. P: Sim. Prof. José: Então, você não pode deixar de ter aquele conteúdo básico que você pode querer trabalhar assim nas universidades. Então, você cortar conteúdo, você vai estar limitando a pessoa na questão de um segmento de atuação, seria dar aula em universidades, tá? Agora, para trabalhar isso visando o Ensino 174 ANEXO 2 – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS ENTREVISTA 3 – PROFESSOR JOSÉ 240 245 250 255 260 265 270 275 280 285 290 295 médio, eu acho que na faculdade de educação, poderia se pegar alguns conceitos e contextualizá-los no Ensino médio. P: Então por essas questões de demanda, as disciplinas de formação específica não teriam tempo pra pedagogizar seria mais interessante então fazer essa transposição na faculdade de educação? Prof. José: Na faculdade de educação, eu acredito. Eu sei que ali tem suas necessidades, né? Mas eu acho que esse tipo de coisa trabalhado lá, junto com os educadores, eu acho que daria mais resultado do que aqui. Nós podemos fazer isso aqui, não é o problema, a questão é o número de horas que nós temos pra administrar... pra ministrar uma carga horária muito grande, com muito conteúdo e como é que nós vamos ainda fazer isso. É muito difícil. P: Entendi. E como o senhor avalia, mesmo sendo o senhor professor das áreas de específica de Química, mas como o senhor avalia o papel da escola na formação dos professores? Prof. José: Papel da escola... P: Da escola do Ensino médio, na formação do licenciado. Ele que vai atuar nesse ambiente. Prof. José: Eu não entendi. P: Então... Prof. José: O papel da escola... P: É, o papel da escola de Ensino médio. Que assim, o licenciado em Química, ele... durante a sua formação ele tem a oportunidade de fazer o que nós chamamos de estágio supervisionado, né, que é ter o contato com escolas de Ensino médio. Eu quero saber como o senhor avalia a importância dessa escola na formação do professor do Ensino médio? Prof. José: Certamente é uma experiência, né, para o profissional muito importante. Agora, eu acho que essa experiência deveria ter uma interação muito forte com a faculdade de educação, né, pra eles trocarem experiência, né, visando justamente contextualizar o conceito que o estudante aprendeu aqui, e como ele vai passar para o Ensino médio. P: Entendi. E assim, considerando o tempo que o senhor atua nessa universidade, o senhor presenciou a última reforma que tivemos, curricular, eu naquela ocasião fazia parte do diretório acadêmico, participei também nas reuniões de colegiado. E houve um movimento de mudança de currículo, tanto pro perfil de bacharel, perfil da Licenciatura, perfil químico industrial. O senhor avalia que essas reformas realizadas na Licenciatura, melhoraram ou pioraram a formação dos futuros professores de Química? Prof. José: Olha, a reforma, ela tornou a formação mais generalista, diminuiu sem dúvida o conteúdo. E quando diminuiu o conteúdo, eu tenho detectado claramente que os estudantes, e depois claro, futuros profissionais, eles saem com problemas sérios de formação. Eu tive estudante aqui tentando recristalizar líquido, algo que... P: Complicado né? Prof. José: Eu tenho estudante aqui que tem dois experimentais para fazer uma reação, ao invés dele seguir um experimental ou outro, ele mistura os dois. Tem estudantes que não sabem recristalizar. Se você tentar hoje conversar sobre recristalização via par de solventes, nenhum estudante da Química orgânica da UFF sabe, porque isso não é mais ensinado na graduação, é uma pena. Então, a formação generalista, ela tá suprimindo alguns conceitos que são fundamentais pra Química. P: Empobrecendo também, né? Prof. José: Sem dúvida, sem dúvida. Porque essa pessoa que se forma em Licenciatura, ele pode ser formado também em bacharel, ela pode querer de hoje pra amanhã trabalhar numa indústria, porque não, né? P: Hum, hum. Prof. José: E, tendo conceitos fundamentais bem colocados, é um problema sério, né? Então, está acontecendo isso, a questão do conteúdo dos estudantes caiu demais com isso. Eu concordo que era necessário fazer uma reforma curricular para os estudantes de Química, para os estudantes de Farmácia, da Engenharia Química. Só estou citando isso isso porque são esses os que eu tenho contato, havia de se fazer. P: Era necessário. Prof. José: Só que o que te fez e não me agradou, não me agradou porque o resultado da formação do estudante mostra que a formação do estudante, a qualidade do estudante caiu demais. Aí eu estou preocupado com o futuro dele. P: Nesse movimento então de adequação ao perfil, o senhor acredita que foram retirados muitos conteúdos da formação do químico que eram essenciais então. Só pra fechar. Prof. José: Sem dúvida. Esse pra mim é o principal problema ocasionado pela reforma curricular. P: Entendi. Prof. José: Que foi uma coisa imposta pelo MEC, em última análise, né? E isso também está ocorrendo na pós-graduação. Se quer o MEC quis, né, via CAPES uma formação mais rápida do estudante de 175 ANEXO 2 – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS ENTREVISTA 3 – PROFESSOR JOSÉ 300 305 310 315 320 325 330 335 340 345 350 355 mestrado, quando eu fiz mestrado nós levávamos quatro anos no mestrado, hoje leva dois. Então, eles quiseram diminuir o curso de mestrado... P: É, mestrado é toque de caixa, né? Prof. José: Exatamente. Toque de caixa, né? Então, o que acabou acontecendo isso? O estudante sai do mestrado com deficiências sérias, vai para o doutorado, quando vai não consegue desenvolver uma boa tese de doutorado, quase muitas vezes, difícil você ver um estudante com esse novo perfil, que faça uma boa tese de doutorado, e isso leva um prejuízo muito grande. A CAPES agora já viu que a política que ela tinha colocado pra gente, ela não está dando certo, e agora ela já está pedindo que os estudantes de mestrado já tenham uma formação melhor. P: Bom, puxando agora mais no seu cotidiano, professor, quais as exigências profissionais que o professor universitário enfrenta atualmente? O senhor, pode enriquecer bastante a minha pesquisa com essa visão já que é um professor bem atuante em sala de aula também, atua numa série de outras coisas. Eu queria saber em que medida essas demandas... quais são as exigências profissionais que o professor universitário, ele enfrenta atualmente? Prof. José: Bom, o professor universitário hoje, ele tem que estar em constante atualização. E pra falar em constante atualização, só tem um jeito, ele tem que fazer pesquisa, tem que fazer pesquisa científica. Porque a pesquisa científica é que faz você ler o tempo todo, ler o artigo mais recente que saiu hoje nos periódicos; é essa pesquisa científica inclusive que te faz dar melhor a aula para os estudantes, você já suprime conceitos antigos nas aulas, e coloca as razões modernas, porque aquele fenômeno atua, e você trabalha também ensinando gente na pós-graduação. Então, a atualização do professor constante é fundamental, e pra isso ele tem que fazer pesquisa. Por isso hoje as universidades, quando vão contratar um professor, elas exigem o título de doutorado, via de regra. P: Pra contribuir na área de pesquisa. Prof. José: Pra contribuir na área de pesquisa, e gerar conhecimento. Universidade não é só transmitir conhecimento, ela tem que gerar conhecimento. E quando ela gera conhecimento, ela está também se habilitando a transmitir melhor o conhecimento. P: Além da pesquisa assim, no seu cotidiano, quais são as outras atribuições que tomam tempo do professor universitário? Prof. José: Nossa! Olha, eu não vou colocar as aulas, porque aula não encaro como somar tempo, aula é um prazer sempre, é muito gostoso ministrar aula, é uma hora que na verdade a gente, vamos dizer assim, relaxa entre aspas. Na verdade, não é relaxar, você tem responsabilidade enorme, mas eu encaro como sempre um prazer falar em Química. Então, se eu posso dar aula e falar em Química, eu acho ótimo. Eu... o que me leva um bom tempo pra fazer isso, é que eu gosto de preparar a aula, então minhas aulas são sempre preparadas, sempre atualizadas de semestre a semestre, eu não repito aula, eu gosto de fazer isso, gosto de propor novos experimentos, novos métodos. Então eu sempre estou lendo, tá, lendo livros, lendo artigos, fazendo de tudo para ministrar uma aula mais interessante. P: Fora isso, deve ter possivelmente os projetos... Prof. José: Claro, gestão de projetos de pesquisa, contratar pessoal de pós-graduação, tem cargos na universidade, tem cargos na Sociedade Brasileira de Química, nós temos muitas, mais muitas, muitas, atribuições essas sim nos tomam um tempo muito grande, eu acho que, por exemplo, um chefe de departamento não deve ficar olhando pra ver onde está o vazamento no banheiro. Vazamento no banheiro, você pode botar um administrador no instituto, isso é a função dele. Os chefes de departamento deveriam fazer o quê? Ao invés de ficar olhando vazamento em banheiro, se tem luz ou não? Pensar em políticas educacionais catalisar discussões nesse sentido, não só chefe do departamento, mas diretores do instituto, né? P: Hum, hum. Prof. José: Deveríamos pensar quem nós somos hoje, o que nós fazemos hoje, o que nós queremos fazer amanhã, quem nós queremos fazer? O que nós estamos formando? Essa pessoa tá adequada ao mercado de trabalho? Vamos pensar um pouco mais adiante. P: Entendi. Prof. José: Daqui há cinquenta anos... cinquenta não, daqui há trinta e cinco anos, a pessoa que nós formamos hoje, ela vai ter um conhecimento sólido para continuar sendo uma pessoa de qualidade? P: Entendi. Prof. José: É isso que eu esperaria. P: Entendi. E nesse sentido, de que forma essas demandas influenciam na sua atuação em sala de aula? Prof. José: Ah, de forma vital né, o tempo todo estou preocupado com a qualidade do estudante que vai sair, né, e não falei antes, ele sabe aplicar os conhecimentos, aplicar e reconhecer. Claro, eu sempre procuro mostrar a eles o mercado de trabalho, como é que está, o que ele pode fazer, falando duramente com ele, aonde ele tem que trabalhar mais para conseguir boas posições de progresso na vida profissional. 176 ANEXO 2 – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS ENTREVISTA 3 – PROFESSOR JOSÉ 360 365 370 375 380 385 390 395 400 405 410 415 P: O senhor colocou o professor universitário que tem uma série de papéis, inclusive o de gestão. Eu vou retomar a pergunta, que na verdade, eu queria saber assim, e o senhor acredita que essas diferentes funções que o professor universitário desempenha na universidade, atrapalha alguma medida a sua atuação em sala de aula. Prof. José: Enfim, sem dúvida, vão atrapalhar, porque são papéis que eu não deveria estar fazendo. É claro, se eu estou fazendo esse tipo de trabalho, eu hoje estou lendo menos. P: Pensando em algo ideal pro senhor, quais seriam então os papéis essenciais que o professor universitário deveria desempenhar? Se o senhor pudesse elencar, “olha, eu sou professor universitário, eu só quero fazer isso, isso e isso na universidade”. Prof. José: São duas coisas o que eu faria hoje, eu não falo em questão de extensão, mas o papel do professor universitário hoje, gerir conhecimento; gerar conhecimento, melhor falando, gerar conhecimento; transmitir conhecimento. Agora, é claro, a transmissão do conhecimento pressupõe que fazer a pessoa saber construir conhecimento. P: Entendi. Perfeito. Pesquisa, Ensino e extensão universitária. Como o senhor ordena essas dimensões da universidade em graus de importância? Prof. José: Todos os três são igualmente importantes, igualmente. Eu não vejo uma mais importante do que a outra. Eu gosto mais de pesquisa, mas entendo que o Ensino e a extensão também são fundamentais. A extensão que todo mundo fala menos, né, é a bela oportunidade que a universidade tem, né, de exteriorizar tudo aquilo que ela faz, né, e de mostrar as pessoas pra que nós servimos, então... P: O senhor coloca essas três dimensões no mesmo patamar. Prof. José: No mesmo patamar. P: Mas, essas três dimensões, na realidade universitária hoje, estão no mesmo patamar? Prof. José: Ah (risos), aí agora é outra pergunta. Não, claro que não. O patamar principal hoje, que as pessoas veem a universidade na qual eu não concordo, não concordo com essa posição, é pesquisa científica. Todo mundo hoje só fala em pesquisa científica, porque essa é que na verdade traz dinheiro pra universidade, tá? Então, é basicamente... P: Pesquisa é a que move... Prof. José: Pesquisa é o que move a universidade, né? Até porque o financiamento do Governo Federal dá no ato. Nisso a extensão fico como algo que tem poucas pessoas dedicadas a extensão, e o Ensino quase que como um castigo, quem não faz pesquisa que vá da aula. P: Entendi. Bom, professor, estamos já, caminhando para o final da nossa entrevista, eu vou fazer duas perguntas, né, pro senhor. A penúltima é: Pra você qual o papel do professor universitário na Licenciatura? E qual o papel do professor de Ensino médio? Prof. José: Bom, o professor universitário, ele tem que não só ministrar os conceitos, mas como estimular a pessoa, o estudante a gostar daquele tema. Ele tem que ter uma visão geral do mercado, ele tem que saber que ele não vai formar só pesquisadores, ou só profissionais para a indústria, ou só professores do Ensino médio. Então ele tem que dar uma formação ampla a essas pessoas, uma formação com conteúdo, com didática. O professor do Ensino médio, né, o que eu gostaria é que ele... que o estudante viesse pra cá, com conceitos bem sedimentados. Não precisaria ser conceitos amplos, como eu falei antes, reação de Grignard não precisa saber no Ensino médio, isso eu Ensino aqui. O que ele precisa, que eu gostaria que ele soubesse do Ensino médio quando viesse pra cá, é saber que uma concentração de solução, isso ele pode usar lá fora, ele pode usar no seu cotidiano, como preparar uma solução a 10%. Ou o conceito de ácidos e bases, mas não precisa ser o conceito de Lewis, não, conceitos de Arrhenius, Bronsted, mas isso bem sedimentado. Você pode ministrar menos quantidade no Ensino médio, menos quantidade, menos conteúdo, mas ministrados de forma bem sedimentada. Porque isso vai fazer com que o profissional que vai fazer advocacia, conheça a Química que ele precisa pro dia a dia. Ah, e o pessoal que vai fazer Química? Ah, ele vai aprender o resto aqui, P: Vai aprofundar aqui. Prof. José: Vai aprender os outros conceitos, porque vai aprender a reação de Grignard, no Ensino médio eu acho que não tem razão. Nem Físico-Química quântica. P: Pra finalizarmos então, qual o papel das universidades, pro senhor, na sociedade brasileira? Prof. José: Olha, as universidades na Europa, elas estão fortemente inseridas nas cidades. Tem cidades que basicamente vivem em função de universidades. Por exemplo: a Arihant na Espanha, em função da universidade de Arihant, a Grenoble, na França, né, vive em função da universidade também, são cidades universitárias, né? Então, quando você tem uma universidade fortemente inserida numa sociedade, e isso ela pode fazer através de projetos não só de Ensino, mas também de extensão, até a pesquisa contribui pra isso, né, você acaba tendo uma população culturalmente melhor. Então, essa população culturalmente melhor, mais preparada, ela certamente não vai tomar atitudes, né, como acho que nós vemos sendo tomadas hoje em muitos países, no Brasil por exemplo. Tanta má educação, no trânsito, tantos problemas sociais que nós temos, isso é facilmente resolvível com a educação, e isso é o papel da universidade, ela 177 ANEXO 2 – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS ENTREVISTA 3 – PROFESSOR JOSÉ 420 425 se inserir bem na comunidade, na sociedade, para que várias pessoas terem um outro tipo de padrão de comportamento, inclusive de valores; valores éticos; valores de cidadania. Isso a universidade tem que fazer, tá, na questão cidadã mesmo, na questão política, a universidade tem que se inserir bem na sociedade, mostrar a sociedade, discutir com a sociedade, todas essas questões éticas, de cidadania, política. Política ela até faz alguma coisa, mas nem sempre é bem compreendida. Mas eu acho que falta trabalhar mais nisso. P: Tá certo, professor, muito obrigado pela entrevista e pelo seu tempo, obrigado. Prof. José: Espero que tenha contribuído, que possa ter contribuído pro seu trabalho. P: Sem dúvida. Obrigado. Prof. José: Ok. Obrigado a você. [Fim] 430 178 ANEXO 2 – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS ENTREVISTA 4 – PROFESSORA LUCIA 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50 55 60 P: Bom, primeiro, gostaria de dizer que todos os dados dessa gravação serão transcritos, e o que eu vou utilizar tanto na tese quanto nas publicações futuras, essa utilização não vai revelar sua identidade, então isso é bom que fique claro, sua identidade não vai ser revelada nessa entrevista. Bom, primeiro, nesse primeiro momento, eu gostaria professora, que a senhora se apresentasse, né, colocando sua formação acadêmica, as disciplinas que leciona, ou que lecionou aqui na UFF, as funções que desempenha aqui na faculdade, ou as funções que desempenhou, enfim. Prof. Lucia: Ok. Essa informação... você quer saber a formação de professora como um todo, ou a minha formação no doutorado apenas? P: Não, sua formação como um todo assim, apresentação mesmo. Prof. Lucia: Apresentação mesmo, quem sou eu? P: Isso. Prof. Lucia: É porque eu sou professora há trinta e oito anos, então isso eu acho que já é uma coisa que conta, eu comecei muito novinha, a professora das séries iniciais, na época professora primária que a gente dizia, né? P: Hum, hum. Prof. Lucia: E, estudei Química, já trabalhando, sou licenciada, bacharel, depois eu fui estudar Pedagogia, porque pra mim a carreira no magistério tava, era... era benefício pra mim, na minha carreira no magistério. Fui professora de escola pública sempre, né, desde dessa fase, e enfim, Licenciada, Pedagoga, Bacharel em Química, eu fui fazer uma especialização em Ensino de ciências aqui da UFF, no Instituto de Química, depois fiz mestrado na área de formação de professores na UERJ, e por fim doutorado na Fundação Osvaldo Cruz, no Instituto Osvaldo Cruz, em Ensino de ciências. Então, completou um ciclo, né, de formação, acho que completou com coerência. P: E, a senhora entrou na UFF... Prof. Lucia: Ah, eu sou nova, eu me dei o direito de ser nova de novo. Eu sou aposentada, eu sou aposentada, quer dizer, nesse tempo todo professora das séries iniciais, professora do Ensino Médio na rede estadual, né, catorze anos que eu tive na rede estadual. Depois eu fiz concurso pra educação profissional, foram outros catorze anos na educação profissional, já tinha uma carga anterior, né, das séries iniciais na rede municipal do Rio, aí eu me aposentei e surgiu uma oportunidade de um novo concurso, eu fiz, só que lá longe da cidade, trabalhando com prática de Ensino, bem interessante. P: Prática de Ensino pra Licenciatura em Química... Prof. Lucia: Para Licenciatura em Química. P: Certo. É, e nesse processo seletivo que a senhora participou, descreve pra mim, quais são as etapas que ocorreram nesse processo, e na sua opinião, quais dessas etapas foi a mais relevante pra sua contratação? Prof. Lucia: Olha, é assim, hierarquizar não é simples, as etapas foram as etapas convencionais, uma análise de currículo, do Currículo Vitae; uma prova escrita, que foi uma prova bem consistente, foi muito interessante, foram... a banca era uma banca interessante, com autor de livro, com pessoas que tem um nome de bastante peso na educação em ciências de um modo em geral. E depois a prova aqui de aula, né? Eu acho, que a etapa mais, de maior consistência foi mesmo a prova escrita, acho que ali a gente tinha que se expor mais, e que a banca tinha uma atenção maior, né, sobre a qualidade do que a gente podia estar apresentando. P: Então, a senhora poderia dizer que dessas três etapas, né, análise de currículo com as publicações, tudo mais, a prova escrita e depois a prova de aula. Das três etapas a mais relevante pra contratação, Prof. Lucia: Eu acho. P: foi a prova escrita. Prof. Lucia: É, acho. Embora seja uma suposição, eu não sei quanto que o currículo pesou para a banca, isso não ficou claro pra mim, né, mas foi solicitado um currículo também bastante detalhado. P: Certo. E a senhora está atuando pra prática de Ensino na área de Química, né? Prof. Lucia: De Química. P: Então assim, a senhora falou que a senhora, nesse breve resumo do seu currículo, a senhora é formada em Licenciatura em Química, também é Pedagoga, fez mestrado na área de Ensino, doutorado na área de Ensino, duas perguntas, primeiro, a ida a Pedagogia, ela foi anterior a Licenciatura em Química, ou ela foi posterior a... Prof. Lucia: Posterior. P: E existe nessa ida, alguma busca por causa de alguma deficiência que você encontrou na Licenciatura em Química, na parte pedagógica ou não? Prof. Lucia: Não. P: Ou foi um desejo pessoal mesmo de... Prof. Lucia: Foi assim, foi... O que acontece? Como eu tenho essa carreira tão diversificada, eu na época, eu precisei trabalhar cedo. Então, eu fui professora com 18 anos, fiz a faculdade de Química 179 ANEXO 2 – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS ENTREVISTA 4 – PROFESSORA LUCIA 65 70 75 80 85 90 95 100 105 110 115 enquanto trabalhava. Quando conclui meu curso, estava procurando emprego, e demorei um pouco a conseguir um emprego como professora de Química, nesse intervalo, eu percebi que no município do Rio de Janeiro onde eu era empregada, se eu tivesse um curso de Pedagogia, eu sairia da condição de professora das séries iniciais para o cargo de nível superior. Então, isso pra mim foi vantajoso. P: Entendi. Prof. Lucia: Então eu fui procurar o curso de Pedagogia apenas por isso. P: Hum, hum. Prof. Lucia: Se você me perguntar pela qualidade da minha formação pedagógica no curso de Química, eu diria pra você que eu sinto sim, que haveria muitas deficiências, muitas defasagens. P: Essa pergunta é a próxima. Prof. Lucia: É a próxima? Já adiantei? P: Na verdade... é, eu ia perguntar exatamente isso. Já que você teve formação inicial, esse contato com as áreas, com as disciplinas pedagógicas como no seu curso de Licenciatura em Química, com que medida essas disciplinas contribuíram pra sua atuação como professora de Química no Ensino Médio? Prof. Lucia: Pouco, na verdade, pouco. Por quê? Lá na escola normal que eu tinha cursado ainda muito jovem, eu já tinha, eu já obtive uma formação pedagógica que eu considero relevante, e eu já tinha uma experiência docente. Quando fui fazer a Licenciatura, ainda era aquele tradicional modelo 3+1, que hoje em dia já caiu em desuso, felizmente né, então a gente ia pra faculdade de educação, olhar para os fundamentos da educação pra atuar como professor ou professora, assim, de uma forma muito descasada da formação de químico, a não ser a parte de prática de Ensino propriamente, mas que ainda assim era... um pouco superficial, era vamos dizer... era mais raro. Os encontros com a professora de prática eram poucos, eram no Colégio de Aplicação, o meu foi feito na UFRJ, era lá no Colégio de Aplicação, com a obrigação de dar uma aula. Então, aí que você vai pros fundamentos, Psicologia da Educação, aquela aula de Psicologia da Educação, ela não me adiantava muito porque eu já tinha feito Psicologia da Educação antes e de uma forma bem interessante. Filosofia da Educação; Fundamentos, fundamentos não, a parte de estrutura, legislação e tudo mais, então essa parte do meu curso, na formação de licenciada em Química, não foi boa não, não foi boa. E depois da Pedagogia, me ajudou muito. Quando eu fui pra Pedagogia, aí aprendi mais um monte de coisas, mas a formação para lecionar, ela era muito secundária na minha formação como um todo. P: Entendi. E assim, como professora de prática de Ensino, quais são os conhecimentos que a senhora acredita que sejam importantes pra lecionar essa disciplina? O professor de prática de Ensino. Prof. Lucia: Eu acho que o conhecimento pedagógico, de fato, é muito importante, no nosso caso de professores de Química, conhecer as especificidades do Ensino de ciências que eu avalio que hoje, quando você tem uma área específica da CAPES inclusive de formação de prof...desculpe eu me atrapalhei, você corta isso, tem um apito ai que tá me chateando, o que será isso hein? ... Mas assim, a gente hoje no Ensino de ciências, o Ensino de ciências é uma área de conhecimento específico, e é uma área de conhecimento específico, a didática das ciências por uma justa razão. Eu compreendo hoje assim, o conhecimento epistemológico é importante porque você professor, você tem que ter uma noção de como se constrói o conhecimento da ciência que você leciona, dando coerência ao seu trabalho. P: Certo. Prof. Lucia: Conhecer um pouco da história que está ali envolvida, conhecer um pouco das questões de comunicação, porque às vezes o professor, ele não... a interação... a gente... o professor é profissional que lida com a fala, com o texto escrito, não é? Se você não se comunica bem com o seu aluno, se você não vai de fato ter uma linguagem que o auxilie a construir o conhecimento, ajudá-lo a se desenvolver, não dá, você tem que ser um professor que compreenda que o estudante ele reelabora conhecimento, então esses aspectos da psicologia da aprendizagem é tão importante conhecer. Você precisa... Eu vejo assim, são, a epistemologia é fundamental, história e filosofia das ciências é fundamental, a questão do envolvimento... desse novo paradigma que a gente tá elaborando, das relações ciência sociedade. A ciência é parte da cultura, o homem constrói ciência, a ciência impacta a vida do homem, eu acho que a gente pra ser professor de Ciências, tem que estar aberto a isso, sem contar a questão da própria construção do conhecimento científico, sair do empirismo pra ir, sabe, pra estar numa experimentação de uma forma mais construtiva de fato; elaborar hipóteses; testar hipótese. Esses conhecimentos todos eu acho que tem que estar presentes na formação do professor. P: Então, nesse sentido, só complementando a pergunta, a senhora falou no que a senhora acredita... quais são os conhecimentos que a senhora considera importante pra disciplina prática de Ensino, e agora eu vou só deslocar o foco. Qual a importância da sua disciplina, na sua opinião, pra atuação do futuro professor de Química no Ensino Médio. Prof. Lucia: Ela é fundamental. P: Como é que você coloca... 180 ANEXO 2 – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS ENTREVISTA 4 – PROFESSORA LUCIA 120 125 130 135 140 145 150 155 160 165 170 175 Prof. Lucia: Fundamental. Porque, eu não havia falado antes, mas também é importante para o professor de prática de Ensino, compreender o novo paradigma, eu disse todos novos porque eu... assim, não são tão novos, né? P: Hum, hum. Prof. Lucia: Mas não estavam muito presentes nos cursos de formação. Então, quando a gente fala de professor reflexivo, professor que questiona sua própria prática, que aprende com ela, né, que reflete no sentido de se autoavaliar, de avaliar durante o seu percurso docente, frente as suas turmas, que impacto que a sua aula tem. Formar um professor que reflete sobre a sua própria prática, que constrói, elabora conhecimento da prática com isso, eu acho que é super importante. E a prática de Ensino está aí pra isso. Então, como é que eu vejo um percurso interessante na disciplina prática de Ensino? Começando por aí, fundamentar a reflexão do futuro professor. A gente trazer conhecimentos que sejam a base dessa reflexão, pra que a reflexão não seja achismo. Você reflete, mas reflete porque tem base pra avaliar sua própria atuação. Então eu acho que é isso, respondi? P: Respondeu. Assim, a senhora colocou que a sua formação na Licenciatura em Química, que essa área pedagógica ela foi secundária e tal, que inclusive foi uma experiência muito boa pra senhora ter feito a Pedagogia, porque aprendeu muito mais coisas e tal. A pergunta que eu faço é: Agora, como professora atuante de prática de Ensino, o que a senhora faz pra tentar afastar essa formação que durante um bom tempo dominou a universidade? Essa formação, digamos, fragmentada. Só um adendo, eu entrevistei alguns professores, todos eles, também como a senhora, com uma larga experiência no Ensino, né? E eles colocaram também essa deficiência da área pedagógica. Então, hoje, o que a senhora faz pra tentar ser diferente nessa formação? Prof. Lucia: Eu busco resgatar um pouco, quer dizer, recorrer aos conhecimentos que eu acredito que estejam nas outras disciplinas da base pedagógica da formação. Então justamente, a psicologia da aprendizagem, a didática, e a estrutura de Ensino, a organização de Ensino. Então, a gente vai trabalhando e recorrendo. Agora, é claro que tem um plano pra minha disciplina, né? Então nesse plano da disciplina, da forma como eu a tenho construído, e sem dúvida que eu recorro às ementas que a universidade preparou, mas não fui eu que preparei, não me afasto daquilo. Mas, claro que cada um de nós, tem uma interpretação e dá o seu toque. P: Claro, sua contribuição. Com certeza. Prof. Lucia: Então, essa organização ela é assim, meu aluno tem comigo encontros em que ele, eu trago leituras, contribuições de autores e pesquisadores a respeito da escola, eles estudam o que vem a ser a instituição escolar e como ela funciona. Eles são sempre alertados e levados a refletir pra que a gente esteja de fato formando um profissional que reflita sobre a sua prática, essa reflexão, ela é feita em conjunto, então as aulas, ao mesmo tempo que há momentos de fundamentação, como eu te disse, eles vão conhecer a instituição escolar, vão conhecer a aula, vão conhecer os recursos didáticos, as questões de inovação que a gente traz ainda aquela coisa de professor, de fato, que só transmite, porque isso tá muito na linguagem, a gente aprende muito como aluno, né, a gente se forma professor sendo aluno. Então, quando o estudante, ela fala: Ah, professora, eu preciso aprender a transmitir a matéria. A gente começa a desmistificar um pouco isso, que transmitir, você não vai transmitir não, você é um auxiliar do aluno, é ele que tá aprendendo. Então, como é que você vai ajudá-lo a aprender? O que vai fazer pra ajudar? Não é transmitir. Há um momento da transmissão, você é fonte de conhecimento, o professor é fonte de conhecimento, ele não pode sonegar isso. Mas ele não é só fonte de conhecimento, ele tem que ajudar o aluno a recorrer a outras fontes. Olha o livro didático, olha a internet, enfim, um filme... Então, o aluno é levado a ir compreendendo esse papel do professor de auxiliar na aprendizagem, mesmo que aquele que ele auxilia, em muitos momentos vai ter conhecimentos que ele tá ali apresentando, mas ele vai conhecendo e interligando... fundamentos, com a própria prática, traga a sua prática, vai pra escola a campo de estágio, vai lá. Tem um roteiro, ele tem um roteiro de observação que a escola conta, então ele vai, observa a escola, observa como a gestão da escola se dá, observa como as relações pessoais na escola acontecem, como a escola está organizada. Depois num outro momento, como é que a aula se organiza, o que está sendo planejado, qual é o currículo, quais são as estratégias, quais são as metodologias que o professor usa, que aula é essa? Vamos preparar uma aula, né, com base nessa discussão? O que você viu de errado, o que você viu de certo, como que foi bom, o que foi ruim? Vamos preparar. Depois, aula não é a única coisa que o professor faz, então vamos ver. Como se desenvolve um projeto? Como é que... Que outras estratégias você pode ter do computador para as aulas? A questão das leituras, a biblioteca, as notícias de jornal, como é que você vai aproveitar as notícias de jornal pra sua aula? Como é que você aproveita a visita ao museu, num centro de ciências, pra poder como auxiliar na sua aula? Vamos trabalhando nisso. E está sendo bem interessante agora embora seja nova nessa... P: Instituição Prof. Lucia: Nessa instituição e com essa atribuição, está sendo muito interessante porque eles tem um roteiro de observação assim, no início eles são guiados a fazer um pouquinho de pesquisa 181 ANEXO 2 – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS ENTREVISTA 4 – PROFESSORA LUCIA 180 185 190 195 200 205 210 215 220 225 230 235 etnográfica, eles são ali imersos e vão compreendendo dentro do campo de observação. Depois eles começam a elaborar, a construir, né? E agora eles estão chegando num ponto em que eles estão querendo escrever artigos. Como foi que, assim, essa estratégia, digamos inovadora, usar de uma notícia de jornal como ponto de partida ou de apoio pra uma discussão, a respeito da informação, determinar conhecimento, se interessa no currículo daquela casa. Aí, eles já vão bolar um projetinho, não é uma aula apenas, é um pequeno projeto, que vão buscar aplicar... P: E que pode render inclusive uma publicação. Prof. Lucia: Tá rendendo, eles estão entusiasmadíssimos. Tá muito interessante isso. P: É formar o professor que pesquisa sua própria prática. Prof. Lucia: Sua própria prática. Eles estão gostando muito. P: E, nesse sentido assim, como a senhora avalia a participação, as parcerias com outros professores e outras disciplinas que estão presentes na formação do... Prof. Lucia: Dentro da universidade? P: É, na Licenciatura em Química... Prof. Lucia: Infelizmente elas são pequenas. P: Parcerias. Prof. Lucia: Essa interface... a estrutura da universidade não ajuda. Nós estamos muito mais isolados no nosso próprio trabalho dentro da universidade, do que um professor de Ensino médio. O professor de Ensino médio, a escola ainda faz algum movimento, tem reunião pra discutir. A universidade deixa a gente mais, vamos dizer, livre, mas o ser livre também é ser sozinho P: É uma autonomia que não divide, que acaba não conversando, né? Prof. Lucia: Não conversa. Essa autonomia implica em isolamento, você quase não dialoga com o outro, a não ser que haja realmente uma afinidade às vezes pessoal. Então, eu já tenho pensado em recorrer a professora de Psicologia pra me ajudar com algumas coisas, pra gente ter uma interface, mas são iniciativas independentes da estrutura própria da universidade. P: E a senhora acha que isso se agrava nas disciplinas de formação específica de Química? Eu falo das físico-Químicas, das analíticas, das orgânicas. Isso se agrava? Prof. Lucia: Pelo que eu conheço, lá então é mais solto ainda, né? E assim, há muitos problemas na formação, na formação específica, na ciência que eles vão lecionar, eu vejo um distanciamento muito grande, justamente naquilo que eles vão lecionar. É uma Química muito dura, ainda muito dissociada das questões sociais que a gente gostaria de vê-los abordando no Ensino Médio, é uma questão muito difícil eles não vão ensinar aquilo que eles não aprenderam. Então, vão fazer uma físico-Química muito amparada em cálculo, e pouco vão discutir aspectos físico-químicos de situações cotidianas, não vão. Então, que horas que eles vão aprender isso? Pra prática de Ensino somente pra dar isso, é difícil, é pouco... O tempo é pouco. P: É muito sobrecarregado. Prof. Lucia: Fica. Não tem condição de fazer isso exatamente, a gente vai puxando um pouco. Os trabalhos de conclusão de curso ajudam, porque aí você começa a levantar penas aonde... P: que possam levar uma reflexão... Prof. Lucia: uma reflexão. P: Entendi. Prof. Lucia: É um grande ganho o trabalho de conclusão de curso. Mas as disciplinas em si, elas... P: Carece esse engajamento? Prof. Lucia: Carece. P: Com a área... Nesse sentido assim, a senhora acha que seria positivo ou negativo, por exemplo, na turma de Licenciatura você ter um curso de Licenciatura em Química formado só por licenciandos, ou a senhora acha positiva essas turmas mistas? Porque assim, na realidade das disciplinas específicas aqui da UFF, você encontra às vezes numa turma de físico-Química, alunos de químico-industrial, bacharel, os licenciados, os farmacêuticos, os engenheiros químicos. Nesse sentido, a senhora acha que seria positivo criar turmas formadas só por licenciandos, ou a senhora acha que não teria problema em manter essa turma mista, desde que houvesse também uma preocupação com o licenciado? Prof. Lucia: Seria ótimo se as turmas mistas, se ao tratar nas disciplinas nessas turmas mistas, eu acho que elas são mais produtivas. Imagina, um professor que tem na sua turma de físico-Química, ou de Química analítica, um estudante de Farmácia, um estudante da Química industrial, eles trazem pra sala de aula conhecimentos muito interessantes pra um professor saber, não é? P: Hum, hum. Prof. Lucia: Então, se o docente, o universitário, que tenha uma turma como essa nas suas mãos, tivesse a preocupação, o desprendimento, ou tivesse alerta para dialogar, levar mais diálogo pra sua sala de aula, pra que o estudante de Farmácia pudesse mostrar onde se aplica aquele conhecimento na farmácia, onde ele identifica, ou da Química industrial, ou da engenharia, enfim, outros né? Às vezes na geoQuímica, 182 ANEXO 2 – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS ENTREVISTA 4 – PROFESSORA LUCIA 240 245 250 255 260 265 270 275 280 285 290 295 seria tudo de bom, porque aí se formaria um leque amplo de conhecimento aplicado, de já ter ouvido falar: Poxa, eu tô vendo essa físico-Química, ela se aplica aquele conhecimento geo-químico, aquele conhecimento ambiental, aquele conhecimento industrial, o farmacêutico. P: Então, só pra fechar essa parte da entrevista, professora, o que você considera importante então pra formar um bom professor de Química? Pra fazer um arremate disso tudo que conversamos. Prof. Lucia: Bom, vou tentar sintetizar, né? Primeiro, ele tem que saber que ele é um profissional que lida com seres humanos. Então, se você lida com seres humanos, você tem que estar aberto pra diversidade, você tem que ter muita tranqüilidade em lidar com os diferentes, porque somos todos diferentes, né? Nessa abertura pra lidar com as pessoas e com as suas diferenças individuais, estar pronto a ser talvez mais... em muitos momentos ouvir e não só falar. Então, o professor tem que dar espaço pro estudante se colocar, perguntar, se expor, e ter um pouco de controle, de manejo desse grupo de jovens que ele tem em mãos, pra que alguns problemas típicos da adolescência não surjam, ou não cresçam; um não pode debochar do outro, tem que ter esse domínio da turma, porque o jovem que está ali pra ser ouvido, ele vai se expor, então a gente tem que saber dominar isso. Eu acho que isso é super importante, tem que ser um professor que saiba lhe dar com a diferença, que saiba ouvir, que saiba contornar essa dificuldade desses diálogos existentes na turma, que saiba refletir sobre sua prática, o que é que ele está fazendo, se tá tendo impacto positivo sobre suas turmas, ou que não está tendo impacto positivo pra ele poder se rever enquanto profissional, e melhorar a situação, né? E saber compreender os processos científicos da sua ciência base, porque eles se refletem na aprendizagem dessa ciência. Existe um paralelo, a gente... Às vezes a gente diz assim: Ah, a ciência dos cientistas não é a ciência escolar. Mas a epistemologia da ciência escolar, ela esta intimamente relacionada à ciência dos cientistas. Então, a gente tem que ter coerência entre uma coisa e outra, não é fazer diferente, esse conhecimento é importante. E sempre lhe dar com as questões pessoais, sociais ou individuais, porque isso vai dar sentido a aprendizagem, aquilo que a gente fala, aprendizagem significativa, aprendizagem com sentido, né? P: Hum, hum. Prof. Lucia: Você tem que buscar dar sentido ao que você está ensinando. Tirar da abstração. Eu acho que, talvez, pra Química fosse mais relevante. P: Certo. E, voltando à questão da formação docente oferecida na Licenciatura, só resgatando, a senhora destacou algumas coisas que faz na prática de Ensino e também falou de algumas coisas que acontecem na universidade. Assim, quais são os pontos positivos e negativos dessa formação oferecida na UFF? Eu sei que a senhora tá aqui ainda há pouco tempo, mas quais são as impressões que a senhora já tem? Quais são as dificuldades e quais são os aspectos que a senhora acha interessante, os pontos positivos e negativos dessa formação? Prof. Lucia: Eu acho que o conhecimento duro do nosso aluno na Licenciatura em Química da UFF, é um conhecimento profundo, eles sabem Química. São profissionais, nesse ponto de vista, muito bem informados. Falta justamente é dar sentido a essa formação na própria graduação, porque acaba que eles às vezes revelam coisas do tipo assim: Professora, alguns professores nossos dizem que a gente não sabe Química. Nós vamos nos formar sem saber Química, porque nós não sabemos aplicar isso, nós estamos aprendendo nós não sabemos aonde isso está. Como se aplica? No meu cotidiano, onde é que isso está? Bom, isso é uma deficiência da formação, né? P: Hum, hum. Prof. Lucia: Eu não sei que soluções haveria, talvez fosse preciso levar mais é, conscientizar mais os professores universitários de que eles também são professores, né? P: Hum, hum. Prof. Lucia: Então esses cursos de boa formação de um docente que a gente tem na Licenciatura, tinha que fazer parte das reflexões, das discussões, dos professores que atuam na Licenciatura. Pra que houvesse um fluxo interessante, né, e pra que eles buscassem nas suas aulas, fazer aquilo que a gente ensina os meninos a fazerem, né? Mas são profissionais que não foram... não tiveram essa oportunidade na sua formação, né? Então, talvez fosse bom que houvesse essa oportunidade, né, enquanto formação continuada na universidade. P: Entendi. Prof. Lucia: Que dessem a chance de passar por um curso, ouvir uma palestra, serem chamados pra debater questões da prática docente já que estão aqui como docentes. Então, assim, o curso da UFF tem uma Química relevante, mas que acaba não fazendo pesquisa, aquele sentido que a gente quer buscar, não tem uma formação. Tem eventualmente, é raro, não é comum. P: Entendi. E nesse sentido, como a senhora coloca o papel da escola na formação dos professores? Prof. Lucia: Da escola onde eles estagiam? Na prática de Ensino? P: Isso, isso. 183 ANEXO 2 – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS ENTREVISTA 4 – PROFESSORA LUCIA 300 305 310 315 320 325 330 335 340 345 350 355 Prof. Lucia: Ah, é fundamental. Pro bem, pro mal, tem aluno que vem pra escola, que recebem bem, que o professor é um bom exemplo, onde eles aprendem nessa observação, muitos truques do cotidiano docente e serão muito bem vindos. Outros não, outros vão pra escola, mas eles observam um monte de problemas. Mas até isso também faz parte da formação, desde que a gente na prática de Ensino, dialogue, leve os meninos a dialogarem, com todo respeito à ética, é claro. Mesmo que a gente às vezes critica algum ocorrido, eles precisam ser orientados de que essa observação crítica se existe, ela vai ficar fechada em quatro paredes, porque a escola nos recebe bem, nos acolhe, e contribui pra formação deles mostrando qualidade e defeitos, mostrando onde acerta e mostrando onde erra. Então, temos que respeitar isso todo tempo. Agora, se eles não estiverem na escola, como é que eles vão aprender isso? Então, essa parceria com a escola é fundamental, fundamental. P: E como a senhora localiza a contribuição do PIBID? Existem alunos na Licenciatura em Química envolvidos com o PIBID? Prof. Lucia: Vinte. P: Vinte alunos. E como a senhora localiza essa contribuição? Eu gostaria que a senhora desse uma visão sobre essa contribuição, esse investimento que o governo fez, né, sobre os reflexos que o PIBID pode trazer. Enfim, como a senhora localiza a importância do PIBID? Prof. Lucia: O PIBID, ele tem algumas características muito interessantes: primeiro, ele traz... ele leva o aluno obrigatoriamente para... Assim, na verdade, o PIBID garante que a prática de Ensino seja efetiva e eficiente. Ele vai ter um orientador para essa atuação de iniciação a docência lá na escola de verdade, porque nem sempre as práticas de Ensino ocorrem assim, e o PIBID garante que seja assim. Então, ele tem um professor da universidade que orienta a sua presença, como vai se dar essa sua presença, essa sua parceria, a maneira como ele ajuda o professor, a maneira como ele observa o professor. Se orienta a elaboração de materiais didáticos, né? Que busca acompanhar resultados da sua ação. Então, é muito... A orientação é muito efetiva, é muito próxima, é muito junto ali. Fora isso, tem um professor da escola que supervisiona e acompanha, um professor cuja atribuição é apresentar ao aluno informação, o estudante, o formando, o graduando, apresentar a realidade dessa prática, porque a gente não pode tá formando... A gente precisa muito de professor pra escola pública. Então, você não pode formar pra uma escola ideal, tem que formar pra escola real. E quando o aluno entra na escola pública, acompanhado por um professor da escola pública, supervisionado por ele, que vai ajudá-lo a compreender melhor as dinâmicas desse cotidiano da escola, e ao mesmo tempo ele tem uma orientação acadêmica, mostrando o que há de ideal, então ele tá diante desses dois... dessas duas visões, o real e o ideal, e que todo mundo aprende com isso. O graduando aprende, o supervisor aprende, o coordenador aprende, todo mundo aprende. P: E, o PIBID, ele tem alcançado alguns professores da graduação, na sua opinião, que antes não estavam de repente envolvidos, engajados nesse projeto pedagógico, ou os professores que participam aqui na Universidade Federal Fluminense, já são professores que antes tinham algum histórico de envolvimento? Prof. Lucia: É claro que as pessoas estão admitidas para o PIBID, eles tem interesse pela formação de docentes, e que tem alguma história, enfim, que tem sido escolhidos com pessoas adequadas pra fazer isso. P: Hum, hum. Prof. Lucia: É, eu acho que o grupo que hoje está com o PIBID, aqui na UFF, tanto na Química quanto em outras disciplinas, é um grupo bem interessante porque justamente não é um grupo de professores da prática de Ensino. Eu coordeno o PIBID, faço a coordenação institucional, mas eu sou a pessoa que não vai pra escola. Eu sou da prática de Ensino, mas eu não vou pra escola, né, eles é que vão. Claro que eu digo que eu não vou pra escola que não sou eu que coordeno... eu não tenho bolsistas comigo, não tenho a minha interferência lá. Esses professores que estão coordenando o grupo no PIBID na Química inclusive, não com professores com histórico na educação, a não ser a professora da Biologia, que ela já tem uma história longa na educação. Os outros estão interessados nas recentes, pessoas que valorizam a educação, que querem contribuir, eu acho isso perfeito. Por quê? O envolvimento com o projeto é benéfico pra todo mundo, esses professores que não tinham um contato de educação, que não tinham preocupação com materiais didáticos, ou pelo menos não tinham uma prática relevante a isso, eles agora estão pensando sobre isso. Então, é perfeito, não tinha que ser professor da prática de Ensino pra ser coordenador do PIBID, tá entendendo? P: Hum, hum. Prof. Lucia: Tem que ser professor que acha que educar é importante, porque eles dentro do próprio projeto eles vão aprender também. Vão ler mais, vão estudar juntos, vão se preocupar em pesquisar pra ajudar o aluno, pra encontrar soluções pra prática que eles estão encontrando. Acho que isso é muito bom. P: Entendi. Trazendo um pouco mais a pergunta pro seu cotidiano, professora, quais são as exigências profissionais que o professor universitário enfrenta atualmente? Assim, eu quero que a senhora fale um pouco mais do cotidiano do professor da Universidade Federal Fluminense. 184 ANEXO 2 – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS ENTREVISTA 4 – PROFESSORA LUCIA 360 365 370 375 380 385 390 395 400 405 410 415 Prof. Lucia: Arranca o couro... Olha, é uma loucura porque... Num outro dia disse um colega aqui, na faculdade de educação, a gente tem um quadripé... Não é um tripé, não, é um quadripé. Você é um professor universitário, você tem que ter propostas para o Ensino, pra pesquisa, pra extensão, e para a gestão. Porque a estrutura da universidade pública no Brasil, é de gestão democrática, então você tem que tratar de organismos colegiados e tudo mais. Onde você vai ter um monte de orient... você vai ter as suas aulas, vai preparar, ter material, leitura, enfim, e metodologias e tudo mais. Você tem que pesquisar, você tem que publicar, você tem que levar o produto do seu trabalho pra sociedade, você tem uma dívida social que você tem que retribuir, então você tem que ter proposta de extensão. Vou falar publicar de novo, porque publicar é obrigação que mais a gente vê enquanto instituição acadêmica, né? Enfim, talvez a extensão faça um papel tão relevante ou mais que a publicação em termos de abrilhantar resultados do trabalho da universidade, da sociedade. Mas a publicação é aquela obrigação que somos cobrados. Então você tem muito trabalho, muito trabalho. P: E de que forma essas demandas influenciam na sua opinião a sua atuação em sala de aula? Prof. Lucia: Olha, elas contribuem, elas vão contribuir, mas tem horas que a gente se sente muito sobrecarregado, e que percebe que os prazos dão trabalho. o que eu acho é que o prazo é trabalho. Você poderia estar fazendo as mesmas coisas, mas com obrigação de apresentar resultados num tempo mais largo, porque quando você tem a obrigação de apresentar resultado num tempo curto, às vezes acontece de os dados não amadureceram. Então, eu não sei, acho que esse é um modo muito cruel de buscar qualidade para universidade, porque nem sempre resulta em qualidade; resulta sobrecarga, aligeiramento. É preciso ter muito cuidado, sabe? E a gente tem que ter muito jogo de cintura pra de fato fazer com que uma determinada atividade que você realize, seja contributiva pra outra, porque se você for se desdobrar, aí fica tudo mal feito e as coisas mal feitas não servem né? P: Entendi. Nesse sentido, como a senhora ordena essas dimensões: Pesquisa, Ensino e extensão, em grau de importância na universidade? Prof. Lucia: Pegou pesado. Meu cargo é de docente, né? P: É. Prof. Lucia: Enfim, eu acho que a dimensão de maior importância deveria ser o Ensino, não é. P: Não é. Prof. Lucia: Não é. Mas eu acho que deveria ser o Ensino. Acho que o Ensino deveria ser a base pra sua pesquisa, acho que a sua pesquisa pode contribuir para o seu Ensino, desde que você não faça do seu Ensino, reprodução de suas pesquisas, não é? Porque também você não pode levar pra sua sala de aula, aquilo que você pesquisar senão você limita muito. Mas, eu acho que tudo o que a gente produz precisa reverter para o Ensino. Acho que, quando a gente propõe uma atividade de extensão, ela tem que ser uma atividade que ensine. Porque é pouco eu ser, ou o professor ser doutor, pesquisador, pra um projeto de extensão. Eu quero formar um monte de pessoas que saibam realizar bem as duas tarefas, e que as multipliquem em coisas boas. Então, eu acho que o Ensino deveria ser o alvo principal. Você pesquisa, pra você formar conhecimento, você orienta pesquisa pra que outras pessoas formem conhecimento, isso é super relevante, e não só na pós-graduação. Se você tem a pesquisa como um princípio educativo, o seu aluno é levado a pesquisar, né, a ter conclusões sobre o que ele foi buscar. Isso é formador. Então, eu acho que a dimensão de maior importância é o Ensino. P: Tá. Deveria, coloca uma dimensão de ideal, né? Como a senhora colocou, deveria ser Ensino, não é. Na situação real, como a senhora a ordena? Prof. Lucia: Pesquisa. P: Já sabemos que não... Prof. Lucia: O Ensino é o último. P: Pesquisa então é o que? Prof. Lucia: Não, o Ensino não é a última não, tô sendo cruel. Eu acho que em termos de importância, na cultura acadêmica. P: atual. Prof. Lucia: Na cultura acadêmica atual, a pesquisa é a mais importante. E ainda vê... acho que o Ensino está no meio, porque nós somos docentes, temos responsabilidades com os nossos alunos, e a extensão ainda não é... a extensão ainda não é vista como algo muito... P: Importante. Prof. Lucia: Relevante. P: Entendi. Prof. Lucia: É claro que isso é uma avaliação minha, né? P: Claro, claro, claro. Prof. Lucia: Objetiva a beça, né? 185 ANEXO 2 – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS ENTREVISTA 4 – PROFESSORA LUCIA 420 425 430 435 440 445 450 455 460 465 470 475 P: E pra senhora, qual o papel do professor universitário da Licenciatura, e do professor de Ensino médio como professores que atuam em ambientes distintos? Então qual seria o papel do professor universitário, o que forma, e o professor do Ensino médio? Prof. Lucia: O professor universitário, ele forma o profissional, o curso universitário é um curso profissional, né? Então, isso já traz uma especificidade pra essa formação, ele tá... o professor da universidade prepara alguém capaz de executar com qualidade, com competência, suas atividades profissionais. O professor do Ensino médio, vai formar gente... a palavra cidadão, ficou banalizada, né? Mas é muito isso, você vai formar as pessoas para a sua vida cotidiana, entre muitos conhecimentos que a gente precisa saber, né, a gente... Deixa eu melhorar o que eu estou dizendo. Assim, o professor do Ensino médio forma as pessoas para as múltiplas facetas da sua vida, enquanto ser social. Então ele precisa ter conhecimentos para o cotidiano, no caso da Química, existe muita coisa no cotidiano que ele poderia tá conhecendo melhor, né, a gente lida com produtos químicos o tempo todo, parar com essa bobagem de dizer: “Ah, essa aqui não tem Química, por isso que é boa”. Isso é natural, é natural, é ótimo, né? “Ah, essa água nem tem cloro, ela é pura”. E eu como Química tenho vontade de dizer assim: “Ai meu Deus! Tinha que ter”. Então, eu acho que formar as pessoas para viverem melhor em aspectos corriqueiros, cotidianos, né, nas suas vidas, para saberem lidar melhor uns com os outros... Como é que eu vou dizer? Isso é contribuírem para sua comunidade, pra fazer parte de um grupo, e até pra se preparar com o trabalho, mas preparar para um trabalho é algo mais genérico do que formar um profissional. Preparar para o trabalho, é você ter um monte de aptidões, de conhecimentos, né, mais gerais, é saber usar um computador, é saber trabalhar em equipe, é saber aproveitar bem de uma leitura, expressar bem por escrito. Enfim, preparar essa pessoa, a pessoa estará apta para exercer atividades profissionais, e que não significa ter conhecimento profissional. Então, essa formação mais ampla do Ensino médio, eu acho muito importante pra formar as pessoas, e pra conhecerem as profissões. P: E é o que diferencia da formação universitária. Prof. Lucia: a formação universitária é a formação de um profissional qualificado, né? Então... P: Bom, estamos caminhando já pro final da nossa entrevista, eu queria que a senhora falasse qual o papel das universidades na sociedade brasileira então, de maneira geral, o que a senhora acha. Prof. Lucia: Importantíssimo. Cada nível de Ensino que a gente vai vivenciando, traz pra nós suas contribuições. P: Hum, hum. Prof. Lucia: Então, eu tenho plena certeza até de que um jovem de que não passa pela universidade, ele sabe menos da vida, de tudo, não só da profissão não, porque tem todo também um modo de vivência, a própria cultura, a maneira de ser e de estar na universidade, também ensina. Então, a universidade é muito importante, importante pra formação de profissionais, importante pela constituição de conhecimentos, pela parte da pesquisa, importante pelo retorno que dá a sociedade, tanto na divulgação, temos acesso a produção acadêmica, quanto nos projetos de extensão. A universidade é fundamental pra constituição de uma sociedade mais equilibrada, enfim, ela tem muito a oferecer, a universidade tem muito a oferecer. P: Bom, professora, eu vou, vou fazer um resgate de uma questão que eu não abordei a princípio, mas eu já entrevistei alguns professores, como eu falei pra senhora, alguns professores da área de formação específica. E eu perguntei pra esses professores, né, pra ser mais preciso eu entrevistei uma professora da área de físico-Química e uma professora da área de Química geral e inorgânica. É, vou entrevistar também ainda professores na área de orgânica e na área de analítica. E eu perguntei pra essas professoras, sobre a questão da transposição didática, né? Porque o professor de Química, ele passa durante a sua formação, por uma série de disciplinas que encontram eco lá no Ensino médio, né, vários conhecimentos que são passados pra esse formando, como a físico-Química, como a Química geral, a Química inorgânica, a Química orgânica, que ele vai lecionar. E eu perguntei sobre a responsabilidade da transposição didática. Qual é da disciplina, ou como elas consideravam essa questão? Onde se faz a transposição didática? Eu gostaria de saber qual é a sua opinião a respeito disso, onde se deve trabalhar a transposição didática? Prof. Lucia: Eu acho que eu devia ser compartilhado. Por quê? Se deixar por conta da didática, a didática vai... A didática vai auxiliar, vai pontuar alguns aspectos importantes pra que o centro de referência faça sentido com a ciência escolar. P: Hum, hum. Prof. Lucia: Mas ela não pode tá sozinha, é aquilo que eu falei a você, os professores das disciplinas que compõe a ciência de referência, aquela parte específica, eles já podiam estar... P: Trabalhando, essa questão... Prof. Lucia: Trabalhando essa questão do sentido que eu acho que falta muitas vezes, né? Como um professor tá trabalhando, propriedades coligativas ou questões da termodinâmica. Ele já não pode dentro da estrutura daquilo que ele... dentro da sua ciência específica, já não pode estar buscando trazer o sentido? Eu acho que ele pode estar trazendo o sentido, porque senão depois fica descolado. Que 186 ANEXO 2 – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS ENTREVISTA 4 – PROFESSORA LUCIA 480 485 490 495 500 505 510 515 520 525 horas que a didática vai fazer, a que horas, quando, que a didática vai fazer isso, né? Que horas que a prática de Ensino vai fazer isso? Seria preciso buscar oportunidades, seria preciso que a prática de Ensino e a didática, buscasse oportunidade, quando lá na ciência de referência, a oportunidade vai aparecendo, porque já está estudando aspectos químicos. Por que não trabalhar de alguma forma a reflexão, o conhecimento, de que sentido aquilo faz... para as pessoas em geral? Porque Ensino médio é isso, educação básica, se é básica é pra todo mundo. Se é pra todo mundo, tem que ser algo muito geral, né? Então, a medida que você vai aprendendo, na especificidade que interessa pra sua formação, especificidade, profundidade, que interessa pra sua formação profissional de professor, ou de bacharel, ou de o que for, de professor no caso, também você já pode ver em que sentido aquilo pode fazer para todas as pessoas, né? Uma vez uma aluna minha queria muito fazer um trabalho de conclusão de curso sobre biorgânica, mas ela se recusava a levar essa discussão pra questão do Ensino. E aí eu perguntei a ela: “Vem cá, bioorgânica é importante? É. Pra quem? Ué, pra todo mundo. Pra todo mundo justifica isso no Ensino médio”. Então, você tem que discutir esse conhecimento que é produzido, abordado com a profundidade na universidade, ele tem que ser útil pra alguém, então justifique, não só pra você ou vale a pena conhecer aspectos da bioinorgânica, qualquer pessoa conhecer. Então, é isso que precisa. Tá estudando? Parece que... Que é muito pura, é uma ciência muito pura, mas ela não é tão pura assim, visto que ela pode ser importante pra todas as pessoas. Naquela hora ali que tem que procurar e ir trabalhando, fala rapidinho, mas fala. P: A senhora foi formada por um currículo que era apelidado, que foi apelidado como currículo 3+1. Eu também fui formado nesse currículo. Hoje, a Universidade Federal Fluminense, a gente tem um fluxograma que estruturalmente quebra essa setorização de formação didática do currículo três mais um, né? A pergunta que eu faço pra senhora é essa: O currículo, ele estruturalmente ele não é mais 3+1, mas a senhora acha que essa lógica ainda tá presente na universidade? Prof. Lucia: Tá. Tá. Porque... talvez menos, mas ainda muito, porque assim, você aprende estrutura da organização da educação no Brasil, uma disciplina na universidade, se eu não me engano está no primeiro período. Isso ajuda pra conscientizar o estudante de que ele está desde sempre, num curso que forma professores, isso ajuda... Não é irrelevante não, é relevante. P: Hum, hum. Prof. Lucia: Então, depois ele vai aprender psicologia da aprendizagem, didática também, nos primeiros períodos. Integrado com as disciplinas da ciência de referência, tá muito pouco, muito pouco relacionado. Mas, com fundamentos que possibilitam ao estudante fazer conexões por ele mesmo. Mesmo que as disciplinas não estejam realizando bem essa conexão, né, o estudante tá recebendo o instrumental pra fazer, pra elaborar por si mesmo. Então, não é irrelevante você ter uma matriz curricular onde a formação docente percorre o curso, por que o instrumental pra que o estudante elabore em si, na sua prática, relações entre a ciência que ele aprende, a ciência de referência, e a ciência pedagógica, e até pra prática profissional também quando ele vai pro estágio, aquilo está disponível, está colocado pra ele. É muito diferente do três mais um. P: É. Prof. Lucia: Agora, é uma pena que a gente não consiga ajudar um pouco. P: Que ele consiga rasgar esses envelopes, né, digamos assim. Prof. Lucia: Isso, exatamente. A gente ainda não tá fazendo isso, a gente ainda não sabe fazer. Mas eu acho que tudo isso também é evolução... P: É, faz parte. Prof. Lucia: Faz parte, a gente qualquer dia vai conseguir fazer isso com mais facilidade, com certeza. P: Bom, professora, eu agradeço a sua contribuição. Prof. Lucia: Eu agradeço a oportunidade. P: Eu acho que foi muito boa a nossa entrevista, e obrigado. Prof. Lucia: Tá bom. Sucesso,.. Depois você me mostra essa tese aí... [Fim] 187