Jardel, RIP (2001-2016) - Clube Português de Monteiros
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Jardel, RIP (2001-2016) - Clube Português de Monteiros
memento, venator! Jardel, RIP (2001-2016) Cão como nós, Monteiro como nós Meu companheirito querido que partiste de sopetão no passado dia 9 de Janeiro, horas após aquele estúpido incidente ocorrido mesmo antes do início da montaria que não chegámos a fazer, deixaste no meu coração uma ferida aberta e dolorosa que nada nem ninguém poderá jamais sarar. Texto: Artur Torres Pereira (Presidente do Clube Português de Monteiros) Artigo escrito com a grafia anterior ao A.O. fotos: Autor C ontigo partiu para não mais voltar parte de mim próprio. Aquela que desfrutou diariamente da tua presença serena e civilizada – sim, civilizada, parafraseando o Manuel Alegre eras um “Cão como nós” –, mas sobretudo aquela que viveu intensamente nos últimos 14 anos a nossa paixão comum pela Caça contigo, tu que sempre foste um Monteiro como nós. Vai longe o dia 7 de Dezembro de 2001 em que te fui buscar ao criadero “Del Pusa” (LOE) a Los Navalmorales, em Toledo, por sugestão do Juan Giralt, grande companheiro de caça e dono do Lucas, teu irmão de sangue paterno. Nessa manhã, monteámos Hollinejos com os Monteros Battue do Juan Carlos Prieto – que Partiu faz agora um ano, dá-lhe uma lambidela de carinho por mim quando o encontrares no céu dos caçadores onde agora estais –, e matei um grande javali que foi medalha de bronze num lance de antologia no 4 da Traviesa Central, por coincidência ao lado do Juan Giralt. Depois do almoço, como tínhamos combinado, partimos ele, eu e o Lucas para Los Navalmorales, onde chegámos já quase noite. O José António Marquez levounos a um parque fechado onde estavam a tua mãe, Cindy del Pusa, e 7 irmãos teus aninhados junto a ela. O teu pai, Lord del Pusa (filho do célebre Tandy von Lehrschenforst, campeão de Espanha e vicecampeão da Europa e do Mundo com o distintivo Flor de Lys, que levavam os cães e os cavalos propriedade da Infanta D. Margarida de Bourbon, grande responsável pela introdução da raça teckel em Espanha) estava apartado. Convidou-me a escolher um. Decidi emitir um som peculiar (que foi nossa comunicação pela vida fora) a que todos eles 58 | caÇa & CÃes de caÇa foram indiferentes excepto tu, que deixaste, intrigado, aquele teu quente círculo familiar e vieste devagarinho até mim investigar a respectiva origem. Graças a essa tua atitude, tu, nascido “Amir del Pusa”, viajaste, depois do banho e das formalidades, para o hotel “Los Encinares” em Valdecaballeros onde estávamos hospedados, e haverias de passar os 14 anos seguintes connosco, rebaptizado que foste de Jardel em honra de quem outro tipo de alegrias desportivas nos deu em tempos que ainda não voltaram… Viveste uma vida feliz. O Arturinho tinha na altura 11 anos, e foste para ele uma espécie de irmãozito canino mais novo que ele sempre acarinhou e protegeu. Soubeste-te adaptar à vida no andar em Lisboa, primeiro, à da moradia em Caxias, depois. Muito cedo percebeste que havia coisas que só se podiam fazer na rua. Brincalhão e travesso, muito gostavas tu de correr para perto com um sapato ou uma peça de roupa na boca e deitares-te todo esticado no chão à nossa vista, provocador, desafiando-nos a tirar-tos, retomando a fuga mal nos tentávamos acercar… No ano seguinte, em 2002, iniciaste-te na caça aos corços na Hungria (com a Hubertus e a Orsi Lukats), primeiro em Maio em Szolnok, só comigo, depois em Agosto, em Boszenfa e em Mosgo, já com o Arturinho. Sempre encantaste passageiros e pessoal de bordo dos aviões quando te viam com a cabecita de fora na tua alcofa que eu levava a tiracolo - excepto aquela vez no aeroporto de Frankfurt em que, percorrendo o longuíssimo corredor que ligava os terminais 1 e o 2, os teus intestinos não resistiram, perante o olhar reprovador de muitos passageiros… Em Outubro assististe às primeiras montarias e mordeste os primeiros javalis no Peral e na Poupa, descobrindo finalmente a magia e o fascínio daqueles que foram os principais responsáveis pela nossa enorme cumplicidade. Os nossos amigos espanhóis alcunharam-te de “peluquero”, tal era a quantidade de pêlo que, com raiva, arrancavas aos javalis nos quadros de caça finais das montarias… A tua inteligência levou-te a perceber rapidamente a diferença entre as montarias e as esperas. Interiorizaste a imobilidade e o silêncio que te pedia em ambas, de início recorrendo à trela, depois abandonada quando percebeste o que estava verdadeiramente em causa numas e noutras. E era ver-te caçando nas montarias, perscrutando imóvel a ladeira em frente, concentrado no local em que podia aparecer um javali (quantas vezes me diverti a ver-te caçar, rindo-me para mim próprio da tua atitude monteira, a pedir meças à de tantos “caçadores” nos postos…), ou de pescoço esticado em tensão permanente tentando ouvi-los, em locais de monte cerrado e pouca visibilidade, trocando comigo um olhar de soslaio de vez em quando, aferindo comigo se algo se passava na mancha… Como os da tua raça, não tinhas medo dos animais maiores, especialmente dos teus primos das matilhas, a quem muitas vezes desafiaste imprudentemente quando chegavam ao nosso posto. Passei alguns sustos contigo por causa disso, em particular na Alápega em Fevereiro de 2011. Mas pânico verdadeiro senti-o em Fevereiro de 2013 nos Carrascais, quando – depois de morder o navalhinhas de cuja chegada me avisaste muito antes de ele chegar à boca da vereda perto de nós, e que acabámos por matar – a matilha do Ernestino, excitada, te pilhou e um dos cães abalou para o mato contigo na boca com os outros no seu encalço, o que teria originado uma tragédia não fôra eu persegui-los desespe- rado, vozearia destemperada e paulada valente naqueles lombos até ter conseguido que te largassem, ferido e dorido; tremendo no meu colo, deitando-me um sofrido mas grato olhar, buscaste o meu contacto físico protector, que não mais te neguei quase permanentemente até finalmente adormeceres nessa noite no nosso quarto da residencial da D. Bárbara em Portel. Nas esperas no chão, aquelas de que verdadeiramente gostávamos, imobilizavas-te debaixo da cadeira junto a mim. E quando já noite eu sentia uma pressão intencional e crescente nas minhas pernas, sabia que Ele andava por perto e que a acção podia estar para breve. Não gostavas muito dos palanques porque, fechados, te cortavam os sentidos. Nem eu tampouco, por causa disso. Contudo, enquanto ouviste bem, muitos lances devo ao teu ouvido e à tua pressão de alerta nas minhas pernas… Os cobros sempre foram, para mim e para ti, o melhor das esperas. Por ti deixei de esperar em zonas ásperas de montanha para te facilitar a vida no pisteio. Confesso-te que muitas vezes desejei apenas ferir – admito que gravemente, não fosse o diabo tecêlas… - para poder desfrutar do incomparável prazer de te seguir nas noites de lua quando pisteavas ao som do chocalhinho que para essas ocasiões te punha ao pescoço, que te ofereceu o Sérgio, o filho do Inocente Almendro, quando no final da montaria em Las Paredes em 2008 chegou ao pé de nós com a matilha. Na minha memória ficarão para sempre, entre outros, o longuíssimo e espectacular pisteio do javali ferido pelo Ildeberto Teixeira em Vale Feitoso em 2009, que nos fez chegar aos três a Entreserras quando já quase todos os outros tinham almoçado e abalado, e aquele no ano passado, que foi o teu último, sobre o navalheiro que matámos de espera com o meu sobrinho Timmy na Mata, na primeira e inesquecível caçada deste… Nos últimos anos, já quase surdo, assentaste arraiais no meu escritório no 1º andar, onde tinhas a tua camita e me fazias companhia, dormitando enquanto eu trabalhava, vindo até mim de vez em quando para as festas periódicas de que não abdicavas. Mas divertido mesmo era ver-te pela manhã saíres da cama, mal me sentias chegar ao escritório, para me cheirares e inspeccionares cui- dadosamente: se concluías que o traje era “urbano”, viravas-me as costas e voltavas displicentemente para a cama. Mas se pressentias um odôr ou algo que te fizesse perceber que tínhamos “festa”, nada nem ninguém te aquietava ou te distraía dos meus passos até transpores comigo a porta da rua. Nas vezes em que, contristado e com um terrível sentimento de culpa, tive que te trocar as voltas e sair sem ti, os uivos de desespero que soltavas quando o percebias, diz quem te ouvia, ouviam-se em Oeiras…mas perdoavas-me sempre quando voltava. Quantas montarias e esperas vivemos, quantas pensões e residenciais frequentámos (muitas vezes tive que te esconder à entrada para poderes dormir, clandestino mas confortável, comigo no quarto…), quantos milhares de quilómetros percorremos em Portugal e em Espanha, quantos dias felizes vivemos em conjunto! Eras o cão mais conhecido em todo o mundo da Caça em Portugal, já não havia montaria em que quase todos os presentes não te saudassem pelo teu nome, simpático e amistoso que eras para com todos eles. Foste um Príncipe num mundo cão, tu que vieste do mundo dos cães. Foste um Cão como nós e um Monteiro como nós, e foste bem melhor que muitos de nós. Agradeço-te para sempre a enorme Felicidade que me proporcionaste. Descansa em paz. Que Deus guarde em Sua mão a tua Alma, e me ajude no futuro a suportar esta tão intensa, dolorosa e insuportável saudade. caÇa & CÃes de caÇa | 59