O Último Espectáculo - Manuel do Nascimento

Transcrição

O Último Espectáculo - Manuel do Nascimento
Manuel do Nascimento
O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
SEGUNDA EDIÇÃO – 2006
Freguesia de Monchique e descendentes do autor
O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Capa de Manuel Ribeiro de Pavia
1.ª edição (do autor) – Lisboa, 1955
2.ª edição (da Freguesia de Monchique
e descendentes do autor) – Monchique, 2006
Coordenação editorial: Domingos Mealha (Abcedária, Lda., Lisboa)
Tiragem: 2 mil exemplares
Impressão: Impresse 4, Lda. - Venda Nova, Amadora
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
ÍNDICE
Nota de Abertura
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Prefácio
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DEDICATÓRIA
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ALGUMAS PALAVRAS
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
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NADA DE IMPORTÂNCIA
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O VIZINHO
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SAPO E LAGARTO
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RESPEITA A MINHA DOR
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A FUGA
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SILÊNCIO ESFARPADO
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A ESPERANÇA VOLTOU DE MANHÃ
139
SUSPEITA
149
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Nota de Abertura
Esta reedição de O Último Espectáculo é da responsabilidade da
Freguesia de Monchique e dos descendentes do escritor, filho e netos, e
faz parte duma luta quase solitária, para manter viva a memória de
Manuel do Nascimento, antes de mais, na própria terra onde nasceu.
Luta quase solitária, dizíamos, porque alguns professores das escolas
de Monchique vêm trabalhando com os seus alunos, desde há vários
anos, sobre a vida e a obra do escritor. E também porque o Museu do
Neo-Realismo nos tem apoiado em iniciativas como a exposição
realizada em Monchique, em 2003, sobre o movimento neo-realista em
Portugal. Fica aqui a nossa palavra de agradecimento à directora do
Museu, Dra. Idalina Mesquita, e ao Júlio Graça, também escritor neorealista e amigo de Manuel do Nascimento, que teve a amabilidade de
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
conversar com os alunos da Escola E.B. 2,3 de Monchique, quando
visitaram o Museu do Neo-Realismo, no mesmo ano de 2003.
As nossas palavras de reconhecimento vão igualmente para a Dra.
Ana Paula Almeida, pelo trabalho desenvolvido com os alunos do 9.º
ano da Escola E.B. 2, 3, de Monchique, e para o José Rosa Sampaio,
incansável na sua actividade de relembrar Manuel do Nascimento,
nomeadamente no “Jornal de Monchique”. Queremos, ainda, deixar
expressa a nossa homenagem à memória do José do Nascimento Leal
Varela que, recentemente, nos deixou, de forma prematura. Ele foi um
dos grandes dinamizadores da luta para que não se perca a memória do
escritor.
Finalmente, para o Professor Luís de Sousa Rebelo1, amigo e
companheiro de trabalho e de luta de Manuel do Nascimento, que
assina o Prefácio desta reedição, vai o nosso profundo e sentido
agradecimento.
Registadas as excepções, e manifestado o nosso reconhecimento,
importa dizer que somos confrontados com um ambiente geral de
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Professor do King’s College de Londres, Membro da Academia das
Ciências de Lisboa.
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indiferença, quando não de hostilidade aberta, relativamente aos valores
da Cultura, que se tornou hábito esconder atrás das “faltas de
orçamento” e das “dificuldades económicas”, argumentação sem valia, ou
melhor, desculpas esfarrapadas, a deixar de fora tudo o que se pode
fazer com meios insignificantes, ou mesmo sem eles.
O caso particular de Manuel do Nascimento não foge a este triste, e
revoltante, panorama geral.
Assim, por que não foi dado o nome do escritor a uma das escolas de
Monchique, contrariando uma prática generalizada no nosso país? E
por que não há, em Monchique, uma rua “digna” com o nome de
Manuel do Nascimento? E as perguntas poderiam continuar.
A resposta pode procurar-se na formulação seguinte que, embora
redutora, tem fundamento inegável. Manuel do Nascimento, escritor
perseguido pelo regime fascista de Salazar e pela sua censura,
continuaria hoje “maldito”, votado a um esquecimento militante, porque
muitos dos problemas que a sua obra levanta, ou suscita, não têm data,
e continuam a ser actuais e a incomodar. Na verdade, os escritos de
Manuel do Nascimento são gritos contra o mundo de injustiças em que
vivemos, apesar de Abril.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Relembrar, hoje, Manuel do Nascimento, significa, antes de tudo,
continuarmos a luta, que foi a sua, por melhores dias para o nosso país
e para o Mundo. É neste contexto que gostaríamos que fosse entendido
o nosso contributo para a divulgação da obra do escritor. Neste sentido,
importa, contudo, fazer mais, removendo obstáculos e conquistando
apoios, com vista a concretizar ideias como a de transformar, pelo menos
em parte, a casa de Monchique, onde viveu e trabalhou o escritor, em
Casa-Museu, a de inventariar a sua obra jornalística, enfim, reeditar
mais livros.
Sem perder de vista estes objectivos, e outros sonhos,
reeditamos O Último Espectáculo com a consciência de prestar ao
seu autor, neste momento, a homenagem possível.
Monchique, Dezembro de 2006
Freguesia de Monchique
Descendentes (filho e netos) do autor
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Prefácio
O correr do tempo e uma percepção mais rigorosa do discurso narrativo, que esse mesmo distanciamento implica, têm ajudado a clarificar
o lugar que Manuel do Nascimento ocupa na literatura portuguesa como
ficcionista. A sua experiência pessoal é a matéria-prima, a greda da sua
arte. Nascido em Monchique em 27 de Dezembro de 1912, fez os seus
estudos numa escola técnica, cedo ingressando no mundo do trabalho.
Mundo que conhece no meio dos mineiros, com as suas duras condições
de vida, e o leva a exprimir um desejo de justiça social que será uma
nota constante em toda a sua obra. Com a saúde abalada, é obrigado a
deixar o emprego e volta a casa para recuperar as forças. É durante este
período de recolhimento que Manuel do Nascimento se entrega às suas
primeiras tentativas literárias.
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O clima em que elas vêm a lume é o menos favorável ao seu aparecimento. Vigorava o regime salazarista, que impusera uma censura
eficaz e receava tanto as ideias quanto a oposição organizada pela vontade de cidadania. O que animava Manuel do Nascimento a escrever
era o desejo de representar o mundo tal qual ele era, nas suas asperezas
e contradições, nas suas violências e nos seus raros vislumbres de doçura.
O seu objectivo inicial não era ocupar-se de questões ideológicas na ficção;
elas vieram por acréscimo, por alargamento dos próprios horizontes e por
arrasto na órbita do debate em torno do neo-realismo. A situação
política, as perseguições de que foi vítima, emprestavam uma densidade
humana singular ao discurso e uma veemência que vinha das entranhas.
Pondo o problema nos termos de linguagem crítica literária dos nossos
dias, Manuel do Nascimento procurava atingir o grau zero na sua
escrita, não com o esforço de ter de deslindar complexos códigos de narrativa, mas a partir do imediato, do facto ou evento nu e cru. Esta
atitude foi tomada como a negação do estético. E, se a encontramos na
obra dos neo-realistas, nomeadamente na primeira fase do movimento,
em Manuel do Nascimento ela afirma-se espontaneamente e sintoniza-se
com esse discurso por coincidência. A sua narrativa tem, assim, um
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ritmo cinemático, rápido e incisivo, que a distingue entre os neo-realistas
e que, embora se encontre igualmente entre estes, não atinge a concisão e
a nitidez do romancista.
N’O Último Espectáculo (1955), que muito oportunamente
volta a ser publicado, há essa qualidade de narrar com simplicidade
estados emocionais e situações psicológicas, intuídos num gesto, numa
forma de comportamento, num olhar. Esta postura perante o objecto que
descreve constitui um modo tácito de contrapor às narrativas bem
informadas, ricas de incidências, o estilo seco do texto minimalista, como
chamamento ao que é o essencial na escrita. Com frequência se recorre ao
circo como metáfora da vida (o teatro do mundo da tradição barroca)
para sugerir o que de absurdo há na existência e até o grotesco do mundo
como expressão da arte que tira da miséria e da exclusão social a
substância da sua escrita. Fellini compreendeu-o nas suas películas
cinematográficas, dando-lhe o sentido da efemeridade que se aceita com
um sorriso dorido.
Manuel do Nascimento não hesita em suprimir o brilho do espectáculo vulgar com o seu falso encantamento. Mas, ao fazê-lo, ciente de que
dá as pobres cores de uma exibição degradada, nem por isso espera re1
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produzir no seu discurso o objecto focado. Dele representa, isso sim, a
memória que dele tem, ou tinha, porque é uma verdade estética assumida
que nunca se reproduz com absoluta precisão aquilo que vê o nosso
olhar, sendo necessário o artifício narrativo para que o objecto esteja
presente no texto na sua possível totalidade. Há uma estratégia de
comunicação que salva a narrativa de ser um mero relato anedótico.
Aspecto este visível na escrita de Manuel do Nascimento, que tinha
como meio eficaz restringir-se ao mínimo essencial, deixando ao leitor a
liberdade de preencher os vazios do texto.
Daí que a sua obra romanesca aparente uma falsa simplicidade e
seja transparente, límpida nas intenções e explícita no protesto. As suas
personagens, defraudadas pela vida, acalcanhadas pela situação social,
mantêm a pureza do sentimento que lhes confere a dignidade. Sem tergiversações ou fraquezas, elas enfrentam as vicissitudes da vida, convictas
da mudança que há-de transformar o seu destino. Fino na análise dos
sentimentos femininos, que se revelam no romance Eu Queria Viver
(1943, reeditado em 1958), Manuel do Nascimento rompe caminho
para um género de ficção que se imporá nos nossos dias. Irene Lisboa é
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outra escritora que pressente o futuro da mulher como figura e criadora
de ficção no plano nacional.
Manuel do Nascimento tinha uma larga compreensão das dores da
Humanidade, sabia do sofrimento do homem e da mulher, entendia as
diferentes sensibilidades e tudo quanto conhecia da vida punha na sua
obra. O seu carácter, as suas ideias reflectem-se nela como num espelho.
O narrador que está por detrás do que conta tem as qualidades que são
as do homem que escreve. Um homem discreto, modesto, avisado, que se
insurge, indignado, contra a injustiça social e a injustiça sob todas as
suas formas, dando voz aos humildes e aos oprimidos. Espírito livre,
Manuel do Nascimento bateu-se pela liberdade, lutou pela democracia
durante o período do regime salazarista. Figura destacada do neo-realismo, na fase inicial contribuiu para a sua definição como movimento
literário. Escritor, ficcionista, jornalista, editor e organizador de edições,
exerceu todas estas funções com igual distinção. Não exibia os seus
talentos nem falava dos seus escritos, a não ser que fosse instado por
quem neles tivesse genuíno interesse. Passou despercebido do grande
público. Morreu no anonimato de um comboio inter-urbano no dia 30
de Dezembro de 1966.
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Conheci Manuel do Nascimento nos anos 50 e trabalhei com ele
desde então. Lançámos juntos as Obras de Shakespeare, publicação em fascículos mensais sob a chancela da Scarpa Editora. Em
1960 lográmos publicar três volumes. Planeávamos a continuação com
um projecto paralelo: uma edição ilustrada das Memórias de Casa-
nova. Mas a Censura embargou o plano e liquidou a iniciativa.
Vivendo eu em Londres, ia visitá-lo sempre que vinha a Lisboa, não
só para tratar de assuntos editoriais como para conversar com o amigo.
Era um prazer ouvi-lo. Numa voz cadenciada fazia o ponto da situação
sobre o País que era o nosso e onde ele vivia. No decorrer da exposição
emergia a sua experiência que explicava comportamentos e atitudes que,
sendo insólitos, ele já havia encontrado antes, e não o surpreendiam.
Confiava, no entanto, na capacidade que cada ser humano tinha de
mudar, de transformar aquilo a que vulgarmente se chama o destino;
confiava na capacidade de dar realidade ao sonho, à utopia. Para que
isto fosse possível era necessária a solidariedade, dizia-me ele, a vontade
que unisse outras vontades num mesmo desejo.
Manuel do Nascimento não viu o 25 de Abril e se reparasse no
mundo, que é agora o nosso, se o contemplasse à luz dos seus valores,
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reiteradamente desenvolvidos na sua obra, decerto sentiria a indignação
que sempre o sustentou. Indignação e raiva ante o espectáculo da brutal
desumanização de uma sociedade, que parece anestesiada. Sociedade que
definha no espanto das suas carências éticas. Por tudo isto chegou a hora
de reler a ficção de Manuel do Nascimento. Ele é uma das vozes mais
veementes do humanismo literário do século XX, indiferente às seduções
que não lhe permitissem exprimir a dor de viver com a imediata crueza
do sofrimento.
Outubro de 2004
Luís de Sousa Rebelo
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A Mário Monteiro Pereira,
Domingos Monteiro,
Patrícia Joyce
e Manuel Ribeiro de Pavia.
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ALGUMAS PALAVRAS
Estas histórias de «O Último Espectáculo», arrancadas aqui e
além, no calcorrear da terra portuguesa que tem sido a minha
vida, não saíram trajadas à maneira do local onde aconteceram.
Não falo em campos de neve, em planícies alentejanas, em
latadas do Minho, em águas azuis da costa algarvia. Sofrendo
como homem e com a vida dos homens preocupado, esqueço
sempre o que me rodeia. Posso falar de um monte, de uma
árvore, dum bocado de terra crestado pelo sol, mas quando a
coisa sai parece vertida ao contrário. Vejo sempre a paisagem
como reflexo de sentimentos. Se pinto a tristeza das pedras, se
esqueço o verde gritante dos campos e se às vezes um raio de
sol ilumina o mundo dos meus heróis, tento logo afogá-lo no
escuro duma nuvem. Isto sem premeditação. É a própria vida,
que anda a apagar o brilho dos melhores sonhos, nos olhos da
esperança.
M. N.
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O ÚLTIMO
ESPECTÁCULO
FOI em Outubro na feira da vila. Na véspera chegaram os
homens e as mulheres que vinham das outras feiras. Procuraram o empregado da Câmara para que lhes indicasse os
talhões que lhes pertenciam, descarregaram à pressa os baús,
as caixas de bugigangas, os toldos e os paus que iriam sustentar o pano das barracas. Homens e mulheres, rostos
brancos e morenos, tipos de muitas raças e irmãos na angústia, vestidos o mais sumariamente possível, faziam buracos
no chão dum largo que tinha por fundo dois chorões enor-
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
mes. Escoravam paus e pregavam depois, a uni-los, travessas
de madeira aparelhada. O largo era pequeno para tanta desgraça, para tanta ânsia e tanta miséria apesar dos seus duzentos metros de comprido por cento e cinquenta de largo.
As mulheres acotovelavam-se, os homens discutiam e todos
procuravam galgar os traços de cal, roubando ao vizinho um
bocado de chão.
Os carros paravam à entrada do largo e as mulas, magras e
esfomeadas, tremiam. A custo aguentavam, perdido o movimento, o peso da carga. Algumas tinham chagas vermelhas
no pescoço e nas pernas e as moscas juntavam-se a sugar-lhes
o sangue. Sacudiam-se impacientes. Por fim lá seguia um
carro e os outros rodavam um pouco mais para a frente.
Fechava a caravana uma camioneta cheia de tábuas pintadas de cores vivas. Numa jaula vermelha traziam um macaco
e noutra, um pouco maior, dois cães, que, fartos da prisão,
ganiam constantemente. No alto da cabina, posta propositadamente a servir de reclamo, prenderam um bocado de folha
zincada, em forma de meia lua, onde foram desenhadas estas
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
duas palavras: «Circo Monumental». As letras eram grandes,
amarelas e mal desenhadas e saíam gritando dum fundo azulcobalto. O motorista tocava de vez em quando o claxon, na
esperança de que os carros andassem mais depressa. Consultou o relógio, mostrou-se impaciente, disse que tinha um
serviço marcado e que, se se demorasse, não chegaria a
tempo. Disse ainda ao dono da carga que o preço ajustado
não admitia esperas e acabou informando que lhe dava vontade de despejar o carro ali mesmo, no meio da estrada.
O dono daquelas tábuas, daquele letreiro pintado e das
duas jaulas era um velho, chamava-se Calvani e respondeu
que ninguém lhe falara em condições ao ajustar o frete.
O velho desceu da cabina e o motorista olhou, de soslaio,
as pernas da rapariga que ia do lado da porta. As saias tinham
subido com o balanço do carro, deixando à mostra um
bocado das coxas. Voltou a olhar disfarçadamente e deixou
de carregar no botão do claxon. Entre duas olhadelas vivia a
esperança de que a saia subisse ainda mais. Ela percebeu e
nem sequer tentou tapar as coxas volumosas. Sentia-se bem a
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
ser olhada assim, furtivamente. O homen era novo, musculoso e miss Betty sonhava com um homem assim, um
homem que a levasse daquela companhia de palhaços, que a
roubasse àquela miséria.
Calvani procurou o empregado da Câmara. Queria saber
da sua marcação.
- O circo não pode ficar no largo.
- Entonces, onde ficamos?
- Lá cima – e apontou com o braço direito estendido. –
Fica ao pé das barracas de tiro. O largo é pequeno – voltou a
apontar. – É na clareira à esquerda.
- Siempre quero ver para onde nos mandam.
Um rapaz loiro, com a cara salpicada de sardas, aproximou-se.
- Vá com este homem mostrar-lhe o lugar.
Calvani subia a rampa ao lado do outro. Aquele «vá com
este homem» enraiveceu-o. Não era assim que se tratava o
dono de um circo. Olhava as portas das tabernas com ânsia.
Parou. Não resistiu e perguntou ao rapaz se queria beber
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
alguma coisa. O outro encolheu os ombros fingindo que
tanto se lhe dava beber como não beber. Entraram numa
casa escura. Calvani foi ao balcão e pediu dois copos de
aguardente. Saíram e continuaram a subir a rampa.
- Estoy a ver que és mui longe.
- Não; é já ali.
A camioneta dificilmente chegaria ao alto. Resmungou.
Apetecia-lhe beber mais. Tinha a garganta seca e a aguardente
era boa.
- No hay por aqui outra tasca?
- Lá cima, no recinto, naquela casa amarela.
*
O motorista continuava a olhar as pernas da Miss Betty.
Os olhos de ambos encontraram-se e o homem fixou-a
demoradamente. Miss Betty estendeu o pescoço para fora da
janela da cabina.
- Que maçada! Nunca mais saímos daqui!
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
- É verdade.
- Mas por que será que isto não anda?
O homem levantou um pouco o corpo e a cabeça foi tocar no pára-brisas. Sentou-se novamente, chegando-se mais
para a rapariga.
- É por causa dos carros que estão à frente.
Miss Betty percebeu a intenção, olhou novamente o motorista e cerrou os olhos languidamente como se sonhasse.
Sim, era um homem como aquele que ela desejava. Não para
que lhe fugisse. A sua vida fora sempre este ou aquele momento. Estava farta desses momentos, farta de mudar de
nome... Chamava-se Miss Betty havia pouco tempo.
- Você gosta desta vida?
Ela fitou-o como se acordasse e encolheu os ombros.
*
Calvani ao chegar ao alto da rampa ficou decepcionado.
Não, não era aquele o lugar para um circo do valor do seu. Se
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
lhe tivessem explicado como as coisas eram, não teria vindo.
Esteve resolvido a não armar a barraca. Disse entre dentes
que devia haver mais consideração pelos artistas e foi à
taberna, que o outro lhe indicara, beber mais um copo para
afogar a raiva.
Sim, se fosse noutro tempo não trabalharia ali. Antigamente não ia a terras como aquela. Revia o seu antigo circo.
A entrada triunfal... O arco de lâmpadas eléctricas... O «placard» de letras luminosas... Comparou-o com a chapa de
folha zincada que pregava por cima da porta e esta comparação fê-lo vergar ainda mais. O palanque forrado de tecidos
vivos... Viu-se com os fatos antigos onde as lentejoulas cintilavam ferindo a vista aos espectadores. E aquilo foi indo
sempre para baixo. Não, não queria pensar. Era preciso fugir
às recordações.
Na descida da rampa entrou noutra taberna e quando
chegou ao largo só estava um carro à frente da camioneta. O
motorista continuava a olhar as pernas da Miss Betty, a equilibrista da companhia.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
O carro da frente seguiu e a camioneta, depois de várias
manobras, conseguiu voltar, numa curva apertada, em direcção à rampa. As tábuas rasparam numa parede e o homem do
volante disse aborrecido:
- Raios partam a carga.
Calvani seguia a pé. Aquela aguardente sabia-lhe bem.
Estava mesmo convencido de que, na vila, não havia nada
melhor do que a aguardente. Quase todas as pessoas olhavam
para ele. A sua forma de vestir era estranha àquela gente. A
boina basca e azul contrastava com a cara vermelha e
recosida do álcool e o casaco cor de mel, surrado, As botas
altas, avermelhadas brilhantes das muitas camadas de pomada
que tinham umas sobre as outras, e o à-vontade dos
movimentos faziam-no diferente dos homens da vila.
Começaram a descarga. O motorista voltou a afirmar que
estava com pressa e os homens que vinham lá no alto, atiraram para um monte, depois de levar com cuidado as jaulas do
macaco e dos cães, as peças que iriam compor um circo. Miss
Betty ainda fitava o motorista embora se fingisse interessada
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
no movimento do largo. Calvani convidou-a de mau humor
ao trabalho, entregando-lhe uma escada.
Mais tarde, chegaram num carro puxado por uma muar e
um burro, o resto das coisas e dos figurantes: Miss Trinidad,
magra, de olhos negros, uns olhos encovados e brilhantes de
febre, a senhora Calvani, gorda e asmática e duas meninas
que eram filhas de Miss Trinidad. O burro que ajudava a puxar a carga chamava-se «Gentleman» e era também artista de
circo. As duas meninas saltaram do carro e logo começaram a
carregar cadeiras desmontáveis. A mais velha vestia um fato
azul desbotado e a mais nova uma saia de pregas e uma
camisola vermelha.
Depressa o circo ganhou forma. Trabalhavam quatro
homens, as mulheres e as duas crianças. Calvani dava ordens,
de mãos nas algibeiras. Seu rosto anguloso, coberto pela
sombra da boina, mudava constantemente de expressão. Reprovava alguns pormenores do trabalho com gritos, aproximava-se de vez em quando da jaula dos cães, tirava pequenos
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
bocados de pão duro, das algibeiras das calças, e dava-os aos
animais.
Rodeando a bagagem, crianças esfarrapadas olhavam o
macaco, cheias de admiração. Calvani aproximou-se dos
rapazes e disse que o bicho gostava de amendoins. Passaram
os olhos pelos instrumentos luzidios da orquestra e um, dos
mais crescidos, chamou a atenção do grupo para um contrabaixo, muito amolgado, que estava em cima de uma caixa
pintada de cinzento. Desviaram a atenção do contrabaixo e
foram para junto da jaula dos cães. Calvani gritou-lhes que
saíssem dali, que estavam a servir de estorvo e ameaçou-os
com um chicote. Um dos rapazes chamou-lhe «corno velho»
e todos desceram a rampa correndo e pensando no chicote
de Calvani.
Anoitecia quando içaram o pano de cobertura. O velho
berrava. O toldo estava poído e cheio de remendos. A corda
rangia de encontro à madeira polida das roldanas.
- Fuerza. Cui-da-o.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Miss Betty descascava batatas sentada num caixote. Sonhava ainda com os olhos insistentes do motorista e teve
pena de o deixar partir. Estava farta daquela vida. Farta dos
passeios que dava no arame, com uma sombrinha, amarelo
laranja, na mão direita; farta das palmas, de quem lhe olhava
as pernas, e farta da fome. E se ele lhe dissesse que fosse,
talvez a vida mudasse...
- Vá, niña, despacha-te. As batatas são para o jantar.
Acordou. Teve vontade de atirar a água da bacia à cara da
senhora Calvani. Odiava todos os donos de circo. Só sabiam
explorar a desgraça dos outros. Primeiro vinham as promessas de bons ordenados. Depois... o circo não se enchia umas
vezes porque as feiras eram fracas, outras porque chovia. Por
fim acabavam dizendo que mantinham os contratos por
favor porque o número não agradava. Odiava, mais que os
outros, Calvani, porque andava sempre bêbado.
Passaram o resto da tarde a preparar as coisas para a sessão do dia seguinte. Calvani, no alto de um escadote, esteve
quase meia hora a pregar o disco de folha zincada com o
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
nome do circo. Tremiam-lhe as mãos constantemente. Desceu para ver se a chapa estava direita e subiu outra vez. Arrancou quase todos os pregos e rodou o letreiro mais para a
esquerda. Os outros homens pregavam o toldo.
Um rapaz loiro deixou o martelo. Calvani chamou-o. Recebeu ordens, foi buscar um pincel, um frasco de tinta e uma
folha de cartolina. Escrevia custosamente, copiando letra a
letra, um programa que tinha em frente dos olhos. Calvani
insultou-o porque as letras não iam certas e disse que as
avivasse com uns traços vermelhos para que se vissem melhor.
Jantaram dentro da barraca, no meio da pista, à luz dum
candeeiro de petróleo. Puseram três tábuas em cima de dois
caixotes e sentaram-se à volta daquela mesa improvisada. As
duas meninas comeram num tacho porque os pratos não
chegavam para todos. A carne e as batatas ficavam no fundo
dos pratos tapadas por um caldo ralo, gomoso.
Miss Betty vestiu-se e foi dar uma volta pela vila. Faziam
parte do programa, estes passeios de Miss Betty, nos dias de
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
chegada a qualquer povoação. Corria os estabelecimentos
com os lábios muito vermelhos, as pálpebras enegrecidas a
carvão e as saias demasiadamente curtas para realçar a grossura das pernas. Sorria aos caixeiros, comprava aqui meia
dúzia de alfinetes, além procurava um botão igual na cor a
uma amostra de fazenda que trazia na mala de mão. Os caixeiros mais novos cosiam no íntimo um amor que era feito
de sonho, os mais velhos iam, nas suas esperanças, um pouco
mais longe e os homens de dinheiros eram mais práticos nos
seus pensamentos. Miss Betty sorria a todos, tinha olhares
sedutores para todos e a sua passagem punha terras inteiras
em sonhos, projectos e certezas. Sim, tudo aquilo a aborrecia
mas Calvani exigia das mulheres mais bonitas da companhia
aquelas voltas; sabia-as mais eficientes que todos os reclamos
por mais bem feitos que fossem.
*
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Na primeira noite de espectáculo Calvani andava dum
lado para o outro. Miss Betty recebia os bilhetes, à porta, e os
outros artistas davam os últimos retoques na caracterização e
nos fatos de trabalho. Calvani vestia uma casaca que em
tempos fora preta. Estava quase verde e marcada de riscas
lustrosas, nos sítios das costuras.
- Está na hora. Está na hora...
Estes gritos dos homens eram acompanhados pelo bater
dos pés nos degraus da geral. Os espectadores iam entrando
lentamente e a sessão, marcada para as vinte e uma horas, só
começou depois das vinte e duas.
- Está na hora, está na hora...
Calvani recebia friamente estes protestos. Só se tinha enchido um quarto de sala. Isto é que lhe amargava. Meio desiludido deu ordem aos músicos para abrirem a sessão. Ainda
teve esperanças. Eram estas as esperanças de todos os dias, as
ocasiões em que sentia mais vontade de beber aguardente.
A hora do seu número aproximava-se. Voltou as costas à
sala e dirigiu-se a uma porta que ficava em frente de um es3
O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
pelho quadrado. Custava-lhe pegar nos lápis da caracterização. Esteve algum tempo a olhar-se ao espelho, fitando as
rugas do rosto. Sentia-se velho e sem forças. Olhou os lápis e
pegou no preto. Fez o primeiro traço numa sobrancelha,
enraiveceu-se e atirou o lápis para cima da mesa. Esquecerase de pintar a cara de branco. Esfregou a pasta de alvaiade no
rosto e pegou novamente no lápis. A cada traço, o rosto de
Calvani ganhava um aspecto angustiado. Olhou a garrafa.
Parecia acariciá-la. Pairou-lhe nos olhos uma onda de luz.
Vestiu umas calças largas e amarelas, calçou umas botas
enormes, enfiou os braços nas mangas dum casaco largo e
ridículo que lhe chegava aos joelhos e passeou impaciente
pela barraca. Parou em frente da cortina e espreitou outra
vez. Os mesmos três quartos de casa continuavam vazios.
Encostou-se a um dos paus que seguravam o telhado. Não
poderia pagar, no dia seguinte, o que devia aos artistas. O
dinheiro dos bilhetes vendidos mal chegava para a comida.
3
O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Um dos barristas entrou e fitou-o com um olhar cheio de
provocação. Calvani não foi capaz de resistir àquele olhar e
baixou a cabeça.
- Preciso de dinheiro.
- Mañana – repondeu Calvani secamente.
- Se não me paga esta noite não vou trabalhar.
Calvani aproximou-se da mesa.
- É na bebida que você gasta o dinheiro e depois diz que
não pode pagar.
- Mete-te en tu vida.
- Quero é o dinheiro.
Lá fora o jazz tocava uma música que pretendia ser alegre.
Seguia-se o número «Vasco e Magalhães». Ainda pensou em
dizer-lhe que se fosse embora, que não lhe fazia falta, mas o
número das barras era o melhor da companhia. Resistiu à
vontade de despedi-lo. Se fosse mais novo bastaria um par de
socos para fazer Vasco mudar de opinião.
- Só posso pagar-te metade esta noche.
Vasco, de mãos nas algibeiras, olhava Calvani.
3
O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
- Pago-te o resto mañana.
- Bem, dê cá o dinheiro.
- Faltam vinte escudos.
Calvani fez-se vermelho, empertigou-se e segurou a garrafa.
- Ladrão és tu. Se não fora...
O outro pegou num bocado de ferro que encontrou à
mão e continuou a fitar o velho. Calvani deixou de ver e a
garrafa voou-lhe das mãos. Vasco agachou-se, a garrafa
passou-lhe por cima da cabeça e desfez-se em cacos ao bater
nas pedras do chão. Num salto ficou junto do velho e apertou-lhe os pulsos.
- Põe aqui o dinheiro, ladrão!
- Larga-me, assassino.
Abriu-se a cortina e Vasco deixou o velho. Calvani tirou
mais vinte escudos do bolso e estendeu-lhos.
O número dos barristas começou. Espreitava. Via Vasco
lá no alto e sentiu inveja dos seus vinte e dois anos. Um dos
3
O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
cabos de arame que segurava o trapézio poderia partir-se. Era
morte certa. Só assim lhe pagaria o que tinha feito...
*
Não conseguia dormir. Dava voltas no pouco espaço da
enxerga que não era ocupado pelo corpo volumoso da mulher e via no escuro a cena da discussão com Vasco. Teve um
acesso de raiva por se sentir impotente, por não ter respondido como queria à afronta do outro.
Levantava-se um vento impertinente que entrava pelos
espaços abertos entre as tábuas. Puxou o capote e ajeitou-se
melhor. A mulher dormia respirando ruidosamente. Odiou
aquele sono solto. Pensou no seu antigo circo com saudades
e reviveu amargamente uma vida que já não era a sua. Não,
não esperava andar assim, de feira em feira, por terras sem
nome. O pai era italiano e ele nascera em Espanha. Começou
a trabalhar muito novo. Lembrou a família e aquele álbum
onde estava registada a vida artística de todos. Não o abria
3
O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
havia muito tempo e quando o fazia crispavam-se-lhe as
mãos nos retratos das filhas. A custo vencia a vontade de os
rasgar. Foi com elas que a desgraça veio e afirmava para si
que não deviam ter nascido. Eram três. Via-as ali mesmo em
frente dos olhos. Todas loiras... Eram o sangue da mãe...
Sentia-se arrependido por ter escolhido para companheira
uma mulher daquelas. Foi em Barcelona... Sim, também odiava a Espanha. Se tivesse o mesmo sangue dos Calvani não
deitaria cá para fora mulheres como aquelas.
A necessidade de defender o pouco espaço liberto da
cama e o azedume que crescia daqueles pensamentos fizeram
com que empurrasse a mulher e dissesse uma frase obscena.
O arrependimento por ter casado veio-lhe já tarde, na
impotência. Não encontrava uma desculpa capaz embora
pensasse que ninguém podia nada contra o destino. Primeiro
foi a mais nova. Fugiu. Uma como a mãe... Queria que a
sustentassem sem trabalhar. Nessa altura moveu todas as
forças. Viva ou morta, encontrá-la-ia. Prometeu mesmo
muito dinheiro a um homem de confiança para que a fosse
3
O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
buscar e despediu-o porque não conseguiu trazer-lha. E foi
desde essa altura que tudo começou a andar mal... Mulheres
malditas. Era o melhor número da companhia. Revia a leveza
e a graça com que ela saltava para cima dos cavalos... E era
bonita... Enojou-se de fazer justiça à beleza da filha. Nunca
mais a viu. A mulher, que tinha fugido para casar com ele,
tomou a defesa de Wanda. Quando lhe disse que Wanda não
fazia mais do que fugir àquela vida desgraçada de andar de
terra em terra, chicoteou-a. Tiveram de tirar-lha das mãos.
Três homens... foram precisos três homens... Lembrou-se
outra vez da discussão com o Vasco e mordeu-se de
desprezo por si próprio.
Tapou a cabeça para não ouvir o vento e procurou dormir. Mas não conseguia. Naquela noite, embora isso lhe
custasse, tinha que dar um balanço à vida.
Uma rajada de vento mais forte fez estremecer o velho. O
vento, minuto a minuto, aumentava de força. Atirava-se
contra os panos do circo e parecia querer levar tudo atrás; a
barraca lembrava um barco velho batido pela tempestade.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Ouviu um som que lhe pareceu o rasgar dum toldo. Levantou-se, acendeu o candeeiro e gritou pelos outros homens. Correu para fora mas no escuro da noite nada se via.
- Levantem-se. Isto vai pelos ares.
Dois homens correram a tacto até onde estavam presas as
cordas e as mulheres acudiram também. Só se ouviam as
pragas do velho e o choro das crianças. A senhora Calvani
gemia de espaço a espaço: «ai a nossa desgraça».
O pano estava rasgado. Recolheram à barraca mas Calvani
não tornou a deitar-se. De manhã foi ver melhor os
prejuízos. Um rasgão de mais de seis metros... Não podiam
trabalhar ali. Deitou todas as culpas para cima do empregado
da Câmara e discutiu com ele. Tinha pago como os outros e
queria um lugar onde pudesse continuar os espectáculos mas,
por mais argumentos que empregasse, só conseguiu licença
para montar o circo no largo depois do último dia da feira.
*
4
O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Mudaram-se para o largo e riscaram um número ao programa. Calvani adoecera. A custo fez o trajecto a pé. Tossia
com força: uma tosse funda, áspera, que lhe saía do peito
com um som rachado. O rosto vermelho e queimado do sol
tornara-se lívido e os pêlos ralos e brancos da barba, eriçavam-lhe a cara, como se fossem espinhos. Depois a febre
começou a tomá-lo e gretaram-se-lhe os lábios. O nariz
comprido estava quase translúcido. Delirava.
- A minha casaca, depressa. De-pres-sa.
Levantou o tronco e estendeu os braços com os pnhos
cerrados.
- Caballos!
Deu um golpe com o braço direito. Parecia-lhe fazer estalar um chicote. Caiu-lhe a cabeça no travesseiro negro e os
lábios abriam-se num sorriso. O delírio fazia-o ver ali, naquela enxerga metida dentro duma barraca improvisada, de
madeira, onde o vento entrava por dezenas de frestas, toda a
opulência antiga.
4
O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Chamava os criados e descompunha-os porque não
tinham os botões dourados das fardas convenientemente
limpos.
- Wanda! E Moly, quando se resolvem a entrar en la pista?
Corria o circo, saía e aquela fanfarra que tocava no palanque, ouvia-a ali, na ardência da febre. Na sua frente, como
um carrocel, giravam no circo cheio e enorme, enfeitado de
veludo vermelho, os trapezistas e os cavalos correndo.
- Scote, pára – estendeu o braço com a mão em concha
como se fosse dar qualquer coisa a um cavalo. – Quero esta
noche arreios azules. Ouviram? Que fazes aí especado?
Olhou para cima. Parecia admirar o número arriscado de
um trapezista.
- Gracias, gracias – dizia isto numa voz comovida elevando
os braços e apertando as mãos.
À senhora Calvani custava a conter a tristeza e a comoção.
Puxava-lhe a roupa até ao pescoço mas o velho esbracejava
novamente.
- Caballos, caballos.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Via as casacas castanhas e as meias brancas dos criados. A
orquestra começava a tocar. Fazia com as mãos os gestos de
quem dirige uma orquestra.
Cansou-se. Arfava ofegante, na cama. Esteve algum
tempo a descansar. Voltou de novo ao barulho das feiras, dos
carrosséis e dos realejos.
- Eddie, tu circo és una bodega.
Deu com o punho fechado, com quanta força tinha, na
enxerga.
- Só tienes pilecas. Caballos, os mios! Tua raça morra toda de fome,
maldito. Mio melhor palhaço! Deixem-me... Deixem-me... Deixemme... Mato-o. Bambini! Mato-te vil perro. Se és hombre salta cá fora.
Palhaço reles... Foi... foi preciso roubares o dinheiro para teres essa
barraca. Una bodega, una bodega. Não, no és um circo. Salta se és
hombre.
Vasco levantou a cortina que separava a cama do doente
do resto da barraca e perguntou à senhora Calvani se precisava alguma coisa.
- Talvez fosse melhor chamar um doutor.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Toda a companhia se aquecia em volta dum fogareiro de
barro. Falavam em voz baixa. No rosto de toda aquela gente
havia um misto de ânsia e endurecimento. Um dos homens
disse entre dentes:
- Se não me pagam saio depois de amanhã.
- Eu também – murmurou miss Betty.
- E se o velho morre para aí?
- Enterra-se.
A secura dos companheiros arrepiou miss Trinidad.
- Mas não devemos deixá-los assim...
- E o que fazemos aqui sem dinheiro?
- Pode ser que a casa se encha amanhã.
- A velha não quer que a gente trabalhe com o homem
doente.
O rapaz loiro olhou as solas dos sapatos:
- Não os mando concertar com essas promessas.
Miss Betty fez-lhe sinal com o braço. A senhora Calvani
aproximava-se. ouviu parte daquela conversa. franziu a testa e
disse rispidamente:
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
- Mañana daremos espectáculo.
*
De tarde, percorreram a vila inteira. À frente, um dos
homens, no alto dumas andas. As calças largas, vermelhas,
bailavam-lhe nas pernas como bandeiras ao vento. Levantava
um cone de cartão e gritava lá de dentro:
- Espectáculo nunca visto. É comprar bilhetes. Ninguém
deve faltar.
Depois os três músicos que vinham atrás rompiam numa
toada desafinada. Crianças descalças rodeavam os músicos e
olhavam o gigante cheias de admiração. Aquela vida parecialhes bela. Pensavam quase todos que seriam palhaços quando
fossem homens e pela tarde fora nos dias seguintes,
imitariam as vozes dos artistas, procurariam arremedá-los nos
exercícios de destreza e força.
Aquela reduzida fanfarra de palhaços emprestava à vila
um frémito de alegria. Vinham meninas brancas e linfáticas às
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
janelas, os homens assomavam às portas das oficinas e nos
estabelecimentos os rapazes sonhavam com as pernas de
miss Betty. Saíam notas estridentes, gargalhantes, do trombone de varas e a vila enchia-se de eco daquela alegria oferecida pela fome dos artistas do Circo Monumental.
Deixavam um ponto, seguiam para outro, com os rapazes
atrás como numa procissão. Uma rapariga, debruçada a uma
sacada cheia de vasos de flores, cerrou os olhos ao ouvir um
tango lembrando-se dum baile ou duma voz qualquer. O
homem do cone de cartão voltou a anunciar trabalhos nunca
vistos e a rapariga acordou do sonho como se aquela voz
rouca tivesse o efeito dum banho escocês.
Fechou-se a noite sobre a vila. Calvani estava agitado.
Tossia mais. A mulher procurava esconder aos olhos e aos
ouvidos do doente, todos os preparativos do espectáculo.
Um candeeiro de pressão, colocado no alto dum pau que
mais parecia uma forca que um poste de iluminação, especado no meio do largo, as nesgas de luz que saíam das tábuas
desunidas e uma lâmpada de pouca intensidade representa4
O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
vam ali no escuro, um traço entre a vida e a morte. A luz
eléctrica estava racionada a tal ponto que quase não existia.
Os
homens
chegavam
como
pássaros
encadeados.
Aproximavam-se da luz do candeeiro e conversavam. Dentro
duma das bilheteiras um dos artistas interrompeu a contagem
do dinheiro. Olhou com ânsia para fora: queria saber o que
se passava na outra. Miss Betty veio ao encontro dos seus desejos e informou-o que as cadeiras se estavam a vender bem.
A seguir foi dar a notícia à senhora Calvani que esboçou um
sorriso. Recompôs-se e perguntou as horas. Dentro de quarenta minutos começaria o espectáculo.
Faltava-lhe coragem... Não, não podia dizer ao marido que
tinham resolvido trabalhar nessa noite. Ele nunca lhe
perdoaria, mas era impossível manter aquela situação por
mais tempo. Não, não tinha coragem... Pediu a todos que não
fizessem barulho. Mas a orquestra? O espectáculo não
dispensaria a música.
O médico dissera que o doente não estava ali bem. Teria
sido melhor que o levassem para o hospital mas de lá infor4
O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
maram que era impossível, que não havia camas disponíveis.
Foi ver o marido. Os ossos do rosto pareciam querer sair-lhe
da pele e os olhos, já do fundo das covas das órbitas, quando
se abriam, era para fitar sempre o mesmo ponto. Olhava para
o telhado como quem duvidasse da sua própria existência e
cerrava novamente os olhos dum modo cansado e sofredor.
Quando ia a sair, a voz rouca e sofredora do velho chamou-a. Pensou que ele tinha descoberto tudo. Calvani queixou-se. Faltava-lhe o e tinha a garganta cada vez mais seca.
Pediu numa súplica que lhe desse aguardente.
- O doutor disse que não podes beber.
- Tiengo sede. Una pinga.
Fitou-o. Assim não ouviria nada. Este pensamento mordeu-a de remorsos e não foi capaz de vencê-lo. Foi buscar a
garrafa e pô-la sobre o caixote que servia de mesa de cabeceira.
- Está aqui.
Levantou a cortina e fugiu como que alucinada.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Calvani fitou a garrafa. Depois apoiou uma das mãos na
enxerga e levantou o corpo num esforço violento. Caiu na
cama sem lhe ter chegado e teve um acesso de raiva. Levantou-se novamente e bebeu com sofreguidão.
Lá fora os espectadores protestavam. Passava da hora
marcada. A senhora Calvani foi ter com os músicos e disse,
numa voz baixa que mal se percebia, que era necessário
começar. Parecia ter medo de se ouvir a si própria.
Os músicos improvisados sentaram-se e tocaram uma
canção alegre.
Para Calvani as notas da música tinham o sabor de uma
toada longínqua. Sorriu num sorriso imbecil. Quis ainda
levantar o corpo para beber mais mas não conseguiu. Às
vezes uma dor aguda, como se no peito lhe espetassem
navalhas, fazia mudar aquele sorriso num esgar de sofrimento. Apetecia-lhe gritar, gritar sem saber porquê. Tudo era
vago para ele, tão vago que não chegava a individualizar-se.
Parecia-lhe que o arrastavam para longe, que ia embalado por
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
uma canção que não compreendia. Tossiu. A tosse deixava-o
sem forças. Um suor frio inundou-lhe a testa.
Vasco, embrulhado num roupão esverdeado, entrou na
pista e foi apertar um a um os arames que seguravam as barras. A fanfarra tocou novamente para anunciar a entrada e o
número começou. Vasco subiu a escada de corda mostrando
os músculos volumosos dos braços e Magalhães apareceu em
trajo de palhaço; tentou imitá-lo e caiu desastradamente.
Os espectadores riem às gargalhadas. Vasco começa a rodar na barra fixa como se fosse o volante dum motor. Congestiona-se-lhe o rosto. Todos os instrumentos param de
tocar menos o tambor que faz lembrar um batuque.
- Basta, basta.
Vasco continua a rodar. Não ouve nada. Perde a velocidade gradualmente, salta, abre os braços e o público bate
palmas vibrando de entusiasmo. Magalhães vai repetir o trabalho e volta a cair. Vasco volta para cima, segura-se à barra,
morde uma tira de coiro e atira o corpo para baixo. Fica
preso pelas curvas das pernas. Magalhães suspende-se noutra
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
barra segura pela tira de coiro aos dentes de Vasco e faz
acrobacia.
Os espectadores olham admirados e as mulheres julgam
que eles virão estatelar-se no chão. O resto dos figurantes
espera a um canto a sua vez de entrar. Ninguém se sente à
vontade. Passada a primeira reacção todos têm pena do
velho.
Vasco e Magalhães deixam a pista e uma das meninas, a
mais nova, gira em volta dos espectadores das cadeiras, com
uma salva na mão. Ouve-se de espaço a espaço o cair duma
moeda na salva, e da geral, atiram dinheiro em cobre, que cai
no tapete da pista, um tapete rectangular, partido em quatro
partes pelas marcas das dobras. A criança põe um joelho no
chão e agradece baixando a cabeça.
Chega a vez de miss Betty. Traz vestido um maillot curto e
vermelho. Os homens olham-na, aplaudem-na e as mulheres,
movidas pelo instinto de defesa, não aprovam as palmas dos
homens. Corre o arame esticado com leveza e a sombrinha
amarelo laranja anda de um lado para o outro. Do chão, um
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
homem que veste o fato de Calvani faz os mesmos movimentos fingindo procurar o equilíbrio com o auxílio dum
chapéu de chuva que só tem varetas. O corpo de miss Betty
treme e é alvo de olhares cheios de excitação. O palhaço atira
para longe o chapéu de chuva. Vai buscar um lenço de seda
vermelho e pendura-o no arame. Cala-se a fanfarra.
- A-ten-cion.
Miss Betty deixa escorregar lentamente a perna esquerda
para trás fazendo deslizar o pé no arame polido. Abre as
mãos e os braços tremem-lhe. Vai descaindo a cabeça e o
corpo de vagar. Custa-lhe chegar à altura do arame. Num
movimento rápido segura o lenço com os dentes e levanta
com esforço o corpo. A fanfarra toca. Miss Betty salta para o
chão e as palmas chovem.
- Bravo.
- Bis, bis.
Gentleman faz habilidades. Indica com as patas dianteiras
os números gritados por um pseudo-professor. Depois um
homem, de dentro do alto falante de papelão, anuncia:
5
O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
- Madame Calvani e Nina Trinidad.
Custa-lhe entrar na pista. Não sabe mesmo se o deva fazer. Hesita. Dá as mãos às duas meninas e lá vai como que
arrastada, tão constrangida como se fosse a primeira vez.
Nina Trinidad é contorcionista e a irmã mais nova ajuda o
número entregando-lhe arcos, lenços e tamboretes.
A senhora Calvani foi mal recebida. É quase um monstro
dentro daquelas calças indianas e duma blusa azul de cetim
fulgurante.
- Fora com a velha! – gritou um dos homens que ainda
não conseguira esquecer a presença de miss Betty.
- Fora com a velha! – entoaram em coro outras vozes.
Madame Calvani pensou que se referiam ao facto de trabalhar com o marido doente e ruborizou-se.
Nina começou o número. Estendeu-se no tapete, apoiouse nos pés e na cabeça e foi encolhendo o corpo. Depois
segurou os tornozelos com as mãos e ficou assim. Madame
Calvani elevou-a nos braços para mostrá-la ao público naquela posição. As costelas de Nina marcavam-se todas na
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
pele e os braços e as pernas eram descarnados. Parecia uma
aranha. A senhora Calvani largou-a e foi buscar uma mesa.
Pôs-lhe um rolo de madeira no tampo e outro em cima. Nina
saltou para a mesa e depois para cima da tábua. De pernas
abertas procurava equilibrar-se e o rolo oscilava dum lado
para o outro. Conseguiu equilibrar-se e foi deitando o corpo
para trás, até segurar outra vez os tornozelos. Um palhaço
olhava fixamente a criança, de mãos abertas e estendidas para
defendê-la duma possível queda. Nina estava roxa e os
cabelos caíam-lhe nos olhos. Levantou-se e o palhaço trouxe
a irmã mais nova. A senhora Calvani transpirava, embora não
tivesse feito nada até ali. A irmã de Nina estava também em
cima da tábua e as duas crianças, agarradas uma à outra, para
melhor se defenderem da oscilação do rolo, lembravam dois
pequenos náufragos à deriva, num mar encapelado.
No clarim soou o toque de silêncio.
Ia começar o exercício mais arriscado do número «Madame Calvani e Nina Trinidad».
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
*
Na barraca, Calvani deu uma volta na enxerga.
- Perro Maldito!
A respiração era leve e fraca.
- Caballos, caba – não acabou a palavra.
A última sílaba pronunciada era um suspiro. Caiu-lhe a
cabeça fora do travesseiro, cerrou os olhos pela última vez, e
as mãos, esguias e ossudas, como se fossem garras, cravaramse numa dobra da manta.
Nas bancadas da geral, os homens, sonhando com as
pernas de miss Betty, gritavam ainda:
- Fora com a velha!
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
NADA DE IMPORTÂNCIA
ENCOSTEI-ME a uma janela. A neve caía lá fora e o chão
estava todo branco. Só o perfil da oficina de tratamento do
minério era negro e negros também os rolos de fumo que as
chaminés deitavam. O fumo fazia parte daquele casarão e no
dia em que o monstro enorme não o cuspisse tudo ali estaria
acabado. Mandíbulas de trituradores e engrenagens de moinhos criariam ferrugem, e as pás da classificação nunca mais
largariam a lisga cinzenta e viscosa.
Olhei novamente as chaminés. O fumo saía enrolado,
contorcia-se e espalhava-se no ar. «Estão lá dentro a queimar
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
homens», disse comigo e esborrachei a cara contra o vidro.
Procurava prender-me a qualquer coisa que não fosse aquele
monte esburacado que era a única paisagem da nossa vida e
perguntei a mim mesmo o que faria o Lemos. Dez horas...
Devia dormir. Dizia numa carta que a vida do sanatório era
rigorosa. Não tanto como a da mina, pensei. Aqui outra vez a
enterrar-me nisto... O outro chamava-lhe taylorismo sentimental... Estou a vê-lo, com esta sentença à flor dos lábios,
soletrada a uma roda de amigos à mesa dum café. Sim, a
atmosfera do café é morna, há mulheres bem vestidas que
nos ouvem... e homens que gostam de ser ouvidos por mulheres bem vestidas. Mas só ouvidos... depois fogem.
- No que está pensando?
Julguei melhor não dar resposta a esta pergunta do inglês.
Rowe disse ao Brasileiro que trouxesse uma garrafa de
«whisky». Aproximou-se com um copo na mão, encheu-o,
pôs-mo em frente da cara e disse: «beba». Bebi como um
autómato e como um autómato esperei duas vezes que mo
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
enchesse de novo. Sorriu, apontou a garrafa e murmurou
perfidamente à laia de receita:
- Isto é quase sempre remédio.
Dei alguns passos e fui para outra janela.
Uma lâmpada lá no alto dum poste e os armazéns do
material, ao fundo... A mina outra vez... Fechei os olhos,
cansado. Não queria olhar mais para além dos vidros. Volteime para Rowe e perguntei com secura:
- Você sabe o que é o taylorismo sentimental?
O inglês encolheu os ombros. Aproximei-me da mesa. O
coração batia-me no peito, às sacadas, e tinha nos ouvidos o
zumbido do vento. Mal arrastava os pés. Sentia-me, ao pisar
o sobrado, como um homem que espera cair dum momento
para o outro. Pensei que poderia enlouquecer e quis gritar
como se alguém me apertasse as goelas. Sentei-me. Suava. A
garrafa e o copo estavam de novo na minha frente. Bebi
mais. Angústia... Isto será angústia? Depois puseram-me
cinco cartas na mão e disseram: «vamos jogar».
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Joguei. Talvez sorrisse duma forma imbecil. Estava a
lembrar muitas coisas que já não eram a mina. Um mulher
que viajou comigo quando ia para o Sul... O magazine que
comprara na estação da partida... Aqueles lábios grossos... Os
cabelos que tocaram os meus... Sim, devia estar congestionado quando os seus cabelos tocaram os meus. A mão dela
tremendo... E o homem do taylorismo sentimental? Pequeno... O chapéu enrolado e uns óculos sem aros... Os outros a ouvi-lo como meninos que querem ganhar modos de
professor.
Atirava as cartas para a mesa mecanicamente. Os outros
riam das minhas asneiras. Aquilo aborrecia-me. Os zumbidos,
nos ouvidos, eram cada vez mais fortes... Talvez fosse o
barulho das máquinas. Via os volantes da central nova, a
cabeça da mulher do comboio metida numa das transmissões, e os cabelos fartos caídos sobre o compressor. Cerrei os
olhos. Não, a mulher já nada tinha de belo. Causava-me nojo
misturada com as peças das máquinas.
- Você não está bom.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
- Mer-da.
Rowe achou graça à acentuação que dei à palavra e deu
uma gargalhada. O sangue subiu-me à cara, mas dominei a
vontade de lhe atirar com as cartas e de esbofeteá-lo. Do
esforço que fiz me veio a certeza de não estar doido. Apeteceu-me sair. Talvez a neve, o frio da noite, o uivar dos lobos
me fizessem bem. Procurei levantar-me mas não consegui.
Pesava-me tanto o corpo que não podia com ele.
- Vem aí o director. Leva o «whisky» para dentro.
- Não. Por que razão é que ele pode beber à minha vista e
eu não posso ter aqui a garrafa? Está aqui muito bem e ninguém se atreva a tirar-ma.
Pus naquela última frase um sentido de desafio. Gostaria
de andar à pancada, naquela noite. Bater, ser esmurrado, rolar
pelo chão, cansar os músculos e cair num sono pesado até de
manhã.
O director entrou e deu as boas noites. Chamou Rowe de
parte e disse qualquer coisa que não ouvi. Mesmo que fosse
de mim pouco me interessaria. Odiei o director. Ódio de
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
classe? Não. Deitar-lhe para cima das costas os males da mina
seria absurdo. Eu sirvo e ele serve... Os dentes cerraram-seme. «Tenho-lhe ódio, um ódio instintivo. Pronto, acabou-se».
Com quem se parece este homem? O Lemos chamava-lhe
cavalo de corridas reformado e dizia que não era má pessoa.
Levantei-me com esforço e indiquei-lhe a minha cadeira.
- Continue jogando.
- Estou farto. Vou até à central.
- Espere. Eu vou consigo.
- Para quê? Que falta faz lá?
Ele ia do lado da ribanceira. Se lhe desse um empurrão era
duma vez um inglês. Não, não era capaz de fazê-lo. Não, não
era. Fiquei um pouco para trás e emendei mentalmente a
frase, ao olhar pelas costas o corpo bojudo e as pernas delgadas de Rowe: «Era duma vez um porco, isto é que está
certo». Apressei o passo e fui apanhá-lo junto ao poste da luz
eléctrica. Fixei o chão. Nunca passo ali sem olhar o chão. Foi
naquelas pedras... Vejo-o na minha frente, os olhos es-
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
bugalhados, a boca aberta, os dentes cheios de sangue... E o
Lemos, que era o melhor de todos nós.
- Rowe! Você não conheceu o Lemos. Era um amigo e
ficou aqui...
As lágrimas corriam-me pela cara abaixo e a neve, ao pisála, dava-me uma sensação repugnante. Parecia-me carne. E
que pisava eu em toda aquela terra maldita? Carne, só carne.
«Eu sinto-os debaixo dos pés abrindo as galerias...».
- Você tem qualquer coisa esta noite? Eu sei...
- Já lhe disse que não tenho nada. Deixe-me.
O Freitas deitava óleo no número dois.
- Um motor parado. O que houve?
- Começou a falhar. Deve ser do óleo.
- Óleo deste para um motor novo? Rowe, diga ao director
que beba esta murraça.
Atirei o capote para cima duma mesa e vesti um macaco.
- Ponham-no a trabalhar. Quero ter a certeza.
- Não pega, senhor engenheiro.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Cansei-me a limpar peças, a apertar e a desapertar porcas.
O Freitas foi para o compressor e veio de lá preto. Fui à
secção de tratamento verificar se havia sobrecargas. Só trabalhava um dos «trommers». Voltei. Era preciso tirar a cabeça do bloco. Não, eu não devia estar bom. O chão ia fugirme novamente, debaixo dos pés. Via-me cercado pelas
correias de transmissão. As esferas brilhantes dos «trommers»
caíam uma a uma a meus pés e a cabeça da mulher do
comboio seguia junto das pedras na correia de escolha do
minério. Via-a apanhada pelas mandíbulas dos trituradores e
depois tornar a aparecer sorridente noutro ponto qualquer.
Segurei-me a uma parede e pedi água. Mas não, não desistiria. Sentei-me. Abri uma gaveta, consultei uns gráficos e
mandei o Freitas ao depósito ver a qualidade do óleo que
chegara de tarde. Rowe conversava com o mestre da oficina
perto das células de concentração. Via-os da janela da central.
O velho Mota abriu a boca numa gargalhada franca ao ouvir
o que o inglês lhe contava.
- O óleo é todo do mesmo.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Era escusado. Mas escusado o quê? Agarrei na chave inglesa, apertei-a com quanta força tinha. Aquilo andaria nem
que fosse um minuto.
- Verificaram as velas?
- Verificámos.
- A corrente passa?
- Sim, senhor engenheiro.
- Quantos «trommers» estavam ligados quando o motor
parou?
- Três.
- Um dia isto vai tudo pelo ar. Doutra vez que isso aconteça parem as máquinas e mandem-me chamar.
- Eles só querem sacos de minério...
Sim; o Freitas sabia tanto como eu o que eles pretendiam,
mas a resposta espicaçou-me mais.
Cansei-me. Compressores sujos, tudo cheio de resíduos.
Um dia inteiro não bastaria para limpar os estragos do óleo.
Voltei-me para o mecânico:
- Amanhã, desmonta-se o motor.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Fui dar uma volta pelo «povo» não sei se para evitar a
passagem do poste onde o Lemos caíra. E não era a primeira
vez...
A aldeia estava só iluminada do lado que deitava para a
mina. Lá dentro, no escuro, confundiam-se as paredes negras
com o espaço entre as ruas estreitas. Mesmo às escuras conhecia a aldeia. Parei para acender um cigarro: «Ali é a casa
do Pinto; ali gastam os mineiros em vinho o dinheiro que recebem. Em frente a casa do Sebastião». A Janette disse-me
uma vez: «não sei como podem viver seis pessoas numa casa
daquelas».
Andei uns passos e voltei a lembrar-me do Lemos, dum
passeio que demos a uma vila próxima. Anoiteceu-nos o
caminho. Era também numa noite escura. A certa altura
acendi um fósforo e só tive tempo para gritar:
- Pare.
Olhou para trás. Gritei de novo, com ânsia:
- Pare!
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
A quatro metros ficava a chaminé da galeria 2. Alguém
partira a madeira que servia de guarda. Aproximou-se de mim
e murmurou: «obrigado». Até à mina nada mais dissemos. Ia
a abrir a porta quando me perguntou:
- Quantos metros tem aquela chaminé?
- Vinte e três – respondi martelando as sílabas.
Meteu um cigarro na boca, olhou-me e sorriu com tristeza.
- Era uma sorte...
Foi oito dias antes de adoecer.
Quando nos despedimos, na estação, bateu-me levemente
num ombro. O seu rosto era só mágoa.
- Você naquela noite não se devia ter lembrado dos fósforos. O fundo da chaminé seria melhor... Mais um mineiro que
morria dentro da mina... Agora esta vida de inválido... Era
bem melhor.
Apertou-me o ombro com força, percebeu que a Janette o
ouvira e sorriu.
- Não me olhe assim. Não: eu quero-me curar.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Quis animá-lo, mas faltou-me a coragem. Pensava como
ele.
Onde iria eu, sozinho, numa noite daquelas, a chapinhar
na neve. A chaminé da galeria 2 ficava do outro lado da mina.
Sorri sinistramente, mas voltei as costas à aldeia.
As sereias gemeram. Um turno deixava a mina e outros
mineiros entravam. A draga... Mal deixa cair a terra para se
atolar no lodo... Os meus olhos pararam na boca da mina.
Tremiam as luzes das lanternas na subida do monte. Uma
aqui, outra além. Velas duma procissão de desgraças. Porque
me enraivecia aquilo ainda mais? Aproximei-me de casa. A
Janette conheceu os meus passos e levantou os olhos do livro. Vi naquele olhar a falta que lhe fazia. Ela veio a correr e
passou-me os braços pelo pescoço. Queria beijar-me a boca.
Desviei a cara. Perguntou-me «o que tens?» e no seu rosto
marcaram-se traços de dor. Eram os seus braços, os seus
beijos a melhor fuga ao peso daquela vida. Sofria, e eu sentia
prazer naquele sofrimento. Censurei-me. Naquela noite só
procurava atritos e respondi-lhe o mesmo que tinha dito a
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Rowe: « não tenho nada, deixa-me». O rádio tocava. Senteime. A música arrastava-me na sua toada mole. Não sei nada
de música, mas é assim mesmo: quando oiço tocar perco a
rigidez, relaxam-se-me os músculos e esvaem-se-me os pensamentos. Agora a música levava-me à cidade, a uma vida
mais fácil. E eu ali enterrado daquela aldeia maldita... Mas
para que veio a Janette meter-se aqui? Olhei-me. Tinha as
mãos sujas e negras do óleo das máquinas.
- Não seria melhor afogares essa música de pretos?
A Janette desligou o aparelho.
- Dói-te a cabeça?
- Não, não me dói.
Falava com a secura dum cardo. Magoava-a. Sim, magoava-a.
- Mas tu tens alguma coisa e não me queres dizer.
- Já te disse que não tenho nada.
Naquele momento gostaria de chorar e as lágrimas arrasaram-me os olhos. Mas não, não podia ser... Mordi um lábio
com força.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
- Está aqui uma carta do Lemos.
Peguei na carta e fiquei por algum tempo indeciso. Iria
aborrecer-me mais? Rasguei por fim o sobrescrito e a Janette
voltou à leitura interrompida.
- O que diz ele?
- Que não tem esperanças de voltar a ver-nos.
- Há-de curar-se, estou convencida disso.
Disse isto com a segurança de quem tinha uma certeza.
Mas porque falaria assim? Aquela segurança... Era necessário
sentir pelo Lemos mais do que...
- Porque não abres as cartas dele? Escusavas de mostrar
tanta ansiedade.
O livro caiu-lhe das mãos, olhou-me fixamente e as lágrimas soltaram-se-lhe. Ouvi, no corredor, os passos da velha
Ana.
- Senhor engenheiro, está ali o Salvador.
O que quer?
- Pede que o senhor vá lá fora.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Levantei-me e fui à porta. O vulto dum homem esperavame a distância.
- O que há?
- Abateu a galeria 5.
- Toda?
- Não, senhor engenheiro.
- Estava lá alguém?
- Quatro homens.
- E então?
- Ficaram lá todos.
Aproximei-me de casa e gritei para dentro:
- A minha lanterna, de-pres-sa.
A Janette veio à porta.
- Diz-me o que aconteceu.
Beijei-a como se partisse para muito longe e murmurei a
custo:
- Nada, nada de importância.
Não me acreditou.
- Senhora Ana, a minha lanterna.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Corri, galguei o monte dos resíduos, comecei a descer e o
Salvador avisou:
- Corte mais à esquerda. Há aí uma vala aberta.
Era preciso chegar. Outros homens corriam também.
Toda a aldeia se levantaria ao saber do desabamento. As
lanternas, com os movimentos apressados dos homens, pareciam mover-se num mar cheio de vagas.
Mineiros discutiam à boca da mina.
- O que fazem aqui? Por que esperam?
Um do grupo informou:
- Partiu-se o escoramento. Era fraco... A rocha deslizou
por um veio de barro.
Aquele «era fraco», da forma como foi dito, trazia a marca
duma insinuação. O rosto dos homens tinha endurecido.
- Foi antes ou depois da chaminé?
- Parece que foi antes.
Não me satisfez a resposta. Tomei fôlego.
- Esperam que a mina venha toda abaixo?
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Um mineiro mediu-me como se aquilo fosse um insulto e
resmungou:
- Não querem lá mais gente.
- Quem está a dirigir os trabalhos?
- É o Silva.
Entrei pela mina dentro. Os homens seguiam atrás de
mim e as lanternas iluminavam as paredes da galeria. Dos
toros de pinho escorria uma humidade viscosa e o ar tinha
um bafo de angústia. Chegámos ao poço central e o foco
duma lanterna mostrou-nos a entrada de novo túnel. Um
número pintado numa tábua vermelha. Cinco. Agora focávamos todos o mesmo ponto e, numa curva, a luz caiu monótona na parede e nos escoramentos.
- Eu vou à frente, senhor engenheiro. Conheço melhor o
caminho.
Com a mão livre arrepanhei-lhe o ombro e puxei-o para
trás.
Começávamos a ouvir o bater surdo das picaretas. A
ansiedade movia-nos. O foco das lanternas foi cair no chão.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
dois blocos de pedra quase nos tapavam o caminho.
Encostei-me à parede, atravessei de lado. A sensação da
humidade arrepiou-me. A cadência abafada dos passos e o
som das ferramentas a entrar na terra voltavam para trás e
repetiam-se nos nossos ouvidos. Descemos instintivamente
os focos. Ao fundo, num quadrado de luz embaciada, os
homens agitavam-se numa ânsia febril. Revolviam o entulho,
de tronco nu, tomados de fúria. As pás, mal atiravam a terra,
caíam outra vez na massa abatida.
O Silva descobriu-se e deu-me as boas noites. «Boas noites»... Como isto era amargo. Falei-lhe entre dentes, olhandoo nos olhos:
- Ainda lhe sobra tempo para tirar o chapéu?
O escoramento rangeu. Junto de nós, alguns toros de pinho cediam.
- Madeira, tragam madeira. Tirem aquelas pedras para dar
passagem às vagonetas. Se você se deixasse de cumprimentos
e visse o que está a fazer, ganharia mais.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Alguns homens afastaram-se e eu berrei com quanta força
tinha:
- Telefonem para cima. Que mandem toros para baixo.
Sentei-me numa pedra. O Silva fitava angustiado o ponto
onde o escoramento dava de si.
- Ouviram alguma coisa?
- Ouvimos bater.
- Dêem sinal.
Deixámos de respirar. Sim, todos. Eu posso falar por todos. Respondeu-nos um som que nos dizia que a vida lá
dentro estava por um fio. Olhámo-nos e sorrimos.
- Quem está do outro lado?
- O senhor Rowe. Desceu com alguns homens pela chaminé.
Alguém disse cheio duma força estranha:
- Mas nós chegaremos primeiro.
Ninguém queria largar as ferramentas, cedê-las aos que
estavam à espera. Afirmavam que não estavam cansados e os
outros mostravam-se impacientes. Tirei a um deles a pá.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Entregou-ma de má vontade e limpou o suor da cara com as
costas da mão. Parecia-lhe que não fariam tanto como ele.
Era preciso vencer... Mas vencer o quê? Animava os homens, sorria-lhes, dizia-lhes que chegaríamos a tempo, mas...
uma dezena de metros não podia ser removida dum momento para o outro. Sentia que aqueles quatro mineiros estavam perdidos mas embebedava-me e sonhava impossíveis.
As escoras rangeram novamente e o Silva disse que eu não
estava ali bem.
- E você está? E estes homens estão?
Iríamos cair também? Procurávamos vencer a luta que se
travava intimamente.
Os carpinteiros vieram. As vagonetas corriam nos rails
num grito metálico, a respiração parava-nos, na esperança de
novo indício, e os martelos batiam na madeira. Doía-me o
peito. Mas esta dor, o bater dos martelos, o chiar das vagonetas, tudo era vago... O pensamento ia para além da terra
abatida, fixava-se no ponto donde vinham aquelas pancadas
distantes e mortiças como a luz duma candeia prestes a
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
extinguir-se: leves traços, leves sinais que mais não eram do
que um suspiro, do que um bafo da morte.
O director apareceu. O chapéu tapava-lhe os olhos. Soubemos da sua presença pelas saudações do Silva porque só
sabíamos olhar para a frente. Voltei-me e perguntei se tinham
telefonado para a vila a pedir uma ambulância. Respondeume, sem que os outros homens ouvissem, que não devia ser
necessário.
- Ao menos que venha o médico da mina, visto que só
serve para passar certidões de óbito.
- Tenha calma.
Estas palavras, ditas com secura, pareceram-me uma
ameaça. Peguei na pá e continuei a remover a terra. Os homens não ouviram esta troca de palavras e eu não sairia dali,
viesse uma ordem fosse de quem fosse.
Vi o relógio. Um quarto de hora. O entulho desaparecia e
as vagonetas partiam carregadas.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Um gemido... Não acreditávamos. Sorrimos. Sim, sorrimos todos. Uma voz, embargada pela comoção, rompeu a
angústia que nos roía:
- Está aqui um braço.
Esperámos suspensos a repetição daquele queixume. Um
dos toros, partido e atravessado, na nossa frente dificultava o
trabalho. Novo gemido. Agora mais forte. O Salvador bateu
numa das escoras e fez cair terra. Olhei o chão da galeria e vi
uma bota. Segurei-a. Tremia. O corpo estava preso e um dos
carpinteiros cortou à machadada as escoras que o prendiam.
Alguém se aproximou de mim. Era o médico. Fitou-me
como se soubesse o que tinha dito ao director.
- É o Jana – disse um homem que ria e chorava ao mesmo
tempo.
Mais à frente, um contra o outro, entalados nas tábuas,
estavam mais dois mineiros. Abraçados como se tivessem
medo de enfrentar a morte, sozinhos. Olhei o tecto da galeria. Nada os atingira.
- Respiram?
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
- Estão vivos.
- Carreguem-nos numa vagoneta e levem-nos para fora –
ordenou o médico.
- Falta ainda um homem.
Voltou-nos a ânsia. Faltava um homem... Arrancá-lo-íamos ao resto dos escombros.
Vivia uma duplicidade que me atormentava. E os que
partiram? Livres de perigo? Não, eu não sabia nada, ninguém
o sabia. Perdi o comando de mim mesmo, corri atrás do
pensamento e encostei-me ao cabo da pá, a soluçar perdidamente como uma criança.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
O VIZINHO
CONHECI o «Vizinho» numa quinta situada no último maciço montanhoso do Sul. Amarga-me o desfibrar de pormenores. Alugaram-me a casa e disseram-me: «tenha cuidado
com o velho». O dono, ao entregar-me a chave, depois daquele aviso, estranhou certamente que eu nada lhe perguntasse. Pouco me interessava aquela povoação triste, onde
nada acontecia, a vida daqueles homens e daquelas mulheres
que vinham às portas olhar os desconhecidos que passavam
nas ruas.
O velho a quem o dono da quinta se referira era o «Vizinho». Foi assim que o meu filho começou a tratá-lo, e eu
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
próprio faria grande esforço para lembrar-lhe o nome ou o
apelido. Morava junto de nós, num casebre negro, de pedra
seca. A parede que fazia frente às nortadas estava encostada à
nossa casa. Doutra forma cairia aos bocados. Os buracos da
porta e duma pequena janela fechavam-se de manhã quando
toda a família partia, para só se abrirem ao anoitecer. Cá fora
o suão movia o bafo abrasador do sol e os homens, nas
lombas dos cerros, deitavam fogo aos matos. Dias e dias
naquele trabalho maldito. O cheiro picante das urzes e da
terra queimada punha um amargo nas bocas e arrastava um
pigarro desconfortante.
Partiam mal a luz da manhã vencia as trevas da noite. O
«Vizinho» era o último a sair e ia já cansado. A cara enegrecida, torrada ao calor do braseiro, e o fato esfarrapado juntavam, pelo menos dez anos, aos sessenta que lhe trouxera o
último Inverno. Tinha o rosto dum doente de fígado, a boca
desdentada, e diziam que gostava muito de beber aguardente.
Via-os entrar todas as tardes, dum alpendre que fizemos
com ramos de eucaliptos, pelo buraco da porta. Nessa altura
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
pensava nos bonecos animados do Walt Disney. Parecia-me
ver a casa a inchar, como se tivesse a pele de uma rã. Ainda
hoje não consigo conceber como se arrumava tanta gente lá
dentro.
O sítio tinha tanto de belo como de caricatural. Um pouco
da América ali metido e cercado de cerros. As vivendas das
quintas lembravam as construções fantásticas dos primeiros
tempos da exploração dos petróleos. A uma, quase triangular,
que cortava o ar como gume fino dum machado de lenhador,
chamaram «Ferro de Engomar» e a outra, bojuda e listrada de
vermelho, «O Barril de Vinho». Estes nomes enraiveceram
decerto os seus construtores. Arquitectaram palácios,
deslumbramento e o povo (oh visão bárbara e deformada das
coisas!) transformara e atirara tudo ao poço estúpido e
profundo do utilitarismo.
Foi a medo que o Vizinho me contou a história daquelas
casas:
- Arranjaram dinheiro e fizeram aquilo.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
«Aquilo», era bem dito. Um produto monstruoso de infância: a mesma força exibicionista dos meninos que mostram o sexo às senhoras púdicas. Mas aqueles homens só
foram infantis nos primeiros momentos. Depois ganharam
uma consciência atroz e exigiram da terra e dos braços dos
outros um esforço cruel e absorvente. Não, eles não fizeram
só «aquilo», afirmei ao olhar o rosto inexpressivo do velho.
Minha mulher disse-me uma vez, com tristeza: «Não sei
que mal fizemos a esta gente. Olham-nos cheios de desconfiança e até quando se trata do seu próprio interesse custalhes a falar. Há bocado esteve aqui a mulher. Começou por
dizer que a vida da terra era amaldiçoada e fez uma porção de
rodeios antes de pedir a coisa mais insignificante do mundo:
queria que deitássemos as sobras da comida no balde dos
porcos».
Sim; poucas eram as palavras que lhe arrancávamos.
Seguia-os quando iam deitar fogo aos matos. Via-os descer a encosta e fitar as macieiras. Cobriam-se com a copa das
árvores e voltaram a aparecer lá no fundo do vale junto do
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
leito sinuoso da ribeira. Perdia-os. Nova encosta se erguia.
Mais canteiros, mais macieiras e aqui e além, uma mancha
verde negra de pequenos laranjais. Próximo duns castanheiros cortados que a Primavera transformara em massas espessas de verdura havia um talhão murado. Eles seguiam o muro
e desapareciam, um a um, como se a terra os sorvesse, numa
prega saliente da montanha. Os meus olhos voltavam para
trás e paravam no portão de acesso à terra murada. Estava
partido e mal seguro num único gonzo. Deitado para a
frente, parecia um bêbado, procurando o equilíbrio só com
uma perna. Era um guarda sinistro , aquele portão. As crianças corriam pelos canteiros, felizes e despreocupadas, e colhiam maçãs mas, mal o transpunham, perdiam a naturalidade. Avançavam a medo, os seus passos eram hesitantes.
Arrancavam os frutos com a consciência de que cometiam
um roubo.
Depois, uma mata de eucaliptos galgava a serra até ao
monte mais alto.
O velho informara-me apontando aquela mata:
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
- Além, um homem matou um primo por causa dumas
partilhas.
Foi ali, quando ao anoitecer se juntava na eira a família do
«Vizinho», que meu filho aprendeu a contar até sete. Sete
eram as pessoas que viviam naquele casebre ensombrado. O
velho e a mulher, três filhos e duas filhas.
Subiam os degraus dos canteiros e de tal forma arrastavam
os pés que se diriam de chumbo os sapatos brochados. As
roupas que vestiam vinham ensopadas em barro e suor. O
«Vizinho» atrasava-se sempre. Impava, segurava os quadris,
torcia-se e praguejava em voz baixa e monótona como se
rezasse. De canteiro em canteiro fazia uma paragem. Chegava
por fim, sentava-se numa pedra e ficava a olhar o chão. Pelos
rasgões da camisa mostrava o corpo magro.
A mulher chamava-lhe bruto e gritava:
- Não há roupa que resista a este homem.
Ela sabia que as camisas estavam podres, que não aguentavam os remendos mas tinha de desabafar. E aquela voz
arrastava-se como se fosse um eco de revolta.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
- Ah homem malvado...
O «Vizinho» parecia não ouvir. Levantava-se e ia dar água
à vaca. Sorria ao vê-la beber, mas o sorriso fugia-lhe ao olhar
o fio que corria no tanque e o velho crescia em azedume.
Lembrava o milho que murchava por causa da seca, as batatas que precisavam do dobro da água que lhes deitava. Era
quase sempre o cão que pagava aquele azedume. O animal
aproximava-se, lambia-lhe as botas, roçava-lhe a cabeça pelas
calças e o velho dava-lhe pontapés no focinho e insultava-o
como se fosse gente. Arrependia-se como se as palavras lhe
doessem a si próprio, acariciava o pelo lustroso da vaca e
murmurava enlevado:
- Eh Bonita!
Comecei a olhar o «Vizinho» com desconfiança. Foi pelo
que me contaram. Ladrão... Diziam que ele roubava e que no
escuro da noite nos rondava a porta. Aquele aviso: «tenha
cuidado com o velho», justificava-se.
O chapéu esburacado, os pêlos ralos e compridos da
barba, a calva luzidia, a testa engelhada, os olhos meio cerra8
O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
dos à força de tanto enfrentar o sol, o som viscoso e fugidio
das falas davam ao pobre homem um aspecto repugnante.
Pensava-o rastejando como as cobras, imaginava-o espreitando encruzilhadas e saindo ao caminho a quem se atravesse, noite alta, aos descampados. Observa-o constantemente. Era frágil como um pé de trigo e a custo se aguentava
de pé. Na rampa que subia ao estábulo segurava-se ao tronco
dos pequenos sobreiros para não cair, e ao escurecer, o
rumor dos seus passos, leves e incertos, corria pela eira.
Sentíamo-lo a entrar em casa, ouvía-mo-lo fungar como se
fosse um bicho do mato. Paravam os passos, paravam as
pragas, parava tudo. Outro ruído ganhava a noite silenciosa.
Uma colher de folha raspava o fundo duma panela de barro.
O «Vizinho» ceava depois de todos terem comido.
Meu filho muitas vezes perguntou:
- O que é um ladrão, pai? O «Vizinho» é ladrão?
Esquivava-me à resposta.
- Disse o Florival, pai...
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Na cidade adormecíamos embalados pelo som dos
«klacsons», pelo chiar gritante dos eléctricos que corriam nos
«rails», pelos sinais dos barcos que aportavam ao cais. As
noites eram o maior suplício do campo. Não conseguia ler à
luz triste e amarelada do candeeiro de petróleo. Deitávamonos cedo. Na quietude dum vale todos os ruídos aumentam
de volume. O latir dos cães torna-se mais agudo e repete-se
como um eco de insónia. «Cão que dorme de noite não
guarda a fazenda», é sentença de caseiro e os animais ladram
profissionalmente sem a convicção dum acto natural quando
não o fazem temendo a própria sombra como o homem
medroso que assobia e canta para não se sentir só. Esquecime do piar das corujas... São ais de mãe olhando um filho
morto.
Se caíam folhas no telhado minha mulher advertia:
- Ouve, lá anda o velho.
- Isso é tolice. São folhas...
Apontava para cima e olhava os paus que sustinham as
telhas. Tinham qualquer coisa das vértebras dum esqueleto,
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
dos pequenos barcos em princípio de construção. Ligava o
telhado às acácias onde piavam as corujas e aos restos dum
pomposo «chalet» que ficava a poucos passos da quinta, um
monstro de paredes cobertas de musgo doentio e acastanhado. A madeira das portas apodrecera, e aqueles buracos
pareciam os olhos vazados dum cego. Nem um santo que os
homens pintaram entre duas janelas resistiu aos efeitos da
humidade.
O rumor rastejante de pequenos reptis, o estalido seco dos
galhos que o vento quebrava ocupavam os pequenos
intervalos da noite livres do ladrar dos cães e do piar das
corujas.
- O «Vizinho» é ladrão, pai?
Adormeci muitas vezes pensando naquela pergunta.
O velho tornara-se para mim um espécie de obsessão.
Desaparecera uma galinha a uma mulher do vale, desapareceram alguns atados de lenha numa eira das Milheiradas. Mas
não, não podia ser. Fui ver o monte de lenha. Era impossível.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
O velho não podia com um feixe de estevas daquele
tamanho.
Tinha uma ideia vaga dos «Nick Carters» e dos «Sherlock
Holmes», lidos nos primeiros anos que passei num colégio
interno. Ainda mal se falava em literatura para crianças e
adolescentes, e o director consentia naquele processo de
masturbação.
Comecei a martelar o «Vizinho» com perguntas incisivas.
Levei-o junto da capoeira roubada e à medida que nos aproximávamos esperava pelo choque. Olhei-o insistentemente e
perguntei num tom ríspido:
- Quem seria que veio aqui a noite passada?
O pobre baixou os olhos tímidos.
- Alguém que precisava duma galinha...
Andámos algum tempo lado a lado e o velho não levantava os olhos do chão. Sim, o «Vizinho» não levantava os
olhos do chão. Nunca, que me lembre, me falou doutra
forma. Era um animal frágil e bravio e os contactos com os
outros homens sempre lhe foram penosos. Desconfiava de
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
tudo e de todos. Devia odiar-me. Eu não mostrava ser um
homem cansado, as minhas mãos estavam limpas de calos e
nunca me vira um camisa rasgada.
Mastigava aquela resposta do velho. «Alguém que precisava duma galinha». Seria um indício? Mas indício de quê? A
amargura das suas palavras cortava.
Passou a esconder-se de mim. Se me via na eira, para
voltar a casa, fazia um longo desvio. Descia os dois primeiros
canteiros das macieiras, aparecia depois junto à porta, e
esgueirava-se para dentro de casa.
*
Estávamos em Agosto e fazia luar. Uma noite luminosa e
quente. Os ramos das árvores e as folhas não se moviam. As
paredes da casa ainda irradiavam o calor do sol. Parecia o
amanhecer de um dia radioso e um galo cantou duas vezes,
enganado. Minha mulher, que na cidade nunca olhara a lua
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
contemplava a encosta dum monte. Segurou numa das minhas mãos como que a prender-me a atenção:
- Olha, como tudo se vê! Lá está o portão partido...
Os grilos cantavam, a água corria num murmúrio doce.
Nem os cães ladravam. As falas dos homens que andavam na
rega saíam, ondulantes. Um calor humano ecoando e
morrendo no fundo dos córregos... Perto brilhavam os frutos
rosados das macieiras.
Não me atrevia a fechar os olhos, a deixar o alpendre.
Minha mulher, creio que pensando no piar das corujas e nas
rajadas de vento que varriam o telhado nos dias de nortada,
disse: «Se as noites fossem todas assim, dormiria de dia».
A lua era uma companheira forte. Punha doçura no balido
das ovelhas, tornava menos sinistro o «chalet» monstruoso.
Fiquei só. Ajeitei-me na cadeira de lona e fumei cigarros
sem conto. Os olhos presos à magia, ao encanto da noite não
se queriam fechar.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
O sono venceu-me mas um ruído surdo, abafado, logo me
acordou. Olhei em redor. Os olhos prenderam-se-me à figura
dum homem que a lua recortava nitidamente.
Deu alguns passos em direcção do alpendre e depois parou. Flexível como uma mola de aço concentrava forças e
atenção. Nem um ruído. Mais alguns passos... Aproximava-se
do alpendre. Media-o de alto a baixo e ele media o silêncio da
noite. Vinha descalço. Um pé mal colocado quase o fez cair.
Um reflexo muscular rápido desfez aquele momento de
angústia. Inclinou o corpo e estendeu um braço. A lua
entrava pelas frestas do alpendre e salpicava de luz a sombra
das ramagens. A mão ossuda do homem movia-se e procurava como se tivesse olhos em cada um dos dedos. Ouviu-se
um som arrastado que se dilatou. O homem tornou-se rígido.
Segurava qualquer coisa, o corpo vergado ao peso que levava.
Sentou-se ofegante à porta do casebre. Ouvi mastigar, o
mastigar duma pessoa sem dentes. A lua iluminava-lhe o
rosto cansado.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
- O balde da comida dos porcos – murmurei – sim, era o
balde da comida dos porcos que o «Vizinho» tinha à sua
frente.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
SAPO E LAGARTO
DUAS filas de casas frente a frente beijando o pó da estrada, ruelas contorcidas onde as rodas dos carros marcam
sulcos cada vez mais profundos, homens sentados no chão,
crianças jogando com bolas de trapo e... mais nada. Só os
homens olhando o céu numa súplica, só as mulheres gritando
pragas aos filhos que fogem. O resto é silêncio, é a vida
parada num quebrar de anseios e de força que chega ao
desespero.
Ao fundo ronca e sobe a ladeira um carro a motor e as
mães gritam pelos filhos, o coração apertado no peito:
- Larga a bola maldito!
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
O carro passa envolvido numa nuvem de pó espesso e
avermelhado, os olhos seguem-no até à curva do alto. Depois
volta o silêncio, apenas cortado pelas vozes das crianças.
- Chuta...
- Passa.
Nas ruelas chafurdam os porcos, correm galinhas e os
meninos, descalços e quase nus, brincam e lambem as mãos
sujas de terra.
As casas da curva da estrada lembram um harmónio velho
apertado nos joelhos de quem lhe preme as teclas. E parece
que gritam de indignação. Todas iguais em tamanho e altura...
As portas sempre abertas são bocas escancaradas de pedintes.
Os campos criaram uma crosta que os arados não vencem, os ramos das figueiras varrem o chão arrastados pelo
vento, e o sol, num ímpeto de senhor, domina, abrasa tudo.
- Lá vem ele! – gritou um homem que estava sentado no
chão.
E o grito diz qualquer coisa que sabe a desforra, lembra
uma válvula, um êmbolo gasto a cuspir desgraças. Sobe a
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
estrada um pobre, vestido de negro. Usa uma gravata preta
sobre o pescoço. Não traz colarinho e o chapéu deformado
tapa-lhe metade do rosto.
Aproxima-se. Um dos rapazes fica parado, com a bola nos
pés, e berra como se estivesse a transmitir um grito de guerra:
«Lá vem ele» e estas palavras correm toda a povoação.
Está agora a dez passos das primeiras casas da aldeia e a
vaia começa.
- Sapo e Lagarto, o meu pai matou um porco.
O pobre pega na primeira pedra que encontra, corre, e a
vaia repete-se como o «tam-tam» dum batuque:
- Sapo e Lagarto, o meu pai matou um porco!
A primeira pedra parte. Nem força, nem pontaria. Mal
afugenta os rapazes que lembram um bando de pardais.
Aquelas palavras tomam a força de insulto, da praga mais
triste que caiu sobre a terra, e o pobre baba-se de raiva, arrepela os poucos cabelos que ainda lhe restam, deita-se no
chão, esperneia e chora. Depois levanta-se enraivecido, corre
atrás deste ou daquele mas a presa foge-lhe sempre. As mu9
O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
lheres riem às portas e os homens acompanham o coro dos
rapazes:
- Sapo e lagarto, o meu pai matou um porco!
É sempre o homem da gravata preta que acorda do marasmo a gente da aldeia. As vozes são um ulular sinistro e as
pragas que deviam atirar ao tempo, à terra e à vida caem
todas sobre os ombros fracos do velho e, tão habituadas
estão as crianças à sua presença e a esta gritaria que, quando a
noite chega e o homem não vem, perguntam com os olhos
muito abertos a exprimir tristeza:
- Oh mãe, que é do Sapo e Lagarto?
A camisa de fora das calças, de tanto esbracejar, Sapo e
Lagarto berra:
- Um dia mato um!
E a aldeia toma então o aspecto sinistro daquelas vozes.
Parece revolta por um tempestade. O gargalhar das mulheres
lembra um som de vidraça partida, os homens grunhem
como feras, e as crianças saltam movidas por molas de aço.
*
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
*
*
Caíram numa manhã de Setembro as primeiras chuvas...
mas o Sol depressa as venceu. Os homens partiram para os
campos com mulas e arados. Era preciso aproveitar o tempo.
A água que entrara na terra chegava para uma boa lavra e os
rapazes, de sachos às costas, correram em procura de engodo
para as armadilhas.
As charruas levantavam postas de terra castanha, brilhante
e ouvia-se de onde em onde o praguejar dos homens contra
os animais. Nas figueiras, apanhavam-se à pressa, os últimos
figos. A vida da aldeia, numa atitude de beleza e força, jorrava
como seiva.
Já o Sol se escondia atrás dos penedos da cumeada
quando todos voltaram à aldeia. Os homens entraram nas
tabernas e beberam brindando àquela dádiva do céu, as mulheres apressavam a ceia e os rapazes estenderam no chão os
corpos cansados.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Era quase noite quando o pobre de gravata preta apareceu
ao fundo da estrada. Vinha trôpego e mal arrastava os pés. A
mesma cara lúgubre de todos os dias.
Parou à porta da taberna e nada lhe disseram. Parou junto
dum grupo de rapazes e nada lhe disseram. A boca, num ritus
contorcido dizia incompreensão por aquela atitude. Fitou os
rapazes, mediu-os como num desafio e um nervosismo
estranho se apoderou dele. Não, não podia mais e gritou com
quanta força tinha:
- Eh filho duma vaca! Eh cães danados.
Os rapazes nem sequer se voltaram.
Partiu, andando às guinadas, como um corpo sem alma.
Sentiu-se no mundo mais só do que nunca e descarregou
contra si mesmo o veneno que trazia lá dentro gritando até
enrouquecer e ficar estendido, sem forças, nas pedras da calçada:
- Sapo e Lagarto, o meu pai matou um porco!
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
RESPEITA A MINHA DOR
CASAMENTO de amor seis anos atrás. António de Campos
e Maria da Luz Ferreira; depois Ferreira de Campos.
Perdidas as ilusões, além dum sem número de coisas
amargas só lhe restava aquele «de Campos» a tornar-lhe o
nome maior e a prendê-la como se fosse uma corrente de
forçado. Se nuns dias a defendia um concha grossa feita de
tolerância, noutros, o seu corpo era mole e a angústia, como
um punhal, rasgava-lhe as carnes. A boca sabia-lhe então ao
fel da derrota.
Toda a gente a tratava de D. Luz. Uns por preguiça ou
comodidade, outros por respeito e talvez alguns – era ela
quem assim pensava – pelo brilho aveludado dos seus olhos
quentes. O marido, gerente e accionista duma fábrica de
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
produtos químicos, chamou-lhe Maria no momento das
primeiras confidências amorosas e, decorridos seis anos,
ainda conservava inalterável este tratamento.
D. Luz tinha passado a noite numa insónia doce. De manhã descerrou as pálpebras languidamente e ficou algum
tempo a olhar a cova deixada na cama pelo corpo do marido.
Deu-se a um exame frio.
Sentia-se outra. Aquele beijo cansado que ele lhe estampou na testa, o beijo de despedida de todos os dias, comparou-o a umas pílulas que o pai e os empregados manipulavam
na farmácia, para acalmar tosses fundas e rebeldes e curar
todas as doenças de peito. Ai de quem as fizesse diferentes
umas das outras! Papá praguejava, tratava de burros os ajudantes, mandava refazer o cilindro de pasta balsâmica, um
cilindro negro, mais esguio e comprido do que um lápis,
cortava-o com uma espátula fina, enrolava os pequenos bocados num pó amarelo canário até lhes dar forma e acabava
murmurando voluptuosamente: «as pílulas têm que ficar
exactamente iguais». Iguais eram os beijos de António de
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Campos mas calmos e frios, dados pela medida dum hábito
velho.
- Haveria outra mulher na sua vida?
Em tempos, D. Luz tinha feito vezes sem conto esta pergunta a si própria. A seguir espaçou mais o desejo duma resposta que fosse certeza e por fim venceu-se não voltando a
conjecturas que a torturassem sem utilidade.
Talvez tudo se modificasse, tudo se evitasse se ele tivesse
abandonado aquela calma metódica, se a beijasse de quando
em quando com violência.
Apertar-lhe-ia o pescoço nos braços sedosos, pedir-lhe-ia
com doçura que não fosse à fabrica. Depois iriam correr
estradas, viver, respirar, como numa aventura.
- Estás doente? Parece-me que dormiste mal.
- Não, não estou. Sinto-me até bem.
- Gemias...
Um arrepio sacudiu o corpo de D. Luz ao recordar este
fim de diálogo. Perguntou a si própria se teria pronunciado o
nome do outro, enquanto sonhava. Se assim fosse nem
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
mesmo aquele beijo calmo da despedida lhe teria dado. Reanimou por instantes. Quis tornar coisa segura este raciocínio
mas voltou a lambê-la uma onda de incerteza. Olhou o relógio de pulso. Faltavam cinquenta minutos para a hora marcada. A vida não era um prémio da indecisão... Tocou a
campainha e ordenou à criada que lhe arranjasse um banho.
Levantou-se da cama ao ouvir o automóvel sair da garage.
Era-lhe familiar aquele roncar de motor e a seguir o bater
compassado dos cilindros. Tudo se perdia num sussurro que
se misturava com os outros ruídos da rua. Deu uns passos,
abriu a porta dum móvel grande de nogueira e tirou lá de
dentro um roupão azul. Olhou-se, por algum tempo, ao espelho. O roupão entreaberto deixava a descoberto uma das
coxas. Perdeu-se numa auto-contemplação em que desafiava
todas as mulheres e principalmente as de mais de trinta e
menos de quarenta anos. D. Luz sentia-se parada entre estes
dois limites. Um horror fundo se apoderou dela ao lembrar o
tempo que faltava para ultrapassar o último. Não, não tinha
quarenta anos.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Reparou no rosto. Estava vermelho. Disse consigo: «Que
raiva!» Pensou melhor. Não era raiva decerto. Soava mal.
Não, não era. Indignação sim; sim, indignação. Seis anos...
Os mesmos beijos frios e calmos, seis anos de beijos frios
e calmos...
- O banho está pronto minha senhora.
Reviveu o encontro do dia anterior, os passos, incertos
daquele passeio... Nunca o perfume das rosas tinha sido tão
doce.
Eram belas as rosas. Ali estavam francas, pendendo para
quem quisesse colhê-las. Quanta dificuldade para esconder
todo um passado que estava a ser morto, que seria enterrado
ali mesmo naquele banco de jardim. Venceu tudo, venceu até
a própria vida e sentiu-se livre como o vento, como as rosas
que engrinaldavam as colunas do lago. E nua, despida de
preconceitos, como a estátua de mármore que parecia
banhar-se ao fundo. Foi quando ele lhe pegou nas mãos pálidas e azuladas que o passado morreu. Fixou-o num olhar
brilhante. Chamou-lhe Maria da Luz. Voltava a ser a Maria da
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Luz do tempo dos sonhos. Como isto era belo! Perguntoulhe a medo se gostava de rosas. Como tudo era belo.
O peito de D. Luz arfava, o ar que respirava era doce e
perfumado, o sangue ruborizava--lhe o rosto pálido e o coração batia com força e parecia querer fugir-lhe do peito.
Flores, perfume, promessas de amor. Aquilo era a felicidade;
aquele era o seu mundo. E ele falava baixo, baixo, tão baixo
como se a sua voz fosse o embalo lento e sereno dum sonho.
Maria da Luz! Que encanto o seu nome pronunciado por
aqueles lábios grossos. Ficaria de boa vontade a vida inteira a
ouvi-lo, iria a toda a parte só para beber as suas palavras, para
queimar-se no seu hálito quente.
Tudo o que estava para trás daquele encontro lhe causava
horror. Agora não havia a mais pequena possibilidade de vida
em comum com António de Campos, o homem que lhe
tinha estropiado e nome e cortado todos os anseios. Aquela
voz cansada, sem expressão... Não, não compreendia. Onde
estava a sua dignidade de mulher quando se deixou amachucar seguindo secamente os conselhos do pai? Onde estava?
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Bastavam aqueles seis anos. Não suportaria mais o marido. Desprezava-o até. Havia de dizer-lhe cara a cara tudo o
que recalcara em tanto tempo.
Seguiria depois o seu caminho. António de Campos começava a parecer-lhe um monstro. Via-lhe a cara redonda,
dilatada, como se estivesse a olhá-lo por um vidro coberto de
água da chuva. Um monstro, efectivamente. O constante
pigarro da bronquite e a carne tremendo como se fosse gelatina. Se visse por muito tempo aquele rosto parado, na sua
frente, endoideceria. Talvez não fosse cómodo gritar-lhe o
ódio, o desprezo que a possuíam. Uma carta simplesmente e
mais nada. Não, nunca. Dir-lhe-ia tudo, enfrentá-lo-ia, vê-loia amarrotado, vexado. Só assim apagaria os sofrimentos que
lhe causara.
Na sala de trabalho, o relógio principiou a bater horas.
Contou com atenção as pancadas e correu para o quarto.
Procurou um vestido e disse para si: «Levo o verde que a
modista mandou ontem. Ele diz que os tons verdes fazem
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
realçar a minha beleza e que gostava de pintar-me vestida de
verde».
Pintor! Um artista! A D. Luz pareceu que só os artistas
sabiam amar. Como ele tinha falado das flores, da cor e da
primavera... Tudo tão diferente das cotações, dos preços, dos
negócios. Tão diferentes como o dia da noite. Era o dia. Ele
era o dia, o sol a vida, e António de Campos a noite, uma
noite escura, sem estrelas.
Levo o «tailleur» verde, pensou.
Foi à janela ver como estava o tempo. Umas nuvens negras, como os rolos de fumo saídos das chaminés da fábrica
de produtos químicos, salpicavam o céu. «Tendência para
chover», eram os sinais dados pela estação de rádio na noite
anterior. Um «tailleur» num dia daqueles pareceria mal. Diriam na rua que não tinha casaco. Na rua sem casaco, num
dia daqueles como qualquer costureira pretensiosa...
O cabelo... Faltava pentear-se. D. Luz teve um momento
de desespero. A mesma maçada sempre que tinha pressa.
Não conseguia ajeitar o cabelo. Não devia fazê-lo esperar.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Ele gostava de pontualidade. Julgou-se a mulher mais desgraçada do mundo só porque o penteado não lhe saía bem e
duas lágrimas lhe vidraram os olhos. Daí a pouco seriam dez
horas. «E se ele se cansasse de esperar?» Como este pensamento a fazia infeliz e amarrotada... Quase um papel inútil
deitado no cesto imaginário do esquecimento. Voar, sim,
voar. Um momento seria o bastante para perder tudo. Mas
não, ele não se cansaria, decerto.
- Maria da Luz não há cores que pintem os seus olhos...
Outro toque de campainha insistente.
- Aperta aqui o vestido. Estou farta de dizer à modista que
não gosto de coisas abotoadas nas costas. Despacha-te, tenho
pressa. Hoje não almoço em casa. Se alguém telefonar diz
que só chego à hora do jantar. Chama um táxi.
À noite, ao voltar a casa, D. Luz vinha cheia de decisão.
Impossível subir mais aquelas escadas frias, de pedra, ver
aqueles vasos azuis com plantas de estufa, fazendo alas, um
em cada degrau como sentinelas. Subiu lentamente. Parecialhe que ia entrar num túmulo. Não, não iria ali sepultar o seu
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
sonho. Nada daquilo lhe pertencia já. Tudo estaria acabado
dentro de algumas horas.
Entrou no quarto, tirou o casaco dos ombros e dirigiu-se à
sala de trabalho. sentou-se num «maple». Sentia-se uma
estranha. Pareceu-lhe mesmo ter vindo pela primeira vez
àquela casa. Abriu o interruptor do móvel de dezasseis válvulas e cortou rapidamente a voz duma locutora francesa que
dava notícias.
Não compreendia porque a irritavam as vozes das mulheres. Procurou no quadrante outro posto. Tino Rossi, gostava
de Tino Rossi. A voz monótona e chorada do corso murmurava coisas de amor. D. Luz estirou-se no «maple» e cerrou
os olhos, sorrindo. Com a mão direita acariciava levemente a
esquerda. O corso parou de cantar e D. Luz continuou a
acariciar a mão esquerda.
António de Campos entrou. D. Luz nem ouviu o ruído da
chave na fechadura. Só quando a criada veio dizer-lhe que o
jantar estava na mesa, acordou dos sonhos e deixou de
acariciar a mão.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Não se sentia segura de si. Seria que aquele corpanzil alto,
obeso quase, que a sua presença ainda a dominava? Encolheu
os ombros como se este encolher de ombros fosse um sinal
de desprezo absoluto e sentou-se à mesa. Veio o inalterável
beijo na testa... Uma náusea enorme revolveu o estômago de
D. Luz.
O jantar decorria numa calma aparente. D. Luz olhava, de
vez em quando, de soslaio, o marido. António de Campos
comia lenta e imperturbavelmente.
- Sais esta noite?
Porque teria feito aquela pergunta? Pareceu-lhe até que
pela primeira vez lha fazia. Não, decididamente, não era por
ali que queria começar. «Sais esta noite?». Não devia tratá-lo
de modo tão familiar.
«O senhor sai esta noite» é que devia ter dito.
- Não, não saio. Sinto-me aborrecido. Hoje houve discussão dum relatório da gerência. Não descanso enquanto não
conseguir um aumento de preços. A margem de lucro é miserável.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Meteu uma garfada de sparguetti na boca, mastigou devagar, pôs os olhos em D. Luz e continuou:
- Tenho de encontrar uma saída. Os cálculos de produção
são baixos e o pessoal ganha cada vez mais e trabalha menos.
Malditos cálculos, malditos lucros, pensou D. Luz.
- Parece que não estás bem disposta?
Olhou o marido com uma quase insolência, arrepanhou os
lábios, sorriu num sorriso cínico e encolheu novamente os
ombros.
- Não compreendo porque estás hoje tão interessado pela
minha pessoa...
António de Campos olhou-a e disse para si: «temos novo
pedido». D. Luz fazia riscos nervosos, com a faca do talher
de peixe, na toalha. Premia-a com quanta força tinha e movia
os lábios. Via a cara gorda do marido na toalha e riscava em
todos os sentidos como se o esfaqueasse. «E se lhe dissesse
que gostava de outro homem?» Talvez o amachucasse ou
talvez isso não significasse coisa alguma.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
- Maria da Luz, os teus olhos brilhantes são um mundo a
nascer...
Lá vinha de longe a voz que a embalava, que lhe dizia que
tivesse coragem, que fosse mulher. Fixou António de Campos. Ia dizer «estou farta desta vida».
- Sinto-me nervosa...
Relaxaram-se-lhe os músculos do rosto e a expressão
perdeu o vigor.
- Deves ir ao médico, Maria.
- Não preciso de médicos.
Estas palavras foram ditas com cólera.
- Não posso com a tua atitude de alheamento. O que sou
eu para ti? Não, não posso.
António de Campos levantou os olhos do prato, fitou o
rosto da mulher e ficou a olhá-la, perplexo. Aquela cara redonda e apática foi endurecendo a pouco e pouco. Envelheceu mesmo alguns anos. Uma ruga dividiu-lhe a testa em
duas e os cantos dos lábios caíram-lhe. Indignou-se. Ingratidão. Aquilo só podia ser ingratidão.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
D. Luz fitava-o com a insistência dum desafio.
Teria bebido em casa de alguma amiga? Nunca tinha dado
por que ela bebesse.
- Tu não estás boa, Maria. Isso são nervos – repetiu firmemente.
- Monstro. Sim, é uma monstruosidade a vida que me dás.
Acabou-se. Ouve bem, não quero mais viver nesta casa. Não
posso.
- Não te compreendo, Maria. É preciso chamar um médico. Que mais queres que faça por ti. Alguma vez pediste
alguma coisa que te negasse? – As palavras saíam-lhe magoadas. – Não há muitos dias passaste por uma ourivesaria e
mostraste vontade de ter uma pulseira de vinte mil escudos.
Nessa mesma tarde a pulseira era tua. Monstro porquê? Maria, isso são nervos. Nervos ou ingratidão. Procuro adivinhar
os teus desejos, pago os teus caprichos sem discutir. Vendi o
carro para comprar outro só porque me disseste que já estava
velho. Não sei, Maria, não compreendo...
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Limpou os lábios ao guardanapo, atravessou a sala em
passos largos e destrambelhados e saiu.
D. Luz, com a cabeça encostada a uma das mãos, fitava as
rosas vermelhas duma jarra de prata cinzelada. Os olhos,
abertos, muito abertos, já não viam. Levantou-se a custo da
mesa. Atravessou o corredor como um autómato e foi sentarse em frente de uma papeleira antiga, na saleta. Parecia
delirar. A vida corria-lhe à frente dos olhos, via-a projectada
numa parte da parede onde não havia quadros. Atirou-se para
a frente e caiu a soluçar, com as mãos a esconder o rosto. As
imagens misturavam-se secas, insistentes com as últimas
palavras do marido. Os braços penderam-lhe ao longo do
corpo. Os olhos, fora das órbitas, diziam desvairamento.
Depois recompôs-se, abriu, cheia duma decisão estranha,
uma gaveta e procurou uma caixa de papel de carta.
Começou a escrever. Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.
As letras dançavam no papel... Limpou os olhos.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Foi uma loucura. Estes dias felizes não se repetirão. Respeite a minha dor, suplico-lhe. O meu destino estava marcado muito antes de nos
conhecermos. Não é possível qualquer outro encontro.
Era conveniente suprimir a palavra «felizes». Mesmo
aquele tom de quem chora não a satisfazia. «Suplico-lhe...»
Mas suplicar o quê?
Acendeu um cigarro e rasgou o que escrevera. Não, nada
lhe diria, uma carta... uma prova... Um olhar fugidio percorreu o braço esquerdo e a pulseira cravejada de brilhantes... E
com o mesmo fósforo com que acendeu um cigarro queimou
o pouco que fora capaz de escrever e murmurou:
- O António tem razão. São os nervos, os nervos malditos. Sim, devo ir ao médico!
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
A FUGA
DEPOIS de tactear o monte de feno e afagar as botas,
deitou-se e fez todos os esforços para não dormir. Voltas e
mais voltas em cima da enxerga e os olhos abertos, muito
abertos.
Soprou a candeia com força como se a luz fosse má testemunha dos próprios pensamentos e, sufocado por uma
onda de tristeza, rompeu a soluçar. Saudades? Medo? Saudades...
Nascera ali mesmo, no fundo do barranco, e em dez anos
não vira mais do que a ribeira correndo e a montanha fe1
O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
chada, coberta por um mato ralo e enegrecido. Ali ouvia o
zumbido do vento, o choro da chuva e o rumor da ribeira...
E tudo isto era triste...
Pensou na vila, nas casas da vila, procurou assobiar a música do Carrossel, mas parou às primeiras notas. A ovelha
soltou um balido e Joaquim assustou-se. Tudo o assustava
naquela noite. As folhas do sobreiro velho que caíam sobre o
telhado, o ladrar dos cães, o estalar dos ramos secos...
As cores das casas da vila... Cores de que não sabia o
nome sequer. Ali no vale, como no fundo dum poço, diferençava o verde pelo contacto com as plantas que cresciam
em redor, o amarelo da palha do centeio, e chamava pardo ao
cinzento das nuvens, à terra molhada dos lameiros, à cor
calcinada dos cabeços e dos penedos, à casca gretada das
árvores. Pardos eram também os fatos que vestia, pardos
eram a porta roída do caruncho por onde entrava e saía todos
os dias, as paredes e o chão da casa.
De uma vez, a mãe disse-lhe numa voz gritada: «Este ano
vamos à feira, Joaquim».
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Os pais eram pessoas de poucas palavras. Sabiam o nome
das plantas que semeavam, do pouco que viam, e conheciam
uma dúzia de verbos que se ligavam a acções e a necessidades
imediatas. Herdara-lhes esta quase mudez.
Passado algum tempo, o pai trouxe-lhe umas botas e
Joaquim, volta e meia, perguntava impaciente:
- Mãe, quando é que vamos?
E ficava a sonhar sem saber em quê. Compraria uma faca,
uma faca com cabo de ferro, e seria da marca «Corneta». O
pai dizia, sempre que cortava o pão duro, que não havia facas
como as da marca «Corneta».
Numa tarde, a mãe avisou-o:
- Vamos amanhã.
Subiu penosamente a encosta ao lado dos pais e os novos
caminhos que trilhou encheram-no de contentamento. Mas...
mal aguentava as botas. Aqueles pés largos nunca até então
tinham tido qualquer espécie de sujeição. Doíam-lhe,
mordiam-lhe na alegria.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Voltou com uma faca nova e os olhos brilhantes e embevecidos a enterrarem-se debaixo das cores afrontosas da
serra. Tinha visto um mundo... um mundo de casas vermelhas, brancas e azuis, um mundo de cor.
Já não construía açudes nas margens da ribeira e aborreceu as brincadeiras antigas. A visão da vila enchia-lhe o peito
até transbordar. Esquecia-se da lenha, esquecia-se da folha
para as vacas. Iam dar com ele, os olhos parados no ar, como
se atravessasse as fragas agudas e estivesse a ver o que se
passava do outro lado. Não sentia as picadas dos tojos e, ao
jantar, ficava muitas vezes com a colher das papas em frente
da boca até que o pai dizia, cortando-lhe com o seu azedume
um bocado do sonho:
- Come, alma danada!
E o Joaquim comia sorvendo ainda o cheiro doce dos
bocados de carne frita que a patroa dos pais lhe dera no dia
da feira.
E a música do Carrossel? Sempre, sempre nos ouvidos.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Abafou os soluços na manta de retalhos com que se cobria. A cabeça pendeu-lhe, mas logo a seguir abriu os olhos
sobressaltado. Não, não dormiria, nem esperaria que o galo
cantasse.
Deixou escorregar o corpo pelas tábuas da tarimba e foi
ao postigo olhar as estrelas. A manhã tardava em romper.
Sentou-se no bordo duma canastra vazia, esteve algum tempo
a esfregar os olhos e ganhou alento. Procurou a roupa e
vestiu-se.
Ainda olhou para o lado onde estava a ovelha. Pôs as
botas às costas e, ao abrir a porta, os gonzos rangeram. Estacou, a respiração cortada por aquele ruído.
A tacto encetou a subida da encosta. Escuro, escuro como
breu. Tropeçou em todas as pedras do caminho, chorou, mas
o desejo de voltar à vila saiu vencedor do medo e das dores.
«Se o pai desse pela falta»... Este pensamento dobrou-lhe a
vontade de vencer a subida do monte.
Era manhã clara quando chegou à estrada que ia dar à vila.
Olhava para tudo com os olhos ridentes dum namorado. As
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
copas verdes dos castanheiros, os eucaliptos prateados, o
orvalho que rolava das folhas, tudo coisas novas.
Veio o sol ajudar ainda mais o seu embevecimento e,
quando se encontrou perto das primeiras casas da vila, Joaquim deitou-se na relva molhada. Estava cansado pelo esforço e pela emoção. Pouco tempo esteve quieto, porém.
Sentou-se numa pedra e calçou as botas. Depois deu alguns
passos e praguejou porque os pés lhe doíam. Ia descalçar-se,
mas um pudor estranho se apoderou de si. Não, não entraria
descalço... a vida era quase sagrada.
Sem que soubesse explicar não se alegrou ao ver de novo
as casas azuis, vermelhas e brancas. Encontrou as ruas desertas e a solidão amarfanhou-o. Como tudo estava diferente
do dia da feira. No largo nem meninos com gaitas, nem barracas, nem a fanfarra alegre do circo.
Onde moraria o homem que o quisera contratar na altura
da feira? Perguntou a meio mundo até que lhe apontaram
uma ruela torta e inclinada como a encosta da serra.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Disseram-lhe que ficasse, deram-lhe um machado e
apontaram-lhe um monte de lenha. Era preciso rachar aquilo
tudo até ao jantar.
O machado era pesado demais para os seus braços tenros.
Doíam-lhe as costas. Cortou, cortou, cortou. Os braços
pesavam-lhe como se fossem chumbo e latejavam-lhe as
fontes.
Chamaram-no para comer, caía o sol a pino. Entrou na
cozinha com o peito a arfar de cansaço. Disseram-lhe onde
se sentar e puseram-lhe na frente um prato de papas de milho. Depois, apontaram-lhe o poço e um balde suspenso
duma corda. Davam-lhe toda a água que quisesse beber...
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
SILÊNCIO ESFARPADO
ALDEIA... Noite escura, noite de trevas. Ninguém pelas
ruas, nem sequer acenderam os candeeiros; só algumas nesgas de luz, frouxas, amarelas, saindo das soleiras das portas,
lambem o chão negro das ruas. Rumor, só o da água da
ribeira caindo do açude e, se os passos de alguém esfarpam o
silêncio, logo morrem abafados pelo açoite do vento e pela
distância.
Numa casa pequena igual a tantas outras... Ela, cansada,
de olhos vermelhos, abertos, fitando uma criança que dorme.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Ele, atrás das mulas, por córregos medonhos, vivendo no
escuro.
«E se a guarda viesse»? A este pensamento, a mão tremeulhe no cano da arma. «Mas não, não viria. Logo à primeira
noite seria pouca sorte». Medo, depois confiança tão ténue
como um fio a partir-se. Ao mais leve ruído, ao açoite do
vento na ramagem das árvores, a mesma pergunta: «E se a
guarda viesse»?
Mil vezes sentiu vontade de dizer ao companheiro que
não tinha nascido para aquilo, mil vezes lembrou o filho, mil
vezes ouviu a mulher a dizer-lhe que não fosse. E a arca do
milho vazia? E o Gonçalves da loja? E o dono da terra?
Viu ali, no escuro da noite, o tempo em que era só. Nem a
nata dos lameiros lhe causava arrepios, nem o peso da enxada
o fazia vergar. Veio a mulher – uma canga... Veio o filho –
outra canga... Curvou a cabeça para o chão da vereda e
embrenhou-se mais pela vida adentro. Sorte como a sua,
ninguém, ninguém a tinha. Lembrava fulano, lembrava sicrano. Porque seria que a sorte não queria nada consigo?
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Porque seria que o milho faltava na arca? O Gonçalves da
loja... Nem sabia ao certo quanto lhe devia.
Mudos, ele e o companheiro farejavam no escuro, e as
mulas seguiam na frente, carregadas, em passos cansados. O
caminho parecia que nunca mais acabava e se chegassem ao
fim talvez o coração se lhe partisse de tanto bater. Ansiedade,
medo e alegria viveram muitas horas em choque naquele
peito dorido.
Ela, em casa, não despegara os olhos do menino. «A
guarda? Se ele não voltasse?» Um vácuo tão grande no peito
como a negrura da noite. Nem queria pensar o que seria a
vida sem ele.
Depressa morreu a angústia daquela noite, naquele casebre
negro. Era inverno mas o sol veio de manhã, por acaso, e ele
chegou com o sol e as mulas, libertas por acaso também.
Com o peito aberto à aragem fria da manhã, nenhum córrego lhe custou a subir. Riram os dois. Ela e o companheiro.
Voltou e tudo fora fácil, mesmo demasiadamente fácil.
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Atravessou a rua sem o olhar perdido dos outros dias e
não evitou a loja do Gonçalves. Entrou mesmo e disse com
quanta força tinha: «Aqui tem, quero pagar o que devo».
Depois vieram os sonhos. Falou à mulher «Que iria outra
vez, que não havia perigo, que a guarda não sabia daqueles
“corgos” malditos».
A ida foi de novo ansiedade, a volta, alegria e aquilo passou a fazer parte da vida de todos os dias. Muitas vezes fitou
a enxada. Certo é que fugia de olhá-la e não compreendia por
que os olhos lhe paravam muitas vezes naquele canto da casa.
Talvez fosse remorso, um remorso fundo. Mas... tudo ia
mudando. Mais sonhos. O menino poderia ir à escola... Seria
como os outros meninos. Começavam a esquecer quanto a
vida lhes fora má e já não sentiam as dores dos companheiros
que ficaram no campo, que não deixavam as cavas.
Mas as mulas? Sempre a mesma carga pequena que dava
para pouco. E o tempo sem fim que levava a chegar à fronteira? E as noites, perdidos nos matos? E a guarda? Uma
história qualquer como a do lobisomem que virava em cavalo
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e corria sete adros numa noite... Nem encostas a subir, nem
ribeiras a passar, nem sombras de matos que lembravam
fantasmas... Comprariam um carro.
E um dia o carro chegou. Correram velozmente pelas estradas e as noites agónicas deixaram de o ser. Contas e sonhos, tudo se dilatou. O Dr. Velho com falta de dinheiro...
mas tinha uma quinta e a quinta podia ser dele. Mesmo toda a
aldeia podia ser dele... Questão de dinheiro.
A mulher pensou demais em prendas, o casebre deixou de
ser negro e nunca mais choraram o incerto da vida. Na aldeia,
os outros olhavam de lado. Dizia que a inveja os mordia e os
outros afirmaram que o dinheiro lhe tinha subido à cabeça.
Partiram, como sempre, de noite. A carga era grande e o
carro custou a pegar.
Não sabia explicar o que sentia naquela noite e ainda disse
ao outro que seria melhor transferir a viagem. O companheiro sorriu e respondeu que a noite era igual a todas as
outras. Partiram mas não lhe saía aquilo da cabeça. Viu uma
prisão e encontrou-se do lado de dentro das grades. Depois o
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menino, em casa... A mulher... O que seria de todos? Suava...
Os olhos muito abertos não deixavam de fitar o bocado de
estrada iluminado pelos faróis. Nem na primeira noite lhe
custou tanto a ida. A mulher... O filho... Sós, no mundo, aos
encontros dos outros. O dinheiro, ganho em tantas noites,
perdido estupidamente, em uma só. Não voltaria livre à
aldeia. Iria sim mas ao lado de um guarda, de carabina ao
ombro. E os outros a rir... Sim, ririam dele. Pensou na enxada
e viu-a a um canto, cheia de ferrugem. Talvez fosse melhor...
Os outros continuavam a rir. A mulher chorava... A quinta
do doutor já não seria sua... Nem a aldeia toda. Apertava-selhe um nó na garganta, e na boca seca, sem saliva. só tinha
amargor. Todos os sonhos desfeitos... Teve ódio ao mundo,
à mulher, ao filho. Ele na prisão e todos, todos cá fora. O
Sol... nunca mais o olharia senão através das grades da cadeia.
A mulher... outro homem viria. O dinheiro dele para outro,
para outro que não tinha sofrido, que não tinha lutado.
Pensava mal, sabia que pensava mal, de vez em quando, a
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calma surgia. Mas o caminho, naquela noite, parecia não ter
fim.
A uma curva da estrada apareceu a guarda. Mandaram-nos
parar. O companheiro crispou as mãos ao volante, ele olhava
para trás e mesmo sem ver nada sabia que tudo estava
perdido, tudo. As molas do carro rangeram e a velocidade
cresceu.
Um tiro, um tiro certeiro, que ele não viu. O companheiro
prendeu com mais força a roda do volante, cerrou os olhos e
o carro continuou a ganhar velocidade. Os olhos do
companheiro, quase vítreos, continuavam a olhar a estrada.
Numa voz sem força pediu:- Segura o volante... Estou ferido... Não posso.
Sim, estava tudo perdido. O outro pendeu a cabeça. Perguntou qualquer coisa para lhe ouvir a voz. Nada, a não ser o
silêncio. O companheiro morto, ali, era uma denúncia. Mas...
talvez não estivesse morto... O hospital... Depois, teria de
contar tudo. As grades da janela da cadeia, outra vez... A
mulher... O filho... Não... O carro deixou de rodar. Foi o
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instinto que fez para o carro. Aquele corpo morto, ali a seu
lado, era uma denúncia.
Pegou no corpo e tirou-o do carro. Era preciso esconder
aquela prova maldita. Depois a família? E os outros homens
da aldeia que não o viam a bem? Apontá-lo-iam. Foi ele, foi
ele... Suava. Voltou a meter o corpo dentro do carro.
Descarregou os sacos e foi escondê-los debaixo do mato.
Iria ao hospital. Assim, sem carga, ninguém lhe poderia pegar. Mentiria, juraria se fosse preciso, que não viu a guarda.
Sim, iria ao hospital. Voltaria depois, quando ninguém esperasse, para levar os sacos.
Um sorriso, um sorriso feroz lhe iluminou o rosto ao
pensar que, daquela vez, a carga não se dividiria. Voltou-lhe a
serenidade e murmurava como se acordasse dum sonho,
enquanto as mãos, como garras, seguravam o aro do volante:
- Desta vez tudo será meu!
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A ESPERANÇA
VOLTOU DE MANHÃ
CHEGOU cansado a casa. Bateu as botas brochadas na soleira da porta e a lama caiu, em postas, no chão. A camisa de
cotim estava ensopada em água e colava-se-lhe ao corpo.
Chovia.
A mulher perguntou: «E as batatas?» e fitou-o à espera da
resposta.
Tossiu, encolheu os ombros e respondeu com um nó na
garganta:
- Lá ficaram a nadar na água da cheia.
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Ela, de olhar parado, parecia dizer: «E agora?» António foi
direito à lareira e ordenou secamente:
- Vai buscar o casaco.
Despiu a camisa, limpou-se num trapo velho que estava
pendurado junto da lareira e vestiu o casaco. Sentou-se num
banco, desatou os cordões das botas e ficou descalço a secar
os pés. Dois tachos de barro apanhavam os pingos de água
que caíam perto do lume.
Os pés aquecidos deram-lhe uma sensação de bem estar.
Pôs as mãos nos joelhos e ali esteve tempos sem fim a olhar
as brasas.
A mulher preparava a ceia. Ainda quis perguntar outra vez
pelos estragos da cheia mas teve receio.
Sentaram-se à mesa, uma mesa de castanho, pequena, com
uma gaveta ainda mais pequena. Veio o tacho das couves. Ela
pô-lo na mesa; depois sentaram-se um de cada lado.
A cada garfada olhavam um para o outro. Ele queria
contar-lhe tudo mas aquele nó na garganta não o deixava
falar. A chuva continuava a cair e os pingos, cada vez mais
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fortes, depressa encheram os tachos. Francisca foi vazá-los
ao postigo.
Comeu pouco. A mulher ainda disse: «Come mais» e ele
respondeu: «Não posso». Levantou-se e foi buscar um naco
de carne e metade dum pão de centeio. Partiu o pão em dois
e fez o mesmo ao bocado da carne. Pôs tudo em cima da
mesa e empurrou uma parte para o lado dele.
- Dá-me a minha faca.
Cortou a carne e o pão em bocados pequenos e comeu
devagar. Por fim levantou-se e foi ver, ao postigo, como
estava a noite. Nada viu a não ser as cordas grossas de água
que caíam das telas. A ribeira, pelo barulho, parecia levar
tudo à frente. Desceria ao fundo do vale se não fosse a escuridão e pensou: «Com certeza que a represa se vai despedaçar». A um estalido seco, tremeu. Eram, decerto, os toros do
açude que se tinham partido.
Voltou outra vez para a lareira e olhou as traves de casa:
uma estava podre. Tinha avisado duas vezes o patrão de que
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o telhado podia cair, mas ele não fez caso. Se ali dormisse
talvez andasse mais depressa.
Era preciso dar comida à vaca. Levantou-se outra vez, pôs
uma saca à cabeça e saiu para a rua. A mulher, desesperada,
gritou:
- Fecha a porta depressa, senão vai tudo pelos ares.
Alcançou o alpendre, acendeu a candeia e tirou do alto
uma braçada de feno.
Sorriu. Dava gosto ver comer a vaca. Passou-lhe a mão
pelo lombo e apalpou-lhe a barriga. Faltavam dois meses. Era
bom que fosse uma fêmea. Tem mais procura pelo leite e por
causa das crias. Vendê-la-ia depois. Fez contas. Uma bátega
mais forte fez com que esquecesse as contas. «A levada... Se
os toros não aguentassem...» Não tinha muitas esperanças,
aquela maldita enxurrada levaria tudo.
Arrancou mais uma mancheia de feno e pôs os olhos novamente na vaca. Depois deu-lhe uma palmada no dorso e
disse com doçura:
- Come, Laranja – chamava-lhe assim por causa da cor.
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Apagou a candeia e voltou para casa. A mulher, sentada
num banco, cosia uma camisa e ele foi tirar o morrão da
torcida do candeeiro com um pau de fósforo.
- Este azeite não presta. O Manuel da loja é um grande
ladrão.
Francisca fez-lhe sentir que precisava outra camisa. Desviou a resposta praguejando, entre dentes:
- Não pára, esta chuva danada.
Fincou os cotovelos nos joelhos e voltou a cara para o
lado donde vinha o calor das brasa.
O vento entrava pelas telhas, nas paredes brilhava o risco
da humidade e o fumo enchia toda a casa. Tossiam de vez em
quando.
Passado pouco tempo, já ele dormitava.
Acordou sobressaltado, de ouvido à escuta. O temporal
continuava. Francisca deixou de coser e começou a dormitar
também. A chuva caía cada vez com mais força. Tirou a onça
e enrolou um cigarro para espantar o sono. Ia pensando
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naquele vale maldito, todos os invernos o credo na boca por
causa das cheias. Procuraria outro rumo...
Cochilou novamente.
Era manhã alta quando a mulher o sacudiu gritando:
- Levanta-te, deixou de chover.
Pegaram nas enxadas e desceram os combros com ânsia
no peito. O caminho era estreito e escorregavam na lama.
Ficaram mudos, durante algum tempo, a contemplar os
estragos.
- Só levantou um toro dos mais grossos...
Continuaram a descer...
As batatas estavam num lago de água, todas revolvidas. E
tinham-se salvo porque na frente do canteiro havia um
monte enorme de pedras. A água tapava-as. Era necessário
cavar um rego para escoar todo aquele mar.
Olhou a mulher e disse.
- Vamos...
As enxadas caíram na terra molhada e cortaram sem esforço. Nem deram pelo perigo de nova chuvada, trazido por
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uma nuvem que correra do poente. Nenhuma fadiga: só força
e resolução. A água, negra, carregada de terra, corria já, orlada
de uma espuma branca, para o fundo do vale.
Pararam e estiveram algum tempo com os olhos fitos na
enxurrada.
- Escapámos desta. Pode ser que isto até faça bem – gracejou o homem.
Só restava uma lama aguada a tapar as terras e seria preciso fazer outra cava como se se tratasse de nova sementeira.
Era já meio dia quando largaram o trabalho. Subiram devagar. «Não fora tão mau como lhe parecera», pensava António. Não sairia dali, não procuraria outro sítio. Lembrou-se
da vaca e da bezerra que estava para nascer. Vendê-la-ia e
pagaria então a conta da loja. Depois, se o ano não fosse
ruim... Contou à mulher estes pensamentos. Sabia que ela
gostava de ouvi-lo.
Já à porta de casa segurou-lhe a mão.
- Francisca, anda ver a vaca.
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Entraram no alpendre. António, numa carícia, passou a
mão pelo pescoço do animal e disse docemente:
- Eh Laranja!
Calou-se, olhou a mulher e ficaram ambos pensando em
melhores dias.
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SUSPEITA
ISA sabe muito bem que não gosto de tabaco fraco, que
me enjoa o sabor dos cigarros ingleses e hoje, ao tirar as minhas camisas do saco de viagem, encontrou um maço de
Craven. Veio direita a mim e perguntou com um sorriso fechado:
- Dás-me licença? Posso fumar um destes teus cigarros?
- À vontade, Isa.
Chupou o cigarro duas ou três vezes, deitou o fumo para
o ar e olhou-me de soslaio:
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
- Desconheço-te. Há uns tempos para cá que te acho desconcertante. Hoje os cigarros, há dias aquela maldita água de
Colónia de alfazema...
Meti as mãos nas algibeiras e não respondi. Lembrei-me
dum desenho que tinha para acabar e fechei-me na sala de
trabalho. Em vão procurei fazer alguma coisa. Volta e meia o
maço de Craven e o sorriso de Isa bailavam em cima da
prancheta.
Doeu-me a insinuação. Nunca até então duvidara de mim.
Era a primeira vez que entre nós, durante dez anos de luta e
compreensão, surgira uma suspeita. Que me lembre nunca a
deixara sem resposta.
Sou um homem taciturno, azedo mesmo, e Isa fez sempre
o possível por respeitar a minha maneira de ser. A nossa vida
íntima ressente-se disto: um e outro refreamos o instinto.
Viemos há poucos meses para a cidade – a cidade que eu
odeio. Moldou-se-me o temperamento na Serra, a Serra me
embalou; trago sempre nos olhos os horizontes sinuosos da
montanha e nos ouvidos o zumbido do vento. Um ser tem1
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pestuoso... Sou como aqueles cavalos que, quando tomam o
freio, só param diante do abismo. Não há meio de me habituar a estas meias tintas, ao joelho no chão, a esta vida postiça, aos modos estudados dos citadinos.
A Isa tem razão no que insinuou. Desconcertante... Serei
desconcertante para quem me vê a frio.
Se soubesse mentir teria inventado uma história qualquer.
Que comprara uns cigarros numa estação de caminho de
ferro onde não havia outro tabaco. Vexar-me-ia tanto quanto
me custou a suspeita. Mas mentia. O que devia fazer, eu sei o
que devia fazer: contar-lhe tudo, sim. Contar-lhe tudo. Não o
faço já, porque o ciúme é uma coisa medonha. As mulheres,
por mais compreensivas, são de um egoísmo atroz nestas
situações.
Não houve premeditação, juro que não houve. Nem
mesmo tenho tempo para andar na rua atrás de qualquer
rapariga. Sou tímido, estupidamente tímido. Ou trabalho ou
sonho. Não, nunca mais voltarei a entregar serviço meu a
mulheres. Não, não quero. Isa não se esqueceu de que foi a
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
cópia dum relatório que deu origem ao nosso casamento, e
isto vem agravar o que se passou. Sinto-me atordoado, mas
haja o que houver, preciso de contar-lhe.
- Sais depois do almoço?
- Não sei ainda.
- Precisava de comprar umas coisas.
- Mas podes ir sozinha. Não é a primeira vez.
Decerto desejava que a acompanhasse. Arrependi-me da
resposta que lhe dei. Mas não fui capaz de voltar atrás.
Teria sido Isa ou o vento... Ela nunca me atirou com as
portas à cara, nem costuma, interromper-me enquanto trabalho. Faz um vento irritante, violento mesmo. Foi decerto o
vento. Por que viria perguntar-me se saio depois de almoço?
Ver o que eu fazia?
A nossa vida é uma vida nervosa, premente, a vida de todos aqueles que não se habituaram a dobrar a espinha. Mas
isto não quer dizer que me entregue a uma amargura sem
remédio... Não vou ao futebol dar vazão às mil queixas que
tenho para fazer deste mundo absurdo, mas sonho, sonho
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com uma vida melhor onde caibam os meus anseios, os anseios de Isa e de tantos, como nós, que andam a gastar-se
numa luta estéril. E sou capaz de me evadir também.
Falei de evasão. Mas não: eu tinha os pés bem fincados no
chão que pisava. Fui mais instintivo do que das outras vezes e
muito mais humano. Sara contou-me a sua vida e eu
compreendi a sua vida como compreendo a vida de todos os
que sofrem. Pensei: está aqui uma mulher angustiada que
precisa que lhe mostrem o verdadeiro sentido da vida, uma
mulher que vai afogar-se se não lhe acudirem. Preocupou-me.
Podia dizer: «isto não é comigo», mas, dentro de mim, se não
andasse sempre dentro de mim um D. Quixote, encolheria os
ombros como quem diz: «isto não é comigo».
Se nos encontrámos algumas vezes depois do que me
contou foi porque a isso fomos obrigados por questões de
trabalho. Sara sabia da existência de Isa. Servi-me mesmo,
para lhe incutir coragem, do exemplo dela. «Mas eu não me
chamo Isa», respondeu-me uma vez.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Depressa veio o dia em que os nossos encontros nos deram o motivo.
- Esta noite acabo o seu trabalho. Entrego-lho amanhã.
Os olhos de Sara tinham uma expressão distante quando
me disse isto. Depois brilharam, num brilho breve e forte.
Pus-me pensativo. Olhei-a por algum tempo; depois senti
que a situação era embaraçosa. Apertei-lhe a mão e parti
como um lobo acossado.
Cheguei tarde a casa. Isa deu-me o jantar e preleccionou
um pouco sobre os inconvenientes do meu velho hábito de
não ter horas certas para nada. Aquele brilho breve que vi
nos olhos de Sara não me largava. Pegara-se a mim de tal
modo que me obcecava.
Pouco dormi nessa noite.
Entraram pelas persianas do quarto os primeiros indícios
da luz frouxa da manhã quando saltei da cama.
- Onde vais tão cedo?
- Não posso dormir.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Abri a janela e estive algum tempo preso ao movimento
da rua.
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Sara, vestida de cinzento, vinha radiosa naquela manhã.
- Gosta do meu tailleur?
- Gosto.
- Você tinha razão. Nunca julguei que o cinzento me favorecesse tanto. Não queria despedir-me de si sem que me
visse vestida da sua cor predilecta. Uma mania como qualquer outra...
- Obrigado, Sara.
Depois estendeu-me um dossier vermelho.
- Aqui tem. Gostava de fazer uma revisão consigo.
- Mas... Chega atrasada ao escritório.
- Não posso lá ir hoje.
Caminhámos algum tempo lado a lado sem dizer nada um
ao outro. Olhei o rio. Estava calmo. Cinzento, cinzento de
prata como o fato de Sara. Um ferryboat aproximava-se do
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
cais. Sara fitou o barco e apontou as gaivotas que voavam em
volta.
- Quer ir além, ao outro lado? – perguntei.
- Sim.
Sentámo-nos na tolda do barco e Sara chegou-se muito a
mim. Senti que o seu corpo me pedia aquela protecção que
não lhe podia dar. Segurei-lhe uma das mãos e fitámo-nos
nos olhos. E os olhos de Sara estavam magníficos.
Magníficos e alegres. Alegres duma alegria sem sombras.
Pareceu-me uma ave excitada pelo primeiro voo longo.
Falava, falava e os lábios grossos tremiam-lhe da emoção.
- É bom ver as coisas só pelo lado belo...
Fomos até à proa do ferryboat, encostámo-nos aos ferros
da amurada. Sara passou-me o braço em volta do pescoço e
os nossos rostos ficaram colados.
- Não sei explicar as saudades que já tenho. Ouve, gosto
de ti. Lutei, mas não fui capaz de vencer-me...
Disse isto com a voz entrecortada pela emoção.
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
Embebedaram-me as palavras de Sara. Voltava a ser
aquele homem instintivo, tempestuoso que não sabe parar
senão em frente do abismo. E em Sara a tempestade era a
mesma.
Não pensei em Isa, não pensei em quase nada.
Ao jantar pouco comemos. Partimos a caminho do cais e
Sara pediu-me para saber a hora do último barco.
Sentámo-nos na areia. A lua lambia tudo com a sua luz
branda e fria.
- Diz-me que não te esqueces de mim, que não me queres
mal.
- Não. É difícil esquecer...
Encostou a cabeça ao meu ombro e uma lágrima quente
molhou-me a cara. Chorei também. Não tenho vergonha de
dizer que também chorei, nem de afirmar que foi Sara quem
primeiro se recompôs. A luz da lua recortava-lhe o rosto.
Sorria agora embevecida. Abraçou-me e disse dum modo
exaltado:
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O ÚLTIMO ESPECTÁCULO
- Tu choraste também. Que feliz eu sou por teres chorado. Sabe tão bem sentir que alguém chora por nós. Ouve:
nunca tive ninguém que chorasse por mim!
Se dissesse a verdade a Isa, ela não acreditaria. Nunca mais
vi a Sara e não a quero ver. Isto tem-me custado muito mais
do que se possa julgar. Mas não; nunca mais a verei. Talvez
mais tarde, mais a sangue-frio seja capaz de dizer tudo a Isa,
contar-lhe como as coisas se passaram com o ar mais natural
deste mundo.
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