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Março de 2016 – Nº 54
ALB
ISSN 1518-1766
REVISTA DA ACADEMIA
DE LETRAS DA BAHIA
REVISTA DA ACADEMIA
DE LETRAS DA BAHIA
Março de 2016 — Número 54
ISSN 1518-1766
Copyright © by Academia de Letras da Bahia, 2016
ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA
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40050-000 – Salvador, Bahia, Brasil
Telefax (71) 3321-4308
www.academiadeletrasdabahia.org.br
[email protected]
Revista Anual de Literatura, Artes e Ideias
A redação, a revisão e o não cumprimento das normas de publicação
dos textos contidos no nº 54 desta Revista da ALB
são da responsabilidade de cada autor.
(A Direção, 30.01.2016)
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP).
Revista da Academia de Letras da Bahia / Academia de Letras da Bahia.
– Ano 1, vol. 1, n. 1 (Ago. 1930). – Salvador: Academia de Letras da Bahia, 1930 –
A partir do número 25 foi retirado ano e volume.
O ISSN começou no número 44.
Anual
ISSN 1518-1766
1. Literatura brasileira – Periódicos . I. Academia de Letras da Bahia.
II. Título.
CDU 869
Ficha Catalográfica elaborada por Gislene Soares Guerra CRB-5/1382
IMPRESSO NO BRASIL
SUMÁRIO
ARTIGOS E ENSAIOS
13
PATRONOS DA ACADEMIA DE LETRAS
DA BAHIA
EDIVALDO M. BOAVENTURA
23
ANO DE ERUPÇÃO DA ARTE MODERNA,
1905 NÃO ACABOU
FLORISVALDO MATTOS
39
A INTENÇÃO INDEFINIDA –
BREVES PALAVRAS SOBRE MIRÓ
GLAUCIA LEMOS
43
30 ANOS DE ACADEMIA – DEPOIMENTO
MYRIAM FRAGA
57
A DECISIVA INFLUÊNCIA DO CONSELHEIRO
NEWTON SUCUPIRA NA EVOLUÇÃO
DO ENSINO SUPERIOR BRASILEIRO
ROBERTO FIGUEIRA SANTOS
65
O ARTISTA E O PSICANALISTA:
UM ENCONTRO POSSÍVEL
URANIA TOURINHO PERES
83
IRLANDESES NO AMAZONAS
NO SÉCULO XVII
WALDIR FREITAS OLIVEIRA
99
A MAIS CORAJOSA VOZ POÉTICA FEMININA:
A POETA BAIANA JACINTA PASSOS
ANTONELLA RITA ROSCILLI
105
OS MARES PROFUNDOS DE HÉLIO PÓLVORA
CYRO DE MATTOS
113
POESIA & ORTOGRAFIA
CARLOS FELIPE MOISÉS
137
JULES LAFORGUE E O SIMBOLISMO FRANCÊS
CELINA SCHEINOWITZ
151
BARROCO NA BAHIA: MANUEL BOTELHO
DE OLIVEIRA
PAULO ROBEIRO PEREIRA
POESIA
165
CINCO POEMAS
ANTONIO BRASILEIRO
171
DOIS POEMAS
CLEISE MENDES
177
CINCO POEMAS
FLORISVALDO MATTOS
183
CINCO POEMAS
GLAUCIA LEMOS
189
DOIS POEMAS
MYRIAM FRAGA
193
QUATRO POEMAS
RUY ESPINHEIRA FILHO
197
HINO HOMÉRICO A APOLO DÉLIO
E NOTA BREVE AO HINO HOMÉRICO
ORDEP SERRA
FICÇÃO
209
ENCONTRO NA BIBLIOTECA
ORDEP SERRA
215
MUDOS MUGIDOS
CYRO DE MATTOS
DISCURSOS
225
A ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA
DE 2013 A 2015
ARAMIS RIBEIRO COSTA
237
DISCURSO DE POSSE NA PRESIDÊNCIA
DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA
EVELINA HOISEL
247
DISCURSO DO MAR DE AZOV
Homenagem a Hélio Pólvora
ARAMIS RIBEIRO COSTA
261
À MEMÓRIA DA ACADÊMICA
CONSUELO PONDÉ DE SENA
Sessão de saudade
EDIVALDO M. BOAVENTURA
269
CENTENÁRIO DO NASCIMENTO
DE OLDEGAR FRANCO VIEIRA (1915-2015)
YEDA PESSOA DE CASTRO
277
CENTENÁRIO DO NASCIMENTO
DE JORGE CALMON (1915-2015)
SAMUEL CELESTINO
285
CENTENÁRIO DO NASCIMENTO
DE JOSÉ CALASANS (1915-2015)
EDIVALDO M. BOAVENTURA
295
JOSÉ CALASANS – IN MEMORIAM
ROBERTO SANTOS
311
CENTENÁRIO DO NASCIMENTO
DE WALTER DA SILVEIRA (1915-2015)
O templo sagrado de Walter Silveira
CARLOS RIBEIRO
325
CENTENÁRIO DO NASCIMENTO
DE JOSAPHAT MARINHO (1915-2015)
PAULO FURTADO
335
DISCURSO DE POSSE
ANTÔNIO TORRES
347
DISCURSO DE RECEPÇÃO
A ANTÔNIO TORRES
D’Essa terra para outras terras
ALEILTON FONSECA
359
DISCURSO DE POSSE
A leitura como forma de felicidade
GERANA DAMULAKIS
377
DISCURSO DE RECEPÇÃO
A GERANA DAMULAKIS
Canto dos encantos
ALEILTON FONSECA
397
DISCURSO DE POSSE
YEDA PESSOA DE CASTRO
DIVERSOS
413
427
443
Efemérides 2015
Quadro social da ALB
Endereços dos acadêmicos
ARTIGOS
E ENSAIOS
PATRONOS DA ACADEMIA DE LETRAS
DA BAHIA
EDIVALDO M. BOAVENTURA
N
ão faz muito tempo, o presidente Aramis Ribeiro Costa
instalou a placa dos fundadores da nossa Academia. Sentimos, então, que precisávamos complementar com a dos patronos. Em 18 de setembro de 2014, lembrando a promulgação da
liberal Constituição Federal de 1946, inauguramos a emblemática relação dos patronos ao lado dos fundadores. A Academia
assinala mais um serviço do presidente Aramis Ribeiro Costa.
Em primeiro lugar, patronos e fundadores formam uma
relação. Surgiram juntos na criação do nosso sodalício. Complementam-se, formando uma paridade desde o nascedouro.
Os dois conjuntos de nomes emparelhados se integram: o
primeiro, o grupo dos patronos, e o segundo, o grupo dos
fundadores. Constituem um par de relação. Na lógica de Fred
N. Kerlinger (1980, p.26): “Relação é um ´ir juntos´ de duas
variáveis: é o que as duas variáveis têm em comum.” As personalidades são variáveis, portanto, possuem em comum o
lugar de nascimento, formação, parentesco, profissão e história de vida, Prossigamos com a concepção de relação: “A
ideia é comparativa: uma relação é um elo, uma ligação entre
dois fenômenos, duas variáveis”.
Diremos, ainda, com Kerlinger que há uma relação positiva entre, por exemplo, inteligência e realização escolar. Do mesmo modo, há uma relação positiva entre o patrono da cadeira
de número 6, o grande viajante naturalista, Alexandre Rodrigues
Ferreira, e o fundador, o cientista Manuel Augusto Pirajá da Silva.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Desse relacionamento positivo, de patrono e fundador, decorre
a cadeia sucessória. Continuando com a cadeira de número 6,
Thales de Azevedo recolheu a sucessão de Pirajá da Silva, por
sua vez, o cardeal D. Lucas Moreira Neves ocupou a cadeira do
naturalista, que foi transmitida ao drama a Cleise Mendes.
No conjunto dos patronos, se encontra boa parte da Bahia
intelectual. Do barroco colonial, passando pelo romantismo do
Império, ao positivismo republicano, percebe-se a multidisciplinaridade e a interdisciplinaridade do saber, recepcionado e recriado nesta agremiação. Além da relação entre patronos e fundadores, há que se indagar o mistério do número quarenta.
Por que o numero quarenta
Desde que entramos na Companhia, procuramos saber
o por que do número das quarenta cadeiras. É uma instigante
indagação. Nessa progressão histórica de quatro séculos, foram
escolhidos quarenta nomes. Mas por que o número quarenta?
Quarenta, parece-nos um número cabalístico e profundamente
bíblico. Encontramos uma explicação na pedagogia medieval do
Quadrivium que ensina as qualidades secretas das quantidades.
Para Martineau (2014, p.13), “A ciência dos números, e seu estudo, é das mais antigas da terra, com sua origem perdida nas
brumas do tempo”. Basta lembrar Pitágoras. Assim mantivemos
a tradição francesa das quarenta poltronas patrocinadas por expoentes. O movimento republicano de criação das academias estaduais se fixou no número fechado, numerus clausus, das quarenta
cadeiras, de acesso limitado.
Os franceses não deviam ter escolhido o número quarenta
por acaso. Para o Quadrivium, o numero40 significa, harmoniosamente, “a soma do número de dedos das mãos e dos pés de um
homem e de uma mulher juntos”. E mais, graficamente, “Quarenta esferas podem tocar uma central com cinco dimensões”
(MARTINEAU, 2014, p. 370). Mas é preciso continuar a busca.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Patronos e fundadores
Para a criação do nosso grêmio, Arlindo Fragoso enviou
uma primeira relação cronológica dos patronos. Nomes escolhidos de 1567 até 2 de março de 1917. São, portanto, quatro
séculos de presença da Bahia, na formação intelectual da nação.
A Bahia tinha nomes a escolher desde o século da descoberta,
contando com a significativa contribuição dos jesuítas.
Depois de acertos e combinações, o fundador endereçou
uma segunda lista. Os nomes dos quarenta patronos e fundadores estão emparelhados, mas com alterações: o visconde da
Pedra Branca, o visconde de Caravelas e o médico Luís Álvares
dos Santos foram substituídos, respectivamente, por José Lino
Coutinho, na cadeira de número 10; o visconde de São Lourenço, na cadeira 14; e Demétrio Ciríaco Tourinho na cadeira 24.
O visconde de Caravelas, Manuel Alves Branco, entretanto,
permaneceu como patrono da cadeira temporária de número 41.
Criada para atender a Arlindo Fragoso, todavia, ainda em 1917, foi
extinta essa destoante poltrona de número 41. Com o falecimento
de Severino Vieira, o acadêmico Arlindo Fragoso passou a titular
da cadeira 19, sob o patrocínio do barão de Cotegipe. As relações
dos patronos com essas modificações estão registradas no primeiro número da nossa Revista (1930, v.1, p.5-11).
A cronologia e os grupos temáticos
Com patronos acompanhados dos fundadores, procuramos entender a cronologia numérico-nominal apresentada pelo
fundador. É possível agregar algumas atividades, interações e
sentimentos. Não obstante a linearidade cronológica, divisamos
algumas aglomerações temáticas, perscrutando a atuação predominante dos patronos, no relacionamento personalidade de base
e papéis desempenhados conforme as alternativas comportamentais idiográficas e nomotéticas.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Uma ilustração bem evidente é a do patrono da cadeira
de número 10, José Lino Coutinho, médico e político. Como
profissional, dirigiu a Faculdade de Medicina da Bahia com a
reestruturação do curso médico, mas no desempenho político
fez oposição a D. Pedro I. Enquanto o arcebispo D. Antônio de
Macedo Costa, teólogo, formado no Seminário de São Suplício,
na França, e doutor pela Universidade Gregoriana, ateve-se ao
seu ministério eclesiástico e ao magistério, tendo a sua obra de
escritor um cariz religioso.
Pelo visto, a Academia se organizou à base das personalidades dos patronos, fundadores, sucessores e ocupantes. Seguiu,
portanto, uma linha idiográfica, na sua estruturação, nas disposições, anseios e almejos das individualidades ilustradas. A pequena elite era uma só com desempenhos múltiplos ou sucessivos,
tanto no parlamento, executivo e judiciário, como na profissão
e no magistério.
A cronologia da relação pode ser combinada com a temática da atuação ocupacional dos patronos, no contexto colonial,
imperial e no alvorecer da República. A predominância da atuação intelectual, científica, profissional e política, possibilita a
interação de quatro grupos: primeiro, o grupo dos expoentes do
período colonial; segundo, o expressivo bloco dos titulares do
Império; terceiro, o iluminado núcleo dos poetas românticos;
quarto, os numerosos médicos ou formados em medicina, na
Bahia. Vejamos os componentes de cada grupo.
Os expoentes do período colonial
Começando pela Colônia, conta muito e altaneiramente o
privilégio do patrocínio de Frei Vicente do Salvador, Gregório
de Mattos e Guerra, Manuel Botelho de Oliveira, Sebastião da
Rocha Pita, Luís Antônio de Oliveira Mendes e Alexandre Rodrigues Ferreira, todos com formação coimbrã.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
O bloco dos titulares do império
A relação prossegue no Império. A revelação intelectual
e política da nossa experiência parlamentarista, sobretudo, no
segundo reinado criou um clima participativo que possibilitou
o sucesso, especialmente, dos baianos presidentes do Conselho
de Ministro, a exemplo de Zacarias de Góes e Vasconcelos e
do barão de Cotegipe. Talvez dos grandes do Império, somente o conselheiro José Antônio Saraiva não constou da lista de
Arlindo Fragoso. Além de Coimbra, observa-se a contribuição
de nossas Faculdades de Direito de Olinda e, depois, do Recife,
de São Paulo, das Faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de
Janeiro e da Escola Central de Engenharia ligada ao Exército.
A relação se inicia com: visconde de Cairu, José da Silva
Lisboa, um praticante do Publish or perish. Cairu muito publicou.
Seguem-seo irrequieto Cipriano Barata, o visconde de Jequitinhonha, o ilustrado marquês de Abrantes, o eficiente visconde
de São Lourenço, o habilidoso barão de Uruguaiana, o estadista
Nabuco de Araújo, o competente Zacarias de Góes e Vasconcelos, o barão de Cotegipe, o barão de Vila da Barra, o engenheiro
visconde do Rio Branco, o notável orador Joaquim Jerônimo
Fernandes da Cunha. Não foram parlamentares, mas viveram
na Corte e ascenderam, intelectualmente, o engenheiro André
Rebouças, amigo pessoal do imperador D. Pedro II, que a este
acompanhou no exílio, o jurista Augusto Teixeira de Freitas e o
botânico Joaquim Monteiro Caminhoá, professor de medicina.
O núcleo dos poetas românticos
O romantismo, marcadamente germânico, como expressão literária e ideológica do Império, como, aliás, o modernismo vai ser da ditadura Vargas, forma o grupo dos poetas românticos: Junqueira Freire, Castro Alves, o repentista
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Francisco Moniz Barreto e João Batista de Castro Rebelo Júnior. Somam-se aos poetas do período colonial, Gregório de
Mattos e Guerra e Manuel Botelho de Oliveira.
O bloco dos médicos e formados em medicina
O ensino médico, iniciado por D. João VI, deu origem
e constituiu o poderoso bloco de patronos. Identificam-se os
médicos ou formados em medicina (aqueles que foram formados em Medicina e exerceram outras atividades): Antônio
Ferreira França, José Lino Coutinho, Antônio Januário de Faria, Demétrio Ciríaco Tourinho, Manuel Vitorino Pereira, Domingos Guedes Cabral, Francisco Rodrigues da Silva, Alfredo
Tomé de Brito e Francisco de Castro.
O impulso cultural da Faculdade de Medicina da Bahia
formou não somente a geração de patronos como também boa
parte dos fundadores, conforme demonstrou Machado Neto
(1972, p.271), no seu ensaio sobre a Bahia intelectual, de 1900 a
1930: “A grande influência baiana era da Faculdade de Medicina,
que atraía nordestinos e também paulistas, que passavam a viver
na Boa Terra durante pelo menos o tempo de estudante”. A
Faculdade de Direito, criada em 1891 e a Escola Politécnica, em
1896, contribuíram para conjunto dos fundadores.
Sentimos bem perto de nós a forte influência cultural
dos médicos baianos ao suceder Clementino Fraga, na cadeira
de número 39, aureolada pela magnitude do baiano Francisco
de Castro, o “divino mestre”. Essa herança cultural, científica,
política, educativa e acadêmica da Faculdade de Medicina da
Bahia, engastada na Universidade Federal, perduram até hoje,
com o confrade Roberto Santos, expressiva liderança na ciência médica, na educação e na política.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Outras vigências intelectuais
As atividades, interações e sentimentos identificaram os
quatro grupos. Constituíram os clusters de patronos – expoentes
do período colonial, titulares do Império, poetas românticos e
médicos ou formados em medicina, Ao lado, se encontram
a erudita manifestação de filosofia de Antônio Ferrão Moniz
de Aragão, de teologia com D. Antônio de Macedo Costa, do
jornalismo com Pedro Eunápio da Silva Deiró e Belarmino
Barreto e o dramaturgia de Agrário de Menezes.
As relações positivas
Para concluir, exploremos a metodologia das relações
positivas de Kerlinger (1980, p.26). No caso da Academia, existe uma relação positiva de parentesco entre o tio e o sobrinho
na cadeira de número 12, patrono, Miguel Calmon du Pin e
Almeida, marquês de Abrantes, e o fundador, Miguel Calmon
du Pin e Almeida, ministro de Afonso Pena e Artur Bernardes.
Considere-se a irmandade entre o patrono da cadeira de número 23, Manuel Vitorino Pereira, e Antônio Pacífico Pereira,
fundador, ambos médicos. É o mesmo caso de parentesco do
patrono Francisco Mangabeira e do fundador Otávio Mangabeira. Enquanto a cadeira de número 26, patrocinada pelo
arcebispo D. Antônio de Macedo Costa, foi fundada pelo cônego José Cupertino de Lacerda, parentesco espiritual e canônico. Identificamos outras combinações binárias entre patrono
e titular com a mesma formação médica: Antônio Januário de
Faria e João Américo Garcez Fróes; e os políticos, Zacarias de
Góes e Vasconcelos e José Joaquim Seabra.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
A pesquisa e atualização da vida e obra dos patronos
Considere-se a pesquisa atualizadora da vida e obra dos
patronos. O acadêmico Fernando da Rocha Peres (1983) fez a
revisão biográfica de Gregório de Mattos e Guerra, dando-lhe
maior visibilidade e proporcionando outras abordagens do seu
estudo seminal. O confrade James Amado editou toda a obra
de Gregório de Mattos. O patrono frei Vicente do Salvador, autor da primeira História do Brasil, teve não somente uma edição
de luxo da empresa Odebrecht, prêmio Clarival do Prado Valadares, como também alentada pesquisa de Maria Lêda Oliveira
(2008). O confrade Joaci Góes incluiu três patronos – Gregório
de Mattos e Guerra, visconde de Cairu e Castro Alves – dentre as 51 personalidades mais marcantes do Brasil (GOES, 2014). De
igual maneira, o confrade João Eurico Matta (2013) se ocupou
do patrono Antônio Ferrão Moniz de Aragão, atualizando-o no
seu bicentenário. Quanto ao patrono Manuel Vitorino Pereira, orientamos a tese de doutorado em educação de Antonieta
d’Aguiar Nunes (2003) sobre a política educacional no início da
República na Bahia com foco na reforma de ensino, do governador Manuel Vitorino Pereira. Destacou-se, assim, destacando
o liberalismo do único baiano que ocupou a vice-presidente da
República do Brasil.
Fontes e colaborações
Por fim, uma palavra acerca das fontes e colaborações.
Para o estudo dos patronos da era colonial, temos contado com
a colaboração do historiador Pablo I. Magalhães, pesquisador
do período colonial. É preciso estabelecer o contexto colonial
dos três primeiros séculos. Para os titulares do Império, destacadas personalidades do segundo reinado, contamos com a
colaboração do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, especialmente, da sua biblioteca e da base de dados bibliográficos.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Da mesma maneira, para a pesquisa dos médicos ou formados
em medicina, na Bahia, temos tido a colaboração da doutora
Cristina Fortuna. No Arquivo Renato Berbert de Castro, da
Academia, contamos sempre com a prestimosa ajuda do historiador Bruno Lopes do Rosário.
Ao concluir, com a inauguração da placa dos patronos,
sentimos que ficamos mais próximos de suas vidas e obras, desempenhos e sentimentos, sucessos e realizações. (ALB, Salvador, 18 de setembro de 2014)
REFERÊNCIAS
A FUNDAÇÃO DA ACADEMIA. Rev. ALB. Salvador, v.1, p.5-11,
1930.
BLAKE, Augusto Vitorino A. Sacramento. Dicionário bibliográfico brasileiro. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1883. Edição Conselho Federal de Cultura 1970. 7v.
CALMON, Pedro. História da literatura baiana. Salvador: Prefeitura Municipal do Salvador, 1949.
CAMPOS, José de Oliveira. A Academia e seus patronos. Rev. ALB,
Salvador, v.2, p.62-74,1932.
COUTINHO, Afrânio; SOUZA, J. Galante. Enciclopédia de literatura
brasileira. Rio de Janeiro: Ministério da Educação/ Fundação de Assistência ao Estudante, 1990.
KERLINGER, Fred N. Metodologia da pesquisa em ciências sociais. Tradução Helena Mendes Rotundo. São Paulo: EPU: EDUSP: [Brasília]:
INEP, 1980.
MACHADO NETO, A.L. A Bahia intelectual (1900-1930). Universitas
Rev. de Cult.Ufba. Salvador, v.12/13, p. 261-305, maio/dez./1972.
MARTINEAU, John (Org.). Quadrivium: as quatro artes liberais clássicas da aritmétrica, da geometria, da música e da cosmologia. Tradução
Jussara Trindade de Almeida. São Paulo: Realizações Editora, 2014.
NUNES, Antonietta d`Aguiar. Política educacional no início da República
na Bahia: duas versões do projeto liberal. 2003, 563 f.Tese ( Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação da Universidade Federal
da Bahia, Salvador, 2003.
►► 21
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
VASCONCELLOS, Barão Smith de Vasconcellos. Arquivo nobiliárquico
brasileiro. Lausanne, 1918.
VELHO SOBRINHO, J. F. Dicionário biobibliográfico brasileiro. Rio de
Janeiro: I. Pongetti, 1937. v.2.
______.______ Rio de Janeiro: Ministério de Educação e Saúde,
1940. Ilustração.1
Edivaldo M. Boaventura é bacharel em direito e em ciências sociais, mestre
e PhD em educação, professor emérito da UFBA, autor de diversos livros
de ensaios, sócio de inúmeras instituições culturais no Brasil e no exterior.
É orador oficial do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Foi secretário de Educação do Estado da Bahia em dois governos, diretor-geral
do jornal A Tarde e presidente da Academia de Letras da Bahia, da qual
é membro benfeitor. Desde 1971 ocupa a Cadeira número 39 da ALB.
22 ◄◄
ANO DE ERUPÇÃO DA ARTE
MODERNA, 1905 NÃO ACABOU
FLORISVALDO MATTOS
S
e existe um ano que se destaca pelo tanto de incidências que
se tornariam um marco na história da arte moderna, este
é o de 1905, pois nada menos de quatro episódios nele ocorreram responsáveis por profundas mudanças no universo das
artes plásticas, mas não somente nelas. A par da sucessão de
descobertas científicas, que se espraiaram pelo último quartel
do século XIX, influindo fortemente na sociedade, outra febre
irrompe na Europa, a do “espírito novo”, dominando as consciências nas grandes cidades. E havia razões de sobra para tal,
bastando assinalar uns poucos pontos.
A apenas dezesseis anos do progresso industrial alcançado
na fabricação do aço, que permitiria a quase miraculosa elevação
da Torre Eiffel, para transformar doravante a sua estrutura, de
símbolo inaugural da Exposição Universal de Paris (1889), em
monumento-ícone urbano-paisagístico da França moderna; a
somente dez anos da invenção do cinema e da mostra do primeiro filme pelos irmãos Lumière; do desenvolvimento da psicanálise por Freud e da descoberta dos raios X, pelo físico alemão
Wilhelm Röentgen (1845-1923), e no mesmo ano da primeira
sedição russa, com a revolta do couraçado Potemkim, que será
tema de famoso filme de Serguei Eisenstein (1898-1948), para
ficar nesses poucos exemplos, Paris mais uma vez fervia, tomada
agora pelo entusiasmo mais ou menos ingênuo de um crescente
público disposto a acolher como dádiva tudo que recebesse o
rótulo de moderno.
►► 23
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Reportando-se a este período, o escritor e poeta francês
Georges-Emmanuel Clancier (1955) refere-se ao estado de “embriaguez otimista” que predominava no ambiente intelectual e,
no caso da poesia, o empenho de Guillaume Apollinaire e seus
amigos para instaurá-la no reino do “espírito novo”.
A floração de descobertas científicas no final do século
anterior e nos primeiros lustres do que se iniciava, tanto
quanto o entusiasmo mais ou menos ingênuo, com que um
enorme público acolhia esses ‘milagres’ modernos, não se
mostram estranhos a esta vontade – paralela àquela dos
sábios – as descobertas, as explorações e as experiências de
linguagem, os sonhos, o acaso, a extrema consciência ou
o contrário subconsciente, de que foram testemunhas os
poetas alguns anos antes e depois da guerra de 1914-1918
(CLANCIER, l955, p. 240, tradução nossa).
Assim é que, dentro de tal panorama da civilização ocidental, não restam dúvidas de que 1905 tornou-se um ano
ímpar para a criação artística, de que não podiam se ausentar as artes plásticas, especialmente a pintura. E ei-lo então,
dando partida à Arte Moderna, com a explosão de dois movimentos da vanguarda estética: o Fauvismo (do francês fauvisme, variação: fovismo), no 3º Salão de Outono, em Paris, com
Henri Matisse à frente, e o Expressionismo, em Dresden, lançado por jovens alemães do grupo Die Brüke (A Ponte). No
primeiro, soltas as “feras” (fauves), de tão fortes e brilhantes,
as cores pareciam rugir, enquanto no segundo a tradição, o
racionalismo, o naturalismo e o bom-mocismo do gosto estremeciam sob a carga criativa de revolta da expressão autêntica, fundada na emoção do artista.
Como se não bastasse, há mais dois fatos que conferem
galardão de ano especial a 1905. Foi nele justamente que a pintura de Pablo Picasso (1881-1973) passa da fase azul para a consagradora fase rosa, cujos tons predominantes, em lugar dos azuis,
24 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
tornam o espírito de suas obras menos severos, influenciando
inclusive nos seus temas, que passam agora a ser palhaços, acrobatas e dançarinos, com nítida preferência pela figura do Arlequim. O outro fato marcante tem a ver com este momento de
revoluções artísticas apenas como um simbolismo.
É justamente no mês de agosto que ocorre a morte de
Adolph-William Bouguereau (1825-1905), pintor laureado, papa
da arte acadêmica francesa durante decênios, detentor da Legião
de Honra da França e por duas vezes ganhador do grande Prêmio Roma de pintura. Desaparecia um feroz inimigo da arte de
vanguarda, ao ponto de usar sua grande influência para excluir
obras de pintores até em consagrados salões patrocinados pelo
poder público, como aconteceu com Paul Cézanne, que não
escondia sua mágoa ao ser por ele impedido de participar do
“Salon Monsieur Bouguereau”. Por tais atitudes conservadoras
e caducas, era condenado pelas novas gerações de artistas, ao
ponto de o poeta e pintor francês Joris-Karl Huysmans (18481907) ter dito, certa feita, que Bouguereau era “um mestre na
hierarquia da mediocridade”.
Jean-Louis Perrier reproduz o que o Boletim Religioso da
Diocese de La Rochelle et Saintes publicou, registrando de forma
peculiar e sutilmente irônica os últimos momentos de vida desse
famoso artista, na edição de dia 24 de agosto de 1905.
Ao padre que o assistia em seu leito de morte, no instante mesmo em que ele lhe estendia as mãos trêmulas para
receber a extrema unção, disse-lhe: “O que elas tenham
feito em favor do mundo e suas vaidades, eu o reprovo”.
E o boletim diocesano, reportando suas últimas palavras:
“Amém! Amém!”, completa: “Talvez neste momento o
grande artista tenha visto inclinar-se sobre ele as doces Madonas que ele em sua glória tão maravilhosamente pintou.
Elas vinham lhe anunciar o perdão celeste” (FERRIER,
1988, p. 67, tradução nossa).
►► 25
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Depois de morto, o nome de Bouguereau passou um
tempo obscurecido, para ser depois reabilitado, pelo significado histórico para a arte de muitas de suas obras, que passaram
a merecer estudos e até alcançar altos preços em leilões. A sua
celebérrima tela intitulada La Naissance de Vênus (Nascimento de
Vênus), vendida em 1879 ao estado francês por quinze mil francos, tidos na época como uma bela soma, está hoje no Museu
de Luxemburgo, em Paris. Porém, a arte acadêmica parece ter
se enlanguescido ou morrido com ele, enquanto a arte moderna
surgia, florescia e avançava, dominando o século XX e entrando
pelo seguinte, em suas múltiplas formas de manifestação.
1. Fauvismo
Na jaula com as feras
É precisamente em 18 de outubro de 1905 que, a apenas
dois anos da morte de Paul Gauguin (1848-1903), um dos inspiradores do movimento dos Nabis (“profetas”, em hebraico),
e após algum tempo de marasmo e desânimo, o mundo artístico
de Paris começa a ferver. Sob a presidência de Pierre-Auguste
Renoir (1841-1919), abria-se o 3º Salão de Outono, no Grand
Palais de Champs-Élisées, para encerrar-se em 25 de novembro,
contados 38 dias que iriam representar nada menos que a explosão da arte moderna na Europa.
Não era uma exposição qualquer. Junto com retrospectivas
de Ingres e Manet, o Salão apresentava em suas várias salas 1.636
obras de artistas vivos, entre eles Paul Cézanne (1839-1906), que
saíra de exílio voluntário na sua amada e bucólica Aix-Provence,
no sul da França, para ditar novos rumos à arte. No catálogo,
Élie Faure (1873-1937) saúda o que chama de “novas energias”,
impensáveis até bem poucos anos, e que pareciam dispersas desde
o Salão dos Independentes, criado em 1884 por Georges Seurat
(1859-1891) e Paul Signac (1863-1935), marco da pintura pontilhista e de uma fase até ali de largo prestígio e influência.
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À força do entusiasmo que lhe despertava a novidade,
o grande historiador de arte lançava um apelo: “É necessário
que se tenha liberdade e vontade de entender uma linguagem
absolutamente nova”. Referia-se às obras que ali mostravam
os pintores de um novo estilo: Henri Matisse (1869-1954), que
doravante se tornaria o consagrado líder do movimento, com
duas telas, a peça-emblema Mulher com Chapéu e Marinhas; André Derain (1880-1954), com a alegria e crueza de suas Vistas
de Collioure - o mesmo lugar onde, solitário, 34 anos depois,
morrerá o grande poeta espanhol Antonio Machado, enxotado
pela vitória do general Francisco Franco, na célebre guerra civil
que mergulhou a Espanha num regime ditatorial que durará
36 anos; Maurice de Vlaminck (1876-1958), com os violentos
efeitos pictóricos de seu Vale do Sena em Marly, e outros mais,
que baseavam sua arte na propagação de cores brilhantes e
não-naturalistas, cobrindo vastos espaços.
Essa parte fulgurante do salão iria produzir imediatamente
escândalo, com reações iradas na imprensa parisiense. “Joga-se
um pote de tinta na face do público”, disparou o crítico Camille
Mauclair, nas páginas do jornal Le Figaro, enquanto caberia ao
conservador, mas prestigiado Louis Vauxcelles emitir, em meio
à sua metralha crítica, a frase-chiste, que iria para sempre dar
nome ao movimento e consagrá-lo. Ao vislumbrar no meio de
uma das salas a escultura em bronze, Torso de Menino, de Albert
Marquet (1875-1947), rodeada de quadros pendurados nas paredes, bradou: “C´est Donatello parmi les fauves!” (“Donatello
no meio das feras”).
(E aqui, num hipotético parêntese, me permito cogitar se
não vem daí o termo “fera”, que no Brasil se consagrou como
símbolo de força e coragem, quando João Saldanha, técnico da
seleção brasileira de futebol, proclamou em 1969 que queria
um time de “onze feras” para ser campeão do mundo, o que
realmente aconteceria, no ano seguinte, mas sem ele à frente
do esquadrão vitorioso).
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Nasce dessa explosão do crítico francês o termo Fauvismo. O vocábulo se repetiria, quando, em artigo no periódico Gil
Blas, de grande aceitação, referiu-se ao mesmo quadro Mulher
com chapéu, de Matisse, que para o redator reproduzia uma “virgem cristã entregue às feras de um circo”. Mas o conservador
Vauxcelles era um zoólogo da linguagem que sabia das coisas.
Na ocasião, foi também em um universo de circo que ele enquadrara o colorido excêntrico de outro “fauvista” do Salão de Outono, Georges Rouault (1871-1958). Uma associação de ideias
lhe forneceu o repente “fauve” - o hoje famoso quadro de Henri
(Le Douanier) Rousseau (1844-1910), Leão com fome (1905), cuja
figura central, um leão, no meio de selva densa, devora um antílope, sob o olhar expectante de uma pantera.
Realmente, as cores solares dos fauvistas, intensas e vastas, como que expondo um corpo selvagem, esfolado a garras,
sangrando, pareciam refletir um estado de fúria explícita como
contraponto à suavidade da arte dos impressionistas ou os pequenos toques regulares do colorido puro dos pontilhistas, que,
vistos de certa distância, criavam efeitos de cor mais vibrantes
que os obtidos pela mistura de tintas. Os fauvistas queriam ultrapassá-los, provocar uma ruptura na passividade do gosto persistente e na admiração que o público ainda devotava a essas duas
consagradas correntes da pintura.
Não há dúvida de que, ante o que diagnosticavam como
um estado de lassitude generalizado em relação à criação artística, os integrantes deste primeiro dos grandes movimentos de
vanguarda da arte europeia - vigentes entre a virada do século
XIX e a irrupção da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) -, optaram por elevar ao máximo a potência das cores, que deviam se
impor por sua força e intensidade, como um advento profético
anunciado por trombetas, para detonar a tepidez do ambiente e
rebentar paredes a golpes de audácia.
Eram eles todos mesmo “feras”, querendo pôr abaixo a
jaula estética em cujas grades se confinavam a criação artística
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e a chusma retórica de sustentação dos valores estabelecidos.
E, por aí, aspiravam embrenhar-se na selva urbana de uma Paris que se apascentara ao longo dos amplos e claros bulevares
abertos pelo gênio urbanístico de Haussmann - (Georges-Eugène, barão, 1809-1891, político que, por nomeação de Napoleão III, administrou Paris de 1853 a 1870) -, a essa altura,
presunçosamente já instalada no confortável posto de capital
mundial das artes, para onde afluía quem quisesse algum dia
ter o nome de artista consignado em verbete de enciclopédia.
A cidade era o destino preferido de poetas e artistas errantes
e apátridas – Rainer Maria Rilke, Pablo Picasso, Salvador Dali,
Joan Miró, Edvard Munch, Piet Mondrian, Umberto Boccionni e tantos mais de nacionalidades várias –, ou simplesmente
de alguém interessado em usufruir das benesses do espaço urbano, transitando por ruas, praças e esquinas, na condição de
um perfeito flâneur, o novo personagem que a modernidade
introduzira no fluxo das grandes cidades.
Com uma desinibição que literalmente fazia corar o gosto
pequeno-burguês, os fauvistas instauram uma nova ordem, a da
supremacia da cor, representada pelo arrojo de forma e tinta, cobrindo os espaços de telas, tapetes, paredes e vitrais, pois, se não
era arte profunda, pelo menos deflagrava um prazer, com efeito
de êxtase visual, na linha do que, entre 1901 e 1906, vinham e
iriam suscitando exposições de Van Gogh, Gauguin e Cézanne,
seus inspiradores mais próximos, mas também os longínquos Bruegel, El Greco, Poussin -, por onde seguiria a caudal irreprimível das vanguardas verdadeiras: expressionismo (também em
1905), cubismo (1908), futurismo (1909), suprematismo (1915),
dadaísmo (1916), surrealismo (1924), e seus filhotes - vorticismo (Inglaterra, 1913, a partir de um cisma com o futurismo)
e ultraísmo (Espanha, 1920, de vigor mais literário e poético,
expandindo-se para a América do Sul, até chegar a Bueno Aires,
pelo inquieto espírito do jovem Jorge Luis Borges), entre outros,
excetuando-se as derivações criativas, rumo ao abstrato.
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Amédée Ozenfant (1886-1966) e Le Corbusier (Charles
Édouard Jeanneret, 1887-1965) situam o estado da arte neste
momento (início do século XX) como o de recuperação de
uma “fantasia” perdida, ou de renúncia a uma obediência às
regras da imitação. Por esta ilustre conjetura, pode-se dizer
que o fauvismo imprimia a sujeição do tema à plástica pura,
buscando por esta forma expressar os efeitos do mundo material, ao acolher e incorporar soluções estéticas transmitidas
por um certo número de precursores, estabelecendo-se o predomínio do elemento puramente plástico sobre o descritivo,
que será melhor apropriado logo adiante (1908) com maior
eficácia pelo cubismo.
Com isso, segundo Ozenfant e Le Corbusier (2005), a
narração em pintura passa a um segundo plano; às novas experiências e pesquisas se agregam elementos formais e colorísticos absorvidos da arte oriental e negra, com a predominância
de sensações visuais puras, que produz um efeito ornamental,
contribuindo, pela organização - de cores e formas -, para se
tornar arte superior.
Na ótica de Giulio Carlo Argan (1992), a arte europeia se
introduz no século XX impregnada de uma forte tendência anti-impressionista que se manifesta através de dois movimentos
aflorados em dois centros distintos: um francês, o Fauvismo;
outro, propalado pelo grupo alemão Der Brücke (A Ponte). Ambos surgem em 1905, como arte historicamente europeia, com a
eliminação de pressupostos nacionalistas e superação do caráter
“essencialmente sensorial” do impressionismo.
Impõe-se o fauvismo como uma reação ao decorativismo hedonista do movimento Art Nouveau com uma poética que
transforma a pesquisa de cores em pesquisa plástica, na intenção
de suprimir o dualismo entre sensação (cor) e construção plástica (forma, volume, espaço). Com isso, segundo Argan, potencializa-se a construtividade intrínseca da cor, como “elemento
estrutural da visão”.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Um elemento comum a Cézanne, Signac e Van Gogh era
a decomposição da aparência natural, ou do “motivo”, para
pôr em evidência o processo de agregação, a estrutura da
imagem pintada: com efeito, eles pintam com pinceladas
destacadas, nítidas, dispostas com certa ordem ou ritmo,
que dão a ideia de matéria concreta, da cor e construção
material da imagem. A pesquisa dos fauves se dirige justamente à natureza dessa ordem e ritmo, que para Cézanne correspondia à ordem intelectual da consciência; para
Signac, à lei ótica dos efeitos de luz; para Van Gogh, ao
ritmo profundo da existência traduzido em gestos (ARGAN, 1992, p. 232).
Vem dos fauves a ideia do quadro como estrutura autônoma, autossuficiente, que durou até recentemente com o advento
das artes conceitual e performática. Para eles, é na criação artística, realidade em si, que se efetiva o encontro do homem com o
mundo. Segundo Anna-Karola Kraube (2000), os pintores fauvistas – André Derain, Maurice de Vlaminck, Raoul Dufy (18771953), Kees van Dong (1877-1968) e Henri Matisse – “seguiam
as pisadas dos pintores impressionistas e pós-impressionistas”,
sendo deles coerentes continuadores.
Os Pós-impressionistas Gauguin, Van Gogh, Seurat
e Cézanne já tinham iniciado esta transformação dos
meios artísticos. A sua arte pôde ser apreciada nas grandes exposições retrospectivas, em Paris, na passagem do
século, as quais parecem ter sido uma grande fonte de
inspiração para os jovens artistas franceses. Nos trabalhos de Matisse, por exemplo, encontramos as grandes
superfícies coloridas de Gauguin, a pureza das cores de
Seurat, a espontaneidade expressiva de Van Gogh e a
composição de Cézanne baseada em relações intrínsecas ao quadro (KRAUBE, 2000, p. 85).
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
A ausência de simbolismo, a cor liberta do objeto, solta
no espaço, e a captura da luz graças a uma paleta vigorosa,
esplendente e pura dos fauvistas, influenciaram os expressionistas alemães do grupo Der Brücke (A Ponte), que se reuniu
em Dresden, no mesmo ano. A partir de 1908, com a publicação de um artigo, à guisa de manifesto estético – “Anotações
de um artista. A cor pura” -, Henri Matisse passou a ser considerado em toda a Europa o líder inconteste do movimento
fauvista, por ter resolvido alinhar, segundo Kraube, “[...] a
sua linguagem pictórica concreta por mentores mais recentes”, como dito acima.
Matisse também estava convencido de que a cor e as formas possuem um conteúdo expressivo próprio, independente do modelo da natureza. Com sua concepção artística, que dava prioridade às relações interiores do quadro,
em detrimento da precisão da representação, Matisse fez
parte daqueles artistas que abriram os caminhos da arte
moderna(KRAUBE, 2000, p. 85).
2. Expressionismo
Nova arte para novo homem
Se o fauvismo não tinha uma ideologia, uma plataforma de ideias projetada para a sociedade, podendo ser tomado
como exemplo nítido de arte pela arte, no sentido de prática
estética que não tem por objeto senão a si mesma, com resultado positivo, reconheça-se, não se pode dizer o mesmo do
movimento expressionista.
Considerando o conjunto de pensamentos que alicerçava
as propostas dos quatro jovens alemães reunidos em Dresden,
em fins de 1905, tem-se a evidência de que, somente seis décadas depois, no Ocidente, se configuraria um cenário de impulso
ideológico equivalente com as mudanças sociais e técnicas que,
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
lastreado no imaginário do consumismo e da indústria cultural,
favoreceu o surgimento de novas manifestações artísticas, tais
como pop art, arte conceitual, arte pobre, Fluxus, hiper-realismo, transvanguarda, entre outras, na caudal dos movimentos de
liberação dos costumes e afirmação de amplos segmentos sociais (juventude, feminismo, grupos étnicos), tomando-se como
ponto de partida os anos 1960.
Assim como o século XIX forneceu ao homem a máquina como instrumento impulsionador da modernidade, semeando transformações sociais através da revolução do trabalho e configurando uma realidade nova, invenções técnicas
e industriais, incidência de novos conhecimentos nas áreas
das ciências naturais e humanas, e muito mais, caldearam a
realidade dos inícios do século XX. A realidade diretamente
visível tornava-se outra: surge a teoria da relatividade de Albert Einstein (1879-1955); Sigmund Freud (1856-1939) produz uma reviravolta no mundo da consciência com a psicanálise; o físico alemão Wilhelm Röentgen descobrira os raios
X. Não era mais um mundo para o olhar de impressionistas,
neoimpressionistas e simbolistas. Os novos artistas do Die
Brücke, mesmo que parecessem utópicos ou ingênuos, desejavam olhar o mundo, como diziam, “por trás da aparência das
coisas”. Queriam indicar para o homem o que supunham ser
um futuro melhor.
Com a fé no desenvolvimento, numa nova geração de criadores e de consumidores, fazemos um apelo a toda a juventude, e como juventude portadora de futuro, queremos
reivindicar a liberdade, viver e lutar contra as forças conservadoras e o poder estabelecido. Todo aquele que representar diretamente e sem falsificações aquilo que o impele
a criar, é um de nós. (Manifesto “Die Brücke”, 1905, apud
KRAUBE, 2000, p. 86-87).
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Eis o que proclamavam aqueles quatro jovens em Dresden – Ernst Ludwig Kirchner (1880-1938), estudante de arquitetura, a trabalhar com gravura em madeira; Erich Heckel
(1883-1970), escultor; Karl Schmidt-Rottluff (1884-1976),
que se dedicava à litografia, e Fritz Bleyel (1880-1966), de
preferência pintor.
O termo “ponte” (brücke), que aplicavam ao movimento
(escolhido por Schmidt-Rottluff, por sugerir a fé que o grupo
tinha na arte do futuro, com eles literalmente fazendo a ponte)
pretendia significar a passagem para um processo criativo e a
ligação entre verdadeiros criadores, no intuito de caracterizar
total recusa a ser uma escola no sentido acadêmico da palavra,
embora estivessem, os quatro, ligados a uma escola técnica de
nível superior. Almejavam absorver em suas hostes, que só fariam dali por diante crescer, “todos os fatores de revolução e
fermentação”, que rompem com o academicismo, o impressionismo e com o Art Nouveau, de Gustav Klimt (1862-1918)
e outros. Aos membros fundadores se juntaram depois outros
artistas, como Max Pechstein (1881-1955), Otto Muller (18741955) e Emil Nolde (nome verdadeiro Emil Hansen, 18671956), Edvard Munch (1863-1944), James Ensor (1860-1949),
Max Beckmann (1884-1950) e Egon Schiele (1890-1918). A
regra do grupo era que cada um passasse adiante o ensino da
técnica que melhor dominasse.
Claramente influenciada pelo fauvismo, no que respeita
à pintura de quadros a partir de cores e formas puras, porque também ligada aos já citados precursores, próximos (Van
Gogh) e distantes (El Greco), a concepção artística do grupo
ganharia a designação de expressionismo somente em 1911,
por obra de um galerista, Herwarth Walden, promotor da arte
de vanguarda. Tanto os fauvistas como os expressionistas praticavam uma arte de expressão, como oposição à impressão.
Segundo Argan (1992), na impressão, a realidade - fenômeno
exterior – se imprime na consciência, enquanto na expressão
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ocorre o inverso, o movimento se propaga de dentro para fora,
imprimindo-se no objeto. Vocabulário estético deliberadamente simplificado, formas reduzidas ao essencial, corpos distorcidos e espaços diluídos, que, segundo Anna-Carola Kraube
(2000), “ignoram as leis da perspectiva” – são as marcas das
obras dos expressionistas.
Cores luminosas, saturadas, aplicadas superficial e independentemente da cor local com auxílio de um pincel grosso, muitas vezes envolvidas por uma linha de
contorno, imprimem aos quadros um caráter grosseiro, rude e elementar. Preocupados em causar um efeito intenso, os expressionistas da Brücke empregavam
frequentemente contrastes complementares, que permitiam
uma acentuação da luminosidade das cores. A sua pintura apaixonada e colorida correspondia ao desejo de
conferir à cor uma nova importância não só emocional,
mas também com traços de composição, ou seja unicamente relevante sob o ponto de vista estético imanente
ao quadro (KRAUBE, 2000, p. 87-88).
A estética do expressionismo adquire desdobramento
por volta de 1911, em Munique, com a ação de um grupo liderado pelo russo Vassily Kandinsky (1866-1944) e o alemão
Franz Marc (1880-1916), a que se associaram August Macke
(1887-1914) e Paul Klee (1879-1940), entre outros, recebendo o nome de Der Blaue Reiter (O Cavaleiro Azul) - sua chave
criativa era a transposição de sentimentos para a tela, de modo
que os quadros “fizessem vibrar a alma”, sendo as cores e as
formas os elementos decisivos.
Ao contrário da pintura rude dos artistas do grupo Die Brücke, a arte do grupo Der Blaue Reiter parece mais delicada, sublimada e espiritual. Embora a formulação artística dos dois
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
grupos fosse diferente, ambos estavam unidos pela convicção
de que uma obra de arte já não podia representar a realidade
de maneira ilusória, porque essa se tinha tornado complexa e
mais incompreensível do que nunca. O objetivo era, portanto,
ultrapassar o superficial (KRAUBE, 2000, p. 90).
O expressionismo foi um vigoroso movimento de arte
que começou a perder força logo após o fim da Primeira
Grande Guerra, lá por 1920, cedendo à intensidade de fundo
psicanalítico do surrealismo de André Breton (1896-1966),
que procurou transferir para a criação artística os impulsos
do inconsciente, inspirado em Freud. Mas manteve o seu
prestígio e influência até os dias de hoje pela mão de muitos
adeptos em todo o Ocidente.
Numa visada do panorama das artes plásticas ocidentais
dos últimos decênios, não estará, a meu ver, incorrendo em
pressa ou imprudência quem vislumbre centelhas e chispas, e até
rastros visíveis, seja das harmonias de composição dos fauvistas,
ou mesmo suas quebras de comedimento, seja dos impulsos de
revolta que emergem de traços dos expressionistas, e mesmo
pela conjugação de elementos estéticos de ambos, mais de um
século depois, presentes em exposições individuais ou coletivas
de obras de artistas de várias nacionalidades. Não há dúvida, nas
artes plásticas, o ano de 1905 ainda perdura.
REFERÊNCIAS
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
CHILVERS, Ian. Dicionário Oxford de Arte. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
CLANCIER, Georges-Emmanuel. Panorama Critique de Rimbaud au
Surréalisme. Paris: Pierre Seghers Éditeur, 1955.
Dictionnaire Enciclopédique de la Peinture. Paris: Booking International, 1994.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
ESSERS, Volkmar. Matisse: Maestro del color. Tradução de José Lebrero
Stals. Alemanha: Benedikt Taschen, 1993.
FERRIER, Jean-Louis. L´Aventure de l´Art au XXème Siècle. Paris: Chene-Hachette, 1988.
KRAUBE, Anna-Carola. História da Pintura: do Renascimento aos
nossos dias. Lisboa: Könemann, 2000.
OZENFANT, Amedée; LE CORBUSIER, Charles-Édouard Jeanneret. Depois do cubismo. Tradução de Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac
Naify, 2005.1
Florisvaldo Mattos é poeta, jornalista e ensaísta, bacharel em direito e
mestre em ciências sociais pela Universidade Federal da Bahia. Presidiu
a Fundação Cultural do Estado da Bahia. Foi editor do suplemento A
Tarde Cultural e redator-chefe de A Tarde. Publicou diversos livros, entre eles Estação da prosa & diversos e Poesia reunida e inéditos. Desde 1995
ocupa a Cadeira número 31 da ALB.
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A INTENÇÃO INDEFINIDA BREVES PALAVRAS SOBRE MIRÓ
GLÁUCIA LEMOS
C
ezanne afirmava ser, no mundo, a mais difícil tarefa, dar
expressão direta a uma concepção de sonho. Os surrealistas simplesmente abandonaram-se ao sonho e se despreocuparam da expressão direta.
Na plêiade representativa dos pintores surrealistas, ao
lado de Max Ernst e de André Masson, é o catalão Juan Miró
uma expressão inconfundível, pela personalidade impressa em
sua obra. Os elementos utilizados em sua linguagem, quer inscritos em paisagens reveladoras de inspiração boschiana, quer
isolados em composições de difícil leitura - conquanto mais
despojados - são característicos de simbologia viril, representada pelos signos triangulares, pelos cornos, setas, linhas ascendentes e torres, que se repetem.
Entregava-se Miró à elaboração de imagens da mais
profunda coerência com a lei do automatismo, concebida e
imposta pela escola de Breton, mas em representações distantes do grotesco de Max Ernst - para quem o onirismo
possuía conotações de pesadelo, e teve nesse impacto uma
força que lhe perpetuou a obra. Desse automatismo, criador
de concepções de surrealismo abstrato, somado ao sistema de
Masson, que usava a tinta direta do tubo ao suporte, desenrolou-se a linha que levou àAction-pating que Jackson Pollock
desenvolveu nos Estados Unidos, assinalando isso um ponto
de importância, referente à obra de Miró, pela qual Pollock
confessava grande admiração.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Declarava Miró, como Masson, iniciar um trabalho sem
intenção definida, até começar a distinguir semelhança com formas conhecidas. Só então desenvolvia a composição de modo
consciente. “Calculadamente” - afirmava.
A respeito desse automatismo professado, expressou-se
Breton em um texto de Surrealismo e Pintura “... por essa mesma
razão ele (Miró) talvez passe pelo mais surrealista de todos nós.”
Se o surrealismo não tencionava direcionar sua meta ao
prazer da sensação visual, mas à revelação da mente inconsciente, foram, sem dúvida, pintores como Miró, Ernst e Masson, os fiéis discípulos que realizaram no enigmático da sua
imagética, o objetivo pretendido. Sem subestima pela harmonia pictórica de surrealistas como René Magritte e Salvador
Dali, para os quais o absurdo merecia uma representação gráfica quase mimética. Eles que tiveram também na justeza do
desenho, no equilíbrio compositivo e no fantástico das suas
concepções, a reserva da posição marcante na história universal da pintura, vale ressaltar nesta memória de Juan Miró, a
expressiva participação de toda a sua obra no cumprimento
pleno da fidelidade à escola assumida.
Miró vivenciou Paris na efervescência dos primeiros anos
20, quando o movimento Dadá se diluía e a exposição de colagens de Ernst impactava Breton, semeando neste o desejo de
desafiar o niilismo dadá de Picabia que o aborrecia. No ar, mesclavam-se a fusão e também o choque de idéias, ante o automatismo que estava apaixonando Breton, sempre tangido pelo
temperamento impositivo. Nesse clima, o catalão conheceu e
tornou-se amigo de André Masson, por cuja amizade chegou a
André Breton, fascinado pelas novas idéias. Dispensava, assim,
outros grupos de artistas que se dedicavam às pesquisas cubistas. Referindo-se a esses, Miró ameaçou: “ Vou rebentar a guitarra
deles! “ E foi assim que aderiu ao surrealismo, a serviço do qual
colocou toda a sua sensibilidade, definitivamente, até vinculando
sua pintura à poesia surrealista.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Juan Miró integrou-se plenamente à função da arte, conforme viria a defini-la, posteriormente, Herbert Read: “transtornar os planos, arrancar as coisas da segurança da sua existência e colocá-las
onde nunca estiveram antes, exceto em sonhos.”1
Gláucia Lemos é bacharel em direito e pós-graduada em crítica de arte.
Trabalhou em jornalismo escrevendo críticas de arte e resenhas literárias
em jornais de Salvador, Maceió, São Paulo e Aracaju. Tem publicados
mais de trinta títulos em literatura adulta e infanto-juvenil. Entre suas
obras, encontram-se os romances premiados O riso da raposa (1995), A
metade da maçã (1988), As chamas da memória (1990), e Bichos de Conchas
(2007). No conto, publicou, entre outros, Procissão e outros contos (1996).
Entre seus vários sucessos na literatura infanto-juvenil, destaca-se o
livro As aventuras do marujo verde, já na vigésima sexta edição. Desde 2010
ocupa a Cadeira número 14 da ALB.
►► 41
30 ANOS DE ACADEMIA
Depoimento
MYRIAM FRAGA
A
o me dar conta, de repente, de que este ano completaria 30
anos de militância na Academia de Letras da Bahia e consciente da importância que essa instituição alcançara na minha
vida, achei que era tempo de resgatar um pouco as lembranças
desse percurso e dividi-las com meus confrades e confreiras.
Até certo ponto de minha existência, a Academia de
Letras não fazia parte de meu ideário. Fui criada numa família
em que se respeitava o conhecimento e as tradições, particularmente as ligadas à construção de uma carreira liberal. Meu
pai, amante das artes e dos livros, médico laureado com o
Prêmio Alfredo Brito, cobiçada distinção da tradicional Escola de Medicina, nunca demonstrara desejo ou predileção
pela Academia de Letras, onde, aliás, já pontificavam alguns
de seus ilustres colegas. A Academia de Medicina lhe bastava,
e a ela fora conduzido menos por vontade própria que para
atender aos apelos dos confrades.
Assim, a primeira posse a que assisti na Academia de
Letras da Bahia foi a de meu tio e padrinho Adriano de Azevedo Pondé, catedrático da Escola de Medicina, cardiologista e
clínico conceituado, que ainda encontrava espaço para dedicarse aos estudos da obra de Marcel Proust, autor de sua admiração. Foi no dia 5 de maio de 1970, e a cerimônia realizou-se na
Escola de Medicina da Bahia, pois o antigo prédio em que até
então funcionava a Academia não se encontrava em condições
►► 43
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
de receber o público esperado. Foi uma grande noite. Sala cheia,
assistência numerosa que só fazia realçar mais ainda o prestígio
do novo acadêmico, que, para minha surpresa, finalizou seu discurso com a citação de versos de meu livro Sesmaria, o que me
deixou emocionada e envaidecida. Naquela noite, o Dindo (eu
o tratava assim) confirmou o roteiro de minhas possibilidades,
repetindo com aquele gesto o mesmo generoso entusiasmo
com que acolheu e distribuiu os exemplares de Marinhas, pequeno volume de versos com que, em 1964, iniciei os primeiros passos no reino das Letras.
Lembro-me também de uma homenagem ao escritor
Herberto Salles, presidente do Instituto Nacional do Livro,
realizada ainda no velho endereço, no Terreiro de Jesus, no
início dos anos 1980, quando fui encontrá-lo para agradecer a
publicação de dois livros de minha autoria, em convênio com
a Editora Civilização Brasileira: O risco na pele e As purificações ou
o Sinal de talião. Naquele dia, vi que o prédio estava realmente
precisando de uma grande reforma. Acho que foi essa a única
vez que estive na casa do Terreiro. Naquela mesma noite, ofereci um jantar em minha residência, e Herberto Salles levou
com ele uma jovem estudiosa de literatura que havia publicado
recentemente um livro sobre a sua obra. Era a professora Ívia
Alves, de quem sou amiga até hoje.
Em dezembro de 1983, inaugurava-se o novo endereço da
Academia de Letras no elegante palacete Góes Calmon, que anteriormente abrigara o Museu de Arte da Bahia, que passou então a
funcionar em antigo prédio histórico no Corredor da Vitória, em
melhores condições de dispor o seu precioso acervo.
A festa de inauguração reuniu a nata da cultura baiana,
marcando uma nova posição na trajetória da Academia, posta
em grande relevo pelas recentes e adequadas instalações.
Na ocasião, fizeram uso da palavra: o acadêmico Cláudio
Veiga, então presidente do sodalício; o governador Antonio
Carlos Magalhaes, patrocinador de tão importante projeto;
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
o acadêmico Pedro Calmon, eminente historiador, representante da Academia Brasileira de Letras, que viera especialmente
para o evento, conferindo com a sua presença maior brilho à
solenidade; e o escritor e acadêmico Eduardo Portella.
Após a inauguração, a primeira posse realizada na nova
sede, em 11 de agosto de 1983, foi a de Luiz Augusto Fraga
Navarro de Brito, recebido pelo confrade Edivaldo Boaventura.
Lembro-me perfeitamente de ter comparecido para cumprimentar o novo acadêmico, que, além de ser primo de meu marido,
era meu amigo de juventude, quando nos reuníamos após as aulas no Campo Grande, para troca de ideias e leitura de poemas.
Eleito em 19 de abril de 1982, tomou posse em seguida o
governador Antonio Carlos Magalhães, que foi recebido por Luiz
Fernando Seixas de Macedo Costa em 30 de novembro de 1983.
Sempre reconhecida por suas ações em defesa da preservação de uma memória cultural, com a mudança para a nova
sede, a instituição ganhou mais força, redobrando suas atividades. Data dessa época minhas primeiras aproximações ao frequentar os eventos e cerimônias da Casa, embora no índice da
Revista da Academia de Letras da Bahia, publicação de grande relevância quando se trata de pesquisar a trajetória de suas efemérides e publicações, conste que eu já teria iniciado minha participação em setembro de 1978, com a publicação de três poemas.
Também já participara, em julho de 1982, do Curso Castro
Alves, naquele ano realizado no Gabinete Português de Leitura,
por achar-se a nova sede no Palacete Góes Calmon ainda em
obras. O texto então apresentado, publicado em opúsculo com
o título de Flor do Sertão, pela Edições Macunaíma, foi posteriormente retomado, depois de pesquisa mais extensa, e publicado
em livro com o título Leonídia, a musa infeliz do poeta Castro Alves,
com apresentação da escritora Edinha Diniz, lançado primeiramente no Rio de Janeiro, na Academia Brasileira de Letras, com
poemas de Castro Alves declamados na ocasião pelos atores
Martha Overbeck e Othon Bastos.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Já em nova sede, durante colóquio sobre Literatura Portuguesa, realizado no dia 29 de setembro de 1983, com a presença
dos autores portugueses Alexandre O’Neill, José Cardoso Pires
e Almeida Faria, fui convidada a falar em nome dos escritores
baianos, saudando os visitantes. E, em 1984, durante as homenagens ao acadêmico e poeta Godofredo Filho, quando lhe foi
outorgada a Medalha Machado de Assis, da Academia Brasileira
de Letras, embora não conste o registro de minha presença, não
poderia ter faltado à conferência da professora Jerusa Pires Ferreira, então estudiosa de sua obra, minha prima e grande amiga.
Registrei a data na coluna Linha D’água, que então passara a assinar, a convite do diretor e acadêmico Jorge Calmon,
no jornal A Tarde, em Salvador, que viria a tornar-se uma fiel
divulgadora das ações da Academia, durante os vinte anos de
sua publicação.
Em junho de 1984, em sessão ordinária, foi procedida a
escolha do nome de Jorge Amado, na qualidade de candidato
único, para a cadeira 21, na vaga de Estácio de Lima; no mês
seguinte, de acordo com as normas da Casa, ele foi eleito, recebendo na mesma ocasião a Légion d’Honneur, a mais alta condecoração concedida pelo governo da França.
Aqui peço licença para relatar um episódio que precedeu a
minha entrada na Academia e que ainda hoje muito me comove.
Numa velha agenda de 1984 (tenho mania de guardar agendas
velhas), encontra-se a seguinte anotação na terça-feira, dia 9 de
outubro: Centro de Estudos Baianos. Entrevista para a revista
Isto É, sobre a Macunaíma.
O poeta Fernando da Rocha Peres, então diretor do Centro, havia me convidado para receber com ele uma jornalista
interessada nas Edições Macunaíma. O Centro ainda funcionava no prédio da antiga Faculdade de Medicina, no Terreiro de
Jesus. Para lá me dirigi, e respondemos a uma longa entrevista.
Não sei se a matéria foi publicada, mas me lembro que, quase no
final, quando já encerrávamos o encontro, aproximou-se de nós
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
a figura simpática do ex-reitor Luiz Fernando Seixas de Macedo
Costa (Guga), recentemente eleito para a Academia de Letras da
Bahia, e conversamos durante alguns minutos. De repente, ao
despedir-se, ele me abraçou carinhosamente e disse: “Você será
a próxima acadêmica, a próxima vaga será sua”. Sorrindo, me
escusei: “Ainda estou nova para isso”, respondi, e rimos juntos.
Claro que não levei a sério e me esqueci do assunto.
Os dias seguintes passaram tranquilamente. Na agenda, só
as anotações de sempre: encontros, projetos, livros, idas a Mar
Grande... Mas, no dia 21, domingo, registrei uma nota infeliz:
“Fomos jantar fora, no restaurante Muller, e ao voltarmos encontramos a notícia sobre um terrível acidente com Guga Macedo Costa, que está em coma”.
Consternação geral.
Dias depois, anotei de novo na agenda: “Guga continua
em coma”. E, no dia seguinte, numa página vazia, anotava, simplesmente: “Morte de Guga”.
Assim, em 30 de outubro de 1984, ocorreu o falecimento do acadêmico Luiz Fernando Seixas de Macedo Costa,
velado em cerimônia fúnebre no salão nobre da Reitoria. A
cidade estava traumatizada. Só se falava do trágico acidente e
daquela morte tão inesperada. Registrei a ocorrência na coluna Linha D’água, como antes já havia registrado o pesar pelo
acidente que o vitimara.
No dia 22 de novembro, o acadêmico e secretário da
Educação e Cultura, Edivaldo Boaventura, em seção de saudade na Academia de Letras, externava o pesar do mundo
acadêmico pelo acontecimento. E foi declarada a vacância da
cadeira número 13.
O resto do ano transcorreu sem grandes acontecimentos.
O poeta Carlos Cunha já me havia sinalizado que o meu
nome estava sendo lembrado para concorrer à próxima eleição.
E então me lembrei das palavras que ouvira naquele dia: “Você
será a próxima será a próxima acadêmica...”. E senti um imenso
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
sentimento de culpa, como se de algum modo pudesse ter contribuído para isso...
No dia 7 de janeiro de 1985, em sessão extraordinária,
convocada especialmente para indicação dos nomes que concorreriam à cadeira 13, vaga com o falecimento do acadêmico
Luiz Fernando Seixas de Macedo Costa, foram sufragados
quatro nomes: Myriam Fraga, Mario Cabral, Remy de Souza
e Ariovaldo Mattos. Apenas os dois primeiros obtiveram número suficiente de votos para concorrer à eleição definitiva,
que foi marcada e realizou-se no dia 6 de fevereiro do mesmo
ano. Na ocasião, como nenhum dos dois candidatos obtivesse dois terços do total de votos, a sessão foi encerrada, e uma
nova convocação foi feita para outra eleição que se realizaria
45 dias depois.
Nesse meio tempo, a 7 de março, ocorreu a posse de Jorge
Amado na cadeira 21, recebido pelo escritor e acadêmico Wilson
Lins, quando foi realizada uma exposição de edições raras dos
livros do recém-chegado e seu busto, em bronze, foi colocado
no jardim da Academia.
No dia 25 de março, em sessão especial, conforme as normas, foram novamente apresentados os nomes que constituiriam
a lista de concorrentes à cadeira 13. Votaram 19 acadêmicos e,
de acordo com o resultado obtido, foi marcada para 24 de abril,
cumprindo-se os estatutos, a próxima eleição que contaria apenas com uma concorrente, Myriam Fraga, que obtivera maioria
de votos na indicação.
Enquanto isso, vivia-se um momento complicado na
política brasileira, e os escritores preparavam-se para o Encontro de Escritores, organizado pela União Brasileira de Escritores (UBE), a realizar-se em São Paulo, dos dias 17 a 21 de
abril de 1985, quando poderiam, mais uma vez, defender suas
posições, como haviam feito em 1945. Havia uma esperança
de que com a Nova República recuperássemos finalmente a
liberdade tão ambicionada.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Jorge Amado, que fora o vice-presidente no Congresso de
1945, dessa vez fora convidado para participar da mesa, no último
dia, junto com outras personalidades da cultura e da política. O presidente Tancredo Neves agonizava, e temia-se que, com sua morte,
houvesse um retrocesso político. O clima estava tenso. Quando o
vice-presidente eleito, José Sarney, entrou no recinto, ladeado por
Jorge Amado e Luís Viana Filho, houve um certo relaxamento na
plateia. Mas a chegada de Ulisses Guimarães foi apoteótica, um estrondar de palmas e milhares de vozes cantando o Hino Nacional.
No dia seguinte, tomei o avião para Salvador.
Chovia torrencialmente, e não conseguimos aterrissar,
tendo ido parar no aeroporto de Aracaju, onde ficamos aguardando no pátio um bom tempo para ver se melhoravam as condições de voo. Foi então que o comandante, deixando a cabine,
nos informou que o presidente Tancredo Neves havia falecido.
Embora já se esperasse a notícia houve um momento de
preocupação. E agora?
Acabrunhados, pernoitamos em Sergipe e no outro dia
embarcamos de volta para Salvador, onde passamos o dia grudados na televisão aguardando notícias.
O dia seguinte, 24 de abril, era o dia da eleição na Academia. Chovia a cântaros, e eu me perguntava se haveria sessão...
E haveria quorum?
No final da tarde, veio a notícia por telefone: eu fora finalmente eleita, por unanimidade dos acadêmicos presentes, no
primeiro escrutínio. Convidada a comparecer para confirmar
minha aceitação aos confrades, cheguei à Academia debaixo da
maior chuva e sob aplausos dos confrades.
Em nota na Linha D’água postei a seguinte declaração,
sob o título O LADO ESCURO DA ALEGRIA:
No último dia 24 de abril, numa tarde chuvosa e triste,
quando os corações de todos os brasileiros voltavam-se machucados para a histórica cidade de São João del Rey, onde,
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
no Solar dos Neves, era velado aquele que se transformara na esperança de seu povo, aqui, em Salvador, em outra
casa ilustre, o Solar Góes Calmon, os membros da Academia de Letras da Bahia, reunidos apesar do dia infausto e
da violência da chuva que caía, concediam-me a honra de
ocupar, na qualidade de membro daquela egrégia corporação, a cadeira de nº 13, que teve como último representante o saudoso e sempre lembrado reitor Luiz Fernando
Seixas de Macedo Costa, tão prematuramente desaparecido.
Assim, na vida da gente tantas vezes a alegria e a tristeza
andam juntas, faces da mesma moeda, efígies gêmeas da
mesma medalha. Aos confrades que me honraram com a
sua escolha, os meus agradecimentos mais sinceros, e aos
meus companheiros de geração e amigos de todas as horas, a
certeza de que o reconhecimento de nosso trabalho é o mais
importante. Valeu.
Recebida pelo acadêmico e professor Cláudio Veiga, presidente da Academia, tomei posse no dia 30 de julho de 1985, tive
uma noite de festa, de muita alegria; presentes meus pais, marido,
filhos, amigos e confrades; a cerimônia encerrou-se com o Madrigal
da Reitoria cantando músicas do disco/livro A lenda do pássaro que
roubou o fogo. E aqui aproveito para fazer uma homenagem ao maestro Lindemberg Cardoso, a quem devemos essa homenagem.
No mês seguinte, fiz uma viagem aos EEUU a convite do
Departamento de Estado daquele país, em companhia de outros colegas escritores. Sobre as impressões dessa viagem, ao
regressar, realizei palestra na Academia em sessão ordinária e,
posteriormente, organizei um livro com os poemas que, iniciados durante a viagem, ainda hoje, na maior parte, encontram-se
inéditos. Aliás, este é um dos pontos de minha personalidade:
gosto de escrever, mas não tenho muito interesse em publicar,
gosto de guardar os originais para releituras em que refaço os
textos muitas vezes. Reconheço que essa prática não é muito
saudável, porque o leitor, afinal, é quem nos confere existência.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Minha primeira publicação em nossa revista, no número
33, em novembro de 1985, já então empossada como acadêmica,
foi: “A criação literária - um depoimento pessoal”, palestra pronunciada em sessão plenária do Conselho Permanente da Mulher Executiva, da Associação Comercial da Bahia, no dia 29 de
maio de 1985, realizada, portanto, antes da posse na Academia.
Nesse depoimento, procurei traçar um breve roteiro de minha
atividade literária e de minhas concepções sobre o fazer literário
no momento em que acabara de publicar um novo trabalho, em
parceria com o gravador Calasans Neto e o músico Carlos Pita,
A lenda do pássaro que roubou o fogo, marca que considero importante em minha trajetória.
O número seguinte da revista traz a publicação de meu
discurso de posse, pronunciado no dia 30 de julho de 1985, mas
somente publicado em 1987.
Desde então, venho colaborando regularmente com a publicação de poemas, textos e discursos acadêmicos, como assinala o índice já citado. Dentre esses, gostaria de ressaltar o discurso
pronunciado quando da inauguração do pavilhão da Biblioteca
Jorge Calmon, justíssima homenagem a um dos mais distinguidos e dedicados membros de nossa Casa, publicado no número
38 da revista de 1992.
Lembro também que, na data de 27 de novembro de 1985,
realizou-se nesta Academia o lançamento do livro Cantos delituosos, romance, da escritora Judith Grossmann, e, no mês seguinte,
a entrega do Prêmio Cidade do Salvador, no gênero romance,
ao livro O riso da raposa, da escritora e confreira Gláucia Lemos.
O primeiro ano como acadêmica encerrou-se com a homenagem a Pedro Calmon, a inauguração de seu retrato e do
mostruário com o fardão acadêmico, oferecido pelos baianos,
por ocasião de sua posse na Academia Brasileira de Letras.
Nossa primeira e mais importante atuação na área de eventos deu-se no ano seguinte com a celebração do centenário de
Manuel Bandeira, que executamos contando com a prestimosa,
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
criativa e dedicada colaboração do poeta Carlos Cunha, que então exercia o cargo de Diretor Administrativo desta Casa. Nunca
será demais lembrar-se a atuação de Carlos Cunha no tempo que
passou pela Academia. Aliás, ele era um incentivador de ações
culturais por onde passava. O centenário de Bandeira foi uma
estreia feliz, realizada em março de 1986, no aniversário do poeta. Contando com a dedicação de Cunha e o apoio financeiro do
BANEB, àquela época comandado por Lafayette Pondé Filho,
conseguimos realizar um seminário em que não faltou sequer
uma publicação e um cartaz com o desenho das 3 mulheres do
Sabonete Araxá, que inspiraram o célebre poema de Bandeira,
infelizmente não preservado, além do brilho dos palestrantes e
dos atores que declamaram poemas do autor.
A década de 1980 marcou um momento crucial na minha
vida. Iniciei minha carreira de poeta — se é que se pode chamar
assim — na adolescência, mas, somente em 1963, ousei publicar
um poema numa revista literária e comecei a frequentar lugares
em que se cultivava a literatura e a fazer amizades que enriqueceram minha vida.
O encontro com Calasans Neto e com os remanescentes
da revista Mapa, dos quais são hoje confrades na Academia, Fernando da Rocha Peres e Florisvaldo Mattos, me estimularam a
definir um caminho em minha vida. Com eles publiquei 5 Poetas,
antologia de que também participaram Godofredo Filho e Carvalho Filho, veteranos da Academia.
Quando tomei posse na ABL, já tinha uma estrada percorrida, mais de vinte anos na lavoura da poesia e alguns livros publicados, uma travessia que talvez um dia ainda me
cumpra resgatar.
Mas foi em 1980, ao conhecer Geraldo Machado, que então exercia o cargo de Diretor da Fundação Cultural do Estado
da Bahia, que descobri que, a par de escrever e publicar poemas,
eu também tinha uma vocação para a administração cultural e
iniciei, assim, uma nova etapa em minhas atividades.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Na década de 1980, várias portas se abriram para mim;
vários caminhos que, embora em roteiros diferentes, sempre
se encontram, muitas vezes se tocam: a Fundação Cultural
do Estado, por meio de Geraldo Machado; a coluna Linha
d’água, iniciativa de Jorge Calmon, em 1984; a posse na Academia de Letras em 1985; e, finalmente, a Fundação Casa de
Jorge Amado em 1986.
Os trabalhos desenvolvidos nessas duas instituições fazem com que elas se aproximem na luta pelo desenvolvimento
da história e da literatura, diversificando e ampliando seus limites. De minha parte, sempre procurei orientar minhas atividades
buscando encontrar na parceria com outras instituições novas
perspectivas, novos interesses. Foi assim que foi realizado, em
agosto de 1988, festejando os 30 anos de publicação do romance Gabriela, cravo e canela, o Encontro Internacional 30 Anos de
Gabriela, contando com a participação de vários estudiosos e tradutores de Jorge Amado: Luciana Stegagno Picchio, Curt Meyer
Clason, Antonio Maura, Moacir Scliar, Antonio Olinto, Ricardo
Ramos e outros que tanto nos prestigiaram naquela ocasião. Foi
o início de uma parceria que vem se confirmando a cada dia.
Muitos foram os projetos e cursos aqui realizados. Percorrendo as páginas da Revista da Academia, as efemérides ali registradas,
dou-me conta da importância dessa instituição, já quase centenária,
mas sempre atenta e aberta à renovação e à continuidade.
Mas o momento maior das Academias é a renovação de
seus quadros nas cerimônias de posse, ocasiões em que, ao celebrar-se a passagem, a tristeza da perda confunde-se com a alegria de receber um novo confrade.
Tive a honra de receber nesta Casa pessoas que, além do respeito que merecem e que assegurou sua eleição, são a mim muito
caras por tudo o que representaram em minha vida, na lealdade e no
afeto: Geraldo Machado, Evelina Hoisel, Zélia Gattai, em cuja convivência enriqueci a minha vida e, finalmente, Mãe Stella de Oxóssi,
símbolo da sabedoria e da resistência das nossas origens.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Quero registrar dois momentos importantes na minha
vida acadêmica: a criação do Curso Jorge Amado, como uma
atividade constante da Academia de Letras e da Fundação Casa
de Jorge Amado, com a publicação dos anais, completando este
ano a quinta edição, desejo acalentado durante muitos anos e
finalmente realizado pelo acadêmico Aramis Ribeiro Costa, ao
iniciar sua gestão na Presidência.
A realização do Seminário Myriam Fraga, iniciativa da
confreira e grande amiga, hoje nossa Presidente, Evelina Hoisel, e a consequente publicação do livro, Poesia e memória pela
UFBA, que contou também com a participação da escritora
Cássia Lopes, com o qual muito me senti reconhecida e homenageada, e a edição de Poesia reunida, em edição da Academia de
Letras da Bahia em convênio com a Assembleia Legislativa do
Estado da Bahia, poderiam, por sua importância, ser um ponto final neste depoimento que aqui apresento. Mas, se a vida
é breve, a arte é longa. Na próxima semana, iniciaremos mais
um curso Jorge Amado e, no dia 9 de setembro, será lançado
aqui na Academia, meu novo livro Rainha Vashti, uma edição
da Roda, com desenhos de Olga Gomez, e uma apresentação
de Cleise Mendes, outra confreira com quem temos a honra de
partilhar este sodalício.
Se, no princípio desta fala, afirmei que, naquela época,
entrar na Academia de Letras não fazia parte de meus sonhos
mais próximos, hoje posso afirmar que aqui encontrei não um
sonho, que tantas vezes ao se realizar nos decepciona, mas uma
realidade construída à sombra de um lema que nos serve de guia
e paradigma: Servir à Pátria honrando as Letras.
A Academia de Letras da Bahia não é somente uma
Casa, a nossa casa, mas é também uma grande família, na qual
a amizade e a dependência se renovam a cada encontro: nas
sessões ordinárias das quintas-feiras, nas efemérides, nas eleições, nas posses, nas muitas atividades que nela se propõem
e se realizam.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Como em toda grande família, temos as nossas divergências, os contrastes, as diferenças, mas é na oposição dos contrários que vamos construindo a nossa trajetória. Na solidariedade,
na presença constante, até na grande passagem.1
Myriam Fraga é poeta, diretora-executiva da Fundação Casa de Jorge
Amado, conferencista no Brasil e no exterior. Publicou, dentre outros,
Sesmaria (Prêmio Arthur de Sales), Femina e Poesia Reunida, o ensaio
Leonídia: a musa infeliz do poeta Castro Alves, e obras infanto-juvenis
sobre vultos como Castro Alves, Carybé e Jorge Amado. Desde 1985
ocupa a Cadeira nº 13 da ALB.
Depoimento lido pela acadêmica Myriam Fraga, em Sessão ordinária, aberta ao público, na Academia de Letras da Bahia, no dia 30 de
julho de 2015.
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A DECISIVA INFLUÊNCIA
DO CONSELHEIRO NEWTON
SUCUPIRA NA EVOLUÇÃO
DO ENSINO SUPERIOR BRASILEIRO
ROBERTO FIGUEIRA SANTOS
E
m determinado momento da história do ensino universitário brasileiro, - isto é, na metade da década de 1960 -,
tornara-se inadiável para os órgãos superiores da gestão educacional em nosso país, estabelecer com clareza a regulamentação dos já então designados “cursos de pós-graduação”. Essa
expressão vinha sendo aplicada a programas variados, sem que
existisse uma diretriz definidora do seu adequado uso pelas
instituições de educação e de pesquisa. A ausência de uma clara
conceituação oficial dessas atividades vinha dificultando, ademais, a apreciação pelo Conselho Federal de Educação, dos
estatutos e dos regimentos de Universidades e Faculdades nas
quais eram elas oferecidas.
O então Ministro da Educação e Saúde, Deputado Oliveira Brito, submeteu, então, ao Conselho Federal da Educação,
uma consulta encaminhada ao Conselheiro Newton Sucupira,
integrante da Câmara de Ensino Superior daquele órgão, para
ser respondida. O Parecer gerado pela consulta em apreço, depois de devidamente analisado pelas instâncias superiores, recebeu o número 977, aprovado em 3 de Dezembro de 1965.
No presente ano de 2015, estamos, pois, comemorando o cinquentenário desse documento que figura entre os de maior
importância na história da Educação Superior no nosso país.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
O Professor Sucupira havia se formado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, quando foi aluno do ilustre
filósofo Professor Lourival Vilanova; e aprofundou, oportunamente, os seus estudos na disciplina da Filosofia da Educação,
contando, para isso, com sólida base em leituras na língua alemã
e em fontes francesas, inglesas e norte-americanas. O Professor
Sucupira veio a ser professor titular da Faculdade de Educação
da mesma Universidade, cargo que exerceu com o brilho invariavelmente emprestado às suas diversas atividades. O Parecer
número 977/65 do Conselho Federal da Educação, por ele relatado e que serviu de referência para a extraordinária expansão
da pós-graduação nas Universidades brasileiras, reflete, a cada
passo, a sua extraordinária erudição.
Tendo em vista a grande e merecida repercussão que teve
o Parecer 977/65, a Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior (CAPES) decidiu homenagear o seu relator atribuindo o nome de “Plataforma Sucupira” à “nova e importante ferramenta que serve para coletar informações, realizar
análises e avaliações e ser base de referencia do Sistema Nacional
de Pós-graduação (SNPG)”.
Distinguiu-se, desde logo, a pós-graduação, em duas
grandes modalidades, designadas, respectivamente como
“stricto sensu” ou “lato sensu”. Somente as primeiras, abrangendo os “mestrados” e os “doutorados”, serão analisadas na
presente alocução, por serem as que melhor caracterizaram
a forma inovadora e mais avançada da pós-graduação. Essas
duas categorias se diferenciam entre si pelo maior aprofundamento nos estudos pertinentes ao doutorado, assim como pelo
diferente grau das exigências quanto aos trabalhos de fim de
curso, como sejam, respectivamente, o da “dissertação” para o
mestrado e o da “tese” para o doutorado. O diploma de mestre, no entanto, nem sempre é obrigatório para que o aluno se
inscreva no doutorado.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
A modalidade “stricto sensu”, alem de comportar as
variantes “mestrado acadêmico” e “doutorado acadêmico”,
também abrange os “mestrados e doutorados profissionais”,
previstos no parecer 977/65. Diferem entre si as modalidades dos mestrados e doutorados “acadêmicos”, pelo grau de
profundidade das diferentes disciplinas dos respectivos currículos, obviamente, por ser mais intensa nos doutorados do
que nos mestrados; e por não ser obrigatória a apresentação
dos trabalhos de fim de curso, isto é, da “dissertação” para o
mestrado e da “tese” para o doutorado. A Professora Tânia
Fischer, da Universidade Federal da Bahia, tem se dedicado,
competentemente, ao estudo e à disseminação dos “mestrados e doutorados profissionais”.
As variedades da categoria “lato sensu”, por sua vez, designam os demais programas de ensino superior realizados após
a graduação, incluindo cursos de especialização, de aperfeiçoamento e de extensão; e se destinam ao aprofundamento em
práticas restritas aos determinados campos profissionais, sem
que se baseiem nos objetivos de ordem cultural ou acadêmica.
Cursos dessa natureza podem ser, mesmo, realizados em instituições não-universitárias. O mais típico exemplo dos cursos de
especialização está nas “residências” da área médica, os quais
não se limitam aos hospitais classificados como “de ensino”.
A consulta dirigida pelo Ministro da Educação ao Conselho
Federal de Educação já assinalava que os programas de pós-graduação “stricto sensu” (mestrados e doutorados) se destinam a
formar professores para os cursos superiores e a preparar pesquisadores para as áreas das ciências exatas e da natureza, das ciências
humanas, das letras e das artes. Antes da regulamentação dos cursos de pós-graduação “stricto sensu”, os candidatos às atividades
de pesquisa e ao magistério em escolas superiores, frequentemente, buscavam em países estrangeiros, o aprofundamento da sua
formação. Igualmente, profissionais de alto nível ocupados em
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
empresas do setor produtivo de natureza pública ou privada, passaram a valer-se dos programas de mestrado e de doutorado no
próprio Pais e já não estiveram tendentes a procurar no exterior
o aperfeiçoamento na sua formação. Ocorreu, a partir da aprovação do Parecer 977/65, uma grande expansão nas atividades universitárias de pesquisa e ensino nas nossas Universidades, o que
acentuou o reconhecimento de quanto foi oportuna a sua regulamentação. Em primeiro lugar, cresceram em duração os currículos antes limitados à graduação, para alcançar a pós-graduação, devido ao grande aumento verificado, nas décadas mais recentes,
dos conhecimentos e das técnicas baseadas em saberes científicos
de feitio inovador. Além disso, havia se tornado imprescindível
contar, também em números crescentes, com professores universitários devidamente preparados, devido ao grande aumento no
número de alunos que, tendo completado a sua educação básica,
passaram a ter condições de acesso aos cursos superiores. Invariavelmente, a exigência para os alunos que desejassem inscrever-se
na pós-graduação, era que houvessem completado a graduação
no mesmo ramo do saber ou em ramo afim do currículo a ser
frequentado na “pós-graduação”.
De outra parte, cumpre lembrar que o interesse pela pesquisa e pela busca de ideias inovadoras em assuntos pertinentes
às ciências, às artes e as letras, deve ser estimulado junto aos
jovens desde quando se iniciam nos programas fundamentais da
educação, muito antes, portanto, de os mesmos jovens começarem os estudos universitários.
Terminada a pós-graduação, estudantes particularmente vocacionados para a pesquisa, em números que crescem rapidamente, têm continuado a aprofundar-se nas atividades de
“pós-doutorado”, em instituições de diferentes países e de várias
regiões do Brasil.
É impressionante o ritmo de crescimento da produção
científica nas Universidades brasileiras, nos tempos mais recentes, quando medido pelo número de publicações em periódicos
60 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
credenciados, refletindo a regulamentação da pós-graduação baseada no Parecer 977/65.
Além da expansão dos cursos de mestrado e doutorado,
vários outros fatores têm concorrido para o aumento da produção científica no Brasil. Um dos mais importantes dentre esses,
foi a reestruturação das Universidades federais por força
dos Decretos-leis de números 53/66 e 252/67.
Vale aqui, uma breve referência de natureza histórica. A
autorização e o reconhecimento de cursos de nível superior no
nosso território, enquanto colônia, haviam sido proibidos pela
Metrópole portuguesa durante os trezentos anos decorridos
entre os primeiros contactos da nossa população com a civilização europeia, no ano de 1500, e o ano de 1808, quando ocorreu a transmigração da família real, de Lisboa para o Brasil,
sua principal colônia, devida à invasão de Portugal pelas tropas
napoleônicas. Os poucos portadores de diplomas de cursos
superiores que exerceram as respectivas profissões no Brasil
durante aquele período, haviam sido formados no estrangeiro,
quer fossem brasileiros ou originários de outros países. Devido
à rápida expansão demográfica aqui ocorrida durante aqueles
trezentos anos, tinham se tornado muito escassos esses profissionais em relação à população servida. Quando surgiram os
primeiros cursos superiores no Brasil, nas áreas da saúde e do
direito, alguns ainda criados pelo próprio Regente Dom João
no ano de 1808, foi enorme a pressão para a mais rápida preparação dos futuros profissionais. Nas instituições educacionais
de nível superior, criadas então e logo após, não se atribuiu
a devida ênfase às disciplinas pré-profissionalizantes, correspondentes aos setores básicos do conhecimento, a exemplo da
Física, da Química, da Biologia básica, das Geo-Ciências, da
Matemática, das Ciências Humanas, das Letras, que passaram
a ser ensinadas e pesquisadas como parte dos currículos de
cada qual das escolasdedicadas à formação de profissionais
para os diferentes ramos do saber.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Esse mesmo padrão de ensino e de pesquisa nos setores básicos do conhecimento foi adotado em todas as escolas
superiores brasileiras criadas ao longo do século XIX e até o
ano de 1965, mesmo depois de essas escolas haverem passado a integrar as nossas primeiras Universidades. Por força dos
citados decretos-leis, foi alterada a estrutura das Universidades
oficiais: para exemplificar com a Matemática, cabe lembrar que
o ensino e a pesquisa nessa disciplina, em cada Universidade,
eram exercidos, até então, fracionariamente, nas Faculdades de
Engenharia, de Arquitetura,de Economia e de Filosofia, o que
impedia a formação de “massa crítica” suficiente para assegurar
a pesquisa relevante e para criar a pós-graduação “stricto sensu”
na disciplina da Matemática. O Poder Público, tendo reconhecido esses inconvenientes, fez emitir os citados decretos-leis, por
força dos quais ficaram proibidos, em cada Universidade, o ensino e a pesquisa de uma mesma disciplina em mais de uma das
suas unidades. Essa nova estrutura das Universidades foi mais
um fator a assegurar o grande crescimento da pós-graduação, o
que incluiu a expansão da pesquisa nos setores básicos do conhecimento nas nossas Universidades oficiais.
Enquanto ocorriam essas transformações, no final da década de 1960, pouco tempo após a adoção da nova estrutura universitária, o Governo Federal começou, timidamente, a admitir
em regime de dedicação exclusiva, com o salário correspondente, uns poucos membros do pessoal docente das Universidades
oficiais. É em geral reconhecido que o exercício em regime de
dedicação exclusiva da função docente nas Universidades, assegura padrões de qualidade nas pesquisas, que são muito superiores aos que se observam quando o regime de trabalho de todos
os professores é limitado aos horários da dedicação parcial. Nas
Universidades mantidas pelo Poder Público, tem crescido significativamente, nas décadas mais recentes, o número de professores aos quais é assegurado o regime da dedicação exclusiva,
institucionalizado em decreto-lei federal de 1980.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Esclarecidas as principais razões do recente aumento da
produção científica no país, medida pelas publicações em periódicos credenciados, cumpre, ainda, procurar entender o baixíssimo número de patentes depositadas pelos pesquisadores
brasileiros ao longo do mesmo período de tempo. Na verdade,
tem faltado na produção científica nacional, o sentido de inovação nas ideias e nos temas examinados, em muitos dos trabalhos
aceitos pelos periódicos credenciados. Esse aspecto da produção científica e tecnológica no Brasil foi já percebido, há algum
tempo, pelos nossos órgãos oficiais, que têm procurado remediá-lo sem que os resultados até agora tenham sido satisfatórios,
pois, entre outros aspectos, depende da aproximação pró-ativa
entre a academia e o setor produtivo.
A grande repercussão alcançada pelas atividades do Professor Newton Sucupira ocasionou o convite que lhe foi dirigido
pela Fundação Getúlio Vargas para lecionar no excelente programa do Instituto de Estudos Avançados em Educação (ISAE)
daquela entidade, dirigido pelo Ex-Ministro Raimundo Muniz
de Aragão. A aceitação desse convite fez com que o Professor
Sucupira, se deslocasse, com toda a família, da sua residência no
Recife para a cidade do Rio de Janeiro, onde desempenhou as
suas tarefas de professor com o excepcional brilho de que sempre se revestiram as suas atividades.
Entre os pareceres relatados pelo Conselheiro Newton
Sucupira perante o Conselho Federal da Educação, com especial
interesse para o Estado da Bahia, incluiu-se o que assegurou a
autorização para o funcionamento da Universidade Estadual de
Feira de Santana. O Governo do Estado da Bahia, merecidamente, o homenageou ao atribuir seu nome à Escola Técnica
situada no bairro de Mussurunga, em Salvador.
Na presente análise acerca das razões e das consequências
do recente aumento na produção científica no Brasil, ressalta
uma característica da mais absoluta importância: a concepção
e a regulamentação dos cursos de pós-graduação baseadas do
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Parecer 977/65 do Conselho Federal de Educação, relatado pelo
Conselheiro Newton Sucupira, tem sido fator da máxima importância em promover a expansão no número de artigos científicos publicados em livros e em periódicos credenciados.1
Roberto Figueira Santos. Pesquisador e professor emérito, foi reitor e
reformador da Universidade Federal da Bahia (1967-1971), presidente
do Conselho Federal de Educação, Governador da Bahia (1975-1979),
presidente do CNPq, Ministro da Saúde e deputado federal. Autor
de A universidade e os novos propósitos da sociedade brasileira, Ensino médico
e assistência à saúde, Reflexões sobre temas da atualidade, Desigualdades sociais,
educação e ação política, Um mandato parlamentar a serviço das causas sociais.
Como memorialista escreveu Vidas paralelas e Na Bahia das últimas décadas
do século XX. É presidente de honra do Instituto Geográfico e Histórico
da Bahia, titular das Academias de Letras da Bahia, de Medicina e Baiana
de Educação, idealizador e presidente da Academia de Ciências da Bahia.
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O ARTISTA E O PSICANALISTA:
UM ENCONTRO POSSÍVEL
URANIA TOURINHO PERES
Em nenhum lugar uma torre.
Rainer Maria Rilke
O
s artistas foram e continuam sendo grandes mestres para
o psicanalista. Goethe, Leonardo da Vinci, Michelangelo,
Shakespeare, Velázquez e muitos outros contribuíram decisivamente para a construção do corpo teórico da psicanálise. Sobre
Schnitzler, Freud chegou a afirmar o seu temor de encontrar em
sua obra mais clareza e mais ensinamento sobre a alma humana
do que ele estava conseguindo por meio de seus pacientes. A
música o inquietava, e ele dizia da sua dificuldade em suportar o
que não pudesse dominar pela razão. A música era por demais
enigmática. O que mais o entusiasmava era a escultura, e a fascinação pelo Moisés de Michelangelo o manteve em muda contemplação por horas e horas.
Não apenas os artistas e suas produções transmitiram-lhe
ensinamentos, como também ele foi considerado um mestre
pelos surrealistas. Para ele, a obra de arte era o exemplo, por
excelência, de um dos destinos da pulsão: a sublimação. Ela lhe
indicava que o homem podia encontrar uma satisfação pulsional
mediante uma dessexualização do objeto e sua supervalorização
pelo reconhecimento social. Tal vicissitude da pulsão apresentava um trajeto diferenciado, escapava da censura, ou seja, do
recalque, conquistando força criativa.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Lacan desenvolveu esse conceito. O que acionaria o processo criativo seria a existência de um vazio, um buraco e o
impulso de preenchê-lo. Para Lacan, a existência desse vazio é
o pressuposto básico da entrada do homem no universo simbólico. Ao perder sua dimensão instintiva, que a passagem da
natureza para a cultura determina, o homem sofre uma perda,
passa a ser regido por esse vazio e por uma busca incessante de
preenchimento. Esse vazio constituinte Lacan vinculou, teoricamente, a das Ding, ou seja, a Coisa. Surge, então, a definição:
das Ding é o que do real padece do significante. É o resto de
real que não pode ser preenchido pelo simbólico. Nenhuma
palavra pode dizê-lo, ponto abissal, abismo e horror, central da
angústia, inquietante estranheza. Mas é também a partir desse
ponto que o homem pode criar. Para ele, a sublimação consiste, exatamente, em elevar um objeto à dignidade da Coisa. E
tudo o que o homem cria são produções imaginárias, que tentam tamponar esse real, tentam “colonizar” das Ding, para usar
uma expressão lacaniana.1
Na arte, vamos encontrar o exemplo maior dessa elevação do objeto, dessa supervalorização. Essa relação entre o
vazio e a arte é trabalhada de uma maneira bastante interessante no livro de Darian Leader, O roubo de Mona Lisa: o que
a arte nos impede de ver.2 Leader parte de um acontecimento: o
roubo do quadro de da Vinci, na manhã de 21 de agosto de
1911, realizado por Vicenzo Peruggia, um pintor de parede.
A ação aconteceu com tanta tranquilidade que só foi descoberta 24 horas depois. Jornais do mundo inteiro noticiaram o
desaparecimento da pintura, talvez a mais reproduzida na história da arte. Multidões passaram para olhar o vazio deixado
pelo quadro. Kafka e Max Brod também foram contemplar o
espaço vazio. Brod comenta, em seu diário, que a imagem da
Mona Lisa estava por todos os lados, “tinha logrado saturar
a cultura em todos os seus meios de comunicação”.3 E exatamente quando desaparece.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Como podemos explicar [...] legiões de homens, mulheres
e crianças franceses indo para o Louvre para ver, não uma
pintura, mas a ausência de uma pintura? Era por causa do
espaço vazio deixado pela desaparecida Mona Lisa que as
pessoas afluíam e se aglomeravam para ver. Era menos o
caso de ir ver uma obra de arte porque ela estava ali para
ser vista do que, pelo contrário, o caso de ela ali não estar.4
O que de fato teria roubado Vicenzo ao roubar a Mona
Lisa e mantê-la fechada, escondida em seu pequeno apartamento durante dois anos?
Vamos aos artistas.
Marcel Duchamp (1887-1968) foi considerado por alguns como o da Vinci da modernidade — a arte é uma coisa
mental —, o maior artista de seu século e o grande iconoclasta
da arte moderna. Sua atitude estética da “beleza da indiferença”5
marca um posicionamento: ideia rigorosa, precisão conceitual,
execução asséptica. Duchamp, um espírito cartesiano. Para ele,
desde o impressionismo, a pintura tinha se tornado algo de retina, da pura sensação para satisfação dos olhos; era, pois, necessário acrescentar-lhe inteligência. A pintura deveria ser colocada
a serviço da mente. O artista nunca saberia o que de fato realiza, entretanto, somente por meio da arte ele pode transcender,
ir além do estado animal.6 Sua obra é por muitos considerada
como cínica, hilariante, mas profundamente pessimista.
Talvez o seu trabalho mais revolucionário, muito embora
todos o tenham sido, seja O grande vidro, cujo nome completo,
em verdade, é La mariée mise à nu par ses célibataires, même (Le grand
verre), cuja execução durou oito anos e acabou sendo considerado, pelo artista, como inacabado. Fabricação complexa de vidro
e metal e significado obscuro. O trabalho, uma mistura de conceitos verbais e visuais de difícil compreensão.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Para Duchamp, não era um quadro, porém, um “atraso”.
Ele jogava com as palavras, grande criador de chistes e nonsenses.
Portador de fina ironia. Explicou:
É somente uma questão de conseguir deixar de ver a coisa
como um quadro — de fazer um “atraso” dela no modo
mais geral possível, recorrendo não tanto aos diferentes
sentidos em que se pode entender a palavra “atraso”, mas
a totalidade deles com sua carga de indecisão.7
Assim colocada, a palavra “atraso” permanece como um
enigma que muitos procuram decifrar, já tendo sido relacionada à teoria da duração de Henri Bergson, à prática medieval da
alquimia, ao medo inconsciente do incesto. Contudo, em entrevista a Pierre Cabanne, ele revela que simplesmente a palavra
“retardo” agradava-lhe, era poética “no sentido mais mallarmeano da palavra.8
[O grande vidro] Não é para ser olhado (com olhos estéticos); era para ser acompanhado como um texto literário
tão amorfo quanto possível, que jamais tomou forma; e os
dois aspectos, o vidro para os olhos e o texto para os ouvidos e a compreensão, eram para complementarem-se, para
impedir que um adquirisse uma forma literária e o outro,
uma forma plástico-estética.9
Duchamp escreveu uma série de notas que deveriam
acompanhar o quadro e as reuniu no que chamou de caixa verde,
apesar de ter afirmado que “o efeito de uma obra de arte visual
não podia ser comunicado por meio de palavras”.10 Mediante essas notas, sabe-se que, para o artista, O grande vidro tem um tema:
o mecanismo do desejo sexual. A noiva é um motor de combustão interna, movido pela “gasolina do amor” (uma secreção de
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
glândulas sexuais) e um “magneto de desejo”. Duchamp ironiza
o tema do desejo e da sexualidade. Os celibatários, em número
de nove, “nove moldes machos”; um moedor de chocolate diagramático representando a masturbação; o celibatário mói seu
próprio chocolate.11
O artista notabilizou-se pelo chamado ready-made, um
produto industrializado, feito por máquinas, sem pretensões estéticas e escolhido por ser “indiferente aos olhos e ao mesmo
tempo pela ausência de bom ou mau gosto”.12 Uma pá para retirar neve, comprada em Nova York, ao que tudo indica, foi,
verdadeiramente, o primeiro ready-made. Escreve-lhe um título
In advance of broken arm (Em antecipação ao braço quebrado) e
assina: “(from) Marcel Duchamp 1915”. Amarra-lhe uma corda
e pendura-a no teto. Anteriormente, já havia realizado a Roda de
bicicleta, contudo, ele próprio admite que contemplar a roda da
bicicleta transmitia-lhe um prazer análogo ao de contemplar o
fogo na lareira. Novamente uma referência ao tempo: se, por
um lado, O grande vidro foi elaborado em aproximadamente oito
anos, por outro, In advance foi feito de um lance. “Não tenho
muita certeza se o conceito de ready-made não foi a única ideia
realmente importante saída de minha obra”, disse Duchamp.13
É muito provável que Lacan tenha-se inspirado na definição duchampiana dos ready-mades quando definiu a sublimação
como a elevação do objeto à dignidade da Coisa, esse movimento de colonização da Coisa. A realização dos ready-mades e o falar
sobre eles antecedem a definição de Lacan. Entretanto, como
veremos adiante em relação a outro ready-made — o urinol —,
dirá Duchamp que, de um só lance, tornou o objeto sagrado,
mas rebaixou a convenção, ou seja, o museu.14
Para Marcel Duchamp,“todas as suas decisões durante a execução da obra de arte repousam somente na intuição e não
podem ser traduzidas numa auto-análise, falada ou escrita, ou
mesmo pensada”.15
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Joseph Beuys (1921-1986)16 foi um artista notável, “homem das cavernas reencarnado”, como ele próprio se definia.17
Ninguém mais do que ele procurou a integração da arte na vida
de todo e qualquer cidadão. Para ele, “toda pessoa é um artista”
e, assim, resumia a sua visão da arte. Abre seu atelier a todos, e
a todos convida para dar continuidade ao seu trabalho. Propõe
“uma metamorfose do conceito de arte [...] uma arte antropológica, [...] arte ampliada e escultura social”.18 Toda sua produção
visava a uma transformação do homem por meio de uma crítica
social. “Somente a arte, isto é, a arte concebida ao mesmo tempo
como auto-determinação criativa e como processo que gera a
criação é capaz de nos libertar e nos conduzir rumo a uma sociedade alternativa”, disse ele.19 Nessa direção, colocava-se como
um pastor de almas, pedagogo, terapeuta e militante político.
Suas últimas falas foram sempre iniciadas chamando a atenção
para a evidência do “grande sofrimento” humano: “Senhoras,
senhores, caros amigos, bom-dia. Mais uma vez eu gostaria de
começar pelo sofrimento...”.20 A doença era uma preocupação,
não a natureza da doença mas a doença da natureza, a cultura
enquanto perda da natureza. Para ele, a medicina deveria ser “a
arte de ajudar a natureza”.21
Beuys foi um artista que muito falou: aulas, conferências,
cursos, entrevistas. Para ele, a voz já era uma escultura, com seu
volume, sua plasticidade e tons. A voz participa do espaço criado, in-forma-o como um lugar de intercâmbio, um lugar de instantânea renovação.22 Desenvolveu uma pedagogia própria, na
qual a ideia central era a arte como ensinamento, ou seja, não há
ensino da arte, mas a arte nos ensina.
Para ele, o homem do pós-guerra “perdeu a convicção de
ter controle sobre o seu próprio destino, não é mais protagonista
heroico, mas vítima atomizada [...] não tem mais conhecimento da
essência das coisas [...] nem do sentido da vida, ou do sentido das
relações com o mundo”. Perda por esquecimento e desnorteamento que impõe o retorno a um saber elementar que fora perdido.23
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Lançou, em 11 de novembro, o seu quadro O silêncio de
Marcel Duchamp é superestimado, uma provocação ao artista francês, que gozava, então, da notoriedade de estar se constituindo
como o maior artista do século. Criticou o conceito de “antiarte” e declarou: “Duchamp deteve-se no momento em que poderia ter desenvolvido uma teoria a partir do trabalho realizado; e
essa teoria, eu a desenvolvo hoje”.24
Para Duchamp, é criador “aquele que inventa um signo”,
e ele, conclui: “Eu sou o único ou o maior ou o último artista”.25
Para ele, são capazes de criar “aqueles que conhecem a linguagem do mundo, ou seja, você e eu”.26
O diálogo, ou a tentativa de um duelo com Duchamp,
pode ser facilmente percebido, situando-se nessa direção o seu
trabalho Não intitulado (banheira), uma banheira esmaltada contendo areia, curativos adesivos e gazes. Banheira que simbolizaria as dores do nascimento, o primeiro banho do bebê. Não
é difícil estabelecer a relação entre o urinol de Duchamp e a
banheira de Beuys, exemplos claros da concepção de “obra de
arte” como aquilo que o artista decide que seja. Para Duchamp,
“o mais banal dos objetos se torna sagrado a partir de minha decisão de colocá-lo num museu; assim, em um único lance (como
se diz no xadrez), cai por terra o museu (o lugar onde a convenção é exposta).27
As crônicas da época nos informam que um visitante
do museu Carré d’Art, em Nîmes, onde o urinol intitulado
Fonte estava exposto, dele fez uso para satisfazer sua necessidade e que a banheira de Beuys foi “cuidadosamente esfregada escovada, por faxineiras”, resultando em altíssimo seguro
imposto ao museu.28
Os animais estão sempre presentes nas obras de Beuys e,
assim como em da Vinci, pode-se falar em um bestiário beuysiano: o veado, o chacal, a cegonha, o cisne, o gamo, o alce, o
inseto, o lobo americano e a lebre europeia, pássaros marinhos,
o urso, os peixes, a rena, o bezerro e mais alguns outros animais
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
de difícil identificação. “Como os minerais e vegetais, os animais
detêm forças elementares vitais”.29 Desenvolve projetos com
animais presentes: a lebre morta, o cavalo branco, assim como
com restos de seus corpos: sangue e gordura.
Beuys procura recuperar, com esses “sobreviventes da civilização”, o que o homem perdeu: o instinto e um senso de
orientação. Freudianamente falando, recuperar a passagem do
instinto para a pulsão, atingir o vazio da perda, por isso suas esculturas, ações e performances nos suscitam a angústia do abismo.
Ele está sempre a nos lembrar de nossa origem animal e de nossa integração na natureza, perdidos. A entrada no mundo, um
banho de sofrimento no qual gazes, esparadrapos, sangue são os
restos dessa passagem.30
A natureza dos trabalhos de Beuys está contida, sobretudo, em seu potencial dinâmico, ou seja, sua finalidade. O feltro, o
cobre, a gordura de animais possuem uma capacidade de revelar
uma “verdade original” que surgirá após um processo de transformação, ou seja, a passagem de material indeterminado a uma
forma determinada. Passagem do indeterminado ao determinado por meio do movimento.
Foi a partir de uma crise pessoal, nos anos 1950, que resolveu trabalhar com materiais “pobres”: feltro, gordura, animais
mortos, cobre, enxofre, mel, sangue, ossos... até então indignos
para a arte. Esses elementos expostos não são considerados
obras de arte, porém, matéria para reflexão. A matéria em estado
bruto, em primeiro lugar, é um espaço pedagógico que levaria a
uma reflexão sobre o material antes da obra. Os cheiros fortes e
muitas vezes desagradáveis que se desprendiam desses materiais
tornaram-no, possivelmente, o artista que mais problematizou a
questão do olfato.31
Material alquímico por excelência, de caráter quase vivo (a
gordura ) por meio de suas várias transmutações, simboliza
todas as etapas dessa conscientização: dilatada, ela se tor-
72 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
na líquida; rapidamente contraída, torna-se sólida e pode
tornar-se gasosa na evaporação [...]. Fadada a infinitas metamorfoses, é capaz de simbolizar o ambíguo, o devir, e a
mudança, (a gordura) é também o emblema material das
mais misteriosas conversões da existência.32
Em 1984, expõe em Veneza Is it about a bicycle?, uma bicicleta arrastando quinze quadros negros contendo diagramas e
desenhos feitos com giz. É uma bicicleta em movimento, cuja
mensagem é “reencontrar a liberdade do cavaleiro, a harmonia
com a natureza, achar o seu equilíbrio por meio de um movimentar-se adiante”.33 A bicicleta de Joseph simboliza a sua concepção do caminho a ser tomado e, como tal, representa todo o
corpo de sua obra, à qual, em 1964, ele deu o título geral — com
conotações budistas — de Vehicle-art.
Em entrevista concedida a Bernard Lamarche-Vadel, em
1984, declarou: “A nossa bicicleta lida com problemas tão diversos como o Terceiro Mundo, estrutura social, vida espiritual,
democracia e economia”.34
Não podemos concluir Beuys sem falar na sua ação (aktione — ele fazia questão de diferenciá-la das performances), sendo
uma das mais significativas I like America and America likes me,
acontecida em uma galeria em Nova York. O artista coabita com
um coiote do Texas, empunhando o seu cajado de pastor (que o
acompanhava com frequência e denunciava sua posição de guia
de almas) e coberto por um manto de feltro. O coiote era o símbolo da harmonia divina para a população indígena, dizimada
pelo governo americano colonizador. Permanecer interagindo
com o coiote era uma demonstração de controle, ao tempo em
que representava uma tentativa de
[...] reduzir o abismo que separa a cidade moderna do estado de natureza [...]. O encontro de Bueys com o coiote —
sua troca territorial, o compartilhar de palha e feno — abre
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
o caminho esclarecedor, condutor, à semelhança de alguns
de seus materiais preferidos [...] O coiote não representa
somente a natureza perseguida, ele também simboliza o
que há de mau na criação: animal nefasto nas lendas cosmogônicas, entre os indígenas californianos ele entravava
a ação dos heróis criadores, deus uivante dos mistérios da
noite para os pré-colombianos.35
O personagem Beuys e sua obra são tão complexos que
qualquer recorte deixa o gosto amargo da incompletude.
Salvador Dalí (1904-1989). Em uma passagem por
Salvador Dalí, encontramos não apenas o que o artista dá à
psicanálise, mas o que a psicanálise deu ao artista. Dalí talvez
tenha sido o artista mais influenciado pela psicanálise. Leu
Freud quando morava na Resi, Residencia de Estudiantes, local em que se reunia grande parte da inteligência jovem de
Espanha. Freud estava sendo traduzido por Luis López-Ballesteros. Dentre os primeiros livros traduzidos encontravase A interpretação dos sonhos, livro ao qual o artista se refere
em Vida secreta como um dos descobrimentos capitais de sua
vida, cuja leitura o teria levado a um verdadeiro vício de autointerpretação. A verdade é que a pintura de Dalí modificase após seu encontro com a psicanálise.
A extensão da obra daliniana, a riqueza de seu trabalho
não facilitam o recorte que estamos fazendo.
Em 22 de março de 1930, pronunciou, em Barcelona,
uma conferência intitulada Posición moral del surrealismo, na qual
afirmou: “[...] los mecanismos de Freud [...] han iluminado los
actos humanos con una claridad lívida y deslumbrante”. Comenta o fato de haver escrito em um quadro que representa o
Sagrado Coração de Jesus: Parfois je crache par plaisir sur le portrait
de ma mère, mas adverte não tratar-se de um insulto ou manifestação cínica, porém,
74 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
[...] de um conflicto moral de orden muy semejante al que
nos plantea el sueño, cuando en el asesinamos a un ser
querido; y este sueño es general. El hecho de que los impulsos subconscientes sean com frecuencia de uma extrema crueldad para nuestra conciencia es una razón más para
no dejar de manifestar-los allí donde estén los amigos de
la verdade.36
Para Dalí, a revolução surrealista era uma revolução moral contra a ordem estabelecida, contra a amoralidade das ideias
decentes e sensatas.37
Em 1929, pintou El juego lúgubre. Trazemos um comentário de George Bataille, companheiro no movimento surrealista, sobre o quadro: “O desespero intelectual não leva nem
à apatia nem ao sonho mas à violência”. O quadro representa
“o abominável espelho de Dalí [...] as pinturas [...] têm uma
feiura medonha”. O tema, a castração. A figura central partida simbolizaria o momento de “emasculação”; os fragmentos
dispersos representariam desejos; a figura do canto direito inferior, manchada de sangue, sugeriria uma tentativa de escapar
à emasculação e adota “uma atitude degradante e repulsiva”;
a figura à esquerda contemplaria a própria emasculação. Para
Bataille, a castração é o tema psicanalítico da pintura, revela as
origens edipianas da pintura moderna.38
O grupo de amigos surrealistas mais ligados a Dalí, entre
eles Paul Éluard e Gala, preocupou-se com os indicativos de
coprofagia que o quadro mostrava, assim como com o excesso
de atenção às teses psicanalíticas. Gala dirige-lhe o seguinte comentário e interrogação:
Es una obra muy importante y, precisamente por esto, Paul
y yo y todos sus amigos desearíamos saber lo que ciertos
elementos, a los que usted parece conceder importancia
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
especial, se refieren. Si esas “cosas” se refieren a su vida,
no podemos tener nada em común, pues tales me repugnan y son hostiles a mi clase de vida y no tiene nada que
ver com la mia. Em cambio, si lo que se propone usted es
usar sus pinturas como medio de proselitismo y propaganda — aún em servicio de lo que acaso considero uma idea
inspirada —, creemos que corre peligro de debilitar considerablemente su obra y de reducirla a un mero documento
psicopatológico.39
Ainda que desejoso de responder afirmativamente, pois,
aos seus olhos, isso o tornaria ainda mais interessante, Dalí declarou: “Considero la escatología como un elemento de terror,
igual a la sangre o mi fobia por langostas”.40
A profecia de Gala não se concretizou, o quadro, tratado
ou não de psicopatologia, tornou-se uma obra venerada. Igualmente nos evoca o unhemilich, esse horror que tanto mobilizou
Bataille.
Não há ensino da arte, mas a arte é que nos ensina, afirmou Beuys. Nessa direção, vamos então nos interrogar em que a
arte pode enriquecer o psicanalista, sua teoria e clínica.
Quando Duchamp cria seu primeiro ready-made, transformando em obra de arte uma peça industrializada, uma entre
muitas pás de recolher dejetos, quando expõe um urinol no
museu, quando Beuys transforma um pedaço de borracha ou
uma lebre morta em obra de arte, quando Dalí transpõe para
uma tela o que é visto como um retrato de perversões, e a tela
passa a ser venerada, o que esses artistas nos mostram? São
obras de arte de nosso mundo atual. Objetos artísticos investidos de uma conotação poética pelo homem contemporâneo.
São produções que nos falam, mas como ouvi-las? São produções que nos mostram, porém como vê-las? Lembremo-nos da
intenção de Duchamp de impedir que o texto adquirisse forma
literária e a pintura forma plástico-estética.
76 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Duchamp afirmou que, de um só lance, transformou um
urinol em objeto sagrado, ao tempo em que rebaixou a convenção do museu. Para Beuys, toda pessoa é um artista, e a arte, um
processo que gera a criação capaz de liberar o homem em direção a uma sociedade alternativa. Para Dalí, a descoberta freudiana do inconsciente fortaleceu a liberdade de sua produção,
ou seja, um quadro, como um sonho, deve ser o lugar em que a
verdade do sujeito do inconsciente possa se expressar.
Tanto Duchamp como Beuys, Dalí e muitos outros trabalharam com o enígmático, o ininteligível, o incompreensível,
três palavras usadas por Freud quando analisa o efeito do chiste, do “neologismo defeituoso”, que faz o riso explodir. Duchamp manteve com a palavra uma relação criativa: neologismos, homofonias povoaram seus escritos. Beuys questionava a
perda do sentido, o fenecer dos sentidos. Dalí inquietava com
suas explosões de riso.
A relação do chiste com a obra de arte tem sido apontada tanto por psicanalistas como por críticos de arte. No chiste,
diante da palavra inesperada, ocorre um efeito de sideração, e
só em um segundo tempo, quando da elaboração de um novo
sentido, realiza-se um efeito de iluminação. Sideração e luz, palavras usadas por Freud e assim traduzidas por Marie Bonaparte.
Permanecer na sideração é ficar na dimensão do espanto, do
enigma e não transcender o senso comum. É preciso ultrapassar
a censura, que nos impede de escutar o inaudível e de enxergar
o que não está visível.
Dalí, Duchamp e Beuys nos ensinam nossa divisão entre
permanecer no já sabido enganador ou partir em busca do não
saber criativo, a permanente interrogação do sentido.
Gala, ao contemplar El juego lúgubre, presa na sideração, interrogou o pintor: o quadro pretende uma exposição
perversa, mero proselitismo, tratado de psicopatologia? Sua
interrogação contém uma negativa, uma rejeição, uma censura.
Gala não conseguiu transcender a dimensão do já conhecido.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Podemos supor que um olhar como o de Gala se dirigiu tanto
ao urinol de Duchamp (o do homem que satisfez sua necessidade) como à banheira de Beuys (o das faxineiras do museu).
A importância desses olhares incrédulos é que eles abrem
espaço para outra forma de ver. Ver o que ali não está. Duchamp interroga:
[…] comment peut-on décrire le phénomène qui amène
le spectateur à reagir devant l’oeuvre d’art? En d’autres
termes, comment cette réaction se produit-elle? Ce phénomène peut être comparé à un “transfert” de l’artiste au
spectateur sous la forme d’une osmose esthétique qui a
lieu à travers la matière inerte: couleur, piano, marbe, etc.41
Qual um chiste, esses objetos respondem de uma “outra maneira”, revelam a força de transmissão de significantes,
poder de linguagem. Disse Duchamp que o artista cria signos,
e que isso ele conseguiu fazer. Disse Beuys que são artistas os
que conhecem a linguagem do mundo. Arrancam do real uma
transmissão que ultrapassa o já conhecido. Esses objetos nos
falam da “alteridade absoluta da significância”. Significância que,
se, por um lado, eles a rompem, por outro, por ela são acolhidos. Freudianamente falando, transcendem o princípio de prazer
indo a um mais além.42 Todos sabemos da indispensável presença de um ouvinte que irá acolher o chiste, assim como essas obras contaram com um público que igualmente as poderia
acolher, produzindo, por um lado, ruptura, mas oferecendo um
poder de releitura.
A psicanálise não produz arte, mas podemos pensá-la
como um processo de enfrentamento do real, uma abordagem
do enigmático, e o poder de uma releitura. Partir da obviedade
— o urinol —, do objeto já construído, fabricado em série, e
obter a força de uma inscrição subjetiva: o urinol de Duchamp.
Deixar de ser um objeto qualquer, ainda que continue sendo,
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
mas transcender sua condição, sendo sacralizado e reconhecido.
Recebido como obra de arte. Saiu da sua condição de objeto em
série, para ser a criação de um; o urinol de Duchamp, repetimos.
Esse objeto assim como os de Beuys e a pintura de Dalí saem de
uma história construída por muitos e inscrevem outra história,
signos determinados por um sujeito. É obra de arte o que eu
decido que seja, disse aquele que foi por muitos considerado o
maior artista do século XX, mas que também possua o poder de
transferência e o fenômeno de transmutação.
Le processus créatif prend un tout autre aspect quand
le spectateur se trouve en présence du phénomène de la
transmutation; avec le changement de la matière inerte en
oeuvre d’art, une véritable transubstantiation a lieu et le
rôle important du spectateur est de déterminer le poids de
l’oeuvre sur la bascule esthétique.43
O artista e o psicanalista, artesãos de um novo encontro.
NOTAS
Lacan desenvolve o conceito de sublimação especialmente em O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (Rio de Janeiro: Zahar, 1988).
2
LEADER, Darian. O roubo da Mona Lisa: o que a arte nos impede de
ver. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.
3
BROD apud LEADER, op. cit., p.2.
4
LEADER, op. cit., p.2-3.
5
PAZ, Octavio. Marcel Duchamp ou O Castelo da Pureza. Tradução de
Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Perspectiva, 2004. p.15.
6
TOMKINS, Calvin. Duchamp: uma biografia. Tradução de Maria
Thereza de Rezende Costa. São Paulo: Cosac Naify, 2005. p.21.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
DUCHAMP apud TOMKINS, op. cit., p.11.
CABANNE, Pierre. Marcel Duchamp: engenheiro do tempo perdido. Tradução de Paulo José Amaral, Revisão Plínio Martins Filho e Roney
Cytrynowicz. São Paulo: Perspectiva, 2002. p.67.
9
DUCHAMP apud TOMKINS, op. cit., p.14.
10
Ibid., p. 506.
11
FER, Briony; BATCHELOR, David; WOOD, Paul. Realismo, racionalismo, surrealismo: a arte no entre-guerras. Tradução de Eloisa Araújo
Ribeiro. São Paulo: Cosac & Naify, 1998. p.36.
12
TOMKINS, op. cit., p.178.
13
DUCHAMP apud TOMKINS, op. cit., p.180.
14
TOMKINS, op. cit., p.178.
15
Apud TOMKINS, op. cit., p.517.
16
A maioria das referências a Beuys foram retiradas do livro de Alain
Borer, Joseph Beuys (Tradução de Betina Bischot e Nicolás Campanário.
Revisão da tradução Samuel Titan Jr. São Paulo: Cosac Naify, 2001.)
17
BORER, op. cit., p.30.
18
BEUYS apud BORER, op. cit., p.27.
19
Ibid., p.28.
20
Ibid., p.24.
21
Ibid., p.25.
22
Ibid., p.14.
23
Ibid.
24
Ibid., p.11.
25
Ibid., p.17.
26
Ibid.
27
Ibid., p.11.
28
Ibid., p.12.
29
Ibid.
30
Beuys desenvolve sobre si uma lenda, lenda a ser tomada em seu efeito
de verdade. “Houve uma vez um Joseph, nascido em uma família muito
cristã, em Cleves, no dia 12 de maio de 1921 de “uma ferida contida
com esparadrapo” que ele exibiu quando do seu nascimento. Educado
de acordo com a estrita lei de Cristo, a criança amava os animais e,
como Cimabue, tornou-se um pastor. Ainda jovem, começou o estudo de medicina, pretendendo devotar-se aos mais humildes, esse desejo, no entanto, foi destruído quando pilotava o seu Stuka, depois de
7
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
ingressar na Luftwaffe em 1941. No ano de 1944, aos 22 anos, ele miraculosamente escapou da morte na Ásia. O seu avião, um JU 87, caiu
numa região coberta de neve chamada Crime ou Criméia. Joseph ficou
inconsciente por vários dias, semicongelado, foi levado por genuínos
tártaros, que cuidaram de suas chagas. O povo, natural do lugar, logo
o tomou por um dos seus: “Du nix Njemcky, du Tatar” (Você não
alemão, você tártaro), e trouxe-o de volta à vida, enrolando-o em seus
tradicionais cobertores de feltro e aquecendo-o com gordura animal.
Depois do seu retorno, tendo encontrado abrigo em uma fazenda,
Joseph enfrentou uma crise profunda, familiar a todos os grandes artistas que lhe permitiu elaborar os princípios básicos de sua arte.” Os
fatos relatados na lenda nunca foram comprovados, como toda lenda,
nem verdadeira nem falsa (BORER, op. cit., p.12-13).
31
Ibid., p.18.
32
Entrevista concedida a Bernard Lamarche-Vadel em novembro
de 1984, publicada em Joseph Beuys, is it about a bicycle? (Paris: Marval,
1985), apud BORER, op. cit., p.21.
33
BORER, op. cit., p.22.
34
BEUYS apud BORER, op. cit., p.23.
35
BORER, op. cit., p.30.
36
GIBSON, Ian. La vida desaforada de Salvador Dalí. Traducción de Daniel Najamías. Barcelona: Anagrama, 1997. p.332-333.
37
Ibid., p.335.
38
FER; BATCHELOR; WOOD, op. cit., p.203.
39
DALÍ, Salvador. Un diario 1919-1920. La vida secreta de Salvador Dalí.
Barcelona: Fundació Gala-Salvador Dalí, 2003. p.635-636.
40
Ibid., p.638.
BROSSART, Raphaël. Ducasse, Duchamp, Dalí. Revue du Littoral,
Paris, n.31-32, p.130, 1991. “[...] como podemos descrever o fenômeno que leva o espectador a reagir diante da obra de arte? Em outros
termos, como se produz essa reação? Esse fenômeno pode ser comparado a uma “transferência” do artista ao espectador sob a forma de
uma osmose estética que teve lugar por meio da matéria inerte: cor,
piano, mármore, etc.” (tradução nossa).
42
A relação entre a obra de arte e o chiste já foi abordada por alguns autores. Detemo-nos, especialmente, no trabalho de Alain Didier-Weill, Os três tempos da lei: o mandamento siderante, a injunção do
41
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
supereu e a invocação musical. (Tradução de Ana Maria de Alencar.
Rio de Janeiro: Zahar, 1997).
43
BROSSART, op cit., p.130. “O processo criativo toma outro aspecto
quando o espectador encontra-se em presença do fenômeno da transmutação; com a mudança da matéria inerte em obra de arte, ocorre
uma verdadeira transubstanciação, e o papel importante do espectador
é determinar o peso da obra sob a báscula estética.” (tradução nossa).1
Urania Tourinho Peres é psicanalista, fundou o Colégio de Psicanálise da Bahia, é membro da École Lacanienne de Psychanalyse (Paris),
membro da Academia de Letras da Bahia, membro correspondente
da Association Insistence, analista de escola pela Escuela Freudiana de
Buenos Aires. Publicou os livros Mosaico de letras (São Paulo: Escuta,
1999) e Depressão e melancolia (Rio de Janeiro: Zahar, 2003). Organizou
as coletâneas Melancolia (São Paulo: Escuta, 1996), A culpa (São Paulo:
Escuta. 2001), Emilio Rodrigué, caçador de labirintos (Salvador: Corrupio,
2004), Frida Kahlo: dor e arte (Salvador: EGBA, 2007) e Emilio Rodrigué:
velho analista do tempo novo (Salvador: Edufba, 2014). É autora do posfácio do livro Luto e melancolia (São Paulo: Cosac Naify, 2011) e de artigos
publicados em coletâneas e revistas.
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IRLANDESES NO AMAZONAS
NO SÉCULO XVII
WALDIR FREITAS OLIVEIRA
N
ão encontramos, ainda, a razão exata para que Varnhagen,
tanto quanto Pedro Calmon e também Câmara Cascudo hajam atribuído, de modo quase exclusivo, aos holandeses, as tentativas feitas por europeus, no século XVII, de ocuparem as terras
situadas às margens do rio Amazonas, que nessa época, pertenciam
à Espanha. É que a comprovação de que elas terem sido efetuadas por ingleses e irlandeses se tornou notória; sendo por todos
hoje conhecida a documentação existente a esse respeito. Ainda que
seja possível argumentar-se a favor desses autores, valendo-se da
circunstância de ao tempo em que escreveram os seus trabalhos,
não achar-se ainda publicado o livro English and Irish Settlement on
the River Amazonas. 1550-1640, editado por Joyce Lorimer, em Londres, em 1989; tendo-se, pois, a certeza de somente haverem sido
descobertos, em data recente, os documentos que permitiram a essa
professora de História, na Wilfried Laurie University, no Canadá,
conseguir editá-lo, revelando a verdade sobre o assunto.1
Varnhagen escreveu que no vale do Amazonas “se haviam
instalado, com domínio intruso, alguns súditos holandeses e de outras
nações” E ainda bem que escreveu – e de outras nações!2 Pedro Calmon,
LORIMER, Joyce. (Ed.) English and Irish Settlement on the River Amazon. 15501646. London: The Harluyt Society, 1989.
2
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil. Antes da
sua separação e independência de Portugal. Tomo Segundo. São Paulo: Edições
Melhoramentos, 1948, p.173.
1
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
contudo, afirmou que “em 1623, estavam os holandeses de novo fortificados em Muturu, às margens do Xingu, e em Gurupá.” 3 E Câmara Cascudo informou que “ao redor de 1616, os holandeses tentaram
fixar-se no extremo norte do Brasil”4; havendo se salvado, contudo,
o grande pesquisador potiguar, do erro fatal e totalizador, quando
mencionou a participação nos acontecimentos ligados a essas tentativas, de ingleses e irlandeses. Achando-se, desse modo, citados em
seu texto, os nomes de Henrique Ro e Walter Raleigh, britânicos de
boa cepa e tradição, ao lado dos de irlandeses como James Purcell e
Bernardo O`Brien, participantes ativos de tudo que aconteceu por
aquelas bandas, nessa época.
Vejamos, então, como poderemos recolocar as coisas em
seus devidos lugares. Em primeiro lugar, mencionando a pouco
lembrada The Amazon Company, uma sociedade formada na Inglaterra, a 10 de setembro de 1619, ao tempo do reinado de James I (1603-1623), que teve como seu idealizador, o Cap. Roger
North (1588-1652), o irmão mais moço de Dudley, terceiro Barão North, que fora companheiro de Sir Walter Raleigh, quando
da sua última expedição ao vale do Orenoco, na Venezuela, em
1617; dessa sociedade havendo feito parte vários nobres ingleses, ao lado do Conde de Gondomar, embaixador da Espanha,
na Inglaterra, e até mesmo, do Arcebispo de Canterbury.
Eram, contudo, por demais ambiciosas, as pretensões de
Roger North; e não houve como conseguir financiamento para
um projeto como ele o idealizara, com tão ampla envergadura.
Ele pensava em levar para o Amazonas, nada menos que cem
homens, juntamente com os suprimentos e as armas e munições
de que fossem eles ali precisar; e desejava recrutar mercadores,
tintureiros, droguistas e carpinteiros, escolhidos entre profissionais de larga experiência, conhecedores da região, pois o maior
CALMON, Pedro. História do Brasil. A Formação. 1600-1700. Segundo
Volume. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1941, p. 106.
4
CASCUDO, Câmara. Geografia do Brasil Holandês. Rio de Janeiro: Livraria
José Olympio Editora, 1956, p. 288.
3
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
objetivo da sociedade deveria ser o de propiciar grandes lucros
no menor prazo possível.
Dois problemas maiores tiveram, porém, de ser enfrentados e resolvidos – o primeiro sendo o do grau de participação, na direção da Companhia, de Robert Harcourt, que possuía
uma carta-patente que lhe fora dada pela Coroa da Inglaterra
para explorar as riquezas daquela região; o segundo, o do posto
que nela deveria ocupar Sir Thomas Roe, possuidor de larga experiência em assuntos ligados à Amazônia. E, finalmente, tudo
indicava estarem os maiores interessados naquele alto negócio,
dando a impressão de haverem esquecido que se estava a planejar a ocupação e exploração de terras que já tinham dono, sendo
propriedade da Espanha, que não aceitava, de bom grado, situação como aquela, não concordando, portanto, com os termos
apresentados por seus organizadores, dispondo-se o Conde de
Gondomar, seu embaixador na Inglaterra, a defender, a todo
custo, os direitos e os interesses do rei Felipe III.
E o pior surgiu, inquietando a todos, quando Sir Thoms
Roe tomou a decisão de aprestar e municiar um navio, às custas
do capital da Sociedade, e com ele partiu para a Amazônia, sem
qualquer consulta à sua Diretoria, isso ocorrendo enquanto se
encontrava fora da Inglaterra, o embaixador da Espanha. E este
fato resultou na extinção da Amazon Company, com menos de
dois anos depois de fundada.
Quanto aos holandeses, teriam participado, provavelmente, do capital dessa Sociedade, através da atuação da “Câmara
da Zelândia”, como afirmou Câmara Cascudo5; o que poderá
explicar o fato de tanto ele como outros historiadores brasileiros terem atribuído aos holandeses, e, praticamente, somente
a eles, a iniciativa da ação de ocupação e exploração daquelas
terras, então espanholas. Dela tendo participado exploradores
e homens de negócio irlandeses já acostumados a lidar com os
5
CASCUDO, Câmara. Opus cit., p. 288.
►► 85
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
banqueiros holandeses, havendo a eles antes se associado, em
outras ocasiões, atuando, de modo particular, na comercialização de produtos provindo de terras da América, como era o caso
dos irlandeses James Purcell e Bernard O´Brien.
James Purcell e o seu irmão Philip, comerciantes estabelecidos em Dublin, já se haviam envolvido, desde 1609, em negócios envolvendo o fumo produzido em Trinidad; a eles estando
então associados, outros Purcell – Michael Purcell, estabelecido
em Waterford e atuante em Chester, e William Purcell, também
em Dublin. E tanto os Purcell como Bernard O`Brien foram
considerados pelos diretores da Sociedade, indispensáveis, dada
a sua prática e competência como comerciantes ligados a esses
produtos, para o bom êxito dos negócios da nova Sociedade.
Foi, contudo, Bernard O`Brien, o mais destacado irlandês neles
envolvido; e para melhor falar a seu respeito, nada melhor que
basear-nos no documento reproduzido por Joyce Lorimer, em
seu livro, vertido por ela, do espanhol para o inglês, redigido
pelo Capitão General Don Bernardo Obrien (sic) del Corpio
(Carpio), e apresentado sob o título – “Bernard O`Brien´s Account
of Irish Activities in the Amazon – 1621-1624”. Vejamos, então, o
que há de mais importante neste relatório, dele realçando, no
entanto, somente suas informações mais significativas.
Ali diz ele que
... nos meus 17 anos, estava na Inglaterra, em Londres,
onde também se encontrava um inglês chamado Sir Henrique Ro (Henry Roe), que havia sido companheiro de viagem
de Francisco Drake (Francis Drake) e de Sir Valerio Ralyo
(Walter Raleigh), a quem certos nobres e cidadãos comuns
ingleses, em razão de uma comissão do rei James I, forneceu um navio de 200 toneladas, com artilharia e provisões,
para dar seguimento às descobertas feitas por Sir Francisco e Sir Valerio, e realizar uma expedição para estabelecerse no grande rio das Amazonas, região da qual se dizia ser
muito rica e proveitosa não tendo sido ainda ocupada por
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
quaisquer brancos; havendo Sir Henrique Ro partido para
lá no ano de 1621, acompanhado por 124 pessoas, entre as
quais se encontrava o suplicante.
Prossegue, informando haverem os ingleses chegado ao
Amazonas e percorrido o grande rio, ao longo de uma distância
de aproximadamente 10 léguas, tendo chegado a uma aldeia de
índios chamada Sipinipoca (Sapno) e que ali conseguiram estabelecer boas relações com as populações nativas, inicialmente por
meio de sinais, depois, mais facilmente, por terem aprendido a
sua língua, vindo a saber que eles eram índios Arrua. Informa,
ainda, que dali eles seguiram para um lugar chamado Patavi, onde
desembarcaram 16 pessoas, sendo 12 deles, irlandeses, e quatro,
ingleses, estes devendo ali ficarem a trabalhar como servos, para
os irlandeses, sendo todos aqueles homens, irlandeses e ingleses,
católicos, ali tendo ficado como seu comandante, o referido Bernard O`Brien
Tal relato ganha relevo em razão do pitoresco que o envolve, por dele constar haver dito Bernard O`Brien, que, partindo de Patavi, visitou o país das amazonas, as lendárias mulheres
guerreiras que atormentam a memória dos homens, desde tempos antigos, sem que nunca se haja conseguido provar se elas
realmente existiram. Valendo, então, reproduzir, ao menos em
parte, a parte do texto no qual foram elas descritas, tanto quanto
foi narrado o que se passou quando da sua visita ao seu país.
Descreve-as Bernard O`Brien, dizendo que elas não possuíam o seio direito, ou que seria ele tão pequeno quanto era o
dos homens, isso em razão de elas o terem suprimido, para que
se tornasse para elas, mais fácil, em combate, o manejo eficiente
do arco e das flechas, pois eram mulheres guerreiras. Narra, a
seguir, o encontro que teve com a sua rainha, chamada por seu
povo, de Cuna muchu, dizendo haver lhe dado, de presente, um
espelho e uma camisa de tecido holandês, e dela recebido, em
troca, numa primeira vez, três das suas mais belas servas, e, num
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
segundo encontro, três escravos. Disse, afinal, haver permanecido nas terras do Amazonas durante três anos, somente depois
desse tempo, tendo sido forçado a retirar-se dali, por soldados
portugueses comandados por Bento Maciel Parente, havendo
regressado à Europa, em longa viagem de volta, com destino à
Holanda, com seu barco carregado de fumo e algodão.6 Levando-nos o fato de haver se encaminhado, então, para a Holanda,
podermos imaginar a existência de algum vínculo mais forte a
ligá-lo aos interesses daquele país. Donde terem alguma justificativa as afirmativas feitas sobre os holandeses, por Varnhagen,
Pedro Calmon e Câmara Cascudo.
Terminaria, então, com a vitória alcançada pelos donos da
terra, que delas conseguiram expulsar seus invasores, a tentativa
feita por ingleses e irlandeses, contando com o provável apoio
financeiro dos holandeses, de se estabelecerem em terras do
Amazonas, em especial, tanto nas que ficavam próximas à sua
embocadura, no canal chamado rio do Norte, como no ponto
de confluência do grande rio com o Xingu.
Em outro documento, esse tendo sido datado do ano de
1629, conta-nos Bernard O `Brien, haver voltado, naquele ano, ao
Amazonas, ali havendo construído um forte, num local chamado
Foherego, guarnecendo-o com homens que havia trazido da Holanda, que ali ficaram comandados pelos irlandeses Mathias Omallon
(Matthew More) e Diego Porcell (James Purcell), que já haviam estado
naquela região; tendo sido travados, logo a seguir, pela posse desse forte, conhecido pelo nome de Maniutuba, cruentos combates
entre os seus defensores e as forças portuguesas que os atacaram,
em vários momentos, sob o comando, numa primeira vez, de “um
mulato português chamado Pedro da Costa” e, a seguir, sob o de
Pedro Teixeira, perante o qual decidiu Bernardo O`Brien render-se,
após haver bem avaliado a desproporção existente entre as suas forças e as dos que o combatiam, o que o conduzia a uma situação de
6
LORIMER , Joyce. Opus cit. , pp. 72/76; 263/268.
88 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
desvantagem, ainda que houvesse alegado, quando da sua rendição,
estar assim agindo por preferir servir ao rei da Espanha, como
católico que era, que aos heréticos que o haviam encarregado de
ali estabelecer-se.
Joyce Lorimer conseguiu identificar entre os irlandeses
que tentaram fixar-se em terras da Amazônia, no século XVII,
12 nomes, que aqui são citados, em ordem alfabética, quanto
aos seus sobrenomes – Juan Alein, Guilherme Brum, Jaspar
Chillan, Estevão Corse, William Gayner, Joan Joanssen, Bernard
O ´Brien, James Purcell, Philip Purcell, Ricardo Molran, Matthew More e Peter Sweetman. Deles merecendo ser destacados
os de Bernard O`Brien, também chamado pelos portugueses, de
“Bernardo del Carpio”, pelo pitoresco que sempre se envolveu,
em suas andanças, seus feitos e suas narrativas, e os de Philip e
James Purcell, o primeiro por haver morrido em combate contra
os portugueses, e o segundo, por ter sido por eles aprisionado,
quando da tomada do forte de Tauregue.
A distinção de nacionalidades aqui feita visando apenas
registrar a presença, no passado, em terras do Brasil, de irlandeses, na condição de pioneiros no processo de desbravamento
e povoamento da selva amazônica; não significando, portanto,
um destaque intencionalmente feito em louvor à Irlanda, que ao
tempo em que estiveram eles na Amazônia, era apenas uma parte
da Inglaterra, valendo a denominação que então lhes foi dada, de
irlandeses, somente para realçar o fato de terem eles, nascido na
Irlanda identificando-se, contudo, mais como ingleses, por procederem de mesmo modo que eles, como agentes trabalhando
em favor da criação do primeiro império inglês. E, ainda sobre
os holandeses, vale lembrar não haver existido, a esse tempo, um
país chamado Holanda, Netherland, ou Países-Baixos; mas, simplesmente, havendo onde ele hoje se encontra, no noroeste da
Europa, uma região onde viviam muitos habitantes que haviam
se tornado ricos através da prática de atividades econômicas
propiciadoras de altos lucros predominantemente comerciais,
►► 89
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
e que se encontravam, naquele momento histórico, procurando
livrar-se do domínio da Espanha, lutando para torná-la um país
independente. Haviam passado os holandeses a ser um fato novo
no cenário político e econômico da Europa ocidental, a partir
dos fins do século XVI e começos do século XVII; ea desempenhar um papel importante na composição de um renovado
equilíbrio de forças do mundo ocidental dessa época; tudo isso
tendo, afinal, sido alcançado, através da ação de uma sociedade
de ordem privada – a Companhia das Índias Ocidentais, com
sede em Amsterdam.
Cresceram, então, os holandeses, economicamente, e começaram a atuar em várias partes do mundo, com o objetivo de se
tornarem cada vez mais poderosos – tanto no Oriente, de modo
especial, na área do oceano Índico, como na África e também na
América, onde atuaram na região das Antilhas e no nordeste do
Brasil espanhol, em terras que foram por eles invadidas e onde
se estabeleceram por um longo período. Talvez podendo deles
dizer-se serem, àquele tempo, um povo em busca de uma pátria; e,
em consequência, falar mais de holandeses que de Holanda.
Foi um casamento entre reis que acabou tornando os
chamados Países-Baixos, uma parte da Espanha – Margarida de
Borgonha, ao casar-se com um Habsburgo, levara as terras que
possuía para o domínio dessa importante dinastia; e em razão
de um outro casamento, o de Felipe, o Belo, com Joana da Espanha, foram elas incorporadas à Espanha; ainda que, do ponto
de vista estritamente cultural, nada seja mais diferente, que um
holandês de um espanhol. E por aí podermos chegar a admitir haver sido a guerra dos holandeses contra os espanhóis, uma luta em
busca de uma nacionalidade ainda a ser formada.
O que há de concreto é que os Países-Baixos, ao tempo
de Carlos V, formavam um conjunto notável de cidades prósperas, que haviam surgido e se fortalecido, ao longo do processo de formação das cidades medievais. Destacavam-se, quanto
à sua riqueza, desde que a sua burguesia se tornara uma das
90 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
mais prósperas da Europa; e também quanto à sua importância cultural, por disporem de uma elite de pensamento muito
capaz. Sem devermos esquecer que Erasmo, um dos maiores
pensadores do mundo, nessa época, nasceu, em 1469, em Rotterdam; embora houvesse passado a maior parte de sua vida
fora dos Países-Baixos.
O que mais distinguia os holandeses dos demais europeus, a
esse tempo, era o fato de terem essas cidades adotado, no campo
religioso, as ideias da Reforma, pregadas por Lutero e por Calvino;
e elas foram utilizadas, podemos dizer, como bandeira ideológica,
pelos holandeses em luta contra a Espanha católica. Havendo essas
cidades se transformado em cenário trágico das perseguições religiosas, ao tempo da Inquisição, que foram ali comandadas pelo
sinistro Duque de Alba. E em 1568, iniciou-se, o conflito armado
entre holandeses e espanhóis, que iria durar oitenta anos; e resultou na luta em que se defrontaram holandeses e portugueses,
desde que Portugal, entre 1580 e 1640, passou a ser governado
pela Espanha; pelo que, ao invadirem o Brasil, nele havendo se
estabelecido por longos anos, haverem estado os holandeses, em
verdade, combatendo a Espanha e não Portugal. E os holandeses
aos quais se referiram Varnhagen, Pedro Calmon e Câmara Cascudo, nada mais seriam, dessa forma, frente aos olhos espanhóis,
senão rebeldes em luta contra o Reino da Espanha, heréticos que
precisavam ser castigados por se oporem à religião pregada e sustentada pela Igreja de Roma; não devendo ser considerados como
representantes de um país de verdade. Tudo isso precisando ser
bem entendido, a fim de poder alcançar-se a compreensão do motivo que levou os holandeses a tentarem estabelecer-se em terras
brasileiras. Atentando-se no fato de haverem eles atuado, como eles
próprios, na ação bélica desfechada contra o Nordeste do Brasil,
enquanto, no Extremo Norte, puseram em seu lugar, para a ação,
alguns dos seus aliados, como foram, sem dúvida, os irlandeses e
os ingleses, que acabaram sendo rotulados, por alguns dos nossos
historiadores, como holandeses.
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Falemos, então, mais um pouco, sobre esses ingleses e irlandeses. E comecemos por Sir Thomas Roe (circa 1581-1644),
diplomata com grande experiência e com muitos serviços prestados, tanto à rainha Elizabeth I como ao rei James I, havendo
sido enviado, em 1610, pela Coroa Inglesa, à Guiana, a fim de
comprovar a existência, naquele local, de minas de ouro; havendo para ali regressado, por duas outras vezes, sem obter os resultados esperados. Explicando-se o interesse dos reis ingleses pela
região, em razão da publicação na Inglaterra, em 1596, por Sir
Walter Raleigh, de um famoso livro no qual descreveu a viagem
que fizera à Guiana, no ano anterior, no qual afirmara ali encontrar-se o fabuloso reino das amazonas, no qual existia uma cidade
chamada Eldorado, toda construída em ouro.7 E enquanto isto,
ingleses, holandeses e franceses tentariam apoderar-se das terras
situadas entre as embocaduras dos rios Orenoco e Amazonas;
de tal empenho havendo resultado a existência, em nossos dias,
da Guiana, como país independente, havendo sido antes, colônia inglesa, o Suriname, hoje também país independente, após
haver sido colônia holandesa, e a Guiana Francesa, igualmente
ex-colônia, hoje com o status de Departamento Ultramarino da
República Francesa.
De Sir Thomas Roe, passemos a falar de Robert Harcourt,
por haver ele fundado, na foz do Oiapoque, em maio de 1609,
uma colônia, na qual continuavam a viver, quando da passagem
pelo local, em 1610, de Sir Thomas Roe, vinte homens que ali se
dedicavam a atividades agrícolas, havendo dali, contudo, se retirado em 1612. E em 1613, em livro que publicou sobre essa sua
tentativa de colonização, declararia Robert Harcourt haver sido
ele o primeiro a realizar - “uma correta descoberta da embocadura do rio Amazonas, com a descrição de todos os canais que lhe
RALEIGH, Sir Walter. The discovery of the large, rich and beautiful empire of
Guiana. London, 1596. // Cf. LORIMER, Joyce. Sir Walter Ralegh´s Discoverie
of Guiana. London: Hakluit Society, 2006.
7
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dão acesso.”8 Havendo lhe sido dada, nessa ocasião, pela Coroa da
Inglaterra, a concessão para explorar, em caráter de perpetuidade, todo o litoral situado entre os rios Dessequebe (Essequibo) e o
Amazonas, achando-se incluídas em seu âmbito, as ilhas existentes ao longo desse trecho da costa, desde que situadas ao norte da
embocadura desse último rio.9 Tudo isso demonstrando quanto
era grande o interesse da Inglaterra pelas terras vizinhas ou marginais do rio Amazonas e, até certo ponto, como eram contestados
os direitos da Espanha sobre aquelas terras.
Voltemos, então, aos irlandeses, depois de termos nos referido, com a necessária ênfase, a Bernard O´Brien, a fim de
dizer algo mais sobre os Purcell, de modo especial, sobre Philip
e James Purcell.
Tudo indicando haver Philip Purcell visitado, pela primeira vez, o Amazonas, em companhia de Matthew Morton, agente
comercial de Sir Thomas Roe. Teria ele contratado os serviços
de 14 irlandeses, visando encaminhá-los para a colônia que desejava instalar na confluência do rio Xingu com o Amazonas,
destinada à produção do fumo. Existindo muitas dúvidas sobre
o nome que lhe foi dado. E entre outros, o que mais aparece é
o de Tauregue River, apontado, por alguns viajantes do rio, como
sendo o lugar onde moravam os irlandeses.10
A colônia fundada por Philip Purcell negociava os seus
produtos com quaisquer compradores que lhe aparecessem; sendo possível admitir-se que navios ingleses vindos de Dartmouth,
porto inglês onde os Purcell possuíam suas maiores casas de
negócios, teriam ido até lá, mais de uma vez; e que navios holandeses também lá chegaram, em várias ocasiões. De qualquer
forma que hajam se passado as coisas naquela região, uma coisa
é certa: – tanto os ingleses como os irlandeses e os holandeses,
HARCOURT, Robert, A Relation of a Voyage to Guiana.1613. London, 1613.
ApudLORIMER, Joyce. Opus cit., p. 39
9
LORIMER, Joyce, Opus cit.,p. 50.
10
Idem, p. 47.
8
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todos eles tinham interesses comuns no comércio dos produtos
do que ali eram produzidos; de modo especial, no do fumo que
colhiam e vendiam para a Europa. E para garantir a presença na
região, dos seus produtores, construíram os holandeses, vários
fortes, guarnecendo-os com homens armados. Não sabemos,
porém, quando o fizeram; nem onde ficavam exatamente; nem
a distância que os separava. Somente os seus nomes tendo sido
conservados – Nassau e Orange; sendo também conhecidos pelos seus nomes indígenas – Gormuru e Materu.
Varnhagem dá-nos notícias deles.
No Tomo Segundo da sua História, contou-nos sobre a
chegada a Belém, ao tempo em que ali estava a construir-se o
forte do Presépio, do capitão Luís Aranha de Vasconcelos, trazendo a notícia de haverem os holandeses, de novo se instalado
nas margens do rio, ali tendo erguido dois fortes; e que recebera
ordens da Coroa espanhola para expulsá-los de lá.
Narrou, a seguir, como se passaram as coisas, a partir
do momento em que uma força composta por soldados portugueses e por uma multidão de índios frecheiros foi enviada
contra eles, tendo sido transportados por uma imensa quantidade de canoas:
Felizmente que, quando se iam aproximando do forte onde
estavam os holandeses (Muturu ou de Orange), se haviam
posto de sobreaviso; pois estes, com quinze canoas e alguns centos de índios, vieram tratar de lhes dar um ataque
à meia-noite. Durou a briga duas horas, ficando os nossos,
vencedores, e cativos, os contrários. Depuseram estes, então, que na fortaleza vizinha, chamada Nassau, não havia
mais de vinte soldados, com alguns escravos, que lavravam
tabaco, os quais, à intimação dos outros, vieram a entregarse, com a artilharia, armas e escravos.11
11
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Opus cit., Tomo Segundo, p. 174.
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E prosseguiu contando haver decidido, na ocasião, o capitão Luís Aranha, atacar outro forte, situado no Gurupá, que
foi igualmente tomado, havendo a sua guarnição, composta por
trinta e cinco soldados, se rendido; tendo informado os vencidos
aos vencedores, sobre a existência na região, de “duas feitorias
ocupadas por ingleses”. Tudo isso havendo se passado sem que
se saiba até hoje, se em algum dos fortes ocupados, se encontrava o nosso Philip Purcell. O mais provável sendo supor que
este conflito haja se caracterizado somente, como uma simples
operação militar; talvez havendo continuado os irlandeses e ingleses instalados em suas feitorias, a produzirem seu fumo, vendendo-o aos seus fregueses tradicionais. Como informa Joyce
Lorimer, entre os anos de 1620 e 1625, os negócios dos irlandeses e ingleses estabelecidos no Amazonas cresceram muito,
favorecendo, de modo excepcional, os que deles cuidavam, entre os quais se destacavam Bernardo O´Brien e os Purcell, que
continuaram ali agindo como comerciantes, embarcando, regularmente, o fumo que produziam, e mais outros produtos, para
a Europa. Bastando registrar que em 1625, estava O` Brien na
Inglaterra, negociando o seu algodão, que conseguiu vender por
16.000 escudos, um alto preço para a época. E que em 1624,
formara uma companhia (a joint venture) tendo como companheiro, um holandês chamado Nicolas Hodfan, com o objetivo de
instalar um nova feitoria às margens do Amazonas, nas proximidades da atual cidade de Guarupá, que se denominou Mandituba,
e deveria contar com uma população de 200 pessoas, constituída
principalmente por irlandeses e holandeses. No ano seguinte,
regressaria O´Brien à Europa para tentar livrar seu pai, da prisão, por ter sido ele acusado da prática do catolicismo. Havendo
sido durante a sua ausência, que os portugueses iniciaram uma
forte e eficiente campanha visando expulsar, de uma vez por
todos, aqueles estrangeiros, das terras da Amazônia. Em 1625,
contudo, iria findar-se a carreira como colonizador e homem de
negócios, do irlandês Philip Purcell. Encontrava-se ele no forte
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holandês de Mandituba, no canal de Gurupá, quando foi ele atacado por cinquenta soldados e por centenas de índios, comandados pelo capitão Pedro Teixeira, havendo Philip Purcell morrido
durante o combate. Seu irmão, James Purcell, assumiu, então, o
comando da fortaleza e aceitou a rendição que lhe foi proposta
pelos que o atacaram, em troca da sua clemência para com os
vencidos; havendo sido, apesar desse acordo, massacrados 54
dos seus defensores, e aprisionados, James Purcell e mais dois
irlandeses – Stephen de Courcy e Matthew Moore, que somente
foram libertados dois anos depois, em 1627.
Enviado, como prisioneiro, para as Antilhas, e, a seguir, para
a Inglaterra, regressaria, contudo, James Purcell, ao Amazonas, em
1628, em companhia de Matthew Moore e Bernardo O´Brien,
então financiados pela Guiana Company , constituída em 1626; e
no mesmo lugar, em claro tom de desafio, onde existira o forte que havia sido destruído pelos portugueses, construíram eles
uma nova fortificação (o forte chamado Foherego ou Tauregue)e nela
se instalaram; havendo, porém, dali sido expulsos, mais uma vez,
em setembro de 1629, por tropas portuguesas e por mais de mil
índios, comandados, de novo, por Pedro Teixeira. Havendo sido
Bernardo O`Brien, dessa vez, aprisionado, tendo permanecido na
prisão por cinco anos; e, uma vez libertado, tentaria, mais uma
vez, regressar ao Amazonas, dessa vez, porém, sem êxito.
Finalmente, no que se refere a Matthew More, por vezes
mencionado como Mathias O´Mallon, em documentos da época, recebeu, em 1627, a permissão que lhe foi dada por Manoel
de Souza Eça, que substituíra, em 1626, a Bento Maciel Parente,
no cargo de Governador do Pará, para regressar à Inglaterra.
Assinala o historiador Brian McGinn, em artigo intitulado
- “The Amazon Irish: New World Pioneers were Lured by Dreams of Riches,Freedom” que os brasileiros nunca prestaram qualquer tipo de
homenagem a esses irlandeses pioneiros; e que em nenhum lugar
da região amazônica são lembrados os seus nomes. Escreve, então:
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Sonhos de riqueza e liberdade levaram os irlandeses até essas remotas terras equatoriais. E durante algumas décadas,
esses seus sonhos se transformaram em realidades que se
situaram além do que poderiam ter imaginado.12
E Joyce Lorimer, na “Introduction” do seu livro - English
and Irish Settlement on the Amazon. 1550-1646, afirma que, provavelmente, a iniciativa de ação dos irlandeses na Amazônia representa - “o mais antigo exemplo de projeto colonial independente
sobre terras do Novo Mundo.” E acrescenta:
A tenacidade com a qual, tanto os ingleses como os irlandeses
se esforçaram para atingir os seus objetivos no Amazonas,
força-nos a repensar a similaridade de situações que vieram
a apontar como inevitável, a prioridade da América do Norte,
para vir assumir a responsabilidade pela tarefa de ocupação
e exploração daquelas terras. Uma vez que o Amazonas não
era “a sepultura do homem branco”, em começos do século
XVII. Pelo contrário, era o foco de uma rivalidade ferrenha
entre colonizadores; havendo a falência dos ingleses e irlandeses na região, resultado mais do delineamento do quadro
das relações internacionais então vigentes, que do caráter de
insustentabilidade de sua ocupação por europeus do norte.13
Recorrendo, contudo, aos nossos historiadores do passado, evidentemente contaminados por um “patriotismo” de fachada, que os colocou, invariavelmente, a favor dos portugueses,
contra qualquer tipo de estrangeiro, e ao lado da Igreja católica
contra os reformistas, vemo-nos forçados a ver a nossa História,
através de uma perspectiva claramente viciada. Por essa razão,
MCGINN, Brian. “The Amazon Irish: New World Pioneers were Lured
by Dreams of Riches, Freedom”. In Irish Echo, 11-17 March 1992. Download
disponívem no site http;//gogobrazil.com/amazonirish. html
13
LORIMER, JOYCE. Opus cit., p.xv.
12
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
idealizamos os holandeses, por hábito, revestidos por um padrão
de rejeição, não se admitindo qualquer tipo de apreciação positiva a seu respeito; e somente raramente em nossos textos históricos, aparecem os irlandeses e os ingleses como atuantes eficientes, ao longo do processo de formação do nosso país.
Quanto aos irlandeses, constituirá, por certo, para muitos,
uma surpresa, haverem eles estado por aqui, nos começos da ocupação da Amazônia. É que ficaram ocultos sob o falso rótulo de
holandeses. Os nomes desses pioneiros foram esquecidos – passaram
a ser, simplesmente, os vencidos, os derrotados. E o fato de terem
atuado como representantes da iniciativa privada, em busca de proveitos pessoais, e não em nome de um certo país, nega-lhes o direito
de participarem da nossa História, priva-lhes do direito de poderem
ser considerados como os maiores conhecedores do rio Amazonas,
no século XVII, os introdutores das práticas agrícolas sobre aquelas
terras, especialmente orientadas para a produção do fumo, sendo
através do que ali realizaram, que o vale do Amazonas passou a ser
considerado, na época, como um lugar atrativo, onde seria possível
efetuarem-se bons negócios. Agindo, então, de modo mais eficiente, quanto a esse ponto de vista, que os ingleses, interessados, de
modo essencial, apenas visando a construção de um grande império. E, finalmente, de referência aos nossos indígenas, eles aparecem
nesses textos, somente como figurantes, pouco importando a qual
país eles estiveram eventualmente servindo. Este sendo, sem dúvida, um aspecto da nossa História que merece ser reconsiderado,
continuando ela, portanto, a nos ser mal contada. 14
Waldir Freitas Oliveira é historiador, ensaísta e conferencista, professor
emérito da Universidade Federal da Bahia, com dezenas de livros publicados, entre eles A antiguidade tardia (1991), e Antonio de Lacerda (2002).
Dirigiu diversas instituições, como o Conselho de Cultura do Estado da
Bahia, do qual foi presidente, e o Centro de Estudos Afro-Orientais da
UFBA. É sócio remido do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.
Desde 1987 ocupa a Cadeira número 18 da ALB.
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A MAIS CORAJOSA VOZ
POÉTICA FEMININA:
A POETA BAIANA JACINTA PASSOS
ANTONELLA RITA ROSCILLI
Tantos rios como eu abriram leito de pedras / e pranto. Um dia
perguntávamos:/ – Dizei-me, curva, onde vou? casa trono rocha soia /
aqueles que ficam, minha lei é não parar. Sigo / fio de água, água humilde
sou, para onde? Ó curva,/ falai. Água de revolta, espuma e ódio nos poros
/ na garganta no útero, pranto de mulher, água / de fel antigo, quem é meu
semelhante? Dizei, onde vou?/ Leito de pedras e pranto. Súbito, próximo,/
Atravessou, olhai, ele!/ ali na frente, vivo, tão vivo, / ele sim! o rio das
águas inúmeras. Correi doçuras e dores, punhos, Partido, esperança nossa.../ (Poema O Rio. Extraido do livro “Poemas políticos” . Rio
de Janeiro: Livraria-Editora Casa do Estudante do Brasil, 1951).
S
ão estes alguns versos de Jacinta Passos (1914-1973), uma
poeta baiana que em épocas históricas muito dificeis, ousou
desafiar abertamente consensos e preconceitos, através da sua
corajosa obra poética e jornalistica. Escrevia sobre os assuntos
que mais a interessavam e pelos quais lutava: política, transformações sociais e posição da mulher na sociedade. E também foi
a mais expressiva voz poética feminina da esquerda brasileira no
combate ao nazifascismo. No ano de 2014 festeja-se o Centenário do nascimento dela. Jacinta nasceu em 30 novembro de 1914
na fazenda Campo Limpo, município de Cruz das Almas na região do Recôncavo da Bahia. Era filha de Berila Eloy e Manuel
Caetano da Rocha Passos, pertencentes a famílias tradicionais da
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
região, muito católicas. Passou a infância entre o núcleo urbano
de Cruz das Almas e a fazenda Campo Limpo, de propriedade
do pai, mergulhada na cultura do fumo, das tradições africanas
e das canções infantis que marcariam sua poesia. Após a transferência da família para Salvador, diplomou-se pela Escola Normal da Bahia em 1932 com distinção. Jacinta passou a lecionar
nesse mesmo estabelecimento de ensino as disciplinas de Matemática e Literatura Brasileira no curso secundário. Nessa época,
era muito religiosa e buscava uma união profunda e direta com
Deus. Desde o final da década de 1920 escrevia poemas, em
geral de conteúdo religioso. Nos anos 30, ao lado do irmão, o
estudante de medicina e também poeta Manoel Caetano Filho,
começou a participar de círculos e grupos literários de Salvador,
como a Ala das Letras e das Artes (ALA), chefiada pelo crítico
Carlos Chiacchio. Seus poemas começaram a circular entre os
intelectuais da cidade. Jacinta continuava religiosa, mas, à medida
que o tempo passava, sua religiosidade ia adquirindo conteúdo
social e militante.A partir da Segunda Guerra Mundial, em 1939,
envolveu-se fortemente com política. Ao lado do irmão participou de movimentos a favor da paz mundial e do final da ditadura do Estado Novo. Denunciou as opressões que pesavam sobre
as mulheres, defendendo mudanças na condição feminina. Após
a entrada do Brasil na guerra, em 1942, participou intensamente da luta antinazista e antifascista.Tornou-se também uma ativa jornalista, escrevendo sobre temáticas sobretudo sociais. Na
época foi uma das poucas mulheres da Bahia a assumir posições
políticas públicas, e publicava artigos e poesias na revista cultural Seiva e no jornal O Imparcial . Nesse jornal se ocupava da “Página Feminina” onde introduziu discussões políticas e literárias.
Em 1942 publicou, juntamente com seu irmão, seu primeiro livro de poesias: Nossos poemas. No livro a sua produção
corresponde à primeira parte, intitulada Momentos de poesia,
com 38 poemas. O volume mereceu boas críticas na imprensa,
firmando os nomes dos dois poetas no meio intelectual baiano.
100 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Embora neste livro a autora ainda traga traços marcantes de
religiosidade, como no poema Agonia no Horto, outros temas
começaram a surgir. Tornou-se amiga de intelectuais comunistas, como Jorge Amado, que no final de 1942 retornara à
Bahia, aprofundando a participação em movimentos sociais e
feministas. Nessa época, abandonou o catolicismo.Mudou-se
em 1944 para São Paulo, onde se casou com o jornalista e escritor James Amado. No ano seguinte, publicou seu segundo
livro, Canção da Partida (São Paulo, Edições Gaveta), contendo
dezoito poemas, três transcritos do livro anterior. A edição,
extremamente bem cuidada, foi de apenas duzentos exemplares, numerados e assinados pela autora e ilustrados pelo artista
Lasar Segall. Canção da Partida recebeu críticas muito elogiosas
de intelectuais expressivos como Aníbal Machado, Antonio
Candido, Gabriela Mistral, José Geraldo Vieira, Mário de Andrade, Roger Bastide e Sérgio Milliet, firmando o nome da poeta no cenário nacional. Os poemas da Canção da Partida eram
o espelho da consciência eminentemente social de uma época
a que a resistência antifascista e as agruras da guerra haviam
ensinado o sentido prático da solidariedade. E Jacinta lutou pelo
final da guerra, pela redemocratização do Brasil, pela liberdade
de expressão, pela anistia aos presos políticos e pela ampliação
dos direitos das mulheres. É o generalizado sentimento de solidariedade dessa época, o seu sonho de um mundo unido que se
reflete na Canção da Partida. Esta importante obra foi esquecida e
republicada no Brasil somente em 1990, pela Fundação das Artes,
graças ao empenho do poeta e jornalista baiano Florisvaldo Mattos,
que era presidente da Fundação Cultural no governo Waldir Pires.
Em 1945, ano em que o Partido Comunista Brasileiro (PCB) foi
legalizado e lançou uma grande campanha de filiação de novos
membros, Jacinta Passos ingressou oficialmente, nele permanecendo até morrer. De volta a Salvador, foi candidata a deputada
federal e a deputada estadual pelo PCB, não se elegendo. Contribuiu para o jornal O Momento e continuou participando ativamente
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
da política. Em 1947, após uma gravidez muito difícil, deu à luz
Janaina, sua filha única. Com o marido e a filha, viveu alguns anos
em uma fazenda no sul da Bahia, onde se dedicou à família e à
escrita.Mudou-se em 1951, com a família, para o Rio de Janeiro,
onde lançou seu terceiro livro, Poemas políticos (Rio de Janeiro,
Livraria-Editora da Casa do Estudante do Brasil). Contendo
dez poemas inéditos, políticos e líricos, além de uma seleção
de poesias anteriores, Poemas políticos ampliou o prestígio da
escritora, tornando-a mais conhecida nos círculos literários do
Rio de Janeiro, a capital do país.Em 1955, separada do marido
e da filha, regressou a Salvador, voltando a residir com os pais.
Continuou militando no PCB, ensinou em comunidades pobres de Salvador e publicou artigos sobre literatura no jornal
comunista O Momento, onde, durante alguns meses, foi também
responsável por uma página literária. Continuou escrevendo
poesias. Recebeu a visita da filha Janaina durante as férias escolares e a visitou, no Rio de Janeiro.
A Coluna descansou /da marcha, na noite fria. / Ficaram olhos
acesos / e a fogueira de vigia /Su su su / menino mandu / dorme na lagoa
/ sapo-cururu / debaixo deste telheiro / em cima pia a coruja / com seu
piado agoureiro (Poema “O inimigo” extraido do livro A Coluna
(Rio de Janeiro, A. Coelho Branco F° Editor). Jacinta publicou
em 1957 esta sua quarta obra que contém um longo poema épico, de quinze cantos, sobre a Coluna Prestes, marcha de cerca de
vinte e cinco mil quilômetros, empreendida na década de 1920, e
liderada, entre outros, por Luiz Carlos Prestes, que buscava mudanças políticas profundas para o Brasil. O livro foi bem recebido
por críticos como Paulo Dantas. Mas no final desse ano Jacinta
sofreu grave crise nervosa e ficou vários meses internada em sanatórios do Rio, onde foi diagnosticada como portadora de esquizofrenia paranóide, considerada então uma doença progressiva
e irrecuperável.Transferiu-se em 1962 para Aracaju, em Sergipe.
Ali morou, sozinha, em Barra dos Coqueiros, povoação de pescadores situada em frente à cidade. Ali continuou desenvolvendo,
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
sozinha, intensa militância junto a pescadores, estudantes e trabalhadores, inclusive após o golpe militar de 1964. Veio a falecer
em Sergipe em 28 de fevereiro de 1973, aos cinquenta e sete anos
de idade. E é preciso que a sua obra continue viva e servindo de
exemplo e modelo. Por isso em 2010 saiu o livro “Jacinta Passos, Coração Militante. Poesia, Prosa, Biografia, Fortuna Crítica”,(Ed. Edufba;
Corrupio, 673 p.), organizado por Janaina Amado e com prefácio
de José Mindlin. Além de fotografias da vida da poeta, inclui
poemas inéditos e dos livros publicados por Jacinta: Momentos
de poesia, Canção de partida, Poemas políticos, A Coluna [ Prestes ].
Reproduz os desenhos de Lasar Segall que ilustraram Canção
da Partida, trazendo assim para todos nós a obra completa e
o pensamento de Jacinta, grande mulher, poeta, professora,
jornalista, corajosa militante política. Uma figura marcante no
cenário político brasileiro, uma poeta que pesquisa e trabalha
a forma: -Que dissestes, meu bem? / Esse gosto,/ Donde será que ele
vem? / Corpo mortal.Águas marinhas. / Virá da morte ou do sal? /
Esses dois que moram no fundo e no fim./ - De quem falas amor, do mar
ou de mim? (Diálogo na Sombra, 1944).1
Antonella Rita Roscilli é brasilianista, escritora italiana e tradutora, è
Membro Correspondente pela Itália da ALB e se dedica à divulgação
da cultura brasileira na Europa através de palestras e publicações em
revistas internacionais. Biografa oficial da memorialista Zélia Gattai
Amado. Publicou as obras literárias “Zélia de Euá Rodeada de Estrelas”
(ed.C.de Palavras) e “Da Palavra à Imagem em Anarquistas graças a
Deus de Zélia Gattai” (Edufba). Idealizadora de documentários, è na
Italia diretora da Revista “Sarapegbe” (www.sarapegbe.net).
►► 103
OS MARES PROFUNDOS
DE HÉLIO PÓLVORA
CYRO DE MATTOS
O
baiano Hélio Pólvora conquistou com O grito da perdiz o Prêmio Bienal Nestlé de Literatura Brasileira, na categoria de
contos, em 1982. No mesmo concurso foi agraciado pela segunda
vez com Mar de Azov, em 1986. Assim como no primeiro livro
premiado, Mar de Azov é constituído de quatro narrativas, que se
desenvolvem no sul da Bahia. São quatro narrativas da melhor
literatura: “Mar de Azov, “ Zepelins”, “Começo de Vida” e “As
Dríades”. Hélio Pólvora nos dá mais uma vez, nestes contos, uma
amostragem do contista moderno dotado de amplos recursos narrativos, sensibilidade apurada e imaginação privilegiada. Tanto no
conto sertanista, rural ou urbano, como na narrativa que deflagra
os abismos da condição humana, Hélio Pólvora vem executando
com suficiência o conto em extensão e, ao mesmo tempo, profundo. De seu estilo impressionista escorrem as verdades essenciais
do ser, filtradas das correntes subterrâneas, solidões e desencontros, por vias e arredios das perplexidades.
É visível que a vocação desse contista inclina-se com intenções de recolher e transformar na arte genuína do conto as
impressões que a vida propõe nos momentos habitados por
vozes agudas. O tema assim delineado exige desdobramento
ficcional porque seu tempo narrativo será alimentado por uma
sensibilidade arguta, imaginação que abrange variações criativas
e brilhantes. O texto deve ser por isso mesmo disposto, justaposto, superposto pelo acúmulo de planos, desenvolvido com
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
nuances, fragmentado no tempo, recheado de impressões quanto mais investigadoras do outro e o mundo. Plasmado por uma
técnica especial, que se compraz quanto mais espraia por todos
os lados a sua busca da imagem plena. O contista baiano está
sempre à vontade quando manipula forma e fundo dentro da
unidade essencial, resultante de análises e psicologias.
O factual que serve de motivação ao autor do conto curto,
produzido com rapidez decorrente dos flagrantes da vida, não
atrai o autor de Mar de Azov. Não motiva com predominância
suas criações urdidas com engenho e arte. Consciente de compromisso existencial de escritor e ficcionista, a força criadora do
discurso basta-se em extensão irmanada com a compreensão.
Mostra-se, na escrita de envolvimentos emotivos, com o lírico
e o dramático, o onírico e o representativo do ser, ritmada nos
rumos muitas vezes contrastantes dos personagens.
Desde que escreveu o conto “Os Galos da Aurora”,
imbatível história de bicho em nossas letras, até hoje o contista deixou claro que não se sente à vontade na concepção e
execução do conto curto. Distante está assim de um Dalton
Trevisan, outro contista de primeira linha de nossas letras,
adepto contumaz do conto breve, sempre a expor o drama
em síntese, recriado no mínimo espaço do acontecimento extraído do real. O elogio de personagens repetitivas realiza-se
com o contista curitibano nos desastres cotidianos da comédia. Hélio Pólvora está também distante de O. Henry, um dos
mais populares contistas dos Estados Unidos, que escreveu
mais de trezentos contos durante o período de dez anos, com
vistas ao registro de flagrantes da vida cotidiana de Nova Iorque, com seus tipos e dramas. O. Henry tornou-se em pouco
tempo um contista do gosto popular, que funciona na escrita
prazerosa armada com habilidade para atrair o leitor. Propõe
o enredo curto, sem descrições, impressões e devaneios, embutido no acontecimento que corresponde ao registro de um
incidente da realidade circunstante.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Hélio Pólvora, nos atritos extremos das solidões, desencontros dos seres em aflição, incursões e questionamentos acerca de nossa condição contraditória, com seus contos que acontecem no sul da Bahia, exerce o que a crítica costuma chamar de
regionalismo de espírito. Demonstra essa feição nos três primeiros contos de Mar de Azov .
No conto que dá título ao livro, salta aos olhos que a sequência de imagens, metáforas e alusões poéticas preenchem o cenário desse seu tom íntimo, emotivo, transfigurador da paisagem
circundante em conexão sensitiva com a paisagem interior dos
personagens, imersos nas águas da memória e do curso do tempo, que flutua e desliza no presente e passado. Se uma paisagem
marinha lá fora bate, volta, bate, despejando seus rolos de algodão
na praia, já outra,em sintonia com a zona interior do personagem,
derrama suas ondas de sofrimento nos recônditos da alma. Impõe
seu timbre diante da impotência de se reverter o drama, em nível
sofrido, de outras águas em permanentes conflitos.
O contista refere-se a um mar que existe lá fora não como
adorno no exercício luminoso do estético. Ele recorre ao cenário que ressoa lá fora como um elemento que despeja na trama
projeções da vida examinada com perdas nos horizontes pessoais do personagem. E assim aproveita esse mar que em cima
ilumina e embaixo ronca como um bicho fantástico para interligá-lo àquele tempo interior do adulto, bem como do menino ao
lado do pai, nas bicicletas ambos pedalando pela praia, rumo ao
Pontal dos ilhéus. No menino que é socorrido pelo pai quando
sofre o acidente e quebra o braço. No adulto que vem do Rio de
automóvel em busca do aconchego da mãe, que já está morta.
Nesse mesmo tempo dolorido, que, fundido em dois planos, do
passado e do presente, como se fosse uma coisa só, na duração
de um só instante, narra-se a viagem daquele homem que veio
de longe, escolhido pelo Anjo da Morte, em busca do afeto materno. Há que ressaltar os lances pungentes em que no tempo
interior do adulto reencontram o menino, nesse retorno em que
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
a consciência sabe que a mãe permanece no primeiro, mas que
de fato ela já não mais existe.
Há que destacar ainda em Mar de Azov certas preciosidades que apontam para nossa identidade em busca de uma explicação do que somos no enigma da vida. O menino pergunta
ao pai o que é ser homem, e o pai responde que é assumir a
realidade da vida. Em outro trecho, o pai mostra que viver é
difícil “... como transportar na mão um copo cheio de água, por
exemplo.” O menino observa que a água não pode derramar, o
pai diz que não deve derramar, mas transborda, por mais que
se tenha cuidado. A tentativa de recuperar nossa identidade que
se perde no tempo é a mostra corajosa e digna do escritor que
acumulou experiências, sabe manejar com sobras sua capacidade
artística para que nos force a pensar e sentir a vida. Sábios são os
mais velhos, os que armazenaram erros e aprenderam com seus
desacertos, o pai disse ao filho.
“Zepelins”, como o conto “O Outono de Nosso Verão”,
do livro Massacre no km 13, é uma narrativa primorosa sobre o
tema do amor. É a história da implantação de um núcleo integralista em Itabuna, lá pelos idos da Segunda Guerra Mundial.
O Major Taborda, na condição de chefe regional da ideologia
extremista, é o incumbido da missão e traz com ele a esposa
Isabel, de traços brancos definidos, vivências apuradas em outros mundos civilizados e que por isso não se ajusta ao tédio que
lhe causa a cidade pequena. O clima amoroso, que se faz real,
entre o moço da cidade interiorana e Isabel, a de “colo generoso
sem ser farto”, culmina em ardentes encontros carnais, que não
se atritam com qualquer espécie de constrangimento. O desfecho surpreendente da narrativa serve para desmistificar o caráter
sem sentido quanto mais niilista de ideologias extremistas.
Em “Começo de Vida”, a vida se faz em meio a frustrações e amarguras. O conto mais próximo da narrativa tradicional,
de princípio, meio e fim, narra os conflitos de pai e filho, que resolve sair de casa pelo mau trato que lhe é reservado nas relações
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
cotidianas em família. A ausência de valorização do íntimo impele
o filho para desejos que se fazem vontade forte, na direção de torná-lo um dia um homem rico. Quando isso acontecer, a revanche
será realizada contra o pai, que sempre o rebaixou na aventura
deprimente da vida.
Das narrativas que integram Mar de Azov a mais complexa
na estrutura e urdidura ficcional é a que se apresenta em “As
Dríades”. Qual o termo que se aplica melhor para delimitar esse
instigante texto de ficção? Apenas o de ficção? O de onírico, que
se desenvolve por meio de imagens e alusões sem contornos
precisos? Ou o de simples fantasia em que entra o transplante
do mito grego para os bosques dos cacauais no sul da Bahia?
Pastoral sob o influxo do clima gerado pela contemplação dos
sentidos diante da terra e das águas, de onde provém a vida?
Devaneio com sua melodia líquida, de inspirações contrastantes,
descrições que se referem à roça de cacau como uma catedral
bela e estonteante, sem princípio nem fim, nas camadas nebulosas e vítreas? Ou tudo isso reunido no aglomerado sutil de uma
narrativa que já nasce belíssima em nossa moderna literatura?
As Dríades na mitologia grega eram divindades que habitavam os bosques. Nasciam nas árvores onde residiam. Não
eram imortais como outras divindades que habitavam a floresta.
Constituíam uma classe das ninfas, havendo outras como as Naíades, que governavam os regatos e as fontes; as Oréades, ninfas
das montanhas e grutas; as Nereiadas, ninfas do mar. Essas três
eram imortais. As Dríades eram companheiras de Pã , o deus da
Natureza, que significava no universo, por extensão, tudo. As
Dríades morriam como as árvores.
A imaginação dos gregos estendia-se para o povoamento
por divindades de todas as regiões da terra e do mar. Os fenômenos naturais, que os gregos atribuíam aos deuses, passaram a ser
explicados depois pelas leis da ciência. Mas o encanto que a ilusão
dessa mitologia criou permaneceu no imaginário de poetas e ficcionistas. Conta-se na mitologia do paganismo que Erisíchton era
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
um homem rústico, de gestos compulsivos, que resolvera profanar
com um machado um bosque consagrado à deusa Ceres. Havia
no bosque um carvalho, que de tão velho e enorme era comparável a uma floresta inteira. Nele eram colocadas guirlandas votivas
e inscrições manifestando gratidão à ninfa que morava na árvore.
Um machadeiro foi incumbido pelo homem grosseiro para derrubar o carvalho. Ele resistiu à ordem que lhe foi dada, em razão
do caráter sagrado da velha árvore. Enraivecido com a atitude do
machadeiro, Erisíschton ergueu o machado e desferiu golpes que
atingiram o corpo e decepou a cabeça do homem desobediente. A
seguir, Erisíchton derrubou com o machado o carvalho, mas foi
castigado pela Fome, a pedido de Ceres, que escutou os clamores
das Dríades. De tanta fome, que nunca conseguiu saciar, Erisíchton morreu devorando todas as partes de seu corpo.
O aproveitamento da mitologia grega em nossas letras
atraiu Sosígenes Costa na elaboração de Iararana, poema narrativo de temática indianista sobre a mítica do cacau. Na epopeia
curiboca, Sosígenes Costa introduziu o personagem Tupã-Cavalo,
um centauro, que veio de Portugal, depois de ter sido expulso da
Grécia. Elementos da tragédia grega também foram compartilhados por Adonias Filho, que os transfigurou em seus romances
e histórias, cuja ação desenvolve-se na infância da civilização cacaueira baiana. Textos ficcionais desse escritor maravilhoso exprimem contradições, paradoxos, dúvidas, possibilidades de se refletir sobre a existência, o cosmos, as situações de estarmos aqui em
nossas relações sociais e com o destino dentro de uma geografia
específica, de zonas primitivas com naturezas bárbaras.
Segundo Everardo R. G. Rocha, o mito faz parte daquele
conjunto de fenômenos que espelham uma coisa inacreditável,
impossível de ser real, com suas passagens muito antigas, próprias de uma tradição. O aspecto sedutor do paganismo quanto
ao mito das Dríades vai atrair o contista Hélio Pólvora, que o
faz migrar numa narrativa perfeita para a zona cacaueira baiana. Nesta poética das águas, o contista não propõe figuras de
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contornos definidos. O tempo dessas ninfas, destituídas de traços corporais precisos, atravessa as quatro estações numa fusão
de atemporalidade onde “o tempo é o mesmo, a tarde igual”.
Magdala é filha e, ao mesmo tempo, mulher de seu pai.
Afugenta todas as mulheres que antes foram dele. Não se sabe
distinguir se Edméa, Laura, Helena são todas e uma só. Magdala tem “imagem idêntica a da mulher que se despe e entra na
água”. Podemos pensar que o que Hélio Pólvora pretende dizer
nessa narrativa está articulado com os tecidos verbais da metáfora, e do próprio mito, tanto é o texto feito de alusões com uma
mensagem que não se faz codificada literalmente. Nessa pastoral
constituída em sua matéria de fios melódicos, na tessitura da palavra que desliza pelas zonas suspensas do sonho, há alusões de
que não existem vestígios de água em outros planetas do sistema
solar. Até mesmo nas nuvens de Vênus não se deve confiar que
elas contenham água.
As Dríades de Hélio Pólvora descem para o ribeirão, voam
em bando, passam esgarçadas, residem no tronco dos cacaueiros. São furtivas, interferem como por encanto quando menos
se espera. Forçam em seu poder feminino que sejam contempladas. Suas atitudes furtivas confundem-se no córrego, “vestido
solto em cima da pele, colando-se então nos abismos de seus
corpos quando saem a escorrer água, ou então espojando-se na
água, em algazarra, como éguas que em tardes de calor e poeira
se espojam suadas no potreiro”. (pg. 97).
Para o crítico Fausto Cunha, na última aba do livro, tratase de uma pequena obra-prima, de riquíssimo tecido verbal. A
memória e o imaginário fundem-se nos presságios da morte, que
é a da natureza em nosso planeta e a de planetas distantes. Dos
acordes dessa melodia com estofo de uma pastoral, localizada
nas roças de cacau da Bahia, de fato desprende-se uma das páginas encantadoras da moderna ficção brasileira.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
REFERÊNCIAS
POLVORA, Hélio.Mar de Azov, contos, Primeiro Lugar do Prêmio
Bienal Nestlé de Literatura Brasileira, Editora Melhoramentos, São
Paulo, 1986.
----------------------- Massacre no km 13, contos, Edições Antares, Rio de
Janeiro, 1980.
COSTA, Sosígenes. Iararana, Editora Cultrix, São Paulo, 1979.
GRASSI, Ernesto. Arte e mito, Livros do Brasil, Lisboa, sem data.
ROCHA, Everardo P. G. Rocha. O que é mito, Editora Brasiliense, São
Paulo, 1985.
BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia, Publicações Ediouro,
Rio de Janeiro, 2001.1
Cyro de Mattos é contista, novelista, romancista, cronista, poeta e
autor de livros para crianças e jovens. Autor de 50 livros. Tem livros
pessoais publicados em Portugal, Itália, França e Alemanha. Prêmios
importantes, como o Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras
e o Internacional de Literatura Maestrale Marengo d’Oro, em Gênova, Itália, segundo lugar, duas vezes. É membro efetivo do Pen Clube
do Brasil. Pertence ao Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e é
membro correspondente da ALB.
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POESIA & ORTOGRAFIA
CARLOS FELIPE MOISÉS
A ortografia também é gente.
Bernardo Soares
A maneira correta de grafar as palavras
J
á nos bancos escolares, muitos anos e vários acordos ortográficos atrás, a intuição me segredou que ortografia é só
uma questão de hábito, não há por que se incomodar tentando
entender. Habituei-me, então, a grafar “ràpidamente”, “sòzinho”, “tôda” e por aí vai, quer dizer, ia. Na aula em que a
professora explicou que “tôda” se escreve assim, para não se
confundir com “toda”, uma espécie de ave pequena, não me
contive: “Mas, professora, ninguém nunca viu essa tal ave”.
E acrescentei: “Por que não botam o acento no passarinho e
deixam o toda e o todas em paz?”. A professora sorriu, os colegas gargalharam, como se eu tivesse feito uma piada. Mas era
a sério. Foi a única vez, na vida, até agora, que me interessei
por ortografia. Era só um passarinho, é verdade, e um acento
circunflexo, coisa de somenos, mas, não fosse o humor involuntário, podia ter sido um bom começo.
Daí por diante, sempre que a oportunidade se ofereceu,
o humor passou a ser proposital, e nunca tive problemas com a
matéria. A maneira correta de grafar as palavras? Vamos fixando
aos poucos, a memória visual ajuda, habituamo-nos, e está resolvido. É só não permitir que o hábito se enraíze, ou seja, convém
saber que não é para sempre. Foi o que aconteceu quando algum
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
“acordo”, não sei qual, decretou que os acentos lembrados acima tinham sido banidos. “Caramba!”, foi minha primeira reação.
“Agora que já estava habituado?”. Senti-me traído. Mas aos poucos fui-me adaptando à nova grafia e tudo deu certo. Também
podia dizer que tudo deu errado: continuei a achar que ortografia não era tema que merecesse maior atenção.
Adquirir novos hábitos (ortográficos) não é difícil. Difícil
é aceitar, como tem acontecido ultimamente, que mal nos habituamos, pronto!, não vale mais nada. Quase não deu tempo de
transformar em hábito a novidade, e já vai ser preciso acostumar-se a outra, que vem por aí. Mas ortografia é assim mesmo, e
não há muito que fazer, a não ser habituar-se. E não ter preguiça
de consultar o dicionário, mas um dicionário atualizado. Se o
caso for ortografia, esqueça o Caldas Aulete que você folheava
na infância, e guarda até hoje, como relíquia preciosa. Os dicionários, ah, os dicionários...
Manuel Bandeira queixava-se de ser obrigado a parar,
para ir verificar num deles “o cunho vernáculo de um vocábulo”.1 Era o que ele fazia, e continuou a fazer, mesmo depois de
ter-se queixado. A diferença é sutil e Bandeira estava certo: não
é preciso parar. Deixe o fluxo correr solto, mas, em seguida,
não fique muito entusiasmado, desconfie e... consulte o dicionário. Não há poeta que não o faça, confesse-o ou não. Todo
poeta sabe que é impossível guardar toda a língua portuguesa,
ou qualquer outra, na memória, e tê-la ali, na ponta dos dedos,
no momento necessário.
A exceção é escrever “em transe”, indo buscar no Além
ou nos subterrâneos do Inconsciente, o que vai sendo anotado
no papel, já pronto e definitivo, nenhuma palavra a mais nem
a menos. Mas são poucos os poetas capazes disso. Quantas
e quais palavras são necessárias para que se venha a escrever
um poema? Os que o fazem “em transe” não se preocupam
1
Libertinagem, in Poesia e prosa, vol. I. Rio de Janeiro, José Aguilar, 1958, p. 188.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
com isso; os demais nunca sabem. Por outro lado, não se trata
apenas de escolher as palavras. Escrever um poema demanda
outros recursos (linguísticos), para além da seleção de uns vocábulos. Seria útil, no caso, a implantação de uma rede de desmanche, oficinas especializadas em desmontar livros velhos de
poesia, separando e armazenando as partes ainda aproveitáveis
(sempre há alguma), a serem reutilizadas em livros novos. Êmbolos, polias, bielas, filtros, juntas, correias de transmissão...
É um não acabar de engrenagens sem as quais as palavras são
só peças inertes, entregues à própria sorte. Como poesia não
é biodegradável, demora séculos para ser absorvida pelo ecossistema, as vantagens de um desmanche poético são muitas:
não seria um comércio clandestino, seria uma iniciativa ecologicamente correta e garantiria, embora por pouco tempo, um
mínimo de qualidade à poesia perpetrada pelos neófitos. Fantasia desarvorada? Concordo. Mas fique aí, só para constar.
Voltemos ao ponto de partida.
Tendo começado por confessar que nunca dei muita importância à ortografia, convém explicar por que resolvi fazê-lo,
agora. É simples. Como sempre lidei com a matéria na prática,
isto é, com base na intuição e não no estudo, mais de uma vez
pensei em pôr no papel o que penso a respeito. Mas isso nunca
chegou a acontecer, “se quedó en el tintero”, como dizia meu
velho professor de espanhol. Talvez tenha faltado, sempre, um
bom pretexto, que o acaso acabou por me oferecer.
Como tem ocorrido com certa frequência, dia desses
eu me entretinha, sem compromisso, com as infindáveis andanças de Bernardo Soares, o ajudante de guarda-livros criado
por Fernando Pessoa (de certo para rivalizar com o heterônimo mais famoso, o que guarda rebanhos), quando aconteceu
deter-me numa frase, uma só, que passou a piscar, insistente,
qual luminoso de beira de estrada, no meio da noite deserta:
“A ortografia também é gente”. Tomei-a de imediato como
epígrafe deste capítulo, embora não seja capaz de atinar com
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
seu sentido. É que, da minha parte, foi só um devaneio, que
logo passou, mas o luminoso continuou a piscar. Havia algo
ali que podia/devia ser tomado a sério, mas levá-lo a termo
estava (está) fora do meu alcance. Ficou apenas o forte sopro
de humor, finíssimo, cortante, que a frase contém.
Antes que o devaneio passasse, o acaso (mas não seria
o mesmo: uma coisa não tem que ver com a outra) levou-me
a tomar conhecimento da verdadeira cruzada em que o poeta brasileiro Glauco Mattoso vem-se empenhando, na tentativa
de nos convencer a adotar a sua “orthographia etymologica”.
Fosse outro, seria só mais uma extravagância. Mas tratando-se
de um poeta maior, a quem aprendi a admirar desde os tempos
do “Jornal Dobrábil” (na ortografia então vigente), pensei: vai
ver, ortografia merece alguma atenção. Foi quando a frase de
Bernardo Soares intrometeu-se nesse segundo devaneio. Incapacitado de analisar a contento qualquer dos dois, e menos ainda
de aproximá-los, concluí que seriam avisos, mais ou menos aleatórios. Talvez esteja na hora de reconhecer: a ortografia, de fato,
merece alguma atenção.
Ato contínuo, decidi atender aos avisos, a fim de pôr em
ordem o que penso – não a respeito de ortografia, em si, menos
ainda de etimologia (temas para especialistas), mas das relações
entre a maneira correta de grafar as palavras e a poesia. Era o
pretexto que faltava. Julguei que seria uma boa oportunidade
para ordenar, não as ideias (nesse terreno, continuo jejuno delas), mas umas intuições.
Foi o de que necessitei para me certificar de que a ortografia jamais representou qualquer ameaça à sobrevivência da
poesia. Ambas convivem, e até muito bem, eu diria, qualquer
que seja o acordo ortográfico da hora. E ainda pude verificar
(embora não o planejasse) que, mesmo considerada a partir desse ângulo tão modesto, o de suas relações com a ortografia, a
poesia enfrenta, sim, e cada vez mais, sérias ameaças. Enfim, não
chega a ser um manifesto em defesa da poesia, mas é quase.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Vamos ao primeiro obstáculo, a definição usual: ortografia é a maneira “correta” de grafar as palavras. Por que
“correta” entre aspas? Porque não há lógica ou lei, natural
ou científica, estável, que garanta a “correção” ou a “incorreção”, em si, dessa ou daquela maneira de escrever. Tirante as
obviedades, que nesse terreno são muitas, tudo é questionável, flutuante ou até mesmo arbitrário: depende do “acordo”
ou da convenção em vigor. Não surpreende, pois, que regras
e normas variem ao longo do tempo: o “correto” de ontem
pode vir a ser o “incorreto” de hoje, ou vice-versa. A ortografia sempre esteve à mercê de uma minoria, empenhada
em conseguir que sua ideia particular se imponha a todos,
não por consenso, mas por decreto, por vezes subordinado a
pesadas interferências políticas ou econômicas, como parece
ser o caso da tentativa de unificação ortográfica ora em curso.
Mas não consta que algum poeta tenha sido jamais convocado a participar, como poeta, não como gramático, da comissão
responsável por esse ou aquele acordo. Mas a isso (o que o
poeta teria a dizer a respeito?) chegaremos mais adiante. Ainda temos alguns obstáculos a superar.
A ortografia diz respeito a um só aspecto do idioma,
sua forma escrita, não tendo nada a legislar no que respeita,
por exemplo, à pronúncia. É por isso que, entra reforma, sai
reforma, entra acordo, sai acordo, e os usuários continuam a
pronunciar as palavras como faziam antes. Só os desavisados
acham que devem passar a pronunciar “sequestro” e “aguentar” (sem o “u”), porque o atual acordo proíbe as grafias “seqüestro” e “agüentar”.
Com isso já se coloca uma questão capital: a forma escrita
serve-se de um conjunto de símbolos, as letras, conhecido como
“alfabeto” ou “abecedário”, que por sua vez também não passa de convenção, não obstante vigore, há séculos, para muitos
idiomas. Outra vez: qual é a lógica, ou a lei natural ou cientifica,
que justifica a sequência universal que vai de A a Z? Por que o
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
“n” e o “g” precisam vir logo depois, respectivamente, do “m”
e do “f ”, e não em outro lugar qualquer? Por que não podemos
começar pelo “z” (ou pelos simpáticos “k”, “w” ou “y”, recentemente admitidos) e ir saltando pelas demais letras, na ordem
que bem entendermos? (Rebeldia gratuita, não é mesmo? Excentricidade de poeta...) A resposta é uma redundância: porque
estamos habituados a isso, desde tempos imemoriais. Tal convenção tem alguma utilidade? Parece que sim. Se nessa área não
houver assentimento unânime, nunca saberemos, diante dessa
ou daquela palavra, se estamos lidando com as mesmas palavras, do mesmo idioma, tanto para quem as (orto)grafa como
para quem as lê. Se não for assim, a anarquia se alastra e a língua
deixa de servir como veículo de comunicação entre seus usuários. (E o poeta com isso? Bem, adiante veremos.)
Quando se trata de “alfabetizar”, isto é, ensinar as pessoas
a ler e a escrever, e já que nenhuma lógica justifica a ordem alfabética, que fazer senão memorizar: A-B-C-D e assim por diante?
Mas saber de cor o abecedário, na ordem “certa”, não é saber
ler e escrever, é só o primeiro passo, a aquisição das “primeiras
letras”, como se diz, algo ainda distante de saber ler e escrever. O nome que damos a isso, “alfabetizar”, embora não seja
o único culpado, é responsável por boa parte da confusão. Talvez por isso os doutos de hoje prefiram falar em “letramento”,
nome que pode conduzir a outros mal-entendidos, mas, com
boa vontade, aceitemos que seja mais adequado. No entanto,
nossas crianças, agora “letradas” (é assim que se diz, imagino),
continuam a ler e a escrever tão bem ou tão mal quanto as outrora apenas “alfabetizadas”.
Outra questão, decorrente da anterior, é a da relação entre as letras e os sons, ou entre grafia e fonética. O abecedário é associado não aos sons, mas aos nomes das letras que o
compõem. O nome da letra “j”, por exemplo, é formado por
quatro sons (j-o-t-a), só o primeiro dos quais lembra o correspondente à letra. Minha amiga Yara, que tem todo o direito de
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
grafar seu nome com “y”, ficaria desolada se este, modesto dissílabo, soasse na voz das pessoas como imponente polissílabo:
Ipsilonara. Creio que todos, do leigo absoluto ao douto erudito, ficaríamos felizes se a relação entre grafia e fonética fosse
unívoca, isto é, se a cada letra correspondesse um único som,
e se cada som fosse representado por uma única letra. Não é o
que acontece. Os exemplos são inumeráveis, mas vamos lá. (O
caso exige alguma paciência.)
Que som corresponde à letra “c”? Depende. Se em seguida tivermos um “a”, um “o” ou um “u”, o som é “k” (curioso, cocada, peteca), aliás, o mesmo som que representamos por
“qu” (querer, quizumba). Mas, se for seguido de um “e” ou um
“i”, o som já será “ss” (tecer, cinema), e esse mesmo som, além
de ocorrer toda vez que grafamos “ss” (passado, assíduo), também pode ser representado pelo “ç” (caça), ou por um só “s”,
em começo ou final de palavra (saúde, gás), ou seguido de um
“t” (basta). Mas não assim se for seguido de um “m”, pois aí já
soa como “z” (o “z” de zarolho, digamos). Exemplo: fantasma.
“Exemplo”? Sim, claro: tal como o “s” entre vogais (atrasado), o
“x” também pode soar como “z” (exame), mas soa como “ch”,
em início de palavra (xarope) e entre vogais (bruxaria), ou como
“ks”, em final de palavra (tórax). E ficamos sem saber qual é a
exceção, qual é a regra. Por isso muitos hesitam diante de palavras como “tóxico”: é “tóksico” ou “tóchico”? E outros (vítimas
da falácia fonética) acham que o plural de “degrau” é “degrais”.
Nada mais justo. O plural de “sinal”, “fatal”, “normal” etc. não
é “sinais”, “fatais”, “normais”? Em final de palavra, “al” e “au”
não representam o mesmo som? (Sim, sabemos que na prosódia
lusitana “l” é sempre consoante, de modo que a terminação “al”
não é um ditongo, assim como não o é para os gaúchos mais
tradicionalistas. Mas isso é exceção, não é mesmo? Fiquemos,
pois, com a maioria dos falantes brasileiros.) Por que o plural
de “degrau” há de ser “degraus”? Simples: o plural das palavras
não se forma a partir dos sons, mas da grafia. E com isso quase
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abandonávamos o reino da ortografia, para adentrar o da prosódia. Pois é. Se a grafia já fosse fonética, que necessidade haveria
de aprendermos “prosódia”, ou seja, a maneira correta (outra
vez) de pronunciar as palavras?
Enfim, para rematar este quesito, leia em voz alta, para
alguém a seu lado, as palavras “cesta” e “sexta” ou “viajem” e
“viagem”. Depois pergunte a ele ou ela se foi capaz de distinguir uma da outra. E melhor parar por aqui. Se tentássemos cobrir todos os exemplos possíveis do descompasso entre grafia e
pronúncia, cem páginas como esta não seriam suficientes. Nem
necessárias. O argumento está claro: os sons que entram na
constituição dos vocábulos da língua são em número bem maior
que as 26 letras de que nosso abecedário, hoje, dispõe. “Letras”,
convém frisar, são apenas símbolos convencionais, e não há mal
nisso. É só parar com a promessa ou a falácia segundo a qual o
alfabeto é fonético (a cada letra corresponderia um único som, e
vice-versa): sabemos que não é. E aceitar que é tudo convenção,
acordo de circunstância, embora esta dure há séculos, pela (boa)
razão já exposta: a comunicação por meio da língua será o caos,
se cada usuário grafar as palavras como bem entenda. (É o caso
do poeta? Outra vez: chegaremos lá.)
Uma questão de método
Abecedário, ortografia, a maneira como damos representação gráfica às palavras: tudo símbolos, tudo convenção, mais
ou menos arbitrária, que precisa contar com a anuência (ou a
subserviência?) de todos. Mas os especialistas agem como se
houvesse aí leis certas e infalíveis que, de tempos em tempos,
algum decreto despeja na cabeça, já de si um pouco perdida, dos
usuários. Por que especialistas agem assim? Porque ainda não
se libertaram nem do cartesianismo, que rege nossas primeiras
gramáticas, nem do cientificismo a que nos fomos habituando,
desde a metade do século XIX. Especialistas insistem em pensar
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
na ortografia com base na suposta existência de leis gerais, que
permitem lidar metodicamente com o assunto, para que daí resulte um sistema coeso e uniforme. Sistema? Pois então, dizem
alguns, devemos escrever como se fala. Mas o argumento a propósito da relação entre as letras e os sons demonstra a impossibilidade de uma ortografia fonética, a não ser que adotássemos,
em lugar do abecedário, o conjunto de sinais da AFI (Associação
Fonética Internacional),2 aqueles sinais cabalísticos, que só técnicos e especialistas utilizam, quando pretendem dar, à pronúncia,
representação gráfica fidedigna. Ora, se nosso antigo abecedário
já fosse “fonético”, que necessidade haveria de se recorrer a esse
intrincado conjunto de sinais, aliás também conhecido, não por
acaso, como “alfabeto fonético”? De novo, “alfabeto”? A confusão se multiplica.
Então, dizem outros, adotemos uma ortografia etimológica, de acordo com a origem de cada palavra. Mas que fazer com a quantidade de vocábulos a respeito de cuja origem
não temos certeza? (São aquelas formas conjecturais, antecedidas de um asterisco nos tratados que lidam com a matéria.) “Étimo” não é forma escrita, documentada? Que fazer,
então, com as palavras que se originam de línguas ágrafas,
sem representação gráfica, como as indígenas e as africanas?
Claro, usamos a imaginação e inventamos os “étimos” que
nos pareçam mais convenientes. Os fatos não se enquadram
no método? Pior para os fatos... Conclusão: ortografia fonética ou etimológica? Se insistirmos em pensar na língua como
“sistema”, será preciso centrar a atenção em outro foco, que
não a fonética ou a etimologia.
“Regras gerais”, como as postuladas pelos gramáticos,
equivalem a parâmetros, aplicáveis a todos os casos. Acontece
que só alguns, quase sempre os mais simples e óbvios, se ajustam.
Disponível para download em www.steacher.pro.br/alfabetofonetico.pdf
(25.2.2015).
2
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
A desculpa é inevitável: “toda regra tem exceção”. Mas que fazer
com as da nossa ortografia, cujas exceções são em número tão
avantajado e, sobretudo, incidem sobre casos bem mais complexos do que os cobertos pelas regras? Então, quer dizer que, em
matéria de ortografia, só podemos pensar na base do “cada caso
é um caso”? Bem, não exageremos. Nem todo caso é um caso,
mas muitos são, e é preciso lidar com isso, para além do comodismo que é expor a regra em duas linhas, e a seguir acrescentar
outras dez, com um copioso rol de exceções. A chave seria: flexibilidade. Mas esta não se coaduna com o rigor do método que a
maioria dos “donos” do idioma insiste em pôr em prática.
A “solução” tem sido a mesma adotada para o ensino das
primeiras letras: induzir as crianças a decorar as regras, para depois aplicá-las, metódica e sistematicamente, a cada caso, quando se dispuserem a escrever. As exceções? Ora, não demos tanta
importância a isso. Se dermos, o “método” cai por terra e o
“sistema” se esfarela. O pressuposto é que decorar o abecedário,
assim como as regras gramaticais, tornaria a pessoa apta a ler e
escrever. Alguém acredita nisso?
A língua é um animal vivo, rebelde, em constante mutação, e isso todo especialista sabe, mas finge ignorar, tentando
submetê-la a leis gerais e infalíveis, portanto imutáveis. Bem,
imutáveis só até o próximo acordo. Quem enfrenta para valer a
rebeldia e a mutabilidade da língua, esse sim, é o usuário comum,
seja tentando valer-se dos ensinamentos dos especialistas, seja
mandando às favas toda e qualquer lei. Quem também enfrenta,
a seu modo, é o poeta, que conhece bem, e pratica, a lição de
Carlos Drummond de Andrade: “Lutar com palavras / é a luta
mais vã, / entanto lutamos / mal rompe a manhã”.3 Com isso, já
estamos mais próximos do ângulo de visão do poeta.
Drummond não parece estar preocupado com ortografia. Por quê? Porque todo poeta sabe que a maneira de grafar
3
José, in Obra completa, Rio de Janeiro, José Aguilar, 1967, p. 126.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
as palavras está para saber escrever, assim como a linguagem
está para o pensamento, na sibilina visão do filósofo. A linguagem, ensina Wittgenstein, em relação ao pensamento, ou
ao verdadeiro ato de pensar, é só uma escada, imprescindível,
é verdade, razão pela qual precisa ser galgada criteriosamente,
degrau por degrau, mas em algum momento deve ser jogada
fora.4 Insistir nela é marcar passo e abdicar de pensar, tomando
o meio como fim. Não é o que acontece no tocante à relação
entre a ortografia e a verdadeira alfabetização?
Mas qual é o gramático, ou o professor de primeiras letras,
disposto a jogar fora a escada, o conjunto de regras que ele tende a tomar como justificativa essencial da atividade que exerce?
Mesmo sabendo, ou desconfiando, que assim não se alfabetiza
ninguém, que assim ninguém aprende a ler e escrever, todos hesitarão em seguir o conselho do filósofo. Por quê? Porque, livres
das regras, do “método” e do “sistema”, muitos não saberiam o
que fazer. Mas o poeta sabe. E nunca fez outra coisa.
Lutar com palavras
Tudo seria mais simples, e a ninguém ocorreria cogitar
de um tema como “Poesia e ortografia”, se a ferramenta primordial do poeta, a língua, fosse do seu uso exclusivo, e não
a mesma à disposição de todo usuário, alfabetizado ou não.
Aliás, não é preciso saber ler e escrever para falar, ou seja, para
utilizar a mesma língua de que letrados e poetas se servem, no
seu dia a dia. A propósito, aqueles raros dias em que o poeta
se sente suficientemente “inspirado” para escrever um poema
já seria outra história, mas a ferramenta é a mesma. Com efeito, seria tudo mais simples se houvesse uma língua para o uso
comum e outra só para a poesia. Miragem de poeta, claro...
Ludwig Wittgenstein, Tractatus logico-philosophicus, trad. bras., Editora
Nacional/USP, 1968, p. 129.
4
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Mas nem é preciso fantasiar para saber que, se isso se concretizasse, a poesia não seria mais o que tem sido, há séculos. E a
língua também não. Puro nonsense, reconheço, mas talvez ajude
a compreender o que se passa.
O fato de a ferramenta ser a mesma nunca chegou a induzir ninguém a sair por aí, proclamando: “Ah, eu sou poeta,
ou posso vir a sê-lo, quando quiser. A ferramenta já tenho”. Só
alguns o fazem. A maioria parece deter-se no secular consenso
segundo o qual não basta ser alfabetizado para escrever poesia.
Não se trata da ferramenta, mas do uso que se faz dela. No
dia a dia, prevalece o uso funcional, utilitarista: a língua comum
permite que entremos em contato uns com os outros, para intercambiar um pouco de tudo, desde trivialidades descartáveis até
assuntos carregados de valor ou importância mais duradouros.
Já quando se trata de poesia, o uso é outro: não-utilitarista, não
-imediatista, não-funcional, não para simplesmente comunicar
esta ou aquela eventualidade. A língua permite ao poeta expressar o que, em princípio, só ele enxerga: o inusitado, o surpreendente, a estranheza que se esconde nos interstícios do cotidiano.
E nos interstícios da língua.
Para o uso corriqueiro, graças à insistência dos gramáticos e seus acordos, a língua é só um veículo transparente,
ao qual recorremos como autômatos, sem lhe atribuir importância em si. Para o uso poético, a língua é um tecido poroso,
maleável, e é preciso explorá-lo como tal. Só assim será possível perceber que o que temos a comunicar, das trivialidades
aos assuntos mais sérios, não tem existência autônoma, aí
fora, mas depende sempre do modo como o fazemos, isto
é, das palavras que empregamos. Por isso Drummond recomenda lutar com elas. Conselho de poeta para poeta? Sem
dúvida. Mas, também, de cidadão para cidadão. Lutar com
palavras é uma necessidade, tanto para o homem comum
quanto para o poeta, em especial naqueles momentos de perplexidade (“inspiração”?) diante do generalizado desconcerto
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
do mundo – que está aí mesmo, debaixo dos olhos de todos,
mas só o poeta é capaz de enxergar.
Muito antes de Drummond, outro poeta, Horácio, já ensinava, referindo-se às palavras: “Inutilia truncat” (corta o que for
inútil).5 Outra vez: conselho de poeta para poeta e, concomitantemente, de cidadão para cidadão. Eliminar o que for supérfluo,
ficar só com o essencial, ao falar ou ao escrever, traz notáveis
benefícios, tanto ao cidadão comum quanto ao poeta. Para isso,
para saber o que é essencial, e expressá-lo, é preciso “lutar com
palavras”. Mas, no dia a dia, o homem comum já se vê empenhado em tantas e tão prementes lutas, que essa outra – com as palavras – lhe parecerá luxo supérfluo, ao qual só o poeta se dedica.
O poeta e o gramático. Então, voltamos ao ponto de partida?
Pode ser que sim. Em todo caso, vejamos. A língua evolui,
embora nem sempre para melhor, como se acreditava no século
XIX, assim como a poesia, mas esta jamais a reboque daquela.
Não consta que a eliminação do trema, de umas consoantes mudas e de alguns acentos, ou a confusa “regra” ora adotada para o
uso do hífen nas palavras compostas, tenham comovido este ou
aquele poeta, estimulando-o a propor uma nova poesia. O uso
poético da língua é sempre inventivo, criativo, original, mas nada
se inventa ou se cria quando somos obrigados a grafar “arguir”
em vez de “argüir”, ou quando “para” (preposição) e “para”
(verbo) passam a ser a mesma coisa... graficamente falando.
Com efeito, língua e poesia se transformam, esta jamais a
reboque daquela... A recíproca, porém, não é verdadeira. Algo
das mudanças introduzidas na língua, ortografia à parte, pode
ser creditado à inventividade de seus poetas. Quanto da consolidação da língua portuguesa, que então engatinhava, à procura de um “padrão” literário, se deve à original performance
de Camões, em Os lusíadas? Quantas expressões, hoje correntes, ao alcance de todos, foram na origem invenção de poetas
5
Horácio, Arte poética, trad. port., Lisboa, Livraria Clássica Editora, s.d., p. 120.
►► 125
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
como Pessoa ou Drummond? Entregue à guarda exclusiva dos
usuários comuns, guiados pelos gramáticos, a língua seria, há
muito, organismo esclerosado, reduzido a umas poucas fórmulas mecânicas. Eis a razão pela qual é a mesma língua, para o uso
corriqueiro e para a poesia. A necessidade de inovar, para que
a língua continue a ser organismo vivo, é um dos fatores que
move o poeta. Inovar para quê, se não para que suas “excentricidades” venham a fazer parte do patrimônio comum, colaborando para que a comunicação entre humanos se realize? Se
houvesse uma língua para a poesia e outra para o uso cotidiano,
o poeta não teria por que inovar e passaria a falar sozinho.
Ou aos demais poetas que por acaso julgassem falar a mesma
língua. Num caso e noutro, a “evolução” é um processo cadenciado, extremamente moroso e, via de regra, imperceptível. O
poeta, ao contrário do homem comum, lida com a consciência
dos fatos, não com sua percepção imediata. Daí ser necessário
lutar com palavras, o que exige consciência atenta, foco, reflexão continuada; portanto, largo tempo de maturação.
Acontece que, indiferente à morosidade da língua e da
poesia, a realidade à nossa volta vem acelerando cada vez mais
seu ritmo de mudança: industrialização crescente, progresso ilimitado das ciências e da tecnologia, urbanização desenfreada,
superpopulação das grandes cidades, proliferação dos apelos
que induzem o indivíduo a aceitar como inevitável o fato de a
existência humana ter-se transformado em frenética sucessão de
comprar e vender, exibir e consumir. A consciência que o homem
pudesse ter do que se passa em redor é substituída pela percepção
simultânea dos infinitos estímulos que enfrenta no dia a dia...
para recomeçar do zero, no dia seguinte.6 A “era da informação”
que vivemos, todos plugados a qualquer coisa que ninguém saberia dizer o que seja, é o coroamento do processo.
Cf. Erich Kahler, The disintegration of form in the arts, New York, George
Braziller, 1968, pp. 77-131.
6
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
A língua – a dos gramáticos e do usuário comum – faz o
que pode, incorporando rapidamente as novidades lexicais (estrangeirismos, neologismos, tecnicismos, modismos) que proliferam no bojo das incontáveis “especialidades” que se multiplicam, a todo instante. Mas é só esforço inútil, para manter a
ilusão de que a língua possa ou deva dar conta disso. A comunicação verbal plena (palavras bem escolhidas, frases com sentido
e propósito, explanações bem arrazoadas) é cada vez mais rara,
vestígio de uma era extinta. A quem isso faria falta? Ao poeta,
com certeza. Mas, com mais certeza ainda, ao homem comum,
agora reduzido à triste condição de feixe de instintos, mero animal (racional?) que produz e consome. E vê ser destruído o que
lhe resta de humanidade, satisfeito e feliz.
E os poetas? Alguns sorriem, não de satisfação e felicidade,
mas porque agora podem bater no peito: é o que eu dizia, é o que
eu vinha dizendo há tempos, e ninguém me deu ouvidos. A decadência da civilização é um dos temas fortes da poesia moderna,
quer dizer, a partir do Século das Luzes, assim chamado; a partir
da grande libertação que foi a vitória do Racionalismo contra as
trevas do mundo antigo. E, logo em seguida, a partir da “descoberta” do Inconsciente e da Irracionalidade, erigidos em vetores
essenciais da condição humana. É um pouco disso o que temos
em William Blake, Hölderlin, Novalis, depois em Baudelaire, Rimbaud, Gottfried Benn e todos os grandes poetas dos séculos XIX e
XX, incluindo os futuristas, os surrealistas, a vanguarda iconoclasta, como Ezra Pound, na esteira de Mallarmé, ou os “conservadores”, como Eliot, na senda do simbolismo e da poesia metafísica
do século XVII. Vem de longe o brado de revolta dos poetas, contra a desumanização que se alastra, contra a perda de consciência
do valor das palavras e da própria vida humana.
Paralelamente, os poetas vêm tentando sintonizar com
as mudanças em redor, tornando mais ágil, mais concisa, mais
nervosa a sua fala, quer dizer, a sua escrita – “palavra em liberdade”, como dizia Marinetti, agora sintonizada com a grande
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
urbe, a “aldeia global”. É o “inutilia truncat”, recomendado
por Horácio, levado ao limite extremo, para além do qual não
haverá mais comunicação, mas só ruído, estilhaços verbais, balbucio hermético, o silêncio, o vazio.
De outro lado, o ritmo frenético do nosso tempo acabou por
gerar, por volta da metade do século XX, um avanço radical, a vanguarda da vanguarda, isto é, uma nova poesia, que incorporasse, à
expressão verbal, outros apelos – o visual, o sonoro, o táctil, o gestual – que passam a dividir, de forma constelada, o espaço até então
soberanamente ocupado pelas palavras. Surge então uma nova linguagem, naquela altura dita “verbivocovisual”, que se propõe realizar o sonho mirífico de uma “língua” para uso exclusivo da poesia,
premeditadamente divorciada da língua comum. Para isso, era preciso abrir mão da consciência comunicativa, em favor da percepção
instantânea dos sentidos. Os excessos e exageros dessa tendência,
não obstante o caráter persuasivo da teoria que a enforma, conduziram a uma espécie de solipsismo, de forte pendor autista: a poesia
trancada em si mesma, incomunicável. Bem por isso, a maioria dos
poetas em atividade nas últimas décadas (na contramão, como sempre) tem insistido na antiga espécie de poesia, então considerada
“obsoleta”, feita de palavras e de consciência, ainda empenhada na
utopia de resistir à desumanização crescente.
A liberdade do poeta
E o modesto tema de que partimos, a ortografia, como
fica? Apesar das altas paragens a que fomos conduzidos, não
o perdemos de vista. Mas foi necessário esse largo excurso
para que pudéssemos retomá-lo. A ortografia, claro está, não
teria nada a fazer na nova linguagem proposta pela vanguarda
mais radical. Caso esta tivesse prevalecido, teria sido reduzida à tipografia, como ocorreu em mais de um momento:
letras soltas, no novo espaço a ser partilhado com os sons, as
imagens, os gestos etc. (O comércio legal do desmanche po128 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
ético, sugerido de início, teria sido extinto. Ou passaria para
a clandestinidade.) E há uma lógica de rigor que o justifica:
se a poesia pretende inovar, para além da língua comum, é
preciso romper com todos os obstáculos que cerceiam a liberdade e o engenho do poeta. A ortografia é o primeiro e mais
banal desses obstáculos e a vanguarda da vanguarda supera-o
com notável simplicidade: se desistirmos das palavras, não
teremos de nos preocupar com a forma como são grafadas.
Decretemos, pois, o “fim do verso”. Com isso nos livramos,
também, de obsolescências como a conjugação dos verbos,
as flexões, a regência, as regras de concordância, a construção
das frases, a sintaxe. A gramática, em suma.
O pressuposto – equívoco de parvenu – é que toda a
poesia anterior à eclosão da vanguarda radical fosse dependente das regras gramaticais e não fizesse senão repetir o uso
burocratizado da língua. Ainda que isto se aplique a muitos
poetas (os falsos, que sempre houve), não se aplica aos grandes, como os mencionados até aqui. Estes sempre deram à
ortografia, por exemplo, a importância devida, que é quase
nenhuma: é só aquela escada que, segundo Wittgenstein, deve
ser jogada fora. Mas só depois de ter sido galgada, degrau por degrau.
Poesia genuína é sempre insubmissão, rebeldia, transgressão. Mas há que distinguir: de um lado, temos a transgressão com propósito, praticada pelo poeta que conhece bem as
“normas” a serem transgredidas, a serviço da comunicação
de uma nova consciência das coisas; de outro, a transgressão
gratuita, praticada pelo espertalhão, que capta no ar a nova
ordem (transgrida ou pereça!), e vai transgredindo indiscriminadamente, com escasso conhecimento da matéria com que
lida, a língua. E conhecimento mais escasso ainda da lição
dos que o antecederam. Uns transgridem porque sabem o
que fazem; outros, porque não sabem.7
7
Cf. Carlos Felipe Moisés, “O pacto da transgressão”, in Tradição & ruptura,
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
O filósofo diria: se ignorar a escada, você jamais chegará
perto do pensamento, ficará sempre aquém da magnífica poesia
que sua desmedida ambição almeja realizar. Jogar fora a escada,
rebelar-se contra todas as normas é, de fato, necessário... desde
que a “nova” língua proposta pelo poeta continue a ser, de algum modo, comunicável também ao leitor comum, a despeito das
dificuldades e obstáculos com que este se depare.
A aventura da modernidade põe a nu o que já se sabe, há
tempos. Poesia não é, como acreditam muitos, aquela entidade
incorpórea, coisa da “alma” e da “emoção”, feita de sonhos, visões e sentimentos vagos, pairando no ar, inacessíveis. Poesia é
linguagem, materialidade tangível, engendrado verbal construído
pelo poeta. Este, para lidar com sua matéria, só dispõe das palavras, e a única maneira de ser bem sucedido é lutar com elas.
Para isso, é imprescindível o recurso à racionalidade. Se souber
fazê-lo com proficiência, o resultado será a poesia que almeja. Se
superestimar o polo da emoção, não chegará perto; se privilegiar
o da razão, fará outra coisa.
Mallarmé ensinou a seu amigo Degas: “Poesia não se faz
com ideias, mas com palavras”. Apesar da boa intenção, isso não
ajudou o pintor a converter suas ideias em poemas. Degas logo o
esqueceu e continuou a fazer o que sabia: pintar e esculpir. Mas
o dito espirituoso do amigo poeta, com sua ênfase retórica na
dimensão até aí negligenciada (a forma, o modo de dizer), teve longa
vida. A ênfase excessiva ou exclusiva nesse aspecto fez que, daí
por diante, os candidatos a poeta, sequiosos da fácil “novidade”
que aí se anunciava, passassem a se confundir com os gramáticos,
deslumbrados com a forma pela forma, marcando passo nos degraus da escada, que mal começou a ser galgada. Poesia se faz com
palavras, sem dúvida, mas estas devem ser, sempre, portadoras de
ideias. Ortografia? Talvez seja o que menos conta. Mas voltemos,
para valer, à maneira “correta” de grafar as palavras. Um ou outro
Vila Velha, Opção Editora, 2012, pp. 17-32.
130 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
exemplo será suficiente para ilustrá-lo, e para equacionar a questão, afinal, elementar.
Mário de Andrade, talvez estimulado pela sugestão de
Manuel Bandeira, que dizia estar “farto do lirismo comedido”
e queria deixar de “macaquear a sintaxe lusíada”,8 insistiu em
convencer-nos de que era preciso escrever “brasileiro”. Estudioso de folclore e de etnografia, deixou larga contribuição nessas
áreas, incluindo um estudo inacabado, A gramatiquinha da fala
brasileira (que ele próprio considerava “não obra técnica, porém
obra de ficção”9), e a idealização de um Congresso da Língua
Nacional Cantada, realizado em São Paulo (1937). O bom propósito se reflete em sua poesia, para a qual adotou, embora de
forma não sistemática, uma ortografia peculiar: em vez de “se”
(conjunção), “si”; “milhor” em vez de “melhor”; “siquer” e não
“sequer”, “quási” e não “quase”, “mãi” e não “mãe”, e assim
por diante. Podemos ir direto ao ponto.
Quando lemos, como ele grafou, “A manhã roda macia
a meu lado / entre arranha-céus de luz / construídos pelo milhor engenheiro da Terra”, ou “É como si a madrugada andasse
na minha frente”,10 podemos estranhar aquele “milhor” e este
“si”, mas isso é imediatamente superado e logo atinamos com o
que os versos querem dizer. Mas se lermos “melhor” e “se”, em
alguma edição que atualize e uniformize a ortografia, leremos...
a mesma coisa. A ortografia peculiar nada acrescenta ao que
os versos dizem, perfeitamente, na ortografia corrente, salvo
a momentânea e descartável estranheza. Alguém diria, talvez o
próprio Mário dissesse: se pronunciamos “si” e “milhor”, então assim é que devemos escrever. Bem lembrado, sem dúvida,
Libertinagem, ed. cit., pp. 188 e 200.
Apud Elisa Guimarães, “A gramatiquinha da fala brasileira”, artigo
disponível para download em seer.fclar.unesp.br/itinerários/article/
viewFile/2491/2092 (25/02/2015).
10
Mário de Andrade, Losango cáqui, in Poesias completas, São Paulo, Martins,
1974, 4ª ed., pp. 84 e 91.
8
9
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
mas isso só seria razoável se o procedimento se estendesse, de
maneira uniforme, a todos os vocábulos por ele empregados. Se
levasse a ideia a tal extremo, Mário teria desistido do abecedário,
para adotar o “alfabeto fonético” da Associação Internacional.
Só assim seria possível escrever “brasileiro”, como ele queria. E
não haveria leitor que o acompanhasse, a não ser meia dúzia de
eruditos, para os quais a poesia, em princípio, não diz nada.
Escrever “brasileiro”, como defendia Mário de Andrade,
tem que ver com regionalismos, coloquialidade, ductilidade da
frase, formas de tratamento, sintaxe flexível e ritmos cadenciados.
Daí o interesse do poeta pela língua falada e cantada: o ouvido não
tem dificuldade em identificar, logo às primeiras palavras, qualquer das várias modalidades da fala brasileira. Mas, diante da forma escrita, o caso é outro: a maneira de grafar as palavras (quantas vezes será necessário insistir neste ponto?) não tem como ser
“fiel” aos sons que as constituem e não determina o modo como
o fazemos. Nós pronunciaremos à brasileira (quanto a isso, Mário
podia ficar tranquilo) e os portugueses pronunciarão à maneira
deles, qualquer que seja a ortografia adotada, cá e lá. E todos terão
a ganhar se esta for atualizada e uniforme.
Outro exemplo, mais controvertido, é dado por Fernando
Pessoa, que optou, em Mensagem (1934), único livro em língua
portuguesa que publicou em vida, por uma ortografia sui generis: “sphyngico” e não “esfíngico”, “mytho” em vez de “mito”,
ou “instincto”, “addiado”, “prohibida”, em lugar de “instinto”,
“adiado”, “proibida”. Embora chegasse a afirmar, em texto à
parte: “O autor deste livro não aceita como boa a ortografia oficial; com ela, porém, temporariamente se conforma, para conveniência imediata, por igual, do tipógrafo e do leitor”,11 o poeta
houve por bem não cumpri-lo, dando preferência, não se sabe se
de última hora (como de última hora foi – o livro já em provas
Cf. Fernando Pessoa, A língua portuguesa, Lisboa, Assírio & Alvim, 1997,
edição organizada por Luísa Medeiros.
11
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
– a mudança do título, de Portugal para Mensagem), à sua grafia
peculiar. A possível razão quem a dá, já sabemos, é o heterônimo
Bernardo Soares: “A ortografia também é gente”.12
A intenção, óbvia, é reforçar a aura mística, heráldiconobiliárquica, aristocrática, que constitui um dos ingredientes
fortes da Mensagem (frise-se: um dos). “Reforçar”? Trata-se, então, de ornamento dispensável, redundante, com o qual ou sem
o qual essa aura chegaria à consciência do leitor atento. David
Mourão Ferreira foi o primeiro a se dar conta do fato: “Pela
primeira vez se publica uma edição de Mensagem,13 especialmente dedicada ao povo e à juventude de Portugal. Para isso,
atualizou-se-lhe a ortografia [o grifo é meu], de modo que não se
erguessem, entre a obra e o leitor, supérfluos e irritantes obstáculos”. Apesar da ressalva (uma edição “dedicada ao povo e
à juventude”), ou justamente por isso, a maioria das edições
posteriores à certeira observação reproduz a grafia adotada
pelo poeta – vestígio residual do amaneirado simbolista ou decadentista, de interesse exclusivo dos eruditos.
O episódio revela que, do lado dos editores, a inércia predomina e, do lado do poeta, a ortografia nunca teve senão a importância devida, mera convenção de circunstância, à qual (Pessoa
chegou a admiti-lo) é preciso conformar-se, caso contrário, o leitor
enfrentará, em vão, “supérfluos e irritantes obstáculos”. Conclusão:
a alta poesia de Mensagem situa-se muito além da ortografia rara, e
é um equívoco supor que esteja na dependência da maneira como
sejam grafadas, e dadas a ler, as palavras que a constituem.
Os exemplos poderiam multiplicar-se, em várias direções, nenhum porém chegaria perto da proeza sistemática e
radical como a empreendida por Glauco Mattoso, que resolveu adotar a (ou uma?) ortografia etimológica. Além de passar a grafar, de acordo com a nova norma, seus decassílabos
12
13
Livro do desassossego, Campinas, Editora da Unicamp, 1974, vol. II, p. 281.
Lisboa, Ática, 6ª ed., 1959.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
escrupulosamente medidos e rimados (“Azar? Não acredito!
Tu não vês / que é tudo só crendice? Si acreditas / num
Ente Superior, essas maldictas / noções são remactada estupidez!”14), Glauco chegou a organizar um formidável Diccionario Orthographico Phonetico/Etymologico, já na quinta edição
(“quincta”, como ele prefere), em cujas páginas de abertura
esclarece: “Um diccionario tão específico não teria utilidade
apenas para seu auctor e para aquelles que prefiram escrever
pela norma mais classica, mas para todos os estudiosos do
idioma e de suas transformações historicas, independentemente de tendencias conservadoras, reformadoras ou restauradoras. Tracta-se, portanto, d’uma obra linguistica de interesse geral”.15
Parece que estamos diante da inversão dos polos assinalados por Mário de Andrade em relação à sua Gramatiquinha, que ele
não considera, convém lembrar, “obra técnica, porém obra de ficção”. Mas só parece. Mário não se lembraria de chamar a atenção
para o fato, se sua “ficção” gramatical não estivesse impregnada
de preocupação “técnica”. O mesmo raciocínio, invertido, pode
ser aplicado à proeza de Glauco Mattoso. Ele não omitiria um
dos polos, o da “ficção”, pondo toda a ênfase na “técnica”, se não
tivesse plena consciência do quanto de ficcional se esconde nas
malhas de sua guerrilha “orthographico-etymologica”.
Se me for permitido generalizar, para que este devaneio,
resultante de outros devaneios, não se prolongue indefinidamente, digamos que, considerados os exemplos possíveis (o de
Mário, o de Pessoa, o de Glauco e outros mais), todos parecem
confirmar o que já se sabe, quanto à substância essencial do ato
poético: rebeldia, insubmissão, inconformismo, com mais ou
menos discreta, mais ou menos espalhafatosa dose de humor
Glauco Mattoso, Raymundo Curupyra: o Caypora, São Paulo, Tordesilhas,
2012, p. 11.
15
Disponível em escritablog.blogspot.com.br/2014/01/o-novo-diccionarioortographico.html (25/02/2015).
14
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
e ironia. Necessidade de transgredir, em suma, de lutar não só
com as “palavras”, como lembra Drummond, mas com toda e
qualquer lei ou regra “oficial”, que cerceie a liberdade do poeta. A gramática é só uma das “leis” impostas pelo sistema, e
a ortografia é talvez a mais inocente, a menos tirânica de suas
“normas”. Dela é sempre possível livrar-se, bastando para isso
dominá-la, a fim de submetê-la ao crivo da imaginação criadora
e da inventividade: engenho e arte, como dizia Camões. Ortografia, não sei se chega a ser “gente”, mas sei que é só metáfora.
Rebelar-se contra ela ou é ato gratuito, mero desconhecimento
de causa, ou é rebelar-se contra outra coisa. E manifestar a revolta profunda gerada pelas tiranias em relação às quais nos resta
pouco ou nada a fazer. A não ser, de vez em quando, dar atenção
a “alguma poesia”, para que a língua comum continue à disposição de todos. Ou para manter aceso o sonho de liberdade.16
Carlos Felipe Moisés é natural de São Paulo, Doutor em Letras, crítico
literário, tradutor, poeta e ensaísta, publicou vários livros sobre poesia
moderna e contemporânea. Lecionou na USP, na PUC de São Paulo,
entre outras. Lecionou na Universidade da Califórnia, em Berkeley
(1978-1983) e na Universidade do Novo México (1986). Colabora em
periódicos, coordena oficinas de criação literária em São Paulo. Publicou, em poesia: Carta de marear (1966), Poemas reunidos (1974), Círculo
imperfeito (1978), Subsolo (1989), Lição de Casa & poemas anteriores (1998)
e Noite nula (2008). E-mail: [email protected].
►► 135
JULES LAFORGUE
E O SIMBOLISMO FRANCÊS
CELINA SCHEINOWITZ
Ao mestre Cláudio Veiga
E
nfocar “Soir de Carnaval”1, poema de Jules Laforgue (18601887), cuja tradução pela autora desse ensaio, bem como o
original, encontram-se em anexo, para buscar razões que justifiquem, 128 anos após sua morte, suas composições continuarem a
encantar o público leitor e situar o poeta no contexto do Simbolismo francês, eis as metas traçadas para este trabalho.
Sabe-se que a lírica de Laforgue se encontra na base da
linguagem poética de Ezra Pound e de T. S. Eliot, em sua primeira fase, e que grande se faz seu impacto sobre os Surrealistas. É também conhecida a influência que exerceu sobre os
poetas brasileiros, como Pedro Kilkerry (1885-1917), Marcelo Gama (1878-1915), Manuel Bandeira (1886-1968), Carlos
Drummond de Andrade (1902-1987) e outros2. Suas composições têm sido vertidas para o português, notadamente, na
contemporaneidade, por Régis Bonvicino, o que reforça a
importância na aceitação do poeta francês entre nós. Por outro lado, ainda confirmando essa recepção altamente positiva,
cabe registrar-se uma cena de que alguns têm conhecimento,
ocorrida na Bahia, neste ano de 2015 - quando transcorre o
155o aniversário de nascimento do bardo francês -, em que um
poeta se comove, ao ler “Soir de Carnaval”, de Jules Laforgue,
a ponto de passar a dialogar com este, desenvolvendo o tema
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poetizado, como numa fuga de Beethoven, e escrevendo versos e mais versos. Trata-se de Florisvaldo Mattos, que, nesse,
dir-se-ia, êxtase mágico, que só aos poetas é dado experimentar, constrói um longo poema3, ainda inédito, “Visões de Éden
súbito contemplado”, no qual, instigado pelo poema “Soir de
Carnaval”, propõe-se a perscrutar vivências “no tempo em que
o Homem não existia”, prestando uma homenagem cativante
ao simbolista francês, presente na epígrafe de seu poema, que
conclui com os versos “Da janela, a manhã me justifica, / imaginando o que pensou Laforgue, / na sua perfeição antropomórfica, / em noite de gelado Carnaval.”
A perenidade dessa sedução, sempre renovada, intriga e dá
lugar a que se questione: Quem foi Jules Laforgue, que obra legou
para a posteridade e que lugar ocupa na literatura francesa?
Breve, a vida de Jules Laforgue: durou apenas 27 anos. Além
de breve, difícil e triste, pois era pobre, doente e de temperamento
pessimista. Nasce em Montevidéu, assim como Isidore Ducasse,
o conde de Lautréamont, e Jules Supervielle; sua família retorna
à França, em 1866, instalando-se primeiramente em Tarbes, no
sul da França, e transferindo-se para Paris, em 1877. Infeliz, seus
infortúnios crescem com a morte da mãe, em 1877; apoia-se, então, na irmã, em procura da ternura a que sua alma aspira. Em
1880, conhece o escritor Paul Bourget, que se torna seu protetor
e o encaminha para o cargo de leitor, em Berlim, da imperatriz
Augusta de Saxe-Weimar, avó do futuro Guilherme II; no dia de
sua partida, fica sabendo do falecimento do pai, em Tarbes, mas,
novo choque emocional, viaja, impedido de assistir ao enterro.
Permanece na função, em Berlim, de 1881 a 1886. Nesta data,
volta à França, casa-se, em Londres, com a inglesa Leah Lee e o
casal se instala em Paris, onde ele vem a falecer de tuberculose no
ano seguinte, quatro dias após ter completado 27 anos.
Em vida, publicou quatro livros, Les Complaintes (1885),
L’Imitation de Notre-Dame la Lune (1886), Concile Féerique (1886)
e a coletânea de contos Moralités Légendaires (1887). Após sua
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morte, em 1890, seus amigos imprimem Derniers vers, Fleurs de
Bonne Volonté e Le Sanglot de la Terre. Como tradutor de Walt
Whitman, publicou na revista Vogue, em 1886, a versão para o
francês de alguns poemas de “Leaves of Grass”.
As obras completas de Jules Laforge (Oeuvres complètes) vieram
a lume em 1901-1903, com o selo da Editora Mercure de France.
Jules Laforgue permanece na história da literatura francesa como cultor do Simbolismo e do Decadentismo, além de ser
considerado um dos criadores dos versos livres, que abrem as
portas para a Modernidade.
O Simbolismo são tendências diversas de um movimento
literário, no final do século XIX, cujo traço característico é sugerir
mais do que expressar. O poeta busca dardejar diretamente a sensibilidade do leitor, transmitindo-lhe as emoções fugitivas e obscuras que o assaltam, no momento da composição, procedendo
à evocação de sentimentos instáveis e profundos. Nessa feitura,
contrapõe-se às normas da retórica que privilegiam a inteligência, no embasamento da lírica até então em vigor, para tentar se
aproximar da música, com o despertar para um sortilégio mágico que conduz ao mundo do sonho. Para o Simbolismo, a essência da realidade não é palpável, é fluida e se alicerça no mistério.
Poeta simbolista, Jules Laforgue foi considerado na sua
época, e ainda o é hoje, o maior porta-voz do Movimento Decadentista, outra vertente do Simbolismo, que se caracteriza pelo
pessimismo, pelo tédio e pelo descrédito nas instituições humanas e no próprio homem. A fonte desse posicionamento decorre
de suas leituras de Schopenhauer, aliadas ao seu temperamento
angustiado e à sua vida desafortunada.
Na elucidação das duas versões Simbolismo/Decadentismo, convém recorrer à observação do momento histórico que se
vive. O Simbolismo se instala na França em um período de grandes perturbações políticas, com os acontecimentos sangrentos de
1870 e 1871, a queda do Segundo Império, a capitulação de Sedan, a Comuna de Paris, a instabilidade da Terceira República em
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seus primórdios, perturbações estas que não afetam os escritos de
Verlaine, Mallarmé e Rimbaud, obras eminentemente atemporais.
Já os poetas chamados de decadentistas, Jules Laforgue entre estes, ofuscam-se com as desordens desse período sombrio e criam,
como forma de escapismo, versos que se enquadram na atmosfera
propícia aos prazeres sensuais e às sensações extravagantes, eivados de pessimismo.
O Simbolismo foi teorizado por Jean Moréas (ou Jean Papadiamantopoulos; grego de nascimento). No seu “Manifeste du
Symbolisme”, publicado no jornal Le Figaro, de 18 de setembro
de 1886, Moréas proclama que a poesia buscará nas aparências
sensíveis “leurs affinités ésotériques [accessibles aux seuls initiés]
avec des Idées primordiales”. Esse mesmo teórico não demora,
todavia, a romper com os simbolistas e funda, em 1891, a école romane, que adota sobriedade de inspiração e técnica inteiramente
clássica, ao modo dos poetas da Plêiade (século XVI).
A fantasia lírica de Jules Laforgue marca-se por uma extrema originalidade e pela emoção sincera que expressa. O poeta
partilha, em sua obra, a visão irrisória que tem da vida, servindose de recursos estilísticos diversos, tais como o uso de palavras
zombeteiras, sarcásticas ou falsamente enfáticas; cortes bruscos
e inesperados aos seus impulsos e desejos; introdução de refrão
popular em um tema sentimental; mescla ironicamente argumentos graves com um ritmo saltitante; ridiculariza com uma
terminologia metafísica ou acanalha com termos de gíria. Mas,
ao firmar este estilo pessoal, ele o faz com um sorriso irônico no
canto dos lábios, a revelar que não se deixa ludibriar. Laforgue
pratica amiúde, em suas composições, a mistura de tons.
O leitor encontra facilmente ilustração para essas particularidades estilísticas, percorrendo sua obra. Inclusive, a leitura
desta, no caso de dificuldades na aquisição de livros, permanece
accessível pelo acesso à Internet.
No que diz respeito à criação dos versos livres, é de conhecimento dos especialistas que outros poetas lhe disputaram a
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honra dessa invenção (Gustave Kahn, Jean Moréas, Marie Krysinska); todavia, o mais acertado parece considerar-se como o
verdadeiro precursor dos versos livres, Rimbaud, em certos poemas das Illuminations. Muito usados a partir da segunda década
do século XX, passando a caracterizar a lírica do Modernismo,
os versos livres não obedecem a nenhuma regra pré-estabelecida
quanto ao metro, à posição das sílabas fortes ou à presença ou
regularidade de rimas4. Sugere-se a leitura do poema “L’hiver qui
vient” que se encontra às pp. 541-543 da antologia Lagarde &
Michard, no volume relativo ao século XIX, a fim de perceber a
modernidade da dicção simbolista de Jules Laforgue, bem como
a utilização da ironia, jogos de palavras e, sobretudo, a ingenuidade criada pelos refrãos populares, em um poema moldado
nesse tipo de versos.
Resta ainda, para concluir este ensaio, examinar o poema
“Soir de Carnaval” e tentar justificar a proposta que se concretizou com relação à tradução aqui apresentada.
Poema tipicamente laforguiano, “Soir de Carnaval” lembra aqueles quadros, não assinados, de pintores célebres, achados ao acaso em algum porão ou depósito de coisas velhas e
que subitamente são reconhecidos pelos especialistas. Um conhecedor da lírica simbolista e decadentista francesa certamente
reconheceria a pena que traçou a escritura desses versos, especificidade idiossincrática que se buscará destacar na presente análise. A composição do poema não se enquadra, como “L’hiver
qui vient”, a que se fez referência acima, no esquema dos versos livres, invenção, todavia, às vezes atribuída a Jules Laforgue,
como também já se afirmou aqui.
Construído em alexandrinos, rimados, “Soir de Carnaval”
compõe-se de seis quartetos. Os vocábulos iniciais do poema,
quatro palavras que formam o primeiro hemistíquio do verso
introdutório, vazado numa configuração clássica (“Paris chahute
au gaz” - v. 1), colocam a cena que vai ser glosada no poema, com
especificação do lugar, a capital francesa evocada pela denominação
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que lhe é própria, o momento em que é observada, tratando-se de
uma cena noturna, denotada por sinédoque, e o objeto da observação, a cidade que se embala, ao passo da dança. Atenção merece
ser dada ao verbo chahuter, que já introduz um tom próprio da
linguagem de Laforgue. Significa “dançar o chahut”, uma dança
indecente e vulgar, em moda nos meados do século XIX, segundo os dicionários Littré (do século XIX) e Robert (que considera
essa acepção um arcaísmo). O termo não é mais utilizado hodiernamente nesse sentido, significando hoje “bagunçar” e aplicando-se sobretudo aos estudantes, ao promoverem desordem,
com gritaria, vaias e barulho, em sala de aula, na presença do
professor e, subsidiariamente, a uma situação análoga, como um
público em repúdio a um conferencista. O uso de uma palavra
não nobre, que denota um ato vulgar, faz parte dos procedimentos estilísticos de Jules Laforgue e já serve como uma assinatura
para o poema.
Se a assinatura Jules Laforgue, no primeiro hemistíquio, é
de tipo vocabular, no segundo é através de seu pessimismo que
ela vem à baila, “L’horloge comme un glas” (v. 1), sendo comparado com um dobre fúnebre de sinos o relógio que ouve tocar e
que vai soar uma hora, por encadeamento ou enjambement, com
o verso seguinte: “Sonne une heure” (v. 2). Um toque só; mas o
poeta o percebe como funesto e lúgubre. Desperta-lhe a morte.
Imediatamente, quase arrependido de estar triste, convoca a alegria, “Chantez! dansez!” (v. 2). Desencantado por sua experiência de miséria e infelicidade, dá-se conta de que os divertimentos
do Carnaval se efetivam não com o objetivo de serem gozados,
mas como uma forma de consolo, porque “la vie est brève” (v.
2) e “Tout est vain” (v. 3).
Nova assinatura do poeta surge ainda na primeira estrofe,
com a presença da lua, sonhadora e fria: “[...] - et, là-haut, voyez, la
Lune rêve / Aussi froide qu’aux temps où l’Homme n’était pas” (v.
3-4). Companheira inseparável do poeta – autor, não por acaso, de
L’Imitation de Notre-Dame la Lune (1886) –, frequentemente a lua se
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mostra em suas composições, assim, ela aparece, em “L’hiver qui
vient”, insignificante e, estranho, como planeta (“c’est la saison et la
planète falote!”5) e aponta risonha, para o personagem pantomímico e carnavalesco, nas “Variations sur le mot ‘Falot, Falote’ “:
Falot, falote!
Sous l’aigre averse qui clapote,
Un chien aboit aux feux-follets,
Et puis se noie, taïaut, taïaut!
La Lune, voyant ces ballets,
Rit à Pierrot!
Falot ! Falot!
(Jules Laforgue. Complainte6)
Discutir-se-á agora quanto à métrica e ao ritmo da estrofe inicial do poema analisado, última assinatura de Jules Laforge
a ser aqui comentada, com relação a essa primeira estrofe. Quatro alexandrinos, três dos quais, o primeiro, o terceiro e quarto, formados de dois hemistíquios, com a cesura no sexto pé e,
consequentemente, acento forte no sexto e no décimo-segundo.
Entretanto, logo no segundo verso do poema, configura-se um
corte no ritmo binário do verso inicial, as cesuras recaindo, nesse
segundo verso, sobre as posições métricas 3-6-8-12, resultando
dessa forma uma cadência saltitante, que se coaduna com o sentido expresso pelas palavras:
Paris chahute au gaz. L’horloge comme un glas
Sonne une heure. Chantez! dansez! la vie est brève,
(Jules Laforgue. Soir de Carnaval, v. 1-2)
Com um título que se reporta ao Carnaval, ou seja, à
alegria, e com uma primeira estrofe que amalgama o clima de
alegria da festa com o sentimento de desânimo e de aflição, o
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
poema, nas três estrofes seguintes, vai desenvolver unicamente
a vertente negativa, com modulações sobre o tema do logro, da
ilusão, da dor e do desespero, deixando inteiramente de lado
as formulações acerca dos embalos carnavalescos. A segunda
estrofe estampa uma reflexão sobre a infelicidade, em que se
fazem variações sobre o destino do homem, que, se resplandece,
é para depois se apagar, destino no qual tudo o que é vivenciado
não passa de engodo, inclusive a Verdade e o Amor.
Na terceira estrofe, o tom da fala poética se eleva e o
poeta abandona o nível do quotidiano e do dia-a-dia, para se
movimentar nas altas esferas do conhecimento, especialmente
da História, no caso. Com efeito, o poeta se pergunta onde despertar o eco de todos esses gritos e lágrimas:
Ces fanfares d’orgueil que l’Histoire nous nomme,
Babylone, Memphis, Bénarès, Thèbes, Rome,
Ruines où le vent sème aujourd’hui des fleurs ?
(Jules Laforgue. Soir de Carnaval, v. 10-11)
Ao contemplar as grandes civilizações que se destacaram
na História, constata que as cidades que alcançaram o apogeu
do desenvolvimento, quer seja na Mesopotâmia, no Egito faraônico, na Índia ou entre os romanos, depois decaíram e esfumaçaram-se em ruínas. Assim, nem a História fornece ao poeta
guarida para suas mágoas.
Na estrofe seguinte, a quarta, faz-se um retorno ao patamar pessoal, o poeta volta-se para dentro de si. O pessimismo
da voz decadentista própria a Laforgue vem à tona e ele se desespera: pensa na morte (“Et moi, combien de jours me reste-t-il
à vivre?” – v. 13), joga-se no chão, grita e estremece. Depara-se
com o nada, não encontrando salvação nem na religião (“Dans
le néant sans coeur dont nul dieu ne délivre” – v. 16).
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Após divagações sobre os infortúnios que consternam
a alma do poeta, já prenunciadas na primeira estrofe e que se
estendem, com exclusividade de tratamento, nas estrofes 2, 3 e
4, há, na quinta estrofe, uma volta ao tema inicial, Paris que se diverte, numa noite de Carnaval. À cena introdutória, contida nos
dois versos inaugurais e já anunciada no título da composição, na
qual se capta uma visão de conjunto da festa, substitui-se agora,
nesse quinto quarteto, uma cena pontual, direcionada para um
indivíduo. Filtrada por seu olhar decadentista, o poeta flagra um
operário, completamente embriagado, que retorna da festa, não
à procura de seu doce lar, mas que caminha, ao acaso, em busca
de um qualquer ignóbil reduto:
Et voici que j’entends, dans la paix de la nuit,
Un pas sonore, un chant mélancolique et bête
D’ouvrier ivre-mort qui revient de la fête
Et regagne au hasard quelque ignoble réduit.
(Jules Laforgue. Soir de Carnaval, v. 17-20)
A sexta estrofe retoma a temática da tristeza da vida,
“incurablement triste” (v. 21) e o poeta conclui, com angústia,
que tudo na vida é vaidade, “Aux fêtes d’ici-bas, j’ai toujours sangloté: / “Vanité, vanité, tout n’est que vanité!” (v. 23-24). Antes
de lançar sua verdadeira conclusão:
- Puis, je songeais: où sont les cendres du Psalmiste?
(Jules Laforgue. Soir de Carnaval, v. 24)
O derradeiro verso do poema constitui, não o esboço de um
riso irônico, muitas vezes considerado uma marca da lírica de Jules
Laforgue, mas, sem chegar a ser uma gargalhada, é uma risada que
ele dá, a significar que não se leva a sério, que graceja quando discorre sobre a vaidade humana e sobre a brevidade da vida. Temática,
entretanto, mor da lírica laforguiana. Poeta sem ilusões.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Esse derradeiro verso é também um piscar de olhos para
Villon (1431 - ?) – o grande poeta francês, de vida desordenada e desregrada, agressivo com os poderosos, mas de grande
ternura para seus irmãos de miséria. Na “Ballade des dames
du temps jadis”7, Villon, ao modular sobre a graça frágil de
mulheres ilustres que se foram deste mundo, não martela sobre
idêntica fragilidade da vida, com o refrão “Mais où sont les
neiges d’antan?” ? Parece pertinente registrar-se uma idêntica
metrificação, em octossílabos, na construção dos dois segmentos aqui postos em paralelo.
Mas, o que o rei Davi, o salmista, vem mesmo fazer
aqui? Mistério! Mistério da voz poética de Jules Laforgue. Esse
simbolista francês que, no século XXI, continua a seduzir alguns
leitores. Se não são numerosos, os seduzidos, poderão eles ao
menos bradar, com outro poeta, “we few, happy few.”
NOTAS
Agradecemos a Heloísa Prata Prazeres Pedra e a Florisvaldo Mattos,
nos terem posto em contacto com “Soir de Carnaval”, essa joia poética da literatura francesa, sugerindo tanto a tradução do poema como a
elaboração destas notas, para publicação.
2
Cf. especialmente Flavia Togni do Lago. Manuel Bandeira e Jules Laforgue: Dor, ironia. Universidade de São Paulo, 2012; e Aline Taís Cara.
JulesLaforgue e Carlos Drummond de Andrade: a ironia e a construção do gauche,
2015 (Fonte: Internet).
3
Setenta e seis versos, distribuídos, na versão que conhecemos, em um
quarteto introdutório, seguido de nove oitavas.
4
Manuel Bandeira, no ensaio “Poesia e verso” comenta, com certo humor, a respeito da elaboração dos versos livres: “[...] À primeira vista,
parece mais fácil de fazer [o verso livre] do que o verso metrificado.
Mas é engano. Basta dizer que no verso livre o poeta tem de criar seu
1
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ritmo sem auxílio de fora. [...] Sem dúvida, não custa nada escrever um
trecho de prosa e depois distribuí-lo em linhas irregulares, obedecendo
tão somente às pausas do pensamento. Mas isso nunca foi verso livre.
Se fosse, qualquer um poderia pôr em verso até o último relatório do
Ministro da Fazenda”. In: Norma Goldstein. Versos, sons, ritmos, p. 37.
5
Cf. LAGARDE, André et MICHARD, Laurent. Op. cit., 1969, p. 543.
6
Cf. CLANCIER. Op. cit. p. 118.
7
Cf. O poema “Ballade des dames du temps jadis” , de François Villon.
In: LAGARDE, André et MICHARD, Laurent. Op. cit., 1963, pp.
215-216.
REFERÊNCIAS
CLANCIER, Georges Emmanuel. Panorama critique de Rimbaud au Surréalisme. Paris: Pierre Seghers Éditeur, 1955, pp. 113-126.
GOLDSTEIN, Norma. Versos, sons, ritmos. São Paulo: Ática, 2000.
LAGARDE, André et MICHARD, Laurent. Moyen Âge. Les grands
auteurs français au programme. Paris: Bordas, 1963.
_______________________________. XIXe siècle. Les grands auteurs
français au programme. Paris: Bordas, 1969.
LANSON, Gustave. Histoire de La littérature française. Paris: Librairie
Hachette, 1957.
LITTRÉ, Émile. Dictionnaire de la langue française. Paris: 1863-1872 (supl.
1877) (1a edição); Paris: Gallimard/Hachette, 1975.
ROBERT, Paul. Le Petit Robert. Dictionnaire alphabétique et analogique de
la langue française, de Paul Robert, avec la collaboration de Alain Rey
et Josette Rey-Debove. Paris: Paul Robert, Société du nouveau Littré,
1994. (1a edição: 1967)
TAÍS Cara, A. Jules Laforgue e Carlos Drummond de Andrade: a ironia e a
►► 147
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
construção do gauche. Disponível em: http://www.fclar.unesp.br/agenda
-pos/estudos_literarios/3541.pdf Acesso em: 24 out 15
TOGNI do Lago, F. Manuel Bandeira e Julds Laforge: Dor, ironia. Universidade de São Paulo, 2012. Disponível em: <htpp: //www.teses.
usp.br/teses/disponiveis/8/8149/tde-26102012-123505/pt-br.php>
Acesso em 24 out. 15
Anexo I
Soir de carnaval
Paris chahute au gaz. L’horloge comme un glas
Sonne une heure. Chantez! dansez! la vie est brève,
Tout est vain, - et, là-haut, voyez, la Lune rêve
Aussi froide qu’aux temps où l’Homme n’était pas.
Ah! quel destin banal ! Tout miroite et puis passe,
Nous leurrant d’infini par le Vrai, par l’Amour;
Et nous irons ainsi, jusqu’à ce qu’à son tour
La terre crève aux cieux, sans laisser nulle trace.
Où réveiller l’écho de tous ces cris, ces pleurs,
Ces fanfares d’orgueil que l’Histoire nous nomme,
Babylone, Memphis, Bénarès, Thèbes, Rome,
Ruines où le vent sème aujourd’hui des fleurs ?
Et moi, combien de jours me reste-t-il à vivre ?
Et je me jette à terre, et je crie et frémis
Devant les siècles d’or pour jamais endormis
Dans le néant sans cœur dont nul dieu ne délivre!
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Et voici que j’entends, dans la paix de la nuit,
Un pas sonore, un chant mélancolique et bête
D’ouvrier ivre-mort qui revient de la fête
Et regagne au hasard quelque ignoble réduit.
Oh! la vie est trop triste, incurablement triste!
Aux fêtes d’ici-bas, j’ai toujours sangloté :
« Vanité, vanité, tout n’est que vanité! »
- Puis je songeais : où sont les cendres du Psalmiste?
Jules Laforgue - Oeuvres complètes. Mercure de France, 1903
(1ère publication)
Anexo II
Noite de Carnaval
Paris cai na gandaia, iluminada ao gás.
Sinistra uma hora soa, nesse mundo cão.
Cantem! Dancem! Breve é a vida e tudo é vão.
No alto, fria, a lua indiferença traz.
Aqui, tudo que brilha depois se esvai,
Iludindo-nos com o infinito do Amor
E da Verdade. Por sua vez, se o calor
Da terra se ergue aos céus, pasmem! Pois tudo cai.
Onde despertar ecos, lágrimas, odores,
Fanfarras de orgulho da História em redoma,
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Babilônia, Mênfis, Benares, Tebas, Roma,
Ruínas onde o vento semeia flores?
E eu, quantos dias restam para eu viver?
Jogo-me ao chão e estremeço, sufocado,
Frente aos séculos de ouro do passado
Deitados no nada, sem nuga a oferecer.
E eis que súbito ouço, na paz da noite,
Passo sonoro, melodia cheia de dor
De um obreiro ébrio, que retorna com ardor
Da festa, buscando canto para pernoite.
Que vida triste! Incuravelmente triste!
Às festas daqui, sempre chorei sem saudade:
“Vaidade, vaidade, tudo apenas vaidade!”
- Mas, onde estão as cinzas do Salmista, as viste?
Jules Laforgue
Tradução: Celina Scheinowitz1
Celina Scheinowitz é Doutora em Letras pela Universidade de Paris
IV, Paris-Sorbonne, com pós-doutorado pela École des Hautes Études
(França); aposentada da Universidade Federal da Bahia e da Universidade Estadual de Feira de Santana. Publicou artigos e livros, entre os
quais L. S. Senghor, Élégies (L’Harmattan, 2009) e Les affres de l’inhumanité:
défi romanesque de Frankétienne (Éditions Avenir, 2012).
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BARROCO NA BAHIA:
MANUEL BOTELHO DE OLIVEIRA
PAULO ROBERTO PEREIRA
I – O Barroco na Colônia
N
a história da arte, o Barroco tem sido o movimento
cultural mais revisto nos últimos cem anos, a ponto de
Rudolf Wittkower em Arte e arquitetura na Itália, 1600-1750,
afirmar, na terceira edição do seu livro, que um estudo a ele
dedicado só sobrevive se for continuamente atualizado. É
que poucos estilos artísticos ensejaram tanta discussão como
o Barroco: do significado etimológico da palavra às teorias
genético-formal e genético-social de sua intercessão na história cultural; dos seus limites temporais ampliados muito além
dos séculos XVII e XVIII, à sua extensão geográfica, que
passou a abranger boa parte da Europa e da América Latina,
com especial ênfase para o Brasil. E algumas obras capitais,
como O barroco: arte da contrarreforma, de Werner Weisbach,
destacaram a contribuição capital da Ordem fundada por
Santo Inácio de Loyola, ao lembrar que “puede decirse que
toda la vida espiritual y buena parte de la profana estaba en
el siglo XVII en manos de los jesuítas, que aconsejaban a la
corte y sabían imponer sus intereses espirituales y su gusto en
amplio estilo.”1
WEISBACH, Werner. El barroco: arte de la contrarreforma. Traducción y ensayo
preliminar de Enrique Lafuente Ferrari. Madrid: Espasa-Calpe, 1942, p. 304.
1
►► 151
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
A dimensão geográfica do Barroco possibilitou sua reformulação inicial de produto da contrarreforma católica tridentina,para realçar também sua presença em sociedades predominantemente protestantes, burguesas e absolutistas. Como o
estilo artístico barroco não obedece a limites, ele penetrou na
literatura, na música e até no planejamento das cidades. Daí a
observação de Giulio Carlo Argan,2 de que se deve compreender
o Barroco como a arte que humaniza a teia de relações sociais,
tendo como fim político, religioso e social conseguir a felicidade
e a salvação da alma.
Os estudos de valorização do Barroco como movimento artístico começaram nas duas décadas finais do século
XIX, quando, em 1888, Heinrich Wölfflin publicou Renascença e Barroco. De lá para cá não cessaram de surgir obras
que defendem posições muitas vezes antagônicas, mas que
estimulam sua incessante revisão, como a de Werner Weisbach, de 1921, que conceituava o Barroco como a arte da contrarreforma; e a de Benedetto Croce, aparecida em 1929, que
distinguia nesse estilo o predomínio do mau gosto, a negação
da verdadeira arte.
No Brasil a revalorização do Barroco tem a ver com o resgate do passado colonial do país. As pesquisas iniciaram-se no
século XIX para retirar do esquecimento autores da literatura colonial, como Gregório de Matos, por meio dos trabalhos de Francisco Adolfo de Varnhagen, Joaquim Norberto de Souza e Silva,
entre outros. Nas artes plásticas e na música, deu-se o mesmo
caso, com os estudos pioneiros de Manuel de Araújo Porto-Alegre, “Apontamentos sobre a vida e obras do padre José Maurício Nunes Garcia”, “A Antiga Escola de Pintura Fluminense” e
ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e persuasão: ensaios sobre o barroco. Org.
Bruno Contardi; tradução Maurício Santana Dias; revisão técnica e seleção
iconográfica Lorenzo Mammì. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
2
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
“Valentim da Fonseca e Silva, Mestre Valentim”;3 e o de Rodrigo
José Ferreira Bretas acerca de “Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho”.4
A ampla pesquisa sobre a música colonial realizou-se,
no século XX, com o trabalho extraordinário de Francisco
Curt Lange, que revelou o excepcional acervo adormecido
em algumas cidades coloniais do Brasil. Contudo, excetuando
esses estudos pioneiros, a “redescoberta” do barroco brasileiro teve de aguardar a chegada de integrantes da Semana
de Arte Moderna de 1922 para que a sua herança fosse valorizada. Em 1919 Mário de Andrade, ao fazer uma viagem a
Mariana para visitar o poeta simbolista Alphonsus de Guimaraens, aproveitou para conhecer as igrejas barrocas da região.
Contudo, foi na Semana Santa de 1924 que partiu de São
Paulo uma caravana formada por Mário de Andrade, Oswald
de Andrade, Tarsila do Amaral, entre outros, para conhecer
as cidades históricas de Minas Gerais. Seguidamente, figuras
como Lúcio Costa e Rodrigo Mello Franco de Andrade defenderam uma política cultural que preservasse a arquitetura
e a arte colonial, resultando na criação, em 1937, do Serviço
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Assim, o Barroco no Brasil teve a peculiar situação de ser resgatado pelos principais representantes da vanguarda modernista, que o
consideravam um estilo que traduzia a originalidade artística
nacional, como ressaltou Oswald de Andrade:
KOVENSKY, Julia e SQUEFF, Leticia (Orgs.). Araújo Porto-Alegre: singular
& plural. São Paulo: IMS, 2014, pp. 258-266; e pp. 331-338.
4
BRETAS, Rodrigo José Ferreira. Traços biográficos relativos ao finado
Antônio Francisco Lisboa, distinto escultor mineiro, mais conhecido pelo
apelido de Aleijadinho. In: Passos da paixão: o Aleijadinho. Apresentação
Tancredo Neves; fotos Claus Meyer; texto Rodrigo José Ferreira Bretas;
comentários Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira. Rio de Janeiro:
Alumbramento, 1984, pp. 13-20.
3
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
No anfiteatro de montanhas
Os profetas do Aleijadinho
Monumentalizam a paisagem
As cúpulas brancas dos Passos
E os cocares revirados das palmeiras
São degraus da arte de meu país
Onde ninguém mais subiu.
Bíblia de pedra sabão
Banhada no ouro das minas.5
O Barroco gestado nesse universo mental do Brasil seiscentista e setecentista, que produzira os ciclos econômicos do
açúcar na Bahia e do ouro em Minas Gerais, motivou o surgimento de uma corrente de pensadores, os “intérpretes do Brasil”, como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio
Prado Júnior, que demonstraram que o país que queria ser moderno, mirando-se nas vanguardas, mantinha profundas marcas
econômicas, sociais e culturais da época colonial, a confirmar a
tese de Leopoldo Castedo, segundo a qual a criação artística dos
séculos XVII e XVIII plasmou uma constante barroca na arte
brasileira que atinge até a época contemporânea.6
Quando se estuda o Barroco no Brasil se constata que existe uma “discronia”,7 ou seja, uma descontinuidade entre o barroco
literário do século XVII, representado pelas obras de Gregório
de Matos, Manuel Botelho de Oliveira e Antônio Vieira; e o barroco das artes plásticas do século XVIII, simbolizado na Bahia
pelo interior monumental da Igreja de São Francisco de Salvador
ANDRADE, Oswald de. “Ocaso”. Roteiro de Minas. In: _____. Poesias
reunidas. Introdução Haroldo de Campos. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1972, pp. 78/79.
6
CASTEDO, Leopoldo. A constante barroca na arte brasileira. Tradução de
Cláudio Garcia de Souza; prefacio de Gilberto Freyre. Rio de Janeiro: MEC,
Conselho Federal de Cultura, 1980.
7
SILVA, Antônio Manuel dos Santos. Literatura barroca e categorias nãoliterárias. In: TIRAPELI, Percival. Arte sacra colonial. São Paulo: Imprensa
Oficial/UNESP, 2002, p. 210-226.
5
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
e pela fachada exuberante da Igreja da Ordem Terceira de São
Francisco; e, em Minas Gerais, centrado nas igrejas de Ouro Preto, Mariana, Sabará, São João del Rei, Tiradentes, Diamantina e,
particularmente, no conjunto escultórico dos Passos da Paixão e
nos Profetas do Adro do Santuário do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo, legado do principal arquiteto
e escultor do Brasil colonial, Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho.8 Isso não impediu que a literatura árcade produzida no Brasil da segunda metade do século XVIII continuasse contaminada
por características barrocas, como a poesia de Cláudio Manuel da
Costa, publicada em 1768. Por outro lado, os versos de Basílio da
Gama e de Tomás Antônio Gonzaga são de outra fatura estética,
denotando forte presença da ideologia iluminista, ao retomarem a
fórmula classicizante greco-latina e renascentista.
A transformação do gosto artístico no Brasil setecentista, com o domínio do arcadismo e do rococó, desvalorizou o
legado do barroco colonial. E com a chegada da Missão Artística Francesa em 1816 ao Rio de Janeiro, oficializou-se o
domínio do estilo neoclássico que, contraditoriamente, abriu
caminho para a liberdade estética romântica alicerçada no gosto burguês do novo século.
II – Botelho de Oliveira: o artífice da poesia
Na dedicatória de Música do Parnaso, afirma Manuel Botelho de Oliveira: “Ao meu, posto que inferior aos de que é tão
fértil este país, ditaram as Musas as presentes rimas, que me
resolvi expor à publicidade de todos, para ao menos ser o primeiro filho do Brasil que faça pública a suavidade do metro, já
que o não sou em merecer outros maiores créditos na Poesia.”9
OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de(Org.). O Aleijadinho e sua oficina:
catálogo das esculturas devocionais. São Paulo: Capivara, 2002.
9
OLIVEYRA, Manoel Botelho de. Musica do Parnasso. Lisboa: Officina de
8
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Assim, o poeta baiano teve seu destino fixado nas histórias literárias como o primeiro brasileiro a ter um livro publicado, no
alvorecer do século XVIII, em 1705. Contudo, foram necessários alguns séculos para que a contribuição da lírica botelhiana
para a evolução da poesia brasileira fosse devidamente avaliada. É que só a partir da análise do cuidadoso labor estético que
empreendeu nos seus versos cultos, engenhosos e refinados,
por influência da melhor poesia do tempo, como a de Marino
e a de Gôngora, é que se percebeu o quanto de incompreensão
esteve submetida a Música do Parnaso.
Sem dúvida, era tempo de merecer justo reparo depois
que, de Sílvio Romero para cá, foi acusado de simples versejador
por críticos que só observaram na poesia botelhiana vacuidade
temática. José Veríssimo, no seu estudo clássico “O mais antigo
lírico brasileiro”, diz jocosamente que Botelho de Oliveira, ao
editar a sua obra poética, introduziu em nosso país o mau costume de se publicar livro de versos, estímulo que proliferou significativamente. Se hoje fosse vivo, talvez o grande crítico paraense
relesse a obra de Botelho de maneira diferente. Eugênio Gomes,
analisando o mito do ufanismo na poesia de Botelho, reclama
da ausência da cor americana, do “confuso rumor da vida que
borbotava naquele amálgama de raças e línguas que era a Bahia
do século XVII”;10 ou seja, para o arguto crítico baiano faltava,
na poesia botelhiana, o pitoresco localista e o polêmico nativismo que caracterizariam a poesia de Gregório de Matos. No
entanto, conforme demonstra sua obra, a Botelho importava o
estilo engenhoso, culto ou agudo, que chegou aos parnasianos,
de uma língua poética de exceção que era, naturalmente, a língua
de Gôngora e dele mesmo.
Miguel Manescal, 1705, s.n.p.
10
GOMES, Eugênio. O mito do ufanismo. In: COUTINHO, Afrânio e
Eduardo de Faria (Dir.) A literatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio;
Niterói: EDUFF, 1986, vol. 2, p. 134.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
O interessante é que a poesia de Botelho de Oliveira
tem duas vertentes muito definidas que atendem ao espiritual
e ao terreno. De um lado, a sua lírica volta-se para a temática atemporal – o amor, a morte, a solidão – consubstanciada no idealismo amoroso de raiz petrarquista em que canta a
musa Anarda, precursora de um filão literário de musas poéticas como a Lindoia de Basílio da Gama e a Marília de Tomás
Antônio Gonzaga. De outro, o seu discurso poético retrata a
realidade do seu tempo em Portugal e no Brasil. Homem de
sua época, como os filhos da maioria das famílias abastadas
do Brasil colonial, Botelho estudou Direito em Coimbra, onde
foi companheiro dos bancos escolares de Gregório de Matos,
e conviveu com a alta nobreza portuguesa, como revelam seus
poemas em louvor aos poderosos do tempo. De volta à Bahia,
conviveu com Antônio Vieira e seu irmão Bernardo Vieira Ravasco, a partir de 1681, e a ambos dedicou poemas. Provavelmente, Botelho possuía relação mais estreita com Vieira, do
que com Gregório, que voltara de Portugal para a Bahia em
1682, devido à vida desregrada do filógino satírico. Do trajeto
pessoal de Botelho sabe-se que, excetuando a fase de estudos
empreendidos na Europa, sempre viveu na terra natal, e, como
Gregório de Matos, nasceu em 1636 na Bahia de Todos os Santos. Publicou Música do Parnaso em 1705, ano em que nasceram
o dramaturgo carioca Antônio José da Silva, o Judeu, e o filósofo paulista Matias Aires Ramos da Silva de Eça. Morreu em
1711, ano em que André João Antonil, pseudônimo do jesuíta
João Antônio Andreoni, que foi secretário de Antônio Vieira
e reitor do Colégio da Bahia, publicou a Cultura e opulência do
Brasil por suas drogas e minas, um dos dez principais livros escritos sobre o Brasil no período colonial, no dizer de José Honório Rodrigues.11 Na capital da América Portuguesa, Botelho foi
RODRIGUES, José Honório. História da história do Brasil. 1a parte
historiografia colonial. 2 ed. São Paulo: Nacional, 1979, p. 513.
11
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
rico senhor de engenho, tendo emprestado dinheiro ao Estado
para a construção da Casa da Moeda da Bahia, o que motivou
a crítica de Pedro Calmon, na História da literatura bahiana, que
o vê como argentário avarento. Participante da vida política de
sua terra como vereador da Câmara de Salvador, Botelho exerceu ainda o cargo de capitão-mor das ordenanças da comarca
de Jacobina, que se encontra estampado na folha de rosto de
Música do Parnaso, a demonstrar que a sua poesia não era só
pura torre de marfim.
Botelho, no seu livro, escrito em quatro línguas, – português, espanhol, italiano e latim -, reservou à Língua Portuguesa
cerca de trinta por cento da obra formada de “versos amorosos” e “escritos a vários assuntos”. Quanto à sua adesão aos
postulados rígidos do Barroco ibérico, Antenor Nascentes, na
sua edição de Música do Parnaso de 1953, diz que o advogado
baiano “não fez mais que obedecer ao gosto da época” ao utilizar o cultismo e o conceptismo para burilar os versos com
perfeição, do mesmo modo que fizera o seu contemporâneo
Antônio Vieira, na sua prosa sermonária. Wilson Martins, na
História da inteligência brasileira, lembrou que Botelho “inscreve
a América nas linhas da história literária ocidental”, devido ao
discurso preambular, formado pela Dedicatória e o Prólogo ao leitor, em que se acentua o papel pioneiro da sua obra, como mais
tarde repetirá Cláudio Manuel da Costa no “Prólogo ao leitor”
dasObras. A discussão é importante porque os textos de abertura de Música do Parnaso funcionam como manifesto de adesão
ao Barroco, numa vassalagem literária que vai de Homero a
Camões, passando, naturalmente, por Gôngora e Marino, seus
principais modelos.
Em Língua Portuguesa, Botelho não fica inferiorizado
ante os principais vultos da lírica barroca portuguesa, como se
observa na antologia Poesia seiscentista: Fênix renascida & Postilhão de Apolo, organizada por Alcir Pécora com introdução de
João Adolfo Hansen. Lembra Alfredo Bosi, na História concisa
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
da literatura brasileira, que “o virtuosismo em Botelho de Oliveira apela abertamente para os modelos da época.” E Carlos
Nejar ressalta, na História da literatura brasileira, que “Botelho
não é apenas um versejador, tem o sentido intuitivo, plástico,
malicioso, visceral, que o leva a grandes temas.” Entretanto
Massaud Moisés, na História da literatura brasileira, comenta que
Botelho como poeta só “merece atenção pelas facetas histórico-literárias e culturais da sua obra”.
Se há divergência sobre o legado do corpus poético botelhiano para a literatura brasileira, existe, no entanto, unanimidade quando se fala na silva “À Ilha de Maré termo desta cidade
da Bahia”. A preocupação do escritor seiscentista nesse poema
foi dupla: burilou o texto empregando a silva – perfeita mistura
de versos decassílabos com hexassílabos – e iniciou a tradição
de exaltar a terra brasileira em versos. A Botelho se deve o papel
pioneiro de cultivar o ufanismo na nossa literatura, que continuou com as correntes literárias seguintes e desembocou no
século XX com uma poesia de raízes telúricas. No Modernismo,
com a bênção ideológica do Estado Novo, a constante nativista,
aliada ao populismo político e à cultura de massa, transformouse no samba-exaltação, cujo paradigma é a canção popular Aquarela do Brasil, de Ari Barroso. Mais recentemente, motivado pelo
exílio da pátria que o regime de 1964 impôs a tantos opositores,
a saudade ufanista renasceu com novas vestes na canção Sabiá,
de Tom Jobim e Chico Buarque. Hoje o ufanismo se encontra
estratificado no refrão do samba-exaltação, apresentado anualmente pelas escolas na Passarela do Samba do Rio de Janeiro. A
verdade é que o livro de Manuel Botelho de Oliveira tornou-se
um marco do espírito ufanista que sempre permeou a cultura
brasileira. Deve-se lembrar de que Pero Vaz de Caminha foi
precursor de Botelho no entusiasmo ante a realidade paradisíaca do Novo Mundo − “e em tal maneira é graciosa que,
querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo” −, mas a Carta de
Achamento do Brasil só foi conhecida a partir do século XIX.
►► 159
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Os poetas e prosadores quinhentistas e seiscentistas, que sucederam ao escrivão da frota de Pedro Álvares Cabral, nada mais
fizeram do que ampliar essa visão de terra adâmica, que atingiu
seu paroxismo em 1900 com a publicação do Porque me ufano do
meu país, do conde Affonso Celso.
Nos últimos anos, a obra de Botelho de Oliveira vem sendo motivo de renovada fortuna crítica. Na comemoração do tricentenário de Música do Parnaso, em 2005, publicou-se sua Poesia
completa, que inclui o livro clássico de 1705 e a Lira sacra, edição
preparada por Adma Muhana,12 que escreveu, provavelmente,
a melhor introdução à vida de Botelho, trazendo novas informações sobre o grande artífice da poesia barroca brasileira. O
contexto político e econômico em que se movimentou Manuel
Botelho de Oliveira, estudado pela professora paulista, revela
sua inserção na elite reinol da Bahia seiscentista. Chamou Botelho a essa parte de sua produção lírica de “Versos vários que pertencem ao primeiro coro das rimas portuguesas escritos a vários
assuntos”. Na Lira sacra, observou Adma Muhana que o poeta
mantém a proposta de “realçar o caráter de mantimento espiritual
desses poemas, que não tratam de assuntos profanos, mas sim
religiosos”. Já na silva À Ilha de Maré, comenta como o poema
oferece uma visão paradisíaca do local descrito por Botelho: “a
riqueza, suavidade, beleza, paladar, tato, odor, que cada um deles
e seu conjunto oferecem aos sentidos concorrem para o elogio
da ilha, qualificando-a como útil e doce”.
Também no tricentenário de Música do Parnaso, Ivan Teixeira lançou a edição fac-similar do livro antecedida do ensaio
“A poesia aguda do engenhoso fidalgo Manuel Botelho de Oliveira”.13 O estudo de Ivan Teixeira situa o bardo baiano no
OLIVEIRA,Manuel Botelho de. Poesia completa: Música do parnasso e Lira
sacra Edição de Adma Muhana. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
13
OLIVEIRA, Manuel Botelho de. Música do Parnaso. Edição fac-similar.
Organização de Ivan Teixeira. Cotia, São Paulo: Ateliê Editorial, 2005.
12
160 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
contexto do código poético seiscentista, destacando a dupla
função da poesia botelhiana: exaltar a beleza absoluta da musa
Anarda e, nos poemas encomiásticos, valorizar as principais
figuras do Império lusitano. Para o saudoso ensaísta paulista o
legado poético de Botelho confirma a habilidade do artífice do
verso: “Não há como negar a elevada significação da experiência
do poeta com a língua portuguesa na aguda operação de moldá
-la às configurações da linguagem poética de seu tempo”.14
Paulo Roberto Pereira. Doutor em Letras pela UFRJ, Professor de Literatura Brasileira na UFF. Organizou, entre outras, a Brasiliana da Biblioteca
Nacional – Guia das fontes sobre o Brasil; a edição de As comédias de Antônio
José, O Judeu; e a edição do centenário da obra completa de Euclides da
Cunha. Curador, na Biblioteca Nacional, das exposições: “Gregório de
Matos e o Barroco” (l996), “Anchieta e o Brasil Quinhentista” (l997),
“Celso Cunha: Dez Anos de Saudade” (1999), “500 Anos de Brasil na
Biblioteca Nacional” (2000). E-mail: [email protected]
►► 161
POESIA
CINCO POEMAS
ANTONIO BRASILEIRO
As bagagens
Deixo minhas bagagens sobre os trilhos,
os abandonados trilhos junto à estação velha
e ando ao léu por entre os matos leves.
Não vou. Não sei destinos.
Levam-me os ventos.
Não, não os ventos – leva-me
a consciência
por entre
os matos leves.
As bagagens, lá, sobre os trilhos.
Abandonados trilhos.
►► 165
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Mas talvez estejamos certos
Mas talvez não estejamos certos.
Talvez só inventemos.
Para que, ao nos perdermos,
nos achemos.
Nos achemos no cais aqui perto.
De onde navios não partem.
E possamos estar finalmente
sossegados.
Mas talvez estejamos certos.
Viver não é inventar?
E o cais, quem sabe não esteja
aqui perto!
166 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Quando eu for bem velho
Quando eu for bem velho,
vou só rir.
Rir das borboletas amarelas
e dos bem-te-vis.
Vou rir também do vento nas folhagens
e daquela nuvenzinha.
E das ondas dos rios, revoltas
e do brilho das águas sob a lua.
Vou rir, quando eu for velho,
das rolinhas fogo-pagôs barítonas.
E das flores silenciosas do fim da tarde.
As flores silenciosas são minhas grandes
amigas.
►► 167
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Paisagem turva
Um trem noturno cheio de demônios
virá ganindo feito um bicho doido
para que não percamos nosso ticket.
E a daminha, com seus tons volucros,
nos cutucando o espírito mais ínfero.
É muito tarde. O trem geme na curva,
não somos mais os vates destemidos.
Vai que este mundo é uma paisagem turva!
168 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Foz
O que vale o mundo,
se o que é profundo
não é deste mundo?
Que sentido existe
no que vive triste
e no que morre triste?
Quando estarei calmo
no centro da alma?
E quem me trará
notícias de um mar
grande como o mar?1
Antonio Brasileiro, poeta, ensaísta e artista plástico, nasceu nas Matas
do Orobó, sertão baiano. Com 26 livros publicados, destacam-se entre eles: Caronte (1995, romance), Antologia poética (1996), A estética da
sinceridade (2000, ensaios), Da inutilidade da poesia (ensaio, 2002; 2ª. ed.
2012), Poemas reunidos (2005), Dedal de areia (2006, poesia), Memórias
miraculosas de Nestor Quatorzevoltas (ficção), Lisboa 1935 (poesia, 2015).
Como artista plástico, participou de uma centena de exposições (coletivas e individuais). Mora em Feira de Santana.
►► 169
DOIS POEMAS
CLEISE FURTADO MENDES
Ator Pós-Moderno
Basta!
De agora em diante,
não mais encarnarei fantasmas
de outro tempo e lugar.
Estou farto de expelir palavras alheias,
paixões importadas,
retórica elisabetana e absurdo francês.
Agora, no tablado ou em qualquer parte,
serei eu mesmo, eu próprio, ego ipsum
eu e eu, presença onipotente
na plenitude deste aqui-agora.
Meu corpo enfim, despido de personas,
será servido no banquete das sensações,
vida a vazar das veias,
sem outra metáfora senão o sangue jorrando
na epiderme desta aura intransferível.
Fora a corcunda de Ricardo III, a tiara de Blanche Dubois!
Não mais! Não mais!
Longe de mim os heróis do povo, os vilões
capitalistas de casaca,
as velhas beatas e todas
as histéricas nelson-rodriguianas!
Eu, apenas eu, euzinho pura e simplesmente,
na entrega de meu corpo irredutível
►► 171
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
à vertigem do olhar.
Abaixo a representação, o eterno macaquear de seres de papel!
Todos saberão que sou eu, eu mesmo, o único
autor e executor
deste campo irradiante de energias.
Eu enfim meu tema e assunto e circunstância,
na pura epifania de mim-mesmo!
Só um detalhe ainda me atrapalha
e bem sei quem mora aí:
ninguém menos que Mephisto, o arqui-inimigo
o intrigante, o embusteiro, o pai das ilusões.
Só um detalhe, um mísero detalhe:
- Quem sou eu?
172 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Bahia 1798
Bocas, buchichos, bilhetes,
o beijo, o banzo, o batuque,
bispos, beatos, blasfêmias,
as conversas cavernosas,
cavando caos e castigo,
cartas, cárceres, carrascos,
cruzes, quilombos, capoeira,
denúncias, depoimentos,
devassas e desventuras,
a danação do degredo.
E a liberdade tecendo
o fio de sua renda:
navegar é preciso
que se aprenda.
Filetes de ferimentos,
ferros, feitores, fidalgos,
afã de fazer feitiço,
garras, garrotes, gadanhos,
galhofas e galicismos,
o gosto das gargalhadas,
o gozo, o guizo, a gandaia,
a justiça justaposta,
gerando jeito, jeitinho,
e gente jeremiando.
E a liberdade tecendo
o fio de sua renda :
navegar é preciso
que se aprenda.
►► 173
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Lágrimas lavam as leis
e as legiões de lacaios,
os livros em labaredas,
a luz, o lume, a legenda,
iluminismos letais ...
Masmorras, mortes, miséria,
meirinhos, maçons, muzenza,
o Nordeste, a novembrada,
Napoleão e novelas,
novidades e novenas.
E a liberdade tecendo
o fio de sua renda :
navegar é preciso
que se aprenda.
Os póstumos patriotas,
padres, peões, parasitas,
os poderes paralelos,
réus, rebeldes, renitentes,
raças, revoltas, revides,
o real e a realeza,
os sambas e as assembleias,
selos, sigilos, segredos,
a sedição e seus sonhos,
o sangue e o suor descendo.
E a liberdade tecendo
o fio de sua renda:
navegar é preciso
que se aprenda.
174 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Traidores e titulares,
o trono, a taxa, o tributo,
o tronco, a tortura, a tropa,
velas, vasos e vitrais,
os vassalos e os valentes,
a vida a vazar das veias,
o xodó e o xingamento,
zona, zunzum, zombaria,
o zumbir da zurzidela,
zoeiras, zangas e zelos.
E a liberdade tecendo
o fio de sua renda:
navegar é preciso
que se aprenda.1
Cleise Furtado Mendes é autora teatral, atriz e professora de Dramaturgia e Análise de Texto na Escola de Teatro da Universidade Federal
da Bahia. É também ensaísta, contista e poeta. Entre suas obras para
o teatro, encontram-se Castro Alves, drama histórico em dois atos, e A
casa de Eros, peça em quatro atos. Foi membro do Conselho Estadual
de Cultura da Bahia. Desde 2004 ocupa a Cadeira número 6 da ALB.
►► 175
CINCO POEMAS
FLORISVALDO MATTOS
Velhas estações de trem
Quando as vejo, assim, ao chão, perdidas
no abandono, quase sonhadoras,
lembro de almas, de vozes, outras vidas,
que contavam no pulso lentas horas.
Ó trilhos dispersados na saudade,
curvas que a mão dos anos enferruja!
Miro paredes gastas; já me invade
a doçura de um tempo sem mão suja.
Ainda vejo passar o maquinista,
o guarda-freios lépido, o foguista,
a me acender a lenha da memória.
Elas contam um tanto desta história,
a que junta cacau com coronéis,
da passagem custando dois mil réis.
(Salvador, manhãzinha de 09/10/2015)
►► 177
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Devaneios outonais
Pensei-me à beira já do estígio rio,
Tantas mãos me seguram neste barco.
Farto de ontens, me acalmo e me alivio,
Quando miro ainda distante o vasto arco
Da noite que, apressada, me acompanha
Neste final de estrada sonolenta.
Busco um farol; resisto à angústia e à sanha
Inimiga da tarde que se ausenta,
Neste deserto de almas que me cerca,
Me avisa; uns poucos vejo de outros dias.
Em pé, me estanco, firme, junto à cerca,
Como se ouvisse canto e melodias:
Se morna brisa bate em minha fronte,
Não quero me segure a mão Caronte.*1
SSA, tarde de 18/09/2015
*. Kháron, em grego; segundo a mitologia, barqueiro encarregado de levar a alma dos
mortos através do Estige, o rio dos Infernos.
178 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Noite de estrelas prateadas
Noite alta, céu risonho,
A quietude é quase um sonho (,,,)
(Cândido das Neves,
Noite Cheia de Estrelas, valsa, 1939)
Há um marulho de sombras no meu leito.
A cidade adormece (eu disse um dia...).
Onde a esquina que até me livraria
Dessas noites de chumbo em que me deito?
Hão de dizer que afundo em nostalgia,
Que não tenho durezas de homem feito.
Tenho sonhos fecundos, tenho um peito;
Só não tenho razão, filosofia.
Vou por noites maiores e menores,
Por onde transitaram meus amores,
Em praças de jardim sem flor-de-lis.
Gritam: “Para que servem as manhãs?”
Vejo na porta alguém metido em lãs,
Que me convida a entrar no Tabaris.*
SSA/BA, manhã de 26/08/20151
*Tabaris Night Club: casa noturna, ao estilo de cabaré com música e dança,
que funcionou em Salvador, de 1938 a 1972.
►► 179
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Recém-hoje, recém-ido
(...) diz adeus à Alexandria que de ti se afasta.
Konstantinos Kaváfis,
“O deus abandona Antônio”.
“Vás encontrar o mundo”, repetia
Um que à luz de uma lâmpada de gás
Alheava fama de sabedoria.
Se confiar nele nunca foi demais,
Deixo Barro Vermelho para trás
E vou com os olhos pandos de alegria,
Na idade em que sonhar não é demais
(Verdade que descobrirei um dia).
Os dias passam. Sei que passam guerras;
Passam ódios e gulas de outras terras.
Agora, a alma de sons e aragens farta,
Junto ganhos e perdas, sento e busco,
Na paz imemorial do lusco-fusco,
Barro Vermelho que de mim se aparta.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Ante rio que soletrava nuvens
Sem as tristezas que depois virão,
as de ir embora, deixando-a para trás,
quero falar agora do Apertucho,
a minha sempre amada e quieta rua,
de moradas modestas e quitandas,
com seu lado aos meninos interdito;
o da casa onde mora Boi-inteiro,
alta negra de corpo e riso largos,
inferno de mulheres enciumadas.
“Puta, por que sempre aí sentada estás,
na porta, a sorrir para o meu marido?”
Como posso esquecer esse lugar?
Lá havia canto e sonho, havia um rio,
que deslizava soletrando nuvens.1
Florisvaldo Mattos é poeta, jornalista e ensaísta, bacharel em direito e
mestre em ciências sociais pela Universidade Federal da Bahia. Presidiu
a Fundação Cultural do Estado da Bahia. Foi editor do suplemento A
Tarde Cultural e redator-chefe de A Tarde. Publicou diversos livros, entre eles Estação da prosa & diversos e Poesia reunida e inéditos. Desde 1995
ocupa a Cadeira número 31 da ALB.
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CINCO POEMAS
GLÁUCIA LEMOS
Soneto da Partida
Guarda um pedaço do teu tempo. Guarda
minha memória na fração do instante
do teu bocejo, e nela imprime o abraço
que não logrou retê-lo o braço amante.
Na confusão do teu cansaço, guarda
um espaço em branco, a nele ter constante
a presença do afago, e cada passo
do dorido apartar-se dos amantes.
Guarda-me um pensamento, um curto instante
no teu repouso noturnal. E guarda
se for possível, este querer pulsante;
Mas na retina, cuida, não se embace
nem turve a minha imagem que te aguarda
com uma saudade que me escorre à face.
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Da acácia branca
Meu coração tem braços estendidos
como os galhos gentis da acácia branca.
Abraça os ventos, no passar, perdidos
por entre os ramos da folhagem franca.
Braços abertos como galhos leves,
meu coração se revestiu de amores
e deu-se ao teu abraço como um breve
dar-se ao teu coração feito de flores.
Assim é meu coração dia após dia,
como galhos de acácia, na euforia
do abraço inaugural que te festeja.
E quando partes, arrastando os laços,
meu coração cruza no peito os braços
e te abraça à distância, sem que vejas.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Os girassóis dourados
O meu tendal dos girassóis dourados
era o mais claro dos jardins da terra.
Quando o sol se elevava engalanado
escancarava em luz minha janela.
E quando o sol deitava no sombreado
do recorte dos montes e das serras
toda a altivez dos girassóis dourados
curvava leve as faces amarelas.
Era assim de ouro o encanto dos meus dias
à luz - os girassóis nas cercanias
à noite escura - os girassóis tristonhos.
E assim foram dois olhos que me amaram.
Eram dois girassóis que me alumiaram
até que anoiteceram com meus sonhos.
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Deus grego
Gosto muito é dos teus brancos cabelos.
Há um deus grego oculto em teu perfil.
e se tu fosses grego, a teus desvelos
eu me tornava a escrava mais gentil
da velha Esparta. Ia aprender de Helena
os segredos que os guarda a que é mais bela.
Aprenderia a ser sensual, serena,
só por mirar no mesmo espelho dela.
E então postar-me frente ao teu olhar
cantar os cantos que não sei cantar,
dançar em acordes de um baixista negro.
Se me viesses da Grécia como um deus,
se os teus cabelos brancos fossem meus,
se tu pudesses ser o meu deus grego.
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Setembros
Setembro desenrola-se em silêncios.
Nas primaveras de ontem feneceram
as azaleias das manhãs serenas
e as ácidas begônias mais vermelhas.
Eram só das sereias de altas horas
os cantos que chegavam nas monções.
Os setembros finados são agora
rescaldos dos incêndios dos verões.
Envenenam-me então rubras papoulas.
Os escorpiões me vem picar a boca,
as águas-vivas queimam-me as chagas.
Neste setembro bronco e mal desperto,
dá-me salvar os meus sonhos de louca
nos teus dourados olhos de deserto.1
Glaucia Lemos é bacharel em direito e pós-graduada em crítica de arte.
Trabalhou em jornalismo escrevendo críticas de arte e resenhas literárias
em jornais de Salvador, Maceió, São Paulo e Aracaju. Tem publicados
mais de trinta títulos em literatura adulta e infanto-juvenil. Entre suas
obras, encontram-se os romances premiados O riso da raposa (1995), A
metade da maçã (1988), As chamas da memória (1990), e Bichos de Conchas
(2007). No conto, publicou, entre outros, Procissão e outros contos (1996).
Entre seus vários sucessos na literatura infanto-juvenil, destaca-se o
livro As aventuras do marujo verde, já na vigésima sexta edição. Desde 2010
ocupa a Cadeira número 14 da ALB.
►► 187
DOIS POEMAS
MYRIAM FRAGA
O filme
Subitamente,
Um filme acorda
Em minha mente.
Enrola, desenrola
E de repente,
Numa tela irreal
Abre-se em frente,
Uma grande angular
A desdobrar-se
Em planos,
Multiplicando-se
Perdida nas esquinas
De uma cidade
Fantasma
Que se esconde.
Corta!
Sombras se apagam
E reaparecem
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Caminhando
Solitárias pelas ruas,
A perder-se nas dobras
Do vazio.
E era eu,
Era eu que me perdia,
Protagonista a caminhar
Sem rumo, sem destino,
Num roteiro dividido
Em princípio, meio e fim
Do sem medida.
Um passo em falso
E estaria perdida
No turbilhão de imagens,
Planos, cortes, flash-back,
Em repetidos lances,
Até o ponto final,
A apoteose,
O beijo, a morte,
Ou, simplesmente,
O caminhar sereno
Para o abismo,
Cenário de um filme
Mais antigo.
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A Ilha
Esta ilha completa e acabada
Que no espelho da cidade se reflete,
A ilha que cantei nas madrugadas
Em que o mar se desmanchava em suas praias,
Esta ilha morreu, não tem mais jeito,
As correntes marinhas a levaram
A sepultar no fundo azul perfeito,
Onde dormem sereias entre as algas.
Meu país é o mar, meu oceano
De ocultas ressonâncias submarinas,
Cidades, caminhos que apaguei,
Na esquina das ruínas submersas.
Eu sou quem sou, um risco no horizonte
Onde naufraga o veleiro solitário
Que um dia atravessou os sete mares
Em busca de encontrar a própria sombra.
Minha ilha sou eu, tão simplesmente
Como viver perdida no oceano,
Numa viagem sem fim e sem retorno
Na incansável procura de si mesma.1
Myriam Fraga é poeta, diretora-executiva da Fundação Casa de Jorge Amado,
conferencista no Brasil e no exterior. Publicou, dentre outros, Sesmaria (Prêmio Arthur de Sales), Femina e Poesia Reunida, o ensaio Leonídia: a musa infeliz
do poeta Castro Alves, e obras infanto-juvenis sobre vultos como Castro
Alves, Carybé e Jorge Amado. Desde 1985 ocupa a Cadeira nº 13 da ALB.
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QUATRO POEMAS
RUY ESPINHEIRA FILHO
Clepsidra
Com certeza: a vida tem
furores de Hércules e de Hidra
e nunca poupa a ninguém
nas águas da clepsidra.
Mas vamos levando o barco,
desafiando oceanos,
pois o que sustenta a alma
sempre é a graça dos enganos
que urdimos e nos compõem
com forças de Hércules e de Hidra
com esperanças e amor
nas águas da clepsidra.
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Soneto das mesas
Convido os irmãos mortos para a mesa.
E mais o pai. E a mãe. E amigos tantos.
Não para reviver coisas de prantos,
pois horas dolorosas nesta mesa
não podem ter lugar. Tem a certeza
do amor com que bordamos nossos mantos
de dias já cumpridos e outros tantos
que são dos reunidos nesta mesa.
Os que se foram, eis que não se foram
de vez. E sempre vêm, quando os convido
ou não convido - jovens, sem tristeza.
Pai, mãe, irmãos, grandes amigos... Douram-me
a alma – enquanto aguardo, comovido,
minha vez de sentar-me à sua mesa.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Canção dos pequenos poetas
...cité pleine de rêves...
Baudelaire
…das diatomáceas da lagoa…
Augusto dos Anjos
... Sim: eram, então, vastas rondas
em que colhíamos, à toa,
mistérios de amor e das
diatomáceas da lagoa.
Pequenos poetas vagando,
dia e noite, na cidade,
bebendo, rindo, fumando
e sonhando sem piedade.
E sem piedade apagando-nos
os brilhos nas madrugadas,
depois nas rondas mais frias
de quimeras trucidadas.
Mas valeu, porque salvamos,
em nós, do tempo que voa,
mistérios de amor e das
diatomáceas da lagoa.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Soneto da azureia
... mágica flor que em meu jardim nasceu
Sosígenes Costa: “Soneto ao anjo”.
Nesta noite sonhei com a azureia,
mágica flor nascida no jardim
de um poeta maior. O que houve em mim
para sonhá-la sem fazer ideia
de sua aparência? Não sei, foi assim.
Não a vi, mas senti: era a azureia.
Nem perfume, nem cor, nem uma ideia:
como uma brisa vinda do Jardim
do Éden... Só assim a posso descrever.
Rescende a amor. Não ao amor-perfeito
de outros jardins. Amor de amanhecer
rasgando auroras nas nuvens do leito
em que se sonha sem adormecer
no mágico jardim que abre em meu peito.1
Ruy Espinheira Filho é escritor, jornalista e professor da Universidade
Federal da Bahia, graduado em jornalismo, mestre em ciências sócias e
doutor em letras pela UFBA, autor de dezenas de livros de poesia, ficção
e ensaios, com diversos prêmios nacionais. É articulista quinzenal de
A Tarde. A sua poesia reunida encontra-se no volume Estação infinita e
outras estações (2012). Desde 2000 ocupa a Cadeira número 17 da ALB.
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HINO HOMÉRICO
A APOLO DÉLIO
Tradução direta do original grego e nota breve ao hino.
ORDEP SERRA
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Eu lembrarei — nunca olvido — Apolo flecheiro, como
No paço de Zeus irrompe e faz os deuses tremerem
E erguer-se de sobressalto à sua aproximação,
Todos as sedes deixando, quando o arco distende fúlgido:
Tão só Letó fica firme ao pé de Zeus que ama os raios.
Ela vem e relaxa a corda, e logo lhe cerra o carcás,
Que pouco depois retira dos ombros fortes do deus
E em áureo cravo lhe colga o arco, numa coluna
Do pátrio palácio — e o faz sentar-se num trono.
Em taça de ouro, o pai oferece o néctar,
O amado filho acolhendo. Só então os outros divinos
Se assentam — e a Dama Letó se alegra de ter parido
Um filho forte, mui hábil no porte do arco.
Salve, ditosa Letó! Esplêndidos filhos gerastes:
Apolo, real soberano, e Ártemis sagitária,
Esta na Ortígia, aquele na pétrea Delos,
No magno monte Cinto, em que tu te reclinastes,
Ao pé de uma palmeira, junto às correntes do Inopo.
Como é que eu te hinearei, ó de hinos sempre ilustrado?
Ó Febo! Por toda a parte, é praxe te dar canções:
Aqui neste continente que nutre bois, e nas ilhas.
Alegram-te elevações e escarpas de promontório,
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E cumes de serrania e rios ao mar correntes,
Falésias que ao mar se inclinam e os marítimos portos.
Que direi? Como deu-te à luz Letó, para gáudio dos homens,
A recostar-se no monte Cinto, na ilha rochosa
De Delos? Circumvagante, a onda escura avançava
Ubíqua, rumo da terra, tocada de ventos músicos.
Sim, lá surgistes a fim de reger humanos,
Quantos em Creta existem, ou são do povo de Atenas,
Ou da ilha Egina, de Eubeia por naus famosa,
De Eges e de Pirésia, de Pepareto marinha,
De Atos da Trácia, dos íngremes cumes do Pélion,
De Samotrácia, dos cumes umbrosos do Ida,
Do Imbros de belas moradas e de Lemnos luxuriante,
De Lesbos, a santa, morada de Mácar Eólida,
De Esciro e da Fócia, e da serra de Autocaneia,
E de Quios, a mais opulenta das ilhas de ribamar,
De Mimas acidentada, de Córico de alto cume,
De Claros, a radiosa, da íngreme serra Esageia,
De Samos aquosa, Micale de picos a prumo,
E de Mileto e de Cos, cidade dos méropes homens,
E de Cnido escarpada, e de Cárpato dada aos ventos,
De Naxos, qual de Paros, e da rochosa Reneia.
A todas, nas dores do parto do Arqueiro, Letó rogou
A ver se uma dessas terras abrigaria seu filho.
Mas tinham terror e tremor; assim, nenhuma atreveu-se
A dar acolhida a Apolo, por mui fecunda que fosse,
Até que pisou em Delos a soberana Letó
E fez-lhe sua demanda nessas palavras aladas:
“Ó Delos, não quererás ser a sede do filho meu,
Apolo Febo, que em ti um rico templo erija?
Outro não há de abordar-te, outro nenhum te honrará.
De gado — bois ou ovelhas — não creio que te enriqueças.
Vinhedos tu não terás, nem viço de muitas plantas.
Mas se do Flecheiro Apolo vieres a ter um templo,
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Todos os homens virão a te portar hecatombes,
Aglomerando-se aqui; e sempre inefável fumo
De vítimas há de erguer-se — e tu nutrirás os teus
Por meio de mãos alheias, que terra fértil não tens.”
Assim falou. E leda tornou-lhe Delos:
“Oh ilustríssima filha do forte Coio, Letó,
Acolherei de bom grado no berço o Senhor Arqueiro!
Certo é que mal afamada eu sou no meio dos homens
E assim hei de vir a ser famosa por muitas honras.
Mas um coisa receio, Letó, não vou esconder-te:
Diz-se que supinamente soberbo há de ser Apolo
E que há de ter o comando de todos os imortais,
Assim como dos mortais na terra dadora de trigo.
Eis por que tanto temor na minha mente, no imo.
Receio, sim, que tão logo a luz do sol ele veja,
A minha ilha despreze, que toda sou pedregosa,
E com seu pé a revire, no pélago a precipite.
Assim as enormes vagas lá dentro me banharão.
Enquanto isso, irá ele a terra de seu agrado,
Prover para si um templo e um sacro bosque frondoso.
Em mim, pousará o pólipo, e focas negras virão
Estabelecer morada, na ausência de povo humano.
Oh, se me ousasses jurar, senhora, uma grande jura,
De que ele primeiro em mim fará suntuoso templo,
Oráculo para os homens — e que este, depois, será
Universal dos humanos, pelo seu grande renome!”
Falou. E Letó jurou a grande jura dos deuses:
“A Terra o saiba, e o Céu que lhe está por cima,
E a água que flui da Estige! É o máximo juramento
E o mais tremendo também que os deuses ditosos juram:
Febo há de ter para sempre, aqui, o altar fragrante
E o santuário — e te honrará entre as terras.”
Assim que ela proferiu e confirmou sua jura,
Delos se rejubilou com o natal do Senhor Arqueiro.
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Nove dias e nove noites, Letó, suas inefáveis
Dores do parto sofreu. Com ela, todas as deusas
Augustas na ilha assistiam: Dione e Reia lá eram,
E Têmis, a de Icneia, com a clamorosa Anfitrite
E várias deusas. Mas não a de braços cândidos, Hera
[Que no palácio ficou de Zeus juntador de nuvens].
Só não sabia de nada Ilitia, que os partos aporta:
Sentada em cume do Olimpo, sob áureas nuvens, lá era
Retida por artes da deusa dos cândidos braços, pois
Esta sofria ciúme — que um filho forte e impecável
Letó dos belos cabelos a ponto era de parir.
Da ilha de belas moradas as deusas mandaram Íris
A Ilitia, levando promessa de uma grinalda
De côvados nove, de fios de ouro trançada.
Recado era que evitasse Hera de cândidos braços,
De desviá-la capaz por força de sua arenga.
Íris veloz - pés de vento - tão logo escutou o dito,
Correndo foi e transpôs rapidamente a distância.
Quando tocou o nivoso Olimpo, dos deuses sede,
Disse a Ilitia, que fora do grande recinto
Chegasse, para encontrá-la — e com palavras aladas,
Falou o que encomendaram as donas de olímpios tronos
— E o coração suadiu-lhe no imo do peito amigo.
Partiram. Seus pés velozes lembravam as tímidas rolas.
Assim que em Delos pisou Ilitia das dores do parto,
Letó sentiu a criança, e de parir teve gana.
Logo abraçou a palmeira, fez afundar os joelhos
Na relva tenra — e embaixo sorriu-lhe a terra.
Do seio ele veio à luz. E ulularam as deusas,
Ó Febo dos alaridos, lavando-te em água límpida,
Em rito puro, e cingiram-te em linho branco
Bem novo, bem delicado, com áureo laço perfeito.
Mas Apolo do glaivo de ouro a mãe não amamentou:
Têmis, em vez, deu-lhe néctar e ambrosia dileta
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
125 Com mãos imortais. E júbilo teve Letó,
Pois forte filho pariu, que sabe portar o arco.
Ó Febo, assim que provastes do alimento perene,
Não mais te retinham faixas — tamanha tua vibração!
Os nastros cederam logo, desfeitos os laços todos.
130 Às imortais prontamente falou-lhes o Puro Apolo:
“A mim, a cítara minha, o arco recurvo meu!
Vaticinarei aos homens o voto infalível de Zeus.”
Assim falando, marchou por sobre a terra latívia
Febo de intonsos cabelos, que fere de longe — e as deusas
135 Todas o admiraram — e Delos de ouro inteira
Cobriu-se, o filho de Zeus e de Letó contemplando,
Grata de ver que o deus a havia para morada
Entre ilhas e continente, eleito qual predileta:
Dono do arco de prata, Apolo que longe feres,
140 Ora ascendendo ao Cinto rochoso tu deambulas,
Ora nas ilhas, e em meio de homens, vagueias.
Possuis muitos santuários e sacros bosques frondosos;
Todas a atalaias e os cumes excelsos amas
Dos altos montes, e os rios que ao mar afluem.
145 Mas o máximo deleite é em Delos que tu desfrutas,
Quando os jônios lá se juntam, de túnicas roçagantes,
Trazendo consigo os filhos e as castas esposas suas
E te comprazem com lutas, danças e cantos, dês que
Seus jogos aí promovem a fim de te celebrar .
150 Imortais os julgaria, e imunes sempre à velhice,
Quem quer que presenciasse o ajuntamento dos jônios:
Sua graça sentiria, no íntimo se alegrando,
Só de ver esses varões e damas de bela cintura,
E suas céleres naus, e sua grande opulência.
155 Maravilha inda maior, que fama eterna merece,
São as donzelas de Delos, as servidoras do Arqueiro.
Em coro, depois de Apolo ter hineado, primeiro,
E logo depois Letó, e Ártemis, a Flecheira,
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Recordam-se dos varões e das mulheres de outrora:
160 Hino lhes cantam de encanto, glória de estirpes humanas.
Elas de todas as gentes as línguas, com seus sotaques,
Sabem no certo imitar: qualquer que ele mesmo fala
Creria — tão clara a todos a sua bela cantiga!
Assim me sejam propícios Apolo e Ártemis, junto,
165 Como eu vos saúdo, ó moças! Lembrai-vos também de mim
Mais tarde, quando um nativo, ou peregrino cansado
De longe arribando aqui, fizer-vos esta pergunta:
“Quem é, para vós, ó damas, o homem que excele em cantos
Dentre os poetas da terra? Qual o que mais vos agrada?”
170 Vós todas lhe respondei, sem falta, de nós falando:
“É um homem cego que habita a ilha espigada de Quios;
Todos os seus cantares sempre serão os melhores .”
E nós também vossa fama espalharemos, enquanto
Volvermos os nossos passos a bem povoadas urbes.
175 Em nós todos hão de crer, pois isso é bem verdadeiro.
Não cessarei de cantar Apolo que fere longe,
Senhor do arco de prata, que teve Letó pulcrícoma.
Nota breve sobre o texto do Hino Homérico a Apolo Délio
ORDEP SERRA
Os chamados “hinos homéricos” chegaram até nós através de cópias medievais que derivam, tudo indica, de uma compilação feita no século V de nossa era: uma coletânea atribuída
ao neoplatônico Proclo. Nas cópias ainda hoje disponíveis, chama-se de “Hino a Apolo” um texto com quinhentas e quarenta
e seis linhas, indicado pelos helenistas como “Terceiro Hino Homérico”, em função da ordem em que aparece nos manuscritos
derivados da coletânea “de Proclo”.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Além dos hinos homéricos, essa coletânea encerrava outros
poemas, entre os quais os Hinos Órficos cognominados Perfumes
e os hinos de autoria do seu compilador. É consenso dos filólogos
que algumas misturas aconteceram no processo que trouxe a nós
esse conjunto heteróclito de poemas.
O caso do Terceiro Hino Homérico tem suscitado muitas
controvérsias. Estou entre aqueles que consideram o texto assim
denominado o resultado de uma fusão artificial (resultante de
um acidente da tradição) de dois hinos, a saber, o Hino a Apolo
Délio e o Hino a Apolo Délfico.
A tradução que ofereço, feita diretamente do grego clássico, cinge-se ao Hino a Apolo Délio. Tem por base texto estabelecido por T. W. Allen e E. E. Sikes, edição revisada por W. R. Halliday e dada a público em 1936 pela Clarendon Press, em Oxford.
O hino délio, de autoria desconhecida, terá sido composto no século sexto antes de nossa era. Tucídides o atribuiu ao
próprio Homero por causa da referência feita no verso 172 ao
“homem cego de Quios”. Está claro, porém, que os autores da
Ilíada e da Odisseia viveram em época anterior à data provável
dessa composição. Já de acordo com um escoliasta anônimo, o
hino em apreço foi obra de Cinetos de Quios.
Impossível verificá-lo.
De um modo geral, os eruditos acreditam que o poema
“délio” precedeu a suíte pítica na fusão que resultou no chamado Terceiro Hino Homérico. A unidade do texto que traduzi é
bem clara e o arranjo que o ligou a outro hino mostra-se acidental. Trata-se mesmo de composições independentes.
Temos algumas traduções em português dessa dupla de
hinos “engatados” pela tradição. Em virtude da erudição dos
estudos que a acompanham, merece destaque a de Luiz Alberto
Machado Cabral (Editora da Unicamp, 2004). A de Jair Gramacho (2003, Editora da UnB) é memorável por sua elegância.
Quanto a mim, não julgo conveniente apresentar num bloco a
mistura de dois hinos — fusão devida ao acaso, como hoje bem
►► 203
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
se reconhece. Pretendo publicar em outra oportunidade uma
tradução do hino délfico.
Fiz a versão do poema délio por encomenda da Professora Doutora Haiganuch Sarian, quando esta me convidou a
participar de seu projeto de pesquisas arqueológicas sobre o
Heraion de Delos. Lamentavelmente, este projeto teve de ser
interrompido por conta de um acidente que a sábia arqueóloga
sofreu. Dedico-lhe agora esta tradução, de que fiz a primeira
leitura para os membros de sua equipe no Museu de Arqueologia e Antropologia da USP, há mais de dez anos. Confesso,
porém, que de lá para cá eu fiz mudanças no texto.
Tenho planos de publicar um livro só com traduções de
hinos helênicos a Apolo, mas ainda não sei quando o vou fazer.
É um dos meus trezentos projetos.
Não tenho aqui espaço para um estudo do Hino a Apolo
Délio, mas creio que cabem algumas considerações a respeito de
sua composição. Chamo a atenção para o início fulminante. O
poeta — sem dúvida um devoto de Apolo — faz uma extraordinária exaltação do deus. Mostra Febo ingressando no Olimpo
como um conquistador que atemoriza os divinos, a ponto de faze-los erguer-se de seus tronos e estremecer, apavorados, quando ele distende o arco, num claro gesto de ameaça. Apenas Zeus
se mantém calmo no seu trono excelso, apenas Letó fica firme.
É o próprio pai dos deuses quem oferece o cálice de ambrosia
ao filho, que assim honra acima de todos.
Essa irrupção assombrosa se assemelha muito a uma tomada de posse. O gesto de Zeus a modo que a legitima. Chegase muito perto de afirmar uma nova soberania olímpica.
A atitude de Letó também surpreende. É natural o seu
júbilo com a aparição triunfante do filho, mas há um dado que
extravaga. Note-se que ela está ao lado de Zeus, num posto que
corresponde, em princípio, à da esposa do Olímpio, sequer mencionada nesse introito. Chega a ser espantoso o silêncio que esconde a terrível filha de Cronos, a grande soberana, a esposa
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
legítima, a deusa mais próxima do supremo. Em todas as “cenas
olímpicas” das grandes epopeias homéricas a rainha dos deuses
se destaca com uma presença marcante, inesquecível, sempre ao
lado de Zeus. Já no poderoso exórdio do hino délio Hera se acha
eclipsada. Sua rival parece ocupar-lhe o posto.
O contraste forte que singulariza o quadro não se dá apenas
com outras cenas olímpicas apresentadas em diferentes narrativas
míticas. O próprio hino assim iniciado oferece, mais adiante, uma
visão digna de opor-se à imagem da sua abertura. No núcleo narrativo do poema temos a evocação da dolorosa peripécia de Letó,
grávida, a errar pela terra inteira na busca desesperada de um local
onde parir. Todas as terras a rejeitam — por temor, justamente, à
soberana do Olimpo.
O início vigoroso que retrata a soberba irrupção do deus
arqueiro no paço divino prende logo o leitor. Transcorre entre
os versos 1 e 13. Arremata-se, pouco depois, com uma saudação
especial à mãe de Apolo e Ártemis, evocando seus partos gloriosos. Com essa alusão ao nascimento dos letoidas (versos 14-18),
o poema se encaminha para o plano diegético.
Na breve transição, o aedo faz uma pergunta retórica: indaga-se, no verso 19, como há de hinear Apolo. O procedimento de que então se vale vem a ser um tópos usual em hinos e
encômios, um recurso que depois se consagrou não só na lírica
como também na oratória. Quem o emprega encarece a riqueza
de significados do seu objeto, os múltiplos valores do ser a que
dedica seu discurso. Para mostrar de forma indireta essa polivalência, o poeta evoca nos versos 21-4 a rica difusão do culto
a Apolo, celebrado em múltiplos espaços. No verso 25 a pergunta retórica torna a ecoar, abrindo caminho para o itinerário
que mais adiante será encetado. Um segundo acorde do tema
do nascimento ocorre, então, entre os versos 25 e 30. É quando
tem início, com perfeita naturalidade, um famoso catálogo: uma
relação de localidades onde Apolo tem imponentes santuários.
O “percurso” deste catálogo se estende até o verso 44, fazendo
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
uma ponte soberba para a abordagem do tema eleito, cuja escolha já fora anunciada de forma discreta: o natal de Apolo.
A passagem decisiva se dá com o diálogo entre Letó e a
ilha de Delos. A narrativa se fecha com a evocação do circuito
do deus pelas terras que frequenta, um motivo que, sem o repetir, lembra a “viagem” do catálogo.
O hino se conclui de maneira encantadora, com a evocação do festival em honra de Apolo e um apelo que o singulariza.
O poeta celebra, então, as moças de Delos e o hino que elas
entoam: tece-lhes um elogio e lhes faz uma promessa, pretexto
para a autocelebração. O recurso habilíssimo mostra a perícia de
um aedo que certamente competia com outros em um agón, no
festival evocado: ele incorpora sem o repetir o hino das virgens
délias, a que atribui ressonância milagrosa, louva os jônios de
quem espera o julgamento e o prêmio, festeja-lhes a festa, magnifica de novo Apolo e seu culto. Pode-se apostar que o aedo
arguto saiu vencedor. O lance de mestre em que ele se identifica
gerou uma legenda: a imagem de Homero como um homem
cego de Quios teve origem nesses versos.1
Ordep Serra é antropólogo, pesquisador, professor, escritor e tradutor,
graduado em letras e mestre em antropologia social pela Universidade
de Brasília, doutor em antropologia pela Universidade de São Paulo.
Estuda teoria antropológica, etnobotânica, antropologia da religião e
antropologia das sociedades clássicas. Publica obras de ficção, pelo
que tem obtido premiações nacionais. Desde 2014 ocupa a Cadeira
número 27 da ALB.
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FICÇÃO
ENCONTRO NA BIBLIOTECA
ORDEP SERRA
D
urante mais de um mês fui assíduo frequentador da Bibliothèque Nationale, em Paris. Chegava bem cedo e lá passava quase o dia todo, fazendo apenas um pequeno intervalo para
o almoço, que consistia, invariavelmente, em um sanduíche e
um copo de vinho. Era um dos primeiros a chegar e voltava para
casa ao anoitecer. Logo reparei em um cavalheiro que também
chegava cedo e lá passava a manhã inteira, mas à tarde nunca
aparecia. Era um homem alto, louro, elegante, muito circunspecto, que aparentava uns trinta e cinco anos. Usava sempre terno
claro, gravata, óculos com aro de metal dourado. Muitas vezes
sentava-se a uma banca perto da minha. Eu me entretinha praticamente o tempo todo com a leitura de escólios e edições de
fragmentos de autores antigos, obras de historiadores gregos e
bizantinos, de interesse para minha tese de doutorado. Quando
me ponho a ler, em geral me concentro de modo tão intenso que
esqueço o mundo ao redor. Mas o cavalheiro de que falei acabou
por chamar a minha atenção. Numa ocasião em que chegamos
juntos, ele foi atendido primeiro. Enquanto esperava minha vez,
vi que lhe traziam vários volumes da Husserliana. Notei que ele
os arrumou com diligência na prateleira de sua banca, mas não
abriu nenhum. Ficou parado a olhar para as lombadas, de braços
cruzados, com uma expressão meditativa.
Tão logo me trouxeram os livros que eu tinha solicitado,
mergulhei na leitura e me esqueci de tudo mais. A certa altura,
porém, tendo acabado de ler um longo trecho da Cronografia
de Malalas, ergui os olhos e percebi que o vizinho continuava
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
imóvel, na mesma atitude absorta, como se a visão dos volumes fechados o congelasse. Olhei para o relógio e dei-me
conta de que jáse tinham passado cerca de duas horas desde a
nossa chegada. Voltei à leitura, mas por duas ou três vezes olhei de
relance para a banca ao lado e vi que o seu ocupante não se mexia.
No que saí para almoçar, ele ainda estava lá, parado, do mesmo jeito.
Na volta, já não o encontrei. Mas no dia seguinte a cena se repetiu.
Por mais de uma quinzena tive essa imóvel companhia.
Ninguém parecia estranhar a presença estática, a atitude incomum do estranho cavalheiro. Um misto de discrição e
indiferença geral, característico da maneira francesa, protegia
o elegante não-leitor de qualquer abordagem. Os bibliotecários o atendiam com a gentileza fria de sempre e nada lhe
indagavam. Seu comportamento era (ou parecia ser) aceito
com naturalidade por todos ao redor. Imagino que outros
leitores terão ficado tão curiosos quanto eu, mas escondiam
sua curiosidade — como também tratei de fazer. Afinal, estava na França.
Não é que ninguém notasse o discretíssimo extravagante. Apenas ninguém mostrava notá-lo, o que é uma maneira
educada, porém decisiva, de não ver. Tacitamente, nós, os simples leitores, mantínhamos invisível o companheiro que não
abria os livros. De uma coisa estou certo: os frequentadores
inveterados da Bibliothèque Nationale que o viram lá inúmeras
vezes tanto se acostumaram a ignorá-lo que depois de algum
tempo já não o enxergavam.
Mas havia exceções.
Um belo dia, encetei uma conversa casual com uma moça
italiana que, assim como eu, deixava a biblioteca para o lanche.
Perguntei-lhe se já tinha notado Monsieur l’Invisible e ela me confirmou que sim, pois logo entendeu a quem eu me referia. Falou
que ele aparecia lá desde muito e sempre se comportava do mesmo modo: sempre solicitava alguns volumes da obra de Husserl.
Mas nunca lia. Pelo menos naquela biblioteca.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Mulheres geralmente são boas observadoras. A moça afirmou, com plena segurança, que o desconhecido era homem de
classe alta e divorciado: notou a marca em seu anular de uma
aliança em desuso e percebeu que suas roupas eram de gente rica
e refinada, sem nada de snob. Ela tinha uma habilidade que me
falta por completo para a leitura de trajes. Notou até um pequeno desarranjo estético nas gravatas do homem, coisa que a seus
olhos também traduzia divórcio. Não sei como gravatas podem
dizer isso, mas de acordo com a bela mulher a incongruência
delas era parcial e ingênua, descartava a hipótese de viuvez.
Embora lhe atribuísse riqueza, a dama perspicaz supunha
que o bem vestido era professor. A seu ver, ele tinha o physique du
rôle. Quanto a isso, porém, eu a deixei um pouco insegura. Ela admitiu a possibilidade do engano quando eu lhe contei que tenho este
ofício. Boquiaberta, a criatura da Itália confessou que nunca o teria
adivinhado. Ficou um pouco mais sossegada quando lhe revelei que
sou brasileiro e ensino (ensinava) antropologia. Pensando melhor,
ela então precisou: o homem que nos intrigava seria um professor
francês de filosofia. Nascido rico - ela sublinhou.
O resto imaginei. Disse-lhe que certamente o camarada era
especialista em Husserl e tinha encalhado em algum trecho escabroso do grande rio da fenomenologia husserliana, que tem seus
meandros, alguns deles estreitos e cheios de escolhos. Às vezes
até me parece que esse rio dá voltas ao redor de si mesmo, coisa impossível na geografia mas nada incomum na especulação.
Segundo minha hipótese (plenamente gratuita) o suposto fenomenólogo embaraçado se exercitava recordando as dúvidas e tentando antecipar-se ao impacto da releitura com uma infindável
pré-análise, um exercício liminar de auto-interrogação destinado a
afiar-lhe a inteligência antes do choque decisivo com os textos do
mestre. Era uma vítima, quem sabe, do sujeito transcendental.
Como notei um brilho novo nos olhos da filha de Roma,
prossegui na minha fantasiosa teoria. Acrescentei que o exercício rigoroso da proto-leitura com certeza tornou o pobre homem
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
refratário aos textos que quisera reler. Era evidente que ele escolhia sempre os mesmos volumes, mas os mantinha fechados com
severa prudência. Tinha receio, pensei, de que o livro aberto o
arrancasse do pensamento cuidadosamente elaborado a fim de
dominá-lo e assim, paralisando o fluxo de sua consciência com o
rigor dos argumentos husserlianos (em sua mente já transformados em enigmas de uma lógica implacável) acabasse por tirar-lhe
realidade. Por outras palavras, segundo minha desatinada fantasia,
o infeliz imaginou que o livro do filósofo o poderia ler, a ele, mas
a contrapelo de sua meditação — e assim destruir seu juízo, arrancando-o de si mesmo à força de perguntas silenciosas. Movido
pelo pânico, ele decidiu, então, tornar-se ilegível, Monsieur l’Ilegible.
Esperava, por certo, que nessa condição se faria capaz de conquistar o domínio do texto, apossar-se dele sem ser ferido por sua agudeza, a fim de impor-lhe a direção hermenêutica que o satisfazia;
poderia, então, voltá-lo para onde bem quisesse, sem se machucar
no processo. Mas nunca estava seguro de já ter ganho a desejada
força, logrado a esperada imunidade; nunca se via equipado com
a perícia necessária para volver a bordo dos escritos viajores de
Husserl e tomar-lhes o volante, por assim dizer. Duvidava, ainda
e sempre, da espécie de cabala que se empenhava em construir a
fim de aplicar-lhes.
A moça acolheu minha hipótese maluca com uma fé risonha, mas perguntou porque o pobre homem teria imaginado
uma coisa dessas. Admitia a possibilidade de que ele estivesse
louco (como suspeitava discretamente que fosse meu caso), mas
perguntava-se de que modo — e porque — ele teria chegado a
esse ponto. Embarcando na sua suposição, sugeri que foi por
causa do divórcio: a mulher dele, também filósofa, o teria abandonado em meio a uma grave discussão fenomenológica. Ele
estava apaixonado, queria voltar, mas entendeu que não o conseguiria enquanto não achasse a solução do problema filosófico
subjacente à disputa conjugal. Estava, porém, apegado a uma interpretação tentadora a que o texto de Husserl resistia, de modo
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
tão tenaz quanto sua própria esposa. Queria muito entender-se
com os dois, porém nunca se achava preparado para tanto. Continuava receoso, imobilizado entre medo e desejo.
A italiana gostou muito dessa conjetura. Almoçamos juntos e quando voltamos à biblioteca Monsieur l’Invisible estava de
saída. A moça o mirou desafiadoramente nos olhos. Ele estacou
alumbrado, cerrou as pálpebras por um instante, depois tomou
coragem e fitou-a. Em seguida olhou também para mim, com
ar interrogativo. Tudo isso durou poucos segundos. Por fim, o
homem perplexo dirigiu-nos um breve cumprimento e foi-se
embora. Parecia espantado por que nos viu, e mais ainda por
constatar que bem o vimos.
Nunca mais o deparei.
Minha imaginação ainda quer convencer-me de que nós,
a dama de Roma e eu — mas sobretudo ela — fomos responsáveis pelo sumiço do desleitor, pois o tornamos visível de forma brutalmente apodítica, à luz indiscreta de nossos olhos, e
assim destruímos seu abrigo solipsista, a casa mata onde ele se
escondia do bombardeio fenomenológico. A atitude da moça foi
decisiva, seu olhar claríssimo. Naquele momento (penso eu) o
homem notou que o tínhamos percebido e conscientizado. Mais
ainda, sentiu que o havíamos publicado em termos fenomenais:
notou que nos entreolhamos com um sorriso cúmplice.
De acordo com a nova hipótese que expus à romana momentos depois do encontro decisivo, a invisibilidade pacientemente construída era a concha em que o estudioso contido carecia de
manter-se pensando, por assim dizer, entre parênteses, seguro de
fazer-se impensável pelos outros. Vocês hão de convir: quem fica
uma manhã inteira numa biblioteca não lendo, com livros bem
escolhidos diante de si, persegue a impensabilidade.
Por algum tempo mantive essa fantasia do jeito como
a descrevi. Guardei-a comigo dessa forma, embora sem darlhe muito crédito. Mais tarde, mudei de ideia: troquei o enredo.
Fiz isso ao constatar que daquele dia em diante tanto Monsieur
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
l’Invisible quanto a dama que conversou comigo a seu respeito
deixaram de frequentar a velha biblioteca. Imagino, agora, que
ela era a esposa fatal e que voltou para o marido depois do encontro denunciador — encontro que ambos desejavam mas evitaram por muito tempo, mesmo sabendo-se próximos. Indícios:
ela acolhia bem os desvarios (era fantasticamente italiana), tinha
marca de aliança no anular da mão esquerda e um jeito gracioso,
mas ferino, de filósofa.1
Ordep Serra é antropólogo, pesquisador, professor, escritor e tradutor, graduado em letras e mestre em antropologia social pela Universidade de Brasília,
doutor em antropologia pela Universidade de São Paulo. Estuda teoria antropológica, etnobotânica, antropologia da religião e antropologia das sociedades
clássicas. Publica obras de ficção, pelo que tem obtido premiações nacionais.
Desde 2014 ocupa a Cadeira número 27 da ALB.
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MUDOS MUGIDOS
CYRO DE MATTOS
T
enho mão grossa e calosa, desde menino comecei a pegar
no cabo do facão, foice, enxada e machado. Fiz tudo na
lavoura. Plantei, colhi, quebrei. Juntei cacau nas rumas, enchi
os caçuás e trouxe nos burros para o cocho. Três dias depois de
fermentado no cocho, fiz subir para a barcaça onde pisoteei e
passei o rodo. Esperei secar, ensaquei, carreguei cada saco cheio
nas costas. Um peso de sessenta quilos em cada saco muito homem forte não agüenta. Coloquei muitas vezes o cacau ensacado
no caminhão para que fosse levado até o armazém na cidade.
De uns anos pra cá, as roças de cacau deixaram de produzir aqui na fazenda Campo Belo ou em qualquer outra da
região. No lugar das roças viçosas, a capoeira foi avançando, o
mato grosso tomou conta da terra. Desde que chegou à região a
vassoura-de-bruxa, essa praga do Cão, não deixou sossegado o
cacaueiro sadio nas roças. De uma hora pra outra se deu a morte
das árvores, tudo foi tão rápido como num vento veloz. É difícil
se acreditar no que digo, a praga da vassoura-de-bruxa faz secar
as folhas e murchar os frutos da noite para o dia. Roça de cacau
vira assombração de uma hora para outra, tudo se dá numa velocidade espantosa, cada árvore se torna numa coisa pavorosa,
visagem triste, tronco e galhos secos, aparição de causar pena,
meter medo. Faz o fazendeiro andar na cidade como penitente
por não ter qualquer produção no temporão e na safra.
Hoje lido com o gado na fazenda Campo Belo onde moro
há muitos anos. Com pai Norato, mãe Zelita e vó Sebastiana, aqui
cheguei numa tarde chuvosa. Era um menino magro e amarelo,
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
a barriga inchada feito um sapo, as pernas uns cambitos. A gente
chegou nestas bandas daqui fugindo da seca no alto sertão. A terra
daqui é bem diferente da caatinga, nestas bandas chove muito, a
natureza é generosa, em se plantando tudo dá. Os meses foram
passando, meu corpo mudando, devido os ares que peguei por essas bandas de cá. A vida é dureza, todo pobre sabe disso, embora
eu não conseguisse juntar dinheiro para comprar um pedaço de
terra para não precisar trabalhar para fazendeiro, nunca me queixei dela. Pior que ser pobre é não trabalhar, aí a dureza mais aperta, a família fica nua e sem nenhuma comida para afastar a fome.
Vó Sebastiana sempre dizia que São Saruê é a única terra
que o pobre pode viver, é pra lá que se vai depois que morre, lá
a gente tem terra para trabalhar à vontade, água boa, abundante
de peixe, caça numerosa. Lá o rico não entra porque ninguém
precisa trabalhar para fazendeiro, ganhar dinheiro miúdo para
ter o de-comer. Se tal lugar for verdadeiro, não tem pobre que
não queira morrer e ir viver lá, só que não acredito em tamanha
iludição, que vó Sebastiana jurava ser uma coisa verdadeira.
Não sou daquele que diz: pobre vive de teimoso, só faz trabalhar e gemer, no peito e na mente é um coitado penitente, desejoso de morrer para chegar logo o dia de ir morar na terra de São
Saruê. Não tenho a morte como boa parceira, quem tem?. Para
dizer a verdade ninguém quer ficar velho, quanto mais morrer.
Qualquer vivente pode ver na cara do morto o que vai acontecer
com ele, um dia. Vai ter aquela cara de defunto, um jeito duro do
que dorme sem sono nem sonho, fica assim feito uma pedra, indo
embora para nunca mais acordar nem retornar dessa viagem que
ninguém quer fazer. Tem mais: se a gente não enterra o falecido
no mesmo dia que morre, ninguém suporta o mau cheiro dele;
depois que é enterrado, não serve mais para nada, a não ser para
adubo da terra. O velório é um quadro triste, pode crer, bem triste
por causa dessa viagem sem volta que o falecido vai fazer. Dá um
vazio dentro da gente, uma desesperança enorme, uma saudade
grande, uma solidão igual a da estrada que você anda e não chega
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
ao fim. Ai Deus, que judiação a natureza faz com a gente, quem
não fica com a alma triste quando vê partir para sempre uma pessoa do nosso sangue, do nosso conviver e bem-querer?
Chico Pequeno estava com esses pensamentos embaixo
da árvore frondosa, à qual amarrara o cavalo, tinha levado o
gado para ir beber água no ribeirão. Era costume fazer isso duas
vezes no dia quando no pasto onde as reses estavam não havia
córrego ou açude. Daí ter pensado depois que o ente querido
quando vai embora deste mundo para sempre não larga a gente
em definitivo. Quando menos a gente espera, aparece no coração ou na mente. A gente nunca deixa de lembrar, relembrar e
não deslembrar. Como podia ele se esquecer do pai Norato, perguntava-se. Morreu de picada de cobra, não houve beberagem
nem remédio de farmácia que salvasse ele. Ficou com o corpo
todo roxo, inchado feito sapo, botou sangue pela boca. Já foi na
carroça para o posto médico da vila sem qualquer respiro.
Não quis se apartar do caixão onde colocaram o pai Norato coberto de flores silvestres. Durante o velório mugia feito
bezerro novo apartado da vaca antes do tempo. Meu Deus, que
é de mim? O coração depois passou a pulsar sem graça cada vez
que via o facão pendurado no prego da parede. Ganhou o facão
dele quando era menino, depois de muito pedir. O pai Norato
havia comprado um novo, não ia querer aquele facão velho, a
lâmina parecendo uma língua de teiú, de tanto ser usada por
umas mãos crespas, calosas, que nunca se cansavam de roçar o
mato. “Tome cuidado, isso não é brinquedo, não sabendo usar
pode tomar um talho fundo”, era como se estivesse vendo agora
o pai dizer isso diante dele, assim que olhava para o facão velho
na bainha, pendurado no prego da parede.
Janeiros passaram, ficou homem, casou e aguardou um
filho chegar para, quem sabe, dar a ele o facão que ganhou do
pai Norato. Da mãe Zelita sempre lembrava como ela gostava
de zelar da casa, todos os dias tudo ficava arrumado e limpo,
dando gosto de ver. Ela se mostrava alegre quando no terreiro
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
dava mandioca para a leitoa comer com os bacorinhos, depois
debulhava o milho e espalhava para as galinhas poedeiras, o galo
pedrês e as frangas ariscas.
Naquela manhã de neblina forte na baixada, mãe Zelita
não apareceu no curral para receber os três litros de leite no
balde. Ela não apareceu no terreiro para dar comida à criação
miúda. Foi ver o que tinha acontecido, atravessou o terreiro, no
batente da porta chamou, mãe, vem pegar o leite, que demora
é essa! Não houve resposta, depois de chamar cinco vezes, foi
saber o porquê daquele silêncio dela. Encontrou a mãe Zelita
estrebuchando no piso de cimento da cozinha, vó Sebastiana
agoniada, o rosto choroso, passando as mãos trêmulas no cabelo dela e pedindo à Virgem Perpétua do Socorro que salvasse a
filha, levasse ela, uma velha que já não tinha mais qualquer serventia nesta vida. A mãe foi enterrada no cemitério da vila, numa
cova rasa, junto da do pai. Como havia acontecido no enterro
do pai, não quis sair do cemitério, pediu que deixassem ele ficar
por lá com o pai Norato e a mãe Zelita, nada mais servia para ele
neste mundo. Ziquinha, a mulher, foi quem tirou da cabeça dele
tal propósito, deu ânimo, força e prumo. Deixasse de chorar, que
homem é você mesmo, Chico Pequeno, me diga? Não tem medo
de enfrentar o trabalho duro e o pior perigo, mas amolece todo
e se borra feito menino medroso diante da morte, uma coisa
que é para todos nós, essa indesejada que ninguém dá jeito, fica
você então feito carneiro quando se perde do bando, berrando
feito um bicho tonto sem encontrar o rumo certo, só parando de
berrar quando acha de novo os outros carneiros.
Não demorou um mês que mãe Zelita foi embora desta
vida para sempre, vó Sebastiana, que já tinha para lá dos noventa anos e amassava bosta com a mão na parede de adobe
do quarto, adormeceu e não acordou no outro dia. Antes de
dormir não cantarolou umas modinhas bestas que gostava, que
ninguém entendia o que era, talvez só ela mesmo naquela caduquice de velha. Não tossiu. Dormiu para sempre naquela
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
noite que o rasga-mortalha passou várias vezes por cima da
casa. Tinha certeza que ouvira a ave agourenta dar o aviso no
escuro da noite, várias vezes:
Vai, vai,
não volta
mais...
Quando está à sombra da árvore frondosa como agora,
esperando o gado acabar de beber água no ribeirão, Chico Pequeno esquece um pouco deste mundo no ritmo do trabalho
de sempre. Acha até que às vezes escuta vó Sebastiana dizer
no ouvido: “Netinho, quando for acender vela pro pai Norato,
mãe Zelita e Jairinho nos pés da Virgem Perpétua do Socorro,
não esqueça de mim”. Aí então é que mais ele se lembra do pai
Norato, mãe Zelita, vó Sebastiana e Jairinho, todos eles debaixo
do chão, o corpo não valendo mais para nada. Fica deprimido e
sem saber o que fazer, dá vontade de sumir depressa pelo mundo e nunca mais aparecer. A morte não é coisa boa, é o caminho mais certo que a gente tem um dia, pensa, pode até ser um
descanso para muitos. Duro é saber que a malvada leva a gente
praquele lugar escuro que ninguém sabe o que é. Ali desfigura a
gente depressa, dando para servir de comida o nosso corpo aos
bichinhos que vivem debaixo do chão. Não deixa um fiozinho
de sangue. A indesejada nunca para de fazer perversidade com a
foice que degola a cada um. E nunca deixa de sacudir os ossos
naquele riso soberbo de monstro devorador que se alimenta dos
inocentes. É um aqui, um ali, um acolá, um, um, um, fria foice
em cada um, nunca parando de subir e descer para o golpe final.
Aquele um que a gente gosta, faz parte também de cada um
de nós, ela leva sem qualquer remorso. O que ficou na saudade
jamais vai ver de novo, em carne e osso, o parente ou amigo
querido que a imunda abateu sem piedade. Uma coisa é ver, uma
é contar, uma é sentir. Vê nascer, vê morrer, que se pode fazer?
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Chico Pequeno nunca vai esquecer como a morte armou
mais uma de suas ciladas para levar Jairinho desta vida. Quando
fez dez anos, deu ao filho o facão língua de teiú, que ganhou do
pai Norato, de tanto o menino pedir. “Tome cuidado, isso não
é brinquedo, não sabendo usar, pode tomar um talho fundo”,
repetiu para Jairinho o mesmo que o pai Norato falou um dia
quando ele era pequeno. O filho só andava agora com o facão
na cintura para todos os cantos que ia. Roçava os matos moles
no quintal, cortava o capim sempre-verde no pasto e trazia o
feixe para o casal de preás no cercado. Descascava cana, laranja
e partia a jaca em talhadas, vinha lhe oferecer no curral. “Tome,
pai, jaca dura, doce como esta não existe nem no céu.”
Uma noite que a lua clareava o terreiro, ficou encabulado
ao notar que o filho não tirava os olhos do céu estrelado. Aí então
ouviu quando ele observou pasmado: Vixe, quantas estrelas lá em
cima! Acudiu, meio sem jeito: É mesmo! E o filho: Elas têm fogo?
Acudiu de novo: Têm, não vê como elas brilham. E o filho, olhos
medindo as estrelas pelo imenso, observou: O dono do céu gastou foi um dinheirão pra mandar fazer tantas estrelas! Sorriu e não
quis daquela vez demorar no alpendre, como gostava, tomando a
fresca da noite e respirando o perfume que o pé de jasmim soltava, ali perto da cerca, na frente da casa. Com fadiga por mais um
dia duro no trabalho, foi dormir enquanto o filho ficou lá fora, o
rosto abismado para o céu pontilhado de estrelas.
Janeiros passaram de repente novamente. O filho cresceu, engrossou a voz, um bigode fino riscou o beiço. Foi ajudar
o pai na lida com o gado. O pai ensinou-lhe castrar a rês com
torquês ou faca, ferrar sem que a marca do dono empastasse no
pelo, fazer o parto da vaca quando o bezerro estava numa posição complicada. Ensinou aplicar injeção na pele e no músculo,
na veia do pescoço quando a rês estava intoxicada, principalmente quando era mordida por cobra. O filho aprendia tudo
rápido com aqueles olhos negros e espertos. Ora ele via Jairinho
como um irmão mais novo ao lado dele, irmão que nunca teve,
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
ora era um amigo, um tipo de amigo que cresce e amadurece
numa amizade que não tem preço, amigo também que nunca
teve. Sabia que Jairinho era tudo isso e até mais que tudo isso
porque era seu filho. Seu único filho. Um dia seria enterrado por
esse filho, pensava.
Até que a indesejada, a pesteada, a malfeitora, a imunda,
a dona da caveira, sem dó nem piedade, apareceu um dia com a
sua foice afiada, que ela sempre carrega para fazer a desgraça de
qualquer vivente. Quando essa infeliz aparece, há sempre aquele
que arranja uma desculpa para ela. Uns metidos a sabidos acham
até que se pode desviar dos seus caminhos, bastando ser precavido, esperto ou prudente para não cair nas ciladas dela. Esses
sabidos aconselham a cautela no lugar da afoiteza, imprudência,
para não satisfazer a faminta. Não adianta inventar desculpas
bestas, o caminho da morte quando é chegado ninguém evita.
Na hora de ir não tem novo nem velho, homem ou mulher, preto ou branco. Não fica ninguém pra semente.
Jairinho nunca tinha ido tirar jaca madura na chácara, pé
de jaca é o que nunca faltou aos bocados aqui na fazenda Campo Belo. Que tentação tinha sido aquela que pegou ele numa
hora de fraqueza? Ele também não sabia que o dono da fazenda
nunca quis que trabalhador ou filho andasse lá na chácara, apanhando as frutas maduras?
Estava limpando o curral quando ouviu os gritos do filho. Saiu correndo na direção da chácara, de onde vieram os
gritos terríveis. Pelo terreiro ganhou o vento no peito agoniado
e, quando lá chegou, todo suado, encontrou o filho embaixo da
jaqueira, abraçado com uma casa de marimbondo, todo coberto
por uma nuvem de zumbidos. Gritou, Ziquinha, traga a vassoura, a toalha, um balde com água ligeiro, qualquer coisa para
espantar os marimbondos que ‘stão acabando com nosso filho!
Trouxe o filho nos braços, o corpo arroxeado, ele tentava
dizer alguma coisa e não conseguia com a língua embolada. Preparou o burro na carroça e levou o filho para o posto médico da
►► 221
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
vila. O médico mandou que a ambulância descesse com ele para o
hospital na cidade. Ficou lá oito dias internado, passando à custa
de injeção e soro, o corpo todo inchado, os olhos fechados, sem
conhecer o pai nem a mãe quando um ou outro chegava junto
dele na cama. “Ai, meu Deus, que é de mim, amanhã, sexta-feira,
faz um mês que Jairinho foi enterrado no cemitério da vila.”
Chico Pequeno anda agora sem vontade de lidar com o
gado, quase não come, demora dormir. Não sai no alpendre para
olhar o céu estrelado quando a noite está fresca e o jasmineiro
solta o seu perfume pelo terreiro. Não sabe até quando vai suportar tudo isso, esses ventos gemedores que ventam dentro,
não deixando que ele volte a viver sem martírio.
Será que Jairinho encontrou pai Norato, mãe Zelita e vó
Sebastiana no lugar onde eles estão agora? A mulher Ziquinha
acredita que sim, ele não acredita nem desacredita. Uma coisa é
sentir. Vê nascer. Vê morrer. Pensou errado quando achou que
um dia o filho fosse enterrá-lo quando chegasse a sua hora de
deixar este mundo. Quando a morte chega, carrega quem ela
quer, pode ser até o novo antes do velho, repito o que to mundo
sabe com desgosto. Ela escolhe e carimba. Ninguém fica pra
semente, é o que a gente tem de mais certo nesta vida. Ninguém
pode controlar essa hora e mudar seus desígnios.
Uma coisa é ver no vizinho. Uma coisa é sentir por dentro quando acontece com um de nossos entes queridos. Moer
e remoer. Ficar naquela pancada que o tempo atenua, mas não
dissolve tamanha dor aqui no lado esquerdo.1
Cyro de Mattos é contista, novelista, romancista, cronista, poeta e
autor de livros para crianças e jovens. Autor de 50 livros. Tem livros
pessoais publicados em Portugal, Itália, França e Alemanha. Prêmios
importantes, como o Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras
e o Internacional de Literataura Maestrale Marengo d’Oro, em Gênova, Itália, segundo lugar, duas vezes. É membro efetivo do Pen Clube
do Brasil. Pertence ao Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e é
membro correspondente da ALB.
222 ◄◄
DISCURSOS
A ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA
DE 2013 A 2015
ARAMIS RIBEIRO COSTA
Presidente da ALB 2013-2015
C
umpro, neste momento, uma determinação regimental: o relatório das atividades da Academia de Letras da Bahia neste
meu segundo e último mandato como presidente. Sendo uma instituição de utilidade pública, que recebe subvenção do dinheiro
público, esse relatório deve ser público, e o Regimento determina,
no seu Artigo 4º, que seja feito pelo presidente na sessão de posse
da nova Diretoria, exatamente como aqui o fazemos.
Eleita por unanimidade no dia 6 de dezembro de 2012
para o biênio 2013-2015, tendo a mim, para honra minha, como
seu presidente, a Diretoria que hoje presta contas foi empossada
no dia 7 de março de 2013, tendo como vice-presidente, João
Eurico Matta; 1ª secretária, Evelina Hoisel; 2ª secretária, Gláucia
Lemos; 1º tesoureiro, Paulo Ormindo de Azevedo; 2º tesoureiro, Luís Antonio Cajazeira Ramos; diretor da Revista, Florisvaldo Mattos; diretor da Biblioteca, D. Emanuel d’Able do Amaral;
diretor do Arquivo, Joaci Góes; e diretor de Informática, Carlos
Ribeiro; trazendo ainda, no Conselho Editorial, Fernando da
Rocha Peres, Myriam Fraga e Ruy Espinheira Filho; e no Conselho de Contas e Patrimônio, Aleilton Fonseca, Paulo Costa Lima
e Waldir Freitas Oliveira. Agradeço a todos esses confrades que
me distinguiram com sua confiança e me apoiaram integralmente nesse mandato.
►► 225
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Parece-me inevitável que o presidente da Academia de
Letras da Bahia tenha sempre em mente duas grandes responsabilidades, que podem ser resumidas numa única palavra, que
devemos escrever com maiúscula, a despeito de todas as normas
da língua: Casa. Uma palavra que sintetiza a casa física, este palácio de cultura, esta bela sede que não temos o pudor de chamar
de Palacete Góes Calmon, palco e plataforma de nossas atividades, a guardar com zelo e beleza a nossa memória e os nossos
feitos; e a Casa instituição, com suas atividades cada vez mais
abrangentes e mais incisivas na cultura baiana, guardiã atenta
dos interesses culturais da Bahia. Em ambas as Casas o trabalho
é exaustivo, mas, compensador.
Esta casa de tijolos e pedras, amplos salões trabalhados
em madeira e gesso, varandas abertas e escadarias, de um tempo
em que a cidade ainda não erguera para o alto os seus dedos de
concreto, guarda a memória de quatro nobres destinos, que se
inscrevem na história social, política e cultural da Bahia: a residência de um respeitado governador, a sede da antiga Pinacoteca
e Museu do Estado, a primeira sede do Museu de Arte da Bahia,
portanto aqui nascido, e por esta casa inspirado, e, há trinta e
dois anos, sede definitiva da Academia. Quero crer que, nesse
último destino, tenha encontrado a sua melhor função. Parte do
interesse despertado pela ALB, interesse que se estende, não raras vezes, ao grande público, devemos a esta sede, que por ser
antiga e bela, com seu histórico perfil museológico, exige permanentes cuidados para permanecer bela, interessante e adequada.
Na continuação do trabalho do primeiro mandato, o nosso olhar sobre este venerável imóvel manteve-se atento e cuidadoso, e dessa vez iniciamos pela restauração e remanejamento
de vários de seus lustres antigos, uns de cristal valioso, outros de
bronze, além de aquisição de novos, como os da secretaria e dos
corredores dos dois andares superiores, de modo que as luzes
nos venham de acordo com a beleza e a dignidade do ambiente.
Aqui, tenho de registrar, mais uma vez, o olhar especializado e
226 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
o esmero do confrade Francisco Senna, que não se contenta em
prestar a preciosa consultoria, contribuindo também com doações de inestimável valor, como, desta vez, as quatro luminárias
antigas de bronze do corredor contíguo a este Salão Nobre, e
um distinto vaso de louça e bronze que orna a mesa de centro
da Sala dos Biscuits.
As grades de proteção do térreo, que tivemos o cuidado de
pôr de forma que não comprometesse a estética e o estilo do velho casarão, vêm da permanente preocupação com a segurança de
nossa Casa, o que hoje é um pensamento dominante de todos nós
em toda parte, numa cidade que infelizmente já se faz notada pela
violência e falta de segurança. Iniciamos este segundo mandato com
a brutalidade de um assalto que nos deu o prejuízo de perdermos
duas de nossas esculturas de bronze, e isso a despeito das cercas
eletrificadas e das câmaras de segurança que mandamos instalar. A
invasão e o roubo se deram um mês após termos realizado aqui
uma sessão com autoridades, exigindo providências sobre as depredações e os furtos no bairro de Nazaré. A nossa reação imediata a
essa agressão desmedida contra o bem público foi amplamente noticiada pela imprensa, e eu, pessoalmente, levei nossa preocupação
ao governador do estado, obtendo dele uma promessa de reforço
de segurança em todo o bairro, e não apenas para nós — o que,
aliás, ou não foi cumprido, ou resultou inútil. Deu-se o roubo, na calada da noite, quando a cidade e os responsáveis por ela, dormiam.
Felizmente, tivemos a iniciativa de retirar, antes que os malfeitores a
levassem, a bela placa esculpida de bronze da fachada, que acompanhava a instituição desde a antiga sede do Terreiro, e hoje enriquece
a Sala dos Presidentes. Mas a preocupação com a segurança de nossa sede e deste bairro, que é um dos mais antigos e foi um dos mais
belos e mais aprazíveis de Salvador, permanece.
Neste Salão Nobre, que tanta atenção nos exigiu no primeiro
mandato, agora, com mais calma, pudemos fazer um registro histórico, enriquecendo-o com quatro placas de homenagem: a dos
fundadores, a dos patronos, a da primeira academia de letras do
►► 227
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Brasil, fundada na Bahia, a Academia Brasílica dos Esquecidos, de
grande valor simbólico para as nossas letras, e a da Academia dos
Renascidos, que, de certa forma, reforçou o significado histórico
de sua antecessora, e que era chamar a atenção sobre a importância
intelectual dos brasileiros, o que, aliás, ainda se faz necessário, não
para a corte portuguesa, ou para a Academia Real Portuguesa oitocentista, mas para o mundo. A memória histórica da Bahia deve
ser uma preocupação permanente de todas as instituições culturais
baianas, numa tentativa pertinaz de suprir a arraigada e inaceitável
tendência de desprezo ao passado, em nossa terra.
Na Sala Pedro Calmon, aqui em frente, que guarda as cadeiras do salão nobre de nossa antiga e também bela sede, a do Terreiro de Jesus, e homenageia um grande baiano, instalamos novos
e atualizados aparelhos de ar condicionado, para que esse auditório auxiliar possa também ser utilizado confortavelmente em cursos, seminários, conferências e sessões de menor público. Devo
registrar que o prédio da antiga sede, a do Terreiro, aqui lembrada,
também histórico e importante para o patrimônio arquitetônico
da Bahia, e que continua pertencendo à Academia, agora se encontra alugado pelos próximos dez anos a um projeto de utilidade
pública, de formação e qualificação de jovens, que merece o respeito e o apoio da Bahia, e que se intitula “Oi Kabum”.
Refizemos as molduras em gesso de nossos preciosos painéis de azulejo do século XVIII, alguns desses painéis de um
valor inestimável para os estudiosos da azulejaria portuguesa antiga. Informatizamos definitivamente a Biblioteca, implantando
o melhor sistema de catalogação de livros, até o momento, o que
é um primeiro passo para uma futura disponibilização de todo
o acervo ao público, também pela internet. Adquirimos livros
valiosos, livros esgotados e raros, indispensáveis, entretanto, à
nossa Biblioteca e às nossas pesquisas, como, por exemplo, as
biografias de Castro Alves das autorias de Múcio Teixeira, Jamil
Almansur Hadad e Lopes Rodrigues. Entre os livros adquiridos,
várias obras esgotadas de acadêmicos.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Pretendia entregar esta nossa preciosa sede inteiramente
pintada e restaurada por fora, exatamente como fizemos em seu
interior, aos poucos e com recursos próprios. Não foi possível,
porque não temos condições de exigir prazos dos nossos patrocinadores. Mas esse patrocínio foi conseguido e assegurado de
forma confiável: as tintas Coral já aprovaram o projeto de patrocínio do material da pintura da sede da Academia, integrando o
seu benemérito programa social “Tudo de Cor Para Você”, que
já ultrapassou o milésimo patrocínio dessa natureza em todo o
país, e a prefeitura de Salvador, por intermediação e empenho de
nossa amiga, amiga da Casa, secretária Rosemma Maluf, aprovou igualmente o patrocínio da mão de obra. Sendo assim, sem
que, entretanto, possamos determinar prazos, deixo assegurada
para os próximos meses, o que vale dizer, para a administração
que hoje se inicia, a restauração externa e a pintura de nossa
sede. Tenho a convicção de que esses compromissos serão honrados e de que breve veremos a nossa sede vestida com suas
cores tradicionais, salmon, branco e cinza, para orgulho nosso e
do patrimônio arquitetônico da Bahia.
Na outra Casa, a instituição, mantivemos, neste último
mandato, o ritmo de atividades e realizações dos dois anos anteriores. Isso pode ser comprovado com pormenores e informações mais precisas nas Efemérides de 2013 e de 2014, as primeiras publicadas na Revista da Academia nº52, e as segundas na
Revista nº53, que hoje entregamos ao público. Cumprimos, com
a nossa tradicional e conceituada Revista, mais uma de nossas
promessas em discurso de posse no primeiro mandato: regularizamos a sua publicação. Nos quatro anos dos dois mandatos, quatro números, disponibilizados também integralmente em
nossa página na internet, reformada neste mandato. Nas Revistas
estão as Efemérides e os discursos dos anos anteriores, também
pela primeira vez atualizados em sua publicação. As Efemérides e
os discursos são subsídios fidedignos e fundamentais à história da
Casa, o que me dispensaria de relacionar as nossas atividades neste
►► 229
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
relatório. Aqui, faço apenas um resumo dos principais acontecimentos, para cumprir o Regimento.
No capítulo das homenagens, esse importante capítulo,
numa instituição que se destina a preservar e distinguir personalidades e valores, comemoramos, nos dois últimos anos, em sessões
especiais para convidados, mas sempre franqueadas ao público
interessado, os centenários de nascimento de Rubem Braga, de
Vinícius de Moraes, de Clóvis Lima, este um centenário de acadêmico vivo, de Antônio Loureiro de Souza, de Rubem Nogueira,
de Nelson de Souza Sampaio, de Olga Pereira Mettig, de Diógenes Rebouças, de José Mindlin e de Jacinta Passos. Também o
sesquicentenário do fundador Arlindo Fragoso, o bicentenário do
patrono Antônio Ferrão Moniz de Aragão, e os oitenta anos do
acadêmico Edivaldo Boaventura, meu antecessor na presidência,
muitas vezes benfeitor de nossa instituição, exemplo de competente dedicação à Academia. Inauguramos o retrato a óleo e o
armário dos troféus, placas, medalhas e condecorações do ex-presidente José Calasans. E inauguramos a “Sala Presidente Cláudio
Veiga”, com o respectivo retrato a óleo do homenageado, justo
tributo a quem dedicou vinte e seis anos de sua vida às responsabilidades e preocupações com esta Casa.
Criada no meu mandado anterior, demos continuidade, neste
segundo mandado, à Coleção Mestres da Literatura Baiana, com direção da Academia e patrocínio e responsabilidade editorial, inclusive
de revisão de texto, da Assembleia Legislativa da Bahia. Essa coleção
contempla todos os gêneros literários, autores baianos vivos e mortos, tendo como critérios a qualidade da obra e sua importância no
contexto da literatura baiana. Tanto quanto a Assembleia Legislativa
da Bahia, a Academia de Letras da Bahia não é nem pretende ser
uma editora. Mas, diante da absoluta falta de oportunidades editoriais
para os autores baianos, e do constrangedor desconhecimento da literatura baiana, sente-se obrigada a desenvolver ações também nessa
área, procurando evidenciar autores de fundamental importância para
a literatura baiana, cujas obras encontram-se esgotadas, esquecidas,
230 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
ou fora do circuito comercial nacional. Nos últimos quatro anos, incluindo os nove volumes iniciais dessa coleção, os quatro números
da revista, os dois iniciais do anuário, os livros premiados no concurso literário, os volumes resultantes do Curso Castro Alves e do
Curso Jorge Amado e outros, cerca de vinte e cinco livros foram
editados com o selo da Academia. Numa terra onde não se edita,
isso não é pouco.
Nessa mesma direção, de valorização da literatura baiana,
mantivemos o nosso tradicional Curso Castro Alves, enriquecido,
há dez anos, pelo Colóquio da Literatura Baiana, o colóquio uma
feliz idealização do acadêmico Aleilton Fonseca. E demos continuidade ao Curso Jorge Amado, criado em nosso mandado anterior, conjugado com o Colóquio da Literatura Brasileira, curso e
colóquio que têm despertado o interesse universitário não apenas
da Bahia, mas de todo o Brasil, e não foram poucos os professores
e conferencistas de grande conceito nacional e internacional que
aqui estiveram, vindos de outros estados e mesmo de fora do país,
para nos falar de Jorge Amado e de outros autores brasileiros.
Foram, até agora, quatro edições do Curso Jorge Amado e do
Colóquio da Literatura Brasileira, uma realização da Academia em
parceria com a Fundação Casa de Jorge Amado, o que vale dizer,
uma realização que conta com a competência e a dedicação da
acadêmica Myriam Fraga, o que explica o seu êxito.
Com o mesmo propósito incentivador de nossa literatura,
mantivemos o tradicional concurso literário nacional da Academia, o maior concurso literário da Bahia, um dos poucos no país
a premiar com edição de livro, em editora de conexão nacional,
e com prêmio em dinheiro, além de ampla divulgação. Nossos
concursos, ansiosamente aguardados pelos que escrevem neste Brasil de tão poucas oportunidades editoriais, têm recebido
concorrentes de praticamente todos os estados brasileiros. No
último concurso, com o patrocínio da Braskem e da Petrobras,
tivemos quatrocentos e trinta e oito originais, enviados de todo
o país. Ainda na esfera da premiação, demos continuidade ao
►► 231
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
prêmio anual Conjunto de Obra, da Academia com patrocínio
da Eletrogóes, e os homenageados neste segundo mandato foram, como os anteriores, de merecimento indiscutível: o escritor
Hélio Pólvora e o historiador João José Reis.
Idealizados pelos acadêmicos Luís Antonio Cajazeira Ramos e Paulo Costa Lima, organizados e coordenados pelo primeiro, realizamos, mensalmente, durante todo o ano de 2013, os
“Seminários Arte e Pensamento — Transformações da Cultura
no Século XXI”. Esses seminários, realizados neste Salão Nobre, com apoio e transmissão direta para o público pelo Instituto
de Radiodifusão Educativa da Bahia e apoio da Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia,
dialogaram com os mais diversos segmentos da cultura e do conhecimento humano, trazendo a esta Casa personalidades notáveis em suas mais diversas áreas, do que é exemplo o ex-ministro
e presidente do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto.
Tendo realizado, no mandato anterior, com pleno êxito e resultados altamente positivos para a política cultural na Cidade do
Salvador, o encontro pioneiro dos candidatos a prefeito desta cidade, uma sugestão do acadêmico Luís Antonio Cajazeira Ramos,
decidimos repetir a experiência neste segundo mandato, agora com
os candidatos a governador do Estado da Bahia, que aqui estiveram, neste Salão Nobre, transmitidos ao vivo pela TV Educativa da
Bahia e pelo portal da internet do IRDEB, o que vale dizer, diante
de todo o público do nosso Estado, a responder as nossas cobranças e provocações sobre “Uma Política Cultural para o Estado da
Bahia”. Entendemos que as instituições culturais não podem ser
nichos elitistas, isolados e auto-suficientes da cultura, mas, pelo contrário, devem ser porta-vozes dos anseios culturais da sociedade, em
todos os segmentos. Personalidades respeitadas desses segmentos
nos ajudaram a construir mais esse encontro e cobrar dos políticos,
particularmente daqueles que anseiam ocupar cargos de grande poder decisivo, ações afirmativas na vasta e quase sempre relegada área
da cultura, em benefício da nossa Bahia.
232 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Aqui, é exatamente o momento de lembrar a enorme dificuldade financeira por que passam as instituições culturais baianas, incluindo a Academia. Recebem, todas elas, uma dotação
financeira da Secretaria de Cultura. Não são verbas graciosas,
porém pagamento por relevantes serviços prestados à cultura
baiana, serviços que lhes são cobrados e dos quais prestam contas com rigor e pontualidade. É justo que seja assim. O injusto
seria o inverso, que o dinheiro público fosse mal aplicado em
instituições que apenas servissem a si próprias, sem o proveito
geral, sem o proveito cultural do próprio Estado. Apenas, temos
a reparar que são verbas insuficientes e com destinações específicas que, muitas vezes, não atendem às necessidades básicas
dessas instituições, e aqui incluo as obrigações sociais dos funcionários e a manutenção dos imóveis onde as ações culturais
são desenvolvidas. A burocracia para obter e justificar essas verbas, além de altamente trabalhosa e desgastante, parece infinita,
com exigências de metas irreais ou dificílimas de serem cumpridas. O cipoal burocrático dá muitas vezes laços traiçoeiros nas
mãos e nos pés, dificultando os gestos e os passos. É também o
momento de dizer que, apesar disso, além de cumprirmos todas
as metas, ao menos todas as possíveis de serem cumpridas, e de
cumprirmos principalmente um extenso e intenso programa de
atividades de interesse cultural e público, entregamos a Academia de Letras da Bahia à nova Diretoria sem dever um único
centavo a quem quer que seja, o que pode ser comprovado em
nossa contabilidade.
Neste último mandato, ou seja, em apenas dois anos,
tivemos de nos despedir de Ubiratan Castro de Araújo, Consuelo Novais Sampaio, James Amado, Anna Amélia Vieira Nascimento, Gerson Pereira dos Santos, João Ubaldo Ribeiro, eleito
e empossado no mandato anterior, e, por último, Hélio Pólvora. E
trouxemos para o nosso convívio Mãe Stella de Oxossi, uma posse,
pelo seu caráter pioneiro e ousado, de grandes repercussões para a
Academia, Urania Tourinho Peres, Ordep Serra, Guilherme Radel,
►► 233
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
João Carlos Salles e Antônio Torres, este ainda a tomar posse, em
maio próximo. A Academia não se despede dos que partem, porque
eles aqui permanecem para sempre na memória e no respeito da
instituição. E recebe de braços abertos os que chegam, que são a
garantia da perpetuidade da Casa.
Convocado pelo presidente Edivaldo Boaventura para ser
o relator, na reforma do Estatuto e do Regimento da ALB, introduzi, por minha conta, o Parágrafo Quinto do Artigo Primeiro
do Regimento, estabelecendo que “qualquer dos membros da
Diretoria só poderá ser eleito por no máximo dois mandatos
consecutivos para o mesmo cargo, podendo retornar por eleição
ao mesmo cargo com pelo menos um mandato de intervalo”.
Não tive nenhum trabalho para convencer o presidente e os demais confrades em aceitar essa nova disposição. Entendemos todos que as instituições culturais se enriquecem com a alternância
de poder. Sem alternância de poder não há democracia, e sem
democracia não há cultura. É preciso que venham sempre novas
ideias, novos ânimos, novos recursos, novos estilos de comandar, nova representação, tanto quanto será sempre necessária
a colaboração de todos os acadêmicos, independentemente de
quem esteja na presidência, para a sobrevivência e o bom êxito
dos objetivos da instituição.
Com esse espírito, e essa esperança, elegemos a nova Diretoria, a que levará a Academia ao seu centenário em 2017. Como
ocorreu com a Academia Brasileira, isso se dará com a primeira
mulher eleita presidente. Elegemos por unanimidade a acadêmica Evelina Hoisel. Professora de literatura, ensaísta e ex-diretora
do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia, títulos
que nos remetem, mais uma vez, ao nosso inesquecível presidente
Cláudio Veiga, a acadêmica Evelina Hoisel conjuga, em sua personalidade e em seu preparo intelectual, os valores que a fazem
merecedora da confiança unânime de seus confrades. Dela, eu
poderia expor um vasto e brilhante currículo universitário, relacionar obras de grande valor literário, e, acima de tudo, enumerar
234 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
facilmente as qualidades pessoais que a fazem respeitada e querida
por todos nós. Porém tudo isso é amplamente sabido, e a repetição do amplamente sabido não é uma qualidade apreciada no
meio acadêmico. Mais do que desejar êxito, expresso aqui a minha
convicção pessoal de que a administração Evelina Hoisel será uma
das mais brilhantes desta Casa.
Senhores diretores, meus companheiros de Diretoria, senhores acadêmicos, senhora presidente eleita, senhores diretores
eleitos, senhoras e senhores:
Este o relatório que o nosso Regimento me exige, e vos
apresento. De tudo que foi dito, de tudo que foi realizado, deixo
este cargo com a sensação do dever cumprido. O que não fiz, é
que não pude fazer. Espero que outros façam, e estarei sempre
à disposição para ajudá-los a realizar. Agradeço a todos os confrades a comovente confiança em mim depositada, confiança
que será, daqui por diante, um de meus principais títulos e uma
de minhas mais gratas recordações. Agradeço aos funcionários,
essa pequena e dedicada equipe de amigos da Casa. E agradeço
à Bahia que, de muitas maneiras, me ajudou a desempenhar essa
honrosa e difícil tarefa. Obrigado a todos.1
Aramis Ribeiro Costa é médico, também graduado em letras. É escritor, autor de duas dezenas de livros de ficção e poesia, entre eles Uma
varanda para o jardim (1993), romance, O fogo dos infernos (2002), novelas,
e Reportagem urbana (2008), contos. É sócio efetivo do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, foi conselheiro do Conselho Estadual
de Cultura da Bahia (2011-2013) e presidiu a Academia de Letras da
Bahia em dois mandatos, 2011-2013 e 2013-2015. Desde 1999 ocupa
a Cadeira número 12 da ALB.
Relatório apresentado pelo presidente Aramis Ribeiro Costa, no dia 9
de abril de 2015, no Salão Nobre da ALB, na sessão especial de encerramento da gestão 2013-2015, abertura do ano acadêmico e posse da
nova diretoria, gestão 2015-2017.
►► 235
DISCURSO DE POSSE NA PRESIDÊNCIA
DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA
EVELINA HOISEL
N
o dia 26 de março de 2015, a Academia de Letras da Bahia
iniciaria o seu ano acadêmico com todas as celebrações previstas para a sua programação. Todavia, os misteriosos desígnios
da vida trouxeram para aquele dia um acontecimento que marcou
profundamente a história da Academia de Letras da Bahia, a história da literatura brasileira e a minha própria história: a morte do
escritor e acadêmico Hélio Pólvora. O sentimento de celebração
foi substituído pelo sentimento de perplexidade, de pesar, de perda e de saudade. A morte do escritor e acadêmico Hélio Pólvora
deixa um imenso vazio na nossa convivência acadêmica: pela sua
distinta personalidade, pelo patrimônio literário que construiu e
legou à literatura brasileira, pela sua constante presença no cotidiano da nossa cidade, através de suas crônicas e de sua atividade
jornalística. Por tudo isso, Hélio Pólvora permanece entre nós. A
literatura tem a capacidade de vivificar o seu autor em cada texto,
em cada palavra inscrita na folha de papel, onde se inscreve também a sua imortalidade. A literatura é vida, vida que pulsa através
da palavra poética. Por isso Hélio Pólvora permanece no coração
de todos aqueles que o conheceram e através da sua literatura.
*******
Inicialmente, quero expressar a minha gratidão aos acadêmicos que aceitaram a tarefa de dirigir comigo a Academia
de Letras da Bahia. Expresso também o nosso agradecimento a
►► 237
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
todos os acadêmicos que, com o seu voto, nos deram a incumbência de conduzir a Instituição durante o biênio que agora se
inicia. Somos sensíveis à honra que esta decisão representa, cientes também da responsabilidade que teremos, no sentido de dar
continuidade, com vigor, entusiasmo e eficiência, a um trabalho
que vem sendo realizado por nossos predecessores na construção da História da Academia de Letras da Bahia.
Devo ressaltar que os presidentes desta Casa, como todos
os seus membros, ao longo dos anos, têm deixado valiosas contribuições culturais, históricas, literárias, o que nos leva a afirmar
que a trajetória desses intelectuais estabelece os laços da Academia de Letras da Bahia com a história e a memória cultural de
nossa terra.
Daremos continuidade a uma gestão marcada pela responsabilidade e prestígio institucional do Presidente Aramis
Ribeiro Costa. A sua administração deixa um legado de realizações já elencadas no Relatório da Diretoria, aqui apresentado.
O Presidente Aramis Ribeiro Costa destaca-se pela dedicação
amorosa que mantém com esta agremiação. Profundo conhecedor de todos os cantos da Casa, de todas as leis que regem a vida
acadêmica, dos rituais e protocolos que preservam e atualizam
a história desta Academia, ele foi responsável pela mudança do
seu Estatuto e do seu Regimento, ainda sob a presidência do
Acadêmico Edivaldo Boaventura, que o antecedeu. Com dinamismo silencioso, mas eloquente, Aramis Ribeiro Costa fez uma
gestão que desafia os que hoje são investidos na tarefa de dar
continuidade ao seu trabalho.
Depois de dois mandatos consecutivos (2011-2015), recebo
a Academia de Letras da Bahia organizada, tanto do ponto de vista
do espaço físico como do ponto de vista de suas diversas funções
– documentação, arquivo, revista - e com uma série de atividades
que tem projetado a Instituição em âmbito local e nacional.
O Acadêmico Edivaldo Boaventura, Emérito Professor da
Universidade Federal da Bahia, exerceu a presidência no período
238 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
de 2007 a 2011. Ele se destaca pela sua vigorosa atuação em múltiplos domínios, tanto no espaço desta Instituição, como de outras correlatas, pois é um ser sempre em trânsito, a privilegiar os
diálogos interinstitucionais. Sua vasta trajetória intelectual passa
por diversas áreas: magistério, ensaísmo, jornalismo, gestão educacional, característica que tem contribuído para uma constante
interlocução da Academia de Letras da Bahia com outras instituições da Bahia, do Brasil e do exterior. A convivência acadêmica está generosamente presente na vida dessa personalidade cuja
vivência se entrelaça à própria história da Academia de Letras da
Bahia. Com o Mestre Edivaldo Boaventura, muito tenho aprendido sobre a convivência acadêmica.
Quando cheguei a esta casa, em 27 de outubro de 2005,
era Presidente o saudoso Professor Cláudio Veiga, ele que foi o
meu mestre de língua francesa no Instituto de Letras da UFBA
e dirigiu as atividades da Agremiação durante 26 anos (de 1981 a
2007), estabelecendo efetivamente os vínculos entre a Academia
de Letras da Bahia e o Instituto de Letras. Foi o primeiro especialista em Letras, com licenciatura, bacharelado, doutorado e livre docência, a ingressar na Academia de Letras da Bahia, embora o seu antecessor na Presidência, o Acadêmico Hélio Simões,
tenha sido também professor de Letras, exercendo a cátedra de
Literatura Portuguesa, em 1942, na antiga Faculdade de Filosofia
da Universidade da Bahia que, em 1946, torna-se Universidade
Federal da Bahia.
Foi na Presidência do Professor Cláudio Veiga que a Academia de Letras instalou-se neste Palacete, transferindo-se assim
do Terreiro de Jesus para a Av. Joana Angélica, onde se situava,
também, a Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas com o
seu Curso de Letras que, posteriormente, deu origem ao Instituto de Letras. Considero que a proximidade física beneficiou as
duas instituições, pois foi a partir de então que os estudantes de
Letras começaram a transitar pelos espaços desta casa como um
lugar que possibilita ampliar o conhecimento sobre a literatura.
►► 239
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Confesso, todavia, que ocupar uma das cadeiras desta Instituição jamais foi um sonho acalentado na intimidade do meu ser,
como também não imaginei que um dia estaria sendo investida
no cargo de Presidente, lugar que tão honrosamente hoje passo
a ocupar, eu que preciso ainda conhecer tantos rituais que regem
os ofícios desta Academia de Letras, eu uma aprendiz diante de
tantos Acadêmicos que aqui estão. Mas o fluir da vida acenou com
os seus desafios e os desafios são potentes oportunidades que nos
permitem agir criativamente. Por isso, aqui estou!
Entretanto, é imperativo declarar que, a partir deste ritual de
posse, o meu ser e os meus investimentos afetivos estarão mobilizados no sentido de desenvolver uma atuação que dignifique esta
Instituição, preservando uma história que tem sido construída até
aqui com dedicação, zelo e responsabilidade. Meus predecessores
na presidência desta Casa me oferecem exemplos de trabalho no
sentido de uma atualização permanente de sua história, de seus
ritos e, simultaneamente, de preservação de sua memória.
Preservar e, simultaneamente, atualizar! Este parece ser o
grande desafio para uma gestão que, sem ferir os protocolos tradicionais, faça da Academia de Letras da Bahia uma instituição
do seu tempo, respondendo com vigor critico e de forma participativa ao contexto histórico e cultural no qual está inserida.
Uma gestão que, com a linguagem do seu tempo, responda aos
desafios lançados pelo presente! Este tem sido, aliás, o fio condutor da atuação dos presidentes desta Casa na sua história mais
recente, ao abraçarem a diversidade e a pluralidade como forma
de abertura para o presente.
E é nesse contexto de abertura para o presente, Senhoras e Senhores, que registro comovida e com grande alegria e
expectativa que sou a primeira mulher a ocupar a presidência
da quase centenária Academia de Letras da Bahia, tendo como
vice-presidente uma outra mulher, a Acadêmica Myriam Fraga,
querida amiga e poeta maior, ela uma eterna viajante através das
palavras, a tecer e a retecer os fios da nossa memória, ela que tem
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
sido uma parceira em tantas jornadas pelos caminhos da literatura. A Myriam Fraga, o meu agradecimento por estar comigo
neste momento histórico, no dia 9 de abril de 2015.
Chego à Presidência desta Agremiação fazendo parte da
linhagem dos professores da Universidade Federal da Bahia que
aqui estão ou que por aqui passaram, mas, principalmente, inserindo-me na vertente daqueles que trazem no seu percurso intelectual a marca de um saber produzido no Instituto de Letras,
ele que é, significativamente, um espaço de reflexão sobre as
linguagens e, mais especificamente, sobre as línguas - destacando-se a língua portuguesa como instrumento de comunicação
social diversificado e rico.
Como espaço de estudo sobre a língua e as linguagens, o
Instituto de Letras é, ainda, um lugar de reflexão sobre a diversidade cultural da Bahia e do Brasil, diversidade que se constitui
através daquilo que significa e representa um bem maior de uma
sociedade e de um povo: sua literatura e sua arte.
Academia de Letras da Bahia é também um espaço destinado à literatura e às linguagens. Rege o seu estatuto que ela tem
como objetivo “o cultivo da língua e da literatura nacionais, a
preservação da memória cultural baiana e o amparo e o estímulo às manifestações da mesma natureza, inclusive nas áreas das
ciências e das artes”.
Na multiplicidade de atuações de todas as personalidades
que chegam a esta Casa, na diferença das histórias de cada um
de seus membros – poetas, contistas, romancistas, dramaturgos,
filósofos, antropólogos, jornalistas, cronistas, musicólogos, historiadores, teólogos, médicos, professores, ensaístas, críticos de arte
e tantos outros reconhecemos uma vocação para a arte de representar, seja escrevendo, falando, ensinando, e sua atuação envolve compromisso, risco, postura crítica e reflexiva. Nesse sentido,
destacam-se pela capacidade para dar corpo a um ponto de vista,
articular uma reflexão, ou uma opinião para (e também por) um
público, exercendo assim uma efetiva atividade intelectual.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Em uma Academia de Letras há ainda um outro fio condutor a ligar e a unir essa pluralidade de atuação: o amor pela
literatura e a arte, a preocupação com as produções da cultura, entendendo a cultura como um espaço de produção de linguagens, um emaranhado de signos que se disseminam através
dos tempos e em diversos espaços, constituindo histórias, e por
meio dos quais os homens se representam e constroem realidades feitas de palavras, de signos, colocando em circulação seus
sonhos, suas aventuras, seus desejos e suas utopias. Essas linguagens traduzem valores, crenças e ideologias que registram os
embates da aventura humana e se oferecem como uma memória
viva a testemunhar o transcorrer dos tempos.
Por isso a Academia de Letras da Bahia é, também, uma
casa de literatura e de linguagens que vive sob o regime da memória, uma memória que é individual e coletiva. Aqui não se cultiva
apenas a memória daqueles que por aqui passaram, assegurando
a sua imortalidade. A preocupação é bem mais ampla porque, na
memória dessas personalidades, inscreve-se uma história coletiva, que pertence a uma comunidade e através da qual podemos
também nos reconhecer como sujeitos históricos. Desse modo, a
Academia de Letras é também uma casa de muitas histórias, pois
a literatura é uma guardiã da história e da memória, inscritas e
recriadas por meio das palavras do poeta/escritor.
A Academia de Letras da Bahia é, assim, uma promotora
de cultura. Se o seu interesse imediato é o cultivo da língua e
da literatura como manifestaçõesde uma cultura, sabemos que a
cultura se manifesta por meio de uma multiplicidade de expressões que dão visibilidade à produção simbólica de uma sociedade e implicam em troca, intercâmbio, valorização das diferenças,
pois, quanto mais diversa é a produção simbólica de um povo,
maior é o seu grau de desenvolvimento no campo social, político, histórico, e maior é a sua liberdade de fazer escolhas. Na
perspectiva de promotora de cultura, a Academia de Letras é
um lugar de saber, mas é também um lugar político e de poder.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Ilustres membros da Diretoria, companheiros de travessia
nos próximos dois anos. Ilustres Acadêmicos. Autoridades aqui
presentes. Senhoras e Senhores. Traço a partir de agora algumas
linhas que nortearão a atuação e o compromisso da gestão que
aqui se inicia.
A interlocução será o principal instrumento da convivência acadêmica. Interlocução com a Diretoria que, a partir de hoje,
passa a orquestrar comigo as múltiplas sonoridades que tornarão a voz desta Instituição audível no contexto cultural baiano e
para além de suas fronteiras; interlocução com os Acadêmicos
que, com a sua experiência e o seu saber, podem colaborar para
a construção vitoriosa da história desta Casa nos próximos dois
anos. Interlocução com todas as Instituições com as quais esta
Agremiação mantém relações: instituições governamentais, culturais, academias, parceiras e cúmplices nesta tarefa de cuidar,
guardar, preservar, recriar o acervo cultural da Bahia.
Com as instituições governamentais, pretende-se dar continuidade e fortalecer o diálogo já iniciado pelas gestões anteriores, no sentido de mobilizar políticas públicas mais adequadas
que considerem a especificidade e a particularidade de cada um
dos órgãos culturais do nosso Estado, no sentido de romper
com as amarras que engessam e fragilizam suas possibilidades
de uma atuação mais vigorosa e eficaz.
Por questões afetivas, conclamo inicialmente a Universidade Federal da Bahia, aqui representada pelo Magnifico Reitor,
o Professor João Carlos Salles, colega e amigo, para a construção
de um pacto de potentes parcerias, ele que é um expert em construção coletiva.
E as instituições parceiras: Assembleia Legislativa do Estado da Bahia; Secretaria de Cultura do Estado da Bahia e a Fundação Pedro Calmon; Prefeitura Municipal de Salvador; Instituto Histórico e Geográfico, Braskem.
Hoje, a Academia de Letras da Bahia mantém uma rica interação com a sociedade. Aqui circulam intelectuais e estudantes
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
de diversas procedências, que participam de nossas atividades
– cursos, seminários, mesas-redondas –, revigorando com a sua
juventude e o seu dinamismo os nossos espaços. Muitos estudantes têm aqui permanecido, exercendo atividades em colaboração com os nossos eventos. Quero que esta casa acolha cada
dia mais esses estudantes e um público mais amplo e diversificado, integrando-os ao nosso convívio acadêmico, frequentando a
nossa Biblioteca e o nosso Arquivo, transformando esta memória arquivada em uma memória viva e atuante.
No sentido de preservação da memória cultural da Bahia,
propomo-nos a intensificar os investimentos já mobilizados para
dar continuidade à publicação da Coleção Mestres da Literatura
Baiana, em convênio com a Assembleia Legislativa do Estado da
Bahia, com nove livros já publicados e um no prelo. Do mesmo
modo, pretendemos fortalecer os cursos que têm lançado esta Academia para fora das fronteiras do nosso Estado, trazendo para os
nossos espaços estudiosos e pesquisadores de diversas procedências: o tradicional Curso Castro Alves com o seu Colóquio de Literatura
Baiana e o Curso Jorge Amado: Colóquio de Literatura Brasileira. Pretendemos instalar também novos cursos ou atividades que contemplem outras áreas do saber e a nossa diversidade cultural.
Todos os esforços serão investidos para dar continuidade
ao Prêmio Nacional da Academia de Letras da Bahia Literatura,
no sentido de fomentar a criação literária em suas diversas tipologias. Incentivar a criação literária através de oficinas de escrita
criativa. Fomentar a divulgação dos escritores baianos para além
das fronteiras do Estado da Bahia e do Brasil, através de uma política de valorização e de difusão do livro e de práticas de leitura.
Teremos a honrosa tarefa de presidir a Instituição no momento em que se aproxima o seu centenário, em março de 2017.
Diante da dimensão do acontecimento, a diretoria estará mobilizada para os preparativos, acenando-se desde já com a possibilidade de promover publicações cujo foco seja a reconstrução da
história desta Casa, durante o seu primeiro século de existência.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Outros eventos, como exposições e seminários devem fazer parte
de uma programação que solicitará o envolvimento de todos os
acadêmicos para a sua montagem. Tarefa a requerer vigor e entusiasmo e, principalmente, parcerias e convênios com Instituições
de fomento, instituições governamentais e empresas privadas.
Sei que administrar uma instituição como a Academia de
Letras da Bahia exige atenção, cuidado, discernimento crítico.
Os obstáculos são vários, considerando-se inclusive o tempo de
severa crise econômica e política que atravessamos e cujos efeitos já se fazem notar no cotidiano. Mas os obstáculos podem ser
vencidos a partir de um potente desejo de superação, contando
para isso com o apoio dos caríssimos membros da Diretoria,
dos ilustres Acadêmicos, e com a inestimável colaboração de todos os funcionários, sempre atentos e dedicados. Alguns desses
funcionários, com o seu labor de tão longos anos, já estão integrados à história e à memória desta Instituição. A todos vocês,
sempre presentes no cotidiano da convivência acadêmica, o meu
reconhecimento e a minha admiração.
Como aqui é uma casa de literatura, lanço o desafio de
promover uma gestão que acolha, na sua atuação, as qualidades
que Ítalo Calvino propõe para a literatura do século XXI: leveza,
rapidez, visibilidade, exatidão e multiplicidade.
A leveza contra o peso aniquilante da burocracia. A rapidez
enquanto agilidade e desenvoltura para passar de uma situação a
outra. Visibilidade no sentido de agir em sintonia com o tempo
da civilização da imagem, mas, simultaneamente, na contramão
desse tempo. Exatidão para construir projetos definidos e bem
calculados e multiplicidade para lidar com situações heterogêneas.
Lançado o desafio, concluo reafirmando que o sentimento
que prevalece é de gratidão: gratidão aos acadêmicos que me elegeram; gratidão aos que aceitaram participar desta diretoria; gratidão a todos os que estão aqui presentes, testemunhando este ritual. Gratidão a Alberto Hoisel, pela sua infinita paciência e pelo seu
incondicional apoio. Em homenagem a todos os que aqui estão,
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
cito um trecho do poema “O lamento de Hipácia”, de Beto Hoisel, nas palavras da última Diretora da Biblioteca de Alexandria:
Aqui, eu construí a casa das palavras.
Poetas e filósofos têm aqui o seu refúgio, a sua fortaleza.
Cientistas e historiadores, estudiosos e sábios, aqui vieram para
conhecer o pensamento de seus pares, que viveram em outros tempos
e remotos lugares.
Aqui vive ainda o espírito daqueles que realmente viveram.
Aqui perdura o pensamento dos que criaram, estudaram
e compreenderam.
Dos que fizeram o mundo, o cosmos que é, fomos e poderá vir a ser *. 1
Obrigada a todos. 2
* Beto Hoisel. O lamento de Hipácia. In: Iararana. Revista de arte, crítica e
literatura. Salvador, nº2, agosto 1999, p.44-45
.
Evelina Hoisel é ensaísta, pesquisadora do CNPq, professora titular
da Universidade Federal da Bahia, mestre em letras pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro e doutora em teoria da literatura e literatura comparada pela Universidade de São Paulo, já tendo
publicado diversos livros, bem como artigos em jornais e revistas.
Eleita presidente da ALB para o biênio 2015-2017. Desde 2005 ocupa
a Cadeira número 34 da ALB.
Discurso de posse da acadêmica Evelina Hoisel na presidência da Academia de Letras da Bahia, proferido na abertura do ano acadêmico, no dia
9 de abril de 2015, data em que também tomou posse a nova Diretoria.
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DISCURSO DO MAR DE AZOV
Homenagem a Hélio Pólvora
ARAMIS RIBEIRO COSTA
O
branco e o cinza marcam a paisagem. Há uma névoa espessa, que embaça os olhos, não deixa ver claramente. Há
o que se sabe e o que se imagina, o que se vê e o que se entrevê, o
contado e o sugerido. Mais do que um enredo, uma circunstância.
Os pés afundam na neve e o frio é cortante, endurece os dedos
enluvados, enregela o coração surpreendido, cria uma expectativa
jamais completamente satisfeita, como a própria vida.
Sentados, lado a lado, conversando animadamente, mas
em voz baixa, sem exclamações ou exageros, quase alheios ao
entorno enevoado, dois vultos. Diante deles uma água imensa,
rasa e gelada, que parece guardar segredos irreveláveis: o Mar
de Azov. O que dizem esses dois vultos um ao outro é tão rico,
é tão intenso, é tão impregnado da miserável condição humana, que daria para encher muitos volumes, com muitas histórias,
contadas e sugeridas, vistas e entrevistas, como uma estrada que
não se vai percorrer inteiramente, mas que se sabe que vai além
de nós, que não finda.
Um deles nasceu ali, naquela paisagem gelada, em Tangarog, um porto marítimo daquele Mar de Azov, no Sul da Rússia,
e é bem conhecido em todo o mundo. É médico e escritor. Jamais deixou de ser médico e jamais deixou de ser escritor, mas é
como escritor que é imortal, com uma obra de contista que deu
ao conto moderno uma nova estrutura, uma nova dimensão, um
novo conceito, uma nova forma de contar. Chama-se Anton Pavlovitch Tchekhov. O outro é “um pobre homem de Itabuna”.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
*
*
*
Conheci Hélio Pólvora nos últimos meses de 1993, aqui,
na Academia de Letras da Bahia, mais exatamente no pátio
externo e na luz fraca das lâmpadas que tentavam vencer a
escuridão da noite, a conversar em pé com Wilson Lins. Preciso a época e o momento com a nitidez dos acontecimentos
marcantes, esses que nos acompanham até o apagar completo
e definitivo de todas as luzes. Eu não era acadêmico, mas era
um escritor que começava a frequentar a Casa, e a namorá-la a
distância, com intenções. Wilson Lins havia escrito a apresentação do meu romance Uma varanda para o jardim, que eu lançaria aqui na Academia no final do ano, e isso seria um passo
muito importante para me aproximar dos acadêmicos, para me
tornar mais conhecido de vários deles. Ao avistar Wilson em
meio ao pátio movimentado pelo público de um evento que já
não sei qual fosse, a conversar com aquele senhor de cabelos
muito lisos e grisalhos que eu não conhecia, lembrei-me de
que precisava lhe falar qualquer coisa, certamente relativa ao
meu romance e ao lançamento, e não hesitei em me aproximar.
É que a conversa entre eles me parecia lenta e pausada, talvez
difícil, quem sabe cerimoniosa, como se buscassem inspiração
para o que iam dizer, enfim, uma conversa de escritores que
preferiam escrever a falar, dando margem a uma rápida aproximação. Ao fazê-lo, ambos me olharam em silêncio. Disse rapidamente a Wilson o que pretendia, e já ia me retirar, quando
ele me perguntou:
— Você conhece Hélio Pólvora, o novo acadêmico?
Em seguida, apresentou-me ao seu novo confrade, dizendo, sem adjetivos e poucos substantivos, como era do feitio
de Wilson, algo sobre mim e meu romance. Aqui a névoa espessa
confunde a memória. Não creio que Hélio tenha respondido com
palavras à minha saudação formal e surpresa. Penso que apenas fez
um leve movimento de cabeça, me olhou com aqueles olhinhos
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
miúdos e sagazes, e esboçou aquele ar de riso que não era riso, o
significativo silêncio, o significativo olhar e o significativo sorriso
que tantas vezes eu testemunharia, e que pareciam mais frios e
cortantes que os ventos frios do Mar de Azov. É tudo que me
recordo, pois tive pressa em deixá-los, para que voltassem à sua
enigmática conversa.
Hoje eu faço as contas, e verifico surpreso que aquele senhor de cabelos lisos e grisalhos, olhos sagazes e desconfiados,
tinha exatamente a idade que tenho hoje: sessenta e cinco anos.
A estrada já era longa, havia muitas histórias, lembradas e esquecidas, escritas e não escritas, porque por mais que se escreva,
muito fica por não contar. Havia sido eleito para a Cadeira 29
por unanimidade em 4 de julho daquele ano de 1993, mas só iria
tomar posse em 8 de março do ano seguinte, com saudação de
James Amado. Uma Cadeira conturbada por um acontecimento
que havia levado o seu antecessor imediato e a Academia aos
tribunais da Justiça, uma situação constrangedora que o novo
acadêmico, evitando ferir susceptibilidades, ou trazer à baila assunto que ainda incomodava a Academia, sequer citou em seu
discurso de posse.
*
*
*
Diante das águas rasas e geladas os dois vultos interrompem o que dizem e escutam. Talvez seja um discurso difícil de
pronunciar, talvez apenas um murmúrio de emocionadas recordações. De qualquer forma, um sopro amigo de muito distante,
de outro mundo, quem sabe menos frio e menos triste. Depois
permanecem em silêncio por alguns instantes, eles que tanto sabem da vida e também da morte, e sorriem discretamente um
para o outro, confirmando que nada se conta completamente, há
sempre cenas e situações jamais esclarecidas.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
*
*
*
Hélio Pólvora de Almeida — que não gostava desse último nome, “de Almeida”, e, por isso, mais do que simplesmente adotar um nome literário, omitiu-o a vida inteira —, nasceu
na fazenda “Mirabela”, uma fazenda de cacau no interior de
Itabuna, no dia 2 de outubro de 1928, uma terça-feira, filho
do pequeno lavrador Joaquim Corrêa de Almeida, descendente
daqueles sergipanos que se estabeleceram nas terras do Sul da
Bahia para o cultivo do cacau, tão conhecidos de todos da região, e da professora primária leiga Raquel Pólvora, que acrescentaria, pelo casamento, o “de Almeida” ao nome, responsável por lhe ensinar as primeiras letras, na solidão silenciosa da
grande casa da fazenda. O futuro escritor nasceu, portanto,
naquela mesma rica e poderosa Nação Grapiúna, no dizer de
Adonias, tão diversa, no clima e na paisagem, do distante Mar
de Azov, mas que daria à literatura baiana e brasileira um Jorge
Amado, um Adonias Filho, um Sosígenes Costa, o próprio James Amado e vários outros, na verdade uma terra fertilíssima,
não apenas em cacau e peripécias de coronéis e jagunços, mas
em notáveis das nossas letras.
Num de seus raros depoimentos pessoais, Hélio diz que
“uma fazenda de cacau é fechada, é triste, é solitária. Quando
o dia escurece, parece que estamos no fundo do poço da noite
mais funda”. E ele procurou compensar a solidão e o medo com
leituras. O pai comprava livros, quando, na opinião da mãe, devia comprar mais fazendas. Comprava aos sábados, que, lembra
Hélio em seu discurso de posse nesta Casa, “eram dias de feira
e acerto de negócios”; comprava os livros “depois de cumprida
a sua agenda na cidade”. Eram romances de aventuras, folhetins
de Dumas, Ponson de Terrail, Eugènie Sue, Xavier de Montepin,
também romances policiais, que ele e a mãe liam avidamente. A
mãe, que criticava o pai por gastar dinheiro com livros, os encomendava também a um mascate que “varava léguas, pela zona
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
rural de Itabuna e arredores”, em busca dos fascículos mensais.
Graças a esses livros e fascículos sofregamente consumidos, e a
um dicionário enciclopédico, o menino aprendeu as palavras e
seu significado, e passou a viver também naquele outro mundo
imaginado e infinito. A sua necessidade de livros era tanta, que
economizava o dinheiro do transporte, e palmilhava léguas para
a cidade mais próxima, aproveitando sempre que o incumbiam
de um recado, a fim de adquiri-los. Então, fechava-se naquela
vastidão dos enredos e das aventuras, das figuras fictícias apenas
esboçadas, mas tão vivas, das palavras e das formas de dizer,
fechava-se em si próprio, imaginava seus próprios enredos, que
ainda não iam para o papel.
A família residiu dois anos em Pontal, Ilhéus, e um ano
na estação balneária de Olivença, onde ele começou o seu curso
primário. Em seguida, tendo adquirido a casa na Avenida Duque
de Caxias, 567, onde havia funcionado O Ateneu, dirigido pelo
professor José Fernandes Távora, fixou residência em Itabuna.
Foi matriculado na Escola Dr. Getúlio Vargas, do professor Antonio Lyra, e ali completou o curso primário. Mas o exame de
admissão, obrigatório à época para o ingresso ao ginásio, veio
fazer em Salvador, no Colégio Americano, atual Dois de Julho,
em 1942. Tinha treze anos de idade e muitas leituras na cabeça.
Mais do que isso, trazia consigo o vício da leitura, que jamais o
abandonaria. Viajou até Cachoeira. Após o pernoite, tomou o
navio, singrou o Paraguaçu, atravessou as águas fundas do grande golfo baiano, e foi do convés que distinguiu, aos poucos, o
casario de Salvador, o Elevador Lacerda, a Ribeira, imagens de
chegada a um novo mundo, que ficariam para sempre na memória do homem e do escritor.
Foram três anos como aluno interno do Colégio Americano. Em 1945, quando a humanidade, duramente ferida,
mas aliviada, encerrava a mais traumática e cruel das guerras,
transferiu-se para o Colégio Carneiro Ribeiro. No curso ginasial, iria se deparar com mestres de grande conceito à época,
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
como Hans Christian Müller, Basílio Catalá de Castro, Oscar
Hilário, Peter G. Baker, Irene G. Baker, Helvécio Carneiro
Ribeiro e Alberto Silva — este último ocuparia a Cadeira 14
desta Academia —, todos de grande importância para a sua
formação. Mas a formação, seguramente, não vinha apenas
das salas de aula. Sozinho na cidade grande, como sozinho
se sentia nas solidões das grandes roças de cacau, procurou,
desde o início, combater o tédio e o desânimo ocupando as
horas vagas com matinês, se havia dinheiro, com conversas
em bancos de praça, mas, principalmente, com livros. Os livros que já eram o seu vício. Houve tempo em que, no Colégio Carneiro Ribeiro, lia cinco livros por semana. Como
não tinha dinheiro nem espaço para possuir todos aqueles
volumes, tornou-se frequentador assíduo da Biblioteca Pública, aquela que ficava na Praça Municipal e a precipitação do
poder público implodiu com grande estardalhaço. Ali, com
critérios que ele mesmo estabelecia, conheceu a ficção americana, a inglesa, a francesa e a russa.
Iniciou o curso colegial clássico no Colégio da Bahia, porém o interrompeu, para um intervalo de alguns anos de volta
a Itabuna, agora como administrador das fazendas do pai, mas
também redador-secretário da Voz de Itabuna, jornal de propriedade do deputado Aziz Maron, vice-líder do PTB na Câmara
Federal. Nesse período, colaborou como correspondente na
zona cacaueira para o Jornal da Bahia, e publicou em jornal seus
primeiros escritos literários. Continuava grande leitor, apaixonado leitor, infatigável leitor, agora lia e relia Graciliano Ramos,
a ponto de decorar algumas páginas de São Bernardo, Vidas secas
e Angústia, uma paixão da vida inteira, à qual iriam se somar os
romances de Zé Lins. Entretanto, exercitava-se na profissão que
iria sustentá-lo por toda a vida, e que ele iria exercer quase com o
mesmo entusiasmo, mas seguramente com a mesma competência com que fazia literatura: o jornalismo. Se era esse o caminho,
que fosse mais largo, que o levasse mais longe.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Em 1953, transferiu-se para o Rio de Janeiro. Completou
o clássico no Educandário Ruy Barbosa, chegou a cursar três
anos da Faculdade de Direito. Mas agora o jornalismo o atraía
poderosamente. Um conhecimento recente, o jornalista policial
Santa Cruz Lima, contratou-o como redator de Luta Democrática,
à época um dos órgãos cariocas de maior penetração no Grande
Rio. Daí por diante, passou por quase todas as redações do Rio
de Janeiro. Foi editor das páginas do noticiário político do Jornal
do Brasil e do Correio da Manhã; chefe do copy-desk e colunista
diário sobre livros do Diário Carioca; editor do segundo caderno
de Última Hora; redator do Diário da Noite; editorialista, crítico de
cinema interino, crítico literário e cronista semanal, com a coluna “Conversa de Domingo”, do Jornal do Brasil; editor interino
do suplemento literário do Correio da Manhã; crítico literário da
revista Paratodos; colunista literário da revista Joia, de Bloch Editores; resenhista de livros da revista Veja; e crítico literário do
Correio Brasiliense. Em atividade paralela, e como um desdobramento da sua paixão pelos livros e pela literatura, traduziu dezenas de obras, incluindo autores como Graham Greene, William
Faulkner, Henry Miller, Ernest Hemingway, Mary McCarthy,
Robert Pen Warren, Bernard Malamud, Albert Soboul, Bertrand
Russell, Ray Bradbury, Isaac Bashevis Singer, Isaiah Berlin e
Dylan Thomas. Quem conheceu de perto Hélio Pólvora, há de
imaginar o empenho e a competência com que ele exerceu essas
funções de tanta responsabilidade, e também de tanto prestígio.
Porém, nada lhe deu tanta alegria quanto vencer, em fevereiro
de 1958, o concurso de contos da revista A Cigarra, com o conto
“Os Galos da Aurora”. O conto saiu estampado com destaque,
com ilustração a cores, na revista de circulação nacional. Naquele mesmo ano, publicou em livro sua primeira coletânea de contos, com o título do conto vencedor, e esse primeiro livro, por
sua vez, recebeu o Prêmio Jornal do Comércio, para o melhor livro publicado. Foram várias as importantes opiniões favoráveis.
A partir daí, o crítico literário severo, intransigente e temido,
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
que estimulava tantos autores, mas descontentava outros tantos,
passou a ser, também, um ficcionista respeitado. Uma situação
no mínimo audaciosa, que o obrigava a ter sempre uma boa vidraça, que fosse blindada, já que, por ofício, atirava pedras nas
más vidraças alheias.
Ao ser eleito para a Cadeira 29 desta Academia, Hélio havia residido trinta e dois anos no Rio de Janeiro, depois oito anos
em Itabuna, e acabava de fixar residência em Salvador. Havia a
vida pessoal, os relacionamentos, a filha Fernanda e, com Maria, a mulher definitiva, Raquel e Helinho. Havia publicado três
livros de ensaios e crítica literária e onze de ficção curta, que se
tornara a sua especialidade literária, todos em editoras do Rio,
São Paulo e Brasília, alguns deles com mais de uma edição. Havia
sido incluído, como contista, em quase duas dezenas de antologias, entre nacionais e estrangeiras. Ganhara mais três prêmios
literários, além dos já citados prêmios de A Cigarra e do Jornal
do Comércio: o Prêmio Fundação Castro Maya, com Estranhos
e assustados, o Prêmio Bienal Nestlé de Literatura Brasileira, com
O grito da perdiz, e, quatro anos depois, o segundo Prêmio Bienal
Nestlé de Literatura Brasileira, com Mar de Azov. Já em Itabuna,
foi convidado por Florisvaldo Mattos para ser colaborador do
Caderno Cultural de A Tarde, e ali continuava exercendo, com
regularidade, o ensaio e a crítica.
De sua posse nesta Casa ao último livro, Hélio publicou
mais oito volumes de contos, quatro volumes de crônicas, mais
dois volumes de ensaios e participou de outras duas dezenas de
antologias. Seus dois romances publicados, Inúteis luas obscenas e
Don Solidon, foram escritos depois dos oitenta anos de idade. À
semelhança de Machado de Assis, um de seus ícones literários,
tanto quanto Tchekhov, Hélio não perdeu a capacidade criadora,
não conheceu a decadência do espírito e do intelecto, não desceu
a ladeira perversa das luzes que lentamente se apagam. Pelo contrário, o tempo sequer lhe arranhava a lucidez e a inteligência.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
*
*
*
Naquele final de 1993, quando rápida e friamente Wilson
Lins me apresentou a Hélio Pólvora, eu nada sabia sobre aquele
novo acadêmico ainda a tomar posse. O nome não me era completamente estranho. Lembrava-me de uma citação de Jorge Amado, no prefácio do livro Histórias da gente baiana, de Vasconcelos
Maia. Porém, nada mais. A sua obra me era inteiramente desconhecida. E era, para mim, no mínimo instigante, que ele fosse eleito para esta Casa com tanta facilidade, quando, na minha opinião,
era dificílimo ser eleito para a Academia de Letras da Bahia. Saí
daqui, naquele início de noite, fui direto para a Livraria Civilização
Brasileira do Shopping Barra, e perguntei a Álvaro Chaves:
— Você tem alguma coisa aqui de Hélio Pólvora?
Álvaro coçou a cabeça. As livrarias ainda não eram informatizadas. Vasculhamos juntos as prateleiras, e encontramos, escondido entre volumes mais alentados, um exemplar de
Xerazade, um pequeno volume de cento e três páginas editado
pela José Olympio Editora, contendo oito contos com mancha
gráfica grande e fonte miúda. Comprei, levei para casa. Quase
não pude dormir nessa noite. Agarrei-me ao livro, e só o larguei
quando concluí a leitura. Quando acabei, pensei comigo mesmo: se a Academia não elegesse esse escritor, o que era, afinal, a
Academia de Letras?
O bom escritor é apenas um bom escritor. O grande escritor surpreende. Hélio Pólvora surpreende em cada página.
As surpresas, creio que se devem, sobretudo, à riqueza da linguagem e aos recursos da técnica narrativa. O contista Hélio
Pólvora alarga e aprofunda a estrutura fechada na qual alguns
críticos julgam ver, metaforicamente, uma “esfera iluminada”:
inverte, superpõe tramas, escreve nas entrelinhas, sugere, intriga, e não poucas vezes desestrutura a estrutura tradicional do
gênero, numa demonstração magistral de suas infinitas possibilidades, guardando, entretanto, a singularidade de seus contos não
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
deixarem de ser contos, tanto quanto as suas crônicas, ainda que
vestidas de imaginação, permanecem crônicas. Ao lado desses
recursos técnicos e formais, é um extraordinário narrador da
condição humana, essa que motiva e alimenta as criações literárias, tornando-as uma recriação artística admirável da própria
vida. A riqueza da linguagem e da técnica tornou-o um mestre,
fez dele um dos renovadores do conto moderno brasileiro, colocou-o no patamar dos que fazem a mais alta literatura em nosso
país, ainda que isso não seja plenamente sabido em todo o país.
*
*
*
Os dois vultos, mais uma vez, param de murmurar entre
si e escutam. Tentam aquecer, com movimentos, os dedos endurecidos e enluvados. Talvez considerem, os dois juntos, que as
recordações da vida real só servem para inspirar a vida da ficção,
para os dois tão mais real, tão mais verdadeira, porque tão mais
eterna. Mais do que os nomes, as datas e as próprias histórias,
a eles impressionam as circunstâncias humanas, sempre desconhecidas, sempre indecifráveis, sobretudo incompreendidas. Há
os caminhos e as curvas dos caminhos, as estradas e os atalhos,
o calor ensanguentado das terras do cacau e das cidades grandes,
e a neve das margens do Mar de Azov.
*
*
*
Creio que de nada teria valido aquela apresentação de Wilson Lins, por ela eu e Hélio jamais nos teríamos aproximado
tanto. Ele não veio para o lançamento do meu romance na Academia, não me recordo se o convidei, e eu, apesar de ter admirado e reconhecido o escritor, não vim à sua posse. Na verdade,
nem fui convidado.
Essa aproximação teve início em outra noite, pouco depois da posse de Hélio, e também aqui na Academia, que eu já
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
não deixava, participando de todos os eventos, na esperança de,
um dia, participar dela como acadêmico. Eu conversava com o
poeta e acadêmico João Carlos Teixeira Gomes, que já era meu
amigo, quando ele me perguntou:
— Você conhece Gerana Damulakis?
À minha negativa, ele me puxou pelo braço, gritando, naturalmente, como costuma fazer: “Gerana!”. Gerana conversava
com Hélio, pouco adiante. Joca, com grandes frases e grandes
gestos, como é de seu estilo, me apresentou a ela, e como a
apresentação anterior não valera, tornou a me apresentar a Hélio Pólvora. Os dois, Gerana e Hélio, já eram amigos, andavam
sempre juntos, principalmente aqui na Academia, onde Gerana
transitava bem, era conhecida de todos os acadêmicos, e Hélio,
com sua timidez e natural retraimento, ainda tinha dificuldades
de se relacionar com os confrades. Também ambos escreviam
regularmente ensaios, resenhas e crítica literária no suplemento Cultural de Florisvaldo Mattos, matérias que, muitas vezes, o
editor colocava lado a lado. Eram ambos solicitados com frequência para escrever apresentações de livros e prefácios. E viriam
a participar, também juntos, por anos, da comissão editorial da
Coleção Selo Editorial Letras da Bahia.
Durante vários anos, passamos, os três, a andar sempre
juntos. Nossos gostos literários divergiam algumas vezes, Gerana, nesse particular, embora não fosse chegada a Faulkner e
Conrad, outras duas preferências de Hélio, afinava mais com ele
do que eu, concordando com vários outros autores, inclusive
Saramago, que tomou de assalto a admiração de ambos. A conversa, pessoal ou por telefone, entre eles, sobre autores e leituras,
que propositadamente realizavam ao mesmo tempo, parecia não
ter fim. Mas as nossas conversas eram permanentemente tecidas com o fio invisível e interminável da literatura, à qual acrescentávamos o mundo literário que nos cercava. Eu já esperava
o seu telefonema aos domingos, às oito horas da manhã, uma
conversa que durava, no mínimo, uma hora. Íamos juntos aos
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
lançamentos de livros, saíamos duas, três vezes por semana, para
jantar, Maria e Hélio, Gerana e eu, Hélio não dispensando uma
massinha verde e uma taça de vinho tinto. A apresentação que
ele escreveu para o meu livro A assinatura perdida tornou-se referência para todos os críticos que escreveram sobre mim, daí por
diante. Ele me recebeu nesta Casa. Deste mesmo local, em que
estou neste momento, ainda sem esta tribuna que depois mandei
fazer, dirigiu-se aos senhores acadêmicos e a mim, naquela noite
que foi, acredito, a mais importante da minha vida.
Como acadêmico, quero apenas lembrar um gesto de Hélio Pólvora. Enfermo, grandemente debilitado, submetido a um
tratamento cruel e destruidor, tomado por grandes dores que só
eram amenizadas à base de poderosos medicamentos, veio a esta
Casa, atendendo aos pedidos, para dar o seu voto numa eleição
e torná-la viável ainda na primeira etapa do processo eleitoral,
facilitando a vida da Academia. Mesmo sem poder, com dificuldade de locomoção e dores, o acadêmico Hélio Pólvora cumpriu
até o fim o seu dever de acadêmico, e atendeu à solicitação dos
seus confrades. Foi a última vez que ele aqui esteve.
*
*
*
Reconhecíamos e reconhecemos, os que hoje escrevemos
ficção na Bahia, o valor do escritor Hélio Pólvora. Sabíamos que
cada livro que ele lançava, era um futuro clássico da nossa literatura. Diante dele, estendíamos unanimemente o tapete vermelho,
tirávamos o nosso chapéu, e dizíamos: passe, você merece. Não
sei se Hélio, na sua incurável desconfiança do juízo das pessoas
sobre ele, tinha plena consciência disso. Creio que não. Sempre
acreditava que não era reconhecido, acreditava até mesmo que
não era lido, que a sua literatura devia-se unicamente à vocação,
à teimosia, à necessidade de escrever. E, claro, ao seu imenso
talento de escritor, que ele jamais proclamava, porque não era,
jamais foi um cabotino, mas que, como homem inteligentíssimo,
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
sabia possuir. Dizia a Maria Pólvora, sua valente e dedicada companheira por trinta e cinco anos, que queria morrer escrevendo.
Morreu escrevendo. Dois dias antes, sempre temeroso quanto ao
seu estado, enfiei num envelope timbrado um exemplar da ainda
não lançada Revista da Academia de Letras da Bahia, nº53, onde havia
um conto seu inédito, ali posto a meu pedido, um artigo também
inédito, e a minha homenagem pessoal, num artigo, ao seu conto.
Escrevi, no envelope: “Hélio: você, antes de todos. Abraço, Aramis.” Gerana e eu deixamos na portaria. Ele recebeu, ficou feliz,
saiu com Maria, comprou um paletó novo, viria à minha despedida da presidência, à posse da presidente Evelina Hoisel. Às 17
horas e 12 minutos da véspera da sua morte — contou-nos Maria,
em comovido depoimento nesta Casa —, enviou, por e-mail, ao
jornal A Tarde o último editorial, que saiu publicado no dia da sua
despedida. Nele, uma palavra enigmática, dissociada do texto, que
foi cortada pelo editor do caderno: “nefasta”. Às 21 horas da véspera, respondeu a um e-mail do poeta e acadêmico Luís Antonio
Cazajeira Ramos, sobre literatura, e enviou, para o jornal, a sua
última crônica, que sairia no sábado seguinte. Hélio foi-se como
desejava: escrevendo, envolvido com textos e com literatura, com
o mundo real e o imaginado, com a arte de criar e dizer por meio
da escrita, como viveu a vida inteira. Em A Tarde, para onde foi
levado por Florisvaldo Mattos e Edivaldo Boaventura, era o editorialista, seu texto diário expressava com exatidão o pensamento
do jornal sobre os acontecimentos do mundo; também escrevia
semanalmente uma crônica aos sábados e um artigo aos domingos. No silêncio do seu gabinete, e na vastidão do seu mundo
íntimo e inesgotável, escrevia novos textos de ensaio e ficção e
revisava os antigos. Apesar dos sofrimentos do corpo e das decepções do espírito, recusava-se deixar de criar literatura e publicar.
Deixou pronto, a sair nos próximos meses, o livro de crônicas
Como morrem nossos escritores. Também um romance inédito, seu terceiro romance, e dois livros de contos inéditos. E, claro, também
inéditos em livro, centenas de crônicas, de artigos, de ensaios.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
*
*
*
Envolvidos pela névoa espessa, os dois vultos já não conversam. Sabem, como ninguém, o valor do silêncio, das pausas,
das entrelinhas. O que se vê, e o que se entrevê, o que se tem e o
que se deseja, o que se diz e o que se imagina. O mundo imaginado é mais real que o mundo real, porque permanece. Um vento
frio e cortante perpassa a paisagem gelada, os dedos enluvados
se movimentam, enrijecidos, palpam o impalpável, agarram o
intangível. A neve emoldura o sentimento. Mas um coração se
aquece. O “pobre homem de Itabuna” sorri, agora um sorriso
franco, e diz, com voz grave e cheia, para o seu colega famoso:
— Parece, meu caro Anton, que finalmente cheguei ao
Mar de Azov.
*
*
*
Obrigado, Hélio Pólvora, por tudo que você foi, por tudo
que fez pela literatura, por sua contribuição pessoal exemplar à dignidade do ofício de escritor. E obrigado por ter sido meu amigo.1
Aramis Ribeiro Costa é médico, também graduado em letras. É escritor, autor de duas dezenas de livros de ficção e poesia, entre eles Uma
varanda para o jardim (1993), romance, O fogo dos infernos (2002), novelas,
e Reportagem urbana (2008), contos. É sócio efetivo do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, foi conselheiro do Conselho Estadual
de Cultura da Bahia (2011-2013) e presidiu a Academia de Letras da
Bahia em dois mandatos, 2011-2013 e 2013-2015. Desde 1999 ocupa
a Cadeira número 12 da ALB.
Discurso proferido no Salão Nobre da Academia de Letras da Bahia,
como orador de sessão especial em homenagem póstuma ao acadêmico
Hélio Pólvora, no dia 28 de maio de 2015.
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À MEMÓRIA DA ACADÊMICA
CONSUELO PONDÉ DE SENA
Sessão de saudade
EDIVALDO M. BOAVENTURA
C
omeço a sessão especial de homenagem póstuma assinalando a sua significação simbólica. Por este ritual de despedida, integramos a nossa saudosa Consuelo Pondé de Sena, como
quarta titular, à cadeira patrocinada pelo romântico beneditino
Junqueira Freire. A partir de hoje, a presidente da Academia declara a vacância da cadeira de número 28. Assim, assegura a sucessão que dará continuidade ao rico legado de Consuelo.
Na economia da Academia, este é um momento solar
que nos possibilita fazer, pelo elogio, o encontro do papel
acadêmico desempenhado pela homenageada com a sua fascinante personalidade.
Consuelo possuía todos os requisitos para compor a nossa
Companhia. Mas não foi fácil a sua entrada. No Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, manifestava uma acolhedora capacidade
de convivência, detinha uma obra universitária escrita, composta
de estudos indígenas, em especial, a antropologia do tupi, dissertações sertânias e ensaios de história social, integrados em um substancioso currículo. Personalidade, obra e currículo.
Todavia, a aceitação de sua candidatura dependia do jogo
das circunstâncias mutantes e preferenciais. Não nos esqueçamos que a Academia é uma organização complexa e que cada
cadeira é uma soma de conhecimentos acumulados e de procedimentos ideográficos. A ciência pitagórica dos números nos
ensina que o número quarenta é compacto, seletivo e misterioso.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
O ingresso de Consuelo para compor a soma dos quarenta foi
sucessivamente adiado, compreendamos a sua frase no discurso de
posse: “Estou ciente de tudo, da vossa generosidade e do vosso apreço, de quantas resistências tiveram de ser vencidas para que, finalmente, fosse meu nome sufragado e pudesse assentar-me entre vós”.
Enquanto isso, Consuelo crescia na comunidade pela expressão vigorosa de sua atuação. O Instituto Geográfico e Histórico era, mais do que tudo, a sua trincheira de defesa da tradição, dos valores que militava e das lutas pelo patrimônio material
e imaterial da Bahia. Cultivava as disputas. Enfrentava tudo e todos. Como mulher, no dizer da expressão popular: “não levava
desaforo para casa”. Resolvia tudo a seu jeito às vezes com certo
toque de dramaticidade. Cada vez mais trabalhava pelo Instituto.
Participava ativamente na comunidade e projetava-se como uma
intelectual operosa da causa da Bahia.
Era admirável como sabia combinar charme pessoal
com dinamismo empreendedor. Mulher bonita, cuidava bem da
indumentária e ainda melhor do penteado. Por tudo isso, Consuelo foi uma das mulheres mais expressivas do seu tempo. O
nosso Ordep Serra disse muito bem: “Consuelo é uma dama
baiana, grande personalidade com atenção às coisas da Bahia”.
A presidência do Instituto revelava a mulher empreendedora, construtora, franca, transparente. Para Leda Jesuíno dos
Santos: “era a verdade de sua alma que prevalecia na sua fala, no
seu contato cotidiano com o outro”.
É quando surge a oportunidade de suceder ao seu mestre
José Calasans, nesta Companhia. O conjunto de circunstâncias
lhe foi favorável. As cogitações, acertos, arranjos e combinações para sucedê-lo venceram as resistências para sufragar o seu
nome, contando com o prestígio convincente de Jorge Calmon.
Elegemos, então, Consuelo. A tomada de posse foi retumbante. Elaborou um discurso completo: “Chego tarde a esta
Casa, mas chego a tempo”. E prossegue: “Chego para ficar, não
importa até quando [...]”.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Definiu-se: “Tenho buscado ser o que sou e certamente
espero ainda ser por dias que virão”. Fez o panegírico de Anfrísia Santiago, chamou a família, amigas, colegas e a amizade dos
israelitas, então, seus vizinhos de bairro. No discurso, seguiu o
cânone: patrono, fundador e sucessores. Escreveu o epinício de
José Calasans. Ilustrou e muito acrescentou à cadeira de número 28, patrocinada pelo atormentado Junqueira Freire, fundada
pelo homem de teatro, Torquato Bahia, e ilustrada por Homero
Pires e José Calasans.
Para a nossa satisfação, enfim, Consuelo Pondé de Sena
ingressou na Academia de Letras da Bahia, em 14 de março de
2002. Propositadamente, escolheu a data aniversária do seu muito
amado Castro Alves. E nos deixou, em 14 de maio de 2015. Considerando a sua efusiva e charmosa “efetividade participativa”, é
difícil aceitar que foram apenas 13 anos! Chegadas e Partidas.
Na chegada, festivamente, saudei-a com enorme contentamento, em testemunho do notável desempenho intelectual e
comunitário. Fixei-me na predestinação do seu nome espanhol,
Consuelo, quer dizer, consolação. Consuelo é uma personagem
criada por George Sand, modelo para todas as mulheres, dizia o
grande Alain. Mas Castro Alves italianizou a personagem como
símbolo do seu romance não resolvido com Agnes Truci Murri.
Agora, na partida, rodado o tempo, 13 anos decorridos,
volto a lhe falar, mas desta vez Consuelo se encontra “do outro
lado do caminho.” Recorro à prece de santo Agostinho e peço
que orem comigo:
Rezem, sorriam, pensem em mim.
Rezem por mim.
Que meu nome seja pronunciado
como sempre foi,
sem ênfase de nenhum tipo.
Sem nenhum traço de sombra
ou tristeza.
►► 263
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
A vida significa tudo
o que ela sempre significou,
o fio não foi cortado.
Porque eu estaria fora
de seus pensamentos,
agora que estou apenas fora
de suas vistas?
Eu não estou longe,
apenas estou
do outro lado do Caminho...
Você que aí ficou, siga em frente,
a vida continua, linda e bela
como sempre foi.
Falei na chegada, falo na partida, falarei sempre. Em Portugal, a saudei na incepcio, na Academia Portuguesa da História,
em março de 2010.
Constato que a Academia de Letras da Bahia deu-lhe
ensanchas plenas para expansão de seu extraordinário talento.
Quando eu fui presidente, integrou a diretoria e muito colaborou, inclusive como tesoureira.
Trouxe Yeda Pessoa de Castro para o nosso convívio. E
com Yeda, os nossos irmãos afrodescendentes se aproximam
deste grêmio. Convenhamos que para sermos mais autênticos
precisamos ter a cor da Bahia.
Compôs o epicédio em memória de Jorge Calmon. Biografou os dirigentes, quando da inauguração da galeria dos presidentes desta Academia. Pontual, assídua, participativa e pronta.
Saudou a sócia correspondente estrangeira Glória Kaiser que,
como austríaca, pesquisa os Habsburgo do Brasil.
Na Revista da Academia, Consuelo chegou cedo. Em
1991, bem antes mesmo de ingressar neste grêmio, colaborou
com este periódico com artigo acerca do centenário do Arquivo
Público do Estado da Bahia, que dirigiu de 1987 a 1991.
264 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Gostava de escrever sobre os baianos distinguidos. Assim,
em 1993, retratou a condessa de Barral, a grande dama baiana do
segundo reinado. Estudou Hélio Simões como camonista. Relacionou Afrânio Coutinho com a Bahia, no seu centenário. Evocou a passagem pela Bahia do então popular poeta das cigarras,
Olegário Mariano. Foi presença assídua no cotidiano acadêmico
e no periódico.
Consuelo nos legou uma imagem real e concreta de dedicação à cultura da terra. Envolvia-se com os seus símbolos,
emblemas e personalidades. Distinguia quem realizava como
Bernardino José de Souza, Teodoro Sampaio, Wanderley Pinho,
Pedro Calmon, Jorge Calmon. A Bahia era o seu universo, a sua
grande referência, seu tema e sua tese.
Além da sua produção universitária, Consuelo deixou cair
em crônicas a expressão do seu conhecimento, máxime dos seus
sentimentos. Dias antes do seu passamento, escreveu o comovente Pranto da madrugada.
Coordenou e atualizou a obra de Teodoro Sampaio, O tupi
na geografia nacional e editou Bernardino José de Souza, vida e obra,
dentre muitas outras publicações. O operoso construtor Bernardino, autor dos famosos e permanentes O pau-brasil na história
nacional e O ciclo do carro de bois no Brasil (1958), precisava de um
ensaio biográfico do conjunto de sua expressiva obra.
A vida pública e comunitária de Consuelo começa, de certa maneira, no Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, em
1955, por indicação do nosso confrade Luiz Monteiro da Costa.
Foram, portanto, 60 anos de presença ativa, como sócia, oradora
oficial e presidente. O Instituto era a sua casa. “Não apenas viveu noInstituto, mas viveu oInstituto”, é o testemunho de Leda
Jesuíno para a polianteia que estou organizando. Não posso deixar soltas e dispersas tantas manifestações de sentimentos. Há
que encerrá-las em um volume.
Consuelo é inseparável da Casa da Bahia. Reabilitou-a em
todos os sentidos. Foi uma presidente total com uma dedicação
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
marcadamente construtiva. Não houve setor, espaço e lugar que
ela não vivificasse. Costumo dizer, emblematicamente, que governou da cúpula aos porões.
Na sua gestão, sobressaem, dentre muitas outras realizações, os IV e V Congressos de História da Bahia e o Simpósio
Internacional do II Centenário da vinda da Família Real para o
Brasil. Ainda no ano passado, festejou os 120 anos do Instituto.
A importância que emprestou ao arredondamento dessa data
superou todas as comemorações anteriores. Que premunição,
meu Deus! Congressos, seminários e edições de livros deram
mais vida ao Instituto.
Depois do Instituto, evoco a sua presença na Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da
Bahia, como estudante de Geografia e História e como docente.
Começou ainda como aluna de Frederico Edelweiss a ensinar a
língua tupi. Tornou-se curadora exigente da coleção dos livros
do seu mestre, dirigindo o Centro de Estudos Baianos. Para se
aproximar mais da Universidade Federal, trouxe o seu magnífico
reitor Roberto Santos, para presidente de honra do Instituto.
Anossa Alma Mater, mãe nutridora, revelou à comunidade
a sua exemplar liderança feminina, culta, participativa e decidida.
Era a mesma Consuelo operosa, na nossa UFBA, nesta Academia que a homenageia, na Academia Baiana de Educação, que
lhe outorgará a emerência, na Associação Baiana de Imprensa e
na Casa de Ruy Barbosa, que dirigiu com dedicação, no Arquivo
Público do Estado da Bahia (APEB), no Conselho da Mulher
Executiva da Associação Comercial da Bahia, no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e nos inúmeros Institutos
estaduais e municipais a que pertenceu, como a joanina Academia Portuguesa da História.
No cotidiano desta cidade do Salvador, Consuelo marcou
uma expressiva liderança. A ressonância comunitária a conduziu
às organizações da cultura que tanto ilustrou, granjeando prestígio e criando legenda.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Desejo concluir com o seu projeto Memorial do Dois de Julho.
Lutou tenazmente pela preservação do patrimônio de pedra e cal e pelo patrimônio imaterial. Idealizou construir o Memorial do Dois de Julho com a Cabocla e o Caboclo. Na sua última entrevista ao jornal A Tarde, de 21 de março de 2014, foi bem
explícita: “Queria que houvesse um memorial que ficasse aberto
à visitação pública. Poderíamos fazer uma réplica das estátuas
dos caboclos para que desfilassem, e as estátuas antigas ficariam
guardadas.” Quiçá a melhor maneira de preservá-los seja em um
memorial à vista permanente de soteropolitanos e visitantes.
Consuelo tinha particular carinho pelos Caboclos. Ficava pesarosa porque a Cabocla quase nua tomava chuva e sentia
frio! Certa ocasião, o Museu de Etnologia de Portugal solicitou
o empréstimo da Cabocla. Para dificultar a ida, exigiu que só a
enviaria se houvesse um pedido formal do Presidente da República Portuguesa. Imaginemos! Pois bem, chegou o ofício de
solicitação. E lá se foram a Cabocla acompanhada da presidente
do Instituto para a exposição em Lisboa.
Uma das manifestações mais desveladas pelos simbólicos Caboclos era a entrega dos carros para o desfile do Dois
de Julho. Todos os anos ela comparecia à Lapinha para passar
ao povo as estátuas para compor o préstito tradicional quando
então falava. A Cabocla e o Caboclo representam a Bahia. Símbolos patrióticos e romanticamente indianistas, transmudandose para o misticismo religioso. O Caboclo é a ressignificação
do índio. Assinale-se que o Dois de Julho é a nossa única festa
popular e cívica, complementa Pedro Calmon.
Ao terminar, tudo que era Bahia dizia respeito a Consuelo. Como nossa acadêmica de número, professora de História e
presidente do Instituto, exercitava a tradição, a preservação e a
edificação dos valores. Era uma mulher ética, destemida e determinada, amada e temida. Brava. Acolhedora. Solidária. Não
transigia e sabia brigar se preciso fosse, na defesa desses valores.
Consuelo era uma guerreira.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Meus amigos, presidente Evelina de Carvalho Sá Hoisel,
Na Universidade, no Instituto, na Academia, por onde
esteve ou passou, Consuelo marcou com sua presença bonita,
decidida, vivaz e irrequieta. A sua simpatia e graça inundavam de
alegria tudo que realizava. É essa presença expressiva, participativa e sumamente ativa que tento resgatar neste instante de falta,
carência e ausência.
Sinto a profundidade da perda e a aridez do vazio, mas
espero a compensação da chegada das recordações felizes.
E dessa perda ficará memória. Consuelo habitará em nossas memórias pela marca da coragem e pelo balanço das recordações consoladoras que vão e que vêm.
Consuelo, consolação, consolo.
Grato a todos pela presença e ainda mais pela atenção.1
Edivaldo M. Boaventura é bacharel em direito e em ciências sociais,
mestre e PhD em educação, professor emérito da UFBA, autor de
diversos livros de ensaios, sócio de inúmeras instituições culturais no
Brasil e no exterior. É orador oficial do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Foi secretário de Educação do Estado da Bahia em dois
governos, diretor-geral do jornal A Tarde e presidente da Academia
de Letras da Bahia, da qual é membro benfeitor. Desde 1971 ocupa a
LCadeira número 39 da ALB.
Discurso proferido no Salão Nobre da Academia de Letras da Bahia,
como orador de sessão especial em homenagem póstuma à acadêmica
Consuelo Pondé de Sena, em 20 de agosto de 2015.
268 ◄◄
CENTENÁRIO DO NASCIMENTO
DE OLDEGAR FRANCO VIEIRA
(1915-2015)
YEDA PESSOA DE CASTRO
J
amais vou me esquecer daquela manhã do dia 28 de maio de
2007. Naquele momento estava eu na Alemanha, a dar aulas
em um curso sobre línguas africanas na Universidade Livre de
Berlim, quando recebi o telefonema da minha inesquecível amiga acadêmica Consuelo Pondé de Sena. Dizia-me, com firmeza
e convicção, prevendo o resultado positivo esperado pelo seu
empenho, que havia submetido meu nome para ocupar uma cadeira na Academia de Letras da Bahia.
Foi uma enorme surpresa para mim. Não conseguia acreditar o que estava a ouvir, porque nunca havia cogitado tão elevada distinção por não me julgar à altura da estatura intelectual
dos imortais deste sodalício.
De volta a Salvador, na semana seguinte, no dia 9 de junho
de 2007, fui convidada a comparecer à sede desta Casa de cultura e diálogos de gerações distintas. Diante de um plenário de
nobres acadêmicos, muito emocionada, fui comunicada solenemente, pelo seu então presidente Acadêmico Edivaldo Boaventura, que meu nome fora sufragado para ocupar a cadeira n.11,
com uma maioria absoluta de votos ante meu ilustre concorrente, também hoje acadêmico, com todo merecimento, o brilhante
poeta Luiz Antonio Cajazeira Ramos. Tomei posse no dia 10 de
maio de 2008, sendo saudada pela Acadêmica Consuelo Pondé
de Sena com um discurso entremeado de termos em língua tupi,
►► 269
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
que ela conhecia e ensinou por muitos anos no Departamento
de Antropologia da Faculdade e Filosofia e Ciências Humanas
da Universidade Federal da Bahia.
Por que estou a dizer tudo isso?
Ao declarar o meu compromisso de aceitar tão alta honraria, sabia da responsabilidade que me assegurava maior por
saber que Oldegar Franco Vieira fora meu antecessor imediato,
um amigo que eu tive o prazer de conhecer quando estive na
direção do Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade
Federal da Bahia nos anos 80, no momento em que ele passou a
frequentar o curso de japonês que oferecíamos.
Naquele ano, recém-chegada da Nigéria, da Universidade
de Ifé, hoje Obafemi Awolowo, na cidade de Ilê Ifé, onde, por
quatro anos, integrei o quadro de pesquisadores do Instituto de
Estudos Africanos e colaborei com Prof. Guilherme de Souza
Castro na implantação do curso de língua portuguesa e literatura
brasileira, o segundo curso mais antigo em seu gênero no continente africano, estava inteiramente voltada, como ainda estou,
para os estudos das línguas e culturas negroafricanas e seu legado nas Américas. Vi-me surpreendida a dirigir uma instituição
de estudos também orientais e encontrei no Prof. Oldegar um
porto seguro para me apoiar nessa área de conhecimento onde
eu tinha pouca experiência, principalmente no trato com a língua japonesa.
Fizemos uma parceria profícua. Entre outras atividades
visando a difusão da cultura japonesa na Bahia, ampliamos e
demos continuidade aos cursos de japonês ministrados por
Takashi Koyama. Renovamos o acordo que o CEAO já havia
firmado com a Fundação Japão e o Consulado Geral do Japão
em Recife na administração do Prof. Waldir Freitas Oliveira. A
partir de então podemos também organizar, com grande afluência de interessados, oficinas de ikebana e de origami, festivais
de cinema japonês e mostra de desenhos infantis, além de visita
à comunidade japonesa de Mata de São João, com o intuito de
270 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
tentar aproximar essa comunidade ao CEAO, àquela altura ainda
pouco divulgada entre nós.
Mas, enfim, quem foi Oldegar Franco Vieira? Aquele amigo e colaborador do CEAO que me deu apoio enquanto estive
na direção do mais antigo centro de estudos africanos e orientais
nas Américas e que hoje não é mais o mesmo.
Para sua vida e bibliografia, fui buscar relatos dos seus
familiares mais próximos, do seu filho Fernando Tolentino Vieira que me recomendou conversar com Iuri Vieira por ter sido
um neto, segundo ele, “muito próximo do meu pai, inclusive
chegando a morar alguns anos com ele e a integrar a Associação
Cultural Brasil-Japão”.
Oldegar Vieira nasceu na Bahia, em 28 de abril de 1915,
filho de Antonio Veira e Guiomar Vieira. Foi ginasiano no Instituto Baiano de Ensino, do Professor Hugo Baltazar da Silveira,
no Campo da Pólvora, e muito cedo, aos 17 anos, descobre o
interesse pela cultura japonesa com a leitura de “Missangas”, de
Afrânio Peixoto, dedicando-se então a escrever haicais, gênero
de poesia tipicamente nipônico, surgida no século XVI, gênero
considerado nobre pela sutileza de suas mensagens de caráter
reflexivo, sucintas, composta de dezessete sílabas divididas em
três versos de 5, 7 e 5 silabas.
Foi dos primeiros poetas a publicar haicai no Brasil, o segundo em livro. Em 1940, estimulado pelo próprio Afrânio Peixoto, publicou Folhas de Chá , tido como o primeiro livro brasileiro
inteiramente de haicais, um gênero ainda pouco comum à época
e que não gozava da simpatia de alguns acadêmicos, um elemento
estranho por fugir dos padrões então conhecidos e aceitos pelo
mundo literário brasileiro. Assim, pois, ao concorrer a concurso
da Academia Brasileira de Letras, o poeta Cassiano Ricardo não
o considerou de pronto ao tratar a publicação como “pura extravagância em face da sensibilidade brasileira”. Uma indelicadeza,
comenta Fernando Tolentino, com o também poeta Guilherme
de Almeida, que integrava o júri e já escrevia haicais.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
No prefácio do livro, Oldegar define assim o haicai: “Eles
são como a palheta que tange as cordas das almas. Neles se dá a
liberdade interior e pessoal de modular a nota inicial segundo as
inclinações sentimentais diversas.”
Morando no Rio de Janeiro, para onde migrou aos 22 anos
com o título de bacharel em Direito, Oldegar lecionou no Senai,
dando seguimento à longa carreira de magistério, que iniciara no
Colégio Estadual da Bahia (Central), onde lecionou Psicologia e
Lógica. Trabalhando no INEP (órgão do Ministério de Educação
e Cultura), o Prof. Lourenço Filho o indicou para Diretor de Educação do então Território do Guaporé, hoje, Estado de Rondônia.
Lá, implantou o movimento escoteiro e, em 1945, casou com a
enfermeira catarinense, nascida em Florianópolis e graduada no
Rio de Janeiro, sua companheira durante toda a vida, com quem
teve três filhos, sete netos e cinco bisnetos.
Edith Tolentino de Sousa Vieira , Dona Didi, que eu tive
o prazer de conhecer e convidá-la para a minha posse neste sodalício, faleceu em 16 de novembro de 2010, aos 92 anos. Foi
enfermeira do pós-guerra na Amazônia e posteriormente, na
Bahia, nutricionista e professora universitária, tendo sido a primeira mulher a dirigir uma faculdade na UFBA, a de Nutrição.
Em 1947, Oldegar regressa a Bahia, onde, além de atuar
como procurador, foi professor de sociologia da Universidade
Católica de Salvador e da Escola de Estatística da Bahia, que
fundou e dirigiu durante vários anos, assim como da Escola Técnica M. A. Teixeira de Freitas. Criada a UFBA em 1946, o reitor
Edgard Rego Santos convida-o para ser diretor e organizar a
recém-fundada Escola de Administração.
Personalidade intelectual multifacetada, Oldegar é autor
de diversos ensaios de Direito, Educação e Geografia, entre outros temas. Desde a juventude, colaborou com diversas publicações em jornais baianos, A Tarde em 1932, e no Rio de Janeiro,
em 1933, Revista Brasileira da Acdemia de Letras, com o poio de
Afrânio Coutinho.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Em 1974, publicou ainda Gravuras no Vento, uma primorosa edição do editor Massao Ohno em co-edição com a Aliança
Cultural Brasil-Japão, contendo poemas extraídos de várias de
suas obras. Recentemente, teve poesias incluídas em coletânea
de haicais organizada por Adriana Calcanhotto (Haicai do Brasil, Editora Janeiro), na qual também é incluída sua irmã, Joanna Angélica Vieira Ribeiro, que declara ter se tornado haicaísta
como uma homenagem a ele e hoje é uma poeta apreciada.
Ainda publicou dois pequenos compêndios ensaísticos.
Em 1975, lança “O haicai – exclusivamente japonês?”, da Editora
Cátedra do Rio de Janeiro, ensaio sobre a aclimatação do haicai
no Brasil, e “Uma notícia – breve e cautelosa – da poesia japonesa”,
que recebeu o premio Kawabata de 1978, promovido pelo Pen
Clube do Brasil e Fundação Japão.
Uma das obras mais agraciadas de Oldegar Vieira foi justamente o ensaio sobre o haicai, que o credenciou a ser convidado a receber, no Japão, a insígnia de Comendador da Ordem do
Tesouro Sagrado com Laço, outorgada pelo Imperador Akihito.
Poeta, jurista, ensaísta, Professor Emérito da Universidade Federal da Bahia, membro das Academias Baiana de Educação, de Letras Jurídicas da Bahia e de Letras e Artes Mater
Salvatoris, foi fundador da Associação Cultural Brasil-Japão,da
qual é Presidente de Honra.
Não haveria tempo para descrever aqui as inúmeras atividades que notabilizou esse emérito acadêmico da educação e das
letras que, hoje, aqui, celebramos o sue centenário de vida. Simpático, sereno e modesto, como compete a todos os sábios, foi
como poeta que ele encontrou sua plena realização - o seu papel
de haikaista da literatura brasileira ,uma das suas paixões desde
jovem e, que, mesmo, depois de ficar cego por doença indeterminada e até se despedir em novembro de 2006, aos 91 anos,
pedia ao familiar que lhe estivesse mais próximo para transcrever no papel aqueles haikais que, em momentos de inspiração
criativa, ele recitava em voz alta.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Como não poderia deixar de ser, peço licença à Presidente
desta ilustre Mesa, Acadêmica Evelina Hoisel, para encerrar esta
sessão solene de memória e saudade com alguns dos haikais do
homenageado, selecionados e recitados pela Sra. Gidalva Vieira,
mãe de sua bisneta Leticia e esposa do seu neto Iuri Viieira.
(Em recitação)
Natureza morta,
frutos? caça? vinhos? não:
maletas de couro
(natureza morta)
Quis tê-la nas mãos,
o ceguinho a quem disseram
que a luz era linda.
(o ceguinho)
Cintila uma bolha
- uma lagrima tranquilana ponta folha.
(numa folha)
A mão da manhã
soltou na clara do céu
a gema do sol.
(um ovo)
Dos olhos escorrem,
o sumo do sofrimento
quem chora não morre.
(sem título)
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Em algum momento, alguém disse que quem escreve,
nas letras vive e assim se torna imortal.
Muito agradecida a todos.1
Yeda Pessoa de Castro é doutora (PhD) em Línguas Africanas pela
Universidade Nacional do Zaire, República Democrática do Congo.
Consultora técnica na Pró-Reitoria de Extensão (PROEX) na Universidade do Estado da Bahia – Uneb. Condecorada pelo Itamaraty no Grau
de Comendadora da Ordem do Rio Branco por serviços prestados ao
País na política de aproximação cultural Brasil-África. Entre suas obras,
A língua mina-jeje no Brasil (2002) e Falares africanos na Bahia (2005). Desde
2008 ocupa a Cadeira número 11 da ALB.
Discurso em homenagem ao Centenário do acadêmico Oldegar Franco Vieira, proferido em sessão especial, no Salão Nobre da Academia
de Letras da Bahia, pela acadêmica Yeda Pessoa de Castro em 18 de
junho de 2015.
►► 275
CENTENÁRIO DO NASCIMENTO
DE JORGE CALMON (1915-2015)
SAMUEL CELESTINO
C
omo é da tradição desta casa, a mim me cabe, como sucessor
da cadeira 23 que pertenceu a um dos homens mais notáveis
que tive a honra de conhecer e dele ser discípulo, saudar, em nome
da Academia de Letras da Bahia, o centenário de nascimento do
sempre lembrado, do amigo querido, o saudoso Jorge Calmon
Moniz de Bittencourt. Considero-o o jornalista maior da história
da imprensa baiana. No último dia sete deste mês de julho, ele
completaria 100 anos se vivo fosse. Nasceu em Salvador em 1915,
filho do comerciante Pedro Calmon Freire de Bittencourt e Maria
Romana Moniz de Aragão Calmon de Bittencourt.
Seguramente, não erro quando assim entendo o homem que
foi Jorge Calmon, que devotou sua vida ao jornalismo, à cultura e ao
magistério, catedrático que foi da Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da então Universidade Federal da Bahia. Escritor, foi autor de sete livros. Jorge foi, no entanto, mais, muito mais do que isso.
Ele foi presença marcante numa época em que o jornalismo florescia. Dedicou-se, como profissional, a um único, jornal
- o “A Tarde” - que ele comandou e o enriqueceu com o seu
inegável talento. Nele trabalhou 67 anos, dos quais 47 com redator-chefe e, posteriormente, diretor-redator chefe. Trata-se de
um fato extraordinário e, sem dúvida, inigualável.
Desconheço na imprensa brasileira quem tenha permanecido
quase meio século comandando e orientando, no dia a dia, a redação
de um veículo de comunicação da expressão de “A Tarde”. Entendia como do seu dever, como da sua obrigação dentre tantas outras,
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
dirimir contendas, pacificar ânimos e orientar, com seus conselhos
pontuados pela sabedoria, os novos jornalistas, principalmente
como deveriam se conduzir e o que deles a profissão esperava.
Como redator-chefe, era um comandante incontestável. No
livro “Jorge Calmon, o Jornalista”, organizado pelo meu querido
amigo e confrade Edivaldo Boaventura, ele relembrou um discurso
por mim pronunciado quando presidente da Associação Bahiana
de Imprensa, a querida ABI, que o outorgou a Medalha do Mérito
Jornalístico. Foi o primeiro a ser condecorado. Tratava-se de uma
homenagem à sua importância no jornalismo da Bahia. Homem
singular, cumprimentava a todos que chefiava. Repórteres, editores,
colunistas, repórteres-fotográficos, e até os contínuos que levavam
as matérias convenientemente preparadas à oficina. Eram outros os
tempos. Estávamos acostumados à sua diária presença e até o aguardava, pela manhã quando chegava à redação, por volta das 9 horas.
Sempre com o semblante sereno, sorriso suave e invulgar elegância.
Não costumava ter pressa. Passava, então, a cumprimentar,
mesa por mesa, os jornalistas, um a um. Era um ritual que fazia parte do dia-a-dia do jornal. Na verdade, Jorge era sempre aguardado.
A redação só estava completa com a sua presença. Depois que a
todos cumprimentava, contava muitas vezes anedotas e se dirigia à
sua pequena sala que chamávamos de aquário, por ser envidraçada,
de maneira que ele pudesse visualizar toda a redação.
Era nesta saleta, reduzida à sua mesa, a um espaço onde ficavam a pequena Remington, e à sua frente apenas duas cadeiras
destinadas aos visitantes que o procuravam. Ali ele se concentrava no trabalho. Sem nenhuma aglomeração, concentrar-se então
nos seus artigos e editoriais.
Foi um chefe de voz mansa, embora determinado. O jornal
que dirigiu atravessou praticamente o século XX informando sobre
os acontecimentos registrados na Bahia, no Brasil e no mundo.
A história de Jorge se confunde com a do jornal. Iniciouse no jornalismo em 1934, mas somente foi contratado em 1935.
Passou, portanto, um período como “foca”, como antes acontecia.
Ao ser contratado, tornou-se repórter de Assuntos Gerais. Tinha
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
apenas 19 anos e estudava direito. Fora levado à redação por seu
irmão, o sempre lembrado Pedro Calmon, com quem mantinha
diálogos e correspondências constantes entre Salvador e o Rio de
Janeiro. Em “A Tarde”, Pedro o apresentou ao fundador do jornal,
Ernesto Simões Filho, outra extraordinária figura da época.
Assim como ocorria com o irmão, estabeleceu com Simões
Filho uma afeição mútua e uma amizade que iria crescer no decorrer dos anos. Dele se tornou discípulo e assumiu amplas responsabilidades na redação. Passou pelas funções de redator, secretário
de redação e, após 14 anos de trabalho jornalístico, foi elevado à
condição de redator-chefe para, mais tarde, ser guindado ao cargo
que, até antes, não existia: o de diretor-redator chefe.
Aprendeu, ainda com Simões Filho, realizar campanhas
memoráveis em defesa dos interesses da Bahia. Foram muitas
as campanhas que comandou. Ao tempo em que trabalhava na
redação, com apenas 26 anos Jorge assumiu, como diretor, o
comando da Biblioteca Pública.
Abro, agora, um parêntese para saudar seus filhos queridos. São eles Maria Romana, falecida precocemente, Maria Edith, Mário, Maria Virgínia e Maria Tereza, além do meu querido
amigo Jorge Calmon Filho e dos seus netos e bisnetos também
presentes nesta sessão solene.
Relembro e reverencio, levando saudades a seus filhos, a memória de Dona Leonor Calmon, mãe extremada, companheira, mulher educadíssima e conceituada, com quem Jorge se casou em 1948
e que veio a falecer em 1992. Mãe, portanto dos filhos, que, como
disse anteriormente, estão aqui apresente nesta sessão reverencial.
Caros confrades e confreiras;
Diria, sem erro, que Jorge amava como poucos esta Academia
de Letras. Dedicava à Casa um carinho especial e a destacava dentre
as diversas entidades que integrou. Especialmente o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e a Associação Bahiana de Imprensa.
Esta Academia foi fundada em 1917, portanto está próxima de ser,
também, centenária. Dela ele foi presidente e sócio benemérito.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
A cadeira 23, a sua cadeira, tem como patrono o nome
ilustre de Antônio Januário de Faria, médico e cientista baiano,
também cultor das letras, além de orador fluente. Fora Diretor
da Faculdade de Medicina da Bahia durante oito anos e ajudara
a fundar e a fazer a “Gazeta Médica da Bahia”. Segundo Jorge
Calmon, “foi homem do mundo, galante e espirituoso, produto
e símbolo da fase romântica, dourado período em que o sentimento revestia as coisas e as idéias, numa fuga à nova realidade
imposta pela ciência e pelo revolucionário período industrial”.
Antônio Januário Faria morreu em 1873 e foi, portanto
quem batizou, como patrono, a cadeira 23. Até o desaparecimento do nosso querido Jorge Calmon, a cadeira 23 tivera apenas dois ocupantes: João Américo Garcia Fróes, o primeiro a
ocupá-la, e ele. Ambos deixaram este mundo nonagenários.
Ambos foram reverenciados pelos baianos, tal como está
a ocorrer na noite de hoje quando esta Academia homenageia o
centenário de nascimento do grande jornalista.
O médico Garcia Fróes foi um homem considerado brilhante desde os seus aprendizados no engenho do pai, o Coronel Américo de Souza Fróes. Tido à época como extremamente
inteligente, tornou-se doutor em medicina, faculdade da qual
fora catedrático, assim como o foi da Faculdade de Direito, em
que também se diplomou. Em ambas foi professor emérito.
Além da homenagem que nesta noite a Academia presta a
Jorge Calmon, outras terão sequência em diversas entidades e poderes, a exemplo da Assembléia Legislativa da Bahia, da qual foi deputado por duas vezes, uma delas constituinte, iniciando seu primeiro
mandato em 1947; cito a Câmara dos Vereadores desta cidade do
Salvador, que ele tinha grande afeição, e que o homenageou em sessão solene nesta terça feira passada; além da Associação Bahiana de
Imprensa; do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia; do Tribunal de Contas do Estado, e de diversas outras que também integrou.
Difícil é enumerar as entidades que Jorge participou. Seguramente, foram mais de 30. Também não é fácil relembrar as
280 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
homenagens por ele recebidas. É impossível citá-las sem incorrer em esquecimento. Arrisco-me a lembrar de algumas que o
festejaram com condecorações.
Permitam-me lembrar as principais, sem que as demais
fossem menores:
Ordem do Mérito do Congresso Nacional, no grau de
comendador; Ordem do Mérito da Bahia, no grau de Grande
Oficial; Ordem do Mérito das Comunicações, como Grande
Oficial; Medalha Machado de Assis, da Academia Brasileira de
Letras; por esta Academia de Letras da Bahia foi condecorado
com Membro Benfeitor; da Associação Bahiana de Imprensa,
da qual foi também presidente, recebeu a Medalha do Mérito
Jornalístico, como já citado no início.
Por sua grandeza, por seu talento, pela sua cultura, pelos
amigos que cultivou, foi sempre alvo de homenagens. Sem questionamento, Jorge Calmon foi um homem incomum.
Desde muito moço passou a ser sócio do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e até a sua morte foi o seu presidente de honra. Eram constantes as suas freqüências à Casa da
Bahia. Muitas vezes diárias, porque tinha o saudável habito de
estar sempre em movimento. Era uma das formas de exercitar o
corpo, mesmo no fim da vida quando emoldurou sua elegância
com uma bengala que dele se tornou companheira.
Estou, repito, a relatar a trajetória de um homem inquieto.
Peço a paciência aos que aqui estão para continuar citando
as homenagens por ele recebidas.
Jorge foi agraciado pela Câmara de Vereadores de Salvador com a Medalha Thomé de Souza; foi professor emérito
da UFBA; foi patrono do Museu da Comunicação; participou
da organização e implantação do atual curso de Jornalismo da
Ufba. Sempre defendeu em artigos a necessidade da formação
dos jovens para o exercício da profissão.
Formou-se em bacharel em direito; participou da vida
pública; como político foi deputado estadual, como já citei;
►► 281
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
foi secretário do Interior e Justiça, no governo Lomanto Jr,
conselheiro do Tribunal de Contas do Estado da Bahia, que
também logo será centenário. Se errado eu não estiver, a medalha comemorativa do centenário do Tribunal de Contas da
Bahia receberá o nome de Jorge Calmon, aprovada que foi
em decisão unânime dos seus conselheiros, em sessão plenária. Mais ainda: Jorge presidiu a Associação Cultural Brasil-Estados Unidos; integrou e acompanhou a Santa Casa de
Misericórdia, a Fundação José Silveira, que fora um dos seus
amigos queridos. Enfim tinha ele uma facilidade como poucos de se relacionar em sociedade que muito frequentou.
Caros e queridos amigos de Jorge;
Não foi com ele que aprendi a arte do jornalismo. Iniciei-me,
muito jovem, no extinto Jornal da Bahia, quando iniciante na Faculdade de Direito, mas do jornalismo ele foi, sem a menor dúvida,
o meu mestre e conselheiro quando ingressei, a seu convite, em “A
Tarde” em 1975. Foi meu mestre, acentuo, em todos os sentidos.
A imprensa, aqui e no mundo, está – sempre esteve – em
constante processo de transição. Ao chegar nesta casa, a esta
Academia, Jorge anotara, em seu discurso de posse, que desde
que ingressara na imprensa, três décadas antes de ocupar a cadeira 23, transformações sensíveis se operaram.
O nosso homenageado, com notável precisão, afirmou, então, que “o jornalista é o depositário do contrato feito pela sociedade com uma instituição particular – a imprensa – para proteger o interesse público; fiscalizar os governos; denunciar os abusos; clamar
contra as violências; amparar as liberdades, advogar pelos desprotegidos; zelar pelo direito; propugnar pelo progresso; pela prosperidade coletiva, para a construção pacífica e harmoniosa do futuro”.
Quando também aqui ingressei para ocupar a cadeira 23, a ele
seqüenciando, no meu discurso de posse entendi como oportuno
dar continuidade ao que ele dissera na sua posse nesta casa sobre
o jornalismo. De fato, ser jornalista é ser detentor de um mandato
público, conseqüência daquele contrato tácito aludido por ele entre a
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
sociedade e a imprensa, entre os cidadãos e a imprensa, para defender, de forma intransigente os princípios democráticos, razão maior
dos valores da liberdade democrática e da cidadania.
O fascinante exercício do jornalismo diário permite que se
conheçam pessoas notáveis; travar diálogos e trocar pensamentos;
entender formas de pensar e a sua lógica. Mas, também, por outro
lado, reconhecer os escroques escondidos sob a proteção do Poder
político e, não raras vezes, sob a proteção do manto ingênuo dos
bons. Nunca duvidei da nobreza do jornalismo. Em razão, nunca
me abati diante das adversidades no exercício da profissão, das adversidades episódicas, das ameaças e das bravatas dos prepotentes.
Ao chegar a esta Academia - e outro eram os tempos Jorge se referiu basicamente à imprensa do início do século XX.
Disse ele, então, que “a imprensa foi deixando de ser apenas um
instrumento de ação política, de ser uma aventura romântica de
homens que empenhavam a inteligência a troco de nada, para se
tornar numa empresa “sui-generis”.
Num salto que atualizava o discurso, frisou: “Atualmente a
imprensa é metade espírito, metade matéria; metade serviço público, metade indústria; metade opinião e notícia e metade anúncio”.
Em continuidade, questionou:
“O que será do jornalismo futuramente?”
Ele próprio respondeu: “Não é fácil predizer”. NÃO é
fácil predizer, repito a sua expressão.
Continuou ele: “A técnica (tecnologia, no caso) está impondo
alterações profundas na área da comunicação desde o século XIX,
com a invenção do telégrafo e do telefone. As comunicações deixaram de depender dos meios de transporte. Citou o rádio, que surgiu
primeiro, e a televisão, depois. E arrematou: “Nenhum nem outro
interferiram no sacrifício do jornal que continuou existindo.”
Tinha ele, na sua época, absoluta razão. Atento como sempre foi aos acontecimentos, seguiu adiante por perceber os sinais
das mudanças estruturais, da fantástica evolução da comunicação
que a geração dos nossos dias acompanha. Futurista, acentuou o
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
meu saudoso mestre num arremate sobre a imprensa:
“A técnica não se deu por satisfeita. Não parou e nem parará. Descobertas tão surpreendentes quanto as já conseguidas
estão à vista”. Aí, justo aí neste ponto, aflora a percepção visionária do grande jornalista, o que nele não era nada incomum.
Disse eu no meu discurso de posse na cadeira 23, que se
tornou dele um legado para mim:
Se Jorge Calmon fosse um pouquinho, somente um pouquinho além do que antecipara, chegaria fatalmente à conclusão
de que a humanidade estava dando apenas um salto para mergulhar no epicentro de uma extraordinária revolução da comunicação, uma das mais importantes do homem no planeta.
Uma revolução que não terá fim, jamais terá fim, porque
ela é a essência do próprio homem. Faço, neste momento em
que a sua Academia, a Academia de Letras da Bahia o reverencia
pelo seu centenário de nascimento, a mesma pergunta que ele fizera quando aqui chegou. E concluo esta homenagem repetindo
a mesma resposta que ele dera à época:
Realmente, não é fácil predizer a revolução tecnológica
da comunicação. Jorge Calmon foi, enfim, um homem diferenciado. Sempre viveu à frente da sua época. Talvez porque ele e a
comunicação andassem no mesmo compasso.
Muito obrigado.1
Samuel Celestino é jornalista de política, formado em Direito pela UFba,
presidente da Associação Bahiana de Imprensa durante 24 anos consecutivos, ex-diretor da Empresa Brasileira de Notícias, fundador e diretor
do site “Bahia Notícias”, colunista político do jornal A Tarde, ingressou
na ALB em 28 de agosto de 2008 e ocupa a cadeira número 23 da ALB.
Discurso em homenagem ao Centenário do acadêmico Joge Calmon,
proferido em sessão especial, no Salão Nobre da Academia de Letras
da Bahia, pelo acadêmico Samuel celestino em 9 de julho de 2015.
284 ◄◄
CENTENÁRIO DO NASCIMENTO
DE JOSÉ CALASANS (1915-2015)
EDIVALDO M. BOAVENTURA
Abertura das comemorações
É
com satisfação que celebramos os cem anos do confrade
José Calasans. Juntam-se a nós o Instituto Geográfico e
Histórico da Bahia (IGHBA), a Universidade Federal da Bahia
(UFBA), o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB),
O Museu Eugênio Teixeira Leal e a Universidade do Estado da
Bahia, a vitoriosa UNEB. Deus louvado.
Com esta homenagem, abrimos o ciclo das comemorações que se estendem por todo o ano de 2015. Sigamos o espírito comemorativo do nosso homenageado que sabia muito bem
festejar centenários.
Uma trajetória entre Sergipe e Bahia
Há, precisamente, cem anos (1915) nascia José Calasans
Brandão da Silva, em Aracaju, no predestinado dia da tomada da
Bastilha, o 14 de julho. Vindo para Salvador, cursou a Faculdade de
Direito da Bahia, de 1933 à 1937, mas não se interessou pelas matérias jurídicas. O que ele queria mesmo era fazer história e como fez.
Assim, preferiu ler Capistrano de Abreu e outros historiadores. Os autores mais lidos dos anos 30 foram Gilberto Freyre e
Joaquim Nabuco. Euclides da Cunha surgiu algum tempo depois.
Mais tarde complementou: “a história social estava nas páginas de
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Gilberto; a temática politica se desenrolava nos perfis políticos de
Joaquim Nabuco”. Calasans admirava a capacidade de sugerir temas para pesquisa do mestre de Apipucos e gostava do seu estilo
original de bem dizer (CALASANS, 1994, p.421). A influência
de Gilberto Freyre na sua abordagem social de Canudos tornouse evidente.
Na Bahia, passou a frequentar o Instituto Geográfico e
Histórico, contando com o apoio do secretário Francisco da
Conceição Menezes. Procurou o Arquivo Público, mas o acesso
lhe foi dificultado por ser sergipano, compreenda-se, por causa
das questões de limite entre Bahia e Sergipe.
Diplomado em Direito, retornou a Aracaju. Por dez anos,
de 1937 a 1947, se ocupou do ensino e da pesquisa histórica
sergipana. Anos de plena aprendizagem. Definiu-se como professor de História. Período em que foi em busca dos velhos
templos para o registro no Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN).
Casou-se em 1941, com Lúcia Margarida Maciel da Silva,
baiana de Salvador. Da união nasceram José Calasans Maciel da
Silva, em Aracaju, e Maria Madalena Calasans, em Salvador.
Publicou os primeiros estudos sobre a história do seu estado natal, em 1942. Sempre voltado para os fatos, para o regional e para o local, o interior, avesso às grandes teorias interpretativas. Era o seu modo de encarar a história.
Deteve-se na pesquisa da mudança da capital de São Cristóvão para Aracaju. Dessa maneira, apresentou o trabalho Aracaju: contribuição à história da capital de Sergipe (CALASANS, 1942)
como tese de concurso à cátedra da Escola Normal Rui Barbosa. Foi o seu primeiro livro.
Escreveu os deliciosos Temas da província (CALASANS,
1944) e muitos outros trabalhos que estão na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, do qual foi presidente ainda muito jovem. Mais recentemente, foi editado Aracaju e outros
temas sergipanos (CALASANS, 1992), publicação do governo de
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Sergipe, que reuniu estudos desta fase sergipana com apresentação de sua aluna e amiga, a historiadora Maria Thétis Nunes.
Entrementes, ainda quando estudante secundário, José
Calasans se ocupou igualmente dos estudos de Folclore, despertado pelo seu professor Clodomir Silva. Para a sua obra foi sumamente significativa a abertura para o popular, proporcionada
pelo Folclore e pela literatura de cordel. Estudou o Folclore da
cana de açúcar e da cachaça. Sílvio Romero e Câmara Cascudo
foram os seus autores prediletos no que diz respeito ao Folclore.
Destacou-se Cachaça, moça branca (1951), que obteve aceitação nacional, conforme a dissertação de Jairo Carvalho do
Nascimento (2008). É igualmente significativa a longa entrevista:
Calasans, um depoimento para a história (1998), concedida ao professorMarco Antônio Villa (2002) e a José Carlos da Costa Pinheiro.
Mudança para a Bahia e interesse por Canudos
Pois bem, munido do conhecimento da História e do Folclore e contando com dez anos de experiência docente, transferiu-se para Salvador, em 1947. Uma vez na Bahia, intensificou a
atividade de professor e desperta o seu interesse por Canudos.
Dirigiu, então, o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senai) e ensinou em colégios particulares. Por essa época, fui seu aluno de História, no Colégio Antônio Vieira. Assisti
ao concurso de livre-docente com a defesa da tese: O ciclo folclórico
do Bom Jesus Conselheiro: contribuição ao estudo da campanha de Canudos
(CALASANS, 1950). Esta tese é um marco em sua obra. Com
o Ciclo Folclórico iniciou uma longa e produtiva série de estudos
canudenses, por cinquenta anos.
Por volta do cinquentenário da Guerra, em 1947, a visão
que se tinha sobre Canudos começou a mudar. Demonstrou
bem essa alteração as reportagens de Odorico Tavares, jornalista pernambucano radicado na Bahia, que visitou Canudos
com o fotógrafo francês Pierre Verger. Odorico entrevistou
►► 287
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
sobreviventes da guerra e publicou em O Cruzeiro, então uma
revista de ampla circulação nacional.
Reportagens foram depois reunidas no livro Canudos, cinquenta anos depois de 1947 (TAVARES, 1993).Na introdução, nota
Calasans: “O conhecimento da vida dos conselheiristas ganha
pontos nas páginas de Odorico Tavares. E marcam, sem sombra de dúvida, um novo momento na historiografia canudense”.
Odorico começou a contar a história pelo lado dos jagunços,
isto é, pelo lado dos vencidos, e outros pesquisadores foram a
Canudos e entrevistaram os sobreviventes.
Em 1950, foi a vez de Calasans visitar Canudos, ouvindo
os remanescentes. É importante indagarmos: como o historiador chegou à problemática de Canudos?
Calasans deixou claro quando afirmou: “cheguei a Canudos não por intermédio da história, mas pelo folclore” (NASCIMENTO, 2008, p. 135). Como afirmou várias vezes, até 1950
predominava o ponto de vista de Euclides da Cunha, nas páginas
vibrantes do “livro vingador.” O sucesso de Os Sertões suplantou
todos os outros autores e ultrapassou os limites nacionais, como
um livro intérprete do Brasil. Os Sertões é comparável às obras de
Gilberto Freyre no entendimento do Brasil no exterior.
A temática renovadora dos estudos sobre Canudos
Há, assim, além do olhar euclidiano, um outro olhar da
história de Canudos (NASCIMENTO,2008). José Calasans contribuiu, dentre muitos outros achados, para a criação de uma
atitude positiva a respeito de Antônio Conselheiro.
Encarou a escravidão do ponto de vista social. Era expressiva a quantidade de negros em Canudos. Analisa a concepção do jagunço como um “tipo especial de sertanejo”.
Desfez a lenda da morte da mulher pelo Conselheiro. Calasans o percebeu como um construtor de obras, capelas, cemitérios e pequenos açudes.
288 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
No ensaio Origem e desenvolvimento de um arraial messiânico
(CALASANS, 1974) fez história social. Foi mais além, do ponto
de vista sociológico, quando identificou vários tipos profissionais: beatos, combatentes, negociantes, proprietários e outras
figuras do Belo Monte, em Quase biografias de Jagunços: O séquito
de Antonio Conselheiro (2013). A última edição tem prefácio do
nosso confrade Fernando da Rocha Peres.
Para análise da sua contribuição à historiografia de Canudos é preciso considerar alguns posicionamentos. A sua condição de historiador, de um lado, e de estudioso do Folclore, do
outro, combinaram-se na abordagem de Canudos. Existe, como
sempre se considerou, a obra de Euclides da Cunha, mas há
também Antônio Conselheiro e o núcleo central de toda problemática – Canudos.
Conjecturemos, Euclides da Cunha com a sua brilhante
obra imortalizou Canudos o que nos leva a indagar: e se não
fosse Euclides da Cunha, o que teria sido de Canudos?
Sempre me faço essa indagação quando vou ao Parque
Estadual de Canudos. Considerando que houve outros conflitos
bélicos, a exemplo da Guerra do Contestado, mas que não possuíram a relevância social e histórica de Canudos. Para o crítico
Wilson Martins (2003): “Canudos se eternizou por causa de `Os
Sertões`, bancado por Euclides.”
Nesse conjunto de circunstâncias, consideremos a figura
carismática de Antonio Conselheiro, acrescida de novas achegas
por José Calasans. Pois bem, ao longo dos anos, complementa
Walnice Nogueira Galvão (2002, p. 17-18), “o próprio historiador foi publicando um sem-número de trabalhos esclarecendo
gradativamente vários pontos sobre os quais não se sabia. Dentre estes, não custa repetir, tudo aquilo que se refere à vida pregressa de Antônio Conselheiro”. Enumera várias contribuições
e conclui: “Tudo isso – sem esquecer o ponto de origem que foi
a prática antecipada da história oral e do cotidiano, bem como o
realce devotado à crônica dos vencidos [...]”.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Assim, desse cruzamento de variáveis surgem os resultados
da investigação acadêmica sobre o problema Canudos. Calasans
entrevistou os sobreviventes da guerra, como fizera antes, Odorico Tavares e tantos outros. A propósito recordemos que Le Goff
aconselhava a quem estudasse a Idade Média, visitar os lugares onde
ocorreram os fatos analisados. Calasans visitou os sertões da Bahia
inúmeras vezes, confirmando o seu intento de fazer história a partir
do interior e não tão somente da capital e seu Recôncavo.
Em uma semana cultural em Canudos, com a participação de vários euclidianistas do Rio de Janeiro e de São Paulo, em
1991, Calasans descreveu as três Canudos. A primeira foi destruída pelo fogo, arrasada completamente pelas tropas republicanas. A segunda inundada pelo açude que represou as águas do
rio Vaza Barris. E a terceira, a atual, a Canudos que se ergueu às
margens do lago de Cocorobó. Era dessa maneira que ensinava,
comunicando informalmente em suas conversas descontraídas,
atraentes e ricas de sabedoria.
É oportuno evidenciar a forma como escreveu a saga de
Canudos. A partir da tese - O ciclo folclórico de Antonio Conselheiro
- foi redigindo artigos, capítulos, seções, aspectos, tópicos, quase-biografias, prefácios, approaches sobre as relações triangulares:
Euclides da Cunha, Antonio Conselheiro e Canudos.
A partir da tese de 1950 Calasans escreveu cronologicamente: em 1952, publicou A guerra de Canudos na poesia popular;
em 1957, Euclides da Cunha e Siqueira de Menezes: considerações em
torno de uma revelação do embaixador Gilberto Amado. E assim, sucessivamente, prosseguiu por quase cinquenta anos, de 1950-1997.
Objetivando a integração dos artigos publicados por Calasans ao longo desse tempo, Waldir Freitas Oliveira lhe submeteu uma proposta de publicação. José Calasans, em resposta,
organizou então uma nova seleção de textos com 23 artigos que
vieram constituir a Cartografia de Canudos (1997).
A temática posta por Calasans se inicia pelo artigo Canudos
não euclidiano, segue-se Antonio Vicente no Ceará, e prossegue com
290 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Aparecimento e prisão de um messias. Evidencia-se a vida pregressa
de Antônio Conselheiro e a formação dos seguidores. Destaca–o como construtor de capelas, cemitérios e açudes (CALASANS, 1997, Sumário). Cartografia de Canudos é uma tentativa integradora de ensaios e artigos.
Na busca da reunião dos seus muitos escritos, depois veio
o site, estabelecido por sua filha Madalena Calasans, que tanto
enriqueceu a sua biobibliografia. Na consulta, encontrei esta revelação maravilhosa: “José Calasans, meu pai, não só recitava,
como também vivia de acordo com os versos do cantador Inácio da Catingueira: `Canto para aprender e canto para ensinar...`
( www.josecalasans.com.br).
O que existe de sumamente importante é o contributo de
Calasans. Diríamos em uma linguagem metodológica que criou
um novo paradigma para a pesquisa de Canudos. Nesses 100
anos, podemos avaliar a relevância de sua obra e perceber o direcionamento do seu pensamento na continuação dos estudos
por veredas e sendas por ele abertas.
Recordo que, quando criei o Parque Estadual de Canudos,
um sítio histórico-militar no semiárido baiano (BOAVENTURA, 1997) em 1986, estava imbuído do conhecimento canudense de José Calasans. Além da sua obra escrita, a sua oralidade foi
deveras importante e marcante. Didática.
Muito do que aprendi devo aos nossos inúmeros encontros. Conversas, melhor dito. Mestre Calasans marcava a voz
em uma conversação atraente. Possuía um mundo de saberes e
casos a contar e versos a declamar. E mais, o encontro se constituía em oportunidade para receber uma nova publicação com
breve dedicatória.
No nosso relacionamento, vi sempre nele mais do que um
professor, um educador. A educação está presente em sua bibliografia. Quando secretário da Educação da Bahia, coloquei o
seu nome em uma escola, no Nordeste de Amaralina. Ele, como
patrono, e D. Lúcia cuidaram carinhosamente dessa escola.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Em suma, tanto pela obra escrita, quanto pela comunicação oral, José Calasans tornou-se um disseminador do
conhecimento de Canudos, contextualizado na cultura do
sertão. Grupos de pesquisadores, estudiosos, escritores e artistas seguiram a sua orientação e continuaram a escrever, a
investigar e a publicar. De tudo isso, resultou um conjunto
magnífico de publicações, teses, ensaios, romances, poemas,
músicas, pinturas, desenhos e até construções que fazem de
José Calasans uma espécie de patrono de Canudos (BOAVENTURA, 2002, p. 19-23).
Meus caros amigos, dando prosseguimento a esta fala,
uma palavra sobre José Calasans, professor da Universidade Federal da Bahia.
O professor da Universidade Federal da Bahia
O professor José Calasans desenvolveu a sua carreira docente de historiador, na Universidade Federal da Bahia, em três
tendências: biografia histórica, história política e história de Canudos (NASCIMENTO, 2008, p. 79).
Com a docência livre, realizou o concurso para a cátedra
de História Moderna e Contemporânea com a tese Os vintistas
e a regeneração econômica de Portugal (CALASANS, 1959). A sua liderança se expressou na Chefia do Departamento de História,
Vice-Diretoria e Diretoria da Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas e na Vice-Reitoria da Ufba (1980-1984). Uma das suas
criações mais notáveis foi o Núcleo do Sertão, coleção de documentos, livros e ensaios, que doou à Universidade.
Um momento significativo na sua carreira docente foi a
instalação da pós-graduação. José Calasans participou, pioneiramente, da implantação do programa de mestrado. Juntou-se
aos confrades A. L. Machado Neto, Zaidé e Luís Henrique
Dias Tavares, todos três docentes livres e doutores, e criaram
o Mestrado em História e Ciências Sociais, um dos primeiros
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
da nossa Universidade. O reitor Roberto Santos estimulou a
criação dos programas de pós-graduação reunindo os poucos
doutores que tínhamos.
A nossa Alma Mater foi a sua trincheira, o seu bastião, que
possibilitou a Calasans desenvolver uma produtiva carreira docente.
Serviu à Universidade e a ela doou seus livros e seu arquivo, criando
o Núcleo do Sertão, importante centro de documentação.
Assinalemos a sua marcante participação no movimento e
na Campanha Nacional do Folclore, na criação do Centro de Estudos Baianos, na presidência do Conselho de Cultura da Bahia
e no Museu Eugênio Teixeira Leal.
Minha cara Evelina de Carvalho Sá Hoisel, a presidente
sertaneja da Academia, muito querida Madalena, filha do nosso
homenageado, confreiras e confrades, familiares, amigos e alunos de José Calasans.
José Calasans, o acadêmico
Gostaria de encerrar com José Calasans, o acadêmico. Entrou para esta Companhia em 1963, sucedendo a Homero Pires.
Logo que ingressou, recebeu Oldegar Franco Vieira, seu colega de
turma na Faculdade de Direito, que também completaria 100 anos
de nascimento neste ano de 2015. Tornou-se líder e forte eleitor
deste Grêmio. Presidiu-o de 1971 a 1973, quando restaurou a sede
no Terreiro de Jesus, possibilitando que lá voltássemos a nos reunir.
A sua liderança foi decisiva para a entrada de Luiz Monteiro, Luis Henrique Dias Tavares, Zitelmann de Oliva, Orlando
Gomes, Roberto Santos, vitorioso modernizador da UFBA, Antônio Luiz Machado Neto e Hildegardes Viana. O seu apoio foi
fundamental para o meu ousado ingresso. Empossou-me em 6
de agosto de 1971.
Em 1992, comemoramos os seus cinquenta anos de vida
literária, harmonizados com o que chamava “meu processo sentimental de baianização”. Em 24 de maio de 2001, ele nos deixou.
►► 293
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
A sua aluna e colega de departamento, a nossa saudosa Consuelo
Pondé de Sena, o sucedeu, em 14 de março do ano seguinte.
A doação do seu retrato, condecorações e relíquias, pela
sua dileta filha Madalena, vivificou a lembrança de Calasans que
ficou mais próximo de nós. Obrigado Madalena!
O confrade José Calasans foi uma presença viva, comunicativa, contagiante de sugestões, animada de versos e quadras e
marcada tanto pelo belo texto como pela voz.
Mais do que tudo, a Academia retém a lembrança amada
de José Calasans. Sentimos ainda a marca da sua voz e de sua
letra na reconstrução de Canudos.
Hosana pela sua existência.
Hosana!
Gratos a todos pela presença e pela atenção.1
Edivaldo M. Boaventura é bacharel em direito e em ciências sociais,
mestre e PhD em educação, professor emérito da UFBA, autor de
diversos livros de ensaios, sócio de inúmeras instituições culturais no
Brasil e no exterior. É orador oficial do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Foi secretário de Educação do Estado da Bahia em dois
governos, diretor-geral do jornal A Tarde e presidente da Academia
de Letras da Bahia, da qual é membro benfeitor. Desde 1971 ocupa a
Cadeira número 39 da ALB.
Discurso na abertura das comemorações do Centenário do acadêmico
José Calasans, proferido em sessão especial, no Salão Nobre da Academia de Letras da Bahia, pelo acadêmico Edivaldo Boaventura em 14
de julho de 2015.
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JOSÉ CALASANS – IN MEMORIAM
ROBERTO FIGUEIRA SANTOS
J
osé Calasans Brandão da Silva (1915-2001), professor emérito
e ex-vice reitor da Universidade Federal da Bahia, membro
e ex-presidente da Academia de Letras da Bahia, frequentador
assíduo dos Institutos Geográficos e Históricos de Sergipe e
da Bahia, desde muito jovem, angariou justificada fama como
“folklorista”, o que, nos termos do Dicionário de Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira, (na 11ª edição), quer dizer: “pessoa
dedicada à investigação ou colecionação das tradições ou canções populares; historiador crítico dessas coleções ou canções”.
Mais tarde, distinguiu-se como o historiador que pesquisou os
mais diversos aspectos da “epopeia de Canudos”. Seus temas
preferidos ao longo de uma vida cheia de realizações, foram,
como folklorista, “a cachaça”, a que atribuiu o qualificativo de
“moça branca”, e “a guerra de Canudos”, que atingiu o seu auge
em 1897. Já consagrado como historiador, Calasans teve mais
uma brilhante atuação ao inspirar e coordenar o plano de palestras sobre a história da Bahia e da cidade de Salvador, desenvolvido sob o patrocínio do Banco Econômico da Bahia e da
entidade a este ligada intimamente, o Museu Eugênio Teixeira
Leal. As palestras constantes desse projeto estão sendo objeto
de recente publicação.
José Calasans, nasceu na Cidade de Aracajú, a 14 de Julho de 1915, filho de Irineu Ferreira da Silva, originário da cidade
de Itabaiana, modesto comerciante de fumo e ex-proprietário
de um armazém de cereais, e da Senhora Noemi Brandão da
Silva, pertencente a família abastada, que incluía nomes ilustres
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
da elite sergipana. Calasans casou-se em 1941, com a senhora
baiana Lúcia Margarida Maciel Calasans, de tradicional família
de Salvador, de quem teve uma filha e um filho. Calasans faleceu
na Cidade do Salvador, a 28 de Maio de 2001. Por justíssimas
razões, comemora-se neste ano de 2015, o centenário do seu
nascimento, mediante numerosos eventos de natureza cultural.
Em Aracajú, viveu ele até próximo aos vinte anos de idade
e, já então, deu mostras iniciais da sua vocação para o magistério e para a pesquisa histórica, lecionando História em escolas
do ensino médio e publicando artigos em periódicos locais. Em
Dezembro de 1932, Calasans foi bem sucedido no exame vestibular para a Faculdade de Direito da Bahia, e, em seguida, mudou-se para Salvador. Durante o curso dedicou-se mais à leitura
de livros de História do que de temas pertinentes às atividades
próprias dos profissionais do Direito.
Segundo declarações dele próprio, assim foram descritas
as suas preferências: “Eu gosto muito de pesquisar, mas gosto,
sobretudo, de criar condições para que outros pesquisem.” Assim foi toda a vida de Calasans: de trato afável, conversador que
atraía muitos interlocutores, sempre pronto a ajudar e a colaborar com os seus discípulos, tanto na Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, enquanto
dirigiu a cátedra de História Moderna e Contemporânea, exerceu a Vice-Reitoria e dirigiu o Centro de Estudos Baianos, no
qual criou o “Núcleo Sertão”, coletânea de documentos e de
textos que serevelaram de grande importância para as pesquisas
sobre Canudos. Assim foi, também, na Academia de Letras da
Bahia, da qual foi Presidente, e onde pôde aprofundar suas importantes pesquisas históricas; e no Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, ambiente propício à continuidade da busca de
informações para as mesmas pesquisas e no qual colaborou com
vários discípulos, entre os quais a Professora Consuelo Pondé
de Sena, que veio a ser Presidente daquela Casa e se tornou sua
discípula e admiradora.
296 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Como “folklorista”, Calasans deu grande divulgação às expressões populares que compunham os versos e as canções nascidos da imaginação popular acerca da famosa aguardente cognominada “Cachaça”. Em outras ocasiões, dedicou-se ao estudo da
coragem inaudita deste mesmo povo, arregimentado na sangrenta
luta em defesa da impressionante figura do “beato” Antonio Conselheiro, no ambiente agreste dos sertões da paupérrima região de
Canudos, área situada ao norte do Estado da Bahia.
A “cachaça”, “Moça Branca”
Afim de melhor ilustrar os seus trabalhos de natureza
folklórica, não há senão como pinçar uns poucos exemplos dos
inúmeros versos nascidos da imaginação popular em louvor da
“cachaça”, essa “Moça Branca”, conforme a designava o próprio Calasans:
Cachaça fia da cana,
Neta do canaviá,
Quem bebe muita cachaça
Canta que nem sabiá.
A cachaça alegra os tristes,
Melhora quem está doente
Faz aleijado correr
E cego vê de repente.
O home não tem dinheiro
Eu também não tenho a massa
Senhores que estão presentes,
Quem paga p’ra mim uma cachaça?
Cachaça é moça bonita
Filha de pardo trigueiro
Quem bebe muita cachaça
Não pode juntar dinheiro.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
As mulhé de Lagoinha
Não precisam trabalhá
De noite ceia cachaça
De manhã mingáo sem sá.
Cachaceiro me chamavam
Por beber assim atoa
Hoje me elogiam
Por beber a Chica Boa.
Continuam os versos populares
O incontido desejo de versejar da parte do povo brasileiro, contudo, não se abateu, nem mesmo diante do terrível quadro com que foram defrontados os adeptos de Antonio Conselheiro, na “guerra de Canudos”, da qual cuidaremos adiante.
Por isso, o mesmo José Calasans que publicou o livro intitulado
“Cachaça Moça Branca”, conseguiu reunir grande número de
versos, originários de poetas populares de vários estados brasileiros, os quais figuram em um dos seus belos livros, sob o título
“Cartografia de Canudos“, constituindo o capítulo intitulado “A
guerra de Canudos na poesia popular”, e inserido no livro “Canudos – Palavra de Deus Sonho da terra”, organizado por Benjamin Abdala Junior e Isabel M. M. Alexandre. Contam-se, ainda, entre muitos outros, os textos intitulados “Moreira Cesar na
poesia popular”, publicado pela revista “Universitas”, números
12 e 13, de 1972, e “Canudos na literatura de cordel”, publicado
pela revista “Atica”, de São Paulo, em 1984.
Transcrevemos adiante alguns dos versos populares referentes à tragédia de Canudos:
Conselheiro estava morto
Por sofrer tanto revês;
Porém morreu como Líder
Nos momentos mais cruéis.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Foi ele um santo guerreiro
Que teve o fim derradeiro
Morrendo pelos fiéis.
O Anti-Cristo chegou
Para o Brasil governar;
Mas aí está o Conselheiro
Para dele nos livrar.
Quem quiser remédio santo
Lenitivo para tudo
Procure o conselheiro
Que ele está lá nos Canudos.
Quem tiver sua mulata
Prenda ela no cordão
Que Antonio Conselheiro
Tem unhas de gavião.
Nosso Antonio Conselheiro
No “reconco” da Bahia
Brigou três anos
Ô Sinhou Ô-lá-lá
A favô da monarquia
Moreira Cesar
Quem foi que te matou?
Foi a bala de Canudos,
Que o Conselheiro mandou.
Saíu Dom Pedro II
Para o Reino de Lisboa
Acabou-se a Monarquia
Este povo está perdido
Está sem arrumação
O culpado disto tudo
É o chefe da nação.
►► 299
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Embora o temperamento de Calasans não fosse afeito
às lides partidárias, não o tornando, portanto, talhado para a
vida política, durante o curto período de uns poucos anos,
esteve ele ligado à corrente do “integralismo”, existente no
Brasil da década de 1930, enquanto acompanhava colegas da
Faculdade de Direito.
O “Conselheiro” Antonio Maciel
A vida de Antonio Conselheiro e o papel por ele desempenhado na história do Brasil merecem especial referência no
presente texto sobre a vida de José Calasans. Impressiona, particularmente, o papel desempenhado por ele e pelos seus adeptos como defensores do regime monárquico de Governo. Ao
tempo das pesquisas históricas realizadas por Calasans, poucos
anos haviam decorrido, no Brasil, desde que a Monarquia fora
substituída pelo regime da República democrática.
A data do nascimento do Conselheiro tem sido objeto de
controvérsia, sendo mais geralmente aceita a de 22 de Maio de
1830. Filho de Antonio Vicente Mendes Maciel e de Maria Joaquina de Jesus, veio ele ao mundo na Freguesia de Santo Antonio de Quixeramobim, no Estado do Ceará. Na sua família, de
sobrenome Maciel, predominavam os que foram e continuavam
sendo vaqueiros. Na década de 1830 ocorreram terríveis lutas
familiares entre os Macieis e os da família Araujo, da mesma
região, esta última constituída de proprietários de terras e de
gado. Os Araujos haviam acusado os Macieis de roubo de gado
de sua propriedade, com o que estes não se conformaram, tendo
daí nascido sangrenta luta familiar, em estilo que não era raro
naquela época e que gerou comentários em numerosos versos
populares, também frequentes nos mesmos tempos.
Antonio Maciel, o futuro Conselheiro, recebeu do pai
instrução mais cuidadosa do que era costume entre as crianças
300 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
daquela época, tendo aprendido, não apenas a escrever, ler e
contar; além disso, recebeu também, aulas de latim, língua que
ele continuou usando, vez por outra, quando já adulto. Suspeita-se que o pai do Conselheiro aspirava preparar o filho para
a carreira eclesiástica, o que não se confirmou mais tarde. Em
vez disso, o jovem foi, inicialmente, caixeiro da loja do pai,
até à morte deste último, ocorrida em 1855, quando o futuro
“Conselheiro” contava 21 anos de idade. Tinha ele, então, bom
conceito entre os seus concidadãos, embora a loja na qual trabalhava estivesse em péssima situação financeira. Ao herdar a
loja devido à morte do pai, Antonio Maciel resolveu vendê-la,
e, em seguida viajou sem rumo certo, por longo período de
tempo. No mesmo ano em que morreu seu pai, Antonio Maciel casou-se com Brasilina Laurentina de Lima, filha natural de
um dos membros da sua família. Ao que consta era ela analfabeta, como ocorria, aliás com a grande maioria das mulheres,
naquela época.
Durante alguns anos Antonio Maciel viajou entre vários lugarejos, ocupando empregos aos quais se dedicou por
curtos períodos de tempo. Numa dessas paradas, teria encontrado a esposa entregue a um policial, que teria sido por
ele assassinado. Mais tarde, apareceu como um “misterioso
personagem” em localidades das Províncias da Bahia e de
Sergipe, a respeito de quem foram encontradas informações
em um semanário da cidade de Estância, em Sergipe. Entre
outros nomes, usava ele o de “Antonio dos Mares”, a quem
atribuíam a realização de muitos milagres. Era já acompanhado de adeptos que seguiam os seus passos, copiavam o seu estilo de vida, obedeciam a ordens suas e se dedicavam a construir
igrejas e cemitérios em diferentes localidades. A desorganização que ele e seus adeptos provocavam entre os trabalhadores
da região, acompanhada de divergências com o clero católico,
ocasionaram apelos a autoridades religiosas sediadas em Salvador, que resultaram na prisão de Antonio Maciel, em várias
►► 301
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
oportunidades, pela polícia de Itapicurú, no norte da Bahia.
Em uma dessas ocasiões, foi transferido para Salvador, onde
passou três dias circulando pelas ruas da capital do Estado
acompanhado de uns poucos adeptos.
Ao lado de histórias verdadeiras, em poucos anos foram
se acumulando prováveis lendas nas quais estaria envolvida
a mesma figura de Antonio Maciel. O seu séquito continuava crescendo, com a inclusão de nordestinos, predominantemente, originários da Bahia e de Sergipe, além de alagoanos e
paraibanos. Antonio Conselheiro entrou para a história como
defensor do regime monárquico de governo para o Brasil, o
que continuou depois de decorridos vários anos após a proclamação da República. Simultaneamente com a firme crença
religiosa em Jesus Cristo e sua doutrina, alimentavam, ele e
os que o acompanhavam, a convicção de natureza política em
favor da monarquia e contra a república. E por estas convicções, Antonio Maciel e seus adeptos lutaram e morreram, até
Setembro de 1897.
A expressão “Canudos”, por volta de 1870, designava
uma fazenda situada no limite entre as freguesias do Santíssimo Coração de Jesus do Monte Santo e da Santíssima Trindade
de Massacará, no norte da Bahia. Essa localidade começou a
ser conhecida quando ali se estabeleceu Antonio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro, acompanhado de milhares de seguidores. O criatório de bodes era, até então, a principal fonte
da modesta receita da propriedade. O povoado que se formou
nessa Fazenda foi, depois, denominado “Belo Monte”, pelo
próprio Conselheiro. Consistia esse povoado de casas extremamente modestas, todas com idênticas fachadas e sem janelas,
construídas de barro e cobertas de palha, onde predominavam
moradores que se haviam tornado verdadeiramente cadavéricos, devido à pobreza da alimentação de que se serviam, como
parte do receituário de vida do Conselheiro. As estimativas
quanto ao número de pessoas que ali viviam entre os anos de
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
1893 e 1895, deixam a impressão de que oscilavam em torno
de cinco mil pessoas. Estava, assim armado o palco para o que
foi a chamada “epopeia de Canudos”.
Afim de trazer ao presente texto uma pálida ideia do que
foi o tema principal de Calasans em suas pesquisas, reproduzo
trechos da literatura nacional que retratam episódios dos mais
impressionantes da nossa História Pátria, a começar pelas suas
raízes, perdidas no tempo: os primeiros fatos que vieram a ser,
posteriormente, associados à chamada “guerra de Canudos”,
alguns já de grande violência, ocorreram em 1893, quatro anos
antes, portanto, da tragédia maior daquela guerra, da qual resultou o assassinato de muitos dos sobreviventes entre os adeptos
do Conselheiro Maciel. Dentre estas ocorrências, incluiu-se a
forte rebelião popular devida à cobrança pelo fisco do Governo republicano, de quantias muito superiores às antes cobradas
sob o regime monárquico, o que causou grande descontentamento no povo da região. Registraram-se, além disso, notícias
de que, no mesmo ano de 1893, Antonio Conselheiro teria passado pelo local onde ocorreu a rebelião contra o fisco, enquanto buscava o espaço que veio a ser ocupado por ele e pelos que
o acompanhavam em números crescentes. Na política a nível
estadual, ainda no mesmo ano de 1893, ocorreu a cisão do
Partido Governista baiano em duas facções, cada qual ligada a
um dos grandes líderes da política estadual, respectivamente,
Luiz Viana e Antonio Gonçalves, os quais passaram a assumir
posições acentuadamente radicais nas suas divergências. Essas
divergências ao nível da política estadual tiveram claras consequências negativas nos acontecimentos militares da região
de Canudos. Fatos dessa natureza foram ganhando divulgação
pelo Brasil afora, e deram margem a um sentimento de medo
por parte da população, alimentados como estavam entre 1893
e 1897, pelas notícias nos jornais da capital, sobre os atos de
violência que se avolumavam na região dos sertões. O envio de
tropas estaduais e federais em expedições sucessivas terminou
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
pelo terrível massacre sofrido pelos fiéis obedientes ao “beato”
Antonio Conselheiro, e que foi um dos mais tristes episódios
da história deste país.
Devido à grande concentração de homens e mulheres
na Fazenda Canudos, proprietários de terras na região circunvizinha continuaram a enviar para os jornais de Salvador e
do Rio de Janeiro, informações de que Antonio Conselheiro
e seus comparsas constituíam verdadeira perturbação às atividades normais do sertão e assim ameaçavam a estabilidade
da República, pela sua fidelidade ao regime monárquico. Os
que assim se sentiam prejudicados, pediam, outrossim, imediata e severa ação militar contra os “fanáticos”. Em 1893,
o Governador Rodrigues Lima, do estado da Bahia, solicitou do Presidente da República o auxílio de tropas federais
para agirem contra os adeptos do Conselheiro. Como não
resultasse qualquer providência prática no sentido desejado,
seguiu-se uma tentativa de ação junto ao arcebispo da Bahia,
Dom Jerônimo Tomé, com o objetivo de mobilizar religiosos
da região em torno de Canudos, com o propósito de convencer Antonio Maciel a sair do povoado por ele ocupado com
os seus adeptos. O relatório desses interlocutores confirmou
a imagem de que o “Beato” não reconhecia o Governo Republicano, proibia o pagamento de impostos ao mesmo Governo, condenava o casamento civil e não aceitava a separação
entre a Igreja e o Estado. Era o Conselheiro uma figura estranha, caracterizado pela falta de asseio pessoal e pelos cabelos
compridos e maltratados. Luis Viana, que viveu entre 1846 e
1920), oriundo da região norte da Bahia situada à margem do
Rio São Francisco, ao assumir o Governo da Bahia, decidiu
preparar uma expedição militar sob o comando do tenente
Pires Ferreira. Essa expedição se encontrava no povoado de
Uauá, a caminho de Canudos, quando foi surpreendida por
dezenas de homens e mulheres cantando ladainhas, carregando cruzes de madeira e dando tiros de bacamarte, a que os
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
soldados responderam com tiros dos rifles Mannlichers. Do
intenso tiroteio resultou a morte de cerca de 150 “jagunços”
(nome atribuído aos sertanejos daquela região), de um lado,
e, do outro, de cerca de 10 soldados que participavam da
expedição governamental. Motivados por esse confronto, os
adeptos do Conselheiro se dispersaram e se retiraram da cena
de combate, enquanto o tenente Pires Ferreira decidiu voltar
para Salvador, com toda a sua tropa.
Subsequentemente, em Janeiro de 1897, o Governador
Luis Viana organizou nova expedição, com cerca de 600 soldados bem armados, sob o comando do major do exército Febrônio de Brito, destinada a atacar de surpresa o arraial de Belo
Monte. Novo desastre ocorreu para as tropas governamentais,
quando surpreendidas pelos jagunços na Serra do Cambaio, e
depois em Taboleirinho e em Bendengó de Baixo. As tropas
dessa expedição foram evacuadas para Monte Santo e, depois,
para Salvador.
O livro intitulado “Os Sertões”
Entre as numerosas publicações sobre a “guerra de Canudos”, da lavra de vários autores, cabe destacar o volume intitulado “Os Sertões”, uma das mais importantes obras da literatura
nacional, da autoria de Euclides da Cunha, originário de família
baiana, jornalista e ex-aluno da Escola Militar, que foi contratado pelo importante jornal “O Estado de São Paulo” para viajar pela região e cobrir os extraordinários feitos relacionados à
chacina dos partidários do “beato” Antonio Conselheiro. Nas
considerações que, nesse livro admirável, precedem a descrição
das lutas entre as expedições organizadas pelo Governo e os
“jagunços”, em capítulos nos quais o autor apresenta considerações sobre “a terra” e o “homem”, leem-se as palavras citadas inúmeras vezes por muitos outros autores: ”O sertanejo é,
antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
mestiços neurastênicos do litoral”. E, a propósito da descrição
do “jagunço”, diz Euclides: “É impossível idear-se cavaleiro
mais chucro e deselegante; sem posição, pernas coladas ao bojo
da montaria, tronco pendido para a frente e oscilando à feição
da andadura dos pequenos cavalos do sertão, desferrados e maltratados, resistentes e rápidos como poucos.... Mas, se uma rês
“alevantada” envereda, esquiva, pela caatinga “garranchenta”,
ou se uma ponta de gado, ao longe, se tresmalha, ei-lo em momentos, transformado....”.... “O jagunço é menos teatralmente
heroico (que o gaucho); é mais resistente; é mais perigoso; é
mais forte; é mais duro”.
Novas expedições
Encontrava-se o País em precária situação político-financeira, quando Manuel Vitorino Pereira, baiano, então na
Vice-Presidência da República, assumiu a Presidência. A derrota da expedição dirigida pelo Major Febrônio, grandemente
noticiada pela imprensa das grandes cidades, provocou intensa
reação entre populares do Rio de Janeiro, então capital da República. Admitiu-se que o Vice-Presidente Manoel Vitorino,
no exercício da Presidência, tivesse ação mais enérgica que os
seus antecessores, no tocante à ação militar contra os adeptos
do Conselheiro. Decidiu Manoel Vitorino organizar nova expedição, sob o comando do coronel do exército Antonio Moreira Cesar, figura controversa, de grande coragem pessoal, porém sujeito a crises de epilepsia que dificultavam o exercício do
comando. A expedição, que contou com 1.200 homens e teve
o apoio de pesadas canhões Krupp, tão pouco teve resultado
satisfatório. O seu insucesso dependeu, em parte, da morte do
comandante, coronel Moreira Cesar, atingido por dois projeteis. O seu substituto, coronel Tamarindo, conduziu a tropa à
retirada para Queimadas e Monte Santo, ocorrendo, então, o
desmantelamento da expedição.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Como consequência de mais esta derrota, manifestações
de ainda maior intensidade ocorreram nas ruas do Rio de Janeiro. O Governo Federal decidiu organizar uma quarta expedição, “através de grande comoção nacional”, desta vez sob o
comando do general do exército Artur Oscar de Andrade Guimarães. A expedição mobilizou cerca de cinco mil homens, farta
munição, numerosas armas pesadas e um canhão Winthworth,
puxado por quarenta bois. Mesmo a essa poderosa expedição,
contrariando todas as expectativas, Canudos resistiu durante três
meses. É impressionante a minúcia com que se encontra no livro “Os Sertões” a descrição do prolongado ataque dos vários
contingentes de soldados da República contra os pobres adeptos
do Conselheiro, nos vários caminhos encontrados para a refrega
entre os dois contendores. A resistência dos “beatos” começava
a diminuir, quando os partícipes na expedição governamental
intensificaram as suas atenções sobre os prisioneiros. Destes, alguns foram evacuados para fora de Canudos, enquanto outros,
em grande número, foram, sumariamente, decapitados. A 22 de
Setembro do mesmo ano, o Beato Antonio Maciel foi encontrado morto, vítima de uma intensa diarreia que incidiu sobre
um corpo enfraquecido pela ferida causada por um estilhaço de
granada. O seu companheiro mais próximo, conhecido como
“Beatinho”, feito prisioneiro, deu notícia sobre os últimos momentos do Conselheiro. Poucos dias depois, a 5 de Outubro de
1897, as resistências cessaram. Quando, afinal, foram localizados
os últimos defensores do arraial de Belo Monte, restavam, dos
adeptos do Conselheiro: “um velho, dois homens feitos e uma
criança”. Todos foram mortos.
O fim da tragédia
No dia 1 de Outubro de 1897, um batalhão da Polícia Militar de Salvador entrou no Arraial do Conselheiro,
e foi logo seguido pelos soldados do Exército integrantes
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
da expedição. Numerosos prisioneiros foram degolados, incluindo homens, mulheres e crianças, enquanto outros eram
levados para Monte Santo e para Salvador. Estavam, todos,
quase nus, famintos e doentes.
Informações finais
A importância dos eventos ocorridos na região de Canudos, levaram o Professor Edivaldo Boaventura, estudioso
do mesmo tema que empolgara José Calasans, a dedicar-se
intensamente à implantação do “Parque Estadual de Canudos”, vinculado à Universidade do Estado da Bahia. Sobre o
significado desse Parque, Edivaldo publicou uma monografia
de grande valia para o melhor conhecimento do que foi a
epopeia de Canudos.
Ainda em relação às atividades do Professor Calasans
com o propósito de estimular os estudos acerca da história da
Cultura Baiana, cumpre referir o projeto por ele idealizado e
coordenado, envolvendo cerca de cem palestras pronunciadas
entre os anos de 1985 a 1995, no Museu Eugênio Teixeira Leal,
então vinculado ao Banco Econômico da Bahia. Mais recentemente, na medida em que estão sendo impressas e publicadas,
obedecem essas palestras aos seguintes eixos temáticos: I – Patrimônio, Arquitetura, Urbanismo e História de Salvador: Religiosidade; II – Arte, Literatura e “Fala Pelô”; III – Economia,
Comércio e Finanças de Salvador; Política; IV – Mulher: Personalidades da nossa Bahia; V – Meu Pai: Meu Mestre, Minha
Terra. Estas palestras haviam sido gravadas e degravadas e estão
sendo publicadas mediante convênio entre o Museu Eugênio
Teixeira Leal, dirigido pela museóloga Eliene Dourado Bina, e a
Assembleia Legislativa da Bahia, sob a Presidência do Deputado
Marcelo Nilo.
Diante de mais esse legado deixado por José Calasans, no
período final da sua operosa existência, continuarão presentes
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
ao longo do tempo os ensinamentos suscitados pelo admirável talento do historiador e gerador de condições para que seus
discípulos e colaboradores realizassem importantes pesquisas
acerca das histórias do Brasil, da Bahia e da Cidade do Salvador.1
Roberto Figueira Santos. Pesquisador e professor emérito, foi reitor e
reformador da Universidade Federal da Bahia ( 1967-1971), presidente
do Conselho Federal de Educação, Governador da Bahia ( 1975-1979),
presidente do CNPq, Ministro da Saúde e deputado federal. Autor de A
universidade e os novos propósitos da sociedade brasileira, Ensino médico e assistência à saúde, Reflexões sobre temas da atualidade, Desigualdades sociais, educação
e ação política, Um mandato parlamentar a serviço das causas sociais. Como
memorialista escreveu Vidas paralelas e Na Bahia das últimas décadas do
século XX. É presidente de honra do Instituto Geográfico e Histórico da
Bahia, titular das Academias de Letras da Bahia, de Medicina e Baiana de
Educação, idealizador e presidente da Academia de Ciências da Bahia.
____________
Discurso de abertura do Seminário Cem Anos Com José Calasans,
proferido pelo acadêmico Roberto Santos, no Auditório do Museu
Eugênio Teixeira Leal, em 4 de novembro de 2015.
►► 309
CENTENÁRIO DO NASCIMENTO
DE WALTER DA SILVEIRA (1915-2015)
O templo sagrado de Walter da Silveira
CARLOS RIBEIRO
E
m seu discurso de posse nesta Academia, Walter da Silveira
descreve as sensações que sentiu, quando, dez anos antes,
em visita a Florença, admirou o Palazzo dela Signoria, por seu
esplendor de pedra e a Porta do Battisterio por sua pureza em bronze.
Assim narra a experiência:
Vi à distância o duomo de Santa Maria del Fiore, sede mística
da cidade. E na Galeria degli Ufizzi reconheci o Renascimento nos óleos de Boticelli e nas tapeçarias da scuola de Rafael.
Só depois entrei na Academia. Não aconteceu, portanto, de
repente. Ademais, ao avanço de meus olhos, descobrira-se
pelos corredores, imagem a imagem, o gênio de Miguel Ângelo. Mas foi na sala circular ao fundo, de alta abóbada e luz
propícia, que encontrei a suprema beleza. Isolada, ao centro,
a estátua de David. Não posso, não saberei nunca descrevê
-la. Apenas lembro que adiei longamente a partida, achava
sempre que não a vira ainda, precisava absorvê-la na dimensão de sua beleza total. Ali estava a imortalidade perfeita. E
o outro sentimento que me vinha, claro e sem agonia, era o
da minha efemeridade, o da minha imperfeição. Nem antes
nem depois compreendi tanto a grandeza do criador e o
dever de humildade do contemplador.1
A posse de Walter da Silveira na Cadeira de Número 13 da Academia de Letras
da Bahia foi realizada no dia 18 de outubro de 1966 e o discurso foi publicado
no Volume XXI da Revista da Academia de Letras da Bahia, em 1970.
1
►► 311
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Ao ser empossado na Cadeira 13, que tem como Patrono
Francisco Moniz Barreto (1804-1868), e como fundador Egas
Moniz Barreto de Aragão (1870-1924), o imortal Walter declarava a certeza de sua efemeridade, dos seus horizontes imperfeitos.
Afirmava que nada realizara “para me supor em vitória sobre o
tempo”, e lembrava que todos os seus antecessores, naquela Cadeira, haviam pertencido à poesia baiana. E indagava: “Como
deverei honrá-la, se me confesso um demissionário da poesia?”
Aos 51 anos de idade, Walter Raulino da Silveira já há muitos anos havia desistido dos versos para abraçar as causas coletivas, compelido a tornar-se “um homem de prosa, de discursos
e conferências”. As dezessete linhas iniciais do seu discurso, um
dos mais belos já feitos neste sodalício e ao qual ele se referiria, anos mais tarde, como “uma confissão pública sobre minha
vida”, dizem muito deste homem cuja memória homenageamos
esta noite. Senão, vejamos: declaradamente sem religião, como enfatizou em muitos momentos da sua vida, reconhecia a beleza
sublime e a grandeza que justificam a existência humana, nas
próprias realizações do homem, através da Arte. Na ausência de
uma teologia, apoiava-se na estética para equilibrar-se sobre os
desvãos da existência. A estética era a sua teologia, com todos
os elementos que a compõe: a noção do sagrado, do sublime,
da contemplação e do êxtase; a rejeição à heresia de tudo o que,
por desrespeito ou ignorância, tentasse conspurcá-la. Ante o
desrespeito perante a obra de arte cinematográfica, reagia como
fez Cristo aos vendilhões do templo: expulsando-os sob severas
admoestações. A sala de cinema era o seu templo sagrado.
Àquela altura da sua vida, a Arte, para ele, assim como
para outros homens e mulheres da sua geração, tornara-se um
refúgio, quando todos os sonhos e utopias desmoronavam à sua
volta. Sonhos e utopias que alimentaram grande parte de sua
vida, quando ainda acreditava no socialismo como solução para
os males sociais que desde sempre assolavam o Brasil. Talvez o
seu refúgio, mais íntimo e essencial, sua mais cara defesa ante a
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
estupidez e a desumanidade no mundo. Não em um sentido escapista, mas como uma espécie de fortaleza que lhe servia, também, como instrumento político de transformação da realidade.
Arte e política eram-lhe inseparáveis, e, se observarmos bem,
com bastante atenção, esta perspectiva impregna tudo o que, de
alguma forma, está sob a sua influência.
Abertas para o futuro, sua mente de horizontes largos e
sensibilidade de artista tinham, no entanto, suas raízes plantadas, profundamente, no solo fértil do passado, da tradição que
o levara, no instante supremo referido por ele, diante do gênio
de Michelângelo, aos esplendores do Renascimento, e neles encontrar sua epifania. Era um humanista e a sólida cultura adquirida por sua inteligência privilegiada e disciplinada serviria
como ponte necessária às novas gerações que, naqueles anos de
intensa efervescência cultural, pesquisavam novas linguagens e
exploravam novos caminhos na poesia, no teatro, nas artes plásticas e no cinema. Para ele, o Brasil era “uma das nações em
maior exigência de crítica permanente, lúcida e corajosa”. Havia,
então, aqui, “um público à espera de esclarecimento”. Daí a sua
responsabilidade crítica perante o cinema brasileiro.
* * *
Falar sobre as realizações do Cidadão Walter demandaria
muitas páginas, bem mais que as que cabem neste discurso. Mas
há alguns dados biográficos que achamos por bem assinalar. O
que faço com brevidade.
Filho de Ariston Augusto Côrte Imperial da Silveira e de
Elvira Raulino da Silveira, irmão de Valdemar, Noélia, Maria,
Rute, Dulce e Noêmia, Walter Raulino da Silveira nasce, em Salvador, a 22 de julho de 1915. Desde menino revela seu amor à
Sétima Arte, que, então, limitava-se a uma intensa fonte de estímulos e sensações. Mas também um veículo pedagógico muito
original, tendo em vista sua afirmação de que se alfabetizara lendo os folhetos dos filmes passados nos cinemas.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Foi um menino precoce, que viveu parte da sua infância
na cidade de Estância, em Sergipe. Que escreveu sua primeira
nota sobre arte cinematográfica, aos 12 anos de idade, no jornal
O Imparcial. Que vivenciou ainda criança a falência dos negócios
do seu pai e sua funda amargura. Que vivenciou a perda extemporânea de sua mãe e mais tarde de seu pai, experiências que lhe
amadureceram e fortaleceram, mas que deixaram uma sombra
de melancolia, visíveis em alguns dos seus textos literários, como
no poema “O triste passageiro”, escrito em 1938.
Sim! Eu sou o triste passageiro do último bonde,
O que viaja sem olhar para os caminhos,
O que se absorve na lembrança das possibilidades perdidas,
E em cujo rosto ensombrado de homem tímido
O sentimento do passado inútil
É a sombra mais viva.
Sim! Eu sou o triste passageiro do último bonde!
E vós que vindes sempre comigo,
De que adivinho cada pensamento e que ganhais a minha compreensão
-- homens e mulheres, velhos e jovens --,
Até hoje não sabeis que, dos passageiros do último bonde,
Do bonde final de todas as noites,
Sou o mais desamparado de todos,
Sou o único que, ao chegar,
Não terá um rosto ansioso que, ao vê-lo, se asserene,
Uma voz paternalmente amiga,
Que recrimine a sua tardia chegada,
Ou umas mornas mãos de amante, que o afaguem para adormecer.2
Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, em 1935, iniciou sua extensa e prolífica carreira de advogado, pelo interior
da Bahia, em Macaúbas, em Alcobaça, onde exerceu a pretoria,
em Rio Novo (Ipiaú), em Itapira (Ubaitaba) e Campo Formoso
até 1945; colaborou com inúmeras revistas culturais, na Bahia
DIAS, José Umberto (Org.). Walter da Silveira. O eterno e o efêmero, Vol. 3.
Salvador: Oiti Editora e Produções Culturais Ltda, 2006, p. 374.
2
314 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
e em outros estados; conheceu, apaixonou-se e casou-se com a
bela Ivani, amor de toda a sua vida com quem teve sete filhos
(Tânia, Ariston, Katia, Márcia, Ivan, Diana e Eliana); foi um dos
fundadores da Associação Brasileira de Escritores, seção Bahia;
filiou-se e desfiliou-se ao Partido Comunista; advogou na Justiça
do Trabalho e foi Consultor Jurídico da Associação Comercial
da Bahia; fundou o Instituto Baiano de Direito do Trabalho,
tornando-se primeiro secretário da primeira diretoria; candidatou-se a deputado estadual pelo PCB; atuou durante tantos anos
como advogado do povo nas recém formadas palafitas de Alagados,
tornando-se líder e amigo dos operários; foi nomeado fiscal do
IAPI; participou do Caderno da Bahia, ao lado de nomes como
os de Vasconcelos Maia, Wilson Rocha e Claudio Tuiuti Tavares,
entre outros e, em 1950, fundou o Clube de Cinema da Bahia,
pelo qual será sempre lembrado.
O Clube de Cinema funcionou de 1950 a 1965, nos cines
Tamoio, Liceu, Guarani e Popular – este um casarão que foi
reformado para abrigar a sala de cinema, período em que deixou de ser exibido uma vez por semana, aos sábados ou domingo, ganhando sessões diárias contínuas. Mais tarde, passaria a
chamar-se Cinema de Arte da Bahia. Em 1968, Walter realizaria
o antigo sonho de criar, com o prof. Valentin Calderón de La
Barca, um curso de iniciação cinematográfica, na UFBA. Em
1969, Walter e Guido Araújo conseguiram do Reitor da UFBA,
Roberto Santos, que o Salão Nobre da Reitoria fosse destinado,
aos sábados, à exibição de filmes selecionados, com a distribuição, na porta, de uma análise escrita pelo ensaísta. Vale dizer
que, dentre seus muitos méritos, o Clube de Cinema da Bahia
foi semente para a criação futura, mais especificamente em 1972,
da Jornada de Cinema que teria no Instituto Goethe, o Icba, seu
território de resistência do cinema brasileiro no período obscuro
da ditadura militar]. Vale destacar ainda a formação, por ele, de
uma diretoria de crítica de cinema no lançamento do jornal Tribuna da Bahia, em 1969, com uma equipe formada por Geraldo
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Machado, Guido Araújo, Hamilton Corrêa, Jairo Faria Góes e
José Umberto Dias.
* * *
Muito mais teríamos a dizer sobre Walter da Silveira. Mas
como fazê-lo se este discurso se impõe um limite? Talvez, na
busca certamente infrutífera de sintetizar, nestas páginas, sua
figura ímpar e múltipla, precisemos pedir auxílio ao gênio dos
Irmãos Marx, expoentes da comédia cinematográfica dos anos
30, que ele tanto admirava, e que em um dos seus diálogos de
pleno nonsense diziam:
Olha, há um tesouro na casa ao lado.
– Mas não há nenhuma casa ao lado.
– Então construiremos uma!
O que mais fez ele, senão isto? Construir a casa ao lado e nela
descobrir os tesouros que ali estão, invisíveis aos olhos – seja no
campo da sua atuação como advogado dos pobres e dos operários,
seja como intelectual, ensaísta e agitador cultural. Mas, sobretudo,
como o nosso mais importante crítico de cinema que acreditava na
necessidade da crítica cinematográfica, afirmando que, como
Arte pública, impossível de se reduzir à propriedade estética individual, exigindo participação coletiva para realizarse ou comunicar-se, o cinema prevê em quem o interpreta
– e aqui se reafirme: o crítico não é um julgador, mas um
intérprete – a mais alta responsabilidade de informação e
pensamento. (DIAS, Vol. 3, p. 37).
Walter era, em essência, como intérprete, um descobridor
de tesouros ocultos, invisíveis; tesouros que descobria para distribuir, para compartilhar, a mancheias, com uma generosidade
pouco vista neste nosso mundo de mesquinhos donos do saber.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Para ele, a condição de intelectual equivalia a uma missão. Como
disse, em artigo publicado no Jornal O Imparcial, em 1942,
Nas horas de perigo para a humanidade, a missão do intelectual é a mais grave das missões. Nem a missão do
político as nivela à sua missão. Porque o intelectual é um
esclarecedor. É de sua honestidade, de sua traição, ou de
seu indiferentismo, que depende o caminho dos outros
homens. (DIAS, Vol. 4, p. 59)
Voltemos ainda às primeiras palavras do seu discurso, no
qual expressa a consciência clara que ele tinha da nossa efemeridade. Deve-se esta lucidez, ao “dever de humildade do contemplador” da Obra de Arte, aquela que resiste ao maior de todos
os juízes: o Tempo.
Efêmero, sim, dr. Walter. Mas não haveria aí um paradoxo?
Se aqui estamos, cem anos após o seu nascimento, assumindo a
honrosa tarefa de resistir ao esquecimento, de preservar a memória
de um dos nossos ilustres antecessores, de afirmar o sempre de sua
trajetória, contra a efemeridade de todas as coisas? Como resolver
esta contradição? Talvez apoiando-nos numa outra forma de ver
as coisas, em outro grau de compreensão do que seja a memória,
expressa no belo poema, “Everness”, do escritor Jorge Luis Borges
(Obras Completas II, p. 328), que aqui evoco em nosso socorro.
Só não há uma coisa. É o esquecer.
Deus, que salva o metal, salva a escória
E cifra em sua profética memória
As luas que já foram e as que hão de ser.
Tudo está aí: visões multiplicadas
Que entre esses dois crepúsculos do dia
Tua face foi deixando e as refletia
E as que ela irá deixando-as espelhadas.
E tudo é uma parte do diverso
Cristal dessa memória, o universo;
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Jamais tem fim seus árduos corredores
E a ti fecham-se as portas com descaso;
Somente do lado oposto do ocaso
Verás os arquétipos e esplendores.
É, pois, querido confrade imortal, Walter da Silveira, no
âmago dessa dialética, entre o eterno e o efêmero, entre o sempre e o nunca, que celebramos aqui o seu centenário de nascimento; o centenário de nascimento de um homem complexo e
singular que muita falta faria se não tivesse recebido a graça de
existir. E eis que fazemos a pergunta essencial: poderíamos conceber o mundo sem a sua presença?
Há um belo filme, do diretor Frank Capra, no qual o personagem principal, George Bailey, vivido pelo ator James Stewart,
desiludido e deprimido, pelo que considerava uma vida fracassada, é salvo do suicídio por um anjo que, numa noite de Natal,
consegue fazê-lo ver como seria o mundo se ele não existisse. A
cena final, uma das belas e tocantes da história do cinema, revela
ao incrédulo Bailey o grande vazio que a sua inexistência teria
deixado em sua cidade e nas pessoas que o rodeavam.
Aí talvez esteja a principal marca da imortalidade do criador: a sua própria criação. E, se há criações concretas, perfeitamente identificáveis, como o David de Michelângelo, há uma
outra obra, carente de materialidade, mas sem a qual a primeira
não existiria: a das ideias, da ação política, fraterna, amorosa e
das ações educativas. É aí, prezados confrades, prezados amigos aqui presentes, onde devemos e temos mesmo o dever de
ver, reconhecer e identificar a grande obra de Walter da Silveira. Mesmo cientes de que os livros por ele escritos, bem como
seus inúmeros artigos, resenhas, discursos e poemas reunidos na
magnífica coleção, em quatro volumes, organizada por José Umberto Dias, fossem mais do que suficiente para lhe dar assento
nesta Casa, é na sua ação política e cultural, sobretudo à frente
do Clube de Cinema da Bahia, que ele é sempre lembrado.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
* * *
Caminhando já para a finalização deste discurso, quero
passar a palavra para alguns dos homens que com ele compartilharam o amor e a luta por um cinema baiano, por um cinema
nacional, à altura das grandes cinematografias internacionais.
Em artigo publicado na revista Visão (“Na Bahia a coisa
é séria”, 16/3/1963), outro grande ensaísta do período, Paulo
Emílio Sales Gomes, diz:
Esse momento cinematográfico que vive os baianos se deve,
em grande parte, às atividades do seu Clube de Cinema, inseparável da figura do seu fundador e dirigente há dez anos,
Walter da Silveira. Advogado e intelectual, ele colocou o
prestígio de que desfruta na comunidade onde vive a serviço
de um prolongado e incansável esforço em favor da difusão
do cinema como expressão cultural e como arte.
Os esforços de Walter da Silveira, entretanto, não foram
perdidos. Os jornais da Bahia são hoje os que dispõem dos
críticos cinematográficos mais jovens e entusiastas do país.
Numa revista literária como Ângulos, as seções mais estimulantes e polêmicas são as que se dedicam ao esforço de
compreensão e da análise da conjuntura cinematográfica
brasileira. (DIAS, p. 242).
Em “Imagem e roteiro de Walter. 35 anos de dedicação ao
cinema”, publicado em 8 de agosto de 1970, na Tribuna da Bahia,
dizia o cineasta Guido Araújo:
Homem de grande cultura, advogado dos mais brilhantes
da Bahia, pai dedicado de uma família numerosa (7 filhos),
espírito aberto e interessado por todos os problemas do
nosso tempo – assim é o Walter da Silveira que conhecemos, nós que temos a ventura de privar da sua intimidade.
Contudo nos seus múltiplos interesse, um lugar de destaque todo especial é ocupado pelo cinema. Jamais vi uma
►► 319
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
criatura que demonstrasse tamanha preocupação e amor
pela sétima arte como Walter da Silveira. São 35 anos de
dedicação extremada à causa do cinema como expressão
de cultura. Sua atividade como crítico começa bastante
cedo, com um artigo escrito aos 20 anos, em que analisa
o filme Tempos modernos de Charles Chaplin. Portanto,
desde o primeiro instante Walter revela-se um chapliniano
e esta admiração o acompanha na sua trajetória de crítico e
ensaísta, que num processo de ascensão e aperfeiçoamento
chega a esta hora de maturidade. (DIAS, Vol. 4, p. 283).
Outro dos seus alunos, e certamente o mais importante
crítico de cinema, na Bahia pós-Walter, André Setaro (19502014), esclarece, no artigo “De um clube lendário”, publicado
no jornal Tribuna da Bahia, em 26 de maio de 1999.
Quando inaugurado, em 1950, os baianos somente conheciam o cinema americano, o império hollywoodiano com
seu inabalável star system e a divisão dos filmes em gênero.
O que era feito em outros países continuava inédito entre nós, a exemplo do neorrealismo italiano, que eclodiu
na Itália do pós-guerra, a cinematografia de Einsenstein e
Pudovkin, o realismo poético francês de um Marcel Carné, os belos ensaios fílmicos de Jean Renoir etc. Walter da
Silveira, com seu Clube de Cinema, funcionando em sala
emprestada da Associação dos Funcionários Públicos, em
cópia de 16 mm, trouxe para os baianos todos estes filmes.
A função de Walter, no entanto, à frente do clube, não
era, apenas, informativa e formava plateias. Antes da exibição, fazia palestras, falava sobre a importância do cinema
enquanto linguagem autônoma, expressão da arte, da importância de certos diretores como autores etc. O público
estava, nesta época, limitado, no circuito, ao reinado dos
astros e estrelas, desconhecendo, por exemplo, o papel da
direção – a maioria não sabia os nomes dos cineastas. Ia-se
ver um filme com Clark Gable, Bete Davis, Gary Cooper,
Ava Gardner, Rita Hayworth, Cary Grant.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
O Clube de Cinema da Bahia, fundado, além de Walter, por
Carlos Coqueijo Costa, Santos Cruz, entre outros, despertou o interesse de vários intelectuais baianos, que, até então,
viam as imagens em movimento como mero entretenimento. A partir de Walter, os baianos começaram a considerar o
cinema autêntico veículo de expressão artística. E o clube,
fora o embasamento teórico via as palavras esclarecedoras
de Walter, incentivou a criação da práxis cinematográfica,
despertando talentos, como o de Glauber Rocha, que sempre confessou ter aprendido cinema com Walter da Silveira.3
E é o próprio Glauber, seu mais famoso discípulo, que
no depoimento intitulado “Cinema Liceu, domingo de manhã”,
publicado, logo após a morte de Walter, no Jornal da Bahia, a 13
de novembro de 1970, diz:
Se eu tive outro pai foi você, velho Walter. Você me dizia
não me chame de doutor nem de senhor, como chamo até
hoje nosso poeta Carvalho Filho de meu tio. Calá, Sante,
Paulo Gil e Peres sabem por que. Você, Walter, era meu
pai doutor. Naquele dia, lá no Clube de Cinema, quando
passava o famoso Potenkim, eu e Peres começamos a esculhambar o filme e você nos botou pra fora da sala. Você era
doutor Walter. Você me ensinou a respeitar Einsenstein
e se não fosse aquele esbregue talvez hoje eu fosse uma
besta. Quando fiz O Pátio dediquei a você e você não gostou
muito do filme. Depois, Walter, você estranhou Barravento, lá
em Karlovy Vary. Você não brincou comigo, Walter. Você me
mostrava os livros da tua estante e mandava-me ler. Você me
emprestou os primeiros números dos Cahiers e você me falava apaixonado do nosso saudoso Dexer. Você entendeu logo
o Nelson Pereira dos Santos. Walter, e foi você, nessa terra
onde muitos me estraçalharam a dente, quem primeiro viu
RIBEIRO, Carlos (Org.)Escritos sobre cinema: trilogia de um tempo crítico –
III Volumes; André Setaro. Salvador: Edufba; Azougue Editorial, 2010. Vol.
II (Cinema Baiano), pp. 51-52.
3
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
que esta coisa marginal e detestável que se chama cinema
brasileiro poderia existir. E você nem quis me deixar entrar naquela sessão tumultuada de Rio, quarenta graus, ali no
Cine Art.
[...] Pois Walter da Silveira, advogado trabalhista incorruptível, marxista, temperamental, generoso, tinha aquela intimidade com o cinema que somente os curtidores de filme
sabem ligar sem dar bobeira: Walter, você sabia o que era
um travelling do mestre Ford, você sacava uma montagem
paralela de Hitchcock, você tirava de letra uma panorâmica
leve de Buñuel. Agora, Walter, você enjeitou o Godard,
mas um dia, dentro do seu carro, eu falei duas horas de
Jean-Luc e você deu o estalo. (DIAS, pp. 309-310).
E, finalmente, para não esquecer a face demasiado humana do nosso homenageado, eis este breve depoimento do nosso
saudoso confrade Guido Guerra (1943-2006), intitulado “Walter, o bom” e publicado em 7 de novembro de 1970.
Era como uma criança. Ingênuo, rebelde, terno. Quando
se aporrinhava, dizia cobras e lagartos do sujeito. Depois,
refazendo-se, abraçava-o, com ternura: “Dá cá o abraço,
amigo”. Tinha medo da solidão, de viajar de avião. Pelavase de medo, quando o trovão roncava. Então, como uma
criança aflita se abraçava com Ivani, “a amada que não teria
de ser impossível para continuar sendo”. Às vezes eu ia
visitá-lo, e o papo entrava pela noite. Um dia, eu lhe disse:
“Sei de cor seu discurso”.
-- Qual deles?
-- O eterno e o efêmero.
Ele ria.
-- Porreta, bicho, porreta.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Ele corava, quando alguém desbocado, como eu, destabocava um palavrão. Há pouco, recebeu uma carta de Charles
Chaplin, incensando seu livro sobre Carlitos. Penso que,
meio cabreiro, deve ter retrucado: “Esse Chaplin é um
porreta”. E creio que sorriu aquele riso bom e terno, o riso
que a morte não apagou. Ou teria aquele sorriso e gostou
da morte, o travo da despedida? E a História do cinema,
que ele começou a escrever, ficou na gaveta, tudo findo?
Ah, e o poema: “a mulher que sonhei era loura e morena,
tinha a pelúcia de ouro e a pele de jambo”. Ou simplesmente Ivani, o poema que ele amou.
Pra terminar: quando alguém me traz uma notícia de morte, costumo retrucar: “Morreu, se campou”. No caso de
Walter da Silveira, não posso dizê-lo. Porque foi a humanidade que o perdeu.
Como dissemos no início deste discurso, Walter da Silveira entrou nesta Academia como um “demissionário da poesia”
que, “emparedado entre a vocação e a profissão”, consideravase ainda um rebelde, “mais próximo das gerações que vem do
que das que se vão”. “Sou apenas literariamente, e nada mais
quero ser do que um homem de cinema, um crítico da arte cinematográfica, um prosador menor portanto, a ensaiar sua transitoriedade na mais transitória de todas as expressões artísticas,
segundo o preconceito geral”.
Disse isto, entretanto, numa prosa de alto nível, à altura do que de melhor se fez, aqui nesta Casa que abrigou, ao
longo de quase cem anos, nomes como os de Afrânio Peixoto, Xavier Marques, Vasconcelos Maia, Jorge Amado, James
Amado, Guido Guerra, João Ubaldo Ribeiro e Hélio Pólvora.
E que nos deixa, em seu “poemas de ontem”, com o qual encerro este discurso, dedicando-o aos seus filhos e familiares
aqui presente.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Esperança
Olha através da opacidade das lágrimas.
Guarda bem, na lembrança, a triste e
Nevoenta visão de hoje.
Um dia, voltaremos aqui,
Voltaremos sorrindo,
Já não seremos os desconhecidos de agora.
E a paisagem, franca e pura, sorrirá também.
REFERÊNCIAS
BORGES, Jorge Luís. Obras completas – Volume II 1952-1972. São
Paulo: Globo, 1999.
DIAS, José Umberto (Org.). Walter da Silveira. O eterno e o efêmero – 4
Volumes. Salvador: Oiti Editora e Produções Culturais Ltda, 2006,
VIEIRA, Oldegar Franco (Diretor). Revista da Academia de Letras da
Bahia. Volume XXI, 1970.
RIBEIRO, Carlos (Org.) Escritos sobre cinema: trilogia de um tempo
crítico – André Setaro – III Volumes. Salvador: Edufba; Azougue
Editorial, 2010.4
Carlos Ribeiro é jornalista, escritor, pesquisador, ensaísta e professor do
curso de jornalismo da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
(UFRB). Tem diversos artigos, ensaios, reportagens, e treze livros publicados, dentre os quais o romance Lunaris (2007), Contos de sexta-feira
(2012) e o ensaio Rubem Braga: um escritor combativo – a outra face do
cronista lírico (2013). Desde 2007 ocupa a Cadeira número 5 da ALB.
Discurso em homenagem ao Centenário do acadêmico Walter da Silveira, proferido em sessão especial, no Salão Nobre da Academia de Letras
da Bahia, pelo acadêmico Carlos Ribeiro em 15 de setembro de 2015.
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CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE
JOSAPHAT MARINHO (1915-2015)
PAULO FURTADO
J
á me considerava um privilegiado. Em primeiro lugar, por ter
privado do convívio e da amizade de Josaphat Marinho (algum dia, íntimos da história que sejam, meus filhos e meus netos, como eu, haverão de se orgulhar disto). Depois, por ocupar
a cadeira de nº 30 desta Augusta Casa, da qual era antes titular
esse notável jurista e cidadão exemplar. Mas, sinceramente, não
esperava ver-me contemplado por mais um privilégio: o de ser
o porta-voz da Academia nesta homenagem ao eminente jurista
e acadêmico, no seu centenário de nascimento. Meus agradecimentos, portanto, à nossa estimada Presidente, por esse distinto
e honroso convite.
Sirvo-me de duas epígrafes iluminadoras do quanto será
comentado acerca do Doutor Josaphat Marinho, sentindo-me,
como disse, realmente engrandecido com este momento. A primeira delas norteou seu pensamento de vida inteira:
Tenho ainda ilusões. Creio ainda que a consciência do dever é alguma coisa; e que a fortuna pública não está só em
um farto erário, mas também na acumulação e circulação
de uma riqueza moral.
Machado de Assis.
A segunda se encontra no cerne de sua filosofia do Direito nas relações com o poder legitimamente constituído:
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Só o poder cria o direito, mas só o direito limita o poder.
Norberto Bobbio.
Na ausência irreversível de personalidades singulares
como a de Josaphat Marinho as palavras parecem perder sua
força semântica, mostram-se pálidas para veicularem o que significa não mais contar com a presença lúcida de um homem
que dedicou toda a sua vida ao pensamento pelo Outro. Alguns
brasileiros carecem de discernimento e senso de justiça para dar
provas de genuína gratidão. Diante da obra e da envergadura
moral do emérito professor, do sábio jurista e do diferenciado
político — poucos senadores houve iguais —, cabe-nos admitir
que sua voz foi sempre veículo de lucidez e experiência.
Nada persuade mais que o exemplo. Os que já viveram
mais aprenderam ou deveriam ter aprendido que, para conhecer
um homem, observa-se o que ele faz, não apenas o que diz.
Quando há coincidência entre as duas ações, a conclusão é a de
que se está diante de um ser de exceção.
Assim era Josaphat, em relação ao qual todos os adjetivos
desfalecem, tal a dimensão que atingiu em todas as áreas nas
quais atuou. Aquinhoado por incomum senso de ética e de equilíbrio, distinguido por inteligência rutilante, colocou o idealismo,
a inesgotável capacidade de trabalho, cotidianamente, desassombradamente, em defesa do bem comum. Eis todo o mérito de
uma vida, grafado, sem dúvida, nos anais de nossa história.
Josaphat Marinho bem percebera as demandas e perquirições
do nosso tempo – produtos não só da tecnologia, como da ciência
que a gerou. Não por acaso debruça-se sobre a obra do extraordinário educador Anísio Teixeira. Em um dos seus estudos sobre este,
de 1945, salientava que Anísio Teixeira revelava mais perplexidades
que conclusões; ao invés de fixar dogmas, situava as diferenças – a
fim de promover o esforço de reduzi-las a formas civilizadas de
convívio livre e criativo; rejeitava uma cultura padronizada, pois
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
acreditava enriquecedor o confronto de inteligências diversificadas
e diferenciadas em sua formação; empolgava-o a divergência fundamentada, que descortina enganos, aponta excessos, aperfeiçoa
julgamentos; apontava a necessidade de rever, sempre que fosse devido, inovar quando necessário. Estaria Josaphat Marinho falando
de si mesmo, ao invocar o mestre que o antecedera? Continuando
a leitura deste, fazemos nossas, em relação ao Senador, as meditações dele sobre o educador incomparável: alargava e aprofundava
análises, não caía no vazio da abstração. “Fins inaplicáveis não são
fins, mas fantasias. Os fins são verdadeiramente fins quando os conhecemos de tal modo que deles se desprendem os meios de sua
realização”. E invocava Dewey, influência marcante no pensamento
de Anísio Teixeira, concluindo: “Os meios são “frações de fins”.
Ainda na mesma conferência, Josaphat se referia à inclinação do notável educador, ou seja, à fundamentação na filosofia
social para a interpretação dos fenômenos da vida e da sociedade. Como o Educador Emérito, Josaphat congregava, em suas
ações, a reflexão, a observação e o tirocínio e deste amálgama
extraía a matéria prima de seus estudos sobre a educação como
problema político. Conclamava a presença do dado filosófico no
pautar-se para a ação:
Nos dias de hoje, quando a ciência vai refazendo o mundo
e a onda de transformação alcança aspectos os mais delicados da existência humana, só quem vive à margem da vida,
sem interesses, sem posição assumida, sem amores e sem
ódio, pode julgar que dispensa uma filosofia.
Assim, as palavras de Paulo Brossard ao descrever Josaphat Marinho mostram-se de rara formulação para o situarem:
Advogado, professor universitário, deputado estadual, secretario de estado, presidente do Conselho Nacional de
Petróleo, senador, advogado e professor em Brasília, cuja
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
universidade o fez professor emérito, novamente senador,
foram longos e ásperos os caminhos por ele percorridos,
sempre com exemplar retidão, tanto que, num pais em que o
homem público é geralmente malvisto e mal falado, atravessou a selva selvaggia incólume, a despeito da nitidez de suas
posições, nunca incolores e muito menos furta-cores. Deixa
o senado com respeitabilidade intocada.
O ex-ministro conclui o seu artigo com uma citação do
próprio Josaphat Marinho, de beleza e profundidade incontestáveis: “Aos oitenta e três anos de idade, não reivindico postos,
mas espero continuar um militante da democracia e da justiça
social. No chão áspero da rua também há espaço para o combate gerador de esperança.”.
Tantos foram os temas abordados por este ilustre cidadão,
que se afigura difícil fugirmos à tentação de nos determos em alguns
aspectos fascinantes de sua variegada atividade intelectual e de sua
atuação política e jurídica. O Poder Judiciário teve nele um vigoroso
combatente e defensor do seu fortalecimento, embora assinalasse
os pontos que considerava essenciais para melhor estruturá-lo a fim
de servir à sociedade de maneira nítida e eficiente. Bem sabia que falar sobre “crise” do Poder Judiciário era algo que comportava mais
de uma abordagem obviamente. Mas, dificilmente, poderíamos encontrar tamanha visão crítica, tamanha coerência e tamanho poder
teórico de argumentação do que no legado de Josaphat Marinho.
Ele acreditava que essa”crise” – nos dias atuais, tão próxima e demandando soluções – se inseria naquela mais ampla do
próprio modelo de Estado com o qual convivemos. O que não
elimina a necessidade de que seja encarada como uma crise específica, localizada no processo constitucional de produção jurisdicional do Direito, que inclui a institucionalização dos agentes
políticos por ele responsáveis.
Não adianta uma cosmética da lei para resolver problemas
do Judiciário brasileiro. Isto é um ludíbrio para com a sociedade,
328 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
querendo fazer acreditar que se está interessado no estado de fato
das coisas, quando apenas se oculta a fealdade de seus males.
Em nossa Constituição, Executivo, Legislativo e Judiciário
são definidos como Poderes da União, independentes e harmônicos entre si. Ao estabelecer o princípio de independência dos
poderes, impondo a possibilidade de um órgão conter a atividade do outro, os constituintes almejavam resguardar direitos e
liberdades dos brasileiros após tantos anos de regime ditatorial,
protegendo-os de possíveis caprichos das autoridades.
Evidentemente, o Executivo não poderia determinar ao
Judiciário o que decidir, como decidir, ou quando decidir. Ao legislador cabe ditar as leis, e ao Executivo aplicá-las administrativamente, dentro dos limites de sua competência. Entre o imenso
poder do Estado e o diminuto poder de cada um de nós, existe
apenas uma entidade capaz de nos assegurar o cumprimento das
leis, controlando os abusos do poder e tornando efetivo o Direito, produto de nossa vontade coletiva. Essa entidade é o Poder
Judiciário, que deverá ser íntegro e independente, sob pena de se
tornar o mais temível e corrompido de todos os poderes.
Por outro lado, apenas o poder político institucionalizado pode criar o Direito, mesmo que, reduzindo a dimensão do
arbítrio, também se imponha limites – fato para o qual Josaphat
Marinho não perdia a vigilância:
Acresce – dizia ele – que a instabilidade legislativa, quer
com sucessivas emendas constitucionais, quer com o descomedimento de medidas provisórias, perturba a ação de
Juizes e Tribunais, já oprimidos por número desmedido
de causas, de índole diversificada. A alteração freqüente
de normas constitucionais e legais obriga a rever critérios
de julgamento, e atinge, não raro, jurisprudência assentada.
Uma das razões para este estado de coisas é a interveniência dos fatores políticos. Estes assumem uma função fundamental
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
na hermenêutica dos grandes sistemas processuais. Releva, sim,
a estrutura organizativa que o poder assume, stricto sensu no setor
judiciário, mas em relação com a função que o Estado se atribui.
Há a dimensão política do jurídico – daí a necessidade de promoverem-se reformas políticas a serem a posteriori institucionalizadas
juridicamente.Importa, sim, o fato de que os sujeitos do jurídico foram legitimados e por isso cumpre-lhes enunciar as razões
legítimas que motivaram sua escolha, o processo pelo qual elas
irão concretizar-se e os procedimentos institucionalizados para a
consumação das leis constituídas. As injunções políticas da função
jurisdicional e suas implicações de natureza econômica e de que
modo foi agenciado o controle social sobre esse conjunto de atividades são inelutáveis.O que é urgente, mais que tudo, é o lavor em
organizar o Estado que gere uma democracia real, e não a “glamorosa” democracia formal. Só se consegue atingir a prática da
justiça possível no contexto histórico e no espaço a este concernente.Impossível haver contradição entre o momento legislativo
da produção do direito e o momento judicial de sua aplicação no
seio da organização política que o produz.
Josaphat Marinho não cansava de sublinhar e de alertar a
sociedade e o poder constituído para a delonga na execução da
reforma judiciária nacional, até hoje inconclusa:
Velha de mais de uma guerra, atravessa a do Golfo e
agora corre parelha com a dos Estados Unidos e aliados
contra o Afeganistão. Tendo passado de um para outro
século, confronta-se com culturas diferentes e necessidades diversificadas.
Se agora não se lhe der impulso, conhecerá outro governo e outra legislatura, com visão variada. A cada passo
da história em que permanece no Congresso Nacional,
é sujeita, naturalmente, a concepção nova. Já viu a globalização no auge de sua força e assiste aos abalos que a
ameaçam no seu poder redutor da identidade dos povos.
Presenciou a controvertida eleição do presidente Bush e
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
toma ciência de relatórios recentes que atribuíram a vitória ao candidato Al Gore. Foi contemporânea de mais de
um governo argentino e acompanha, agora, a amargura
da antes desenvolvida nação sul-americana. Viu o presidente Fernando Henrique reeleger-se e chegará ao fim
de seu segundo governo se o Senado não encontrar uma
clareira para despedi-la da vida parlamentar.
Sempre realçava que uma reforma judiciária deveria orientar-se no detalhe dos valores fundamentais e nos parâmetros éticos da circunstância. A pedra-de-toque da reforma seria a garantia da penetração dos direitos fundamentais para cada cidadão e
a abolição da jurisdição militar. A eficiência, o controle e a prevenção, assim como o ponto de vista puramente econômico não
são paradigmas bons para a lei. Estas demandas para a reforma
vieram de uma situação de insolubilidade, sem dúvida. Acresce
que corre entremeado ao curso da crise das leis um equívoco
de ponto de vista, adstrita a fatores de ordem econômica. Uma
lei não pode ser pautada sobre cálculos do uso, do custo e das
negociações de problemas normativos do tempo, não é com
princípios econômicos que se encara os graves problemas de
nossa sociedade, globalizada, sim, mas adoecida. Uma reforma
do judiciário deve ter no detalhe o objetivo de equipar a lei com
as legítimas aspirações dos cidadãos que se encontram sob sua
égide e oferecer-lhes alternativas mais rápidas. Os juizes deveriam estar mais próximos dos cidadãos, e, para casos urgentes,
um serviço de emergência deveria ser fornecido e o número dos
juizes da demanda social adaptado às novas prerrogativas. É entretanto questionável se a lei pode ser vista somente sob critérios
da eficiência, particularmente com os problemas sociais de nosso tempo, como a lei criminal da droga, a lei criminal ambiental.
Um problema maior é que as Cortes receberam sempre mais
tarefas e menos recursos, a fim de poder atender as demandas
da sociedade. No contraste com os objetivos de simplificação
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
dos procedimentos, mal principal é o de sobrecarregar as cortes. Por outro lado, está também em jogo o preparo dos juízes,
o que Josaphat Marinho apontava com a freqüência necessária
essa questão essencial. O legislador não conseguiu equipar a lei,
a fim de cumprir o seu curso de garantia, o que levou à frustração do cidadão, que prevalece até hoje. Daí a diferença entre a lei
possível e a lei melhor – o Brasil tem a lei possível.
Transparente é o raciocínio de Josaphat:
O problema não é de capacidade individual, mas de impossibilidade material de vencer o excesso de trabalho.
Podem uns juizes, por suas aptidões, reduzir mais do que
outros o acúmulo incessante de feitos, mas nenhum alcançará, normalmente, a regularidade duradoura. A sobrecarga de causas a julgar gerou uma questão institucional para
o Poder Judiciário e cada um de seus órgãos. A solução a
ser buscada há de ter caráter geral, embora analisados os
componentes da crise peculiares a cada entidade integrante
do sistema. Cada unidade suscita aspectos singulares, em
função principalmente de sua competência específica.
O saudoso jurista lembra o exemplar compromisso de
Ruy Barbosa, em plataforma presidencial: ‘’Não negarei cumprimento às decisões da Justiça’’.
Assim, senhores, comungando com o pensamento de Josaphat Marinho, fortalecer o Judiciário, adequando-o às exigências do presente e ao esboço do futuro, é assegurar a tranqüilidade da vida social da Nação.
E a quem tanto tempo e amor dedicou à sua Pátria e à
gente que a faz viva, por sua tenaz e incansável busca da Justiça,
fazemo-nos, com a devida venia, neste momento, à ocasião de
seu centenário de nascimento, de porta-voz da merecida homenagem desta Academia, desta mesma Pátria, desta mesma gente
e desta mesma Justiça ao inesquecível mestre.
332 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Nada mais adequado para realçar o protesto de veneração
e respeito àquele saudoso homem público, neste momento, do
que lembrar a palavra de um dos cidadãos brasileiros pelo qual
ele nutria a mais dedicada admiração, Ruy Barbosa:
Eu não conheço duas grandezas tão vizinhas pela sua altitude, tão semelhantes pelas suas lições, tão paralelas na sua
eternidade, como estas: a justiça e a morte. Ambas tristes e
necessárias, ambas suaves e terríveis, são como dois círios
de névoa e luz que se contemplam nas alturas imaculadas
do horizonte.
Agradeço.1
Paulo Furtado é Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da
UCSal. Mestre em Direito pela UFBa. Curso de Pós-Graduação em
Direito Comunitário na École Nationale de la Magistrature (ParisFrança). Desembargador (aposentado) do Tribunal de Justiça da Bahia.
Ex-Presidente do Tribunal de Justiça (biênio 1992/1994). Membro
do Instituto dos Advogados da Bahia. Membro do Conselho de Ética
Pública da Prefeitura Municipal de Salvador. Membro da Academia de
Letras Jurídicas da Bahia (cadeira nº 37). Ex-Chefe da Casa Civil do
Governo do Estado da Bahia (março/1979 a fevereiro/1982). Ex-Ministro Substituto do Superior Tribunal de Justiça (Brasília/DF). Professor
Adjunto (aposentado) da Faculdade de Direito da UFBa. (cadeira de
Direito Processual Civil). Ex-Professor Adjunto da Faculdade de Direito
da UCSal. (cadeira de Direito Processual Civil). Diversas obras e artigos
jurídicos publicados em revistas especializadas.
Discurso em homenagem ao Centenário do acadêmico Josaphat Marinho,
proferido em sessão especial, no Salão Nobre da Academia de Letras da
Bahia, pelo acadêmico Paulo Furtado em 15 de outubro de 2015.
►► 333
DISCURSO DE POSSE
ANTÔNIO TORRES
Exma. Sra. Presidente da Academia de Letras da Bahia,
Profa. Dra. Evelina Hoisel.
Exmo. Sr. Jorge Portugal, digníssimo Secretário de Cultura do Estado da Bahia, em nome de quem saúdo as demais
autoridades presentes.
Meus familiares e amigos.
Senhoras e senhores acadêmicos,
É
inenarrável a honra de ser aceito nesta Academia, que desde o ano de 1917 reúne o que há de mais expressivo na cultura do nosso estado, e cujos antecedentes históricos datam do
século XVIII, no Brasil-Colônia. Já naquela época houve aqui
em Salvador duas tentativas de dotar o país de uma entidade
capaz de congregar os seus ainda incipientes interesses literários.
A primeira se chamou Academia dos Esquecidos. A segunda,
Academia dos Renascidos.
Passos adiante, já no século XIX, outra iniciativa do gênero leva ao que é considerado o prelúdio desta Academia de
Letras. Foi quando o então futuro Barão de Macaúbas fundou o
Instituto Literário da Bahia. Passou-se isto no ano de 1845.
Em 1911, Almachio Diniz funda a Academia Baiana de Letras que, como as anteriores, não prosperou. Mais tarde, juntamente
com Rui Barbosa, Severino Vieira, Egas Muniz Barreto de Aragão,
Antônio Alexandre Borges dos Reis e Felinto Bastos, Almachio viria a tornar-se membro-fundador de uma nova e definitiva entidade,
►► 335
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
idealizada e organizada pelo engenheiro Arlindo Fragoso, o mesmo
criador do Instituto Politécnico.
Foi assim que nasceu a Academia de Letras da Bahia, à
qual, quase um século depois, este velho escriba chega, trazendo
a sua gratidão pela generosidade do acolhimento nesta Casa de
tantos amigos, e na sucessão de outro, o saudoso João Ubaldo
Ribeiro - por extenso, João Ubaldo Osório Pimentel Ribeiro -,
o brilhante romancista de Sargento Getúlio e Viva o povo brasileiro,
só para citar os seus títulos mais aclamados, e que nos legou
também uma vasta produção de pequenas joias em crônicas e
contos – como uma obra-prima do gênero, Era diferente o dia de
matar o porco, selecionado pelo escritor Valdomiro Santana para
uma das melhores antologias de contistas baianos já publicadas.
Nascido em Itaparica em 23 de janeiro de 1941, filho primogênito de Maria Felipa Osório Pimentel e Manoel Ribeiro,
João Ubaldo viria a fazer da sua ilha um cenário de “navegação
infinita pela palavra”, no dizer daquela que com mais afinco e
propriedade tem se dedicado ao estudo de sua obra, a doutora
em Letras Rita Olivieri-Godet, titular de literatura brasileira na
Universidade de Rennes, na França. A bem dizer, João Ubaldo
dispensaria encômios protocolares, tão grande, forte e justo foi
o reconhecimento que granjeou em vida, e que certamente perdurará pela nossa história literária afora.
Sim, todos conhecemos a sua trajetória – que é, aliás, a de
um raro escritor a conseguir, em tempos de triunfo das nulidades
fugazes -, se impor sem concessões mercadológicas, e de forma
duradoura. Fabulosa, em todos os sentidos, sua obra é uma monumental contribuição à literatura brasileira, ao mesmo tempo
enriquecedora da última flor do Lácio, que ele tornou mais culta
e ainda mais bela, em várias edições, merecedoras de numerosas
traduções, premiações – entre elas a maior láurea da lusofonia, o
Prêmio Camões -, teses acadêmicas, livros e livros a mão cheia,
como os da já citada Rita Olivieri-Godet, Construções identitárias na
obra de João Ubaldo Ribeiro e Viva o povo brasileiro – a ficção de uma
336 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
nação plural, adaptações para o cinema, a televisão, o teatro e, até,
enredo de escola de samba.
Sucessor de Cláudio Veiga, a quem, no seu discurso de
posse, em cerimônia aqui realizada na noite de 22 de novembro
de 1912, louvou como “um homem de letras por excelência e
um apaixonado pelo que ensinava”, João Ubaldo Ribeiro foi,
nesta Academia, o quinto ocupante da Cadeira número 9, cujo
patrono é Antônio Ferreira França, nascido em Salvador em
1771, e falecido em 1848, quando a Bahia lhe demonstrou um
apreço incomum, ao comparecer em peso ao seu funeral, tornado um acontecimento extraordinário. Médico e professor de aritimética, álgebra e geometria no Colégio da Companhia de Jesus,
Antônio Ferreira França contribuiu para o alto grau do ensino a
que tinham acesso os jovens baianos daquele tempo. Ministrou
Aulas Régias no Liceu Provincial e na Faculdade de Medicina, e
foi interlocutor de um discípulo e cliente, o escritor Caetano Lopes de Moura, que ajudou a se curar de uma pleurisia. Assim que
se recuperou dessa grave doença, Caetano Moura partiu para
a Europa, onde teve uma existência romanesca e de aventuras.
Soldado e biógrafo de Napoleão, ele escreveu e publicou seus
livros na França. Mesmo considerado por Sílvio Romero “um
dos nossos notáveis prosadores”, a crônica literária passou uma
esponja em seu nome, como registrou Cláudio Veiga aqui, em
seu discurso de posse, com a autoridade de autor de uma biografia desse hoje esquecido escritor baiano.
Coube a um descendente do mestre e médico de Caetano
Moura ser o fundador da cadeira a que terei assento nesta egrégia
Casa, como o seu sexto ocupante. O primeiro a ocupá-la, portanto,
foi José Alfredo de Campos França, figura de grande projeção na
sociedade baiana do começo do século vinte. Nascido em 19 de
março de 1865, Campos França bacharelou-se em Direito em 1894.
Ainda estudante, tornou-se adjunto de Psicologia na antiga Escola
Normal, onde, em 1905, viria a ser catedrático de História do Brasil. Antes disso, em 1897, conseguira, por concurso, ser nomeado
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
professor substituto na Faculdade de Direito, na qual, em 1899, é
promovido a catedrático de Direito Internacional, sendo, no ano
seguinte, transferido para a cátedra de Direito Civil.
Paralelamente às suas atividades no magistério, José Alfredo
de Campos França desenvolvia intensa carreira política, que começou como deputado estadual, cargo que exerceu de 1895 a 1904.
Em 1905 teve a desdita de ser vitimado por uma hemiplegia, que
afetou o seu lado direito. Mas não se deixou derrotar pela paralisia,
mantendo-se em cena bravamente, em dois mandatos no Senado
Estadual - surgido com a Proclamação da República e extinto com
a Revolução de 1930 -, e outro na Câmara Federal. Em resumo: foi
com o seu saber jurídico e a sua bagagem parlamentar que Campos França, considerado por Rui Barbosa uma das mais eminentes
figuras do seu tempo, chegou à Academia de Letras da Bahia. Ele
faleceu em 1923, sendo aqui sucedido pelo também catedrático na
Faculdade de Direito Edgar Ribeiro Sanches, descrito por Demóstenes Madureira de Pinho como um homem de pensamento, e de
excepcional cultura, cuja capacidade de transmitir conhecimentos
e de escarvar a inteligência do discípulo fazia dele um modelo de
mestre, cujas lições não terminavam nas aulas, mas continuavam
nas conversas, nos encontros casuais, nas palestras improvisadas.
Nascido em Salvador no ano de 1891, Edgar Raggio Ribeiro Sanches era tido como um orador sensível à magia do estilo, cujos discursos entusiasmava os jovens. O que certamente o
deixava empolgado, como no trecho de um deles, que cito:
Falar à mocidade é, sem dúvida, uma das maiores alegrias
do homem. Dizer aos que vieram depois de nós a lição
da nossa experiência é míster dos mais gratos ao coração.
Clamar aos ouvidos inexperientes dos que estão a subir a
mais bela vertente da vida, os que estão a galgar os cimos
alagados da claridade do ideal, os ensinamentos que recolhemos no curso da nossa própria existência é este um dos
mais nobres labores.
338 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Tão eloquente tribuno haveria de ser levado pela política
à então capital do país, o Rio de Janeiro, onde, na década de
1930, representaria a Bahia na Câmara Federal. Na Constituinte de 1933, compôs a bancada baiana com os deputados José
Joaquim Seabra, Marcos dos Reis, Medeiros Neto, e os membros desta Academia Magalhães Neto, Aloísio de Carvalho Filho e Homero Pires. Entre os seus destaques parlamentares
figura um discurso polêmico proferido na véspera da Semana
Santa de 1934, quando, a propósito da referência ao nome de
Deus no preâmbulo da Constituição, emitiu conceitos condizentes com a sua condição de incréu, o que resultou em muitos
apartes.
E pior: sua oração não foi transcrita nos anais
da Constituinte. Também não teria sido bem aceito um estudoque escrevera como parecer a um projeto legislativo que mandava dar ao idioma falado no Brasil a denominação de língua
brasileira, que, ao contrário do livro de Luís Viana Filho – A
Língua no Brasil -, e um trabalho de Artur Neiva sobre o mesmo
assunto – Estudos de Língua Nacional -, não viria a merecer dos
especialistas referências favoráveis.
Edgar Raggio Ribeiro Sanches faleceu no Rio de Janeiro em
1974. Foi sucedido nesta Casa pelo cientista social e humanista Antônio Luiz Machado Neto, mestre da Filosofia do Direito e da Sociologia, disciplinas que o tornaram um nome nacional.
Nascido em Salvador em 1930, Machado Neto teve uma
existência breve, mas plena de realizações. Professor da Universidade Federal da Bahia, e da Universidade de Brasília (entre os
anos de 1962 e 1965), destacou-se no cenário cultural baiano por
sua intensa atividade de pesquisador e escritor. Suas pesquisas
científicas e análises da vida intelectual renderam-lhe inúmeros
livros, artigos em jornais e revistas de ciência e cultura nacionais
e estrangeiras, participação em congressos no Brasil e no exterior. Era Machado Neto ainda um estudante de 22 anos quando
publicou o seu primeiro livro, Dois Aspectos da Sociologia do Conhecimento, tido e havido como uma das primeiras contribuições
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
brasileiras a esse novo setor da Sociologia. E até aos 28 anos
publicaria mais quatro títulos: Marx e Mannhein, Sociedade e Direito
na Perspectiva da Razão Vital, Para uma Sociologia do Direito Natural,
e Filosofia da Filosofia – Introdução Problemática da Filosofia. E não
parou por aí.
Sua produção foi extensa, chegando a cerca de 30 livros,
entre os quais se inclui a sua tese apresentada para o concurso
de Titular de Sociologia, intitulada Estrutura Social na República
das Letras. Outro seu legado aos interessados na nossa história
literária é o ensaio A Bahia Intelectual (1900-1930). Pensador moderno, Machado Neto era avesso aos exercícios estilísticos, que
chamava de “ouropéis da erudição retórica”, contra o que se
insurgiu até em seu discurso de posse nesta Academia, em 31
de maio de 1973, quando o acadêmico José Calasans Brandão
da Silva fez-lhe as honras da Casa. Aqui, teve como sucessor
Cláudio de Andrade Veiga, que foi recebido por Hélio Simões
em 18 de maio de 1978.
Doutor em Letras e Professor Emérito da Universidade
Federal da Bahia, Cláudio Veiga nasceu em Salvador no dia 28
de maio de 1927. Ele estudou na Sorbonne e no Instituto de Filologia de Estrasburgo, aperfeiçoando-se em Língua e Literatura
francesas, às quais dedicou boa parte de sua obra, vindo a publicar uma antologia bilíngue de poesia, muito bem recebida em
Paris por consagrados escritores como Maurice Druon e Jean d’
Ormesson, o mesmo Jean d’ Ormesson que é hoje, aos 88 anos,
o decano da Academia Francesa, e uma celebridade no mundo
das letras em seu país. Do interesse francófono de Cláudio Veiga
destaca-se ainda o seu livro Um brasilianista francês, cuja primeira
parte é dedicada a Philéas Lebesgue, que no começo do século
XX foi o principal divulgador da literatura brasileira na França. Lesbeque se correspondia com nossos escritores, de norte
a sul, traduzia poetas (Manuel Bandeira, Guilherme de Almeida
e Mário de Andrade, por exemplo), e ficcionistas como José de
Alencar, Coelho Neto e o baiano Xavier Marques.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
É bem alentado o currículo do quarto ocupante da Cadeira
número 9, tanto pela sua produção literária quanto pelas funções
que exerceu, a saber: diretor do Instituto de Letras da UFBa, substituto eventual do reitor daquela instituição, presidente da Associação Brasileira dos Professores Universitários de Francês, membro do Conselho Estadual de Cultura, membro desta Academia
de Letras, que presidiu por 26 anos seguidos. Igualmente dignos
de nota são os títulos honoríficos que recebeu, na França, em Portugal e Bahia, onde, por duas vezes, lhe foi conferida a Ordem do
Mérito, como Comendador e Grande Oficial.
Agraciado pela Academia Francesa com o Grand Prix de
Rayonnement de la Langue Française, Cláudio Veiga recebeu
também o Troféu Francisco Igreja, da União Brasileira de Escritores, e o Prêmio Nacional de Ensaio, da Academia Brasileira
de Letras.
Sua rica bibliografia inclui trabalhos como Castro Alves
Guia da Catedral, Sete Tons de uma Poesia Maior - um ensaio sobre o simbolista Arthur de Salles -, e Poetas e Prosadores na Bahia,
aos quais se somam suas contribuições aos estudos de literatura
comparada, de que o livro Camões e Ronsard é um bom exempo.
Uma parte significativa do que Cláudio Veiga escreveu
teve acolhida em editoras do eixo Rio-São Paulo, como Record,
Tempo Brasileiro, Topbooks, Ática e FTD, despertando as atenções de críticos importantes, como Afrânio Coutinho – que o
chamava de mestre -, e Wilson Martins – que louvou sua extraordinária e sólida cultura humanística.
“Sua obra, não pequena, permance importante e atual”,
lembrou João Ubaldo Ribeiro, ao ser empossado aqui, na já referida noite de 22 de novembro de 2012, quando foi recebido pelo
acadêmico Joaci Góes. “À frente desta Academia Cláudio Veiga
foi um trabalhador infatigável e devotado, que deixou um legado
talvez inestimável”, frisou Ubaldo.
Com a morte de Jorge Calmon, de quem era muito amigo,
em 18 de dezembro de 2006, Cláudio Veiga renunciou a seu últi►► 341
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
mo mandato, quando ainda faltavam dois anos para terminá-lo.
Foi então substituído pelo vice-presidente, Edvaldo Boaventura.
Reconduzido para uma nova gestão, Boaventura presidiu a renovação dos Estatutos, que limitou o mandato a 2 anos, com
apenas uma recondução, e retirou a exigência de se residir em
Salvador para ser membro efetivo desta Casa.
Senhoras e Senhores,
Não poderia fechar este histórico das eminentes figuras
que aqui me antecederam sem um preito àquele que me coube
suceder.
Ele me chamava de compadre. Por um bom tempo convivemos entre bares e lares do Rio de Janeiro, e - às vezes tendo
outro tipo inesquecível entre nós, o gaúcho Moacyr Scliar -, participamos de algumas das mesas mais animadas da minha vida de
palestrante. Três delas foram memoráveis: no Fórum de Ciência
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no Salão do Livro de
Paris e na Feira do Livro de Frankfurt. Com o passar do tempo,
nossos encontros foram rareando. Mas de vez em quando nos
falávamos ao telefone, ou nos correspondíamos via internet. Na
última vez que lhe escrevi, perguntei quando era que a gente ia se
reencontrar, para dar umas boas risadas. Ele me respondeu que
iria voltar a frequentar a Academia Brasileira de Letras para convivermos mais. Não demoraria a estar lá. Para ser pranteado.
Às 8 horas da manhã de 18 de julho de 2014, o telefone
toca. Susto. Quem e o que poderia ser, tão cedo? Era uma repórter de uma rádio de São Paulo, que, mal diz “Bom dia”, detona:
“João Ubaldo Ribeiro acaba de morrer. O que o senhor tem a
dizer sobre isso?” Não! Ele era 4 meses e 10 dias mais novo
do que eu. Tal infausto só podia ser uma injustiça divina. Ato
contínuo, chamo um táxi e me ponho a correr para o velório, na
Academia Brasileira de Letras, na qual ele ocupava a cadeira 34
desde 8 de junho de 1994, quando ali foi recebido pelo também
baiano Eduardo Portella, de cuja saudação pincei estas linhas
precisas: “A obra de João Ubaldo recolheu os inúmeros tempos
342 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
da nossa História e os reconstruiu. Juntou o passado ao futuro e
deixou o presente perpassar esse interminável horizonte que vai
e vem do mato ao mar”.
Agora, era da Casa de Machado de Assis que ele iria partir
para a tal da última morada. De cara, avisto, vestida de preto e
aos prantos, a moça de Birigui, no interior de São Paulo, que
João Ubaldo conheceu na cidade de Natal, no Rio Grande do
Norte, onde ela estava morando. Foi durante um encontro de
escritores nordestinos, para o qual nós dois fomos convidados.
“Fui testemunha ocular do começo de tudo”, eu disse a Berenice, ao abraçá-la. E aí vi os seus olhos contristados se iluminarem: “Menino, e eu não me lembro?”, ela me respondeu, entre
lágrimas e risos. Naquele momento tão doloroso restou-me o
consolo ter sido capaz de fazê-la sorrir.
Comove-me recordar ainda, aqui e agora, o último romance de João Ubaldo, O albatroz azul, que envolve três temas
universais: vida, morte, renascimento. Deslumbrante do título
ao ponto final, O albatroz azul é uma pintura, pincelada por um
texto sonoro, luminoso – sim, com a luminosidade da paradisíaca ilha de Itaparica -, num dos mais belos livros já escritos em
língua portuguesa, e que proporciona um raro prazer estético e
existencial.
Um trecho:
Velho como está, então lhe é possível lembrar tudo do instantinho em que nasceu. Foi menos que um relâmpago, foi
uma faísca voadora que sumiu sem chegar a cintilar, uma
fresta entreaberta e fechada simultaneamente, com nenhuma direção. Mas ele já viveu o bastante para estar seguro de
que, naquela passagem, soube tudo – passado, presente e
futuro, os três embolados, sem antes nem depois.
Saudades eternas, D. João I e único, no reino das letras
deste mundo.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
*****
Morremos com os mortos.
Eles partem e com eles nos levam.
Nascemos com os mortos.
Eles retornam e consigo nos trazem.
Saudades de quem me recitou estes versos de T. S. Eliott
ao telefone, na tarde de 23 de julho de 2006: aquele que, no Ginásio de Alagoinhas, me apresentou às obras de Jorge Amado,
Graciliano Ramos e Monteiro Lobato. Seu nome: Carloman Carlos Borges, um professor de matemática e geografia que amava a
literatura, e que iria dedicar a maior parte de sua vida à Universidade Estadual de Feira de Santana. Ele, que já se foi, aqui retorna trazendo Jorge, Zélia, James, Calazans Neto, Hélio Pólvora, Guido
Guerra, Consuelo Pondé de Sena, Sônia Coutinho, Marcos Santarrita, Ildázio Tavares, David Salles, Ariovaldo Matos - a quem
muito devo, assim como ao hoje ilustre membro desta Academia,
o poeta e ensaísta João Carlos Teixeira Gomes, o Pena de Aço. Ari
e Joca me adestraram na arte de escrever. Foi no Jornal da Bahia,
onde ingressei pelas mãos de seu dono, João da Costa Falcão, a
pedido de um amigo dele de Alagoinhas, um militante comunista
chamado Mário Alves. Antes que alguém aqui se benza dizendo
“Comunista! Cruz, credo!”, vos direi: falo de um santo homem,
o meu anjo da guarda, que me trouxe do interior para a capital, e
que, mais do que um emprego, me arranjou um destino. Vestido
com um terno branco, como se estivesse indo à missa, ele pagou
a minha passagem de trem - um trem tão bonito que se chamava
Martha Rocha -, o táxi da estação da Calçada à Praça Cayru e o
bilhete do Elevador Lacerda, e, na Cidade Alta, marchamos a pé
até o escritório de João Falcão, que de longe reconheceu a voz de
quem chamava por ele. – É você, Mário? – João Falcão perguntou, lá de dentro. E logo fui entregue ao poderoso empresário,
que, sem prescindir da companhia do seu amigo Mário Alves, me
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
levou ao seu jornal, lá me deixando aos cuidados do ficcionista e
dramaturgo Ariovaldo Matos, o editor-chefe, que por sua vez me
passou ao poeta João Carlos Teixeira Gomes, o chefe da reportagem geral. Ari, Joca, e mais outro poeta, Jeovah de Carvalho, chefe
da reportagem policial, e o talentoso repórter Humberto Vieira
da Cruz - um primo meu que, por incrível que pareça, só viria a
conhecer naquela Redação -, me prepararam em pouco tempo
para ir bater na porta do jornal Última Hora, de São Paulo, entrar
e lá ficar, não sem, diga-se, a força de dois baianos, Carlos Coelho
e Walfredo Girardi Reis.
Memória! Junte na sala do cérebro os inumeráveis bem
amados. Que de passados e presentes afetos esta noite se paramente, como quereria o poeta Vladímir Maiacóviski, que parodio,
sem cerimônia. Portanto, Sra. Dona Memória, junte aqui Nerina
e Zica Torres, os que me tiraram do cabo de uma enxada para estudar em Alagoinhas, a terra da laranja, onde, em tempo de luzes
verdes e sonhos dourados, eu viria a fazer amigos para sempre,
como Josival Vaz Fagundes, Kerdoval Macedo, Valdemar Arlego Paraguassu, Aristóteles Freitas Costa, a prima Maria Gesilda
da Cruz, filha de Alzira, irmã de Giése, aos quais também muito
devo. Assim como a Maria e Mário Gomes – os pais do poeta
Goulart Gomes -, que me deram guarida em sua casa aos fundos
do edifício número três da rua João de Deus, no Pelourinho. Indo
bem ao fundo da memória, vejo aquela que me ensinou o beabá
- Dona Durvalice, minha mãe, que aqui está, viva ela -, à qual se
junta a professora Serafina, que, na sua escola risonha e franca, ensinava os meninos a cantar hinos e declamar poemas patrióticos.
Já Dona Teresa gostava mesmo era de uma boa prosa, que nos
fazia ler em voz alta - “Verdes mares bravios da minha terra natal,
onde canta a jandaia na fronde da carnaúba”.
Igualmente reverenciável é o poeta e Meritíssimo Juiz
de Direito Eurico Alves Boaventura - primo do acadêmico
Edivaldo Boaventura -, que chegou a Alagoinhas no ano de
1959, para ensinar uma cidade que dormitava ouvindo estrelas
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
a ler a poesia moderna, da qual ele era amigo íntimo, a ponto
de trocar versos com alguns de seus ícones, como Manuel
Bandeira e Jorge de Lima.
Portanto, que esta noite se embriague de prosa, poesia e
virtudes às glórias do passado, presente e futuro das letras e artes
dessa terra que me deu régua e compasso – a mesma terra de
Gil, Caetano, Gláuber, Geraldo del Rey, Caymmi, Othon Bastos,
Capinan, Myriam Fraga, Florisvaldo Mattos, Ruy Espinheira Filho, Orlando Sena, Muniz Sodré, Tomzé, Carlos Pitta, Cajazeira,
Aleilton Fonseca, Aramis Ribeiro Costa, Carlos Ribeiro, Luis Pimentel, Cyro de Mattos, Adelice Souza, Aninha Franco, Gláucia
Lemos, Antônio Brasileiro, Rita Santana, Roberval Pereyr, Risério,
Fernando da Rocha Peres, Paulo Costa Lima... tantos, tantos.
Por fim, mas não por último, celebro mais: os leitores,
professores, estudantes, a imprensa em geral e a nossa crítica literária em particular, de José Olímpio da Rocha a Jorge de Souza
Araújo, de Cid Seixas a Gerana Damulakis.
Muitíssimo obrigado, querida e imortal Bahia.1
Antônio Torres é natural do Junco, hoje Sátiro Dias-BA, jornalista, ensaísta e ficcionista, autor de livros consagrados como Essa terra (1976),
Meu querido canibal (2000), Meninos, eu conto (1999) e O nobre sequestrador
(2003) entre outros. Sua obra já foi traduzida para vários idiomas e
países. Entre outros, recebeu o título de Chevalier des Arts et des Lettres
(França, 1998), o Prêmio Machado de Assis (ABL, 2000), o Prêmio
Passo Fundo (2001) e o Jabuti (2007). Pertence à Academia de Letras
da Bahia e à Academia Brasileira de Letras.
Discurso de posse do acadêmico Antônio Torres na Cadeira número
9, proferido em sessão solene, no Salão Nobre da Academia de Letras
da Bahia, em 21 de maio de 2015.
346 ◄◄
DISCURSO DE RECEPÇÃO
A ANTÔNIO TORRES
D’Essa terra para outras terras
ALEILTON FONSECA
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra,
E as promessas divinas da esperança...
(Castro Alves)
Caríssimo Escritor Antônio Torres:
E
stes versos de Castro Alves lhe serviram de batismo, na sagração da palavra de um gênio lírico pronunciada por seus
lábios de menino, diante – como hoje – de uma plateia, num
momento ímpar e singular. São os versos declamados por um
longínquo menino do Junco, em praça pública, em dia de festa,
escolhido pela professora Dona Serafina, ainda viva e quase centenária, que – sem o saber – encaminhava o seu aluno, num ritual
perfeito – ao destino das letras, ao mistério das palavras. Dona
Durvalice e Seu Irineu bem que gostavam de ver o filho brilhar.
O escritor de hoje o traz no coração e na alma, e guarda na memória os versos eloquentes, em apreço ao infante de outrora:
“Auriverde pendão de minha terra.”
Eis aí, mestre Antônio: ecoam estes versos por mais de seis
décadas que o distanciam e aproximam daquele instante mágico.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Ouçamos a voz do menino a quem agora recordamos solenemente. Escute ressoarem naquela praça o timbre da pronúncia, o ritmo das sílabas, o eco das rimas. Experimente de novo a luz dos
olhos que acolhiam todo aquele povo ao redor. O menino, de uns
oito anos de idade, está aqui hoje, em seu ser, pois o escritor já
constava no seu destino.
O menino do campo, que sabia de cor o caminho da roça,
para quem os auriverdes pendões de sua terra floresciam nas
plantações de milho, folhas verdes e espigas amarelas, numa simbologia de fartura ou escassez – e promessas de bom porvir. Do
alto das plantações, espraiadas entre pedras e mandacarus, nas
colinas do território do Junco, os seus olhos observavam a brisa
do Brasil que beija e balança as folhagens ao vento, destacando
a silhueta sinuosa das estradas. Sabia o menino que aqueles eram
os caminhos para o mundo? No íntimo, talvez sem o saber, intuitivamente já o sabia. Eram aquelas imagens admiradas do alto
os estandartes que a luz do sol encerra. Era para além das linhas
e curvas que se estreitavam no horizonte, que acenavam no silêncio dos campos “as promessas divinas da esperança...”.
Tem razão Machado de Assis, que lhe deixou a própria cadeira de herança: o menino é o pai do homem. Persistem na formação do homem Antônio Torres aqueles primeiros passos no
terreno da palavra literária, onde o que se ara, se aduba e semeia
são versos e frases que se escrevem, se declamam, se narram e se
ouvem, para alimentar a alma e dar sentidos mais profundos ao
ato humano de existir.
O futuro prosador plantou e sentiu germinar em si o sonho de um dia ser como o poeta. Proferida em praça pública,
a sua voz passou, sem que ninguém pusesse em ata, a ser signo
de uma autoestima plural, atraindo vaticínios sobre um destino
que haveria de ser brilhante. Naquele momento estava celebrado
o compromisso com seu ethos local. Tornava-se o porta-voz de sua
gente, na busca de projetar-se para além de suas estradas, e cercas
e pastos e matagais. O seu desiderato era seguir as estradas, num
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
ir e vir incessante, fixando-se num entre-lugar de discurso, a fim
de dizer ao país e ao mundo da existência daquele território de
sonhos, fixando-o como um ponto sensível na geografia literária
do Brasil. Do Junco ao mundo, eis sua trajetória fecunda, escrevendo-o nos entrechos de seus enredos, grafando-o nas raízes e
na fala das personagens, como locus de origem, de vivências, de
resistência e, sobretudo, de revisitação simbólica.
O escritor deixou o Junco? Não. Antônio Torres jamais
deixou o Junco, pois que essa terra nunca o deixou. Quanto mais
longe, estava ele mais próximo, pelas memórias vertidas em palavras, narrativas, depoimentos, imagens e decifrações. O escritor
saiu do Junco, para estar mais intimamente enraizado em suas
origens. Partiu em viagens para espalhar essa terra por todos os
lugares onde seus romances encontraram leitores e viajantes dos
enredos, e todos eles visitaram o lugar – através de suas histórias,
e para além da geografia, como ícone de um mapa mágico de
cidades de palavras: Junco, Comala, Macondo.
Eis as trilhas de sua peregrinação: do Junco a Inhambupe,
eram passeios esperados e vividos no seio da alegria familiar.
Do Junco para Alagoinhas, foi o primeiro passo para além das
fronteiras da infância, pois seu amor à escola era já visceral e incontornável. Mais tarde, em Salvador, foi seu advento no jornalismo, como já indicavam suas habilidades para a leitura e a produção de textos. Não sem antes ter sido o escrivão-mor de sua
terra, traduzindo no papel de carta as palavras, os sentimentos,
os queixumes, os sonhos e as esperanças daqueles que buscavam
manter os vínculos com os que haviam partido do lugar, tempo
de muitas partidas sem retorno.
O apelo do sul não se fez demorar. Aos vinte anos, o jovem promissor tomou a metrópole de São Paulo como destino,
preparo e semeadura. Das paisagens de luz intensa do sol e azul
das nuvens, para a paisagem cinzenta da garoa insidiosa e arranha-céus impetuosos. O homem empreendia seus embates e sua
aprendizagem, processava as experiências, aquisitava linguagens
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
e tomava consciência acerca da complexidade de um país em
processo de modernização tardia e conservadora, marcado por
profundas desigualdades. Era tempo de crise, em plenos anos de
chumbo da ditadura, onde as lutas pela liberdade e pela redemocratização alimentavam o sonho de um Brasil melhor. São Paulo,
lugar de escolhas. Do jornalismo para a publicidade, e daí ao seu
front definitivo que havia mesmo de ser a literatura.
O Rio de Janeiro seria, mais adiante, o cenário eleito de
sua vida em família, com sua dileta esposa Dra. Sônia Torres,
e seus filhos Tiago e Gabriel. O lugar da vida literária e cotidiana: as caminhadas nos calçadões, o convívio com amigos e
colegas jornalistas e escritores, as revelações das ruas históricas
e das novas paisagens, os lançamentos nas livrarias, palestras e
conferências nas instituições culturais, as universidades onde foi
escritor visitante. E dali para os lugares de todo o Brasil, e para
os lugares do mundo – que os convites e as homenagens sempre
pontilharam sua agenda. Junco-Salvador-Rio de Janeiro, e viceversa – seu mapa afetivo de viagens sem termo.
No Rio, de primeiro, foram longos anos de vivências. E, mais
recentemente, fixou moradia sossegada com belas vistas para as colinas de Itaipava, na imperial cidade de Petrópolis. Eis o cenário de
sua vida literária cada vez mais intensa, a carreira sempre em ascensão, até a consagração maior da Academia Brasileira de Letras, na
cadeira 23, que tem como fundador e primeiro titular Machado de
Assis e patrono José de Alencar; uma cadeira que, durante 70 anos,
consagrou os baianos Octavio Mangabeira, Jorge Amado e a baiana
adotiva Zélia Gattai. Uma cadeira que continua, portanto, com brilho baiano e consagração nacional.
O homem fez-se verbo. No ano de 1972, no cenário de
anos difíceis, em São Paulo, o mundo literário foi surpreendido.
Aparecia naquele ano um romance de título longo e curioso:
um cão uivando para a lua. Estreava um romancista novo, num
momento de pressas e urgências, quando o gênero do conto e
os contistas ocupavam o centro da cena e o interesse de leitores,
350 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
críticos e páginas literárias. O romance foi bem recepcionado
pela imprensa, despertou interesse em Jorge Amado que lançava
seu romance Tereza Batista Cansada de Guerra na mesma noite.
Naquele dia dividiram as páginas dos jornais dois romancistas
baianos: o consagrado e o estreante, aguçando a atenção dos
leitores curiosos.
Um cão uivando para a lua foi aclamado a revelação do ano.
Bem ao espírito da época, é um romance de linguagem híbrida,
com forte acento jornalístico, numa dialética de efeitos, entre
os dados da realidade e o jogo da ficção, ora enredo ora reportagem. A narrativa inquieta o leitor, que o lê na fronteira entre
a condição atual do narrador, encerrado numa clínica de tratamento mental, e os recortes narrativos de sua trajetória pessoal
e profissional. A seu modo engenhoso, a narrativa denuncia, nos
entrechos e entrelinhas, as dificuldades de se exercer a liberdade
de pensamento e expressão, numa sociedade que soçobra sob
os poderes de grupos sociais dominantes. Um romance que
problematiza as relações cotidianas nos bolsões urbanos, sejam
centrais ou periféricos, com enredo entrecortado, descontínuo
e agônico, conduzido por um narrador de dicção jornalísticoficcional, cumprindo, aliás, um traço peculiar da ficção urbana
dos anos 70.
Foi uma estreia de vulto, que chamou a atenção de leitores, escritores, críticos e resenhistas da imprensa especializada,
com excelente repercussão nas páginas literárias dos grandes
jornais. De certa forma, este romance representa o ambiente da
época, mostra a asfixia do cenário urbano, onde se movimenta o
narrador, jornalista, lúcido e louco a um só tempo, e deixa-nos
sentir que o exercício do discurso pleno escora-se nos relatos de
experiências pessoais problemáticas, sob atmosferas sociais pesadas, em relações desestruturadas, metaforizando-se, mesmo,
essa narrativa, como a fala de “Um cão uivando para a lua”.
Após a estreia bem-sucedida, seguiram-se mais dez romances, uma coletânea de contos e dois livros não-ficcionais, o
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
festejado ensaio/apresentação sobre o Rio, intitulado O centro de
nossas desatenções, e um livro sobre a trajetória do circo no Brasil.
A par de sua atuação intensa e sua presença nas páginas literárias,
sua fortuna crítica não para de se acumular, sobre as seguidas
edições e reedições de seus livros, à luz do brilho de suas participações públicas em eventos e debates, diante de estudantes,
universitários, pesquisadores e leitores em geral, exercendo com
eficiência e desprendimento a função pública do escritor que
trabalha pela cultura de seu país. No estrangeiro, as traduções
de seus livros ultrapassam fronteiras, e chegam já a vários países,
em mais de uma dezena de idiomas, acumulando leituras, estudos, homenagens e títulos de reconhecimento, como o Chevalier
des Arts et des Lettres, que a França lhe outorgou. No Brasil, sua
obra recebeu prêmios de alto valor, como o Pen Clube, o Zaffari
& Bourbon, o Jabuti e o consagrador Prêmio Machado de Assis,
da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua obra.
Os estudos críticos e ensaísticos acerca de sua escrita se
multiplicam, se adensam em artigos, dissertações e teses de doutorando em dezenas de universidades no Brasil e também no
exterior. Uma reunião de estudos sobre sua obra se destaca, com
um título em si bastante representativo dos temas de suas narrativas. Trata-se do livro Espaço Nacional, fronteiras e deslocamentos
na obra de Antônio Torres, organizado pelos professores doutores
Cláudio Cledson Novaes e Roberto Henrique Seidel, publicado
pela Editora da Universidade Estadual de Feira de Santana, em
2010, e lançado no evento “Narrativas e viagens do Junco ao
mundo: Setenta anos de Antônio Torres”, ali realizado em homenagem à trajetória do grande romancista, com a participação
de vários estudiosos, que trataram de diversos temas e aspectos
de sua obra.
Em geral, considerando as diversas abordagens de sua
obra ficcional, podemos vislumbrar na base de seus romances
três linhas de força fundamentais: o romance de representação/
problematização da experiência urbana, que compreende também
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
o drama de personagens migrantes nordestinos (Um cão uivando
para a lua, Os homens dos pés redondos, Um táxi para Viena d’Áustria,
Balada da infância perdida), o romance de representação/interpretação das memórias e vivências de formação (Essa terra, Adeus,
velho, Carta ao bispo, O cachorro e o lobo, Pelo fundo da agulha; Meninos,
eu conto); e o romance de representação/ressignificação da história
(Meu querido canibal e O nobre sequestrador). São perfis não estanques
e que se justapõem ou se interpenetram, com ênfase maior para
um dos aspectos em questão. Os homens dos pés redondos (1973),
por exemplo, reflete sua experiência de 3 anos em Lisboa e Porto, em Portugal, sua tomada de conhecimento acerca de uma
sociedade esfacelada pela ditadura de Salazar. Um romance de
tons sociais, culturais políticos e históricos – aliás, as linhas básicas que se amalgamam, em maior ou menor grau, no conjunto
de sua ficção.
O Junco é uma história, e Antônio Torres é o romancista
d’Essa terra. Em 1976, surgia o romance emblemático, trazendo
ao escritor o reconhecimento que iria consolidar seu nome no
panorama da ficção brasileira. Continuamente reeditado, traduzido para vários idiomas, objeto de estudos no país e no exterior, o romance tematiza, através da experiência do protagonista
Nelo, o drama da migração nordestina para São Paulo e suas
consequências psicológicas e sociais. Sob a ótica do narrador
Totonhim, o irmão mais novo, conhecemos a trajetória do protagonista e da sua família sertaneja, nos desdobramentos de um
enredo marcado pela desintegração e pela crise, que mostra a
situação do migrante destruído nas engrenagens da metrópole, em relações marcadas por rejeição, preconceito, exploração
e expurgo. Essa terra engasta-se na dura realidade da migração
nordestina para São Paulo, movimento bastante comum durante
o segundo e terceiro quartel do século XX.
A migração é um fenômeno universal, assim como o desenvolvimento desigual dos lugares. Os dramas do deslocamento, do desenraizamento, da diáspora, da perda de referências,
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
fazem de Essa terra um romance universal, pondo em relevo a
feição particular que assume em território brasileiro, na trajetória sertão/metrópole, como uma viagem de ida e volta, no deslocamento dos corpos e das vivências, e na transição de valores,
os comportamentos, os imaginários e as condições de vida.
O romance narra, sob certas nuanças, a história do Junco,
como “um lugar esquecido nos confins do tempo”. O narrador
lamenta, sem perder a hombridade: Vagaroso e solitário, o Junco sobrevive às suas próprias mágoas, com a certeza de quem já conheceu dias piores, e
ainda assim continua de pé, para contar como foi. E para contar a história
com conhecimento de causa, eis o escritor d’essa terra, conhecedor da experiência, assinalado em praça pública, como portador
da palavra para conformar e exprimir a identidade de seu lugar.
O processo de dissolução do sonho representado em
Essa terra culmina com a partida de Totonhim para São Paulo,
seguindo o mesmo caminho do irmão, sinalizando um novo
ciclo da história. De fato, vinte anos depois, o romance O cachorro e o lobo (1996) narra o retorno de Totonhim ao Junco
para rever o pai e resgatar outros aspectos da velha história,
sob uma nova perspectiva, em tempos modificados pelos ares
da modernização que, apesar de tardia e limitada, modifica o
cotidiano e os costumes do lugar. E surge o romance Pelo fundo da agulha (2006) para completar a trilogia do Junco, com o
narrador Totonhim, agora vivido e experiente, a remoer suas
crises, tentando costurar os desvãos das memórias. Trata-se de
um balanço de vivências e viagens, a tentativa de compreender
os enigmas do passado e vislumbrar a vida como foi e suas
possibilidades não concretizadas.
A trilogia capitaneada por Essa terra constitui um projeto
ficcional preciso, de grande força estética, ao tematizar um aspecto dramático da sociedade brasileira, representando causas,
circunstâncias, processo e efeitos do êxodo rural nordestino. Assim opera a inclusão de uma geografia física e humana remota à
cena principal da narrativa do último quartel do século XX.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
A trilogia preserva, ainda, nos entrechos das tramas, os
traços da cultura local, representados pelo imaginário e pela oralidade que, numa perspectiva peculiar, fixa uma visão de mundo
e diz muito da identidade sertaneja. Leva o leitor atento a enxergar mais profundamente a realidade dos excluídos, reconhecendo-os enquanto sujeitos e pacientes de um drama social, político e histórico. Uma escrita densa, de economia formal medida,
tecida por um romancista que consegue aliar precisão técnica à
ternura do relato, mantendo, apesar das tensões, uma camaradagem equilibrada com seus personagens.
Meu querido canibal: Este romance “é uma canibalização
da história e da literatura”. Palavras do romancista. “O índio se
chamava Cunhambebe.” “Um gênio militar, digamos logo. Com
suas armas rudimentares – flechas, arcos e tacapes – enfrentava
canhões...”. Palavras do narrador.
No ano 2000, esse romance surpreendeu o mundo literário, acrescentando nuanças novas à fortuna crítica e à
imagem do escritor. Um livro tempestivo e necessário, para
alertar e abalar as consciências, e ofuscar o verniz canhestro
da comemoração dos 500 anos de colonização luso-europeia
sobre as índias terras de Pindorama. A narrativa parte da ausência do elemento indígena no cotidiano, e recua até o século XVI, para retomar a Confederação dos Tamoios, reconfigurando-a através de uma reinterpretação crítica da História.
Em um texto híbrido, a narrativa amalgama ficção, história
e reportagem, para exumar o índio brasileiro da cova funda
da história oficial. Nesse romance, o discurso e a pesquisa
desmontam a versão do colonizador, trazendo à tona de forma heroicizada o índio Cunhambebe, líder tupinambá na luta
contra o massacre colonizador e o apagamento cultural de que
foi vítima o seu povo. Esse romance acaba de ser publicado
na França, no Salão do livro de 2015, em tradução de Dominique Stoenesco. A acadêmica Rita Olivieri-Godet desenvolve
estudos magistrais sobre a obra de Antônio Torres, referências
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
indispensáveis para sua análise e compreensão. Entre outras
belas explicações, ela conclui um artigo, afirmando:
Meu querido canibal rebela-se contra a recusa histórica da
autonomia da alteridade indígena. Produz sua própria visão dos fatos recorrendo a um fazer literário antropofágico
que suscita revisões da história e aponta as falhas da memória que levam à construção de uma identidade coletiva
excludente. Assim procedendo, atua no sentido de escrever e inscrever, no presente, a utopia de um outro projeto
identitário para a nação, aberto para a interação das atividades culturais, permeável ao encontro.
De fato, é uma excelente conclusão de estudo metódico
e percuciente, no qual a ensaísta identifica, analisa e explica os
elementos de composição do texto antropofágico de Torres, demonstrando os sentidos e intenções de seu projeto, e sua contribuição para uma revisão crítica da história, repondo a questão
do índio no centro do debate antropológico brasileiro.
E sobre o contista Antônio Torres? Meninos, eu conto. Este
livro reúne três contos que comportam dupla possibilidade de
leitura, entre memorialismo e ficção. Como num jogo de espelhos, os meninos personagens e o narrador adulto se refletem
na escrita e demarcam o seu distanciamento no tempo e a sua
proximidade afetiva. Na foto da contracapa Torres maneja um
estilingue, que simboliza o seu desejo de rever as imagens da
infância e adolescência vividas na sua pequena cidade natal. Segundo o autor, esses contos “têm como cenário um lugar esquecido nos confins do tempo” onde “os meninos dividiam o seu
tempo entre o trabalho na roça, junto com os pais, e o caminho
da escola, no povoado”. São histórias de meninos do interior,
ambientadas numa época em que cada lugarejo ficava isolado do
mundo, tendo como horizonte apenas uma estrada poeirenta,
por onde muitos seguiam para São Paulo e nunca mais voltavam.
O escritor afirma: “Estas histórias, portanto, são de outra era.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Mas ainda compartilho os sonhos, os sentimentos e os conflitos
desses meninos. Um dia eles e eu já fomos as mesmas pessoas.
Ou por outra: até hoje me sinto como se fosse um deles” .
O conto – “O dia de São Nunca”, por exemplo, – estabelece relações entre o espaço rural e o urbano, pois o menino protagonista mantém contato com três jovens da cidade que fazem
uma espécie de turismo no povoado. O menino exercita a imaginação, ensina e aprende, como portador do saber local e aprendiz
das novidades urbanas. Ele se esforça para compreender aqueles
jovens forasteiros e sente o esforço deles para compreenderem o
seu mundo. Para o menino, esses dois mundos agora se tocam,
como um novo horizonte em seus sonhos e esperanças.
Caro escritor Antônio Torres:
Nesta inesquecível noite de 21 de maio de 2015, todos
que aqui se acham presentes entraram, em algum momento de
suas vidas de leitores, em consonância com sua obra literária,
sentindo-se, portanto, chamados a compartilhar este ato, como
testemunhas de sua investidura neste sodalício.
Saudamos o romancista completo, ungido pelo brilho do
colar acadêmico, que reflete a luz de sua perícia criativa e exemplar. Todos nós sabemos o quanto o escritor Antônio Torres é
reconhecido e reverenciado pela Bahia e pelo Brasil. E asseguramos quão imensa manifesta-se a felicidade que nos embala os
corações, diante de sua posse nesta quase centenária companhia,
por onde passaram figuras máximas de nossa cultura, como João
Ubaldo Ribeiro, a quem você sucede à altura na gloriosa cadeira
de nº 9, que antes pertenceu ao nosso grande presidente Cláudio
de Andrade Veiga.
A vida literária é um ritual contínuo de sucessões, pois
que somos elos de uma corrente sem fim, que nos convoca a um
trabalho de construção da arte da palavra, como um único e interminável livro que representa a vida, a trajetória, a experiência
da imaginação humana ao longo das gerações. A cadeira 9 foi
fundada, há 98 anos, pelo acadêmico Campos França – e agora
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
ela passa a suas mãos, ato previsto no calendário da existência,
como todos os dias do futuro, conforme os paradigmas da vida.
Sua trajetória literária, laboriosa e criativa é motivo de júbilo para todos nós. Sua caminhada até aqui passou por muitos
momentos e lugares, e este é de fato seu porto ideal. Seja bemvindo, portanto, a sua casa para o convívio fraterno das letras.
Acredite, e ponha em ata: todo isso começou com os versos do
grande poeta da Bahia:
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra,
E as promessas divinas da esperança...1
Aleilton Fonseca é nascido em Firmino Alves-BA, criado em Ilhéus,
e reside em Salvador. Doutor em Letras, leciona na UEFS, Feira de
Santana. Já publicou cerca de 20 livros, entre os quais: As formas do barro
(2006), Um rio nos olhos (2012), O desterro dos mortos (2002), Nhô Guimarães (2006) e O pêndulo de Euclides (2009), O arlequim da Pauliceia (2012)
e Il sapore delle nuvole (Itália). Tem textos traduzidos em francês inglês,
espanhol, neerlandês, alemão e italiano. Pertence à UBE-SP, ao PEN
Clube do Brasil, à ALITA e à Academia de Letras da Bahia.
Discurso de recepção ao acadêmico Antônio Torres na Cadeira número
9, proferido em sessão solene, no Salão Nobre da Academia de Letras
da Bahia, em 21 de maio de 2015.
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DISCURSO DE POSSE
A Leitura como uma forma de felicidade
GERANA DAMULAKIS
Há aqueles que não podem imaginar o mundo sem pássaros; há aqueles que não podem imaginar o mundo sem água; ao que me refere, sou incapaz de imaginar sem livros um mundo.
Jorge Luis Borges
L
i muito, leio muito, estou sempre lendo, não saio de casa sem
um livro, espero que chamem a minha senha seja lá onde for,
lendo. Decidi ler há muito tempo. Assisti meus pais comporem a
vasta biblioteca da nossa casa aos sete anos. Foi uma construção
fascinante, tanto tijolo a tijolo, porque meu pai, o engenheiro Gerácimo Damulakis foi o criador da casa, mas livro a livro, e por tal
razão tenho uma falha enorme no meu cabedal de leitura – a literatura infantil. Não li Lobato, como os acadêmicos Aramis Ribeiro Costa e Luís Antonio Cajazeira Ramos. Li o Charles Dickens
de OliverTwist e David Copperfield. E li muito Cervantes, a ponto de
talvez ter aprendido, tal qual o Cavaleiro da Triste Figura, a olhar
para moinhos de vento e imaginar o que desejasse.
E comecei a escrever com a mesma idade. Mas a sensação
de que não poderia viver sem ler me tomou ao terminar o livro
Pedra Bonita, de José Lins do Rego, e fechá-lo com muita força,
dizendo alto: “É isso que eu quero: ler”.
A vontade de ir até o fim de tudo é uma característica
minha; portanto, um livro apenas de determinado autor com
vasta obra não me basta para pensar sobre sua literatura; preciso sempre adentrá-la e completá-la. Assim que, adolescente,
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
devorei Hermann Hesse, autor prolífico, e um dia o irmão de
minha mãe, meu padrinho, o jornalista Flávio Costa, companheiro do acadêmico João Carlos Teixeira Gomes no Jornal da
Bahia, considerando que todas as vezes que lá em casa chegava,
me encontrava lendo Hesse, disse para minha mãe: “Eliana,
não deixe ela ler Hermann Hesse, ela precisa ler os russos”.
Minha mãe não proibiu nada, claro, mas eu absorvi o conselho
e no dia seguinte comecei a minha jornada rumo à literatura
russa; afinal, estava ali à minha disposição a Obra Completa de
Dostoiévski, pela José Olympio, vários tomos em capa dura,
traduzidos do francês, por exemplo, por Raquel de Queiroz.
Levei três anos lendo os russos: Tolstói, Tchekhov, Turguêniev.
Anos depois, reli quase tudo, principalmente Dostoiévski, em
tradução confiável de meu amigo querido Boris Schnaiderman,
que me enviava os exemplares assim que eram editados na Coleção Leste, da Editora 34. Creio, como Júlio Cortázar, ser a literatura como um grande casarão com muitas janelas e de cada
janela, ao ser aberta, a paisagem se mostrará através de ângulos
diversos. Um dia abri a janela da literatura russa, já na última
década abri, também fascinada, a janela da literatura japonesa,
de Soseki a Kawabata e Junichiro Tanizaki, Yukio Mishima até
Haruki Murakami.
Visto em certo momento da minha vida, parece que há um
caminho claro: a adolescente leitora, que escreve poemas, que assina artigos no jornal do Colégio Marista. Mas a mesma adolescente
tira nota 10 nas 4 unidades do ano, ano após ano, em química e
em matemática. E eis que chegou o ano do vestibular. O professor Jaime Barros me deixava encantada com suas aulas sobre os
livros da lista, que eram 10, e em abril eu já havia lido todos e me
extasiado com Corpo Vivo, de Adonias Filho, com O Reduto, do
acadêmico Wilson Lins. Outro professor que me encantava era
o acadêmico Waldir Freitas Oliveira, de quem fui aluna duas vezes, no Marista e na UFBA. Na aula seguinte, entrava outro Valdir, o professor de Química, e sob o feitiço das letras e números,
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
encontrei a combinação de ambos nas fórmulas das substâncias
e dos compostos químicos. Na inscrição para o vestibular, selecionei o bacharelado em Química, não sem antes ser chamada à
sala do diretor, Irmão Aquiles, para ouvir dele a profecia certeira:
“Você vai errar, deveria escolher Letras ou Jornalismo. Você só
seguirá a carreira de química se for para escrever sobre química”.
Ora, não se escreve sobre química sem a prática da química.
Foram anos inesquecíveis no meu Instituto de Química
da Universidade Federal da Bahia. Anos felizes. Conheci, na fila
da matrícula, aquela que chamo de minha amiga da vida inteira,
Vanja Pereira Morais, e professores marcantes como Lourdes
Trino e Adelaide Amorim, de quem fui monitora em Análise
Química I, o professor Miguel Fascio e a beleza de sua fito-química e o professor Antônio Celso Spínola Costa que, um dia,
enquanto nós, alunos, realizávamos alguma tarefa dada por ele,
ouvi-o comentando com outra professora: “Vão dizer que é por
ela ser minha prima, mas o que posso fazer, apenas a prova dela
merece S” – naquele tempo, a nota máxima na UFBA era S. Não
vou usar de falsa modéstia, aquela conversa foi importante para
mim, afastou as dúvidas.
Graduada em Química, parti para Madrid. Fiz a pós-graduação no Instituto Juan de la Cierva, em Plásticos y Caucho, e
Ressonância Magnética do Carbono 13, na Universidad Autónoma de Madrid. E li muito Balzac, nos muitos volumes de AComédiaHumana comprados na maravilhosa livraria Espasa Calpe,
da Gran Vía. E a profecia de Irmão Aquiles foi cumprida. A
química no dia a dia de uma fábrica me pareceu insuportável,
só trabalhei 3 meses na FAVAB. As letras com os números das
fórmulas químicas já tinham sido suficientemente experimentadas. Era hora de voltar para minha UFBA: “Que tal apenas os
números?”, me perguntei. Comecei a cursar Economia. Durante
todas as fases – e a vida é cheia de fases, o importante é saber
conviver com elas, como dizia meu pai, continuei escrevendo. Já
não escrevia no meu caderninho de capa dura cor de vinho tinto,
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
com páginas cor de rosa, que meu pai me deu aos 8 anos para
os meus poemas. Passei a figurar em muitas antologias editadas
pela Shogun Editora e Arte, do Rio de Janeiro, intituladas assim:
Poetas Brasileirosde Hoje, A Nova Literatura Brasileira, Antologia Poética de Cidades Brasileiras, A Nova Poesia Brasileira, propriedade de
Christina Oiticica, mulher de Paulo Coelho.
Kairós, em grego antigo, significa o momento oportuno,
certo, ou supremo; na mitologia é filho de Chronos, deus do
tempo e das estações. Enfim, a seguir, o meu kairós: o cunhado
de meu irmão, André Kruschewsky, fez uma exposição de suas
telas. O catálogo trazia um texto assinado pelo acadêmico Carlos
Eduardo da Rocha, crítico de arte. Os pais de André, Tancinha
e Juarez Kruschewsky, sogros de meu irmão, portanto, fizeram
um jantar para o poeta. Na ocasião, o acadêmico Carlos Eduardo da Rocha interessou-se em conhecer meus poemas. Ele estimulou a edição em livro, foi meu prefaciador e assim o volume
Guardador de Mitos se tornou uma realidade.
Há um quarto de século frequento esta casa. Vim a convite desse saudoso acadêmico, poeta Carlos Eduardo da Rocha.
Daí em diante a Academia exerceu um papel importantíssimo
em minha vida, transformando-a. Algo que sentimos quando
se sabe, finalmente, que não se precisa mais buscar. Em seguida, o acadêmico James Amado foi o grande incentivador para
que eu escrevesse meu livro sobre a poesia de Sosígenes Costa,
inclusive foi James quem deu o título O Poeta Grego da Bahia,
que era como ele chamava o poeta de Belmonte, cujos versos
trazem muito da mitologia grega. Além disso, o acadêmico James Amado me apresentou ao poeta e ensaísta José Paulo Paes,
com quem travei grande amizade, não apenas pela admiração
em comum relativa a Sosígenes Costa, mas pela afinidade em
relação a uma visão crítica que partilhamos de perto, a ponto
de José Paulo Paes enviar seus livros, assim que eram lançados,
diretamente para mim, com o fim de vê-los resenhados no Suplemento Cultural de A TARDE.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Assim como um dia me julguei poeta, também me julguei
contista. Com o conto intitulado “Fascinação” ganhei o Prêmio
País do Carnaval, no concurso 80 Anos de Jorge Amado, em 1992.
O meu amigo, o poeta falecido Daniel Cruz, me disse para ir ao
jornal A TARDE procurar pelo poeta Florisvaldo Mattos e mostrar
o conto premiado. A empatia entre nós dois foi imediata e Florisvaldo publicou meu conto no Suplemento Cultural. Mas era apenas o
início porque daí por diante fui colaboradora do suplemento por
mais de 10 anos. Nunca será suficiente meu agradecimento a Florisvaldo, ele imediatamente identificou a leitora e a satisfação e o
prazer da leitura no meu texto. Logo após a publicação do conto, o
suplemento homenageou Clarice Lispector e aqui inicia outra parceria: o texto de Hélio Pólvora e o meu texto, tantas e tantas vezes
lado a lado. Hélio estava no sul da Bahia, logo voltaria a residir em
Salvador e nos conhecemos. Outro início: o início de uma amizade,
de um aprendizado para mim, de uma cumplicidade literária. Hélio
começou a frequentar esta casa e pelo caminho, posso dizer que
nossas conversas eram como aulas para mim, a cada vez dialogávamos sobre algum escritor: sentíamos a inteligência evidente de um
Nabokov, insistimos na leitura de novelas, em uma volta a Balzac,
analisando-as com admiração, foram tantas conversas e conversas.
Igualmente por iniciativa do acadêmico Florisvaldo Mattos,
comecei a entrevistar escritores, sendo o primeiro deles, o novo
acadêmico Hélio Pólvora, por ocasião de sua posse nesta casa em
1994. Nos 20 anos seguintes, entrevistei, para vários veículos, escritores como os acadêmicos Antônio Torres e Myriam Fraga, mas as
entrevistas com Hélio totalizam sete vezes, cada uma focando dada
vertente de sua obra, a ficção, a crônica, a crítica, sendo a última realizada em 2012 para o JornalRascunho, editado pelo escritor Rogério
Pereira, no Paraná. Mas, entre elas, há uma que se deu em deliciosa
tarde na minha casa e da qual apenas participei com algumas perguntas, pois foi uma entrevista para o livro do professor Suênio
Campos de Lucena, a fim de compor seu volume 21 Escritores Brasileiros– uma viagem entre mitos e motes, editado pela Escrituras.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Outro estímulo que não esqueço veio da confiança na minha
visão crítica por parte do acadêmico João Carlos Teixeira Gomes
quando, em 1994, me passou os originais da coletânea de contos
O Telefone dos Mortos, ainda não lido por qualquer outra pessoa. Um
livro extraordinário que tive a honra de ser a primeira leitora.
Há mais: a saudosa acadêmica Consuelo Novais Sampaio
foi quem indicou meu nome para fazer parte da comissão editorial
do Selo Letras da Bahia, da Fundação Cultural do Estado, onde
permaneci, junto com os acadêmicos Hélio Pólvora e Waldir Freitas Oliveira, por 8 anos, até o término do Selo. Pelo Selo ganhei
afilhados literários: Kátia Borges, Flamarion Silva, Fred Matos,
Lúcia Santori, Carlos Vilarinho, a querida cronista Regina Oliveira, saudosa esposa do acadêmico Waldir Freitas de Oliveira e
outros que não eram inéditos, mas que considero também afilhados, como Vladimir Queiroz e José Inácio Vieira de Melo. O jogo
entre uma memória que puxa e um esquecimento que empurra é
jogo inútil, o esquecimento acaba por ganhar sempre, nas palavras
de José Saramago, em O Ano da Morte de Ricardo Reis. Posso esquecer alguns nomes que também apreciamos, mas na época, trocávamos nossos entusiasmos, o acadêmico Hélio Pólvora e eu, de
modo que aplaudi seu parecer para os livros seguintes: o volume
de contos de Mayrant Gallo, Pés Quentes nas Noites Frias, e de ensaio
sobre a obra de Herberto Sales, de Ângela Vilma.
Meu 3º livro, O rio e a ponte – à margem de leituras escolhidas, é
uma reunião dos textos mais extensos que foram publicados no
Suplemento Cultural do jornal A TARDE. Resultado de um caminho que, como digo sempre, se existe uma Gerana que observa
e avalia a literatura, que escreve tantos prefácios e orelhas e mais
de uma centena de resenhas, e integra comissões julgadoras de
prêmios literários, é porque um dia, lá no ano de 1992, Florisvaldo Matos me mostrou qual era aquele caminho que se faz ao
caminhar, ao modo do verso de Antonio Machado.
Mais uma prova de confiança em minha visão crítica veio
por parte do professor Cid Seixas, que escrevia a coluna fixa
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
semanal no Caderno 2, do jornal A TARDE, quando passou
para mim a responsabilidade de assinar a coluna. Foram quatro
anos seguidos no Caderno 2, quando aproveitei a Leitura Crítica,
assim era intitulada a coluna, para focar na literatura que estava
sendo produzida pelos escritores baianos. Em 2007, fui para o
jornal Tribuna da Bahia, por indicação do escritor Ildásio Tavares,
e ali a coluna, também semanal, se chamava Olho Crítico.
Logo mais, o acadêmico Hélio Pólvora, conseguiu, junto
a Maria Luiza Nora, a edição da Antologia Panorâmica do Conto
Baiano - século XX, pela Editus, editora da UESC, Universidade
Estadual de Santa Cruz, que veio a ser utilizada e trabalhada pelo
acadêmico Aleilton Fonseca na Universidade Estadual de Feira
de Santana, a ponto de esgotar a edição.
Há 10 anos perdi meu pai e também perdi um certo jeito de
sorrir que eu tinha, por isso entendo o verso de Mário Quintana.
Meu luto foi longo, se é que passou, e me recolhi por tempo suficiente para que novos escritores aparecessem na minha ausência,
entre eles as poetas Ângela Vilma e Mônica Menezes, os ficcionistas
Lima Trindade, Marcos Vinícius Rodrigues e Carlos Barbosa. Ao
mesmo tempo, constatei com alegria a confirmação dos nomes que
já me chamavam a atenção pelo talento, constatei a seriedade da
literatura de Állex Leilla e Adelice Souza, por exemplo.
Voltei ao convívio entre escritores graças ao acadêmico,
meu grande amigo, Luís Antonio Cajazeira Ramos, que conheci
na época em que formamos um grupo, há mais de vinte anos,
com os escritores Maria da Conceição Paranhos, Soares Feitosa,
Malba Vellame e um grupo paralelo, também com Conceição
Paranhos e os escritores Judith Grosmman e Ildásio Tavares.
Com Judith Grosmman, li passagens de seu próprio romance Meu
Amigo Marcel Proust, em momentos plenos de intensa emoção. Outro grupo, não sei se chegou a ser um grupo, tinha como anfitrião
o escritor Luís Claudio Daltro com seus jantares, e seus convidados, Ruy Espinheira Filho, Edivaldo Boaventura, Aramis Ribeiro
Costa. Em um jantar naquela casa acolhedora, fui testemunha de
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
como nasceu a crônica semanal intitulada Conversas, de Hélio Pólvora, no jornal ATarde, com o convite do acadêmico Edivaldo
Boaventura, então diretor, ao confrade.
E para mostrar como a Academia de Letras da Bahia teve
influência em outro plano de minha vida, além de acrescentar
um toque de romantismo, próprio de quem, como eu, gosta tanto dos romances ingleses, principalmente de Jane Austen, foi
aqui que o acadêmico João Carlos Teixeira Gomes apresentou
Aramis para Hélio e para mim. E foi aqui também que Aramis
e eu começamos nossa história no dia da posse do acadêmico
Florisvaldo Mattos; portanto, faremos 20 anos, Aramis e eu e a
posse de Florisvaldo, no dia 23 de novembro.
É tempo de deixar de medir a minha vida às colherinhas
de café, como no belo verso de T.S.Eliot, em “A Canção de
Amor de J. Alfred, Prufrock” e dizer da literatura, de como sinto
a literatura.
A literatura, como disse Aristóteles, por mostrar não o que
aconteceu, mas o que poderia ter acontecido, amplia a visão do sujeito com relação a si mesmo e ao mundo, daí sua imponderável
importância. O mais fascinante é que o assunto depende da escolha
do autor, mas o tema resulta da interpretação do leitor. Os Lusíadas:
o assunto de Camões é a viagem de Vasco da Gama às Índias. O
tema, entre outras hipóteses, a expansão dos valores europeus pelo
mundo. A Metamorfose, de Kafka: o assunto é uma transformação,
mas o tema é o isolamento, a solidão, a misantropia, a alienação, o
confinamento. Como coloca o crítico Ivan Teixeira, recentemente
falecido, o assunto é consensual, já o tema pode ter variações quantos forem os pressupostos da leitura. A mesma coisa em perspectivas diferentes resulta em noções que se interpenetram e causam
discussão. O conhecimento produzido pela literatura parte dessa
subjetividade para entender o mundo pela sensibilidade. A literatura
reafirma que o mundo imaginário tem o mesmo grau de importância que o mundo existente. Assim, a literatura cria uma nova realidade, gota após gota, nas vidas de seus leitores.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
A coerência entre o tema e seu tratamento conquista a
adesão estética, mas é o sentimento que gera a adesão emocional.
Por exemplo, alguém que jamais se apaixonou obsessivamente,
teria dificuldade em se interessar por um romance dedicado a
uma paixão, como Servidão Humana, de Somerst Maugham, pois
o sentimento lhe é totalmente alheio. O escritor espanhol Javier
Cercas, no romance As Leis da Fronteira, diz que um livro é como
um espelho, que não somos nós que lemos os livros, e sim os
livros que nos leem.
Está no romance Submissão, do escritor francês Michel
Houellebecq: “Tanto quanto a literatura, a música pode determinar uma reviravolta, um transtorno emotivo, uma tristeza ou
um êxtase absolutos; tanto quanto a literatura, a pintura pode
gerar um deslumbramento, um olhar novo depositado sobre o
mundo, mas só a literatura pode dar essa sensação de contato
com outro espírito humano, com a integralidade desse espírito,
suas fraquezas e grandezas, suas limitações, suas mesquinharias,
suas ideias fixas, suas crenças; com tudo que o comove, o interessa, o excita ou o repugna”. Adentrando mais: “Então, é claro,
quando se trata de literatura, a beleza do estilo e a musicalidade
das frases têm importância; a profundidade da reflexão do autor, a originalidade de seus pensamentos não são de desprezar;
mas um autor é antes de tudo um ser humano presente em seus
livros porque os seres humanos possuem em princípio, à falta de
outra qualidade, uma idêntica quantidade de ser, todos estão em
princípio mais ou menos igualmente presentes”.
Sendo assim, um escritor não é maior do que outro, se eles
estiverem no mesmo nível de excelência. A diferença, o que faz
um leitor dizer que Auto de Fé, de Elias Canetti, é maior do que
2666, de Roberto Bolaño, é consequência da adesão emocional
de quem está elegendo. Eu tenho uma lista dos 100 romances
inesquecíveis no site de meu amigo, o poeta Goulart Gomes, lista esta defasada, porque ao longo dos anos há romances que já
conseguiram mais adesão emocional de minha parte.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
As palavras do crítico Lourival Holanda, no texto “Aventuras Críticas”, me impressionam de modo eminentemente adequado quanto à descrição sobre o analista literário. A crítica é o
que se segue à leitura; uma reflexão sobre o sentido, depois do
lido. É por esse viés reflexivo que a crítica pretende ser também
um conhecimento (intuição, frequentação, aparato conceitual). O
crítico, um leitor sensível em estado de atenção reflexiva. A crítica
é uma invariante; um correlato da leitura. A crítica segue sendo
uma atenção rigorosa às formas narrativas, às propriedades excitantes dos modos de dizer e assim detectar os índices acrescidos
ao imaginário social. É necessário que haja crítica, por ser o sal da
cultura. No julgar há certa impertinência, mas no abster-se, não há
deserção intelectual? Desde meados do século 20, a crítica foi se
exilando na própria especificidade, contida nos meios acadêmicos
e, assim, foi deixando de ter um papel importante na formação de
leitores e na divulgação de novas obras de qualidade.
Opto, no entanto, por não entrar nessa seara, prefiro entoar loas à crítica, tal como a proferida por Vladimir Nabokov:
“Depois do direito de criar, o direito de criticar é o bem mais
precioso que a liberdade de pensamento pode ofertar”. Ou, segundo Oscar Wilde, dizer simplesmente que a crítica é uma arte.
A cadeira 29
O Patrono da cadeira 29 é Agrário de Souza Menezes,
talentoso parlamentar, grande orador na assembleia provincial,
deputado, jornalista e dramaturgo, fundador do Conservatório
Dramático, em 1857. Cultivou ainda vários gêneros literários,
mas priorizou mesmo a arte dramática. Agrário de Menezes
exerceu a advocacia. Viveu de 1834 a 1863.
O Fundador, Antônio Alexandre Borges dos Reis foi
professor, autor de livros didáticos e educador, mestre em Corografia e História do Brasil, catedrático da cadeira na qual já
ensinava, foi deputado estadual em duas legislaturas na primeira
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
década do século XX. Escreveu diversas obras didáticas sobre
História do Brasil e conseguiu concluir os livros Leituras Cívicas e
Corografia do Brasil, antes de falecer em 1922.
O 2º Titular da cadeira 29, Manços Chastinet Contreiras
foi médico, militar, jornalista, político, poeta e fino humorista
dos ridículos da época, irônico e satírico. Entre suas produções
e obras de teatro estão Papá Noel, Malvinda, O Castigo, O Mestre,
Tântalo, O Tio Malaquias, Mil Novecentos e Trinta, todas comédias,
registradas na Sociedade Brasileira de Autores Teatrais. A poesia
humorística de Teatro da Oposição é exemplar de sua marca. Faleceu em 1942.
O 3º Titular da cadeira 29, Colombo Moreira Spínola
foi médico e professor. Faleceu no dia que seria agraciado, 7
de setembro de 1973, com a Medalha de Ouro de Prevenção a
Cegueira, conferida pelo Conselho Brasileiro de Oftalmologia.
Fundou, em 1942, a Fundação Santa Luzia, desenvolvendo-a e
dirigindo-a até o dia de sua morte. Professor de Oftalmologia
da Escola Baiana de Medicina e Saúde Pública e da faculdade
de Medicina da Universidade Federal da Bahia. Foi fundador da
Academia de Medicina da Bahia.
O 4º Titular da cadeira 29, Jorge Faria Góes foi promotor em Jeremoabo e em Vitória da Conquista. Exerceu também
a função de magistrado. Escreveu três títulos: Gotas de Poesia,
Louvação a SantoAmaro e Ronda Enluarada.
O 5º Titular da cadeira 29: Hélio Pólvora de Almeida.
Hélio Pólvora dizia ser um pobre homem de Itabuna.
Nascido na fazenda Mirabela, no dia 2 de outubro de 1928, muito cedo o menino procurou compensar a solidão e o medo com
as leituras, graças a atmosfera que sua sensibilidade absorvia; disse ele: “Quando o dia escurece, parece que estamos no fundo do
poço da noite mais funda”. Ciente de seu temor, mas ciente também que a ambiência é importante, não foi apenas a solidão da
fazenda que o levou aos livros, pois seu pai, Joaquim, comprava
livros, e sua mãe Raquel encomendava livros a um mascate que
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
varava léguas pela zona rural de Itabuna e arredores, no labor de
entregá-los em fascículos mensais, além dele próprio, que economizava as moedas da marinete, viajando a pé para as cidades
mais próximas para comprar livros da Civilização Brasileira, da
Editora Nacional e da Editora Globo. Conviveu com os enredos
de Alexandre Dumas e Eugène Sue e conviveu consigo mesmo.
A dupla convivência começou a gerar o escritor. Primeiramente
andando pela casa com um dedo espetado no ar, semelhando uma
caneta a escrever nas paredes. Da infância eis suas belas palavras:
“A infância é o melhor período da vida. Nele nos formamos, ou
melhor, somos formados imperceptivelmente, às pinceladas, pelas
tintas das circunstâncias. O resto é consequência”.
Eu costumo repetir que o resto da vida é nota de pé de
página do que foi a infância. Seguramente devo ter lido isto em
algum lugar, contudo Hélio disse sempre melhor. A importância
da infância levou-o a tematizar, por meio de personagens nas
suas travessias, carregando os conflitos, a passagem para a adolescência e a maturidade.
Fez a escola primária em Itabuna e Ilhéus e exame de admissão no Colégio 2 de Julho, em Salvador. No tempo em que estudava
no Colégio Carneiro Ribeiro, lia cinco livros por semana, pois o
vício da leitura já estava instalado. Ele confessou: “Sou viciado em
leituras como tantos se viciaram em drogas”. Lembro Manuel Bandeira, no poema “Não sei Dançar”, de Libertinagem: “Uns tomam
éter, outros cocaína...”. Hélio leu, leu muito. E tinha o hábito de
anotar suas impressões e trechos significativos. Concluiu: “A literatura é tudo, é o sonho que doura a pílula amarga”.
Hélio Pólvora elaborou seus programas de leitura de ficção americana, inglesa, francesa, russa. Programas confessadamente planejados e conscientes do que buscava. Completado
o curso colegial, Hélio passou três anos na direção de uma fazenda do pai e foi ali que, de tanto ler e reler Graciliano Ramos, acabou decorando capítulos de São Bernardo, Vidas Secas
e Angústia. Um salto no tempo para contar uma curiosidade e
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
mostrar como conservamos a essência vida afora: talvez mais de
cinquenta anos depois, Hélio leu O Ano da Morte de Ricardo Reis,
daquele que admiramos muito, do Nobel de Literatura de 1998,
José Saramago. Ele leu, releu, releu e releu, foram quatro vezes;
então, pegou sua amada Maria e seguiram para Lisboa. Hélio fez o
caminho do personagem desde o Hotel Bragança até a estátua de
Camões, imaginou a personagem Marcenda e sua mãozinha paralítica, mole. Enfim, viveu o livro. E ainda seguiram para conhecer
o convento de Mafra e sentir também O Memorial do Convento e
quase, quase, foram até Lanzarote apertar a mão de Saramago,
não fosse o mau tempo impedir que o avião decolasse.
Voltando a fase do jornalismo em Itabuna e seus primeiros contos e primeiros ensaios, quando o jornalismo levou-o
para o Rio de Janeiro e para as redações de quase todos os jornais famosos. Um dia, sim um dia determinado, concluiu que havia encontrado seu modo particular de expressão. É melhor usar
as palavras do próprio Hélio: “Aconteceu uma noite em que reescrevia textos. A descoberta só afetou a mim; os companheiros
continuavam, calados e indiferentes, na sua faina – aquela malta
de copidesques fatigados, entediados, descrentes. Repetiu-se em
mim aquele estado do Padre Vieira. E relendo um trecho de
minha prosa, e repassando-o na língua, e sentindo-lhe o ritmo e
a música interior, eu senti que a escrita, quando bem realizada, é
uma joy of beauty, e que vale a pena cultivá-la, regando-a e nutrindo-a com os melhores adubos da memória e do imaginário, para
que a vida passe a ter sentido”.
Foi no Diário Carioca, onde descobriu que aprendera a
escrever. A partir do Diário Carioca, credenciou-se ao Jornal do
Brasil, a outras redações, a colaborações permanentes como crítico literário na revista Veja e no Correio Braziliense. Sentou-se ao
lado de Marques Rebelo e Nelson Rodrigues, no Última Hora, de
Samuel Wainer e Nelson Pereira dos Santos, de Otto Lara Resende e Antonio Callado, de Agrippino Grieco e Adonias Filho
entre tantos outros. Disse Hélio: “Todos, sem saber, deixaram
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
marcas em mim, porque sempre procurei arar os meus terrenos,
à espera de chuvas e sementes”.
Confessadamente autodidata, Hélio partilhava com o
escritor russo Anton Tchekhov que a autoeducação que deflagra o autoconhecimento é o processo educativo por excelência.
Assim, viu-se tradutor, traduziu mais de 80 títulos, viu-se crítico
literário, viu-se contista.
Foram 32 anos no Rio de Janeiro, mas sempre destacou um momento de êxtase: alertado por um amigo, correu a
uma banca e, trêmulo, folheou A Cigarra até chegar ao concurso
nacional de contos dirigido por Aurélio Buarque de Holanda e
Paulo Rónai, para encontrar o seu “Os Galos da Aurora”. Recorro as palavras do próprio Hélio para descrever o que ele sentiu: “Os elogios dos editores eram vinho forte, toldaram-me a
cabeça”. E isso era apenas o começo, muitas vitórias ocorreram;
por exemplo: o Prêmio Nestlé de Literatura agraciou Hélio Pólvora por duas vezes, em 1982 e em 1986, respectivamente com
os livros de contos O Grito da Perdiz e Mar de Azov.
Outro momento dentro dos anos no Rio de Janeiro: admirador de José Lins do Rego, Hélio o seguia “como se segue
um mito ou um profeta, um salvador nas areias do deserto”,
então dizia. Também admirador de Graciliano Ramos, paixão
esta mais forte ainda, desejava conhecê-lo. E eis o momento:
Graciliano Ramos faleceu e foi velado na Câmara dos Vereadores. Hélio se postou ao lado do caixão a mirar de perto o escritor
Graciliano e quando levantou os olhos, do outro lado do caixão,
também a mirar o autor de Vidas Secas, estava José Lins do Rego.
Em 1984, deu-se a volta a Bahia, instalando-se primeiramente em Itabuna e depois em Salvador. Aqui, na capital,
deu-lhe ganas de reler os russos. Repassou Tchekov, Tolstói e
Turgueniév e Andreiév, repassou as origens do conto, suas interfaces teóricas e críticas, seus principais cultores estrangeiros
e brasileiros. Mas, no final dos anos 90, retornou a Ilhéus para
exercer o cargo de Presidente da Fundação Cultural de Ilhéus,
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
na gestão de Jabes Ribeiro, embora estivesse em Salvador na
maioria dos fins de semana.
Além da Academia de Letras da Bahia, Hélio ocupou a
cadeira 13 da Academia de Letras do Brasil, com sede em Brasília, que tem como patrono Graciliano Ramos. Pertenceu ainda à
Academia de Letras de Ilhéus. Teve duas editoras: Edições Antares, no Rio de Janeiro e a Editora Mythos, em Salvador, empreendimento nosso, dele e meu, que rendeu o livro Três Histórias
de Caça e Pesca, do próprio Hélio, em edição bilíngue português e
francês, e o livro de poemas Atelier de Poesia, do falecido poeta, já
citado aqui, Daniel Cruz.
Uma palavra que, para mim, tem ligação direta com o
conteúdo dos contos de Hélio Pólvora é epifania, um evento que
altera o estado emocional. Era capital para ele colocar um momento epifânico em suas narrativas. Prezava igualmente a Teoria
do iceberg de Ernest Hemingway, ou seja, o escritor experiente
mantém a grande maioria do que sabe sobre seus personagens
e situações enterrado sob a superfície. E o que na definição do
escritor argentino Ricardo Piglia pode ser colocado da seguinte
forma: um conto sempre conta duas histórias. O conto de Poe
ou Quiroga, por exemplo, narra em primeiro plano a história um
e constrói em segredo a história dois. A arte do contista consiste
em cifrar a história dois nos interstícios da história um. Uma história visível esconde uma história secreta, narrada de um modo
elíptico e fragmentário. O efeito de surpresa se produz quando
o final da história secreta aparece na superfície.
Desde a estreia, em 1958, com a coletânea Os galos da aurora, Hélio Pólvora seguiu sempre aprofundando e alargando o seu
conceito de conto literário: sua história curta não é mera anedota,
não se resume a peripécia ou mero incidente; é o conto artístico,
porque a literatura é, para ele, arte aberta a investigações e aventuras. Pode parecer exagero, mas qualquer conto de Pólvora, ou
quase todos, escolhido ao acaso dentre os mais de 120 que escreveu, é um texto denso que preza o verossímil, ao mesmo tempo
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
em que deflagra a sugestão e instiga o leitor a descobrir o que há
na parte submersa do relato. Por seu muito saber do quanto “viver é negócio muito perigoso”, conforme anotou João Guimarães
Rosa, o contista Hélio Pólvora não permite que se lhe escapem
circunstâncias e vicissitudes eloquentes; garante ao leitor, se entusiasmado ou cúmplice, estupefato ou indignado, mais de uma leitura, segundo planos narrativos insinuados ou interpostos, e mais
os protagonistas que narram e são narrados. Ao seu modo, ele
define: “Escrever é um ato que pressupõe beleza, filosofias amadurecidas, reflexões adensadas e um estado de fúria ou de pureza,
com o ódio de um guerrilheiro muçulmano ou com a doçura de
um pastor de almas perdidas, mas sempre naquele instante especial em que nada mais se poderia fazer além de estender a mão
para colher no escuro a maçã – aquela maçã de Clarice Lispector”.
A vasta obra de Hélio Pólvora abarca quase 20 títulos
de coletâneas de contos, dois romances, sete volumes de ensaios
críticos, quatro volumes de crônicas e dois de poemas. Incontáveis antologias trazem seus contos. Em 2013, a Coleção Mestres
da Literatura Baiana, da Assembleia Legislativa e da Academia
de Letras da Bahia, publicou dois volumes intitulados Contos e
Novelas Escolhidos, organizados pelo próprio escritor. A Editora
Casarão do Verbo, também em 2013, reeditou cinco títulos importantes da obra polvoriana.
Tenho a honra de ter sido sua crítica oficial, assim ele
se referia a mim, resenhando seus livros, sempre a pedido dele,
como foi o caso dos dois romances, Inúteis Luas Obscenas e Don
Solidon, ambos editados pela Casarão do Verbo. Tive a honra
de ler os mesmos livros que ele, seja por indicação dele, seja
por indicação minha, ou por uma escolha concomitante, porque
gostávamos de comentar depois da leitura. Elegemos O Museu
da Inocência, do turco Pamuk, Nobel de Literatura de 2006, como
o grande romance da primeira década do século XXI. Destacamos a literatura do escritor irlandês John Banville como o nosso
mais recente vício e ele chegou a ler 2 dos livros da trilogia,
374 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
leu o meu exemplar de Luz Antiga e chegamos a comparar com
outro romance de Banville, O Mar. Quando ele se foi, eu estava
lendo Sudário, o último romance da trilogia. Ao terminar, ainda
me ocorreu por um segundo ligar para Hélio. E senti o choque
na sua real dimensão: perdi meu interlocutor, perdi meu amigo.
Digo agora, como costumava dizer no final das nossas conversas telefônicas: “Você sabe, Hélio, que mora no meu coração”.
Falei muito em leitura, leituras, falei muito de Hélio Pólvora e
de mim e da paixão pela leitura que nós partilhamos. Finalizo como
comecei, com Jorge Luis Borges, pois não tenho dúvidas sobre essa
afirmação: “Creio que uma forma de felicidade é a leitura”. E para
honrar minha origem grega: Efharisto poli. Muito obrigada.1
Gerana Damulakis é bacharela em Química pela Universidade Federal
da Bahia, pós-graduada em Plasticos y Caucho pelo Instituto Juan de
la Cierva e em Ressonancia Magnética del Carbono 13 pela Universidad Autónoma de Madrid. Colaborou com o Suplemento Cultural do
jornal A Tarde, assinou a coluna semanal Leitura Crítica no Caderno 2
de A Tarde, assinou a coluna Olho Crítico no jornal Tribuna da Bahia.
Integrou a comissão editorial do Selo Letras da Bahia, desde 1998 até
seu término. Publicou os títulos: Guardador de Mitos (1993), Sosígenes
Costa – O Poeta Grego da Bahia (1996), O Rio e a Ponte –À Margem de
Leituras Escolhidas (1998) e organizou a Antologia Panorâmica do Conto
Baiano – Século XX (2004). Eleita no dia 13 de julho de 2015 para a
Cadeira número 29 da ALB.
Discurso de posse da acadêmica Gerana Damulakis na Cadeira número
29, proferido em sessão solene, no Salão Nobre da Academia de Letras
da Bahia, em 3 de setembro de 2015.
►► 375
DISCURSO DE RECEPÇÃO
A GERANA DAMULAKIS
Cantos dos encantos
ALEILTON FONSECA
Um poema é uma carícia,
uma possibilidade de amor.
E quando os versos te enlaçam
num abraço, surge o encanto
no reflexo do meu canto.
Gerana Damulakis
Senhoras e senhores, ainda que eu houvesse morrido hoje,
ainda assim viria a minha alma proferir este discurso.
Canto um - Intróito
Querida amiga Gerana Damulakis:
N
este magnífico ato solene, faço-te esta saudação com infinito entusiasmo. Adormeço no regaço das musas. E em
transe dionisíaco, pronuncio as palavras desta oração, como
foram ditadas pelos deuses que habitam o nosso inconsciente.
Dentro do mais profundo barro de minha ânima, estas palavras
já aguardavam cinzeladas, desde o início das eras, como pedras
preciosas prontas para aflorar em tua homenagem. Toco meus
dedos nas cordas da lira, convoco os bardos e os aedos seminais,
►► 377
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
peço vênia às ditosas musas, tomo licença às moiras, invoco o
poder de Zeus! Para tão honroso ofício, empresto minha voz
aos versos inaugurais de Hesíodo, talvez primaz poeta lírico da
Grécia, no seu glorioso Hino às musas, exaltando o nascimento
dos deuses, na sua espantosa Teogonia:
Pelas Musas heliconíades comecemos a cantar.
Elas têm grande e divino o monte Hélicon,
em volta da fonte violácea com pés suaves
dançam e do altar do bem forte filho de Crono.
Banharam a tenra pele no Permesso
ou na fonte do Cavalo ou no Olmio divino
e irrompendo com os pés fizeram coros
belos ardentes no ápice do Hélicon.
Daí precipitando-se ocultas por muita névoa
vão em renques noturnos lançando belíssima voz,
hineando Zeus porta-égide, a soberana Hera
de Argos calçada de áureas sandálias,
Atena de olhos glaucos virgem de Zeus porta-égide,
o luminoso Apolo, Ártemis verte-flechas,
Posídon que sustém e treme a terra,
Têmis veneranda, Afrodite de olhos ágeis,
Hebe de áurea coroa, a bela Dione,
Aurora, o grande Sol, a Lua brilhante,
Leto, Jápeto, de curvo pensar,
Terra, o grande Oceano, a Noite negra
e o sagrado ser dos outros imortais sempre vivos.
(...)
Eia! pelas Musas comecemos, elas a Zeus pai
hineando alegram o grande espírito no Olimpo
dizendo o presente, o futuro e o passado
vozes aliando. Infatigável flui o som
das bocas, suave. Brilha o palácio do pai
Zeus troante quando a voz lirial das Deusas
espalha-se, ecoa os cimos do Olimpo nevado
e o palácio dos imortais. Lançando voz imperecível
o ser venerando dos Deuses primeiro gloriam no canto
dês o começo: os que a Terra e o Céu amplo geraram
378 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
e os deles nascidos Deuses doadores de bens,
depois Zeus pai dos Deuses e dos homens,
no começo e fim do canto hineiam as Deusas
o mais forte dos Deuses e o maior em poder,
e ainda o ser de homens e de poderosos Gigantes.
Hineando alegram o espírito de Zeus no Olimpo
Musas olimpíades, virgens de Zeus...
(HESÍODO. Teogonia. A origem dos deuses. Estudo e tradução J.A.A.
Torrano 3ed. São Paulo Iluminuras, 1995).
Canto dois
Este salão solene ora se transfigura e se eleva pela magia das metáforas e alegorias. Estamos, pois, nos domínios
da poiesis. Encontramo-nos num anfiteatro iluminado de um
templo grego. O poderoso Zeus paira sobre esta nave, ungido
pelo éter das eras longínquas. E todos aqui reunidos somos
uma síntese metonímica da cultura helênica, discípulos de
seus filósofos, filhos de seus poetas, fiés de seus deuses e suas
deusas. Damulakis nome grego, senha que nos transporta a
um mundo redivivo na imaginação e na memória, matrizes
férteis de nosso ser mais profundo, fontes primordiais de
todo conhecimento, óleos de nossa arte, uma das matrizes de
nossa cultura.
Em nome dessa tradição nos congregamos hoje. Somos
herdeiros dos jardins de Academos. E em seu nome nos reunimos, para acolher entre nós aquela que melhor representa doravante a nossa filiação aos deuses e mitos de Hesíodo.
Através de tua presença, Sra Damulakis, a ancestralidade
grega ora nos visita e conosco se convola – encarnada no teu
corpo, empossada na tua alma, marcada no teu nome e nos teus
gestos e palavras, como herança transitada nas entranhas do mar,
e vinda à tona em terra firme de nossa pátria e nosso tempo.
►► 379
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Gerana Damulakis – o teu nome neste ritual de glória ora
entronizamos no templo das musas. Gerana, brasileira, grega
Damulakis, aqui gerada mulher brasileira, nossa herança de Milos.
Milos, paradisíaca ilha vulcânica, situada no arquipélago
das Cíclades, da Grécia mais linda, em pleno reino do Mar Egeu.
Terra de deuses e poesia, onde repousou a estátua de Afrodite, e
dos deuses Asclépio, de Posídon e de Apolo.
Na mitologia grega, Gerana era o nome da rainha dos povos pigmeus. Era cultuada por seu povo com honras de deusa,
embora negligenciasse as honras e os deuses. Como punição,
Hera a transformou num pássaro, afastando-a de seu povo, de
sua casa e de seu filho Mopso. Sua história é mencionada por
Ovídio no livro 6 da Metamorfose, como uma das figuras que a
deusa Athena tece durante a disputa com Aracne.
És, portanto, a imagem lírica de uma divindade grega gerada em diáspora, e que, pelas maravilhas e paixões do exílio,
estás impedida por Cronos e Hera – e por nós, naturalmente
– de retornar à tua antiga casa. O teu exílio é o templo do deus
afetivo Cordis, ou seja, o nosso súdito coração.
Damulakis, de helênica ancestralidade, nome gentílico,
em dois sentidos ajustados. Nome banhado nas águas do mar
Egeu, mas gestado nos arredores do Pathernon de Atena. Por
hipótese, a origem remota do nome Damulakis, nos remeteria a Adamo, região de Atenas. Damu, que nos diz: da polis
de Adamo; akis sufixo que nos ensina: originário. Damulakis,
portanto, gentílico que nos informa: originário de Adamo, jurisdição de Afrodite, a deusa em Milos encontrada, marmórea
e sem braço, tão linda, majestosa e admirada. Vênus de Milos,
formosa divindade, de quem me enamorei numa sala ampla do
Museu do Louvre, em Paris, há pouco mais de uma década que
me vale por centenários.
380 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Canto três
Eis o que narro agora, vós presentes atentai:
uma saga de família, a vida e seu cabedais.
Para tanto, com arte e engenho,
e sutis pesquisas escudadas
Eis os dados que tenho, de aventuras bem datadas,
E agora vos revelo uma epopeia de muitos anos,
Graças ao que o poeta Aramis me informou,
como cuidadoso e meu notável consultor
para estritos assuntos damulakianos.
Gerana Damulakis: foi teu avô paterno, nascido em Milos, paraíso da Grécia, que aqui aportou, com nome lírico em
eneassílabo solene: Yorgos Yerácimos Damulakis. Nome que
se traduz por Jorge, nesta última flor do Lácio. E eu agora
o invoco em memória e biografia, torno sua longa viagem
similar à aventura de Ulisses. Yorgos, porventura designado
por Zeus, cruzou os vastos mares e veio achar nestas terras
jardinais a sua Penélope inigualável, nomeada Adaptardina
Honoratos, por sua vez filha de gregos, e não de troianos.
Brasileiramente a dona Dina, a tua avó preferida, que te ensinou o valor da alegria e da liberdade, em inesquecíveis tardes
de domingo no idílico Farol da Barra. Yorgos, homem de
profundidades, mergulhador do mar por ofício, em empresa
de busca e perquirição de tesouros de navios naufragados nas
costas ocidentais. Seu mister de vida: descer aos abismos do
mar, trazer à tona objetos valiosos de se ver e admirar. Arqueólogo e decifrador das entranhas das águas fundas, viveu
em muitos lugares, sempre cidades inscritas nos marítimos
mistérios. Na empreita aventurosa, tinha por parceiro o irmão Antonius Damulakis. Jovens peregrinos das águas, por
várias jornadas, pugnaram no mar de Marselha, na França
azul. E a história mergulha, mas sobretudo navega. De novo
ao mar, velas içadas, coração em demanda de lar e de amor.
►► 381
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Uma vez em terras brasileiras, percorreram diversos estados,
antes de ancorar na Bahia. Mergulharam em Pernambuco,
Pará, São Paulo (na cidade de Santos), Rio de Janeiro e Rio
Grande do Sul. No Rio, em Angra dos Reis, um mergulho
na vida em terra firme. Yorgos conheceu sua musa amada,
casou-se com a jovem Adaptardina Honoratos.
Nesta história aventurosa, eis que entra em cena o teu amado pai, o engenheiro Gerácimos Julius Damulakis. Nascido no
Rio, em Angra dos Reis, dava curso à epopeia familiar, de porto
em porto, de mar a mar. Da enseada de Angra dos Reis para a
Baía de Todos-os-santos e tantos mistérios. A família Damulakis
aportou na Bahia em 1948, este lugar sagrado pelos deuses de
todas as etnias, de barcos e navios fundeados em torno, e tantos
ancorados no fundo de suas águas calmas. Vasto campo de mergulhos para Yorgos e Antonius. O jovem Gerácimos, teu futuro
pai, contava dezessete anos quando aqui chegou. E mais tarde
teve a sua vez de encontrar a musa que detinha a chave de seu
coração. Gerácimos casou-se com Eliana Costa, baiana, filha de
português com brasileira.
Tua vinda estava próxima, Gerana Damulakis.
O teu avô grego se tornou baiano. Como um típico Jorge,
por ti tão amado, apaixonou-se pela Bahia, pelo mar e pelo céu
da Baía, que lhe lembravam, pelas cores e pela luminosidade, o
mar e o céu da Grécia. E aqui era o porto final, como se ardessem em fogo todos os barcos, aqui fixou residência para sempre.
Jorge, o grego, uma vez baiano, viveu e faleceu em Salvador,
recolhendo-se ao seio de sua terra de tantos deuses.
Desde os sete anos de idade que navegas em barcos de
papel. Cresceste embarcada nos livros que boiavam ao teu redor,
nas águas cálidas de teu lar. Teu pai era um homem culto, que
gostava de ler, a tua mãe, aqui vivíssima diante de nós, foi sempre
uma grande leitora, e o teu avô português, José Costa, era um
obcecado pela leitura, e a seu modo navegava o tempo inteiro por
mares de papel e palavras. A tua avó materna, Carmem Costa, era
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
jornalista e poeta. Um tio, irmão de tua mãe, Flávio Costa, era
um famoso jornalista, e também escritor.
Tu começaste a ler muito cedo, e logo te puseste a ler literatura adulta. Em teu discurso, nos revelas bem os teus primeiros
encontros com os livros, o teu fascínio pela leitura, assim como o
teu encanto pelas ciências exatas, pendor herdado do teu pai.
E assim empreendeste tua viagem, neste glorioso mar,
pois que aluna do Colégio Marista, e tua inteligência florescia
para as narrativas da matemática, as metáforas da física, a poesia da química, e as realidades concretas da literatura. Na hora
crucial, fizeste a escolha: Licenciatura em química, e assim te
formaste, mas, com tal engenho, logo viste que a química de tua
vida estava nas fórmulas literárias.
Dominas a química das letras. Estudas a composição, a
estrutura e as propriedades da matéria... literária. És, portanto,
senhora de uma química mais fina, mais orgânica, conquanto
inexata – que compõe um universo de matéria simbólica, no
qual nos reconhecemos, para além de um feixe humano de moléculas, mas como uma fórmula química de metáforas.
Canto quatro
Tua escolha foi a poesia, templo dos mitos que jazem
em tuas raízes culturais, em tuas iluminações. És, por herança e
formação, uma guardiã dos aedos primordiais, o primevo guardador de mitos, que se encontra com as divindades no reino
das palavras. Podemos escavar na arqueologia de tua escrita, em
pergaminhos de 1993. Ali, sob o domínio de Cronos, em face
dos fios das moiras, adentramos o Átrio de teus presságios, e te
surpreendemos em justo diálogo com Jorge Luis Borges, para
confirmar que “lemos o mundo nos versos, na linha ou entrelinha da emoção”. A poesia seria esse encontro de quem lê com
seus próprios sentimentos, “alguns passados, outros em estado
de emoção”. Um encontro que se dá num tempo que parece ser
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
eternamente “o agora”. Que Zeus nos ajude. Esse é teu apelo. Que Zeus nos ajude, nesse caso, a paralisar seu poderoso e
destronado pai Cronos, salvando-nos de Tânatos, e concedendo-nos portanto a simbólica imortalidade, imantada num eterno
agora. Zeus, como Pai dos deuses, é tua referência lírica visceral,
na problemática transição entre a tradição e a contemporaneidade, que torna tensa a vivência dos lastros culturais diversos entre
si, embora complementares e reciprocamente alegóricos. Sobre
Zeus, és tu que o dizes, e cito agora teus versos:
Zeus
Sei que és deus
mas não te conheço.
Sinto que és, no entanto não te escuto.
Não escuto um hino a te proclamar,
Nem sinos dobrarem.
Não ouço uma reza te convocar,
Nem mitos chorarem
O passado que se foi.
Dizer Zeus é factível,
soletrar-se no idioma estrangeiro
como peregrino em país forasteiro,
sem jeito de trazer-te
para fora de mim, invisível é.
Ler Zeus
como discurso trêmulo
de um beija-flor
estacionado no ar,
é ressuscitar-te
ainda que senil
para habitar-te
na minha crença vil.
Este poema é uma oração de um eu lírico fiel e desgarrado,
no sentido sagrado e no talhe discursivo. Exprime o laço atávico
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
com a cultura original, faz o lamento das raízes partidas, da dissolução das referências que alimentam o eu mais profundo. Como
diria A.A. Torrano “Um mundo mágico, mítico, arquetípico e divino, que beira o Espanto e o Horror, que permite a experiência do Sublime e do Terrível, e ao qual o nosso próprio mundo
mental e a nossa própria vida estão umbilicalmente ligados.” (cf.:
J.A.A. Torrano 3ed. São Paulo Iluminuras, 1995).
Pelos desígnios da lírica, Zeus reina absoluto na imaginação dos poetas de todos os tempos. Os fragmentos dos vasos
gregos se estilhaçam e se recompõem em teu discurso lírico.
Assim, invocaste: “ Que Zeus ajude e nos encontraremos aqui:
você e eu.” E eis que teu pedido – grego vaticínio! – nos convocou a todos sob estas luzes, e aqui estamos tu e nós.
E teu culto ao imaginário grego, tua devoção metafórica
ao grande Zeus, tem na terra, num altar dourado de recordações e homenagens, a imagem de um só homem, de um só deus
grego. E ele se chama Gerácimos Damulakis. Em teus versos,
reatualizo neste ritual, o teu poema panegírico:
Se cada coisa estivesse no seu canto,
Melhor para mim.
Deixaria de ver todos esses gregos
Pelo mundo.
E teria apenas um deles fora do lugar,
Exclusivo e todo meu:
o meu pai; um grego num canto
do Brasil.
Ao que comentou o saudoso poeta e acadêmico Carlos
Eduardo da Rocha: “o sentido inverso do Universal para o regional, da Grécia antiga, da Vênus de beleza plena, do Parthernon, da Acrópole, na Athenas clássica, da Vitória de Samotrácia
na escadaria do Louvre de asas estendidas para um só grego
num canto do Brasil.” Eu diria: do geral para o mais íntimo, o
sentido universal de toda uma cultura, imantada no amor de um
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
só homem – o grego, encarnado por Gerácimos Damulakis, teu
saudoso amado pai, teu glorioso Zeus na terra dos homens.
Canto cinco
Após uma curta viagem pelos mistérios da poesia, eis que
fizeste uma escolha de rumo: tua embarcação adornou para outras trilhas das mesmas águas das palavras e profundezas dos
sentidos. Silenciaste em ti um eu lírico pessoal, estribado na percepção dos mitos e das imagens fundadoras. Foi a poesia teu
ritual de passagem. E escolheste ser crítica literária. Pelas águas
da poesia, tu perquiriste as dobras dos caminhos até chegar ao
porto da crítica, e aí te reconhecer enquanto voz de ofício. És
crítica literária. Generosa e profícua escolha.
A poesia se manifesta em todo ofício que se elege e se
abraça como arte do fazer. Poiesis e Tecné, duas grandezas
irmãs, contíguas e complementares. E tu fizeste a escolha, e o
teu aparato lírico se fez discurso crítico, os teus versos se tornaram juízos, o eu de enunciação saiu de diante de si mesmo
e se apresentou em proveito dos outros eus, líricos e narradores. Tu passavas a ser a leitora crítica de autores de poesia, de
narrativas e de ensaios. Nessa nobre e indispensável função,
abdicaste de iluminar a ti mesma com teu brilho helênico, para
afastar as sombras que porventura pairassem sobre os outros,
iluminando suas obras com palavras de recepção, entendimento, avaliação e acolhimento.
A crítica é arte de invento grego. A palavra Crítica origina-se do grego KRITIKOS, conjugação do verbo KRINEIN.
Cabe ao crítico o indispensável discurso judicativo da cultura: sua missão é separar, distinguir, opinar, decidir, julgar. Para
tanto, soe ao crítico empreender a leitura, proceder a análise,
emitir opinião, ao passar em julgado a produção intelectual. O
Filósofo Kant considera crítica toda a reflexão sobre a validade
e os limites das atitudes humanas e suas elaborações intelectuais.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
A crítica literária opera a análise de procedimentos e atribui
as gradações de mérito. O seu julgamento é estético porquanto debruça-se sobre a obra de arte. Para tanto, mune-se de um
talento específico para tal labor, com volição, discernimento
e necessário equilíbrio. A razão e a emoção, amalgamadas,
como força motriz de uma recepção ao mesmo tempo sensível e analítica.
A natureza mais profunda da crítica é resgatar um autor
e sua obra do anonimato ou das sombras do umbral, ajudá-lo
a superar o estranhamento ou indiferença dos leitora diante
de sua ousadia de eclodir, aparecer – qual flor nova numa floresta densa de textos. O crítico tem a função acolher e revelar
o lugar e os limites dessa flor nascente, como mediador de
sua relação com cores, formas e nuanças, no imenso jardim
das obras de arte.
O crítico, portanto, é aquele que resgata, vai ao fundo do
mar, ao encontro dos tesouros esquecidos, preciosidades que
submergiram nas fendas abissais da desatenção dos homens,
numa hora de tempestade e ensombramento coletivo da inteligência estética. Sua missão é recolher tesouros do fundo das
águas inertes das consciências e trazer à tona para expor seu
brilho no trono de Mnemosine.
Canto seis
Gerana Damulakis, tua obra crítica não se exige necessariamente estampada em brochuras, pois que deságua abundante,
espalhando-se em prefácios, textos de orelhas, apresentações,
resenhas, ensaios, publicações em jornais e periódicos. Teu verbo judicativo inscreve-se em praticamente todos os espaços disponíveis na Bahia e para além de suas fronteiras, com grande
presença, sobretudo, na literatura baiana. Tiveste olhos de ler,
e gosto de escrever, e ímpeto de publicar sobre praticamente
todos os autores baianos contemporâneos. Incansavelmente, e
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
com prazer inaudito, divulgas os poetas e os narradores de nossa
literatura. Foste madrinha de muitos autores, incentivando-os e
buscando meios para publicá-los, levando-os à sonhada estreia
ou à continuação das braçadas nas águas revoltas e incertas da
permanência literária.
As resenhas e os ensaios que tens produzido acerca de autores consagrados e iniciantes mostram um perfil crítico digno de
apreço e consideração. Tuas abordagens respeitam sempre o autor
e o texto, sejam conhecidos ou não do público leitor. Abordas, e
por vezes comparas autores e obras, mas sem opor uns a outros
numa hierarquia que soasse classificatória ou desproporcional.
Tua atitude é um exemplo para todos aqueles que às vezes adentram o texto alheio, munidos de instrumentos cortantes, destrutivos e devastadores, pensando assim contribuir para a excelência
da arte literária. A crítica destrutiva é, na verdade, um equívoco,
um discurso enfermo de arrogância e vaidade. A crítica literária
não precisa ser uma arma de destruição em massa de obras e autores. De fato, a tua prática nos mostra que a crítica pode e deve
ser uma atitude intelectual rigorosa e exigente, que compulsa e
devassa as obras, mas sem abdicar da generosidade intelectual, do
acolhimento e do incentivo aos autores, sobretudo quando se debruça sobre o trabalho de escritores jovens, ainda em formação.
Tua escrita crítica exprime leveza, altivez e seriedade, sem jamais
ser permissiva, pois se fundamenta na tríade heurística do comentário, análise e interpretação. Tua crítica é, portanto, exegética e
paradigmática, vazada em atitude leitora e reconhecedora, e que
se mostra capaz de indicar as possibilidades em curso, porventura
sugeridas pelo próprio texto do autor em análise.
Canto sete
A tua jornada tem sido fértil, construtiva e generosa.
Tens publicados, os livros Guardador de mitos, de poesia; Sosígenes Costa – o poeta grego da Bahia, ensaio crítico; O rio e a
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
ponte – À margem de leituras escolhidas, ensaios escritos no jornal
A Tarde. Organizaste a Antologia panorâmica do conto baiano –
século XX. E tens importantes participações nos livros O
mar na prosa brasileira de ficção, com a conferência “O mar na
crônica”; no livro Encontros na Bahia - Brasil 500 anos, com o
ensaio” O moderno em Sosígenes Costa”; na coletânea A Sosígenes, com afeto, com o texto “Castelão de mitos”. Participaste
de vários números da revista do Gabinete Português de Leitura, Qvinto Império, da revista Iararana, da revista Neon (com
coluna de crítica literária) e da revista Cenesp, de São Paulo,
também com coluna fixa de crítica.
Integraste, com notável trabalho e inexaurível entusiasmo,
a comissão editorial do Selo Letras da Bahia (FUNCEB, Secretaria da Cultura e Turismo) durante 8 anos. Publicaste no suplemento Cultural de A Tarde desde 1993. Nesse jornal A Tarde assinaste a coluna intitulada Leitura Crítica, no Caderno 2, de 1999
até o final de 2002. Assinaste também a coluna Olho Crítico no
jornal Tribuna da Bahia, durante o ano de 2007. E tens constantemente atuado como jurada de concursos e prêmios literários,
sempre atenta à descoberta de novos talentos da palavra. Uma
atividade intelectual notável, que nos orgulha e alegra, pelo volume, pela constância e pela qualidade.
Canto oito
Um exemplo da sabedoria de tua atitude crítica, e do arrojo dos temas trabalhados, encontramos no teu livro de ensaios O
rio e a ponte. À margem de leituras escolhidas. Como o título sugere,
trata-se de um relicário de leituras, resultante do convívio íntimo
com os textos, em atitude de prazer e reflexão. Nada mais fertilizador do que o prazer como fonte de reflexão sobe os textos
literários. O rio (curso de maravilhosas águas verbais) tem na leitora sensível e atenta uma ponte, que se oferece generosa ao leitor, como mediação que pode facilitar e potencializar o encontro
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
com as três margens da obra consagrada. Ora são ensaios curtos,
ora são resenhas ensaísticas, de maior ou menor extensão, todos
são centelhas que fulguram diante de autores e obras, oferecendo
chaves de entrada e fios de Ariadne capazes de tornar o labirinto
do leitor um passeio prazeroso entre canteiros de palavras que
florescem e perfumam – quais flores raras! – os cômodos da alma
e do coração. Nos ensaios desse livro, vem à tona a Tragédia épica,
obra-prima do poeta baiano Francisco Mangabeira, que, dois anos
antes de vir a lume a epopeia de Os sertões, de Euclides da Cunha,
publicou em versos a saga trágica que abalou o sertão baiano e
o país inteiro. Também encontramos o poeta Sosígenes Costa,
a serviço de Cronos, tal cronista admirável. Ouvimos o esplendor de um Orfeu enigmático, na sublime Invenção de Jorge de
Lima. Temos notícias do titã da beleza, Hölderlin. E anotações
sobre Homero, o homem e a lenda. E considerações sobre os
fragmentos líricos de Safo de Lesbos. E sobre as parcas e fúrias da
poesia de Konstantinos Kavafis, A persistência do espírito grego
na poesia de Giorgos Seféris, e mais e mais: e Saramago, Clarice,
Quintana, Florbela, Neruda, Garcia Lorca, Bayron, George Eliot,
Pound, Dylan Thomas, Verlaine, Haroldo de Campos, Kazantzakis. E não podiam faltar teus mestres, no ofício da crítica literária: Jose Paulo Paes e Hélio Pólvora. A estes dois titãs da crítica
literária, um poeta e outro, ficcionista, nossas homenagens por te
haverem guiado.
Gerana, a tua atitude tem sido fundamental para o florescimento de novos autores e a afirmação da literatura baiana
contemporânea. Quantos e quantos autores baianos, em início
de carreira, e agora já reconhecidos, encontram nos teus prefácios, apresentações e textos de orelha as precisas palavras de
quem acolhe, indica, aposta e dá os santos óleos da fé pública?
Por este trabalho incansável, fértil e justo, és, seguramente, a
crítica mais notável da Bahia, nome que mais presente se faz no
aparato textual dos livros publicados ao longo de duas décadas
em nosso estado.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Não satisfeita com teu mister de confirmar reputações literárias, encontraste na árdua tarefa de escolher textos e autores para
compor uma antologia, uma forma ainda mais concreta de elevar a
literatura baiana. Assim, deste a lume a tua bela Antologia Panorâmica
do conto baiano - século XX – uma reunião abrangente de 41 contistas,
com uma amostragem da melhor qualidade do conto baiano em
cem anos de labuta histórica. Essa antologia já faz parte da história
de literatura baiana, tanto pela galeria ampla de autores, como pela
seleção cuidadosa dos textos que a compõem com proveito e excelência. E preparaste, ainda inédita, outra antologia, na qual incorpora autores ainda mais recentes que se apresentam com as novas
tendências da nossa narrativa curta.
Canto nove
Agora, quero falar com especial encanto sobre teu livro
magistral, dedicado ao poeta Sosígenes Costa, não por acaso
cognominado por ti, o poeta grego da Bahia. Se teus avós e teu
pai foram, por excelência, os habitantes gregos da Bahia, o teu
inconsciente crítico certamente buscou no poeta Sosígenes, cidadão baiano de nome grego, as similitudes entre tecné e poiesis.
Teus antepassados próximos foram poetas da escolha do lugar,
viveram suas vidas como arte cotidiana, aventurosa e dramática
– e assim cumpriram-se na existência, e te deixando de herança a
genealogia, os mitos da pátria original, os mitos pessoais de suas
histórias e aventuras, assim como os cabedais de seus labores, e,
sobretudo as relíquias da cultura das letras.
Haveria mesmo de te encantar um poeta que é Sosígenes,
nome grego de um filósofo visionário das esferas celestes, e que
é Marinho, nascido à beira de rio e mar, e também Costa, e o
que possa significar. Quantas afinidades eletivas entre a poesia,
e a terra e o mar.
O encanto e arte, encontro de almas patrícias, diáspora de
sensibilidades, sabores das mesmas fontes compartilhadas no
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
mundo das musas. Como teu avô que garimpava o fundo do mar,
tu foste à região profunda da memória lírica – e resgataste as joias
que há muito não reluziam aos olhos dos que amam as palavras,
quando estas se abraçam para bailar, numa poesia que celebra os
deuses entronados no saguão mais sublime da alma humana.
E por tuas mãos, Sosígenes Costa, o poeta grego da Bahia,
como afirmava James Amado, de novo fulgurou nos céus da poesia nacional, como uma árvore isolada na floresta, – segundo o
destaca Jorge Amado. O teu ensaio com sabor de apologia tem
este sentido de elevação do que estava embaixo, e que se eleva
em face de Apolo. Pelo exercício retórico da apologia, tu requalificas a imagem do poeta, tocas seus poemas com o olhar que
transmite o brilho iluminador. Esse exercício retórico, vazado
em leitura, observação e análise com admiração e louvor é um locus especial da crítica, onde razão e emoção se fundem e operam
num só impulso, como energia que dá vida aos textos.
James Amado, que aqui hoje estaria exultante, e te teria entronizado neste salão com seus passos cadenciados e olhar perquiridor sobre a plateia, afirmou com muita propriedade e gratidão:
“Gerana Damulakis, de nome e raiz gregos, tem desde logo esse
ponto de contato com o encantado de Belmonte. Estudiosa das
questões culturais, ensaísta jovem e de talento reconhecido, frequentadora do verso, ela também, certo dia descobriu a poesia de
Sosígenes Costa. Como Iararana, cheirou a flor, e caiu estatelada.”
Aqui percebemos a referência à magia do encantamento das palavras, o perfume dessa flor de palavras que inebria – e é o poema!
– semelhante ao toque dos deuses que transforma a alma e os
destinos dos homens. Poesia, poção das musas. E James Amado conclui sobre ti, Gerana, como leitora encantada de Sosígenes
Costa: Diz ele: “Desde então é fiel de seu perfume, participa da
grande festa que é a obra do poeta”. E eu retomo a palavra para
assinalar que, certamente, são duas festas no mar, pois aí está o locus mítico de Damulakis e de Sosígenes – destinos marcados pelo
mar. Ele é o poeta de “Belmonte, terra do mar” e tu és a crítica de
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
ancestralidade marítima. Vida e palavra emergindo, como divindade erguida no trono das palavras. Eis a metáfora do mito, em feitio
de alegorização, sob a égide de Poseidon, em novo locus de viagem,
seja o mar das águas, que unem as terras dos navegadores; seja o
mar das palavras que reúnem dos poetas as pátrias.
No átrio de teu livro, Sosígenes embarca qual poeta morto,
aedo silenciado, bardo esquecido, e tudo lhe falta: desde a leitura
do templo e os louros à fronte, em sua obscura epopeia, naufragada em dramas e sombras lacunares. Assim, ao migrar desse
mundo, sem ouro à boca, o poeta atravessou o rio Aqueronte,
sem que o reconhecesse nem mesmo Caronte, o barqueiro que
leva os recém-mortos para o outro lado, à mansão de Hades. Ia o
poeta extinto e esquecido de olhos baixos. E tu, Gerana, tocada
por sua arte, abriste em teu livro a porta de Hades e glorificaste
o poeta, em nova travessia, em nova viagem.
Leitores de tua saga crítica, empreendemos juntos essa
travessia – e do outro lado de teu ensaio, ressurge o poeta belmontense num trono de glória, semideus do templo dos poetas
eternos. Nesse ritual de renomeação, banhamo-nos na exegese
dos magníficos sonetos pavônicos, matizados de cores, sensações e rutilâncias; degustamos os vinhos órficos e seus aromas
líricos; mergulhamos nos versos de uma era extinta; passeamos em Belmonte, terra do mar (uma cosmogonia sul baiana?); e assistimos ao nascimento da híbrida Iararana, marco
multicultural das terras brasis, que surge semideusa na foz do
Rio Jequitinhonha, filha da divindade das águas, a Iara, com o
navegador/invasor Tupã-Cavalo, teatro grego em arena de foz
de rio, no qual os mitos gregos e indígenas se fundem, copulam, se recriam – numa hibridação fértil, caótica e preciosa.
Tupã-Cavalo é centauro, bicho com cabelo de cobra é Medusa,
Pã é homem e bode. Mas pã perdeu a gaita, o império de Zeus
desmoronou – e novo reino de símbolos emerge das águas
do Jequitinhonha, às sombras dos cacauais. Iararana, canto do
cacau, epopeia fundadora, pantomima curiboca. E Sosígenes
►► 393
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Costa surge de suas águas qual Hesíodo grapiúna, ao configurar a nossa teogonia cabloca.
Através de minha leitura, Sosígenes simbolicamente leu o teu
livro – e pode agora, através de minha voz, te dizer, iluminado e
agradecido, os versos de um poema emblemático de sua obra lírica. Para Sosígenes Costa, o teu ensaio é um pôr do sol à beira do
Rio Jequitinhonha, quase tocando as ondas do mar. Os poetas, pela
mística romântica, são sempre rapazes. E teu ensaio torna Sosígenes Costa um nobre entre os rapazes, pelas simples sugestões que
trazes. Então te diria o poeta encantado estes versos em teu louvor:
Gerana Damulakis:
Tornou-me o Pôr do sol um nobre entre os rapazes.
E assim sou castelão, e a vida fez-se oásis
pelo simples poder, ó pôr do sol fecundo,
pelo simples poder das sugestões que trazes.
Canto dez - Final
A Grécia dos poetas e dos filósofos repousa na memória
dos deuses e dos homens. Há séculos e séculos, a arte, a política,
a ética, a filosofia e o conhecimento vicejam nas veias ávidas
do Ocidente, resplandecem nas planícies e ecoam nos planaltos,
como palavras e ritos de celebração e encantamento.
Gerana Damulakis, que barco te trouxe a este porto do
jardim de Academos? Vieste até esta Academia a bordo de um
barco de papel, no qual se inscrevem palavras, metáforas, narrativas, conceitos, melodias, sonhos, aventuras, tragédias, sorrisos
e lágrimas. Vieste a bordo dos livros, estes barcos de papel que
nos levam ao infinito das memórias e do porvir.
As emoções mais profundas nos unem a todos nesse lapso
solene de nossas vidas, reunidos todos em plateia exata e irrepetível
– e unicamente hoje e nunca mais – neste templo das letras baianas.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Corre em nossas veias o mesmo néctar de Mnemosine que alimenta
em nós as musas e os deuses e nos torna imortais.
Nesta Academia, tomas posse da cadeira 29, consagrado
trono de um escritor maior. És a legítima sucessora de Hélio
Pólvora, saudoso navegante do mar de Azov, estrela de alta grandeza a brilhar nas terras do sem fim da literatura brasileira. Hélio
de excelso valor, personificação do Sol na mitologia grega, filho
dos titãs Hiperion e Teia. Ele mesmo um titã das letras baianas,
homem de letras e de família, casado com sua musa eternal, Maria Pólvora, aqui presente e testemunha deste ritual de sucessão.
Detenho em meu ser, neste momento, o poder do discurso solene desta Casa. Investido pela tradição da palavra, eis
que, na condição de poeta, recebo-te como membro vitalício da
Academia, como poetisa de Zeus, guardiã das metáforas, ungida
dos deuses, guardadora de mitos, imortal de Mnemosine. Para
glória da Academia, ad imortalitatem.
Gerana Damulakis, contempla este anfiteatro, eis o templo das musas e dos mitos. Eis em volta teus súditos, nesta hora
suprema e abismal.
Seja bem-vinda. Muito obrigado.1
Aleilton Fonseca é nascido em Firmino Alves-BA, criado em Ilhéus,
e reside em Salvador. Doutor em Letras, leciona na UEFS, Feira de
Santana. Já publicou cerca de 20 livros, entre os quais: As formas do
barro (2006), Um rio nos olhos (2012), O desterro dos mortos (2002), Nhô
Guimarães (2006) e O pêndulo de Euclides (2009), O arlequim da Pauliceia
(2012) e Il sapore delle nuvole (tália). Tem textos traduzidos em francês
inglês, espanhol, neerlandês, alemão e italiano. Pertence à UBE-SP, ao
PEN Clube do Brasil, à ALITA e à Academia de Letras da Bahia.
Discurso de recepção a acadêmica Gerana Damulakis na Cadeira número 29, proferido em sessão solene, no Salão Nobre da Academia de
Letras da Bahia, em 03 de setembro de 2015.
►► 395
DISCURSO DE POSSE
YEDA PESSOA DE CASTRO
Mesa Digníssima: Senhor Presidente: Prof. Edivaldo
Machado Boaventura, Mãe Stella de Oxóssi, Yalorixá do
Axé Opô Afonjá, Acadêmicos Dr. Roberto Santos e Profa. Consuelo Pondé de Sena, Prof. Lourisvaldo Valentin,
Magnífico Reitor da Universidade do Estado da Bahia,
Ilustres Confrades e Confreiras, Familiares do Prof. Dr.
Oldegar Franco Vieira,
Senhoras e Senhores.
T
udo isto começou, há muito tempo atrás, no dia em que eu
li As aventuras do Avião Vermelho de Erico Veríssimo. Contava a história de um menino que recebera de presente um lindo
aviãozinho vermelho e, à noite, dormiu a sonhar que viajava pelo
mundo fazendo paradas na Lua, na China e, por fim, na África.
E foi, então, ali na África onde protagonizou uma aventura em
plena selva, fascinado por negros que falavam uma língua que
pareciam cantar, mas que ele não conseguia entender.
Viajei também naquele sonho que despertou em mim a
curiosidade de saber que mistérios guardava aquela gente, veladamente temida, que falava à semelhança dos negros admirados
da minha infância e adolescência repartida entre Feira de Santana onde nasci e esta cidade do Salvador onde fui registrada na
Freguesia de N. Sra. Santana.
Fui batizada Yeda Antonita CarneiroPessoa. O nome
Antonita, como o da minhasaudosa irmã Zuleide Antonita,
foi escolhido pelo meu pai por sua devoção a Santo Antônio.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Otaviano Pessoa da Silva sempre lembrado como “Seu Pessoa” ou, para os mais íntimos, “Seu Tavinho”, um dos fundadores da Associação dos Funcionários Públicos do Estado
da Bahia e do Esporte Clube Ypiranga. Imortal do “Senado”,
antiga roda de bate-papo na esquina da Rua Chile.
Por parte de mãe, deveria ter o sobrenome de Jesus Medeiros, da família de minha avó Rosinha, nascida e criada na Fazenda Campas, que pertencia ao município de Cachoeira. Depois, distrito de Feira de Santana, com o nome de São José das
Itapororocas, e atualmente, Maria Quitéria, em homenagem a
sua filha mais ilustre.
Por feliz coincidência, quis o destino me contemplar com
antepassados ilustres da história das lutas pela independência
do Brasil. Brigadeiro José Eloi Pessoa da Silva e Maria Quitéria
de Jesus Medeiros, que enfrentou todos os preconceitos porque
mulher e combatente de primeira linha na batalha em defesa da
soberania do território baiano.
Também o destinome fez Olubumin, filha de Oxum
Apará, orixá guerreira, mas nascidasob a trilogia do signo de
Libra, de Malunga Kisimbi, inquice Dandalunda das águas
doces que arrefece a impetuosidade da paixão, da luta contra
a discriminação, a opressão e a injustiçasocial. Esse equilíbrio
de forças foi sustentado por outra trilogia muito querida, reinante na intimidade da minha vida familiar: minha inesquecível mãe Almira, que me ensinou a amar, amando, minha filha
Ana, companheira de todas as horas, e meu filho Augusto,
jamais esquecido.
Senhoras e Senhores, cresci no bairro pobre da Barroquinha, na Baixa dos Sapateiros, ao final da linha de bondes da
Companhia Linha Circular o que fazia a minha alegria e da meninada da nossa rua ao brincarmos de pongar e despongar naqueles que passavam vazios para baldeação.
Aos quatro anos de idade era alfabetizada pela Profª.
Antonieta que mantinha uma escola em sua própria casa, na
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Avenida Baltazar, em frente à minha e ao lado de onde morava Nelson Maleiro. Negro de porte atlético que me ajudava a atravessar a rua alagada em dias de chuvas torrenciais,
cujas águas invadiam as nossas casas. Figura de destaque do
famoso bloco carnavalesco Mercadores de Bagdá dos anos 50 e
muito popular à época como O Gigante Itapoã que lembrava
a figura do Gênio saído da Lâmpada de Aladim dos contos
infantis. Era o encarregado de gongar calouros no programa
Escada para o Sucesso da recém-inaugurada TV Itapoã que revelou muitos nomes que se projetaram no cenário artístico
nacional, como Zé Rodrix e o Quarteto em Si.
Estudei o primário na Escola Nossa Senhora de Fátima,
na Ladeira da Independência, n. 35. Dona Minervina, minha
professora e tambémproprietária de umpensionato anexo para
moças, mulher negra, poderosa e altiva, mantinha uma disciplinasevera, acompanhada sempre da frase exemplar: Esta é a Rua
da Independência, Casa da Liberdade, mas com disciplina.
Todas as manhãs eu caminhava até a escolapela Rua do
Gravatá. Depois segui o mesmo caminho, enquanto estudava
no Instituto Baiano de Ensino, no Campo da Pólvora, e no
Colégio Severino Vieira, em Nazaré. Não sabia ainda, que
ao longo desses anos, atravessava, diariamente, entresegredos
do Axé e do Gunzo, de Força e Magia, ouvindo casos, cantigas, pregões, que soavam com palavras que me encantavam
e eu não entendia. Prometi a mim mesma que, um dia, iria
saber o que diziam.
Na Rua do Gravatá, conheci o babalorixá Procópio do
Ogunjá que me deixava intrigada pelo seu linguajar e pelos
produtos de nomes estranhos que vendia em sua quitanda folhas, búzios, quartinhas, frutos e frutas A Ebome Raimunda
de Xangô, apregoando o fato-de-boi em gamelas à porta do
subsolo da casa onde morava. Mono Iroco, carinhosamente
chamado de Nagô Sapateiro, sempre disposto em sua oficina
a dar um jeito de graça no par de “galopins”, o único que eu
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
tinha para ir à escola. Meu pai foi um humilde funcionário da
Secretaria do Interior e Justiça do Estado, onde trabalhou 35
anos de sua vida.
Nos meses de férias, para aliviar as despesas em casa,
minha irmã e eu íamos para Feira de Santana de marinete, para
o “bangalô”, na Av. Senhor dos Passos, dos meus saudosos
tios Idalina e Coronel Hermínio Santos, patrono da Filarmônica Euterpe Feirense. Nosso portador, a negra Fortunata, de
batabranca e chinelas, ostentado sempre uma folha de guiné
atrás da orelha esquerda para combater mazelas. Desaforada e
valente, rezava com palavras ininteligíveis contra mau-olhado,
espinhela caída. Conhecedora de folhas como ninguém, gozava da fama de ser feiticeira pela vizinhança onde morava no
Beco do Pilão Sem Tampa.
Anos mais tarde, em 1958, recém-formada em Letras, pela
UFBA, testemunho a criação do Centro de Estudos Afro-Orientais, sob inspiração do humanista português George Agostinho da Silva, na gestão do Magnífico Reitor Professor Edgard
Rego dos Santos. Integrava a equipe do professor Nelson Róssi
durante o IV Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, realizado no novoprédio da Faculdade de Odontologia.
Seguindo o exemplo do Professor Cícero Pessoa da Silva,
mestre ilustre de inúmeras gerações, já ensinava Português no
Instituto Normal da Bahia, depois de tê-lo sido no antigo Colégio Carneiro Ribeiro. Comecei a trabalhar aos 15 anos de idade
dando aulas particulares, também de taquigrafia, para sustentar
os meus estudos.
Em 1961, participei do 1ª do curso de língua ioruba ministrado pelo professor nigeriano Ebenezer Lasebikan, em uma
sala do subsolo da Reitoria onde funcionava o CEAO. No ano
seguinte, era colocada à disposição da Universidade de Ifé, na
Nigéria, pelo Governo do Estado da Bahia, para onde segui em
companhia do Professor Guilherme de Souza Castro com quem
estive casada por dez anos.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
De volta da Nigéria, em 1963, sou admitida no CEAO por
indicação do Professor Waldir Freitas Oliveira, seu diretor à época, a fim de prestarserviços ao recém-criado Setor de Estudos
Etnolingüísticos. Escrevo umartigo publicado no 1° número da
Revista Afro-Asia, dando noticia da pesquisa que havia realizado
com a Comunidade Brasileira de retornados da Bahia para Lagos,
em 1899, aos quais fui apresentada por Pierre Verger que, então,
se encontrava naquela cidade africana.
Como para mim não era o bastante, optei por fazer pesquisas nos dois lados do Atlântico e estudar antropologia, por
entender que as questões da linguagem não podem ser tratadas
sem os aspectos geradores da cultura.
Com essefirme propósito, ingresso no Mestrado de Ciências Sociais, logoqueesse foi instituído pela UFBA em 1969.
Desloco as pesquisas de Salvador para o Recôncavo. Em 1972,
obtenho o grau de Mestre em Ciências Sociais, com dissertação
escrita na Universidade de Ifé sobre a linguagem religiosa de
um terreiro na cidade de Santo Amaro. Redescobri a presença
banto e jeje na Bahia até então encoberta pela concentração dos
estudo sem terreiros de tradição nagô-queto na cidade do Salvador. Contava com o apoio financeiro da Fundação Atlântico Sul,
outro projeto arrojado de George Agostinho da Silva e cujasede
ficava na cidade de São Felix.
Quatro anos depois, com o apoio do Departamento
Cultural do Itamaraty, estendi minhas pesquisas ao mundo
banto falante com a tese de Doutorado de Estado em Línguas Africanas na Universidade Nacional do Zaire, hoje Congo - Kinshasa. Reabro o capítuloque parecia encerrado de
uma históriaqueaindanão foi devidamente contada quanto
à participação de falantes negro-africanos na construção do
português brasileiro.
Senhoras e Senhores, foram mais de quatro milhões de
africanos trazidos em cativeiro para o Brasil onde se viram coagidos a falar português como segunda língua, introduzindo
►► 401
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
naturalmente nesse novo falar hábitos lingüísticos de suas línguas originais e não apenas palavras que foram aceitas pelo português. Ao longo de trezentos anos, essa multidão de falantes
constituiu a maioria da nossa população. Sua distribuição humana alcançou tal amplitude geográfica que a presença negro
africana foi constante e em número preponderante em todas
as regiões do território colonial brasileiro onde se instalava um
núcleo humano de exploração econômica, dependente que era
da mão-de-obra negra escravizada.
A partir desses fatos, levantamos a tese de que o português do Brasil, naquilo em que ele se afastou do português de
Portugal, é historicamente o resultado de um movimento implícito de africanização do português antigo e regional, e, em
sentido inverso, de aportuguesamento do africano sobre uma
matriz indígena pré-existente e mais localizada no Brasil. Se assim foi, o Brasil africanizou o português de Camões ao lhe dar
características próprias que o afastam do português de Portugal
e contribui com seus quase 200 milhões de falantes a tornar o
português uma das línguas mais faladas no mundo.
E esse Português Brasileiro ensinei, na qualidade de Professora Visitante, em universidades da África e do Caribe, onde
também fui Adida Cultural da Embaixada do Brasil a serviço
do Itamaraty. Sobre suas origens africanas há meu depoimento
gravado em vídeo no Museu da Língua Portuguesa em São Paulo no qual fui responsável pela descrição das línguas africanas
que foram faladas no Brasil. Freqüentemente sou convidada por
universidades do Brasil e do exterior para cursos, seminários,
conferências, com três livros e inúmeros trabalhos publicados
em revistas e periódicos também de circulação internacional, em
vários idiomas. Há quatro anos, leciono o curso de línguas e
culturas africanas no Brasil como Professora Visitante no Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade
da Universidade do Estado da Bahia a convite da sua então
Coordenadora, Profª. Jaci Menezes, no reitorado da Professora
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Ivete Sacramento e, presentemente, do Magnífico Reitor Professor Lourisvaldo Valentim.
Senhoras e Senhores, não tinha idéia de que, ao voltar do
Zaire em 1980, iria assumir a direção do CEAO com o apoio
integral do saudoso Reitor Dr. Luis Fernando de Macedo Costa. Foram dez anos consecutivos, com intervalo de dois anos
à disposição da Embaixada do Brasil em Trinidad e Tobago,
desenvolvendo uma política de ações afirmativas com o firme
propósito de ampliar seus serviços em beneficio da inclusão
social e promoção da auto-estima dos vários segmentos da
comunidade baiana. Esse trabalho contou com a colaboração
efetiva e participante dessa mesma comunidade, a dedicação
do seu Vice-Diretor Dr. Climério Joaquim Ferreira e de todos
os nossos funcionários e não sofreu solução de continuidade
na gestão dos Magníficos Reitores Germano Tabacof e José
Rogério da Costa Vargens.
Aqueles objetivos alcançaram o êxito desejado através
de atividades tais como O Encontro de Nações de Candomblé, a
inauguração do Museu Afro-Brasileiro no Terreiro de Jesus e o
curso de Introdução aos Estudos da História e das Culturas Africanas.
Destinado a professores do ensino médio, em 1985, tornou-se
disciplina opcional na rede estadual de ensino através de portaria do então Secretario de Educaçãodo Estado, Prof. Edivaldo Boaventura. Foi o precursor da disciplina História e Cultura
Afro-Brasileira, feita obrigatória, dezoito anosdepois, pelaLei
Presidencial 10.639 de 2003.
Estava escrito! Todos os caminhos que percorri e os lugares por onde andei me levavam a uma sódireção. A vocação
pelos estudos afro-brasileiros, visando descobrir para valorizar
a herança negro-africana no Brasil, combatendo a segregação
e a intolerância através do seumaisefetivoinstrumento de luta.
A educação, a informação correta, cientificamente isenta, que
gera o respeito pela diferença relativa aos outros e promove
ummundo de paz.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Ao longo desse percurso fui guiada pelo carinhoso incentivo dos meus pais e de meus tios Idalina e Almerinda Carneiro,
Cícero e Armanda Pessoa, pelo companheirismo da minha incontornável amiga Professora Consuelo Pondé de Sena e pelos
ensinamentos de Mestres como Thales de Azevedo, Hildegardes
Viana, Nelson Rossi, Luis Henrique Dias Tavares, Cid Teixeira,
Vivaldo da Costa Lima, Olga de Alaketu, Stella de Oxossi, Nicinha de Lokosi, Sérgio Barbosa, Seu Benzinho e muitos outros
de igual grandeza.
Devo estender este preito de gratidão aos grandes e dedicados amigos cujo apoio tem sido decisivo para me animar a
prosseguir alimentando os ideais humanistas da minha trajetória
acadêmica, desde os tempos em que fui diretora do CEAO nos
anos difíceis da ditadura militar no país. Entre eles, especialmente, o professor emérito da UFBA, Vivaldo da Costa Lima e o
historiador Embaixador Alberto da Costa e Silva. Lembrando
ainda de alguns não mais entre nós, como o Reitor Macedo Costa, o Professor José Calazans e Dr. Jorge Calmon.
Em 1993, aposentei-me como professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal da Bahia. Na
ocasião, fui agraciada pela Câmara de Vereadores desta cidade
com a Comenda Maria Quitéria e condecorada pelo Presidente
Fernando Henrique Cardoso no grau de Comendadora da Ordem do Rio Branco do Ministério das Relações Exteriores do
Brasil por serviços prestados ao país na política de aproximação
cultural Brasil-África, da qual fui pioneira. Com a mesma alegria,
recebi o título de Sócio Benemérito da FEBACAB, Federação
Baiana do Culto Afro-Brasileiro, a placa estampada na parede
reverenciando o meu nome com que Clarindo Silva, seu proprietário, me imortalizou na Cantina da Lua no Terreiro de Jesus, e
o Afoxé Filhos do Congo ao desfilar no Carnaval passado com
o tema do meu Livro Falares Africanos na Bahia. Essas são algumas entre muitas outras demonstrações do carinho, dos laços de
amizade e confiança que me unem à comunidade afro-baiana.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Senhores Acadêmicos, ilustres Confreiras e Confrades,
muito agradeço a gentileza do vosso gesto pela honrosa distinção de sufragar o meu nome para ocupar a Cadeira n.11 deste
Sodalício. Uma Cadeira que tem como patrono o Jurista do Império Francisco Ge Acaiaba de Montezuma, Visconde de Jequitinhonha, como Fundador Antonio Ferrão Moniz de Aragão,
Governador da Bahia, segundo Titular Dr. Otávio Torres, e último ocupante Oldegar Franco Vieira. Eleito em setembro de
1963, tomou posse no dia 10 de outubro do ano seguinte, sendo
saudado pelo Confrade Jose Calasans Brandão da Silva.
Mas quem era Oldegar Franco Vieira? Aquele amigo e
colaborador do CEAO que me deu apoio enquanto estive na
direção do mais antigo centro de estudos africanos e orientais
nas Américas e que hoje não é mais o mesmo.
Oldegar Vieira, nasceu na Bahia e muito cedo, aos 17
anos, descobre o interesse pela cultura japonesa com a leitura de
“Missangas”, de Afrânio Peixoto, dedicando-se então a escrever
haicais, gênero de poesia tipicamente nipônico, surgida no século XVI, considerado nobre pela sutileza de suas mensagens de
caráter reflexivo e composta de dezessete sílabas divididas em
três versos de 5, 7 e 5 sílabas.
Foi dos primeiros poetas a publicar haicai no Brasil, o
segundo em livro. Em 1940, estimulado pelo próprio Afrânio Peixoto, publicou Folhas de Chá , tido como o primeiro
livro brasileiro inteiramente de haicais, um gênero então ainda pouco comum e que não gozava da simpatia de alguns
acadêmicos, um elemento estranho por fugir dos padrões então conhecidos pelo mundo literário brasileiro. Assim, pois,
ao concorrer a concurso da Academia Brasileira de Letras,
o poeta Cassiano Ricardo não o considerou de pronto ao
tratar a publicação como “pura extravagância em face da sensibilidade brasileira”. Uma indelicadeza, comenta Fernando
Tolentino, com o também poeta Guilherme de Almeida, que
integrava o júri e já escrevia haicais.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
No prefácio do livro, Oldegar define assim o haicai: “Eles
são como a palheta que tange as cordas das almas. Neles se dá a
liberdade interior e pessoal de modular a nota inicial segundo as
inclinações sentimentais diversas.”
Morando no Rio de Janeiro, para onde migrou aos 22 anos
com o título de bacharel em Direito, Oldegar lecionou no Senai,
dando seguimento à longa carreira de magistério, que iniciara no
Colégio Estadual da Bahia (Central), onde lecionou Psicologia e
Lógica. Trabalhando no INEP (órgão do Ministério de Educação e Cultura), o Prof. Lourenço Filho o indicou para Diretor de
Educação do então Território do Guaporé, hoje Estado de Rondônia. Lá, implantou o movimento escoteiro e casou com a enfermeira catarinense, nascida em Florianópolis e graduada no
Rio de Janeiro, sua companheira durante toda a vida, com quem
teve três filhos, sete netos e cinco bisnetos.
Em 1947, regressa a Bahia, onde além de atuar como procurador, foi professor de sociologia da Universidade Católica
de Salvador e da Escola de Estatística da Bahia, que fundou e
dirigiu durante vários anos, assim como da Escola Técnica M.
A. Teixeira de Freitas. Criada a UFBA em 1946, o reitor Edgard
Rego Santos convida-o para ser diretor e organizar a recém-fundada Escola de Administração.
Oldegar é autor de diversos ensaios de Direito, Educação
e Geografia, entre outros temas. Desde a juventude, colaborou
com diversas publicações em jornais baianos, A Tarde em 1932,
e no Rio de Janeiro, em 1933, Revista Brasileira de Letras.
Em 1974, publicou ainda Gravuras no Vento, uma primorosa edição do editor Massao Ohno em co-edição com a Aliança
Cultural Brasil-Japão, com poemas extraídos de várias de suas
obras; e, recentemente, teve poesias incluídas em coletânea de
haicais organizada por Adriana Calcanhotto (Haicai do Brasil,
Editora Janeiro), na qual também é incluída sua irmã, Joanna
Angélica Vieira Ribeiro, que declara ter se tornado haicaísta
como uma homenagem a ele e hoje é uma poeta apreciada.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Ainda publicou dois pequenos compêndios ensaísticos.
Em 1975, lança “O haicai – exclusivamente japonês?” da Editora Cátedra do Rio de janeiro, ensaio sobre a aclimatação do haicai no
Brasil, e “Uma notícia – breve e cautelosa – da poesia japonesa”, que recebeu o premio Kawabata de 1978, promovido pelo Pen Clube
do Brasil e Fundação Japão.
Uma das obras mais agraciadas de Oldegar Vieira foi justamente o ensaio sobre o haicai, que o credenciou a ser convidado a receber, no Japão, a insígnia de Comendador da Ordem do
Tesouro Sagrado com Laço, outorgada pelo Imperador Akihito.
Poeta, jurista, ensaísta, Professor Emérito da Universidade
Federal da Bahia, membro das Academias Baiana de Educação,
de Letras Jurídicas da Bahia e de Letras e Artes Mater Salvatoris
além da Associação Cultural Brasil-Japão,da qual foi fundador e
é Presidente de Honra.
Não haveria tempo para descrever aqui as inúmeras atividades que notabilizou esse emérito acadêmico da educação e
das letras. Simpático, sereno e modesto, como compete a todos
os sábios, foi como poeta que ele encontrou sua plena realização - o seu papel de haikaista da literatura brasileira ,uma das
suas paixões desde jovem e, que, mesmo, depois de ficar cego
por doença indeterminada e até se despedir em novembro de
2006, aos 91 anos, pedia aos seus familiares que lhe estivessem
mais próximos para transcrever os hakais que naquela hora ele
criava e ditava.
Neve natalina.
Um menino cara-suja
Contempla a vitrina.
(Natal)
A mão da manhã
Soltou na clara do céu
A gema do sol.
(um ovo)
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Gravuras no Vento, de 1994, é uma primorosa edição com
poemas extraídos de várias de suas obras.
Senhor Presidente, Mesa Digníssima, Ilustres Confrades
e Confreiras, familiares do Prof. Dr. Oldegar Franco Vieira, Senhoras e Senhores, Meus Amigos.
Exemplos de Júbilo como este, de confraternização de
comunidades etnicamente diferenciadas e espontaneamente
solidárias na suarazão de ser, é que me animam a sonhar com
aquele aviãozinho vermelho, trilhando juntosporcaminhos da
sabedoria de viver e de realizar.
– Como uma vez poetizou Fernando Pessoa:
Trago dentro do meu coração,
Como um cofre que se não pode fechar de cheio
Todos os lugares onde estive, todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas
ou vigias ou tombadilhos, sonhando.
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que quero.
Neste momento, colaborar com meus Pares para aproximar os vários segmentos da comunidade baiana que sempre me
prestigiariam e criar parcerias com a sua, a nossa venerável e
veneranda Academia de Letras da Bahia.
AO POVO BANTO, aqui representado pelo Tata Anselmo do Terreiro Mokambo a quem agradeço a honrosa saudação
que me fez
Nzambi, ngasakedila mbote.
AO POVO JEJE, na pessoa do Ogã Gilberto do Terreiro
do Bogum
Xonton che, Mawu – Lisa.
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
AO POVO NAGÔ-KETU, nas palavras abençoadas da
Yalorixá Stella de Oxóssi do Terreiro do Axé Opô Afonjá.
Olorum, mo dupe pupo.
A ACADÊMICA PROFESSORA CONSUELO PONDÉ DE SENA que submeteu meu nome para ingressar nesta
Casa de Gerações de Cultura e a PLÊIADE DE SEUS IMORTAIS que me acolheram
o meu mais sincero e afetuoso abraço por este
MOMENTO MAGNÍFICO.
- A TODOS AQUI PRESENTES,
MUITO OBRIGADA.1
Yeda Antonita Pessoa de Castro (Yeda Pessoa de Castro) é doutora
(PhD) em Línguas Africanas pela Universidade Nacional do Zaire,
República Democrática do Congo. Consultora técnica na Pró-Reitoria
de Extensão (PROEX) na Universidade do Estado da Bahia – Uneb.
Condecorada pelo Itamaraty no Grau de Comendadora da Ordem do
Rio Branco por serviços prestados ao País na política de aproximação
cultural Brasil-África. Entre suas obras, A língua mina-jeje no Brasil (2002)
e Falares africanos na Bahia (2005). Desde 2008 ocupa a Cadeira número
11 da ALB.
Discurso de posse da acadêmica Yeda Pessoa de Castro na Cadeira
número 11, proferido em sessão solene, no Salão Nobre da Academia
de Letras da Bahia, em 10 de abril de 2008.
►► 409
DIVERSOS
Efemérides 2015
Março
26 – Sessão especial de abertura do novo ano acadêmico. Evento
suspenso em virtude do luto oficial pela morte do acadêmico Hélio Pólvora, ocupante da cadeira número 29. Diante do corpo, em
nome da Academia de Letras da Bahia, falou o presidente Aramis
Ribeiro Costa. A sessão de abertura do ano acadêmico 2015 foi
transferida para o dia 09 de abril.
Abril
09 – 20hs - Sessão especial de abertura do novo ano acadêmico,
compreendendo: a) apresentação do relatório da gestão 2013/2015,
pelo presidente Aramis Ribeiro Costa; b) posse da nova diretoria
para o biênio 2015/2017, composta pelos acadêmicos: Evelina
Hoisel (Presidente), Myriam Fraga (Vice-presidente), Carlos Ribeiro (Primeiro Secretário), Ordep Serra (Segundo Secretário), Dom
Emanuel d`Able do Amaral (Primeiro Tesoureiro), Glaucia Lemos
(Segundo Tesoureiro), Edivaldo Machado Boaventura (Diretor da
Biblioteca), Paulo Ormindo (Diretor do Arquivo), Fernando da
Rocha Peres (Diretor da Revista), Paulo Costa Lima (Diretor de
Informática), Aramis Ribeiro Costa, Florisvaldo Matos e Aleilton
Fonseca (Conselho Editorial), João Eurico Matta, Geraldo Machado e Joaci Góes (Conselho de Contas e Patrimônio); c) lançamento
da Revista da Academia de Letras da Bahia nº53.
16 – 17hs. - Sessão regimental de depoimentos informais de homenagem ao acadêmico Hélio Pólvora, ocupante da cadeira número 29, falecido no dia 26 de março de 2015, com a presença
►► 413
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
dos acadêmicos: Evelina Hoisel (presidente), Luís Antonio Cajazeira Ramos, Urania Tourinho Peres, Joaci Góes, Paulo Ormindo,
Florisvaldo Mattos, Aramis Ribeiro Costa Myriam Fraga, Gerana
Damulakis, Aleilton Fonseca, Carlos Ribeiro e Gláucia Lemos.
30 – 17hs - Sessão ordinária a que compareceram os acadêmicos Evelina Hoisel (presidente), Gláucia Lemos, Edivaldo M.
Boaventura, Luis Antonio Cajazeira Ramos, Aleilton Fonseca,
Roberto Santos, Myriam Fraga, Paulo Ormindo, Carlos Ribeiro
e Ordep Serra para uma conversa com o escritor Rinaldo Fernandes, tendo como tema: ‘‘Questões da literatura atual no Nordeste’’. Após a sessão, lançamento do romance Romeu na estrada,
de Rinaldo Fernandes.
Maio
14 - Luto oficial pela morte da acadêmica Consuelo Pondé de
Sena, ocupante da Cadeira número 28. Diante do corpo, em
nome da Academia de Letras da Bahia, falou a presidente Evelina Hoisel.
21 – 20hs. — Sessão solene de posse do escritor Antônio Torres
na cadeira número 9, de que foi o último ocupante o acadêmico
João Ubaldo Ribeiro e que tem como patrono Antônio Ferreira
França. O novo imortal Antônio Torres foi saudado pelo acadêmico Aleilton Fonseca.
26 – 17hs - Reunião de diretoria com a participação dos acadêmicos Evelina Hoisel (presidente), Gláucia Lemos, Aramis Ribeiro Costa, Dom Emanuel d’Able do Amaral, Fernando Peres,
Myriam Fraga, Luís Antonio Cajazeira Ramos, Yeda Pessoa de
Castro e Ordep Serra com a seguinte pauta: a) Pintura da Academia de Letras; b) Seminários em 2015; c) Centenários em 2015;
d) Projeto para reforma da Praça Miguel de Cervantes; e) Revista da Academia de Letras da Bahia.
28 – 18hs - Sessão especial de homenagem póstuma ao acadêmico Hélio Pólvora (1928-2015), sendo orador o acadêmico
414 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Aramis Ribeiro Costa. Representando a família, Hélio Pólvora Filho agradeceu a homenagem prestada ao saudoso pai. A
presidente Evelina Hoisel, cumprindo o regimento da ALB,
declarou vaga a cadeira número 29, cujo patrono é Agrário
de Souza Menezes e cujo último ocupante foi o acadêmico
Hélio Pólvora.
Junho
11 – 17hs. - Sessão ordinária regimental de depoimentos informais de homenagem à acadêmica Consuelo Pondé de Senna,
que foi a última ocupante da cadeira número 28, e que tem como
patrono Luís José Junqueira Freire. Compareceram os acadêmicos Evelina Hoisel (presidente), João Eurico Matta, Dom Emanuel d’Able do Amaral, Gláucia Lemos, Roberto Santos, Joaci
Góes, Edivaldo M. Boaventura, Aramis Ribeiro Costa, Luís Antonio Cajazeira Ramos, Urania Tourinho Peres, Geraldo Machado, Yeda Pessoa de Castro, Paulo Ormindo, Guilherme Radel e
Ordep Serra.
18 – 18hs - Sessão especial em homenagem ao centenário de nascimento do acadêmico Oldegar Franco Vieira (1915-2015), terceiro titular da cadeira de número 11. Foi oradora da sessão a acadêmica Yeda Pessoa de Castro, atual titular da cadeira. Em nome
da família, falou o Sr. Fernando Tolentino Vieira, agradecendo à
ALB a solenidade de celebração da memória do pai. No final da
solenidade, o acadêmico e membro benfeitor da ALB, Edivaldo
Machado Boaventura, fez também um pronunciamento sobre a
importância da poesia do acadêmico Oldegar Franco Vieira.
30 – 14hs - Reunião preparatória para as comemorações do centenário do acadêmico José Calasans (1915-2001), segundo ocupante da cadeira número 28, com a participação de professores
da UNEB, UFBA, UCSAL, Museu Eugênio Teixeira Leal e Academia de Letras da Bahia.
►► 415
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Julho
09 – 18hs - Sessão especial em comemoração ao centenário de
nascimento do acadêmico Jorge Calmon Moniz de Bittencourt
(1915-2015), cadeira número 23, sendo orador o acadêmico Samuel Celestino, titular atual da cadeira 23. Na solenidade, que
contou com a participação de diversos membros da família, o Sr.
Jorge Calmon Filho, agradecendo a homenagem da ALB, falou
sobre a importância do legado deixado pelo pai para a família.
13 – 17hs - Sessão ordinária a que compareceram os acadêmicos
Evelina Hoisel (presidente), Carlos Ribeiro, Myriam Fraga, Edivaldo M. Boaventura, Florisvaldo Mattos, Aramis Ribeiro Costa, Cleise Mendes, Yeda Pessoa de Castro, Roberto Santos, João Carlos
Teixeira Gomes, Luís Antonio Cajazeira Ramos, Francisco Senna,
Dom Emanuel D’ Able do Amaral, Gláucia Lemos, Urania Tourinho Peres, José Carlos Capinan, Fernando da Rocha Peres, João
Carlos Sales, Geraldo Machado, Joaci Góes, João Eurico Matta, Ordep Serra, Paulo Costa Lima, Paulo Ormindo e Aleilton Fonseca
para indicação de candidatos à vaga na cadeira número 29, de que
foi o último ocupante o acadêmico Hélio Pólvora, tendo sido eleita,
com aprovação da assembleia, por obter o número de votos necessário, a candidata única Gerana Damulakis, que compareceu à sede
da Academia de Letras e declarou aceitar a eleição.
14 – 18hs - Sessão especial em homenagem ao centenário de
nascimento do acadêmico José Calasans (1915-2015), terceiro titular da cadeira número 28, sendo orador o acadêmico Edivaldo
M. Boaventura. Presente à sessão, Madalena Calasans, filha do
homenageado, agradeceu à ALB a celebração do centenário. A
sessão da ALB foi o marco inicial das comemorações do centenário do professor e acadêmico José Calasans, que se prolongaram até o final do ano de 2015, envolvendo as instituições: ALB,
UNEB, UFBA, UCSAL, Museu Eugênio Teixeira Leal.
23 – 17hs - Sessão ordinária, aberta ao público, a que compareceram os acadêmicos Evelina Hoisel (presidente), Luís Antonio
416 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Cajazeira Ramos, Gláucia Lemos, Roberto Santos, Edivaldo M.
Boaventura, Florisvaldo Mattos, Myriam Fraga, Carlos Ribeiro,
Aramis Ribeiro Costa e Yeda Pessoa de Castro para depoimento da acadêmica Gláucia Lemos sobre sua trajetória literária no
gênero conto e, posteriormente, lançamento do livro Todas as
Águas de autoria da acadêmica.
30 – 17hs - Sessão ordinária, aberta ao público, a que compareceram os acadêmicos Evelina Hoisel (presidente), Luís Antonio
Cajazeira Ramos, Roberto Santos, Myriam Fraga, Edivaldo M.
Boaventura, Aramis Ribeiro Costa, João Carlos Teixeira Gomes,
Carlos Ribeiro e Aleilton Fonseca, para depoimento da acadêmica Myriam Fraga com o tema: 30 anos de ALB.
Agosto
6 – 17hs - Sessão ordinária a que compareceram os acadêmicos
Evelina Hoisel (presidente), Samuel Celestino, Francisco Senna,
Carlos Ribeiro, Myriam Fraga, Geraldo Machado, João Carlos
Teixeira Gomes, José Carlos Capinam, Dom Emanuel d’ Able
do Amaral, Paulo Costa Lima, Cleise Mendes, Gláucia Lemos,
Paulo Ormindo, Fernando da Rocha Peres, Urania Tourinho Peres, Aramis Ribeiro Costa, Luís Antonio Cajazeira Ramos, Paulo
Furtado, Roberto Santos, Edivaldo M. Boaventura, Joaci Góes,
João Eurico Matta, Ordep Serra e Armando Avena Filho para
concessão do título de Acadêmico Benfeitor da Academia de
Letras da Bahia ao acadêmico Aramis Ribeiro Costa e eleição do
Dr. Carlos Augusto Ayres de Souza Britto para Membro Correspondente da ALB, ambos com indicação do acadêmico Edivaldo M. Boaventura.
10 – 17hs - Sessão especial de posse da escritora argentina María
Felisa Pugliese como membro correspondente da ALB, sendo
saudada pelo acadêmico Aleilton Fonseca.
11 – 17 hs. Curso Jorge Amado 2015 – V Colóquio de Literatura Brasileira/ Bahia de Todos os Santos: guia de ruas e mistérios, curso anual
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
da programação da ALB em parceria com a Fundação Casa de
Jorge Amado, sob a coordenação da acadêmica Myriam Fraga.
Abertura oficial: palavras iniciais da presidente da ALB, Evelina Hoisel, e depoimento de Paloma Amado Um canto de amor à
cidade; Conferência de Jacques Salah (UFBA): Da Bahia de Todos
os Santos à Bahia de Jorge Amado. 19hs: Lançamento do livro Jorge
Amado – Literatura e Política organização de Myriam Fraga, Evelina Hoisel e Aleilton Fonseca.
12 - Curso Jorge Amado 2015 – V Colóquio de Literatura Brasileira/
Bahia de Todos os Santos: guia de ruas e mistérios. 14.30hs: sessões
de comunicação. 16.30hs: Exibição do filme Retratos de um tempo
– Um novo olhar sobre a cidade da Bahia de Floro Freire e Antonio
Risério. 17hs. Conferência: Jerusa Pires Ferreira (USP) Texto e
imagem – Tereza Batista e a cultura das Bordas, coordenação: Ligia
Telles (UFBA); 17.45hs: Mesa Redonda: Tânia Regina Ramos
(UFSC) Memória e esquecimentos: Jorge Amado (1941-1942), Osnildo
Wan-Dall Junior (UFBA) Jorge Amado e as Bahias de todos os santos:
a cidade de Salvador através do guia de ruas e mistérios (1945-1986),
Benedito Veiga (UEFS) Jorge Amado: Bahia de todos os santos e os
matizes da hora da guerra, coordenação da mesa Gerana Damulakis (ALB); 19hs: Lançamento de livros: Jorge Amado na Hora da
Guerra de Benedito Veiga, Cultura das Bordas: Edição Comunicação,
Leitura de Jerusa Pires Ferreira, Jorge Amado: presenças da hora da
guerra em encontros acadêmicos de Benedito Veiga.
13 - Curso Jorge Amado 2015 – V Colóquio de Literatura Brasileira/
Bahia de Todos os Santos: guia de ruas e mistérios. 14.30hs Sessões de
comunicação; 16.30 hs: Exibição do filme Retratos de um tempo
– um olhar sobre a cidade da Bahia de Floro Freire e Antonio Risério; 17hs: Conferencia: Elizabete Ramos (UFBA) Bahia de todos
os amores coordenação Antonia Herrera (UFBA). 18.hs Mesa redonda: Reheniglei Rehem (UESC) Bahia de Todos-os-Santos: Poética Cartográfica da Cidade de Salvador, Nelson Cerqueira (Fazag/
UFBA) Introdução à recepção estética de Jorge Amado nos Estados Unidos, María Pugliese (UNL) Jorge Amado em Buenos Aires: causas y
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azares, Aleilton Fonseca (Uefs/ALB) As vozes da mata no romance
de Jorge Amado; Coordenação da mesa: Luís Antonio Cajazeira
Ramos (ALB); 19hs: lançamento do livro Uma visita a Jorge Amado/A visit to Jorge Amado de Nelson Cerqueira.
14 - Curso Jorge Amado 2015 – V Colóquio de Literatura Brasileira/
Bahia de Todos os Santos: guia de ruas e mistérios. Encerramento do
curso na sede da Fundação Casa de Jorge Amado com a escritora Myriam Fraga (ALB/FCJA) e lançamento do livro Jorge Amado em letras e cores de Rita Olivieri-Godet e Juraci Dórea.
18 – 18hs Sessão especial para lançamento do volume 10 da
Coleção Mestres da Literatura Baiana - Poemas de amor e morte, de Ruy
Espinheira Filho, uma parceria editorial da Assembleia Legislativa da Bahia com a Academia de Letras da Bahia.
20 – 18hs - Sessão especial de homenagem póstuma à acadêmica
e historiadora Consuelo Pondé de Sena (1934-2015), ocupante da
cadeira número 28, sendo orador da sessão o acadêmico e membro benfeitor da ALB Edivaldo Machado Boaventura. Eduardo
Pondé de Sena, filho da homenageada, falou em nome da família,
recordando momentos da carreira da mãe. A presidente Evelina
Hoisel, cumprindo o regimento da ALB, declarou vaga a cadeira
número 28, cujo patrono é Luiz José Junqueira Freire e cujo último ocupante foi a acadêmica Consuelo Pondé de Sena.
Setembro
03 – 20hs. - Sessão solene de posse da escritora Gerana Damulakis na cadeira de número 29, de que foi o último ocupante o
acadêmico Hélio Pólvora e que tem como patrono Agrário de
Souza Menezes. A nova acadêmica foi saudada pelo confrade
Aleilton Fonseca.
10 – 17hs. - Sessão ordinária a que compareceram os acadêmicos: Carlos Ribeiro (Primeiro secretário, presidindo a reunião
na ausência da acadêmica Evelina Hoisel (presidente) Guilherme Radel, Gerana Damulakis, Aramis Ribeiro Costa, Fernando
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
da Rocha Peres, Paulo Ormindo, Carlos Ribeiro, João Eurico
Matta, Urania Tourinho Peres e Gláucia Lemos para palestra do
acadêmico Aramis Ribeiro Costa, tendo como tema: A contística
de Jorge Medauar.
15 – 18hs. - Sessão especial em homenagem ao centenário de
nascimento do cineasta e acadêmico Walter da Silveira (27 de julho1915-2015), segundo ocupante da cadeira número 13, sendo
orador o acadêmico Carlos Ribeiro, cadeira número 5. A filha
do homenageado, Kátia da Silveira, falou em nome dos demais
familiares, ressaltando a importância do legado do pai para a
cultura da Bahia.
17 – 17hs - Sessão ordinária, aberta ao público, a que compareceram os acadêmicos: Evelina Hoisel (presidente), Ruy Espinheira Filho, Gerana Damulakis e Aramis Ribeiro Costa Carlos
Ribeiro, para conversa com o escritor Ruy Espinheira Filho sobre sua poesia e o seu mais novo livro de poemas Noite alta e
outros poemas.
30 –14hs - Abertura do Curso Castro Alves 2015 – X Colóquio de
Literatura Baiana/10 anos. Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários- PROGEL/UEFS coordenação Aleilton Fonseca
e Rosana Ribeiro Patrício.
Programação: Sessão de comunicações – temas, autores e obras
da Literatura Baiana, Conferência em homenagem ao centenário
de Adonias Filho: Adonias Filho: o lírico e o trágico na construção da
grandeza. Margarida Fahel (UESC/ALITA), coordenação da mesa
Evelina Hoisel (UFBA/ALB), lançamento do livro Travessia de
Abismos (poemas), de Cleberton Santos editora Via Litterarum.
Outubro
1º - 14hs Curso Castro Alves 2015 – X Colóquio de Literatura Baiana/10 anos. Programação: Mesa redonda: Três mestres baianos 1.Uma
Bahia na ilha de João Ubaldo Ribeiro, Débora Chaves (IFBA), 2. O
primado do feminismo na lírica de Osório Alves de Castro Luiz Valverde
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
(UEFS), 3. As crônicas de Vasconcelos Maia Edna Maria Viana Soares
(UNEB) coordenação da mesa Carlos Ribeiro UFRB/ALB), lançamento do livro: Uma cidade dia sim dia não. Salvador nas crônicas de
Vasconcelos Maia, de Edna Maria Viana Soares (Ed. Uneb).
2 – 14hs Curso Castro Alves 2015 – X Colóquio de Literatura Baiana/10 anos. Programação: Mesa redonda: A obra poética de Camilo
de Jesus Lima 1. Realidade e poesia: Camilo de Jesus Lima Ruy Herman
Araújo Medeiros (UESB) 2. Camilo de Jesus Lima por ele mesmo (imagens autobiográficas do arquivo Livro de Registro) Esmeralda Guimarães
Meira (UNEB/UESB) coordenação da mesa: João Eurico Matta
(UFBA/ALB) lançamento do livro Obra poética de Camilo de Jesus
Lima (2.vols. Assembleia Legislativa do Estado da Bahia). Conferência de encerramento: Musa e antimusa na lírica romântica (castro
Alves, Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu) Antonio Carlos Secchin (ABL/ALB/UFRJ) coordenação da mesa: Aleilton Fonseca
(UEFS/ALB). Apresentação musical: Singelas sonatas para sonetos
pavôvicos Marcos Roriz interpreta o poeta Sosígenes Costa (voz e violão).
05 – 17hs - Sessão de Eleição a que compareceram os acadêmicos: Evelina Hoisel (presidente), Ruy Espinheira Filho, João
Carlos Teixeira Gomes, Yeda Pessoa de Castro, Florisvaldo Mattos, Carlos Ribeiro, Roberto Santos, Cleise Mendes, Aramis Ribeiro Costa, Urania Tourinho Peres, Fernando da Rocha Peres,
Gerana Damulakis, Francisco Senna, Paulo Ormindo e Edivaldo
M. Boaventura para indicação de candidatos à vaga na cadeira
28 de que foi a última ocupante a acadêmica Consuelo Pondé de
Sena, tendo sido indicados dois candidatos.
08 – 17hs - Sessão Ordinária a que compareceram os acadêmicos: Evelina Hoisel (presidente), Florisvaldo Mattos, João Carlos
Teixeira Gomes, Aramis Ribeiro Costa, Fernando da Rocha Peres, Paulo Ormindo e Gerana Damulakis para palestra do acadêmico João Carlos Teixeira Gomes, tendo como tema Percorrendo
o Labirinto de Orfeu.
15 – Sessão Especial com a presença dos acadêmicos: Evelina
Hoisel (presidente), Aramis Ribeiro Costa, Gerana Damulakis,
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Paulo Furtado, Francisco Senna, Guilherme Radel, Ordep Serra,
Paulo Ormindo, João Eurico Matta e Roberto Santos em homenagem ao centenário de nascimento do acadêmico Josaphat
Marinho (1915-2015), quinto titular da cadeira número 30, sendo orador da sessão o acadêmico Paulo Furtado. Em nome da
família falou o Sr. Paulo Marinho, filho do homenageado.
22 – 17hs Sessão Ordinária a que compareceram os acadêmicos:
Evelina Hoisel (presidente), Aramis Ribeiro Costa, Roberto Santos, Gláucia Lemos, Edivaldo M. Boaventura, Fernando da Rocha
Peres, Urania Tourinho Peres, Dom Emanuel d’ Able do Amaral,
Paulo Ormindo, Joaci Goes e Carlos Ribeiro para palestra do acadêmico Roberto Santos com o tema Notas autobiográficas.
29 – 18hs - Lançamento do livro: Noite Alta e outros poemas do
acadêmico Ruy Espinheira Filho.
Novembro
05 – 17hs – Sessão Ordinária a que compareceram os acadêmicos Evelina Hoisel (presidente), Ordep Serra, Luís Antonio
Cajazeira Ramos, Paulo Furtado, Fernando da Rocha Peres,
Edivaldo M. Boaventura, Aramis Ribeiro Costa, Francisco Senna, Gerana Damulakis, Dom Emanuel d’Able do Amaral, José
Carlos Capinan, João Carlos Salles, Gláucia Lemos, Paulo Costa Lima, Samuel Celestino, Florisvaldo Mattos, Aleilton Fonseca, Cleise Mendes, Carlos Ribeiro, Ruy Espinheira Filho, Joaci Góes, Urania Tourinho Peres, Paulo Ormindo, João Eurico
Matta, Guilherme Radel, João Carlos Teixeira Gomes, Roberto
Santos, Ruy Espinheira Filho e Armando Avena para eleição de
sucessão da cadeira número 28 de que foi a última ocupante a
acadêmica Consuelo Pondé de Sena, tendo sido eleita a candidata Suzana Alice Marcelino Cardoso, que compareceu à sede da
Academia de Letras e declarou aceitar a eleição.
10 – 19hs – Abertura oficial do Seminário Thales de Azevedo: uma
avaliação crítica de seu legado. Museu de Artes da Bahia. Prelúdio:
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Inauguração da Exposição Presença de Thales: aquarelas, memória
fotográfica e objetos de trabalho de Thales de Azevedo, lançamentos dos
livros Thales de Azevedo e a arte de escrever e pintar de Paulo Ormindo de Azevedo e Uma pesquisa sobre a vida social no Estado da Bahia
de Jaci Maria Ferraz de Menezes, Exibição de Documentário
Seresta: Evento promovido pela Academia de Letras da Bahia,
Associação Brasileira de Antropologia, Museu de Arte da Bahia,
Universidade Federal da Bahia/Editora da Universidade Federal
da Bahia (Edufba), Secretaria de Cultura do Estado da Bahia e
Fundação Pedro Calmon. Com apoio da Academia de Ciências
da Bahia, Convento Sta. Clara do Desterro, Fundação Casa de
Jorge Amado, Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Universidade Federal do Recôncavo, Universidade Federal do Sul da
Bahia, Universidade do Estado da Bahia, Universidade Estadual
de Feira de Santana, Universidade do Sudoeste da Bahia, Universidade Estadual Santa Cruz e Universidade Católica do Salvador
11 – 8:30hs - Seminário Thales de Azevedo: uma avaliação crítica de seu
legado.
Comunicações – Convento do Desterro (trabalhos previamente
inscritos e selecionados pela Comissão Científica).
14:30 às 16:30hs – Sede da Academia de Letras da Bahia. Programação: abertura solene pela Presidente da ALB, Profª. Drª.
Evelina Hoisel, com boas-vindas aos participantes, discurso panegírico do Acadêmico Edivaldo M. Boaventura em homenagem a Thales de Azevedo; pronunciamento dos dirigentes das
instituições promotoras do seminário; fala do professor e acadêmico Ordep Serra sobre motivação do seminário; evocação de
Thales de Azevedo pelo acadêmico Paulo Ormindo de Azevedo.
18 hs - Anúncio das programações pelo Dr. Fernando Firmino; alocução do estudioso Ricardo Sangiovanni sobre o trabalho
jornalístico de Thales de Azevedo; alocução da Drª. Jaci Maria
Ferraz de Menezes sobre O papel de Thales de Azevedo no Convênio
de Pesquisa Social Estado da Bahia / Columbia University.
20 hs - Mesa-redonda 1 História e Relações Racias. Expositores:
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Drª. Ângela Figueiredo (UFRB), Dr. Lívio Sansone (UFBA),
Drª. Maria Rosário Carvalho (UFBA) debatedora, Drª. Maria
Brandão.
12 – 8:30hs - Seminário Thales de Azevedo: uma avaliação crítica de
seu legado.
Comunicações – Convento do Desterro.
14:30 às 16:30hs – Academia de Letras da Bahia Mesa Redonda
2 Estado e Religião. Expositores: Dr. Ordep Serra (ALB/UFBA),
Dr. Luís Nicolau Pares (UFBA), Dr. Jorge Santiago (LYON II),
debatedora, Drª. Yeda Pessoa de Castro (ALB).
18:30 hs - Mesa Redonda 3 Antropologia, Corpo e Saúde. Expositores: Drª. Núbia Rodrigues (FFCH/UFBA), Drª. Lívia Alessandro Fialho da Costa (UNEB), Dr. Carlos Alberto Caroso Soares
(UFSB) debatedor, Dr. João Carlos Salles (UFBA/ALB).
18:30 às 20:30 hs - Mesa redonda 4 Thales de Azevedo Polígrafo:
Arte e Literatura. Expositores: Dr. João Eurico Matta (ALB), Dr.
Paulo Ormindo de Azevedo (ALB), Drª. Cleise Mendes (ALB)
debatedor, Dr. Aleilton Fonseca (UEFS/ALB).
13 – 8:30hs - Seminário Thales de Azevedo: uma avaliação crítica de seu
legado.
Comunicações – Convento do Desterro.
14:30 – Academia de Letras da Bahia Mesa Redonda 5 Antropologia do Cotidiano. Expositores: Dr. Luiz Mott, Dr. Roberto da
Matta, Dr. Diego Marques: debatedor, Luís Antônio Cajazeira
Ramos (ALB). Mesa Redonda 6 O Campo da Antropologia Baiana. Expositores: Dr. Cláudio Pereira (UFBA), Drª. Anete Ivo
(UFBA), Dr. John Collins (CUNY) debatedor, Lívio Sansone.
19hs – Encerramento do Evento no Palácio da Reitoria da
UFBA. Concerto em homenagem a Thales de Azevedo com o
Maestro Paulo Lima e Orquestra Sinfônica da UFBA.
16 – 18hs – Sessão Especial de entrega do Prêmio pelo Conjunto de
Obra à acadêmica Myriam Fraga patrocinado pela Eletrogoes e
lançamento do livro Rainha Vashti de autoria da acadêmica.
19 – 17hs - Sessão Ordinária a que compareceram os seguintes
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
acadêmicos: Evelina Hoisel (presidente), Aramis Ribeiro Costa,
Gerana Damulakis, Edivaldo M. Boaventura, Joaci Góes, Luís
Antonio Cajazeira Ramos, Ordep Serra, Paulo Ormindo, Gláucia Lemos, Roberto Santos, João Eurico Matta, Carlos Ribeiro e
Florisvaldo Mattos para palestra do Acadêmico Edivaldo M. Boaventura, tendo como tema: Meu quarto livro de viagens: apodemias,
aprendizagem pelas viagens.
26 – 17hs – Reunião de Diretoria com a participação dos acadêmicos: Evelina Hoisel (presidente), Roberto Santos, Fernando
da Rocha Peres, Urania Tourinho Peres e Ordep Serra com a
seguinte pauta: Atividades 2015 – realizações e pendências, Atividades 2016, constituição de comissão para organizar o centenário da ALB – março 2017.
Dezembro
03 -17hs – Sessão Ordinária com a presença dos seguintes acadêmicos: Gláucia Lemos (sessão presidida pela acadêmica), Aramis Ribeiro Gosta, Luís Antonio Cajazeira Ramos, Edivaldo M.
Boaventura e Francisco Senna para fala do acadêmico Guilherme Radel com o tema Os mitos da cozinha africana no Brasil e lançamento do livro As bebidas e os tiragostos da Bahia de autoria do
acadêmico.
10 – 17hs – Sessão Ordinária a que compareceram os seguintes
acadêmicos: Carlos Ribeiro (sessão presidida pelo acadêmico),
Gláucia Lemos, Francisco Senna, Gerana Damulakis, Aramis
Ribeiro Costa, Luís Antonio Cajazeira Ramos, Cleise Mendes e
Ordep Serra para palestra do acadêmico Francisco Senna com
o tema: Sesquicentenário de Arlindo Coelho Fragoso e lançamento do
livro de Arlindo Fragoso O espírito...dos outros; crônicas modernas
(ed. fac-símile/Edufba).
17 – Encerramento do Ano Acadêmico e Confraternização de
Natal entre acadêmicos e funcionários.
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Quadro social da ALB1
Cadeira 1
Patrono: Frei Vicente de Salvador
Fundador: José de Oliveira Campos
2º Titular: Júlio Afrânio Peixoto (Afrânio Peixoto), fundador da
Cadeira 25, por transferência consentida pela Academia.
3º Titular: José Wanderley de Araújo Pinho
Titular atual:
Luís Henrique Dias Tavares
Posse em 14.06.1968
Cadeira 2
Patrono: Gregório de Mattos e Guerra (Gregório de Mattos)
Fundador: Aloysio Lopes Pereira de Carvalho (Lulu Parola)
2º Titular: Luis Viana Filho
Titular atual:
Paulo Ormindo David de Azevedo
(Paulo Ormindo de Azevedo)
Posse em 20.06.1991
O quadro dos titulares da Academia de Letras da Bahia foi originalmente
elaborado pelo acadêmico Renato Berbert de Castro (1924-1999)
1
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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Cadeira 3
Patrono: Manuel Botelho de Oliveira
Fundador: Arthur Gonçalves de Salles (Arthur de Salles)
2º Titular: Eloywaldo Chagas de Oliveira
3º Titular: Anna Amélia Vieira Nascimento
Titular atual:
Guilherme Requião Radel
(Guilherme Radel)
Posse em 09.10.2014
Cadeira 4
Patrono: Sebastião da Rocha Pita
Fundador: Braz Hermenegildo do Amaral (Braz do Amaral)
2º Titular: João da Costa Pinto Dantas Júnior
3º Titular: Jayme de Sá Menezes
Titular atual:
Geraldo Magalhães Machado
(Geraldo Machado)
Posse em 31.10.2003
Cadeira 5
Patrono: Luís Antônio de Oliveira Mendes
Fundador: Carlos Chiacchio
2º Titular: Antônio Luís Cavalcanti Albuquerque de Barros Barreto (Barros Barreto)
3º Titular: Carlos Benjamin de Viveiros
4º Titular: José Silveira
5º Titular: Guido José da Costa Guerra (Guido Guerra)
Titular atual:
Carlos Jesus Ribeiro
(Carlos Ribeiro)
Posse em 31.05.2007
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Cadeira 6
Patrono: Alexandre Rodrigues Ferreira
Fundador: Manoel Augusto Pirajá da Silva (Pirajá da Silva)
2º Titular: Thales Olímpio Góes de Azevedo (Thales de Azevedo)
3º Titular: Lucas Moreira Neves (Dom Lucas Cardeal Moreira
Neves)
Titular atual:
Cleise Furtado Mendes
(Cleise Mendes)
Posse em 15.04.2004.
Cadeira 7
Patrono: José da Silva Lisboa, Visconde de Cayru
Fundador: Ernesto Carneiro Ribeiro (Carneiro Ribeiro)
2º Titular: Francisco Borges de Barros
3º Titular: Aloísio de Carvalho Filho. Eleito para a Cadeira 26,
permutou esta, obtendo acordo da Academia, pela Cadeira 7,
com monsenhor Francisco de Paiva Marques, quando ambos
ainda não empossados.
4º Titular: Nelson de Souza Sampaio (Nelson Sampaio)
5º Titular: Pedro Moacir Maia
Titular atual:
Joaci Fonseca de Góes
(Joaci Góes)
Posse em 24.09.2009
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Cadeira 8
Patrono: Cipriano José Barata de Almeida (Cipriano Barata)
Fundador: Luís Anselmo da Fonseca
2º Titular: Francisco Peixoto de Magalhães Netto (Magalhães
Netto)
3º Titular: Adriano de Azevedo Pondé (Adriano Pondé)
4º Titular: Ary Guimarães
Titular atual:
Paulo Costa Lima
Posse em 17.12.2009
Cadeira 9
Patrono: Antônio Ferreira França
Fundador: José Alfredo de Campos França
2º Titular: Edgard Ribeiro Sanches
3º Titular: Antônio Luís Machado Neto (Machado Neto)
4º Titular: Cláudio de Andrade Veiga (Cláudio Veiga)
5º Titular: João Ubaldo Osório Pimentel Ribeiro (João Ubaldo
Ribeiro)
Titular atual:
Antônio Torres
Posse em: 21.05.2015
Cadeira 10
Patrono: José Lino dos Santos Coutinho
Fundador: Antônio Moniz Sodré de Aragão
2º Titular: Altamirando Alves da Silva Requião (Altamirando Requião)
Titular atual:
Gaspar Sadoc da Natividade
(Monsenhor Gaspar Sadoc)
Posse em 16.10.1990
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Cadeira 11
Patrono: Francisco Gê Acaiaba de Montezuma, Visconde de Jequitinhonha
Fundador: Antonio Ferrão Moniz de Aragão (Antonio Moniz)
2º Titular: Otávio Torres
3º Titular: Oldegar Franco Vieira
Titular atual:
Yeda Antonita Pessoa de Castro
(Yeda Pessoa de Castro)
Posse em 10.04.2008
Cadeira 12
Patrono: Miguel Calmon du Pin e Almeida, Marquês de Abrantes
Fundador: Miguel Calmon du Pin e Almeida
2º Titular: Alberto Francisco de Assis (Alberto de Assis)
3º Titular: Affonso Ruy de Sousa (Affonso Ruy)
4º Titular: Itazil Benício dos Santos
Titular atual:
Aramis de Almada Ribeiro Costa
(Aramis Ribeiro Costa)
Posse em 25.11.1999
Cadeira 13
Patrono: Francisco Moniz Barreto
Fundador: Egas Moniz Barreto de Aragão (Pethion de Villar)
2º Titular: Afonso de Castro Rebelo Filho
3º Titular: Walter Raulino da Silveira (Walter da Silveira)
4º Titular: Odorico Montenegro Tavares da Silva (Odorico Tavares)
5º Titular: Luís Fernando Seixas de Macedo Costa (Luís Fernando Macedo Costa)
Titular atual:
Myriam de Castro Lima Fraga
(Myriam Fraga)
Posse em 30.07.1985
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Cadeira 14
Patrono: Francisco Gonçalves Martins, Visconde de São Lourenço
Fundador: Bernardino José de Sousa (Bernardino de Sousa)
2º Titular: Alberto Alves Silva (Alberto Silva)
3º Titular: Edgard Rego Santos (Edgard Santos)
4º Titular: Raul Batista de Almeida
5º Titular: Carlos Vasconcelos Maia (Vasconcelos Maia)
6º Titular. Epaminondas Costalima
Titular atual:
Gláucia Maria de Lemos Leal
(Gláucia Lemos)
Posse em 21.10.2010
Cadeira 15
Patrono: Ângelo Moniz da Silva Ferraz,, Barão de Uruguaiana
Fundador: Otaviano Moniz Barreto
2º Titular: Hélio Gomes Simões (Hélio Simões)
Titular atual:
João Carlos Oliveira Teixeira Gomes Fonseca
(João Carlos Teixeira Gomes)
Posse em 08.06.1989
Cadeira 16
Patrono: José Tomáz Nabuco de Araújo
Fundador: Eduardo Godinho Espínola
2º Titular: Orlando Gomes dos Santos (Orlando Gomes)
Titular atual:
João Eurico Matta
Posse em 10.05.1989
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Cadeira 17
Patrono: Antônio Ferrão Moniz de Aragão
Fundador: Gonçalo Moniz Sodré de Aragão (Gonçalo Moniz)
2º Titular: Leopoldo Braga
3º Titular: Carlos Eduardo da Rocha
Titular atual:
Ruy Alberto d’Assis Espinheira Filho
(Ruy Espinheira Filho)
Posse em 15.09.2000
Cadeira 18
Patrono: Zacarias de Góes e Vasconcelos
Fundador: José Joaquim Seabra (J.J. Seabra)
2º Titular: Augusto Alexandre Machado
3º Titular: Avelar Brandão Vilela (Dom Avelar Brandão Vilela)
Titular atual:
Waldir Freitas Oliveira
Posse em 27.10.1987
Cadeira 19
Patrono: João Maurício Vanderley, Barão de Cotegipe
Fundador: Severino dos Santos Vieira (Severino Vieira)
2º Titular: Arlindo Coelho Fragoso (Arlindo Fragoso). Fundador da Cadeira 41, criada em caráter provisório, transferiu-se
para esta, após a morte de Severino Vieira, ocorrida a 27 de setembro de 1917, a fim de que fosse extinta a temporária.
3º Titular: Deraldo Dias de Morais
4º Titular: Guilherme Antônio Freire de Andrade Filho
5º Titular: Godofredo Rebelo de Figueiredo Filho (Godofredo Filho)
Titular atual:
Cid José Teixeira Cavalcante
(Cid Teixeira)
Posse em 25.03.1993
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Cadeira 20
Patrono: Augusto Teixeira de Freitas (Teixeira de Freitas)
Fundador: Carlos Gonçalves Fernandes Ribeiro (Carlos Ribeiro)
2º Titular: Epaminondas Berbert de Castro
3º Titular: Lafayette Ferreira Spínola (Lafayette Spínola)
4º Titular: Ivan Americano da Costa
5º Titular: Joaquim Alves da Cruz Rios (Cruz Rios)
Titular atual:
Aleilton Santana da Fonseca
(Aleilton Fonseca)
Posse em 15.04.2005
Cadeira 21
Patrono: Francisco Bonifácio de Abreu, Barão da Vila da Barra
Fundador: Filinto Justiniano Ferreira Barros
2º Titular: Estácio Luís Valente de Lima (Estácio de Lima)
3º Titular: Jorge Amado
4º titular: Zélia Gattai Amado (Zélia Gattai)
Titular atual:
Antonio Brasileiro Borges
(Antônio Brasileiro)
Posse em 10.06.2010
Cadeira 22
Patrono: José Maria da Silva Paranhos, Visconde do Rio Branco
Fundador: Ruy Barbosa de Oliveira (Ruy Barbosa)
2º Titular: Ernesto Carneiro Ribeiro Filho
3º Titular: Aloísio Henrique de Barros Porto
Titular atual:
Clóvis Álvares Lima
(Clóvis Lima)
Posse em 08.05.1980
434 ◄◄
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Cadeira 23
Patrono: Antônio Januário de Faria
Fundador: João Américo Garcez Fróes
2º Titular: Jorge Calmon Moniz de Bittencourt (Jorge Calmon)
Titular atual:
Samuel Celestino Silva Filho
(Samuel Celestino)
Posse em 21.08.2008
Cadeira 24
Patrono: Demétrio Ciríaco Tourinho (Demétrio Tourinho)
Fundador: Luís Pinto de Carvalho (Pinto de Carvalho)
2º Titular: Luís Menezes Monteiro da Costa (Luís Monteiro)
3º Titular: Renato Berbert de Castro
Titular atual:
Francisco Soares Senna
(Francisco Senna)
Posse em 27.04.2000
Cadeira 25
Patrono: Pedro Eunápio da Silva Deiró (Eunápio Deiró)
Fundador: Júlio Afrânio Peixoto (Afrânio Peixoto). Com o consentimento da Academia, transferiu-se para a Cadeira 1 após a
morte de seu fundador, José de Oliveira Campos.
2º Titular: Francisco Hermano Santana (Hermano Santana)
3º Titular: Raimundo de Sousa Brito (Raimundo Brito)
4º Titular: Luís Augusto Fraga Navarro de Brito (Navarro de
Brito)
Titular atual:
Fernando da Rocha Peres
Posse em 16.06.1988
►► 435
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Cadeira 26
Patrono: Antônio de Macedo Costa (Dom Antônio de Macedo Costa)
Fundador: José Cupertino de Lacerda (Padre José Cupertino de
Lacerda)
2º Titular: Alberto Moreira Rabelo (Alberto Rabelo), único
membro da Academia que faleceu antes de tomar posse, sendo
legitimado na Cadeira postumamente, por decisão da diretoria.
3º Titular: Monsenhor Francisco de Paiva Marques (Monsenhor
Paiva Marques)
Eleito para a Cadeira 7, permutou esta pela Cadeira 26, com Aloísio de Carvalho Filho, quando ambos ainda não empossados.
4º titular: César Augusto de Araújo (César de Araújo)
Titular atual:
Roberto Figueira Santos
(Roberto Santos)
Posse em 10.08.1971
Cadeira 27
Patrono: Francisco Rodrigues da Silva
Fundador: Frederico de Castro Rebelo (Frederico Rabelo)
2º Titular: Antônio Gonçalves Vianna Júnior (Antônio Vianna)
3º Titular: Jayme Tourinho Junqueira Ayres (Jayme Junqueira
Ayres)
4º Titular: Antônio Loureiro de Souza
5º: Titular: James Amado
Titular atual:
Ordep José Trindade Serra
(Ordep Serra)
Posse em 04.09.2014
436 ◄◄
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Cadeira 28
Patrono: Luís José Junqueira Freire (Junqueira Freire)
Fundador: Francisco Torquato Bahia da Silva Araújo
2º Titular: Homero Pires de Oliveira e Silva
3º Titular: José Calasans Brandão da Silva (José Calasans)
4º Titular: Consuelo Pondé de Sena (Consuelo Pondé)
Titular Atual:
Suzana Alice Marcelino da Silva Cardoso (ainda não empossada)
(Suzana Alice Cardoso)
Eleita em: 05.11.2015
Cadeira 29
Patrono: Agrário de Souza Menezes (Agrário Menezes)
Fundador: Antônio Alexandre Borges dos Reis (Borges dos
Reis)
2º Titular: Manços Chastinet Contreiras (Manços Chastinet)
3º Titular: Colombo Moreira Spínola (Colombo Spínola)
4º Titular: Jorge Faria Góes
5º Titular: Hélio Pólvora de Almeida (Hélio Pólvora)
Titular Atual:
Gerana Costa Damulakis
(Gerana Damulakis)
Posse em 03.09.2015
►► 437
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Cadeira 30
Patrono: Joaquim Monteiro Caminhoá
Fundador: Antônio do Prado Valadares (Prado Valadares). Permutou a cadeira com Roberto José Correia (Roberto Correia),
titular da Cadeira 38.
2º Titular: Roberto José Correia (Roberto Correia)
3º Titular: Alfredo Vieira Pimentel
4º Titular: Nestor Duarte Guimarães (Nestor Duarte)
5º Titular: Josaphat Ramos Marinho (Josaphat Marinho)
Titular atual:
Paulo Roberto Bastos Furtado
(Paulo Furtado)
Posse em 24.04.2003
Cadeira 31
Patrono: Belarmino Barreto
Fundador: Ernesto Simões da Silva Freitas Filho (Simões Filho)
2º Titular: José Luís de Carvalho Filho (Carvalho Filho)
Titular atual:
Florisvaldo Moreira de Mattos
(Florisvaldo Mattos)
Posse em 23.11.1995
Cadeira 32
Patrono: André Pinto Rebouças (André Rebouças)
Fundador: Teodoro Fernandes Sampaio (Theodoro Sampaio)
2º Titular: Isaías Alves de Almeida (Isaías Alves)
3º Titular: Zitelmann José Santos de Oliva (Zitelmann de Oliva)
4º Titular: Gerson Pereira dos Santos
Titular atual:
João Carlos Salles Pires da Silva
(João Carlos Salles)
Posse em 06.11.2014
438 ◄◄
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Cadeira 33
Patrono: AntônioFrederico de Castro Alves (Castro Alves)
Fundador: Francisco Xavier Ferreira Marques (Xavier Marques)
2º Titular: Heitor Praguer Fróes. Tomou posse em 15 de novembro de 1931, na Cadeira 34, transferindo-se para esta, após a
morte de Xavier Marques.
3º Titular: Waldemar Magalhães Mattos (Waldemar Mattos)
4º Titular: Ubiratan Castro de Araújo (Ubiratan Castro)
Titular atual:
Maria Stella de Azevedo Santos
(Mãe Stella de Oxossi)
Posse em 12.09.2013
Cadeira 34
Patrono: Domingos Guedes Cabral
Fundador: José Virgílio da Silva Lemos (Virgílio de Lemos)
2º Titular: Heitor Pragues Fróes. Transferiu-se para a Cadeira
33, depois do desaparecimento de Xavier Marques
3º Titular: Adalício Coelho Nogueira (Adalício Nogueira)
4º Titular: Walfrido Moraes de Lima (Walfrido Moraes)
Titular atual:
Evelina de Carvalho Sá Hoisel
(Evelina Hoisel)
Posse em 27.10.2005
Cadeira 35
Patrono: Manoel Vitorino Pereira (Manoel Vitorino)
Fundador: Antônio Pacífico Pereira
2º Titular: Afonso Costa
3º Titular: Rui Santos
4º Titular. Rubem Rodrigues Nogueira (Rubem Nogueira)
5º Titular: João da Costa Falcão (João Falcão)
Titular atual:
Luís Antonio Cajazeira Ramos
Posse em 02.08.2012
►► 439
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Cadeira 36
Patrono: Joaquim Jerônimo Fernandes da Cunha (Fernandes da Cunha)
Fundador: Afonso de Castro Rebelo
2º Titular: Monsenhor Manuel de Aquino Barbosa (Padre Manuel Barbosa)
3º Titular: Hildegardes Cantolino Vianna (Hildegardes Vianna)
Titular atual:
José Carlos Capinan
Posse em 17.08.2006
Cadeira 37
Patrono: João Batista de Castro Rebelo Júnior
Fundador: Almachio Diniz Gonçalves (Almachio Diniz)
2º Titular: Edith Mendes da Gama e Abreu
3º Titular. Antonio Carlos Peixoto de Magalhães (Antônio Carlos Magalhães)
Titular atual:
Emanuel d’Able do Amaral
(Dom Emanuel d’Able do Amaral)
Posse em 28.05.2009
Cadeira 38
Patrono: Alfredo Tomé de Brito (Alfredo Brito)
Fundador: Oscar Freire de Carvalho
2º Titular: Roberto José Correia (Roberto Correia). Permutou
sua cadeira com Prado Valadares, fundador da Cadeira 30.
3º Titular: Antônio do Prado Valadares (Prado Valadares)
4º Titular: Cristiano Alberto Müller (Cristiano Müller)
5º Titular: Wilson Mascarenhas Lins de Albuquerque (Wilson Lins)
Titular atual:
Armando Avena Filho
(Armando Avena)
Posse em 28.04.2005
440 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Cadeira 39
Patrono: Francisco de Castro
Fundador: Clementino Rocha Fraga Júnior (Clementino Fraga)
Titular atual:
Edivaldo Machado Boaventura
(Edivaldo M. Boaventura)
Posse em 06.08.1971
Cadeira 40
Patrono: Francisco Cavalcanti Mangabeira (Francisco Mangabeira)
Fundador: Octavio Cavalcanti Mangabeira (Octavio Mangabeira)
2º Titular: Manoel Pinto de Aguiar
3º Titular: Consuelo Novais Sampaio
Titular atual:
Urania Maria Tourinho Peres
(Urania Tourinho Peres)
Posse em 25.09.2014
Obs.:
Cadeira 41
Criada em caráter provisório para que Arlindo Fragoso, idealizador e organizador da Academia, não lhe ficasse de fora, devendo
ser extinta com o falecimento de qualquer um dos 41 fundadores. Patrono: Manuel Alves Branco, Visconde de Caravelas (2º).
Fundador Arlindo Coelho Fragoso (Arlindo Fragoso). Com a
morte de Severino Vieira, em 27 de setembro de 1917, para a
sua Cadeira, de número 19, foi transferido Arlindo Fragoso, e
supressa a cadeira provisória.
►► 441
Endereços dos acadêmicos
ALEILTON FONSECA
Rua Rubem Berta, 267, Edf. Iana, aptº 402, Pituba
41810-045, Salvador, BA
3345 1519 / 9 8876-1519
[email protected]
ANTONIO BRASILEIRO
Rua Alto do Paraná, 300 – Bairro Sim
44.042-000 Feira de Santana – BA
(75) 3625-8512
[email protected]
ANTÔNIO TORRES
Rua Estrada da União Industrial, 12600
Condomínio Mirantes do Sol Nascente, C- 37,
Itaipava / RJ
25750-226, Rio de Janeiro
[email protected]
ARAMIS RIBEIRO COSTA
Rua Piauí, 439, aptº 1103, Pituba
41830-280, Salvador/ BA
3240 4969 / 9 9984 1165
[email protected]
►► 443
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ARMANDO AVENA
Rua Waldemar Falcão, 1965, Edf. Top Hill, Aptº 702 Norte
40295-010 Salvador - BA
3272-2960 / 9994-3000
[email protected]
CARLOS RIBEIRO
Rua do Timbó, 680 Edf. Villa Etruska, aptoº503
Caminho das Árvores 41820-660 Salvador – BA
3011-7019/ 9 9153- 4908
[email protected]
CID TEIXEIRA
Rua das Violetas, 85, Pituba
41810-080, Salvador / BA
3452 7402
[email protected]
CLEISE MENDES
Rua Marechal Floriano, nº357
Edf. Casa Grande, aptº302 - Canela
40110-010, Salvador - BA
3337-0312 / 9 9198-6165
[email protected]
CLÓVIS LIMA
Avenida Sete de Setembro, 750, aptº 404, Mercês
40060-001, Salvador, BA
3329 4178
DOM EMANUEL D’ABLE DO AMARAL
Largo São Bento, 01 Centro
41205-220 - Salvador – BA
2106-5272 /8151-1053
[email protected]
444 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
EDIVALDO M. BOAVENTURA
Rua Dr. José Carlos, 99, Acupe de Brotas
Edf. Cond. Pq das Mangueiras, aptº 801,
40290-040, Salvador / BA
3276 1242 / 8818 6199
[email protected]
EVELINA HOISEL
Rua Mons. Gaspar Sadoc, 48, Jardim de Alá
41750-200, Salvador /Bahia
3343 5789 / 9968 7625
[email protected]
FERNANDO DA ROCHA PERES
Avenida Sete, 2901, Ladeira da Barra,
Cond. Solar das Mangueiras, Ala Norte, aptº 202,
40130-000 Salvador/BA
3336 3670 / 9 9956 7880
[email protected]
FLORISVALDO MATTOS
Rua Sócrates Guanaes Gomes, 107,
Cidade Jardim - 40296-720, Salvador / BA
Edf. Paço Real, Aptº 801,
3353 9785 / 9986-2848
[email protected]
FRANCISCO SENNA
Rua Prof. Milton Oliveira, nº73
Edf. Palazzo Anacapri, aptoº202
Barra, 40.140-100, Salvador, Ba
9 9967-0685
[email protected]
►► 445
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
GERALDO MAGALHÃES MACHADO
Rua Edith Mendes da Gama e Abreu, nº300
Edf. Port Saint James, aptoº1403,
41815-010 Itaigara, Salvador / BA
3353-5350 / 9 9976-7033
[email protected]
GERANA DAMULAKIS
Av. Centenário, 285 - 5º andar
Chame-Chame – Salvador/BA
CEP 40155-150
9 8894-2356
[email protected]
GLÁUCIA LEMOS
Rua Ceará, 853, apto. 203 - Pituba
4l830-450, Salvador-BA
3240-3688/9 8199-1803
[email protected]
GUILHERME RADEL
Rua Morro do Escravo Miguel, s/n, Edf. Atlantic Towers
Aptº 603 – Ondina
40170-010 - Salvador – BA
9 9145-3853
JOACI GÓES
Rua Alceu Amoroso Lima, 172, Edf. Office & Pool, 8ª andar
41.820-770, Caminho das Arvores, Salvador – BA
3444-2308 / 9 8814-3631
[email protected]
446 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
JOÃO CARLOS SALLES
Rua Pe. Camilo Torrend, 145 aptº202
Edf. Barra dos Coqueiros - Federação
40210-650, Salvador / BA
3247.6119
[email protected]
JOÃO CARLOS TEIXEIRA GOMES
Rua Espírito Santo, 15,
Edf. Espírito Santo aptº 802, Pituba
41830-120, Salvador/ BA
3240 1712
[email protected]
JOÃO EURICO MATTA
Rua Afonso Celso, nº301, Edf. Concórdia, aptoº302
Barra 40.140-080 Salvador - BA
3247-0869/9 9143.6908
[email protected]
JOSÉ CARLOS CAPINAN
Rua Tamoios, 96, Rio Vermelho
41940-040, Salvador, BA
3345 2080 / 9955 1410
[email protected]
LUÍS ANTONIO CAJAZEIRA RAMOS
R. Érico Veríssimo, 34 – Edf. Itapitanga, aptº401
Itaigara - 41815-340, Salvador /Bahia
3345 6969/8861 1515
[email protected]
►► 447
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
LUIS HENRIQUE DIAS TAVARES
Rua do Ébano, 159 aptº802, Edf. Henri Matisse
Caminho das Árvores,41820-370, Salvador / BA
3245-3524
[email protected]
MARIA STELLA DE AZEVEDO DOS SANTOS (MÃE STELLA DE OXOSSI)
Rua Direta de São Gonçalo do Retiro, 557,
São Gonçalo do Retiro, 41185-055, Salvador /Bahia
3247-2967
[email protected]
MONSENHOR GASPAR SADOC
Rua Crispo de Aguiar, 10, Vitória
Edf. Hermelinda, aptº 102
40080-310, Salvador/ BA
3336-0346
MYRIAM FRAGA
Rua Waldemar Falcão, 761, Brotas
Edf. Parque das Árvores, Aptº 301,
40295-001, Salvador / BA
3356 4611 / 9 8151 1413
fundaçã[email protected]
ORDEP SERRA
Rua Barão de Itapoan, 142, Edf. Barravento
aptº 202 – Barra
40140060, Salvador – BA
9 8869-1531
[email protected]
448 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
PAULO COSTA LIMA
Rua Sabino Silva, nº282, Edf. Saint Mathieu, aptoº401
Jardim Apipema 40155-250, Salvador – BA
9 8832-1545 /3235-5676
[email protected]
PAULO FURTADO
Av. Orlando Gomes, Condomínio Parque Costa Verde
Quadra H, Lote 3, 41650-120, Salvador / BA
3367 9481 / 9 9158 3414
[email protected]
PAULO ORMINDO DE AZEVEDO
Rua João da Silva Campos, 1132, Itaigara
41840-060 Salvador / BA
3358-7571 / 9 8816 5262
[email protected]
ROBERTO SANTOS
Rua Basílio Catalá de Castro, Quinta do Candeal,
Quadra B, lote 19 - 40280-550, Salvador/BA
3276 5759 /9 9115 9532
[email protected]
RUY ESPINHEIRA FILHO
Caixa Postal 10333
41520-970, Salvador/ BA
3287 2225/9973-8711
[email protected]
►► 449
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SAMUEL CELESTINO
Rua do Ébano, nº159 - Edf. Henri Matisse
Aptº.1301, Caminho das Árvores
41820-370 – Salvador, BA
3341-4485/ 3359-7741 /9 8203-3325
[email protected]
SUZANA ALICE CARDOSO
Rua Pacífico Pereira, 44 - Garcia
40100-170 – Salvador, BA
3328-4062 /9 9933-3495
[email protected]
URANIA TOURINHO PERES
Avenida Sete, 2901, Ladeira da Barra,
Cond. Solar das Mangueiras, Ala Norte, aptº 202,
40130-000 Salvador/BA
3336 3670 / 9956 7880
[email protected]
WALDIR FREITAS OLIVEIRA
Rua Tiradentes, 52, Abrantes
42840-000 – Camaçari /BA
3623 1434 / 9 9968-2989
[email protected]
YEDA PESSOA DE CASTRO
Rua Alfredo Gomes de Oliveira, 61
Edf. Terreazo Del Mare, Aptº1140 Jd. Armação
41750-040 – Salvador, BA
3461-9033 / 9 8138-4865
[email protected]
450 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
Membros correspondentes
ALAIN SAINT-SAËNS
Centro de Investigaciones Académicas,
Universidad del Norte,
Avenida Artigas y Calle Juan de Salázar,
Asunción – Paraguay
[email protected]
ANTONELLA RITA ROSCILLI
Via Giacomo Barzelloti, 7
00136 Roma/Itália
[email protected]
ANTONIO CARLOS SECCHIN
Av. Atlântica, 2112, aptº801
Copacabana 22021001 Rio de Janeiro – RJ
(21) 2236-1112
[email protected]
ÁTICO FROTA VILLAS-BOAS DA MOTA
Rua Dr. Manoel Vitorino, 411 – Coité
46500-000 – Macaúbas – BA
(77) 3473-1292
[email protected]
CYRO DE MATTOS
Travessa Rosenaide, 40 / 101 – Zildolândia
45600-395 – Itabuna – BA
(73) 3211-1902 /(73) 88461883
[email protected]
►► 451
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
DOMINIQUE STOENESCO
FLANKLIN W. KNIGHT
26 bis, Allée Guy Mocquet
94170 - Le Perreux-sur-Marne - France
(003133) 1 48 72 16 56 / 003133) 06 08 65 50 23
[email protected]
GLÓRIA KAISER
Dr. Robert Siegerst, 15
A 8010 – Graz
Áustria – Europa
[email protected]
HELENA PARENTE CUNHA
Rua das Laranjeiras, 280/200
22240-001 – Rio de Janeiro / RJ
[email protected]
ISA MARIA CARNEIRO GONÇALVES
Rua Milton Melo, 413 – Santa Mônica
Feira de Santana – BA,44050-560
(75) 3625-2416
[email protected]
JORGE RAUL DA SILVA PRETO
Rua dos Sobreiros, 233 3º,D.t
Edifício Vistamar - Costa da Guia
2750611 Cascais – Portugal
(00351) 214821717
[email protected]
LUIS ALBERTO VIANNA MONIZ BANDEIRA
Reilinger Strasse, 19, D – 68789
DEUTSCHLAND – Alemanha
452 ◄◄
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 54, 2016
MARIA BELTRÃO
Rua Prudente de Moraes, 1179, COB. 01
Ipanema – Rio de janeiro – RJ
22420-043
(21) 2247-4180
mcmcbeltrã[email protected]
MARÍA FELISA PUGLIESE
Saavedra 1160 P.B. “B”
1663 Muñiz. Pcia. de Buenos Aires - Argentina
54 11 4664 3055
[email protected]
RITA OLIVIERI-GODET
24, Avenue Sergent Maginot
35000 Rennes - França
02 99 67 35 02
[email protected]
VAMIREH CHACON
Universidade de Brasília
Instituto de Ciência Política
70910-900
►► 453
A Revista da Academia de Letras da Bahia foi publicada em
março de 2016 ano de centenário dos acadêmicos:
Gaspar Sadoc da Natividade (Monsenhor Gaspar Sadoc),
Walfrido Moraes de Lima e Zélia Gattai Amado,
e sesquicentenário de nascimento de Euclides da Cunha.
Presidente da ALB
Evelina Hoisel
Diretor da Revista
Fernando da Rocha Peres
Conselho Editorial
Aleilton Fonseca
Aramis Ribeiro Costa
Florisvaldo Mattos
Editoração e arte-final
Elimarcos Santana
Serviço editorial
Via Litterarum Editora
ISSN 1518-1766