O Último Espectáculo - Manuel do Nascimento
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O Último Espectáculo - Manuel do Nascimento
Manuel do Nascimento O ÚLTIMO ESPECTÁCULO SEGUNDA EDIÇÃO – 2006 Freguesia de Monchique e descendentes do autor O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Capa de Manuel Ribeiro de Pavia 1.ª edição (do autor) – Lisboa, 1955 2.ª edição (da Freguesia de Monchique e descendentes do autor) – Monchique, 2006 Coordenação editorial: Domingos Mealha (Abcedária, Lda., Lisboa) Tiragem: 2 mil exemplares Impressão: Impresse 4, Lda. - Venda Nova, Amadora 2 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO ÍNDICE Nota de Abertura 5 Prefácio 9 DEDICATÓRIA 17 ALGUMAS PALAVRAS 19 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO 23 NADA DE IMPORTÂNCIA 57 O VIZINHO 79 SAPO E LAGARTO 95 RESPEITA A MINHA DOR 103 A FUGA 121 SILÊNCIO ESFARPADO 129 A ESPERANÇA VOLTOU DE MANHÃ 139 SUSPEITA 149 3 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO 4 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Nota de Abertura Esta reedição de O Último Espectáculo é da responsabilidade da Freguesia de Monchique e dos descendentes do escritor, filho e netos, e faz parte duma luta quase solitária, para manter viva a memória de Manuel do Nascimento, antes de mais, na própria terra onde nasceu. Luta quase solitária, dizíamos, porque alguns professores das escolas de Monchique vêm trabalhando com os seus alunos, desde há vários anos, sobre a vida e a obra do escritor. E também porque o Museu do Neo-Realismo nos tem apoiado em iniciativas como a exposição realizada em Monchique, em 2003, sobre o movimento neo-realista em Portugal. Fica aqui a nossa palavra de agradecimento à directora do Museu, Dra. Idalina Mesquita, e ao Júlio Graça, também escritor neorealista e amigo de Manuel do Nascimento, que teve a amabilidade de 5 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO conversar com os alunos da Escola E.B. 2,3 de Monchique, quando visitaram o Museu do Neo-Realismo, no mesmo ano de 2003. As nossas palavras de reconhecimento vão igualmente para a Dra. Ana Paula Almeida, pelo trabalho desenvolvido com os alunos do 9.º ano da Escola E.B. 2, 3, de Monchique, e para o José Rosa Sampaio, incansável na sua actividade de relembrar Manuel do Nascimento, nomeadamente no “Jornal de Monchique”. Queremos, ainda, deixar expressa a nossa homenagem à memória do José do Nascimento Leal Varela que, recentemente, nos deixou, de forma prematura. Ele foi um dos grandes dinamizadores da luta para que não se perca a memória do escritor. Finalmente, para o Professor Luís de Sousa Rebelo1, amigo e companheiro de trabalho e de luta de Manuel do Nascimento, que assina o Prefácio desta reedição, vai o nosso profundo e sentido agradecimento. Registadas as excepções, e manifestado o nosso reconhecimento, importa dizer que somos confrontados com um ambiente geral de 1 Professor do King’s College de Londres, Membro da Academia das Ciências de Lisboa. 6 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO indiferença, quando não de hostilidade aberta, relativamente aos valores da Cultura, que se tornou hábito esconder atrás das “faltas de orçamento” e das “dificuldades económicas”, argumentação sem valia, ou melhor, desculpas esfarrapadas, a deixar de fora tudo o que se pode fazer com meios insignificantes, ou mesmo sem eles. O caso particular de Manuel do Nascimento não foge a este triste, e revoltante, panorama geral. Assim, por que não foi dado o nome do escritor a uma das escolas de Monchique, contrariando uma prática generalizada no nosso país? E por que não há, em Monchique, uma rua “digna” com o nome de Manuel do Nascimento? E as perguntas poderiam continuar. A resposta pode procurar-se na formulação seguinte que, embora redutora, tem fundamento inegável. Manuel do Nascimento, escritor perseguido pelo regime fascista de Salazar e pela sua censura, continuaria hoje “maldito”, votado a um esquecimento militante, porque muitos dos problemas que a sua obra levanta, ou suscita, não têm data, e continuam a ser actuais e a incomodar. Na verdade, os escritos de Manuel do Nascimento são gritos contra o mundo de injustiças em que vivemos, apesar de Abril. 7 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Relembrar, hoje, Manuel do Nascimento, significa, antes de tudo, continuarmos a luta, que foi a sua, por melhores dias para o nosso país e para o Mundo. É neste contexto que gostaríamos que fosse entendido o nosso contributo para a divulgação da obra do escritor. Neste sentido, importa, contudo, fazer mais, removendo obstáculos e conquistando apoios, com vista a concretizar ideias como a de transformar, pelo menos em parte, a casa de Monchique, onde viveu e trabalhou o escritor, em Casa-Museu, a de inventariar a sua obra jornalística, enfim, reeditar mais livros. Sem perder de vista estes objectivos, e outros sonhos, reeditamos O Último Espectáculo com a consciência de prestar ao seu autor, neste momento, a homenagem possível. Monchique, Dezembro de 2006 Freguesia de Monchique Descendentes (filho e netos) do autor 8 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Prefácio O correr do tempo e uma percepção mais rigorosa do discurso narrativo, que esse mesmo distanciamento implica, têm ajudado a clarificar o lugar que Manuel do Nascimento ocupa na literatura portuguesa como ficcionista. A sua experiência pessoal é a matéria-prima, a greda da sua arte. Nascido em Monchique em 27 de Dezembro de 1912, fez os seus estudos numa escola técnica, cedo ingressando no mundo do trabalho. Mundo que conhece no meio dos mineiros, com as suas duras condições de vida, e o leva a exprimir um desejo de justiça social que será uma nota constante em toda a sua obra. Com a saúde abalada, é obrigado a deixar o emprego e volta a casa para recuperar as forças. É durante este período de recolhimento que Manuel do Nascimento se entrega às suas primeiras tentativas literárias. 9 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO O clima em que elas vêm a lume é o menos favorável ao seu aparecimento. Vigorava o regime salazarista, que impusera uma censura eficaz e receava tanto as ideias quanto a oposição organizada pela vontade de cidadania. O que animava Manuel do Nascimento a escrever era o desejo de representar o mundo tal qual ele era, nas suas asperezas e contradições, nas suas violências e nos seus raros vislumbres de doçura. O seu objectivo inicial não era ocupar-se de questões ideológicas na ficção; elas vieram por acréscimo, por alargamento dos próprios horizontes e por arrasto na órbita do debate em torno do neo-realismo. A situação política, as perseguições de que foi vítima, emprestavam uma densidade humana singular ao discurso e uma veemência que vinha das entranhas. Pondo o problema nos termos de linguagem crítica literária dos nossos dias, Manuel do Nascimento procurava atingir o grau zero na sua escrita, não com o esforço de ter de deslindar complexos códigos de narrativa, mas a partir do imediato, do facto ou evento nu e cru. Esta atitude foi tomada como a negação do estético. E, se a encontramos na obra dos neo-realistas, nomeadamente na primeira fase do movimento, em Manuel do Nascimento ela afirma-se espontaneamente e sintoniza-se com esse discurso por coincidência. A sua narrativa tem, assim, um 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO ritmo cinemático, rápido e incisivo, que a distingue entre os neo-realistas e que, embora se encontre igualmente entre estes, não atinge a concisão e a nitidez do romancista. N’O Último Espectáculo (1955), que muito oportunamente volta a ser publicado, há essa qualidade de narrar com simplicidade estados emocionais e situações psicológicas, intuídos num gesto, numa forma de comportamento, num olhar. Esta postura perante o objecto que descreve constitui um modo tácito de contrapor às narrativas bem informadas, ricas de incidências, o estilo seco do texto minimalista, como chamamento ao que é o essencial na escrita. Com frequência se recorre ao circo como metáfora da vida (o teatro do mundo da tradição barroca) para sugerir o que de absurdo há na existência e até o grotesco do mundo como expressão da arte que tira da miséria e da exclusão social a substância da sua escrita. Fellini compreendeu-o nas suas películas cinematográficas, dando-lhe o sentido da efemeridade que se aceita com um sorriso dorido. Manuel do Nascimento não hesita em suprimir o brilho do espectáculo vulgar com o seu falso encantamento. Mas, ao fazê-lo, ciente de que dá as pobres cores de uma exibição degradada, nem por isso espera re1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO produzir no seu discurso o objecto focado. Dele representa, isso sim, a memória que dele tem, ou tinha, porque é uma verdade estética assumida que nunca se reproduz com absoluta precisão aquilo que vê o nosso olhar, sendo necessário o artifício narrativo para que o objecto esteja presente no texto na sua possível totalidade. Há uma estratégia de comunicação que salva a narrativa de ser um mero relato anedótico. Aspecto este visível na escrita de Manuel do Nascimento, que tinha como meio eficaz restringir-se ao mínimo essencial, deixando ao leitor a liberdade de preencher os vazios do texto. Daí que a sua obra romanesca aparente uma falsa simplicidade e seja transparente, límpida nas intenções e explícita no protesto. As suas personagens, defraudadas pela vida, acalcanhadas pela situação social, mantêm a pureza do sentimento que lhes confere a dignidade. Sem tergiversações ou fraquezas, elas enfrentam as vicissitudes da vida, convictas da mudança que há-de transformar o seu destino. Fino na análise dos sentimentos femininos, que se revelam no romance Eu Queria Viver (1943, reeditado em 1958), Manuel do Nascimento rompe caminho para um género de ficção que se imporá nos nossos dias. Irene Lisboa é 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO outra escritora que pressente o futuro da mulher como figura e criadora de ficção no plano nacional. Manuel do Nascimento tinha uma larga compreensão das dores da Humanidade, sabia do sofrimento do homem e da mulher, entendia as diferentes sensibilidades e tudo quanto conhecia da vida punha na sua obra. O seu carácter, as suas ideias reflectem-se nela como num espelho. O narrador que está por detrás do que conta tem as qualidades que são as do homem que escreve. Um homem discreto, modesto, avisado, que se insurge, indignado, contra a injustiça social e a injustiça sob todas as suas formas, dando voz aos humildes e aos oprimidos. Espírito livre, Manuel do Nascimento bateu-se pela liberdade, lutou pela democracia durante o período do regime salazarista. Figura destacada do neo-realismo, na fase inicial contribuiu para a sua definição como movimento literário. Escritor, ficcionista, jornalista, editor e organizador de edições, exerceu todas estas funções com igual distinção. Não exibia os seus talentos nem falava dos seus escritos, a não ser que fosse instado por quem neles tivesse genuíno interesse. Passou despercebido do grande público. Morreu no anonimato de um comboio inter-urbano no dia 30 de Dezembro de 1966. 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Conheci Manuel do Nascimento nos anos 50 e trabalhei com ele desde então. Lançámos juntos as Obras de Shakespeare, publicação em fascículos mensais sob a chancela da Scarpa Editora. Em 1960 lográmos publicar três volumes. Planeávamos a continuação com um projecto paralelo: uma edição ilustrada das Memórias de Casa- nova. Mas a Censura embargou o plano e liquidou a iniciativa. Vivendo eu em Londres, ia visitá-lo sempre que vinha a Lisboa, não só para tratar de assuntos editoriais como para conversar com o amigo. Era um prazer ouvi-lo. Numa voz cadenciada fazia o ponto da situação sobre o País que era o nosso e onde ele vivia. No decorrer da exposição emergia a sua experiência que explicava comportamentos e atitudes que, sendo insólitos, ele já havia encontrado antes, e não o surpreendiam. Confiava, no entanto, na capacidade que cada ser humano tinha de mudar, de transformar aquilo a que vulgarmente se chama o destino; confiava na capacidade de dar realidade ao sonho, à utopia. Para que isto fosse possível era necessária a solidariedade, dizia-me ele, a vontade que unisse outras vontades num mesmo desejo. Manuel do Nascimento não viu o 25 de Abril e se reparasse no mundo, que é agora o nosso, se o contemplasse à luz dos seus valores, 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO reiteradamente desenvolvidos na sua obra, decerto sentiria a indignação que sempre o sustentou. Indignação e raiva ante o espectáculo da brutal desumanização de uma sociedade, que parece anestesiada. Sociedade que definha no espanto das suas carências éticas. Por tudo isto chegou a hora de reler a ficção de Manuel do Nascimento. Ele é uma das vozes mais veementes do humanismo literário do século XX, indiferente às seduções que não lhe permitissem exprimir a dor de viver com a imediata crueza do sofrimento. Outubro de 2004 Luís de Sousa Rebelo 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO A Mário Monteiro Pereira, Domingos Monteiro, Patrícia Joyce e Manuel Ribeiro de Pavia. 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO ALGUMAS PALAVRAS Estas histórias de «O Último Espectáculo», arrancadas aqui e além, no calcorrear da terra portuguesa que tem sido a minha vida, não saíram trajadas à maneira do local onde aconteceram. Não falo em campos de neve, em planícies alentejanas, em latadas do Minho, em águas azuis da costa algarvia. Sofrendo como homem e com a vida dos homens preocupado, esqueço sempre o que me rodeia. Posso falar de um monte, de uma árvore, dum bocado de terra crestado pelo sol, mas quando a coisa sai parece vertida ao contrário. Vejo sempre a paisagem como reflexo de sentimentos. Se pinto a tristeza das pedras, se esqueço o verde gritante dos campos e se às vezes um raio de sol ilumina o mundo dos meus heróis, tento logo afogá-lo no escuro duma nuvem. Isto sem premeditação. É a própria vida, que anda a apagar o brilho dos melhores sonhos, nos olhos da esperança. M. N. 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO 2 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO O ÚLTIMO ESPECTÁCULO FOI em Outubro na feira da vila. Na véspera chegaram os homens e as mulheres que vinham das outras feiras. Procuraram o empregado da Câmara para que lhes indicasse os talhões que lhes pertenciam, descarregaram à pressa os baús, as caixas de bugigangas, os toldos e os paus que iriam sustentar o pano das barracas. Homens e mulheres, rostos brancos e morenos, tipos de muitas raças e irmãos na angústia, vestidos o mais sumariamente possível, faziam buracos no chão dum largo que tinha por fundo dois chorões enor- 2 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO mes. Escoravam paus e pregavam depois, a uni-los, travessas de madeira aparelhada. O largo era pequeno para tanta desgraça, para tanta ânsia e tanta miséria apesar dos seus duzentos metros de comprido por cento e cinquenta de largo. As mulheres acotovelavam-se, os homens discutiam e todos procuravam galgar os traços de cal, roubando ao vizinho um bocado de chão. Os carros paravam à entrada do largo e as mulas, magras e esfomeadas, tremiam. A custo aguentavam, perdido o movimento, o peso da carga. Algumas tinham chagas vermelhas no pescoço e nas pernas e as moscas juntavam-se a sugar-lhes o sangue. Sacudiam-se impacientes. Por fim lá seguia um carro e os outros rodavam um pouco mais para a frente. Fechava a caravana uma camioneta cheia de tábuas pintadas de cores vivas. Numa jaula vermelha traziam um macaco e noutra, um pouco maior, dois cães, que, fartos da prisão, ganiam constantemente. No alto da cabina, posta propositadamente a servir de reclamo, prenderam um bocado de folha zincada, em forma de meia lua, onde foram desenhadas estas 2 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO duas palavras: «Circo Monumental». As letras eram grandes, amarelas e mal desenhadas e saíam gritando dum fundo azulcobalto. O motorista tocava de vez em quando o claxon, na esperança de que os carros andassem mais depressa. Consultou o relógio, mostrou-se impaciente, disse que tinha um serviço marcado e que, se se demorasse, não chegaria a tempo. Disse ainda ao dono da carga que o preço ajustado não admitia esperas e acabou informando que lhe dava vontade de despejar o carro ali mesmo, no meio da estrada. O dono daquelas tábuas, daquele letreiro pintado e das duas jaulas era um velho, chamava-se Calvani e respondeu que ninguém lhe falara em condições ao ajustar o frete. O velho desceu da cabina e o motorista olhou, de soslaio, as pernas da rapariga que ia do lado da porta. As saias tinham subido com o balanço do carro, deixando à mostra um bocado das coxas. Voltou a olhar disfarçadamente e deixou de carregar no botão do claxon. Entre duas olhadelas vivia a esperança de que a saia subisse ainda mais. Ela percebeu e nem sequer tentou tapar as coxas volumosas. Sentia-se bem a 2 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO ser olhada assim, furtivamente. O homen era novo, musculoso e miss Betty sonhava com um homem assim, um homem que a levasse daquela companhia de palhaços, que a roubasse àquela miséria. Calvani procurou o empregado da Câmara. Queria saber da sua marcação. - O circo não pode ficar no largo. - Entonces, onde ficamos? - Lá cima – e apontou com o braço direito estendido. – Fica ao pé das barracas de tiro. O largo é pequeno – voltou a apontar. – É na clareira à esquerda. - Siempre quero ver para onde nos mandam. Um rapaz loiro, com a cara salpicada de sardas, aproximou-se. - Vá com este homem mostrar-lhe o lugar. Calvani subia a rampa ao lado do outro. Aquele «vá com este homem» enraiveceu-o. Não era assim que se tratava o dono de um circo. Olhava as portas das tabernas com ânsia. Parou. Não resistiu e perguntou ao rapaz se queria beber 2 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO alguma coisa. O outro encolheu os ombros fingindo que tanto se lhe dava beber como não beber. Entraram numa casa escura. Calvani foi ao balcão e pediu dois copos de aguardente. Saíram e continuaram a subir a rampa. - Estoy a ver que és mui longe. - Não; é já ali. A camioneta dificilmente chegaria ao alto. Resmungou. Apetecia-lhe beber mais. Tinha a garganta seca e a aguardente era boa. - No hay por aqui outra tasca? - Lá cima, no recinto, naquela casa amarela. * O motorista continuava a olhar as pernas da Miss Betty. Os olhos de ambos encontraram-se e o homem fixou-a demoradamente. Miss Betty estendeu o pescoço para fora da janela da cabina. - Que maçada! Nunca mais saímos daqui! 2 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO - É verdade. - Mas por que será que isto não anda? O homem levantou um pouco o corpo e a cabeça foi tocar no pára-brisas. Sentou-se novamente, chegando-se mais para a rapariga. - É por causa dos carros que estão à frente. Miss Betty percebeu a intenção, olhou novamente o motorista e cerrou os olhos languidamente como se sonhasse. Sim, era um homem como aquele que ela desejava. Não para que lhe fugisse. A sua vida fora sempre este ou aquele momento. Estava farta desses momentos, farta de mudar de nome... Chamava-se Miss Betty havia pouco tempo. - Você gosta desta vida? Ela fitou-o como se acordasse e encolheu os ombros. * Calvani ao chegar ao alto da rampa ficou decepcionado. Não, não era aquele o lugar para um circo do valor do seu. Se 2 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO lhe tivessem explicado como as coisas eram, não teria vindo. Esteve resolvido a não armar a barraca. Disse entre dentes que devia haver mais consideração pelos artistas e foi à taberna, que o outro lhe indicara, beber mais um copo para afogar a raiva. Sim, se fosse noutro tempo não trabalharia ali. Antigamente não ia a terras como aquela. Revia o seu antigo circo. A entrada triunfal... O arco de lâmpadas eléctricas... O «placard» de letras luminosas... Comparou-o com a chapa de folha zincada que pregava por cima da porta e esta comparação fê-lo vergar ainda mais. O palanque forrado de tecidos vivos... Viu-se com os fatos antigos onde as lentejoulas cintilavam ferindo a vista aos espectadores. E aquilo foi indo sempre para baixo. Não, não queria pensar. Era preciso fugir às recordações. Na descida da rampa entrou noutra taberna e quando chegou ao largo só estava um carro à frente da camioneta. O motorista continuava a olhar as pernas da Miss Betty, a equilibrista da companhia. 2 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO O carro da frente seguiu e a camioneta, depois de várias manobras, conseguiu voltar, numa curva apertada, em direcção à rampa. As tábuas rasparam numa parede e o homem do volante disse aborrecido: - Raios partam a carga. Calvani seguia a pé. Aquela aguardente sabia-lhe bem. Estava mesmo convencido de que, na vila, não havia nada melhor do que a aguardente. Quase todas as pessoas olhavam para ele. A sua forma de vestir era estranha àquela gente. A boina basca e azul contrastava com a cara vermelha e recosida do álcool e o casaco cor de mel, surrado, As botas altas, avermelhadas brilhantes das muitas camadas de pomada que tinham umas sobre as outras, e o à-vontade dos movimentos faziam-no diferente dos homens da vila. Começaram a descarga. O motorista voltou a afirmar que estava com pressa e os homens que vinham lá no alto, atiraram para um monte, depois de levar com cuidado as jaulas do macaco e dos cães, as peças que iriam compor um circo. Miss Betty ainda fitava o motorista embora se fingisse interessada 2 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO no movimento do largo. Calvani convidou-a de mau humor ao trabalho, entregando-lhe uma escada. Mais tarde, chegaram num carro puxado por uma muar e um burro, o resto das coisas e dos figurantes: Miss Trinidad, magra, de olhos negros, uns olhos encovados e brilhantes de febre, a senhora Calvani, gorda e asmática e duas meninas que eram filhas de Miss Trinidad. O burro que ajudava a puxar a carga chamava-se «Gentleman» e era também artista de circo. As duas meninas saltaram do carro e logo começaram a carregar cadeiras desmontáveis. A mais velha vestia um fato azul desbotado e a mais nova uma saia de pregas e uma camisola vermelha. Depressa o circo ganhou forma. Trabalhavam quatro homens, as mulheres e as duas crianças. Calvani dava ordens, de mãos nas algibeiras. Seu rosto anguloso, coberto pela sombra da boina, mudava constantemente de expressão. Reprovava alguns pormenores do trabalho com gritos, aproximava-se de vez em quando da jaula dos cães, tirava pequenos 2 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO bocados de pão duro, das algibeiras das calças, e dava-os aos animais. Rodeando a bagagem, crianças esfarrapadas olhavam o macaco, cheias de admiração. Calvani aproximou-se dos rapazes e disse que o bicho gostava de amendoins. Passaram os olhos pelos instrumentos luzidios da orquestra e um, dos mais crescidos, chamou a atenção do grupo para um contrabaixo, muito amolgado, que estava em cima de uma caixa pintada de cinzento. Desviaram a atenção do contrabaixo e foram para junto da jaula dos cães. Calvani gritou-lhes que saíssem dali, que estavam a servir de estorvo e ameaçou-os com um chicote. Um dos rapazes chamou-lhe «corno velho» e todos desceram a rampa correndo e pensando no chicote de Calvani. Anoitecia quando içaram o pano de cobertura. O velho berrava. O toldo estava poído e cheio de remendos. A corda rangia de encontro à madeira polida das roldanas. - Fuerza. Cui-da-o. 3 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Miss Betty descascava batatas sentada num caixote. Sonhava ainda com os olhos insistentes do motorista e teve pena de o deixar partir. Estava farta daquela vida. Farta dos passeios que dava no arame, com uma sombrinha, amarelo laranja, na mão direita; farta das palmas, de quem lhe olhava as pernas, e farta da fome. E se ele lhe dissesse que fosse, talvez a vida mudasse... - Vá, niña, despacha-te. As batatas são para o jantar. Acordou. Teve vontade de atirar a água da bacia à cara da senhora Calvani. Odiava todos os donos de circo. Só sabiam explorar a desgraça dos outros. Primeiro vinham as promessas de bons ordenados. Depois... o circo não se enchia umas vezes porque as feiras eram fracas, outras porque chovia. Por fim acabavam dizendo que mantinham os contratos por favor porque o número não agradava. Odiava, mais que os outros, Calvani, porque andava sempre bêbado. Passaram o resto da tarde a preparar as coisas para a sessão do dia seguinte. Calvani, no alto de um escadote, esteve quase meia hora a pregar o disco de folha zincada com o 3 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO nome do circo. Tremiam-lhe as mãos constantemente. Desceu para ver se a chapa estava direita e subiu outra vez. Arrancou quase todos os pregos e rodou o letreiro mais para a esquerda. Os outros homens pregavam o toldo. Um rapaz loiro deixou o martelo. Calvani chamou-o. Recebeu ordens, foi buscar um pincel, um frasco de tinta e uma folha de cartolina. Escrevia custosamente, copiando letra a letra, um programa que tinha em frente dos olhos. Calvani insultou-o porque as letras não iam certas e disse que as avivasse com uns traços vermelhos para que se vissem melhor. Jantaram dentro da barraca, no meio da pista, à luz dum candeeiro de petróleo. Puseram três tábuas em cima de dois caixotes e sentaram-se à volta daquela mesa improvisada. As duas meninas comeram num tacho porque os pratos não chegavam para todos. A carne e as batatas ficavam no fundo dos pratos tapadas por um caldo ralo, gomoso. Miss Betty vestiu-se e foi dar uma volta pela vila. Faziam parte do programa, estes passeios de Miss Betty, nos dias de 3 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO chegada a qualquer povoação. Corria os estabelecimentos com os lábios muito vermelhos, as pálpebras enegrecidas a carvão e as saias demasiadamente curtas para realçar a grossura das pernas. Sorria aos caixeiros, comprava aqui meia dúzia de alfinetes, além procurava um botão igual na cor a uma amostra de fazenda que trazia na mala de mão. Os caixeiros mais novos cosiam no íntimo um amor que era feito de sonho, os mais velhos iam, nas suas esperanças, um pouco mais longe e os homens de dinheiros eram mais práticos nos seus pensamentos. Miss Betty sorria a todos, tinha olhares sedutores para todos e a sua passagem punha terras inteiras em sonhos, projectos e certezas. Sim, tudo aquilo a aborrecia mas Calvani exigia das mulheres mais bonitas da companhia aquelas voltas; sabia-as mais eficientes que todos os reclamos por mais bem feitos que fossem. * 3 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Na primeira noite de espectáculo Calvani andava dum lado para o outro. Miss Betty recebia os bilhetes, à porta, e os outros artistas davam os últimos retoques na caracterização e nos fatos de trabalho. Calvani vestia uma casaca que em tempos fora preta. Estava quase verde e marcada de riscas lustrosas, nos sítios das costuras. - Está na hora. Está na hora... Estes gritos dos homens eram acompanhados pelo bater dos pés nos degraus da geral. Os espectadores iam entrando lentamente e a sessão, marcada para as vinte e uma horas, só começou depois das vinte e duas. - Está na hora, está na hora... Calvani recebia friamente estes protestos. Só se tinha enchido um quarto de sala. Isto é que lhe amargava. Meio desiludido deu ordem aos músicos para abrirem a sessão. Ainda teve esperanças. Eram estas as esperanças de todos os dias, as ocasiões em que sentia mais vontade de beber aguardente. A hora do seu número aproximava-se. Voltou as costas à sala e dirigiu-se a uma porta que ficava em frente de um es3 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO pelho quadrado. Custava-lhe pegar nos lápis da caracterização. Esteve algum tempo a olhar-se ao espelho, fitando as rugas do rosto. Sentia-se velho e sem forças. Olhou os lápis e pegou no preto. Fez o primeiro traço numa sobrancelha, enraiveceu-se e atirou o lápis para cima da mesa. Esquecerase de pintar a cara de branco. Esfregou a pasta de alvaiade no rosto e pegou novamente no lápis. A cada traço, o rosto de Calvani ganhava um aspecto angustiado. Olhou a garrafa. Parecia acariciá-la. Pairou-lhe nos olhos uma onda de luz. Vestiu umas calças largas e amarelas, calçou umas botas enormes, enfiou os braços nas mangas dum casaco largo e ridículo que lhe chegava aos joelhos e passeou impaciente pela barraca. Parou em frente da cortina e espreitou outra vez. Os mesmos três quartos de casa continuavam vazios. Encostou-se a um dos paus que seguravam o telhado. Não poderia pagar, no dia seguinte, o que devia aos artistas. O dinheiro dos bilhetes vendidos mal chegava para a comida. 3 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Um dos barristas entrou e fitou-o com um olhar cheio de provocação. Calvani não foi capaz de resistir àquele olhar e baixou a cabeça. - Preciso de dinheiro. - Mañana – repondeu Calvani secamente. - Se não me paga esta noite não vou trabalhar. Calvani aproximou-se da mesa. - É na bebida que você gasta o dinheiro e depois diz que não pode pagar. - Mete-te en tu vida. - Quero é o dinheiro. Lá fora o jazz tocava uma música que pretendia ser alegre. Seguia-se o número «Vasco e Magalhães». Ainda pensou em dizer-lhe que se fosse embora, que não lhe fazia falta, mas o número das barras era o melhor da companhia. Resistiu à vontade de despedi-lo. Se fosse mais novo bastaria um par de socos para fazer Vasco mudar de opinião. - Só posso pagar-te metade esta noche. Vasco, de mãos nas algibeiras, olhava Calvani. 3 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO - Pago-te o resto mañana. - Bem, dê cá o dinheiro. - Faltam vinte escudos. Calvani fez-se vermelho, empertigou-se e segurou a garrafa. - Ladrão és tu. Se não fora... O outro pegou num bocado de ferro que encontrou à mão e continuou a fitar o velho. Calvani deixou de ver e a garrafa voou-lhe das mãos. Vasco agachou-se, a garrafa passou-lhe por cima da cabeça e desfez-se em cacos ao bater nas pedras do chão. Num salto ficou junto do velho e apertou-lhe os pulsos. - Põe aqui o dinheiro, ladrão! - Larga-me, assassino. Abriu-se a cortina e Vasco deixou o velho. Calvani tirou mais vinte escudos do bolso e estendeu-lhos. O número dos barristas começou. Espreitava. Via Vasco lá no alto e sentiu inveja dos seus vinte e dois anos. Um dos 3 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO cabos de arame que segurava o trapézio poderia partir-se. Era morte certa. Só assim lhe pagaria o que tinha feito... * Não conseguia dormir. Dava voltas no pouco espaço da enxerga que não era ocupado pelo corpo volumoso da mulher e via no escuro a cena da discussão com Vasco. Teve um acesso de raiva por se sentir impotente, por não ter respondido como queria à afronta do outro. Levantava-se um vento impertinente que entrava pelos espaços abertos entre as tábuas. Puxou o capote e ajeitou-se melhor. A mulher dormia respirando ruidosamente. Odiou aquele sono solto. Pensou no seu antigo circo com saudades e reviveu amargamente uma vida que já não era a sua. Não, não esperava andar assim, de feira em feira, por terras sem nome. O pai era italiano e ele nascera em Espanha. Começou a trabalhar muito novo. Lembrou a família e aquele álbum onde estava registada a vida artística de todos. Não o abria 3 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO havia muito tempo e quando o fazia crispavam-se-lhe as mãos nos retratos das filhas. A custo vencia a vontade de os rasgar. Foi com elas que a desgraça veio e afirmava para si que não deviam ter nascido. Eram três. Via-as ali mesmo em frente dos olhos. Todas loiras... Eram o sangue da mãe... Sentia-se arrependido por ter escolhido para companheira uma mulher daquelas. Foi em Barcelona... Sim, também odiava a Espanha. Se tivesse o mesmo sangue dos Calvani não deitaria cá para fora mulheres como aquelas. A necessidade de defender o pouco espaço liberto da cama e o azedume que crescia daqueles pensamentos fizeram com que empurrasse a mulher e dissesse uma frase obscena. O arrependimento por ter casado veio-lhe já tarde, na impotência. Não encontrava uma desculpa capaz embora pensasse que ninguém podia nada contra o destino. Primeiro foi a mais nova. Fugiu. Uma como a mãe... Queria que a sustentassem sem trabalhar. Nessa altura moveu todas as forças. Viva ou morta, encontrá-la-ia. Prometeu mesmo muito dinheiro a um homem de confiança para que a fosse 3 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO buscar e despediu-o porque não conseguiu trazer-lha. E foi desde essa altura que tudo começou a andar mal... Mulheres malditas. Era o melhor número da companhia. Revia a leveza e a graça com que ela saltava para cima dos cavalos... E era bonita... Enojou-se de fazer justiça à beleza da filha. Nunca mais a viu. A mulher, que tinha fugido para casar com ele, tomou a defesa de Wanda. Quando lhe disse que Wanda não fazia mais do que fugir àquela vida desgraçada de andar de terra em terra, chicoteou-a. Tiveram de tirar-lha das mãos. Três homens... foram precisos três homens... Lembrou-se outra vez da discussão com o Vasco e mordeu-se de desprezo por si próprio. Tapou a cabeça para não ouvir o vento e procurou dormir. Mas não conseguia. Naquela noite, embora isso lhe custasse, tinha que dar um balanço à vida. Uma rajada de vento mais forte fez estremecer o velho. O vento, minuto a minuto, aumentava de força. Atirava-se contra os panos do circo e parecia querer levar tudo atrás; a barraca lembrava um barco velho batido pela tempestade. 4 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Ouviu um som que lhe pareceu o rasgar dum toldo. Levantou-se, acendeu o candeeiro e gritou pelos outros homens. Correu para fora mas no escuro da noite nada se via. - Levantem-se. Isto vai pelos ares. Dois homens correram a tacto até onde estavam presas as cordas e as mulheres acudiram também. Só se ouviam as pragas do velho e o choro das crianças. A senhora Calvani gemia de espaço a espaço: «ai a nossa desgraça». O pano estava rasgado. Recolheram à barraca mas Calvani não tornou a deitar-se. De manhã foi ver melhor os prejuízos. Um rasgão de mais de seis metros... Não podiam trabalhar ali. Deitou todas as culpas para cima do empregado da Câmara e discutiu com ele. Tinha pago como os outros e queria um lugar onde pudesse continuar os espectáculos mas, por mais argumentos que empregasse, só conseguiu licença para montar o circo no largo depois do último dia da feira. * 4 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Mudaram-se para o largo e riscaram um número ao programa. Calvani adoecera. A custo fez o trajecto a pé. Tossia com força: uma tosse funda, áspera, que lhe saía do peito com um som rachado. O rosto vermelho e queimado do sol tornara-se lívido e os pêlos ralos e brancos da barba, eriçavam-lhe a cara, como se fossem espinhos. Depois a febre começou a tomá-lo e gretaram-se-lhe os lábios. O nariz comprido estava quase translúcido. Delirava. - A minha casaca, depressa. De-pres-sa. Levantou o tronco e estendeu os braços com os pnhos cerrados. - Caballos! Deu um golpe com o braço direito. Parecia-lhe fazer estalar um chicote. Caiu-lhe a cabeça no travesseiro negro e os lábios abriam-se num sorriso. O delírio fazia-o ver ali, naquela enxerga metida dentro duma barraca improvisada, de madeira, onde o vento entrava por dezenas de frestas, toda a opulência antiga. 4 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Chamava os criados e descompunha-os porque não tinham os botões dourados das fardas convenientemente limpos. - Wanda! E Moly, quando se resolvem a entrar en la pista? Corria o circo, saía e aquela fanfarra que tocava no palanque, ouvia-a ali, na ardência da febre. Na sua frente, como um carrocel, giravam no circo cheio e enorme, enfeitado de veludo vermelho, os trapezistas e os cavalos correndo. - Scote, pára – estendeu o braço com a mão em concha como se fosse dar qualquer coisa a um cavalo. – Quero esta noche arreios azules. Ouviram? Que fazes aí especado? Olhou para cima. Parecia admirar o número arriscado de um trapezista. - Gracias, gracias – dizia isto numa voz comovida elevando os braços e apertando as mãos. À senhora Calvani custava a conter a tristeza e a comoção. Puxava-lhe a roupa até ao pescoço mas o velho esbracejava novamente. - Caballos, caballos. 4 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Via as casacas castanhas e as meias brancas dos criados. A orquestra começava a tocar. Fazia com as mãos os gestos de quem dirige uma orquestra. Cansou-se. Arfava ofegante, na cama. Esteve algum tempo a descansar. Voltou de novo ao barulho das feiras, dos carrosséis e dos realejos. - Eddie, tu circo és una bodega. Deu com o punho fechado, com quanta força tinha, na enxerga. - Só tienes pilecas. Caballos, os mios! Tua raça morra toda de fome, maldito. Mio melhor palhaço! Deixem-me... Deixem-me... Deixemme... Mato-o. Bambini! Mato-te vil perro. Se és hombre salta cá fora. Palhaço reles... Foi... foi preciso roubares o dinheiro para teres essa barraca. Una bodega, una bodega. Não, no és um circo. Salta se és hombre. Vasco levantou a cortina que separava a cama do doente do resto da barraca e perguntou à senhora Calvani se precisava alguma coisa. - Talvez fosse melhor chamar um doutor. 4 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Toda a companhia se aquecia em volta dum fogareiro de barro. Falavam em voz baixa. No rosto de toda aquela gente havia um misto de ânsia e endurecimento. Um dos homens disse entre dentes: - Se não me pagam saio depois de amanhã. - Eu também – murmurou miss Betty. - E se o velho morre para aí? - Enterra-se. A secura dos companheiros arrepiou miss Trinidad. - Mas não devemos deixá-los assim... - E o que fazemos aqui sem dinheiro? - Pode ser que a casa se encha amanhã. - A velha não quer que a gente trabalhe com o homem doente. O rapaz loiro olhou as solas dos sapatos: - Não os mando concertar com essas promessas. Miss Betty fez-lhe sinal com o braço. A senhora Calvani aproximava-se. ouviu parte daquela conversa. franziu a testa e disse rispidamente: 4 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO - Mañana daremos espectáculo. * De tarde, percorreram a vila inteira. À frente, um dos homens, no alto dumas andas. As calças largas, vermelhas, bailavam-lhe nas pernas como bandeiras ao vento. Levantava um cone de cartão e gritava lá de dentro: - Espectáculo nunca visto. É comprar bilhetes. Ninguém deve faltar. Depois os três músicos que vinham atrás rompiam numa toada desafinada. Crianças descalças rodeavam os músicos e olhavam o gigante cheias de admiração. Aquela vida parecialhes bela. Pensavam quase todos que seriam palhaços quando fossem homens e pela tarde fora nos dias seguintes, imitariam as vozes dos artistas, procurariam arremedá-los nos exercícios de destreza e força. Aquela reduzida fanfarra de palhaços emprestava à vila um frémito de alegria. Vinham meninas brancas e linfáticas às 4 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO janelas, os homens assomavam às portas das oficinas e nos estabelecimentos os rapazes sonhavam com as pernas de miss Betty. Saíam notas estridentes, gargalhantes, do trombone de varas e a vila enchia-se de eco daquela alegria oferecida pela fome dos artistas do Circo Monumental. Deixavam um ponto, seguiam para outro, com os rapazes atrás como numa procissão. Uma rapariga, debruçada a uma sacada cheia de vasos de flores, cerrou os olhos ao ouvir um tango lembrando-se dum baile ou duma voz qualquer. O homem do cone de cartão voltou a anunciar trabalhos nunca vistos e a rapariga acordou do sonho como se aquela voz rouca tivesse o efeito dum banho escocês. Fechou-se a noite sobre a vila. Calvani estava agitado. Tossia mais. A mulher procurava esconder aos olhos e aos ouvidos do doente, todos os preparativos do espectáculo. Um candeeiro de pressão, colocado no alto dum pau que mais parecia uma forca que um poste de iluminação, especado no meio do largo, as nesgas de luz que saíam das tábuas desunidas e uma lâmpada de pouca intensidade representa4 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO vam ali no escuro, um traço entre a vida e a morte. A luz eléctrica estava racionada a tal ponto que quase não existia. Os homens chegavam como pássaros encadeados. Aproximavam-se da luz do candeeiro e conversavam. Dentro duma das bilheteiras um dos artistas interrompeu a contagem do dinheiro. Olhou com ânsia para fora: queria saber o que se passava na outra. Miss Betty veio ao encontro dos seus desejos e informou-o que as cadeiras se estavam a vender bem. A seguir foi dar a notícia à senhora Calvani que esboçou um sorriso. Recompôs-se e perguntou as horas. Dentro de quarenta minutos começaria o espectáculo. Faltava-lhe coragem... Não, não podia dizer ao marido que tinham resolvido trabalhar nessa noite. Ele nunca lhe perdoaria, mas era impossível manter aquela situação por mais tempo. Não, não tinha coragem... Pediu a todos que não fizessem barulho. Mas a orquestra? O espectáculo não dispensaria a música. O médico dissera que o doente não estava ali bem. Teria sido melhor que o levassem para o hospital mas de lá infor4 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO maram que era impossível, que não havia camas disponíveis. Foi ver o marido. Os ossos do rosto pareciam querer sair-lhe da pele e os olhos, já do fundo das covas das órbitas, quando se abriam, era para fitar sempre o mesmo ponto. Olhava para o telhado como quem duvidasse da sua própria existência e cerrava novamente os olhos dum modo cansado e sofredor. Quando ia a sair, a voz rouca e sofredora do velho chamou-a. Pensou que ele tinha descoberto tudo. Calvani queixou-se. Faltava-lhe o e tinha a garganta cada vez mais seca. Pediu numa súplica que lhe desse aguardente. - O doutor disse que não podes beber. - Tiengo sede. Una pinga. Fitou-o. Assim não ouviria nada. Este pensamento mordeu-a de remorsos e não foi capaz de vencê-lo. Foi buscar a garrafa e pô-la sobre o caixote que servia de mesa de cabeceira. - Está aqui. Levantou a cortina e fugiu como que alucinada. 4 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Calvani fitou a garrafa. Depois apoiou uma das mãos na enxerga e levantou o corpo num esforço violento. Caiu na cama sem lhe ter chegado e teve um acesso de raiva. Levantou-se novamente e bebeu com sofreguidão. Lá fora os espectadores protestavam. Passava da hora marcada. A senhora Calvani foi ter com os músicos e disse, numa voz baixa que mal se percebia, que era necessário começar. Parecia ter medo de se ouvir a si própria. Os músicos improvisados sentaram-se e tocaram uma canção alegre. Para Calvani as notas da música tinham o sabor de uma toada longínqua. Sorriu num sorriso imbecil. Quis ainda levantar o corpo para beber mais mas não conseguiu. Às vezes uma dor aguda, como se no peito lhe espetassem navalhas, fazia mudar aquele sorriso num esgar de sofrimento. Apetecia-lhe gritar, gritar sem saber porquê. Tudo era vago para ele, tão vago que não chegava a individualizar-se. Parecia-lhe que o arrastavam para longe, que ia embalado por 5 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO uma canção que não compreendia. Tossiu. A tosse deixava-o sem forças. Um suor frio inundou-lhe a testa. Vasco, embrulhado num roupão esverdeado, entrou na pista e foi apertar um a um os arames que seguravam as barras. A fanfarra tocou novamente para anunciar a entrada e o número começou. Vasco subiu a escada de corda mostrando os músculos volumosos dos braços e Magalhães apareceu em trajo de palhaço; tentou imitá-lo e caiu desastradamente. Os espectadores riem às gargalhadas. Vasco começa a rodar na barra fixa como se fosse o volante dum motor. Congestiona-se-lhe o rosto. Todos os instrumentos param de tocar menos o tambor que faz lembrar um batuque. - Basta, basta. Vasco continua a rodar. Não ouve nada. Perde a velocidade gradualmente, salta, abre os braços e o público bate palmas vibrando de entusiasmo. Magalhães vai repetir o trabalho e volta a cair. Vasco volta para cima, segura-se à barra, morde uma tira de coiro e atira o corpo para baixo. Fica preso pelas curvas das pernas. Magalhães suspende-se noutra 5 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO barra segura pela tira de coiro aos dentes de Vasco e faz acrobacia. Os espectadores olham admirados e as mulheres julgam que eles virão estatelar-se no chão. O resto dos figurantes espera a um canto a sua vez de entrar. Ninguém se sente à vontade. Passada a primeira reacção todos têm pena do velho. Vasco e Magalhães deixam a pista e uma das meninas, a mais nova, gira em volta dos espectadores das cadeiras, com uma salva na mão. Ouve-se de espaço a espaço o cair duma moeda na salva, e da geral, atiram dinheiro em cobre, que cai no tapete da pista, um tapete rectangular, partido em quatro partes pelas marcas das dobras. A criança põe um joelho no chão e agradece baixando a cabeça. Chega a vez de miss Betty. Traz vestido um maillot curto e vermelho. Os homens olham-na, aplaudem-na e as mulheres, movidas pelo instinto de defesa, não aprovam as palmas dos homens. Corre o arame esticado com leveza e a sombrinha amarelo laranja anda de um lado para o outro. Do chão, um 5 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO homem que veste o fato de Calvani faz os mesmos movimentos fingindo procurar o equilíbrio com o auxílio dum chapéu de chuva que só tem varetas. O corpo de miss Betty treme e é alvo de olhares cheios de excitação. O palhaço atira para longe o chapéu de chuva. Vai buscar um lenço de seda vermelho e pendura-o no arame. Cala-se a fanfarra. - A-ten-cion. Miss Betty deixa escorregar lentamente a perna esquerda para trás fazendo deslizar o pé no arame polido. Abre as mãos e os braços tremem-lhe. Vai descaindo a cabeça e o corpo de vagar. Custa-lhe chegar à altura do arame. Num movimento rápido segura o lenço com os dentes e levanta com esforço o corpo. A fanfarra toca. Miss Betty salta para o chão e as palmas chovem. - Bravo. - Bis, bis. Gentleman faz habilidades. Indica com as patas dianteiras os números gritados por um pseudo-professor. Depois um homem, de dentro do alto falante de papelão, anuncia: 5 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO - Madame Calvani e Nina Trinidad. Custa-lhe entrar na pista. Não sabe mesmo se o deva fazer. Hesita. Dá as mãos às duas meninas e lá vai como que arrastada, tão constrangida como se fosse a primeira vez. Nina Trinidad é contorcionista e a irmã mais nova ajuda o número entregando-lhe arcos, lenços e tamboretes. A senhora Calvani foi mal recebida. É quase um monstro dentro daquelas calças indianas e duma blusa azul de cetim fulgurante. - Fora com a velha! – gritou um dos homens que ainda não conseguira esquecer a presença de miss Betty. - Fora com a velha! – entoaram em coro outras vozes. Madame Calvani pensou que se referiam ao facto de trabalhar com o marido doente e ruborizou-se. Nina começou o número. Estendeu-se no tapete, apoiouse nos pés e na cabeça e foi encolhendo o corpo. Depois segurou os tornozelos com as mãos e ficou assim. Madame Calvani elevou-a nos braços para mostrá-la ao público naquela posição. As costelas de Nina marcavam-se todas na 5 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO pele e os braços e as pernas eram descarnados. Parecia uma aranha. A senhora Calvani largou-a e foi buscar uma mesa. Pôs-lhe um rolo de madeira no tampo e outro em cima. Nina saltou para a mesa e depois para cima da tábua. De pernas abertas procurava equilibrar-se e o rolo oscilava dum lado para o outro. Conseguiu equilibrar-se e foi deitando o corpo para trás, até segurar outra vez os tornozelos. Um palhaço olhava fixamente a criança, de mãos abertas e estendidas para defendê-la duma possível queda. Nina estava roxa e os cabelos caíam-lhe nos olhos. Levantou-se e o palhaço trouxe a irmã mais nova. A senhora Calvani transpirava, embora não tivesse feito nada até ali. A irmã de Nina estava também em cima da tábua e as duas crianças, agarradas uma à outra, para melhor se defenderem da oscilação do rolo, lembravam dois pequenos náufragos à deriva, num mar encapelado. No clarim soou o toque de silêncio. Ia começar o exercício mais arriscado do número «Madame Calvani e Nina Trinidad». 5 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO * Na barraca, Calvani deu uma volta na enxerga. - Perro Maldito! A respiração era leve e fraca. - Caballos, caba – não acabou a palavra. A última sílaba pronunciada era um suspiro. Caiu-lhe a cabeça fora do travesseiro, cerrou os olhos pela última vez, e as mãos, esguias e ossudas, como se fossem garras, cravaramse numa dobra da manta. Nas bancadas da geral, os homens, sonhando com as pernas de miss Betty, gritavam ainda: - Fora com a velha! 5 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO NADA DE IMPORTÂNCIA ENCOSTEI-ME a uma janela. A neve caía lá fora e o chão estava todo branco. Só o perfil da oficina de tratamento do minério era negro e negros também os rolos de fumo que as chaminés deitavam. O fumo fazia parte daquele casarão e no dia em que o monstro enorme não o cuspisse tudo ali estaria acabado. Mandíbulas de trituradores e engrenagens de moinhos criariam ferrugem, e as pás da classificação nunca mais largariam a lisga cinzenta e viscosa. Olhei novamente as chaminés. O fumo saía enrolado, contorcia-se e espalhava-se no ar. «Estão lá dentro a queimar 5 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO homens», disse comigo e esborrachei a cara contra o vidro. Procurava prender-me a qualquer coisa que não fosse aquele monte esburacado que era a única paisagem da nossa vida e perguntei a mim mesmo o que faria o Lemos. Dez horas... Devia dormir. Dizia numa carta que a vida do sanatório era rigorosa. Não tanto como a da mina, pensei. Aqui outra vez a enterrar-me nisto... O outro chamava-lhe taylorismo sentimental... Estou a vê-lo, com esta sentença à flor dos lábios, soletrada a uma roda de amigos à mesa dum café. Sim, a atmosfera do café é morna, há mulheres bem vestidas que nos ouvem... e homens que gostam de ser ouvidos por mulheres bem vestidas. Mas só ouvidos... depois fogem. - No que está pensando? Julguei melhor não dar resposta a esta pergunta do inglês. Rowe disse ao Brasileiro que trouxesse uma garrafa de «whisky». Aproximou-se com um copo na mão, encheu-o, pôs-mo em frente da cara e disse: «beba». Bebi como um autómato e como um autómato esperei duas vezes que mo 5 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO enchesse de novo. Sorriu, apontou a garrafa e murmurou perfidamente à laia de receita: - Isto é quase sempre remédio. Dei alguns passos e fui para outra janela. Uma lâmpada lá no alto dum poste e os armazéns do material, ao fundo... A mina outra vez... Fechei os olhos, cansado. Não queria olhar mais para além dos vidros. Volteime para Rowe e perguntei com secura: - Você sabe o que é o taylorismo sentimental? O inglês encolheu os ombros. Aproximei-me da mesa. O coração batia-me no peito, às sacadas, e tinha nos ouvidos o zumbido do vento. Mal arrastava os pés. Sentia-me, ao pisar o sobrado, como um homem que espera cair dum momento para o outro. Pensei que poderia enlouquecer e quis gritar como se alguém me apertasse as goelas. Sentei-me. Suava. A garrafa e o copo estavam de novo na minha frente. Bebi mais. Angústia... Isto será angústia? Depois puseram-me cinco cartas na mão e disseram: «vamos jogar». 5 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Joguei. Talvez sorrisse duma forma imbecil. Estava a lembrar muitas coisas que já não eram a mina. Um mulher que viajou comigo quando ia para o Sul... O magazine que comprara na estação da partida... Aqueles lábios grossos... Os cabelos que tocaram os meus... Sim, devia estar congestionado quando os seus cabelos tocaram os meus. A mão dela tremendo... E o homem do taylorismo sentimental? Pequeno... O chapéu enrolado e uns óculos sem aros... Os outros a ouvi-lo como meninos que querem ganhar modos de professor. Atirava as cartas para a mesa mecanicamente. Os outros riam das minhas asneiras. Aquilo aborrecia-me. Os zumbidos, nos ouvidos, eram cada vez mais fortes... Talvez fosse o barulho das máquinas. Via os volantes da central nova, a cabeça da mulher do comboio metida numa das transmissões, e os cabelos fartos caídos sobre o compressor. Cerrei os olhos. Não, a mulher já nada tinha de belo. Causava-me nojo misturada com as peças das máquinas. - Você não está bom. 6 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO - Mer-da. Rowe achou graça à acentuação que dei à palavra e deu uma gargalhada. O sangue subiu-me à cara, mas dominei a vontade de lhe atirar com as cartas e de esbofeteá-lo. Do esforço que fiz me veio a certeza de não estar doido. Apeteceu-me sair. Talvez a neve, o frio da noite, o uivar dos lobos me fizessem bem. Procurei levantar-me mas não consegui. Pesava-me tanto o corpo que não podia com ele. - Vem aí o director. Leva o «whisky» para dentro. - Não. Por que razão é que ele pode beber à minha vista e eu não posso ter aqui a garrafa? Está aqui muito bem e ninguém se atreva a tirar-ma. Pus naquela última frase um sentido de desafio. Gostaria de andar à pancada, naquela noite. Bater, ser esmurrado, rolar pelo chão, cansar os músculos e cair num sono pesado até de manhã. O director entrou e deu as boas noites. Chamou Rowe de parte e disse qualquer coisa que não ouvi. Mesmo que fosse de mim pouco me interessaria. Odiei o director. Ódio de 6 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO classe? Não. Deitar-lhe para cima das costas os males da mina seria absurdo. Eu sirvo e ele serve... Os dentes cerraram-seme. «Tenho-lhe ódio, um ódio instintivo. Pronto, acabou-se». Com quem se parece este homem? O Lemos chamava-lhe cavalo de corridas reformado e dizia que não era má pessoa. Levantei-me com esforço e indiquei-lhe a minha cadeira. - Continue jogando. - Estou farto. Vou até à central. - Espere. Eu vou consigo. - Para quê? Que falta faz lá? Ele ia do lado da ribanceira. Se lhe desse um empurrão era duma vez um inglês. Não, não era capaz de fazê-lo. Não, não era. Fiquei um pouco para trás e emendei mentalmente a frase, ao olhar pelas costas o corpo bojudo e as pernas delgadas de Rowe: «Era duma vez um porco, isto é que está certo». Apressei o passo e fui apanhá-lo junto ao poste da luz eléctrica. Fixei o chão. Nunca passo ali sem olhar o chão. Foi naquelas pedras... Vejo-o na minha frente, os olhos es- 6 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO bugalhados, a boca aberta, os dentes cheios de sangue... E o Lemos, que era o melhor de todos nós. - Rowe! Você não conheceu o Lemos. Era um amigo e ficou aqui... As lágrimas corriam-me pela cara abaixo e a neve, ao pisála, dava-me uma sensação repugnante. Parecia-me carne. E que pisava eu em toda aquela terra maldita? Carne, só carne. «Eu sinto-os debaixo dos pés abrindo as galerias...». - Você tem qualquer coisa esta noite? Eu sei... - Já lhe disse que não tenho nada. Deixe-me. O Freitas deitava óleo no número dois. - Um motor parado. O que houve? - Começou a falhar. Deve ser do óleo. - Óleo deste para um motor novo? Rowe, diga ao director que beba esta murraça. Atirei o capote para cima duma mesa e vesti um macaco. - Ponham-no a trabalhar. Quero ter a certeza. - Não pega, senhor engenheiro. 6 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Cansei-me a limpar peças, a apertar e a desapertar porcas. O Freitas foi para o compressor e veio de lá preto. Fui à secção de tratamento verificar se havia sobrecargas. Só trabalhava um dos «trommers». Voltei. Era preciso tirar a cabeça do bloco. Não, eu não devia estar bom. O chão ia fugirme novamente, debaixo dos pés. Via-me cercado pelas correias de transmissão. As esferas brilhantes dos «trommers» caíam uma a uma a meus pés e a cabeça da mulher do comboio seguia junto das pedras na correia de escolha do minério. Via-a apanhada pelas mandíbulas dos trituradores e depois tornar a aparecer sorridente noutro ponto qualquer. Segurei-me a uma parede e pedi água. Mas não, não desistiria. Sentei-me. Abri uma gaveta, consultei uns gráficos e mandei o Freitas ao depósito ver a qualidade do óleo que chegara de tarde. Rowe conversava com o mestre da oficina perto das células de concentração. Via-os da janela da central. O velho Mota abriu a boca numa gargalhada franca ao ouvir o que o inglês lhe contava. - O óleo é todo do mesmo. 6 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Era escusado. Mas escusado o quê? Agarrei na chave inglesa, apertei-a com quanta força tinha. Aquilo andaria nem que fosse um minuto. - Verificaram as velas? - Verificámos. - A corrente passa? - Sim, senhor engenheiro. - Quantos «trommers» estavam ligados quando o motor parou? - Três. - Um dia isto vai tudo pelo ar. Doutra vez que isso aconteça parem as máquinas e mandem-me chamar. - Eles só querem sacos de minério... Sim; o Freitas sabia tanto como eu o que eles pretendiam, mas a resposta espicaçou-me mais. Cansei-me. Compressores sujos, tudo cheio de resíduos. Um dia inteiro não bastaria para limpar os estragos do óleo. Voltei-me para o mecânico: - Amanhã, desmonta-se o motor. 6 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Fui dar uma volta pelo «povo» não sei se para evitar a passagem do poste onde o Lemos caíra. E não era a primeira vez... A aldeia estava só iluminada do lado que deitava para a mina. Lá dentro, no escuro, confundiam-se as paredes negras com o espaço entre as ruas estreitas. Mesmo às escuras conhecia a aldeia. Parei para acender um cigarro: «Ali é a casa do Pinto; ali gastam os mineiros em vinho o dinheiro que recebem. Em frente a casa do Sebastião». A Janette disse-me uma vez: «não sei como podem viver seis pessoas numa casa daquelas». Andei uns passos e voltei a lembrar-me do Lemos, dum passeio que demos a uma vila próxima. Anoiteceu-nos o caminho. Era também numa noite escura. A certa altura acendi um fósforo e só tive tempo para gritar: - Pare. Olhou para trás. Gritei de novo, com ânsia: - Pare! 6 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO A quatro metros ficava a chaminé da galeria 2. Alguém partira a madeira que servia de guarda. Aproximou-se de mim e murmurou: «obrigado». Até à mina nada mais dissemos. Ia a abrir a porta quando me perguntou: - Quantos metros tem aquela chaminé? - Vinte e três – respondi martelando as sílabas. Meteu um cigarro na boca, olhou-me e sorriu com tristeza. - Era uma sorte... Foi oito dias antes de adoecer. Quando nos despedimos, na estação, bateu-me levemente num ombro. O seu rosto era só mágoa. - Você naquela noite não se devia ter lembrado dos fósforos. O fundo da chaminé seria melhor... Mais um mineiro que morria dentro da mina... Agora esta vida de inválido... Era bem melhor. Apertou-me o ombro com força, percebeu que a Janette o ouvira e sorriu. - Não me olhe assim. Não: eu quero-me curar. 6 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Quis animá-lo, mas faltou-me a coragem. Pensava como ele. Onde iria eu, sozinho, numa noite daquelas, a chapinhar na neve. A chaminé da galeria 2 ficava do outro lado da mina. Sorri sinistramente, mas voltei as costas à aldeia. As sereias gemeram. Um turno deixava a mina e outros mineiros entravam. A draga... Mal deixa cair a terra para se atolar no lodo... Os meus olhos pararam na boca da mina. Tremiam as luzes das lanternas na subida do monte. Uma aqui, outra além. Velas duma procissão de desgraças. Porque me enraivecia aquilo ainda mais? Aproximei-me de casa. A Janette conheceu os meus passos e levantou os olhos do livro. Vi naquele olhar a falta que lhe fazia. Ela veio a correr e passou-me os braços pelo pescoço. Queria beijar-me a boca. Desviei a cara. Perguntou-me «o que tens?» e no seu rosto marcaram-se traços de dor. Eram os seus braços, os seus beijos a melhor fuga ao peso daquela vida. Sofria, e eu sentia prazer naquele sofrimento. Censurei-me. Naquela noite só procurava atritos e respondi-lhe o mesmo que tinha dito a 6 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Rowe: « não tenho nada, deixa-me». O rádio tocava. Senteime. A música arrastava-me na sua toada mole. Não sei nada de música, mas é assim mesmo: quando oiço tocar perco a rigidez, relaxam-se-me os músculos e esvaem-se-me os pensamentos. Agora a música levava-me à cidade, a uma vida mais fácil. E eu ali enterrado daquela aldeia maldita... Mas para que veio a Janette meter-se aqui? Olhei-me. Tinha as mãos sujas e negras do óleo das máquinas. - Não seria melhor afogares essa música de pretos? A Janette desligou o aparelho. - Dói-te a cabeça? - Não, não me dói. Falava com a secura dum cardo. Magoava-a. Sim, magoava-a. - Mas tu tens alguma coisa e não me queres dizer. - Já te disse que não tenho nada. Naquele momento gostaria de chorar e as lágrimas arrasaram-me os olhos. Mas não, não podia ser... Mordi um lábio com força. 6 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO - Está aqui uma carta do Lemos. Peguei na carta e fiquei por algum tempo indeciso. Iria aborrecer-me mais? Rasguei por fim o sobrescrito e a Janette voltou à leitura interrompida. - O que diz ele? - Que não tem esperanças de voltar a ver-nos. - Há-de curar-se, estou convencida disso. Disse isto com a segurança de quem tinha uma certeza. Mas porque falaria assim? Aquela segurança... Era necessário sentir pelo Lemos mais do que... - Porque não abres as cartas dele? Escusavas de mostrar tanta ansiedade. O livro caiu-lhe das mãos, olhou-me fixamente e as lágrimas soltaram-se-lhe. Ouvi, no corredor, os passos da velha Ana. - Senhor engenheiro, está ali o Salvador. O que quer? - Pede que o senhor vá lá fora. 7 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Levantei-me e fui à porta. O vulto dum homem esperavame a distância. - O que há? - Abateu a galeria 5. - Toda? - Não, senhor engenheiro. - Estava lá alguém? - Quatro homens. - E então? - Ficaram lá todos. Aproximei-me de casa e gritei para dentro: - A minha lanterna, de-pres-sa. A Janette veio à porta. - Diz-me o que aconteceu. Beijei-a como se partisse para muito longe e murmurei a custo: - Nada, nada de importância. Não me acreditou. - Senhora Ana, a minha lanterna. 7 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Corri, galguei o monte dos resíduos, comecei a descer e o Salvador avisou: - Corte mais à esquerda. Há aí uma vala aberta. Era preciso chegar. Outros homens corriam também. Toda a aldeia se levantaria ao saber do desabamento. As lanternas, com os movimentos apressados dos homens, pareciam mover-se num mar cheio de vagas. Mineiros discutiam à boca da mina. - O que fazem aqui? Por que esperam? Um do grupo informou: - Partiu-se o escoramento. Era fraco... A rocha deslizou por um veio de barro. Aquele «era fraco», da forma como foi dito, trazia a marca duma insinuação. O rosto dos homens tinha endurecido. - Foi antes ou depois da chaminé? - Parece que foi antes. Não me satisfez a resposta. Tomei fôlego. - Esperam que a mina venha toda abaixo? 7 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Um mineiro mediu-me como se aquilo fosse um insulto e resmungou: - Não querem lá mais gente. - Quem está a dirigir os trabalhos? - É o Silva. Entrei pela mina dentro. Os homens seguiam atrás de mim e as lanternas iluminavam as paredes da galeria. Dos toros de pinho escorria uma humidade viscosa e o ar tinha um bafo de angústia. Chegámos ao poço central e o foco duma lanterna mostrou-nos a entrada de novo túnel. Um número pintado numa tábua vermelha. Cinco. Agora focávamos todos o mesmo ponto e, numa curva, a luz caiu monótona na parede e nos escoramentos. - Eu vou à frente, senhor engenheiro. Conheço melhor o caminho. Com a mão livre arrepanhei-lhe o ombro e puxei-o para trás. Começávamos a ouvir o bater surdo das picaretas. A ansiedade movia-nos. O foco das lanternas foi cair no chão. 7 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO dois blocos de pedra quase nos tapavam o caminho. Encostei-me à parede, atravessei de lado. A sensação da humidade arrepiou-me. A cadência abafada dos passos e o som das ferramentas a entrar na terra voltavam para trás e repetiam-se nos nossos ouvidos. Descemos instintivamente os focos. Ao fundo, num quadrado de luz embaciada, os homens agitavam-se numa ânsia febril. Revolviam o entulho, de tronco nu, tomados de fúria. As pás, mal atiravam a terra, caíam outra vez na massa abatida. O Silva descobriu-se e deu-me as boas noites. «Boas noites»... Como isto era amargo. Falei-lhe entre dentes, olhandoo nos olhos: - Ainda lhe sobra tempo para tirar o chapéu? O escoramento rangeu. Junto de nós, alguns toros de pinho cediam. - Madeira, tragam madeira. Tirem aquelas pedras para dar passagem às vagonetas. Se você se deixasse de cumprimentos e visse o que está a fazer, ganharia mais. 7 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Alguns homens afastaram-se e eu berrei com quanta força tinha: - Telefonem para cima. Que mandem toros para baixo. Sentei-me numa pedra. O Silva fitava angustiado o ponto onde o escoramento dava de si. - Ouviram alguma coisa? - Ouvimos bater. - Dêem sinal. Deixámos de respirar. Sim, todos. Eu posso falar por todos. Respondeu-nos um som que nos dizia que a vida lá dentro estava por um fio. Olhámo-nos e sorrimos. - Quem está do outro lado? - O senhor Rowe. Desceu com alguns homens pela chaminé. Alguém disse cheio duma força estranha: - Mas nós chegaremos primeiro. Ninguém queria largar as ferramentas, cedê-las aos que estavam à espera. Afirmavam que não estavam cansados e os outros mostravam-se impacientes. Tirei a um deles a pá. 7 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Entregou-ma de má vontade e limpou o suor da cara com as costas da mão. Parecia-lhe que não fariam tanto como ele. Era preciso vencer... Mas vencer o quê? Animava os homens, sorria-lhes, dizia-lhes que chegaríamos a tempo, mas... uma dezena de metros não podia ser removida dum momento para o outro. Sentia que aqueles quatro mineiros estavam perdidos mas embebedava-me e sonhava impossíveis. As escoras rangeram novamente e o Silva disse que eu não estava ali bem. - E você está? E estes homens estão? Iríamos cair também? Procurávamos vencer a luta que se travava intimamente. Os carpinteiros vieram. As vagonetas corriam nos rails num grito metálico, a respiração parava-nos, na esperança de novo indício, e os martelos batiam na madeira. Doía-me o peito. Mas esta dor, o bater dos martelos, o chiar das vagonetas, tudo era vago... O pensamento ia para além da terra abatida, fixava-se no ponto donde vinham aquelas pancadas distantes e mortiças como a luz duma candeia prestes a 7 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO extinguir-se: leves traços, leves sinais que mais não eram do que um suspiro, do que um bafo da morte. O director apareceu. O chapéu tapava-lhe os olhos. Soubemos da sua presença pelas saudações do Silva porque só sabíamos olhar para a frente. Voltei-me e perguntei se tinham telefonado para a vila a pedir uma ambulância. Respondeume, sem que os outros homens ouvissem, que não devia ser necessário. - Ao menos que venha o médico da mina, visto que só serve para passar certidões de óbito. - Tenha calma. Estas palavras, ditas com secura, pareceram-me uma ameaça. Peguei na pá e continuei a remover a terra. Os homens não ouviram esta troca de palavras e eu não sairia dali, viesse uma ordem fosse de quem fosse. Vi o relógio. Um quarto de hora. O entulho desaparecia e as vagonetas partiam carregadas. 7 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Um gemido... Não acreditávamos. Sorrimos. Sim, sorrimos todos. Uma voz, embargada pela comoção, rompeu a angústia que nos roía: - Está aqui um braço. Esperámos suspensos a repetição daquele queixume. Um dos toros, partido e atravessado, na nossa frente dificultava o trabalho. Novo gemido. Agora mais forte. O Salvador bateu numa das escoras e fez cair terra. Olhei o chão da galeria e vi uma bota. Segurei-a. Tremia. O corpo estava preso e um dos carpinteiros cortou à machadada as escoras que o prendiam. Alguém se aproximou de mim. Era o médico. Fitou-me como se soubesse o que tinha dito ao director. - É o Jana – disse um homem que ria e chorava ao mesmo tempo. Mais à frente, um contra o outro, entalados nas tábuas, estavam mais dois mineiros. Abraçados como se tivessem medo de enfrentar a morte, sozinhos. Olhei o tecto da galeria. Nada os atingira. - Respiram? 7 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO - Estão vivos. - Carreguem-nos numa vagoneta e levem-nos para fora – ordenou o médico. - Falta ainda um homem. Voltou-nos a ânsia. Faltava um homem... Arrancá-lo-íamos ao resto dos escombros. Vivia uma duplicidade que me atormentava. E os que partiram? Livres de perigo? Não, eu não sabia nada, ninguém o sabia. Perdi o comando de mim mesmo, corri atrás do pensamento e encostei-me ao cabo da pá, a soluçar perdidamente como uma criança. 7 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO 8 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO O VIZINHO CONHECI o «Vizinho» numa quinta situada no último maciço montanhoso do Sul. Amarga-me o desfibrar de pormenores. Alugaram-me a casa e disseram-me: «tenha cuidado com o velho». O dono, ao entregar-me a chave, depois daquele aviso, estranhou certamente que eu nada lhe perguntasse. Pouco me interessava aquela povoação triste, onde nada acontecia, a vida daqueles homens e daquelas mulheres que vinham às portas olhar os desconhecidos que passavam nas ruas. O velho a quem o dono da quinta se referira era o «Vizinho». Foi assim que o meu filho começou a tratá-lo, e eu 8 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO próprio faria grande esforço para lembrar-lhe o nome ou o apelido. Morava junto de nós, num casebre negro, de pedra seca. A parede que fazia frente às nortadas estava encostada à nossa casa. Doutra forma cairia aos bocados. Os buracos da porta e duma pequena janela fechavam-se de manhã quando toda a família partia, para só se abrirem ao anoitecer. Cá fora o suão movia o bafo abrasador do sol e os homens, nas lombas dos cerros, deitavam fogo aos matos. Dias e dias naquele trabalho maldito. O cheiro picante das urzes e da terra queimada punha um amargo nas bocas e arrastava um pigarro desconfortante. Partiam mal a luz da manhã vencia as trevas da noite. O «Vizinho» era o último a sair e ia já cansado. A cara enegrecida, torrada ao calor do braseiro, e o fato esfarrapado juntavam, pelo menos dez anos, aos sessenta que lhe trouxera o último Inverno. Tinha o rosto dum doente de fígado, a boca desdentada, e diziam que gostava muito de beber aguardente. Via-os entrar todas as tardes, dum alpendre que fizemos com ramos de eucaliptos, pelo buraco da porta. Nessa altura 8 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO pensava nos bonecos animados do Walt Disney. Parecia-me ver a casa a inchar, como se tivesse a pele de uma rã. Ainda hoje não consigo conceber como se arrumava tanta gente lá dentro. O sítio tinha tanto de belo como de caricatural. Um pouco da América ali metido e cercado de cerros. As vivendas das quintas lembravam as construções fantásticas dos primeiros tempos da exploração dos petróleos. A uma, quase triangular, que cortava o ar como gume fino dum machado de lenhador, chamaram «Ferro de Engomar» e a outra, bojuda e listrada de vermelho, «O Barril de Vinho». Estes nomes enraiveceram decerto os seus construtores. Arquitectaram palácios, deslumbramento e o povo (oh visão bárbara e deformada das coisas!) transformara e atirara tudo ao poço estúpido e profundo do utilitarismo. Foi a medo que o Vizinho me contou a história daquelas casas: - Arranjaram dinheiro e fizeram aquilo. 8 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO «Aquilo», era bem dito. Um produto monstruoso de infância: a mesma força exibicionista dos meninos que mostram o sexo às senhoras púdicas. Mas aqueles homens só foram infantis nos primeiros momentos. Depois ganharam uma consciência atroz e exigiram da terra e dos braços dos outros um esforço cruel e absorvente. Não, eles não fizeram só «aquilo», afirmei ao olhar o rosto inexpressivo do velho. Minha mulher disse-me uma vez, com tristeza: «Não sei que mal fizemos a esta gente. Olham-nos cheios de desconfiança e até quando se trata do seu próprio interesse custalhes a falar. Há bocado esteve aqui a mulher. Começou por dizer que a vida da terra era amaldiçoada e fez uma porção de rodeios antes de pedir a coisa mais insignificante do mundo: queria que deitássemos as sobras da comida no balde dos porcos». Sim; poucas eram as palavras que lhe arrancávamos. Seguia-os quando iam deitar fogo aos matos. Via-os descer a encosta e fitar as macieiras. Cobriam-se com a copa das árvores e voltaram a aparecer lá no fundo do vale junto do 8 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO leito sinuoso da ribeira. Perdia-os. Nova encosta se erguia. Mais canteiros, mais macieiras e aqui e além, uma mancha verde negra de pequenos laranjais. Próximo duns castanheiros cortados que a Primavera transformara em massas espessas de verdura havia um talhão murado. Eles seguiam o muro e desapareciam, um a um, como se a terra os sorvesse, numa prega saliente da montanha. Os meus olhos voltavam para trás e paravam no portão de acesso à terra murada. Estava partido e mal seguro num único gonzo. Deitado para a frente, parecia um bêbado, procurando o equilíbrio só com uma perna. Era um guarda sinistro , aquele portão. As crianças corriam pelos canteiros, felizes e despreocupadas, e colhiam maçãs mas, mal o transpunham, perdiam a naturalidade. Avançavam a medo, os seus passos eram hesitantes. Arrancavam os frutos com a consciência de que cometiam um roubo. Depois, uma mata de eucaliptos galgava a serra até ao monte mais alto. O velho informara-me apontando aquela mata: 8 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO - Além, um homem matou um primo por causa dumas partilhas. Foi ali, quando ao anoitecer se juntava na eira a família do «Vizinho», que meu filho aprendeu a contar até sete. Sete eram as pessoas que viviam naquele casebre ensombrado. O velho e a mulher, três filhos e duas filhas. Subiam os degraus dos canteiros e de tal forma arrastavam os pés que se diriam de chumbo os sapatos brochados. As roupas que vestiam vinham ensopadas em barro e suor. O «Vizinho» atrasava-se sempre. Impava, segurava os quadris, torcia-se e praguejava em voz baixa e monótona como se rezasse. De canteiro em canteiro fazia uma paragem. Chegava por fim, sentava-se numa pedra e ficava a olhar o chão. Pelos rasgões da camisa mostrava o corpo magro. A mulher chamava-lhe bruto e gritava: - Não há roupa que resista a este homem. Ela sabia que as camisas estavam podres, que não aguentavam os remendos mas tinha de desabafar. E aquela voz arrastava-se como se fosse um eco de revolta. 8 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO - Ah homem malvado... O «Vizinho» parecia não ouvir. Levantava-se e ia dar água à vaca. Sorria ao vê-la beber, mas o sorriso fugia-lhe ao olhar o fio que corria no tanque e o velho crescia em azedume. Lembrava o milho que murchava por causa da seca, as batatas que precisavam do dobro da água que lhes deitava. Era quase sempre o cão que pagava aquele azedume. O animal aproximava-se, lambia-lhe as botas, roçava-lhe a cabeça pelas calças e o velho dava-lhe pontapés no focinho e insultava-o como se fosse gente. Arrependia-se como se as palavras lhe doessem a si próprio, acariciava o pelo lustroso da vaca e murmurava enlevado: - Eh Bonita! Comecei a olhar o «Vizinho» com desconfiança. Foi pelo que me contaram. Ladrão... Diziam que ele roubava e que no escuro da noite nos rondava a porta. Aquele aviso: «tenha cuidado com o velho», justificava-se. O chapéu esburacado, os pêlos ralos e compridos da barba, a calva luzidia, a testa engelhada, os olhos meio cerra8 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO dos à força de tanto enfrentar o sol, o som viscoso e fugidio das falas davam ao pobre homem um aspecto repugnante. Pensava-o rastejando como as cobras, imaginava-o espreitando encruzilhadas e saindo ao caminho a quem se atravesse, noite alta, aos descampados. Observa-o constantemente. Era frágil como um pé de trigo e a custo se aguentava de pé. Na rampa que subia ao estábulo segurava-se ao tronco dos pequenos sobreiros para não cair, e ao escurecer, o rumor dos seus passos, leves e incertos, corria pela eira. Sentíamo-lo a entrar em casa, ouvía-mo-lo fungar como se fosse um bicho do mato. Paravam os passos, paravam as pragas, parava tudo. Outro ruído ganhava a noite silenciosa. Uma colher de folha raspava o fundo duma panela de barro. O «Vizinho» ceava depois de todos terem comido. Meu filho muitas vezes perguntou: - O que é um ladrão, pai? O «Vizinho» é ladrão? Esquivava-me à resposta. - Disse o Florival, pai... 8 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Na cidade adormecíamos embalados pelo som dos «klacsons», pelo chiar gritante dos eléctricos que corriam nos «rails», pelos sinais dos barcos que aportavam ao cais. As noites eram o maior suplício do campo. Não conseguia ler à luz triste e amarelada do candeeiro de petróleo. Deitávamonos cedo. Na quietude dum vale todos os ruídos aumentam de volume. O latir dos cães torna-se mais agudo e repete-se como um eco de insónia. «Cão que dorme de noite não guarda a fazenda», é sentença de caseiro e os animais ladram profissionalmente sem a convicção dum acto natural quando não o fazem temendo a própria sombra como o homem medroso que assobia e canta para não se sentir só. Esquecime do piar das corujas... São ais de mãe olhando um filho morto. Se caíam folhas no telhado minha mulher advertia: - Ouve, lá anda o velho. - Isso é tolice. São folhas... Apontava para cima e olhava os paus que sustinham as telhas. Tinham qualquer coisa das vértebras dum esqueleto, 8 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO dos pequenos barcos em princípio de construção. Ligava o telhado às acácias onde piavam as corujas e aos restos dum pomposo «chalet» que ficava a poucos passos da quinta, um monstro de paredes cobertas de musgo doentio e acastanhado. A madeira das portas apodrecera, e aqueles buracos pareciam os olhos vazados dum cego. Nem um santo que os homens pintaram entre duas janelas resistiu aos efeitos da humidade. O rumor rastejante de pequenos reptis, o estalido seco dos galhos que o vento quebrava ocupavam os pequenos intervalos da noite livres do ladrar dos cães e do piar das corujas. - O «Vizinho» é ladrão, pai? Adormeci muitas vezes pensando naquela pergunta. O velho tornara-se para mim um espécie de obsessão. Desaparecera uma galinha a uma mulher do vale, desapareceram alguns atados de lenha numa eira das Milheiradas. Mas não, não podia ser. Fui ver o monte de lenha. Era impossível. 9 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO O velho não podia com um feixe de estevas daquele tamanho. Tinha uma ideia vaga dos «Nick Carters» e dos «Sherlock Holmes», lidos nos primeiros anos que passei num colégio interno. Ainda mal se falava em literatura para crianças e adolescentes, e o director consentia naquele processo de masturbação. Comecei a martelar o «Vizinho» com perguntas incisivas. Levei-o junto da capoeira roubada e à medida que nos aproximávamos esperava pelo choque. Olhei-o insistentemente e perguntei num tom ríspido: - Quem seria que veio aqui a noite passada? O pobre baixou os olhos tímidos. - Alguém que precisava duma galinha... Andámos algum tempo lado a lado e o velho não levantava os olhos do chão. Sim, o «Vizinho» não levantava os olhos do chão. Nunca, que me lembre, me falou doutra forma. Era um animal frágil e bravio e os contactos com os outros homens sempre lhe foram penosos. Desconfiava de 9 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO tudo e de todos. Devia odiar-me. Eu não mostrava ser um homem cansado, as minhas mãos estavam limpas de calos e nunca me vira um camisa rasgada. Mastigava aquela resposta do velho. «Alguém que precisava duma galinha». Seria um indício? Mas indício de quê? A amargura das suas palavras cortava. Passou a esconder-se de mim. Se me via na eira, para voltar a casa, fazia um longo desvio. Descia os dois primeiros canteiros das macieiras, aparecia depois junto à porta, e esgueirava-se para dentro de casa. * Estávamos em Agosto e fazia luar. Uma noite luminosa e quente. Os ramos das árvores e as folhas não se moviam. As paredes da casa ainda irradiavam o calor do sol. Parecia o amanhecer de um dia radioso e um galo cantou duas vezes, enganado. Minha mulher, que na cidade nunca olhara a lua 9 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO contemplava a encosta dum monte. Segurou numa das minhas mãos como que a prender-me a atenção: - Olha, como tudo se vê! Lá está o portão partido... Os grilos cantavam, a água corria num murmúrio doce. Nem os cães ladravam. As falas dos homens que andavam na rega saíam, ondulantes. Um calor humano ecoando e morrendo no fundo dos córregos... Perto brilhavam os frutos rosados das macieiras. Não me atrevia a fechar os olhos, a deixar o alpendre. Minha mulher, creio que pensando no piar das corujas e nas rajadas de vento que varriam o telhado nos dias de nortada, disse: «Se as noites fossem todas assim, dormiria de dia». A lua era uma companheira forte. Punha doçura no balido das ovelhas, tornava menos sinistro o «chalet» monstruoso. Fiquei só. Ajeitei-me na cadeira de lona e fumei cigarros sem conto. Os olhos presos à magia, ao encanto da noite não se queriam fechar. 9 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO O sono venceu-me mas um ruído surdo, abafado, logo me acordou. Olhei em redor. Os olhos prenderam-se-me à figura dum homem que a lua recortava nitidamente. Deu alguns passos em direcção do alpendre e depois parou. Flexível como uma mola de aço concentrava forças e atenção. Nem um ruído. Mais alguns passos... Aproximava-se do alpendre. Media-o de alto a baixo e ele media o silêncio da noite. Vinha descalço. Um pé mal colocado quase o fez cair. Um reflexo muscular rápido desfez aquele momento de angústia. Inclinou o corpo e estendeu um braço. A lua entrava pelas frestas do alpendre e salpicava de luz a sombra das ramagens. A mão ossuda do homem movia-se e procurava como se tivesse olhos em cada um dos dedos. Ouviu-se um som arrastado que se dilatou. O homem tornou-se rígido. Segurava qualquer coisa, o corpo vergado ao peso que levava. Sentou-se ofegante à porta do casebre. Ouvi mastigar, o mastigar duma pessoa sem dentes. A lua iluminava-lhe o rosto cansado. 9 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO - O balde da comida dos porcos – murmurei – sim, era o balde da comida dos porcos que o «Vizinho» tinha à sua frente. 9 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO 9 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO SAPO E LAGARTO DUAS filas de casas frente a frente beijando o pó da estrada, ruelas contorcidas onde as rodas dos carros marcam sulcos cada vez mais profundos, homens sentados no chão, crianças jogando com bolas de trapo e... mais nada. Só os homens olhando o céu numa súplica, só as mulheres gritando pragas aos filhos que fogem. O resto é silêncio, é a vida parada num quebrar de anseios e de força que chega ao desespero. Ao fundo ronca e sobe a ladeira um carro a motor e as mães gritam pelos filhos, o coração apertado no peito: - Larga a bola maldito! 9 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO O carro passa envolvido numa nuvem de pó espesso e avermelhado, os olhos seguem-no até à curva do alto. Depois volta o silêncio, apenas cortado pelas vozes das crianças. - Chuta... - Passa. Nas ruelas chafurdam os porcos, correm galinhas e os meninos, descalços e quase nus, brincam e lambem as mãos sujas de terra. As casas da curva da estrada lembram um harmónio velho apertado nos joelhos de quem lhe preme as teclas. E parece que gritam de indignação. Todas iguais em tamanho e altura... As portas sempre abertas são bocas escancaradas de pedintes. Os campos criaram uma crosta que os arados não vencem, os ramos das figueiras varrem o chão arrastados pelo vento, e o sol, num ímpeto de senhor, domina, abrasa tudo. - Lá vem ele! – gritou um homem que estava sentado no chão. E o grito diz qualquer coisa que sabe a desforra, lembra uma válvula, um êmbolo gasto a cuspir desgraças. Sobe a 9 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO estrada um pobre, vestido de negro. Usa uma gravata preta sobre o pescoço. Não traz colarinho e o chapéu deformado tapa-lhe metade do rosto. Aproxima-se. Um dos rapazes fica parado, com a bola nos pés, e berra como se estivesse a transmitir um grito de guerra: «Lá vem ele» e estas palavras correm toda a povoação. Está agora a dez passos das primeiras casas da aldeia e a vaia começa. - Sapo e Lagarto, o meu pai matou um porco. O pobre pega na primeira pedra que encontra, corre, e a vaia repete-se como o «tam-tam» dum batuque: - Sapo e Lagarto, o meu pai matou um porco! A primeira pedra parte. Nem força, nem pontaria. Mal afugenta os rapazes que lembram um bando de pardais. Aquelas palavras tomam a força de insulto, da praga mais triste que caiu sobre a terra, e o pobre baba-se de raiva, arrepela os poucos cabelos que ainda lhe restam, deita-se no chão, esperneia e chora. Depois levanta-se enraivecido, corre atrás deste ou daquele mas a presa foge-lhe sempre. As mu9 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO lheres riem às portas e os homens acompanham o coro dos rapazes: - Sapo e lagarto, o meu pai matou um porco! É sempre o homem da gravata preta que acorda do marasmo a gente da aldeia. As vozes são um ulular sinistro e as pragas que deviam atirar ao tempo, à terra e à vida caem todas sobre os ombros fracos do velho e, tão habituadas estão as crianças à sua presença e a esta gritaria que, quando a noite chega e o homem não vem, perguntam com os olhos muito abertos a exprimir tristeza: - Oh mãe, que é do Sapo e Lagarto? A camisa de fora das calças, de tanto esbracejar, Sapo e Lagarto berra: - Um dia mato um! E a aldeia toma então o aspecto sinistro daquelas vozes. Parece revolta por um tempestade. O gargalhar das mulheres lembra um som de vidraça partida, os homens grunhem como feras, e as crianças saltam movidas por molas de aço. * 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO * * Caíram numa manhã de Setembro as primeiras chuvas... mas o Sol depressa as venceu. Os homens partiram para os campos com mulas e arados. Era preciso aproveitar o tempo. A água que entrara na terra chegava para uma boa lavra e os rapazes, de sachos às costas, correram em procura de engodo para as armadilhas. As charruas levantavam postas de terra castanha, brilhante e ouvia-se de onde em onde o praguejar dos homens contra os animais. Nas figueiras, apanhavam-se à pressa, os últimos figos. A vida da aldeia, numa atitude de beleza e força, jorrava como seiva. Já o Sol se escondia atrás dos penedos da cumeada quando todos voltaram à aldeia. Os homens entraram nas tabernas e beberam brindando àquela dádiva do céu, as mulheres apressavam a ceia e os rapazes estenderam no chão os corpos cansados. 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Era quase noite quando o pobre de gravata preta apareceu ao fundo da estrada. Vinha trôpego e mal arrastava os pés. A mesma cara lúgubre de todos os dias. Parou à porta da taberna e nada lhe disseram. Parou junto dum grupo de rapazes e nada lhe disseram. A boca, num ritus contorcido dizia incompreensão por aquela atitude. Fitou os rapazes, mediu-os como num desafio e um nervosismo estranho se apoderou dele. Não, não podia mais e gritou com quanta força tinha: - Eh filho duma vaca! Eh cães danados. Os rapazes nem sequer se voltaram. Partiu, andando às guinadas, como um corpo sem alma. Sentiu-se no mundo mais só do que nunca e descarregou contra si mesmo o veneno que trazia lá dentro gritando até enrouquecer e ficar estendido, sem forças, nas pedras da calçada: - Sapo e Lagarto, o meu pai matou um porco! 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO RESPEITA A MINHA DOR CASAMENTO de amor seis anos atrás. António de Campos e Maria da Luz Ferreira; depois Ferreira de Campos. Perdidas as ilusões, além dum sem número de coisas amargas só lhe restava aquele «de Campos» a tornar-lhe o nome maior e a prendê-la como se fosse uma corrente de forçado. Se nuns dias a defendia um concha grossa feita de tolerância, noutros, o seu corpo era mole e a angústia, como um punhal, rasgava-lhe as carnes. A boca sabia-lhe então ao fel da derrota. Toda a gente a tratava de D. Luz. Uns por preguiça ou comodidade, outros por respeito e talvez alguns – era ela quem assim pensava – pelo brilho aveludado dos seus olhos quentes. O marido, gerente e accionista duma fábrica de 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO produtos químicos, chamou-lhe Maria no momento das primeiras confidências amorosas e, decorridos seis anos, ainda conservava inalterável este tratamento. D. Luz tinha passado a noite numa insónia doce. De manhã descerrou as pálpebras languidamente e ficou algum tempo a olhar a cova deixada na cama pelo corpo do marido. Deu-se a um exame frio. Sentia-se outra. Aquele beijo cansado que ele lhe estampou na testa, o beijo de despedida de todos os dias, comparou-o a umas pílulas que o pai e os empregados manipulavam na farmácia, para acalmar tosses fundas e rebeldes e curar todas as doenças de peito. Ai de quem as fizesse diferentes umas das outras! Papá praguejava, tratava de burros os ajudantes, mandava refazer o cilindro de pasta balsâmica, um cilindro negro, mais esguio e comprido do que um lápis, cortava-o com uma espátula fina, enrolava os pequenos bocados num pó amarelo canário até lhes dar forma e acabava murmurando voluptuosamente: «as pílulas têm que ficar exactamente iguais». Iguais eram os beijos de António de 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Campos mas calmos e frios, dados pela medida dum hábito velho. - Haveria outra mulher na sua vida? Em tempos, D. Luz tinha feito vezes sem conto esta pergunta a si própria. A seguir espaçou mais o desejo duma resposta que fosse certeza e por fim venceu-se não voltando a conjecturas que a torturassem sem utilidade. Talvez tudo se modificasse, tudo se evitasse se ele tivesse abandonado aquela calma metódica, se a beijasse de quando em quando com violência. Apertar-lhe-ia o pescoço nos braços sedosos, pedir-lhe-ia com doçura que não fosse à fabrica. Depois iriam correr estradas, viver, respirar, como numa aventura. - Estás doente? Parece-me que dormiste mal. - Não, não estou. Sinto-me até bem. - Gemias... Um arrepio sacudiu o corpo de D. Luz ao recordar este fim de diálogo. Perguntou a si própria se teria pronunciado o nome do outro, enquanto sonhava. Se assim fosse nem 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO mesmo aquele beijo calmo da despedida lhe teria dado. Reanimou por instantes. Quis tornar coisa segura este raciocínio mas voltou a lambê-la uma onda de incerteza. Olhou o relógio de pulso. Faltavam cinquenta minutos para a hora marcada. A vida não era um prémio da indecisão... Tocou a campainha e ordenou à criada que lhe arranjasse um banho. Levantou-se da cama ao ouvir o automóvel sair da garage. Era-lhe familiar aquele roncar de motor e a seguir o bater compassado dos cilindros. Tudo se perdia num sussurro que se misturava com os outros ruídos da rua. Deu uns passos, abriu a porta dum móvel grande de nogueira e tirou lá de dentro um roupão azul. Olhou-se, por algum tempo, ao espelho. O roupão entreaberto deixava a descoberto uma das coxas. Perdeu-se numa auto-contemplação em que desafiava todas as mulheres e principalmente as de mais de trinta e menos de quarenta anos. D. Luz sentia-se parada entre estes dois limites. Um horror fundo se apoderou dela ao lembrar o tempo que faltava para ultrapassar o último. Não, não tinha quarenta anos. 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Reparou no rosto. Estava vermelho. Disse consigo: «Que raiva!» Pensou melhor. Não era raiva decerto. Soava mal. Não, não era. Indignação sim; sim, indignação. Seis anos... Os mesmos beijos frios e calmos, seis anos de beijos frios e calmos... - O banho está pronto minha senhora. Reviveu o encontro do dia anterior, os passos, incertos daquele passeio... Nunca o perfume das rosas tinha sido tão doce. Eram belas as rosas. Ali estavam francas, pendendo para quem quisesse colhê-las. Quanta dificuldade para esconder todo um passado que estava a ser morto, que seria enterrado ali mesmo naquele banco de jardim. Venceu tudo, venceu até a própria vida e sentiu-se livre como o vento, como as rosas que engrinaldavam as colunas do lago. E nua, despida de preconceitos, como a estátua de mármore que parecia banhar-se ao fundo. Foi quando ele lhe pegou nas mãos pálidas e azuladas que o passado morreu. Fixou-o num olhar brilhante. Chamou-lhe Maria da Luz. Voltava a ser a Maria da 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Luz do tempo dos sonhos. Como isto era belo! Perguntoulhe a medo se gostava de rosas. Como tudo era belo. O peito de D. Luz arfava, o ar que respirava era doce e perfumado, o sangue ruborizava--lhe o rosto pálido e o coração batia com força e parecia querer fugir-lhe do peito. Flores, perfume, promessas de amor. Aquilo era a felicidade; aquele era o seu mundo. E ele falava baixo, baixo, tão baixo como se a sua voz fosse o embalo lento e sereno dum sonho. Maria da Luz! Que encanto o seu nome pronunciado por aqueles lábios grossos. Ficaria de boa vontade a vida inteira a ouvi-lo, iria a toda a parte só para beber as suas palavras, para queimar-se no seu hálito quente. Tudo o que estava para trás daquele encontro lhe causava horror. Agora não havia a mais pequena possibilidade de vida em comum com António de Campos, o homem que lhe tinha estropiado e nome e cortado todos os anseios. Aquela voz cansada, sem expressão... Não, não compreendia. Onde estava a sua dignidade de mulher quando se deixou amachucar seguindo secamente os conselhos do pai? Onde estava? 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Bastavam aqueles seis anos. Não suportaria mais o marido. Desprezava-o até. Havia de dizer-lhe cara a cara tudo o que recalcara em tanto tempo. Seguiria depois o seu caminho. António de Campos começava a parecer-lhe um monstro. Via-lhe a cara redonda, dilatada, como se estivesse a olhá-lo por um vidro coberto de água da chuva. Um monstro, efectivamente. O constante pigarro da bronquite e a carne tremendo como se fosse gelatina. Se visse por muito tempo aquele rosto parado, na sua frente, endoideceria. Talvez não fosse cómodo gritar-lhe o ódio, o desprezo que a possuíam. Uma carta simplesmente e mais nada. Não, nunca. Dir-lhe-ia tudo, enfrentá-lo-ia, vê-loia amarrotado, vexado. Só assim apagaria os sofrimentos que lhe causara. Na sala de trabalho, o relógio principiou a bater horas. Contou com atenção as pancadas e correu para o quarto. Procurou um vestido e disse para si: «Levo o verde que a modista mandou ontem. Ele diz que os tons verdes fazem 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO realçar a minha beleza e que gostava de pintar-me vestida de verde». Pintor! Um artista! A D. Luz pareceu que só os artistas sabiam amar. Como ele tinha falado das flores, da cor e da primavera... Tudo tão diferente das cotações, dos preços, dos negócios. Tão diferentes como o dia da noite. Era o dia. Ele era o dia, o sol a vida, e António de Campos a noite, uma noite escura, sem estrelas. Levo o «tailleur» verde, pensou. Foi à janela ver como estava o tempo. Umas nuvens negras, como os rolos de fumo saídos das chaminés da fábrica de produtos químicos, salpicavam o céu. «Tendência para chover», eram os sinais dados pela estação de rádio na noite anterior. Um «tailleur» num dia daqueles pareceria mal. Diriam na rua que não tinha casaco. Na rua sem casaco, num dia daqueles como qualquer costureira pretensiosa... O cabelo... Faltava pentear-se. D. Luz teve um momento de desespero. A mesma maçada sempre que tinha pressa. Não conseguia ajeitar o cabelo. Não devia fazê-lo esperar. 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Ele gostava de pontualidade. Julgou-se a mulher mais desgraçada do mundo só porque o penteado não lhe saía bem e duas lágrimas lhe vidraram os olhos. Daí a pouco seriam dez horas. «E se ele se cansasse de esperar?» Como este pensamento a fazia infeliz e amarrotada... Quase um papel inútil deitado no cesto imaginário do esquecimento. Voar, sim, voar. Um momento seria o bastante para perder tudo. Mas não, ele não se cansaria, decerto. - Maria da Luz não há cores que pintem os seus olhos... Outro toque de campainha insistente. - Aperta aqui o vestido. Estou farta de dizer à modista que não gosto de coisas abotoadas nas costas. Despacha-te, tenho pressa. Hoje não almoço em casa. Se alguém telefonar diz que só chego à hora do jantar. Chama um táxi. À noite, ao voltar a casa, D. Luz vinha cheia de decisão. Impossível subir mais aquelas escadas frias, de pedra, ver aqueles vasos azuis com plantas de estufa, fazendo alas, um em cada degrau como sentinelas. Subiu lentamente. Parecialhe que ia entrar num túmulo. Não, não iria ali sepultar o seu 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO sonho. Nada daquilo lhe pertencia já. Tudo estaria acabado dentro de algumas horas. Entrou no quarto, tirou o casaco dos ombros e dirigiu-se à sala de trabalho. sentou-se num «maple». Sentia-se uma estranha. Pareceu-lhe mesmo ter vindo pela primeira vez àquela casa. Abriu o interruptor do móvel de dezasseis válvulas e cortou rapidamente a voz duma locutora francesa que dava notícias. Não compreendia porque a irritavam as vozes das mulheres. Procurou no quadrante outro posto. Tino Rossi, gostava de Tino Rossi. A voz monótona e chorada do corso murmurava coisas de amor. D. Luz estirou-se no «maple» e cerrou os olhos, sorrindo. Com a mão direita acariciava levemente a esquerda. O corso parou de cantar e D. Luz continuou a acariciar a mão esquerda. António de Campos entrou. D. Luz nem ouviu o ruído da chave na fechadura. Só quando a criada veio dizer-lhe que o jantar estava na mesa, acordou dos sonhos e deixou de acariciar a mão. 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Não se sentia segura de si. Seria que aquele corpanzil alto, obeso quase, que a sua presença ainda a dominava? Encolheu os ombros como se este encolher de ombros fosse um sinal de desprezo absoluto e sentou-se à mesa. Veio o inalterável beijo na testa... Uma náusea enorme revolveu o estômago de D. Luz. O jantar decorria numa calma aparente. D. Luz olhava, de vez em quando, de soslaio, o marido. António de Campos comia lenta e imperturbavelmente. - Sais esta noite? Porque teria feito aquela pergunta? Pareceu-lhe até que pela primeira vez lha fazia. Não, decididamente, não era por ali que queria começar. «Sais esta noite?». Não devia tratá-lo de modo tão familiar. «O senhor sai esta noite» é que devia ter dito. - Não, não saio. Sinto-me aborrecido. Hoje houve discussão dum relatório da gerência. Não descanso enquanto não conseguir um aumento de preços. A margem de lucro é miserável. 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Meteu uma garfada de sparguetti na boca, mastigou devagar, pôs os olhos em D. Luz e continuou: - Tenho de encontrar uma saída. Os cálculos de produção são baixos e o pessoal ganha cada vez mais e trabalha menos. Malditos cálculos, malditos lucros, pensou D. Luz. - Parece que não estás bem disposta? Olhou o marido com uma quase insolência, arrepanhou os lábios, sorriu num sorriso cínico e encolheu novamente os ombros. - Não compreendo porque estás hoje tão interessado pela minha pessoa... António de Campos olhou-a e disse para si: «temos novo pedido». D. Luz fazia riscos nervosos, com a faca do talher de peixe, na toalha. Premia-a com quanta força tinha e movia os lábios. Via a cara gorda do marido na toalha e riscava em todos os sentidos como se o esfaqueasse. «E se lhe dissesse que gostava de outro homem?» Talvez o amachucasse ou talvez isso não significasse coisa alguma. 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO - Maria da Luz, os teus olhos brilhantes são um mundo a nascer... Lá vinha de longe a voz que a embalava, que lhe dizia que tivesse coragem, que fosse mulher. Fixou António de Campos. Ia dizer «estou farta desta vida». - Sinto-me nervosa... Relaxaram-se-lhe os músculos do rosto e a expressão perdeu o vigor. - Deves ir ao médico, Maria. - Não preciso de médicos. Estas palavras foram ditas com cólera. - Não posso com a tua atitude de alheamento. O que sou eu para ti? Não, não posso. António de Campos levantou os olhos do prato, fitou o rosto da mulher e ficou a olhá-la, perplexo. Aquela cara redonda e apática foi endurecendo a pouco e pouco. Envelheceu mesmo alguns anos. Uma ruga dividiu-lhe a testa em duas e os cantos dos lábios caíram-lhe. Indignou-se. Ingratidão. Aquilo só podia ser ingratidão. 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO D. Luz fitava-o com a insistência dum desafio. Teria bebido em casa de alguma amiga? Nunca tinha dado por que ela bebesse. - Tu não estás boa, Maria. Isso são nervos – repetiu firmemente. - Monstro. Sim, é uma monstruosidade a vida que me dás. Acabou-se. Ouve bem, não quero mais viver nesta casa. Não posso. - Não te compreendo, Maria. É preciso chamar um médico. Que mais queres que faça por ti. Alguma vez pediste alguma coisa que te negasse? – As palavras saíam-lhe magoadas. – Não há muitos dias passaste por uma ourivesaria e mostraste vontade de ter uma pulseira de vinte mil escudos. Nessa mesma tarde a pulseira era tua. Monstro porquê? Maria, isso são nervos. Nervos ou ingratidão. Procuro adivinhar os teus desejos, pago os teus caprichos sem discutir. Vendi o carro para comprar outro só porque me disseste que já estava velho. Não sei, Maria, não compreendo... 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Limpou os lábios ao guardanapo, atravessou a sala em passos largos e destrambelhados e saiu. D. Luz, com a cabeça encostada a uma das mãos, fitava as rosas vermelhas duma jarra de prata cinzelada. Os olhos, abertos, muito abertos, já não viam. Levantou-se a custo da mesa. Atravessou o corredor como um autómato e foi sentarse em frente de uma papeleira antiga, na saleta. Parecia delirar. A vida corria-lhe à frente dos olhos, via-a projectada numa parte da parede onde não havia quadros. Atirou-se para a frente e caiu a soluçar, com as mãos a esconder o rosto. As imagens misturavam-se secas, insistentes com as últimas palavras do marido. Os braços penderam-lhe ao longo do corpo. Os olhos, fora das órbitas, diziam desvairamento. Depois recompôs-se, abriu, cheia duma decisão estranha, uma gaveta e procurou uma caixa de papel de carta. Começou a escrever. Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. As letras dançavam no papel... Limpou os olhos. 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Foi uma loucura. Estes dias felizes não se repetirão. Respeite a minha dor, suplico-lhe. O meu destino estava marcado muito antes de nos conhecermos. Não é possível qualquer outro encontro. Era conveniente suprimir a palavra «felizes». Mesmo aquele tom de quem chora não a satisfazia. «Suplico-lhe...» Mas suplicar o quê? Acendeu um cigarro e rasgou o que escrevera. Não, nada lhe diria, uma carta... uma prova... Um olhar fugidio percorreu o braço esquerdo e a pulseira cravejada de brilhantes... E com o mesmo fósforo com que acendeu um cigarro queimou o pouco que fora capaz de escrever e murmurou: - O António tem razão. São os nervos, os nervos malditos. Sim, devo ir ao médico! 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO A FUGA DEPOIS de tactear o monte de feno e afagar as botas, deitou-se e fez todos os esforços para não dormir. Voltas e mais voltas em cima da enxerga e os olhos abertos, muito abertos. Soprou a candeia com força como se a luz fosse má testemunha dos próprios pensamentos e, sufocado por uma onda de tristeza, rompeu a soluçar. Saudades? Medo? Saudades... Nascera ali mesmo, no fundo do barranco, e em dez anos não vira mais do que a ribeira correndo e a montanha fe1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO chada, coberta por um mato ralo e enegrecido. Ali ouvia o zumbido do vento, o choro da chuva e o rumor da ribeira... E tudo isto era triste... Pensou na vila, nas casas da vila, procurou assobiar a música do Carrossel, mas parou às primeiras notas. A ovelha soltou um balido e Joaquim assustou-se. Tudo o assustava naquela noite. As folhas do sobreiro velho que caíam sobre o telhado, o ladrar dos cães, o estalar dos ramos secos... As cores das casas da vila... Cores de que não sabia o nome sequer. Ali no vale, como no fundo dum poço, diferençava o verde pelo contacto com as plantas que cresciam em redor, o amarelo da palha do centeio, e chamava pardo ao cinzento das nuvens, à terra molhada dos lameiros, à cor calcinada dos cabeços e dos penedos, à casca gretada das árvores. Pardos eram também os fatos que vestia, pardos eram a porta roída do caruncho por onde entrava e saía todos os dias, as paredes e o chão da casa. De uma vez, a mãe disse-lhe numa voz gritada: «Este ano vamos à feira, Joaquim». 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Os pais eram pessoas de poucas palavras. Sabiam o nome das plantas que semeavam, do pouco que viam, e conheciam uma dúzia de verbos que se ligavam a acções e a necessidades imediatas. Herdara-lhes esta quase mudez. Passado algum tempo, o pai trouxe-lhe umas botas e Joaquim, volta e meia, perguntava impaciente: - Mãe, quando é que vamos? E ficava a sonhar sem saber em quê. Compraria uma faca, uma faca com cabo de ferro, e seria da marca «Corneta». O pai dizia, sempre que cortava o pão duro, que não havia facas como as da marca «Corneta». Numa tarde, a mãe avisou-o: - Vamos amanhã. Subiu penosamente a encosta ao lado dos pais e os novos caminhos que trilhou encheram-no de contentamento. Mas... mal aguentava as botas. Aqueles pés largos nunca até então tinham tido qualquer espécie de sujeição. Doíam-lhe, mordiam-lhe na alegria. 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Voltou com uma faca nova e os olhos brilhantes e embevecidos a enterrarem-se debaixo das cores afrontosas da serra. Tinha visto um mundo... um mundo de casas vermelhas, brancas e azuis, um mundo de cor. Já não construía açudes nas margens da ribeira e aborreceu as brincadeiras antigas. A visão da vila enchia-lhe o peito até transbordar. Esquecia-se da lenha, esquecia-se da folha para as vacas. Iam dar com ele, os olhos parados no ar, como se atravessasse as fragas agudas e estivesse a ver o que se passava do outro lado. Não sentia as picadas dos tojos e, ao jantar, ficava muitas vezes com a colher das papas em frente da boca até que o pai dizia, cortando-lhe com o seu azedume um bocado do sonho: - Come, alma danada! E o Joaquim comia sorvendo ainda o cheiro doce dos bocados de carne frita que a patroa dos pais lhe dera no dia da feira. E a música do Carrossel? Sempre, sempre nos ouvidos. 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Abafou os soluços na manta de retalhos com que se cobria. A cabeça pendeu-lhe, mas logo a seguir abriu os olhos sobressaltado. Não, não dormiria, nem esperaria que o galo cantasse. Deixou escorregar o corpo pelas tábuas da tarimba e foi ao postigo olhar as estrelas. A manhã tardava em romper. Sentou-se no bordo duma canastra vazia, esteve algum tempo a esfregar os olhos e ganhou alento. Procurou a roupa e vestiu-se. Ainda olhou para o lado onde estava a ovelha. Pôs as botas às costas e, ao abrir a porta, os gonzos rangeram. Estacou, a respiração cortada por aquele ruído. A tacto encetou a subida da encosta. Escuro, escuro como breu. Tropeçou em todas as pedras do caminho, chorou, mas o desejo de voltar à vila saiu vencedor do medo e das dores. «Se o pai desse pela falta»... Este pensamento dobrou-lhe a vontade de vencer a subida do monte. Era manhã clara quando chegou à estrada que ia dar à vila. Olhava para tudo com os olhos ridentes dum namorado. As 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO copas verdes dos castanheiros, os eucaliptos prateados, o orvalho que rolava das folhas, tudo coisas novas. Veio o sol ajudar ainda mais o seu embevecimento e, quando se encontrou perto das primeiras casas da vila, Joaquim deitou-se na relva molhada. Estava cansado pelo esforço e pela emoção. Pouco tempo esteve quieto, porém. Sentou-se numa pedra e calçou as botas. Depois deu alguns passos e praguejou porque os pés lhe doíam. Ia descalçar-se, mas um pudor estranho se apoderou de si. Não, não entraria descalço... a vida era quase sagrada. Sem que soubesse explicar não se alegrou ao ver de novo as casas azuis, vermelhas e brancas. Encontrou as ruas desertas e a solidão amarfanhou-o. Como tudo estava diferente do dia da feira. No largo nem meninos com gaitas, nem barracas, nem a fanfarra alegre do circo. Onde moraria o homem que o quisera contratar na altura da feira? Perguntou a meio mundo até que lhe apontaram uma ruela torta e inclinada como a encosta da serra. 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Disseram-lhe que ficasse, deram-lhe um machado e apontaram-lhe um monte de lenha. Era preciso rachar aquilo tudo até ao jantar. O machado era pesado demais para os seus braços tenros. Doíam-lhe as costas. Cortou, cortou, cortou. Os braços pesavam-lhe como se fossem chumbo e latejavam-lhe as fontes. Chamaram-no para comer, caía o sol a pino. Entrou na cozinha com o peito a arfar de cansaço. Disseram-lhe onde se sentar e puseram-lhe na frente um prato de papas de milho. Depois, apontaram-lhe o poço e um balde suspenso duma corda. Davam-lhe toda a água que quisesse beber... 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO SILÊNCIO ESFARPADO ALDEIA... Noite escura, noite de trevas. Ninguém pelas ruas, nem sequer acenderam os candeeiros; só algumas nesgas de luz, frouxas, amarelas, saindo das soleiras das portas, lambem o chão negro das ruas. Rumor, só o da água da ribeira caindo do açude e, se os passos de alguém esfarpam o silêncio, logo morrem abafados pelo açoite do vento e pela distância. Numa casa pequena igual a tantas outras... Ela, cansada, de olhos vermelhos, abertos, fitando uma criança que dorme. 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Ele, atrás das mulas, por córregos medonhos, vivendo no escuro. «E se a guarda viesse»? A este pensamento, a mão tremeulhe no cano da arma. «Mas não, não viria. Logo à primeira noite seria pouca sorte». Medo, depois confiança tão ténue como um fio a partir-se. Ao mais leve ruído, ao açoite do vento na ramagem das árvores, a mesma pergunta: «E se a guarda viesse»? Mil vezes sentiu vontade de dizer ao companheiro que não tinha nascido para aquilo, mil vezes lembrou o filho, mil vezes ouviu a mulher a dizer-lhe que não fosse. E a arca do milho vazia? E o Gonçalves da loja? E o dono da terra? Viu ali, no escuro da noite, o tempo em que era só. Nem a nata dos lameiros lhe causava arrepios, nem o peso da enxada o fazia vergar. Veio a mulher – uma canga... Veio o filho – outra canga... Curvou a cabeça para o chão da vereda e embrenhou-se mais pela vida adentro. Sorte como a sua, ninguém, ninguém a tinha. Lembrava fulano, lembrava sicrano. Porque seria que a sorte não queria nada consigo? 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Porque seria que o milho faltava na arca? O Gonçalves da loja... Nem sabia ao certo quanto lhe devia. Mudos, ele e o companheiro farejavam no escuro, e as mulas seguiam na frente, carregadas, em passos cansados. O caminho parecia que nunca mais acabava e se chegassem ao fim talvez o coração se lhe partisse de tanto bater. Ansiedade, medo e alegria viveram muitas horas em choque naquele peito dorido. Ela, em casa, não despegara os olhos do menino. «A guarda? Se ele não voltasse?» Um vácuo tão grande no peito como a negrura da noite. Nem queria pensar o que seria a vida sem ele. Depressa morreu a angústia daquela noite, naquele casebre negro. Era inverno mas o sol veio de manhã, por acaso, e ele chegou com o sol e as mulas, libertas por acaso também. Com o peito aberto à aragem fria da manhã, nenhum córrego lhe custou a subir. Riram os dois. Ela e o companheiro. Voltou e tudo fora fácil, mesmo demasiadamente fácil. 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Atravessou a rua sem o olhar perdido dos outros dias e não evitou a loja do Gonçalves. Entrou mesmo e disse com quanta força tinha: «Aqui tem, quero pagar o que devo». Depois vieram os sonhos. Falou à mulher «Que iria outra vez, que não havia perigo, que a guarda não sabia daqueles “corgos” malditos». A ida foi de novo ansiedade, a volta, alegria e aquilo passou a fazer parte da vida de todos os dias. Muitas vezes fitou a enxada. Certo é que fugia de olhá-la e não compreendia por que os olhos lhe paravam muitas vezes naquele canto da casa. Talvez fosse remorso, um remorso fundo. Mas... tudo ia mudando. Mais sonhos. O menino poderia ir à escola... Seria como os outros meninos. Começavam a esquecer quanto a vida lhes fora má e já não sentiam as dores dos companheiros que ficaram no campo, que não deixavam as cavas. Mas as mulas? Sempre a mesma carga pequena que dava para pouco. E o tempo sem fim que levava a chegar à fronteira? E as noites, perdidos nos matos? E a guarda? Uma história qualquer como a do lobisomem que virava em cavalo 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO e corria sete adros numa noite... Nem encostas a subir, nem ribeiras a passar, nem sombras de matos que lembravam fantasmas... Comprariam um carro. E um dia o carro chegou. Correram velozmente pelas estradas e as noites agónicas deixaram de o ser. Contas e sonhos, tudo se dilatou. O Dr. Velho com falta de dinheiro... mas tinha uma quinta e a quinta podia ser dele. Mesmo toda a aldeia podia ser dele... Questão de dinheiro. A mulher pensou demais em prendas, o casebre deixou de ser negro e nunca mais choraram o incerto da vida. Na aldeia, os outros olhavam de lado. Dizia que a inveja os mordia e os outros afirmaram que o dinheiro lhe tinha subido à cabeça. Partiram, como sempre, de noite. A carga era grande e o carro custou a pegar. Não sabia explicar o que sentia naquela noite e ainda disse ao outro que seria melhor transferir a viagem. O companheiro sorriu e respondeu que a noite era igual a todas as outras. Partiram mas não lhe saía aquilo da cabeça. Viu uma prisão e encontrou-se do lado de dentro das grades. Depois o 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO menino, em casa... A mulher... O que seria de todos? Suava... Os olhos muito abertos não deixavam de fitar o bocado de estrada iluminado pelos faróis. Nem na primeira noite lhe custou tanto a ida. A mulher... O filho... Sós, no mundo, aos encontros dos outros. O dinheiro, ganho em tantas noites, perdido estupidamente, em uma só. Não voltaria livre à aldeia. Iria sim mas ao lado de um guarda, de carabina ao ombro. E os outros a rir... Sim, ririam dele. Pensou na enxada e viu-a a um canto, cheia de ferrugem. Talvez fosse melhor... Os outros continuavam a rir. A mulher chorava... A quinta do doutor já não seria sua... Nem a aldeia toda. Apertava-selhe um nó na garganta, e na boca seca, sem saliva. só tinha amargor. Todos os sonhos desfeitos... Teve ódio ao mundo, à mulher, ao filho. Ele na prisão e todos, todos cá fora. O Sol... nunca mais o olharia senão através das grades da cadeia. A mulher... outro homem viria. O dinheiro dele para outro, para outro que não tinha sofrido, que não tinha lutado. Pensava mal, sabia que pensava mal, de vez em quando, a 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO calma surgia. Mas o caminho, naquela noite, parecia não ter fim. A uma curva da estrada apareceu a guarda. Mandaram-nos parar. O companheiro crispou as mãos ao volante, ele olhava para trás e mesmo sem ver nada sabia que tudo estava perdido, tudo. As molas do carro rangeram e a velocidade cresceu. Um tiro, um tiro certeiro, que ele não viu. O companheiro prendeu com mais força a roda do volante, cerrou os olhos e o carro continuou a ganhar velocidade. Os olhos do companheiro, quase vítreos, continuavam a olhar a estrada. Numa voz sem força pediu:- Segura o volante... Estou ferido... Não posso. Sim, estava tudo perdido. O outro pendeu a cabeça. Perguntou qualquer coisa para lhe ouvir a voz. Nada, a não ser o silêncio. O companheiro morto, ali, era uma denúncia. Mas... talvez não estivesse morto... O hospital... Depois, teria de contar tudo. As grades da janela da cadeia, outra vez... A mulher... O filho... Não... O carro deixou de rodar. Foi o 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO instinto que fez para o carro. Aquele corpo morto, ali a seu lado, era uma denúncia. Pegou no corpo e tirou-o do carro. Era preciso esconder aquela prova maldita. Depois a família? E os outros homens da aldeia que não o viam a bem? Apontá-lo-iam. Foi ele, foi ele... Suava. Voltou a meter o corpo dentro do carro. Descarregou os sacos e foi escondê-los debaixo do mato. Iria ao hospital. Assim, sem carga, ninguém lhe poderia pegar. Mentiria, juraria se fosse preciso, que não viu a guarda. Sim, iria ao hospital. Voltaria depois, quando ninguém esperasse, para levar os sacos. Um sorriso, um sorriso feroz lhe iluminou o rosto ao pensar que, daquela vez, a carga não se dividiria. Voltou-lhe a serenidade e murmurava como se acordasse dum sonho, enquanto as mãos, como garras, seguravam o aro do volante: - Desta vez tudo será meu! 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO A ESPERANÇA VOLTOU DE MANHÃ CHEGOU cansado a casa. Bateu as botas brochadas na soleira da porta e a lama caiu, em postas, no chão. A camisa de cotim estava ensopada em água e colava-se-lhe ao corpo. Chovia. A mulher perguntou: «E as batatas?» e fitou-o à espera da resposta. Tossiu, encolheu os ombros e respondeu com um nó na garganta: - Lá ficaram a nadar na água da cheia. 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Ela, de olhar parado, parecia dizer: «E agora?» António foi direito à lareira e ordenou secamente: - Vai buscar o casaco. Despiu a camisa, limpou-se num trapo velho que estava pendurado junto da lareira e vestiu o casaco. Sentou-se num banco, desatou os cordões das botas e ficou descalço a secar os pés. Dois tachos de barro apanhavam os pingos de água que caíam perto do lume. Os pés aquecidos deram-lhe uma sensação de bem estar. Pôs as mãos nos joelhos e ali esteve tempos sem fim a olhar as brasas. A mulher preparava a ceia. Ainda quis perguntar outra vez pelos estragos da cheia mas teve receio. Sentaram-se à mesa, uma mesa de castanho, pequena, com uma gaveta ainda mais pequena. Veio o tacho das couves. Ela pô-lo na mesa; depois sentaram-se um de cada lado. A cada garfada olhavam um para o outro. Ele queria contar-lhe tudo mas aquele nó na garganta não o deixava falar. A chuva continuava a cair e os pingos, cada vez mais 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO fortes, depressa encheram os tachos. Francisca foi vazá-los ao postigo. Comeu pouco. A mulher ainda disse: «Come mais» e ele respondeu: «Não posso». Levantou-se e foi buscar um naco de carne e metade dum pão de centeio. Partiu o pão em dois e fez o mesmo ao bocado da carne. Pôs tudo em cima da mesa e empurrou uma parte para o lado dele. - Dá-me a minha faca. Cortou a carne e o pão em bocados pequenos e comeu devagar. Por fim levantou-se e foi ver, ao postigo, como estava a noite. Nada viu a não ser as cordas grossas de água que caíam das telas. A ribeira, pelo barulho, parecia levar tudo à frente. Desceria ao fundo do vale se não fosse a escuridão e pensou: «Com certeza que a represa se vai despedaçar». A um estalido seco, tremeu. Eram, decerto, os toros do açude que se tinham partido. Voltou outra vez para a lareira e olhou as traves de casa: uma estava podre. Tinha avisado duas vezes o patrão de que 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO o telhado podia cair, mas ele não fez caso. Se ali dormisse talvez andasse mais depressa. Era preciso dar comida à vaca. Levantou-se outra vez, pôs uma saca à cabeça e saiu para a rua. A mulher, desesperada, gritou: - Fecha a porta depressa, senão vai tudo pelos ares. Alcançou o alpendre, acendeu a candeia e tirou do alto uma braçada de feno. Sorriu. Dava gosto ver comer a vaca. Passou-lhe a mão pelo lombo e apalpou-lhe a barriga. Faltavam dois meses. Era bom que fosse uma fêmea. Tem mais procura pelo leite e por causa das crias. Vendê-la-ia depois. Fez contas. Uma bátega mais forte fez com que esquecesse as contas. «A levada... Se os toros não aguentassem...» Não tinha muitas esperanças, aquela maldita enxurrada levaria tudo. Arrancou mais uma mancheia de feno e pôs os olhos novamente na vaca. Depois deu-lhe uma palmada no dorso e disse com doçura: - Come, Laranja – chamava-lhe assim por causa da cor. 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Apagou a candeia e voltou para casa. A mulher, sentada num banco, cosia uma camisa e ele foi tirar o morrão da torcida do candeeiro com um pau de fósforo. - Este azeite não presta. O Manuel da loja é um grande ladrão. Francisca fez-lhe sentir que precisava outra camisa. Desviou a resposta praguejando, entre dentes: - Não pára, esta chuva danada. Fincou os cotovelos nos joelhos e voltou a cara para o lado donde vinha o calor das brasa. O vento entrava pelas telhas, nas paredes brilhava o risco da humidade e o fumo enchia toda a casa. Tossiam de vez em quando. Passado pouco tempo, já ele dormitava. Acordou sobressaltado, de ouvido à escuta. O temporal continuava. Francisca deixou de coser e começou a dormitar também. A chuva caía cada vez com mais força. Tirou a onça e enrolou um cigarro para espantar o sono. Ia pensando 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO naquele vale maldito, todos os invernos o credo na boca por causa das cheias. Procuraria outro rumo... Cochilou novamente. Era manhã alta quando a mulher o sacudiu gritando: - Levanta-te, deixou de chover. Pegaram nas enxadas e desceram os combros com ânsia no peito. O caminho era estreito e escorregavam na lama. Ficaram mudos, durante algum tempo, a contemplar os estragos. - Só levantou um toro dos mais grossos... Continuaram a descer... As batatas estavam num lago de água, todas revolvidas. E tinham-se salvo porque na frente do canteiro havia um monte enorme de pedras. A água tapava-as. Era necessário cavar um rego para escoar todo aquele mar. Olhou a mulher e disse. - Vamos... As enxadas caíram na terra molhada e cortaram sem esforço. Nem deram pelo perigo de nova chuvada, trazido por 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO uma nuvem que correra do poente. Nenhuma fadiga: só força e resolução. A água, negra, carregada de terra, corria já, orlada de uma espuma branca, para o fundo do vale. Pararam e estiveram algum tempo com os olhos fitos na enxurrada. - Escapámos desta. Pode ser que isto até faça bem – gracejou o homem. Só restava uma lama aguada a tapar as terras e seria preciso fazer outra cava como se se tratasse de nova sementeira. Era já meio dia quando largaram o trabalho. Subiram devagar. «Não fora tão mau como lhe parecera», pensava António. Não sairia dali, não procuraria outro sítio. Lembrou-se da vaca e da bezerra que estava para nascer. Vendê-la-ia e pagaria então a conta da loja. Depois, se o ano não fosse ruim... Contou à mulher estes pensamentos. Sabia que ela gostava de ouvi-lo. Já à porta de casa segurou-lhe a mão. - Francisca, anda ver a vaca. 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Entraram no alpendre. António, numa carícia, passou a mão pelo pescoço do animal e disse docemente: - Eh Laranja! Calou-se, olhou a mulher e ficaram ambos pensando em melhores dias. 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO SUSPEITA ISA sabe muito bem que não gosto de tabaco fraco, que me enjoa o sabor dos cigarros ingleses e hoje, ao tirar as minhas camisas do saco de viagem, encontrou um maço de Craven. Veio direita a mim e perguntou com um sorriso fechado: - Dás-me licença? Posso fumar um destes teus cigarros? - À vontade, Isa. Chupou o cigarro duas ou três vezes, deitou o fumo para o ar e olhou-me de soslaio: 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO - Desconheço-te. Há uns tempos para cá que te acho desconcertante. Hoje os cigarros, há dias aquela maldita água de Colónia de alfazema... Meti as mãos nas algibeiras e não respondi. Lembrei-me dum desenho que tinha para acabar e fechei-me na sala de trabalho. Em vão procurei fazer alguma coisa. Volta e meia o maço de Craven e o sorriso de Isa bailavam em cima da prancheta. Doeu-me a insinuação. Nunca até então duvidara de mim. Era a primeira vez que entre nós, durante dez anos de luta e compreensão, surgira uma suspeita. Que me lembre nunca a deixara sem resposta. Sou um homem taciturno, azedo mesmo, e Isa fez sempre o possível por respeitar a minha maneira de ser. A nossa vida íntima ressente-se disto: um e outro refreamos o instinto. Viemos há poucos meses para a cidade – a cidade que eu odeio. Moldou-se-me o temperamento na Serra, a Serra me embalou; trago sempre nos olhos os horizontes sinuosos da montanha e nos ouvidos o zumbido do vento. Um ser tem1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO pestuoso... Sou como aqueles cavalos que, quando tomam o freio, só param diante do abismo. Não há meio de me habituar a estas meias tintas, ao joelho no chão, a esta vida postiça, aos modos estudados dos citadinos. A Isa tem razão no que insinuou. Desconcertante... Serei desconcertante para quem me vê a frio. Se soubesse mentir teria inventado uma história qualquer. Que comprara uns cigarros numa estação de caminho de ferro onde não havia outro tabaco. Vexar-me-ia tanto quanto me custou a suspeita. Mas mentia. O que devia fazer, eu sei o que devia fazer: contar-lhe tudo, sim. Contar-lhe tudo. Não o faço já, porque o ciúme é uma coisa medonha. As mulheres, por mais compreensivas, são de um egoísmo atroz nestas situações. Não houve premeditação, juro que não houve. Nem mesmo tenho tempo para andar na rua atrás de qualquer rapariga. Sou tímido, estupidamente tímido. Ou trabalho ou sonho. Não, nunca mais voltarei a entregar serviço meu a mulheres. Não, não quero. Isa não se esqueceu de que foi a 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO cópia dum relatório que deu origem ao nosso casamento, e isto vem agravar o que se passou. Sinto-me atordoado, mas haja o que houver, preciso de contar-lhe. - Sais depois do almoço? - Não sei ainda. - Precisava de comprar umas coisas. - Mas podes ir sozinha. Não é a primeira vez. Decerto desejava que a acompanhasse. Arrependi-me da resposta que lhe dei. Mas não fui capaz de voltar atrás. Teria sido Isa ou o vento... Ela nunca me atirou com as portas à cara, nem costuma, interromper-me enquanto trabalho. Faz um vento irritante, violento mesmo. Foi decerto o vento. Por que viria perguntar-me se saio depois de almoço? Ver o que eu fazia? A nossa vida é uma vida nervosa, premente, a vida de todos aqueles que não se habituaram a dobrar a espinha. Mas isto não quer dizer que me entregue a uma amargura sem remédio... Não vou ao futebol dar vazão às mil queixas que tenho para fazer deste mundo absurdo, mas sonho, sonho 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO com uma vida melhor onde caibam os meus anseios, os anseios de Isa e de tantos, como nós, que andam a gastar-se numa luta estéril. E sou capaz de me evadir também. Falei de evasão. Mas não: eu tinha os pés bem fincados no chão que pisava. Fui mais instintivo do que das outras vezes e muito mais humano. Sara contou-me a sua vida e eu compreendi a sua vida como compreendo a vida de todos os que sofrem. Pensei: está aqui uma mulher angustiada que precisa que lhe mostrem o verdadeiro sentido da vida, uma mulher que vai afogar-se se não lhe acudirem. Preocupou-me. Podia dizer: «isto não é comigo», mas, dentro de mim, se não andasse sempre dentro de mim um D. Quixote, encolheria os ombros como quem diz: «isto não é comigo». Se nos encontrámos algumas vezes depois do que me contou foi porque a isso fomos obrigados por questões de trabalho. Sara sabia da existência de Isa. Servi-me mesmo, para lhe incutir coragem, do exemplo dela. «Mas eu não me chamo Isa», respondeu-me uma vez. 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Depressa veio o dia em que os nossos encontros nos deram o motivo. - Esta noite acabo o seu trabalho. Entrego-lho amanhã. Os olhos de Sara tinham uma expressão distante quando me disse isto. Depois brilharam, num brilho breve e forte. Pus-me pensativo. Olhei-a por algum tempo; depois senti que a situação era embaraçosa. Apertei-lhe a mão e parti como um lobo acossado. Cheguei tarde a casa. Isa deu-me o jantar e preleccionou um pouco sobre os inconvenientes do meu velho hábito de não ter horas certas para nada. Aquele brilho breve que vi nos olhos de Sara não me largava. Pegara-se a mim de tal modo que me obcecava. Pouco dormi nessa noite. Entraram pelas persianas do quarto os primeiros indícios da luz frouxa da manhã quando saltei da cama. - Onde vais tão cedo? - Não posso dormir. 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Abri a janela e estive algum tempo preso ao movimento da rua. * Sara, vestida de cinzento, vinha radiosa naquela manhã. - Gosta do meu tailleur? - Gosto. - Você tinha razão. Nunca julguei que o cinzento me favorecesse tanto. Não queria despedir-me de si sem que me visse vestida da sua cor predilecta. Uma mania como qualquer outra... - Obrigado, Sara. Depois estendeu-me um dossier vermelho. - Aqui tem. Gostava de fazer uma revisão consigo. - Mas... Chega atrasada ao escritório. - Não posso lá ir hoje. Caminhámos algum tempo lado a lado sem dizer nada um ao outro. Olhei o rio. Estava calmo. Cinzento, cinzento de prata como o fato de Sara. Um ferryboat aproximava-se do 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO cais. Sara fitou o barco e apontou as gaivotas que voavam em volta. - Quer ir além, ao outro lado? – perguntei. - Sim. Sentámo-nos na tolda do barco e Sara chegou-se muito a mim. Senti que o seu corpo me pedia aquela protecção que não lhe podia dar. Segurei-lhe uma das mãos e fitámo-nos nos olhos. E os olhos de Sara estavam magníficos. Magníficos e alegres. Alegres duma alegria sem sombras. Pareceu-me uma ave excitada pelo primeiro voo longo. Falava, falava e os lábios grossos tremiam-lhe da emoção. - É bom ver as coisas só pelo lado belo... Fomos até à proa do ferryboat, encostámo-nos aos ferros da amurada. Sara passou-me o braço em volta do pescoço e os nossos rostos ficaram colados. - Não sei explicar as saudades que já tenho. Ouve, gosto de ti. Lutei, mas não fui capaz de vencer-me... Disse isto com a voz entrecortada pela emoção. 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO Embebedaram-me as palavras de Sara. Voltava a ser aquele homem instintivo, tempestuoso que não sabe parar senão em frente do abismo. E em Sara a tempestade era a mesma. Não pensei em Isa, não pensei em quase nada. Ao jantar pouco comemos. Partimos a caminho do cais e Sara pediu-me para saber a hora do último barco. Sentámo-nos na areia. A lua lambia tudo com a sua luz branda e fria. - Diz-me que não te esqueces de mim, que não me queres mal. - Não. É difícil esquecer... Encostou a cabeça ao meu ombro e uma lágrima quente molhou-me a cara. Chorei também. Não tenho vergonha de dizer que também chorei, nem de afirmar que foi Sara quem primeiro se recompôs. A luz da lua recortava-lhe o rosto. Sorria agora embevecida. Abraçou-me e disse dum modo exaltado: 1 O ÚLTIMO ESPECTÁCULO - Tu choraste também. Que feliz eu sou por teres chorado. Sabe tão bem sentir que alguém chora por nós. Ouve: nunca tive ninguém que chorasse por mim! Se dissesse a verdade a Isa, ela não acreditaria. Nunca mais vi a Sara e não a quero ver. Isto tem-me custado muito mais do que se possa julgar. Mas não; nunca mais a verei. Talvez mais tarde, mais a sangue-frio seja capaz de dizer tudo a Isa, contar-lhe como as coisas se passaram com o ar mais natural deste mundo. 1